COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO

SONETOS 2014 POESIA

RICARDO CUNHA COSTA

BH/16

EDITORA PENA FIEL

_________________________________________________________ COSTA, Ricardo Cunha. 1976 - ... SONETOS 2014 - Espólio literário: SONETOS VOL. VIII / Ricardo Cunha Costa, Belo Horizonte: Editora Pena Fiel, 2016. pp. 69 – (Coleção Espólio Literário) ISBN .... 1. Poesia em língua portuguesa 2. Geração milenarista 3. Soneto contemporâneo __________________________________________________________

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Impresso no Brasil Primavera de 2016

RICARDO CUNHA COSTA

SONETOS 2014 COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO -SONETOS / VOLUME VIII-

POESIA PRÉ-EDIÇÃO

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EDITORA PENA FIEL BELO HORIZONTE - MINAS GERAIS 3

SONETOS 2014

COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO SONETOS__________________________ 10 VOLUMES TREZENTAS _____________________ VOLUME ÚNICO RONDÉIS, RONDOS E BALADAS ________ 2 VOLUMES REDONDILHAS E DÉCIMAS ____________ 2 VOLUMES GAZAIS E HAI-CAIS _______________ VOLUME ÚNICO IMPROVISOS E PROSAÍSMOS ___________ 2 VOLUMES PROSA LIGEIRA _____________________ 3 VOLUMES POESIA DISPERSA ________________ VOLUME ÚNICO CONTOS ________________________ VOLUME ÚNICO

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DOS ORIGINAIS MANUSCRITOS DE RICARDO CUNHA COSTA

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RICARDO CUNHA COSTA OUTRO PREFÁCIO OU PREFÁCIO OUTRO Os sonetos apresentados na página a seguir registam o período em que minha produção poética passou de ocasional a quotidiana. Sim, datam de 2014 minhas primeiras publicações quotidianas em redes sociais e blogues. Até então, devo admitir, possuía grande pudor em me expor como poeta e simplesmente não considerava a possibilidade de ter um público leitor. Forçoso é admitir, também, que ser lido e ter o retorno de leitores promoveu uma verdadeira revolução no modo como eu me colocava em relação aos meu escritos. Explico-me: Antes de publicar meus poemas em ambientes virtuais, eu escrevia tão-somente para mim mesmo... “Escrevo para eu me ler” era a minha autodefinição de poeta. E embora eu escreva regularmente desde o longinquo ano de 1991, jamais pensei que meus versos fossem relevantes ou interessantes senão para mim mesmo. Evidente que me entristecia ver meus alfarrábios mofando nalguma gaveta de escrivaninha, mas sinceramente não enxergo no mercado editorial muito interesse por novos lançamentos de poetas. Ao contrário, publica-se em geral poetas mortos, cujos direitos autorais são já de Domínio Público... Aliás, uma das razões para eu escrever era justamente não encontrar poesia semelhante a que eu admirava entre os autores contemporâneos. Embora seja avesso a rótulos ou movimentos artísticos programáticos, por pura pilheira costumo a definir-me como “milenarista”, isto é, como um escritor apocalíptico de fim de milênio. Ombrear-me a são João, são Malaquias ou Nostradamus, todavia, não permite ao leitor ter uma noção correta de minha obra. Não, eu não costumo a escrever sobre misterios ou tecer comentários sobre as coisas dos tempos finais. Sou milenarista apenas por ter vivido o curioso estado de coisas que acompanhou o fim do segundo milênio da Era Cristã... Apenas por isso. Nascido em 1976, cresci achando que o ano dois mil era o “dia de são nunca” que, de repente, estava chegando... E chegou... E passou... E, passados já dezesseis anos do início do “Novo Milênio”, não significa quase nada. E exactamente isso me seduziu nesse sistema

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SONETOS 2014 artístico-filosófico: Não se leva a sério! É um ismo que hoje em dia não significa quase nada. Meu milenarismo, portanto, é antes um acidente que uma convicção... Se me considero membro de uma geração literária milenarista, não pretendo iludir o leitor com a ideia de que considere tal movimento exista de facto. A sua não existência permite-me fazer dele o que me aprouver, inclusive um extenso programa que justifique e ordene a poesia produzida nesses anos de virada milenar. Não, caro leitor, não me proponho a desenvolver aqui esse emaranhado de equívocos no afã de tornar mais deleitáveis ou mais inteligíveis os poemas deste livro. O que posso sintetizar com o mínimo de palavras possível é que o actual Milenarismo em poesia é uma manifestação artística pós-Moderna, logo, que supera a ruptura Modernista com a Tradição ao se propor uma poética sem preconceitos contra quaisquer formas poéticas existentes. Eu, como poeta milenarista, não quero limites formais ao meu modo de me expressar em versos. Isto significa que me sinto capaz de escrever qualquer coisa que quiser, inclusive velhas formas poéticas ou não tão velhas expressões modernas. Essa constatação meio óbvia tem por dever reconduzir o leitor de poesia ao poético em si, ou seja, à ideia de que um texto pode ser poético independente de como se apresenta formalmente. E esse livro, no caso, é um livro de sonetos. Ricardo Cunha Costa, o autor.

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RICARDO CUNHA COSTA

Para Mariana, Maria Eduarda e Bárbara Maria, as “Três Marias”.

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SONETOS 2014

À BELA SEU FADO Talvez tenhamos culpa por felizes Vivermos os melhores dias antes Que a pobreza ou a velhice até os amantes Deixe só seu caráter, como dizes. Não. Corre pelo mundo, perde países Em sonhos frenéticos, errantes, Experienciando tão interessantes Pecados bem debaixo dos narizes. Eu sei: Tu amarás, serás amada. Só p‘ra dizeres co‘a voz embargada Que tudo passa... Tudo há-de passar. É tão triste a alegria! Vês, enfim, Que quanto desejaste, bom ou ruim, Tens e, entretanto, sabes já findar. Betim – 22 05 2014

A BOCARRA Aquela boca enorme e cheia de dentes, Que ela me exibia às gargalhadas, É uma d‘essas coisas que lembradas Se revelam irreais e surpreendentes. Visto que até os mais indiferentes, Face a maneiras tão exageradas, Se rendiam e riam de mãos dadas D‘umas extravagâncias indecentes. Não se via a mulher, a boca apenas! Duas largas fileiras rebrilhantes Emolduradas por lábios triunfantes. Iluminava assim horas amenas: Feliz além da conta e alheia a modos... Sim, senhora de si; dona de todos. Betim - 22 07 2014

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RICARDO CUNHA COSTA

A CONJURAR Pela luz do sol que nos alumia; Por esse céu azul que nos protege; E toda a energia que ao Universo rege, Seja-te a Liberdade o melhor guia! Não deixes que a esperança d‘outro dia Te iluda sob a infâmia d‘um herege. Cada um é bem aquilo que se elege E, sobretudo, em quem a si confia. Se seguimos os líderes ou não Deve haver em nosso coração Uma exacta medida de nós mesmos. Senão, seremos peças em alheia mão: Súbditos para os mais absurdos esmos Ou escravos incapazes de Razão. Betim - 11 09 2014

A GINASTA Ela se sentou bem diante do espelho E ficou por minutos se observando. Dir-se-ia mais pensando que admirando Seu corpo esguio e tenso no aparelho. Tinha os olhos azuis, nariz vermelho, Pele alvíssima, porte de comando. E olhava para mim, de quando em quando, Como se me aguardasse algum conselho. Fui atentar para essa breve pausa E lhe descobrir qual seria a causa De tão inusitada situação. Mas nada percebi ali ao certo, Senão que acompanhá-la de tão perto Só fez me tumultuar o coração. Betim – 19 07 2014

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SONETOS 2014

A LABAREDA Ornam-lhe o rosto dois rubros rubis, Que faíscam em luz de orelha a orelha. Súbito a pele toda se avermelha N‘um afogueado vívido e feliz. A alcunha ―Labareda‖ lhe condiz Como se as róseas chamas d‘uma centelha No olhar enamorado que, de esguelha, Eu dissimulo em tímidos ardis. Achegar-me é sentir a calentura Do contacto febril de sua pele, Cujo toque em brasas me tortura. Mas, quanto mais me queima, mais me impele... Resta-me acarinhá-la com ternura; Cuidar que seu ardor nunca enregele. Betim - 12 09 2014

A LINDA E o que se dizer d‘uma mulher linda? Que ela é linda — belíssima!... — porém, Eu tanto já sofri com seu desdém A ponto de a ver mal-grata e mal-vinda. Talvez não fosse para ser ainda... Ou, mesmo que o Universo aja também Promessas de prazer debalde tem A quantos veem a sua graça infinda. Ledo engano a beleza da mulher. Pois, faz enamorar quem ela quer Junto com outros que ela jamais quis. Conquanto encante já sem intenção Muitos a lhe entregar o coração Fazem-na, mesmo tão linda, infeliz! Betim - 21 11 2014

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RICARDO CUNHA COSTA A NINFA – coroa de sonetos soneto geratriz Fala para esquecer o amor e ser... Ainda que o amor seja algo que exista, Por difícil e raro, sempre dista De quem ainda espera acontecer. Se um sorriso é mais fácil de ter Quando flertando vã em plena pista, Para a noite, outra roupa então se vista No afã de mais e mor se parecer. Porque o corpo desnudo bem revela Uma verdade um pouco mais bonita, Que a de quem nunca a nada se permita. Ela fala e eu a escuto porque bela. Como mentira muito bem contada, Diz quase tudo, mas é quase nada. ............................................ soneto primeiro Fala para esquecer o amor e ser Amante pelo instante vão d‘um gozo. Conta-me o quanto amar é perigoso E nos meus braços quer só se aquecer. Aconteceu d‘eu vir-lhe a bel-prazer. Conquanto fosse um pouco embaraçoso, Pois, nem namorado e nem esposo D‘essa extremamente ávida mulher. Porém, abandonada nada estranha. Tem p‘ra si que ciúmes e ilusões Só têm entorpecido os corações. Certa que em seu jogo ela é quem ganha, Já parte para a próxima conquista, Ainda que o amor seja algo que exista. ............................................

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SONETOS 2014 soneto segundo Ainda que o amor seja algo que exista, N‘algum vago recôndito da gente. E não aquilo que ela, ardentemente, Busca na noite só, fazendo pista... Querendo desde a vã primeira vista Se entregar sem que nada lhe acrescente, Tem a exacta medida do que sente De dor e prazer n‘uma impressão mista. Deitamo-nos cansados. Sós, enfim: Estapeia minha cara de desejo Enquanto me dá a outra face ao beijo. Nada há para ela aqui. Nem para mim. Não se aproxima mais, se amor à vista: Por difícil e raro, sempre dista... ............................................ soneto terceiro Por difícil e raro, sempre dista O luar nascente quando subo um monte: Chegando ao topo, longe no horizonte O que supunha perto e tinha em vista! Ela — como luar a olho nu – conquista. Contudo, não importa onde desponte: Uma hora me parece quase à fronte E após se distancia algo intimista... Bem amiúde a toco mais profundo... Sinto-a desabrochar feito uma flor E grata me agradar com mais ardor. Ela tem medo, como todo mundo. Afasta-se p‘ra nunca se perder De quem ainda espera acontecer. ............................................

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RICARDO CUNHA COSTA soneto quarto De quem ainda espera acontecer, Se escuta muitas vezes fantasias. São relatos que aquecem noites frias Dos que às escuras vêm se conhecer. Assim vão re-encenando sem saber Essa comédia de erros e agonias A quem chamam de encontro... Onde apatias São bem escaramuças do prazer. E seguem partilhando vãos assuntos, Porque dois solitários enfim juntos Não são nunca o casal que fingem ser. Sim outro paraíso artificial Do sonho que pretende se ver real Se um sorriso é mais fácil de ter. ............................................ soneto quinto Se um sorriso é mais fácil de ter Enquanto se está de olhos bem fechados Beijando loucamente homens errados Ou explodindo de prazer outra mulher... Como um fim em si mesmo, o seu prazer A impele a seduzir desesperados: Quem — alheio a futuros e a passados — Apenas o presente quer viver: —―Afinal, de que serve ser bonita Senão pela promessa sempre adiada D‘um pouco de prazer sem querer nada?‖— Outra bela mentira que acredita Quem quiser... Se não há quem lhe resista Quando flertando vã em plena pista… ............................................

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SONETOS 2014 soneto sexto Quando flertando vã em plena pista — Ainda mais bonita que já é!... — Seu olhar faiscante pode até Derreter o mais frio narcisista. Quem na arte de amar uma boa artista Sabe se projetar ao olhar com fé E desinibição... E bate o pé, Marcando o território da conquista. Despe-se totalmente enfeitiçante Aos olhos que, experientes ou nem tanto, Soubera cativar com seu encanto. Mas partir sempre é mais interessante: Para o dia, esse amante já despista; Para a noite, outra roupa então se vista. ............................................ soneto sétimo — ―Para a noite outra roupa então se vista Tanto p‘ra caçar quanto p‘ra ser caça. Pois dizem haver fogo se há fumaça E paixão desde a vã primeira vista. ‖ ―Portanto, na impressão do início invista Aquela que quiser com sua graça Despertar um desejo que perpassa Toda a aura reluzindo sensualista.‖ ―Cuidado, porém: Tudo é ilusório! É preferível ir quando se pode; Sempre antes que a rotina lhe incomode.‖— Não importa se dândi ou se finório... A seu lado terá sempre um qualquer, No afã de mais e mor se parecer. ............................................

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RICARDO CUNHA COSTA soneto oitavo No afã de mais e mor se parecer, Ela quer não o amor, mas sim amores: — ―Desejada a mulher cujos primores Estejam na postura que ousa ter!‖ ―Nada -– diz ela — vai acontecer A quem espera príncipes, senhores, Ou apenas homens um pouco melhores Que aqueles que costuma conhecer.‖ Concorde à sua vã filosofia, Ela diz desconfiar de tudo e todos E nunca se arriscar em vis engodos. E a esplêndida nudez que oferecia Tinha a verdade honesta de ser bela, Porque o corpo desnudo bem revela... ............................................ soneto nono Porque o corpo desnudo bem revela Exacto quanto d‘alma mal se oculta. Desconhecer-se é típico de estulta Mentalidade em íntima procela... Assim, quem o prazer à culpa atrela Uma alheia alegria já lhe insulta. Hipócrita, o culpado apôs se indulta De faltas cometidas junto d‘ela!... E ria às gargalhadas dos coitados Que a desejando a julgam n‘um complexo Onde se adora amor e se odeia sexo... Murmura de amargura:— "Recalcados! É bem mais fácil ter, se se acredita, Uma verdade um pouco mais bonita". ............................................

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SONETOS 2014 soneto décimo Uma verdade um pouco mais bonita, Que outras tantas verdades d‘essa vida: — ―O indiferente rápido se olvida, Mas se surpreende só um tolo evita!‖ ―Se apenas diversão, nada conflita. Como se come a fruta oferecida... Assim recebo e dou quando escolhida Ou quando escolho quem me atrai e irrita.‖ ―Ser livre é não estar nunca obrigada!‖ — Eis a definição de liberdade D‘aquela que se quer em igualdade.— — ―Porque homens e mulheres não são nada Além de humanos... Creio menor desdita, Que a de quem nunca nada se permita.‖ ............................................ soneto undécimo Que a de quem nunca nada se permita N‘uma vida de dúvidas e esforços. Prefere ela admirar peitos e dorsos Nus e na posição que mais a excita... Cansada de ver gente triste e aflita De tanto acumular novos remorsos, Busca, esteticamente, por estorços Que em nua pele mais o olhar incita. A beleza e o prazer que após promete Mantêm na novidade um interesse Que apenas com surpresas permanece. E apontando-se, por fim reflete: —"Esta zinha aqui não é pior que aquela!..." Ela fala e eu a escuto, porque bela. ............................................

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RICARDO CUNHA COSTA soneto duodécimo Ela fala e eu a escuto, porque bela E é tão bom de escutar ela falando!... Eu chego a devassar, de quando em quando, O seu olhar que d‘alma é qual janela. Eu fico olhando para dentro d‘ela Enquanto, atento, vou lhe escutando. Percebo-a contar n‘um tom mais brando Das coisas que n‘alcova se revela. Às vezes, seu olhar uma fagulha Solta que me atravessa inteiramente E me faz suspirar à sua frente. Do que outrem se envergonha, ela se orgulha! Pois vê a vida — metade já de nada — Como mentira muito bem contada. ............................................ soneto tredécimo Como mentira muito bem contada, Lhe escuto o arrazoado e lhe pondero, Que metade de nada não é zero; Que, só e simplesmente, nada é nada! Mas ela me argumenta: —"Conta errada! A vida, por vazia, no exagero Tem a única grandeza que enumero Cuja metade fora computada". "É a quota de prazer que nós todos Nos permitimos quando o corpo pede Seja isso cio, sono, fome ou sede". "Por isso me saciei de muitos modos A despeito do fado e até da estrada!"— Diz quase tudo, mas é quase nada... ............................................

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SONETOS 2014 soneto quatridécimo Diz quase tudo, mas é quase nada: — "Isso de se saciar o corpo apenas Não muda o facto que horas mais amenas" — Digo-lhe — "Só enquanto estás saciada." "Não demora muito e outra colherada... E outro copo... E outra cama... E outras morenas... Nossas necessidades são cadenas Tão resistentes quanto uma forjada." "Tenho buscado o amor sem saber onde... E essa ânsia toda muito pouco visa, Pois é mais livre quem menos precisa". "Sexo ‗inda é amor..." E ela me responde: — "Amor? Já nem sei o que isso quer dizer!" Fala para esquecer o amor e ser... Contagem – 20 03 2014

A PINO Um zunir de cigarra a chamar chuva Enchia a tarde morna de outro outubro. Na névoa da memória o redescubro Como o triste carpir d‘uma viúva. Foi sol de rachar coco em macaúva, Que por pálido céu ardia rubro. Foi quando intuí quanto elucubro D‘essa ideia a vestir-me feito luva: Futuros do presente e do pretérito Especulo-me, enfim, sem qualquer mérito Senão dar um sentido para o acaso. Nobre tarefa pôr em narrativa, Concatenando os factos que mais viva Seja-me a vida à luz do ardente ocaso. Betim - 16 10 2014

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A QUADRATURA Rodo o compasso d‘onde algo redondo Corre para uma igual área em quadrado, No entanto, jamais houve quem tentado Lograsse a imagem que ao papel eu sondo. Ao que, infinitas retas vão compondo A curva que hábil régua tem traçado: Polígono do mais ínfimo lado Feito dança de abelha ou marimbondo. Conta-se que a conta é o transcendente Número que infinitas vezes Deus, Por infinito, pode haver-se à mente. E o que haverá nos sós pensares seus, Onde as abelhas saem pela tangente, Mas os números vêm aos sonhos meus? ... Belo Horizonte – 04 03 2014

A RAPARIGA Bonita, tanto quanto alguém bonita Possa ser, ela é. E ela bem o sabe... Mas não que uma paixão, embora acabe, À promessa do olhar é infinita. Sim, pois, promete àquele que acredita Que o prazer dos sentidos no amor cabe. E segue, mesmo que d‘ele se gabe, Desdenhando-o sem dita nem desdita. Assim, a tanto garbo e gentilezas Retribui-lhe tão-só com incertezas. Se o olhar promete quanto a mão impede... Pois são as peripécias d‘essa jovem Amores e alegrias que comovem Ante os breves favores que concede. Betim – 31 07 2014

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À REVELIA Eu não quero o que tu queres. Não mais. Essa estrada que segues não me agrada, Pois, embora haja eu vã toda jornada, A tua me destina a sós umbrais. Não quero ir. Não importa aonde vais Ou se vou me esforçando para nada. Anda logo, senão envergonhada Não chegas hoje nem nunca jamais. Corre... Enquanto o tempo te é propício. Sei que a ambição eleva-te alterosa, Mas o topo é, não raro, um precipício. Não vou não! Não sei ver a vida em rosa, Tampouco viver fácil como em vício. Vai via! És companhia perigosa... Betim - 28 05 2014

ADOLESCER Àquela época tinha como certo Achar, no fim-do-arco-íris, algum pote... Criancice, sei eu, muito embora note Até na fantasia andar desperto. Penso-o por entender ter descoberto Na historieta do duende estranho mote, Cuja promessa ainda à mente embote Em meio à tempestade, em campo aberto: Faíscam raios, estrondam mil trovões, Mas nada assusta o que crê que após vêm Mais multicoloridas emoções. Busca felicidade quem não tem, É facto... Àquele que era mais feliz Quando pensava ser um infeliz. Betim – 08 08 2014

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AFETUOSO Cesse tudo face ao olhar enternecido, Que mostrara com tal profundidade Uma diversa luz, cuja verdade Experiencio em só recordo e olvido. Talvez me felicite d‘haver sido Quem antes falou com sinceridade Sobre essa terrível fatalidade, Que é amar quando nada faz sentido. E enfim, uma alegria mais serena; Possa me sobrevir ao pranto quando Eu te sorrio ainda soluçando. Porque és, tão e somente, uma pequena: Não te alegra a tristeza minha infinda, Mesmo que por te amar, errante e linda. Betim - 24 04 2014

ÁGUA DOCE Que haja esse rio doce de se olhar, Às margens da memória, no horizonte. A ver na curva extrema, o extremo monte Que recebe o sol poente sem notar. Onde os meus bons momentos têm lugar, Sentindo o vento vir beijar-me a fronte. Ou, ainda que outro amor me desaponte, Crer suas águas longe o mal levar. Há-que enternecer sob tanta amargura, Mesmo que a vida seja mesmo dura E meus olhos expressem tal dureza. Não há lágrimas! Olho o rio e além Certo que, docemente, a mim também Leva oculto sob turva correnteza. Gov. Valadares - 12 10 2013

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AGUARDENTE DE CANA Ardente, ardentemente, quero um gole Que me desça faiscando pela goela; Que me faça romper toda cautela, E que à ininteligível língua enrole. Seja algo que do mal bem me console Ou ao menos confusão que a mim revela: Aos olhos, outra luz já me constela Enquanto a mente fora de controle. Ao quê, toda a emoção enfim me mova Aonde essa alegria absurda e nova Dê ao espírito máxima verdade. E inútil... Qual certeza que se perde: — ―Destilado o álcool vão da cana verde, Tenha, até o mais vil, a liberdade!‖ Betim - 15 11 2014

ALTOS DA SERRA Ir aonde o horizonte seja belo! Minas e catedrais disputam morros, Enquanto casas urgem mais socorros Já quase a deslizar em pesadelo. Estende-se aos vários o meu apelo, Semelhante — uns dirão — a bons esporros. Como os que dão a gatos e cachorros, Senão por um parâmetro, por zelo. De prédios e ruas, enxurradas Vêm lavando-e-levando nossos passos Até desanuviar céus e espaços. Vejo. E quanto vejo é belo. É horizonte... Cada olhar, um mirante; a andar, estradas. De cujos arredores tenho à fronte. Contagem - 22 12 2014

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AMOROSO Eu te amo tanto quanto um homem possa Amar e ser amado n‘essa vida. Amar-te me fez ver onde escondida Uma felicidade apenas nossa. Amar me fez a lágrima mais grossa, Mas mais largo o sorriso; mais sentida A beleza ao desejo oferecida, Enquanto a tua pele à minha roça... Amar-te deu-me alento quando o mundo Revelou-se um lugar triste e imundo Onde, enfim, tudo e todos tão-só passam. Pois te amei na esperança d‘algum dia Reluzir de mil formas a alegria  Em cacos de cristais que se espedaçam. Betim - 13 02 2014

ANTAGÔNICO Os que amamos odiar pela berlinda Seguem indiferentes a impropérios. Observam, porém, com olhos mais sérios Nossas misérias pela noite infinda. Estamos só a ver, também e ainda, Sua ascensão-e-queda em vãos impérios. Enquanto se enchem amplos cemitérios Onde a alma espera pela glória vinda. Correm-nos pelos olhos tantas vidas, Que, embora cheias de glórias insabidas, Desejam justo àquelas que não têm. Daí por tantos — e há tanto! — tanto horror: Só sabe odiar quem, negado o amor, Termina logo por se odiar também. Betim - 05 05 2014

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ANUÁRIO Nada me aconteceu de extraordinário. O ano apenas passou, dia após dia, Sem que houvesse qualquer alegria, Senão se folhear o calendário. Não foi um ano ruim, pelo contrário, Fui a lugares que não conhecia; Tive saúde e até rendas... Todavia, Tudo agora parece imaginário. Olho uns recordos meus como se alheios E surpreendem-me os já velhos anseios Que, inadvertidamente, descrevi. Pois os dedos, por datas indistintas, Corro sem ter sequer porque retintas, Sem mais indícios que eu estive aqui. Betim - 02 07 2014

AO LUAR Essa luz limitada ou realidade — Zênite — Quem é que nos concedeu? Não terá sido mais ávido do que eu No afã de se buscar sonho e verdade. Fossem outras a face e a idade, Teu olhar encontrando ora o meu Brilhar-nos-ia o luar que se excedeu Ao pairar pleno acima da cidade. E, então, eu te diria: ―Vamos juntos!...‖ Apesar de pesares ou de assuntos A lançar tantas sombras sobre nós. Porém, ensimesmados na solidão, Ocultando as razões do coração, Já não seríamos como quase pós? Betim - 05 03 2014

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AO SOM DO ALAÚDE Ressoam cordas pelo coração No afã de fazer festas em mil almas. Bem sabe o trovador impor-se palmas: Joga poesia e música à canção! Preludia o alaúde em tal tensão, Por contrastar após com notas calmas. Ao abrigo de casacos, ponches, talmas... A lua em noite fria orvalha o chão. Chamando-nos a amar, ouço e obedeço. Não há-de ser verdade o que imagino, Conquanto seja lúcido o que esqueço. Se ouço sua voz d‘um timbre argentino Ir barganhar com Deus mercês sem preço E pôr o povo todo em desatino. Betim - 20 10 2014

APAIXONANTE Tão diferente o olhar do de costume Tenho quando me ponho a te admirar... Que, enternecido, poeto só de estar Quase perto demais de ardente lume. Cuido em não me ferir no afiado gume, Pois, tonto se longo sustento o olhar; E me achego e te afago sem notar, Embriagando-me à nuca em teu perfume. Só lamento que, embora um encantado, Não seja eu quem agora do teu lado E tampouco eu te esteja ao coração. Contudo, em se tratando de desejos, Pouco podem razões, dolos ou pejos, Tamanha me é a força da paixão... Betim - 14 07 2014

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AUGÚRIOS Seja eu muito feliz, embora tudo Conduza tão-somente ao mesmo nada. Não me lamente mais da caminhada, Tampouco dos sinais com que me iludo. Muitos vão observar os céus, contudo: — Alto veem o voo d‘ave sobre a estrada... — E me dizem saber quão abreviada Será toda fortuna que ‗inda escudo. Com eles aprendi quanto o aleatório Rege o curso das coisas sem, de facto, Ocasionar-me a queda ou ter-me intacto: — ―Haja‖ — face a qualquer intento inglório E a buscar-me a esperança já perdida — ―Vida que valha a pena ser vivida!‖ Betim - 01 12 2014 AUTÓCTONE As raízes entre mim e minha terra São tão profundas quanto as d‘um ipê... Sondam até que o aquífero se dê Face à sequidão que o cerrado encerra. E se a estrada por entre vales erra, A sua áurea florada me é mercê, Que por todo sertão a gente vê A pontilhar aqui e ali a serra. O sol é forte; a pele, bem morena. Eu ando aonde ainda se apequena O olhar que descortina o panorama. Não sou o único e sei que não serei O último cujo chão tomou por grei, Reconhecendo a si no lugar que ama. Betim - 24 06 2014

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BELADONA Mulher que acende círios na capela, Que dizes tu da vida para mim? Amaste e foste amada, porque, enfim, Querias das mentiras a mais bela. O amor — incerto norte em fria estrela — Perseguiste, sensual, até o fim. Não peço mais insanos sonhos, sim Para a tua alma alguma vã janela. Pois, se estivesses nua, uma verdade Bem que te arrancaria nem que fosse A tua salomônica metade. Mas beleza não é mais que a promessa D‘outro prazer em tua face doce, Cujo olhar feito espada me atravessa... Betim - 21 08 2014

BENTINHO E CAPITU Dizem que o coração de outros é terra Ignota e longe aonde ninguém vai. E o que n‘essas paragens sobressai É mistério que ainda em si encerra. Mas quem tenta sondar a verdade erra, (Vaga pelo deserto... Incerto cai!) Pensa, tonto, que a sua mente o trai: Tesouros, sonhos?... Lá no nada enterra! Contudo, o engano n‘ele já não cabe... Pode a boca calar-se — o corpo fala!... Ou os olhos se fecharem — a alma sabe!... E não mais seu sorriso, brilho à opala, Tampouco sua lábia, em lábios frios, Conseguem ocultar seus desvarios... Sobrália - 15 03 2014

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BOLHAS DE SABÃO A esfera perfeita é frágil tensão Gerada ao sopro d‘uma criança. Moléculas oscilam sua dança De luz iridescente em vibração. É película só de água e sabão A alegria que trago na lembrança Maravilhada n‘outra tarde mansa, Por ser perto demais do coração. Se circunscrevo um cubo àquela esfera, Cujo raio a metade em sua aresta, Ter-se-á, portanto, a máxima quimera! A perfeição que busco era toda esta: Bolha de sabão que agora se gera Em superfície mínima e imodesta. Belo Horizonte - 20 06 2014

BRASILEIRO Define-se um homem por ser oriundo D‘aquela terra ou d‘esta; pela fala E até pelas razões porque se cala Sob todo som e fúria d‘esse mundo. Mas isso é superfície: o mais profundo É como a iridescência em negra opala. Gente é um ser que em ser só se regala A partir d‘algo que se fez fecundo. Lugar d‘onde se vem, onde nascera. Um lar em que se vive junto aos seus, Cujo nome o acompanha: a Grã-quimera. Ser é mais que estar, pois, permanece. Sou, também, esse nome onde anos meus Vivi o pouco que jamais se esquece. Betim - 14 10 2014

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RICARDO CUNHA COSTA

CÃIBRAS De repente estirou a sua perna E era todo o corpo indo para o fundo... Desceu, debaixo d‘água, até um mundo Oculto em solidão silente e eterna. Por minutos, alheio a voz externa, Não ouvia outro som senão o oriundo De dentro de seu ser, onde o eu profundo Com todos os seus vários eus se alterna. Malgrado doesse forte e se afogasse, Sentia ele uma ausência inexplicável Ante a urgência que logo se salvasse. Pois, era aquela paz inabalável Capaz de contrapor toda sandice Que experiencia ao vir à superfície. Betim - 23 11 2014

CAPITOSO Pouco sei da verdade que há no vinho, Assim como de aromas e de amores... Bebo-o, entanto, a despeito de senhores, Cuja nobre taça ávida adivinho. Prefiro degustá-lo enfim sozinho. Pois, farto de censuras ou louvores, Evitava dos grandes os favores, Tanto quanto das belas o carinho. Pode até parecer vã presunção, Mas as marcas que sei no coração Somente esse sanguíneo licor cura. Entrementes, eu passo e cumprimento; Entregue ao mais polido esquecimento D‘um líquido rubi posto em luz pura. Betim - 17 09 2014

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CARNE VIVA Não espero que entendas meus motivos; Tampouco que percebas meus anseios. Não justificarei os fins ou os meios, Que aceitamos por estarmos vivos. Passados já os anos mais festivos — Onde glórias e amores vi alheios... — Resta a mim explicar sem mais rodeios A dor ante teus olhos compassivos: Deixo sangrar a chaga malferida Na esperança de que ‗inda possa a vida Se curar sobre o sangue derramado. E, por fim, volte a erguer minha cabeça. Certo de que, através da dor, conheça Uma verdade maior que meu passado. Betim - 28 08 2014

CHÃO DE BRINCAR Abri ruas, construí prédios na areia... Toda a cidade, em vãs arquiteturas, Refazia como se a obras futuras, No canto d‘uma praça antiga e feia. Brincava horas ali: meio-dia e meia Até que me buscassem, já sob juras! Fascinado então pelas miniaturas De autos, trem, montes, lagos e aldeia. Sobre um chão tão meu que me aceita tudo, Figuro-me o demiurgo displicente, Que a si recria o mundo diariamente. Embora fosse só um cabeçudo, Já a arrastar areia a tarde inteira Em minha solitária brincadeira... Betim – 17 07 2014

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COMPANHEIRA DE VIAGEM Talvez tenhamos culpa por felizes Vivamos os melhores dias antes Que a pobreza ou a velhice a nós, amantes, Deixem só o caráter, como dizes. Mas não!... Vai, corre o mundo, anda países! Anda os passos frenéticos de errantes, Experienciando uns tão interessantes Pecados bem debaixo dos narizes. Eu sei: tu amarás, serás amada. Só p‘ra dizeres co‘a voz embargada Que tudo passa... Tudo há-de passar. É tão triste a alegria! Vês, enfim, Que quanto desejaste, bom ou ruim, Tens e, entretanto, sabes já findar. Betim – 22 05 2014

CONTRA O SOL Em marcha contra o sol que no horizonte Jaz e faz cerrar meus olhos sob raios. E eis-me capaz de poemas ou de ensaios, Só por seguir em frente ao arder a fronte. Acompanho o declínio trás-o-monte Arrastando céus d‘ouro qual lacaios D‘um imperador, cujos vãos desmaios Figurem no arrebol que após desponte. Às vezes, é preciso saber a hora De quando dar um basta ao amor e à dor; Deixar toda ilusão ir-se embora. Assim entendo a senda do amador: Sem desviar o caminho e o olhar, agora, Ir de encontro ao sol quase a se pôr. Betim – 05 07 2014

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COSTA MORENA À semelhança d‘uma curva extrema, Descrita com sinuoso arco e contra-arco, Mas navegada à mão, e não por barco. Assim, mareado, oscilo ante o dilema: Se princesa a cingir-se alto diadema; Se outro litoral que nos mapas marco; Como hei-de definir o que não abarco? Tão bela... Exista ao menos n‘esse poema. Costa morena... Aonde o amor nos leva. Bicurvelínea praia, dorso de fêmea; Beleza nua, pois, verdade gêmea! Tão perto... Muito embora não me atreva A costear a Natura que, intocada, Guardou-se prêmio à minha só jornada. Betim – 30 07 2014

CREPUSCULAR Porque foste a promessa d‘um amor Que jamais se cumpriu, embora os anos Multiplicassem nossos vãos enganos E, enfim, nos dividissem sem calor. Ora me sinto incapaz de contrapor Qualquer velho argumento a novos planos; Lido apenas com mais perdas e danos Enquanto testemunho o sol se pôr. Inumeráveis vezes eu tentei; E inumeráveis vezes eu falhei Como fosse fadado ao só fracasso. E deixo... A caminhar de mãos vazias Para saudar as noites sós e frias Que doravante acolhem meu cansaço. Betim - 18 12 2014

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CROQUIS Foi lapisar uns traços do que ideava Para algum edifício imaginário. Mas o papel, infiel depositário, Sobretudo impossíveis lhe aceitava. Dadas as circunstâncias, o que criava, Era exercício-vão-embora-vário De quem almeja o só extraordinário Mesmo sendo rabiscos em que errava. Edificou com linhas não tão tortas Presumidas ideias que, natimortas, Passaram, entretanto, ao arquitetado. E fez-se prédio à luz do que há entorno Até que todo o mínimo contorno Expressasse-lhe a vida no habitado. Betim - 03 12 2014

DAGUERRÓTIPO Figura de mulher novecentista Pintada pela luz em sais de prata Após que a lente ao mínimo a refrata, Deixando-nos exacto o olhar do artista. Era elegante dama que conquista O olhar d‘alheio e só nefelibata. Não podendo caber no que retrata A câmera que então tão pouco dista... Deveras, faz pensar a bela imagem, Que atravessara séculos e oceanos A causar tanto encantos quanto enganos. Isto porque mais vívida a mensagem, Se ela sustenta o olhar onde ninguém: Ri-se de mim ou para mim?! Além... Belo Horizonte - 14 04 2014

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DEMERITOCRACIA Entre as estranhas crenças de hoje em dia, Prevalece o vencer por próprio mérito: Quem fez mais-que-perfeito seu pretérito A um porvir que em vitórias consistia. Vida não é certame, todavia. E sucesso nenhum resiste a inquérito... Mal se difere o vil do benemérito Se o critério for valor, não poesia. Só há valor se houver necessidade. Poesia, de beleza e de verdade, É feita mesmo que, em geral, inútil. Satisfeita a vontade, resta o sonho. Sou, não importa quanto disponho, Nua pele sob túnica inconsútil. Betim - 28 07 2014

DESIDERATA Dependesse de mim, seria lua... D‘aquelas tão imensas quanto o sonho. Não teria a ti esse olhar tristonho, Sim o amor que brilhante ele insinua. Ver-te aos olhos a própria essência tua, Pois, assim, em poesia te componho. Mas sei-te um paradoxo mais bisonho, Que o insólito que em mim se perpetua. Mal comparando, é como se a beleza Afastasse-me as sombras e a tristeza, Que insistem em turvar meu coração. Dize-me enfim, amada de minh’alma, Poderás tu me dar a paz e a calma Qual lua a iluminar-me a escuridão?

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RICARDO CUNHA COSTA Betim – 05 07 2014 DESINFELIZ Ao menos eu não tento ser feliz... Reconheço a miséria d‘isso tudo E, embora grite, pareço mudo Ou qual falasse a língua d‘outro país. Deixo essas circunstâncias tão servis, Que tenho apresentado carrancudo, E aceito que à esperança só me iludo Enquanto a vida passa ante o nariz. Não culpo mais ninguém, sequer a mim Por um tão solitário e triste fim, A que cheguei com minhas próprias pernas. Porque sei que já não importa o caminho, E nem a companhia: ao fim, sozinho, A ver a lamparina da taverna... Betim - 28 08 2014

DESNUDADA Mas como pude ser tão infeliz?! Quando se ama e não diz! E quando não... Enfim, nada: olhos, boca ou coração Neguei de mim àquele que me quis. E foi por medo d‘eu não ser feliz Que, só e infelizmente, à escuridão Confesso, precavida, essa paixão Culpar-me justo pelo que não fiz. O beijo ficou preso à boca muda. E o olhar, dissimulado sob a lua, Apago a me impedir de que me iluda. E ele se vai sozinho pela rua... Sem saber que em meu quarto só, desnuda, Eu me entrego sonhando que sou sua.

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SONETOS 2014 Betim - 19 11 2014 DESPEDIDA Com teus olhos me olhando contra a luz — Miúdos e óbvios — eu vou te reter. Muito embora míope e sem ter Nada agora senão meus olhos nus. Aí, tua silhueta solta me conduz A estes pontos de fuga do meu ser: — ―Leva um sorriso meu, se em troca der, Pelo brilho que nos teus olhos pus!‖ Tão pobre a arte ante tua realidade... Tão oco o verso p‘ra tanta beleza... Que posso eu dizer-vos, em verdade, D‘aquela cuja chama sempre acesa Desperta em tantos peitos amizade, Mas em meu peito só tão-só tristeza? Betim – 18 03 2014

DONAIRE Pois, nem a penha aguda fere os céus Como a luz de teus olhos cega os meus, Se te acompanho as mãos a dar-me adeus N‘um vívido agitar de tristes véus. Muitas têm corações como troféus, Ostentando conquistas e ouros seus. Tu, porém, me reténs todos os eus Ao me sorrires ante os mais incréus. Presença feita toda de atenções... Em cuidados tão ternos, tão sinceros, Que se dispensam doutas opiniões. Participo-te a minha só: — ―Mais veros Uns dois ou três momentos de emoções, Que toda uma existência de exageros‖.

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RICARDO CUNHA COSTA Betim - 24 06 2014 EM LIMAS Mil macaúvas sobre o pasto verde Pelas suaves colinas espalhadas. Envergando, taboas nas baixadas Se agitam vãs ao vento que se perde. Um justo lavra e, embora a terra herde, São solidão e luz suas jornadas... Pelas ravinas, matas tão fechadas Aqui e ali riscadas de valverde. Nuvens brancas passeando qual rebanho Tendo um céu azulíssimo por fundo Quando ao zênite o sol quarando o mundo. Foi uma hora feliz; um dia ganho. Tive a alegria de ir aonde, bela, A vida passa em paz pela janela. Betim - 02 12 2014

EM PAZ Estrelas, através do véu da noite, Parecem a furar como a um lençol. São só cativos que, livres do sol, Vêm luzir antes que outro céu se afoite... Hoje, inobstante, nem sequer o açoite Do vento nos pinheiros, ao arrebol, Pôde então demover o rouxinol De mais chilrear a quem ali pernoite. De facto, aquela era uma hora tranquila, Na qual cada lembrança se perfila Para ser revivida na memória. E isso foi o mais perto que da paz, N‘uma apressada vida, eu fui capaz: Pequeno, sob o céu aberto em glória.

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SONETOS 2014 Betim - 10 09 2014 ENCACHOEIRADO Há um rio com águas cor-de-chá, Que desce pela serra do Cipó. Segui-lo para mim era tão-só Encontrar o poço onde o encanto está. Trilhando mato adentro o chão, quiçá Dias feitos de sol, capim e pó... E o sentimento nu do instante só Quando se mira longe e alto: — ‖Acolá!‖ Travessia de rio a medo e a vau Ou outro risco de morte que eu não vi Na loca escura e funda em que caí... Tudo o que lá vivi, o bom e o mau, Guardo pela esperança d‘um só dia Ali voltar, àquela mesma via. Betim - 16 09 2014

ENTREVISTA Quantas pétalas tem o girassol? Quando bate mais forte o coração? Onde a felicidade está então? Qual é a cor do céu n‘esse arrebol? Como brilha um sorriso mais que o sol? Quão mais belos os olhos se almas são? Para onde mesmo os sonhos vão em vão? E o que ondeia meu cabelo em caracol? Por que a gente se sente tão sozinho? Para que haver, no entanto, tanta lida? Com que pedras ladrilhas teu caminho? Quanto é uma esperança a ser perdida? Ademais, que enigma és? Não adivinho... Que é o homem? Quem é Deus? O que é a vida?

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RICARDO CUNHA COSTA Betim – 21 04 2014 ESCRITURAS Se soubesse escrever, seria um poeta. Se soubesse pensar, um pensador. Mas ele, sem saber e sem sabor, Era-me apenas outra mente inquieta. Quer parábolas; quer em linha reta; Escrever deveria contrapor O desenho do texto pelo autor Às leituras tão várias d‘um esteta. Mal comparando, é como erros remoendo Ou como quando o pano do remendo É melhor que o da roupa remendada. Sim: Metáforas!... Busco algum sentido A fim-de que a memória antepassada Escape, folha após folha, do olvido. Betim - 01 08 2014

ESTUPIDEZ Eu não te amo por seres a mais linda, Como tampouco tu me amas por sábio. Ignora o coração o que acha o lábio Quando fala de amor demais e ainda. A palavra gentil sempre é bem-vinda Tal e qual a mão faz a outra mais hábil. Poetar pode engrossar um alfarrábio, Porém, não torna nossa história infinda. Estupidez, de facto, é o que expressa O jeito que nos tratam as pessoas Quando súbito deixam de ser boas. Mesmo que seque a lágrima ora espessa E a chaga aberta feche em cicatriz, Tudo se perde n‘uma hora infeliz...

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SONETOS 2014 Betim – 20 08 2014 FELICIDADES Vão escrever em tom confessional: — ―Gosto de estar feliz; de ser feliz!‖ — Mas a verdade é que acho vão quem diz Que é feliz e decente e coisa e tal... Felicidade é algo acidental, Como súbito um grilo no nariz Ou rabiscar a rua toda em giz Apenas pelo encanto mais banal. E nada a se comprar ou a se vender Alegra além da só satisfação De ter para ser: vir, ver e vencer... Ou não... Enfim, isto é jogar os dados À espera de que, com ou sem razão, O acaso os faça bem-aventurados. Betim - 19 08 2014

FINGIMENTOS Este mal-d‘amor que sinto se poeto, Eu finjo sentir qual mentem as moças. Quisera assim não fosse, mas insossas Ser-me-iam as palavras do soneto. E, se finjo que sinto ou que me inquieto, É porque as dores d‘elas são tão nossas Que, malgrado fingidas, gotas grossas Teimam em rolar pelo mais correto. Verdadeiras as vezes que amo ou não. Se o amor, quer sentimento ou sensação, Está escrito em versos bons de poema. Sintam moças e finja o poeta, ou o inverso. A mentira que conto tão perverso É justo uma verdade que blasfema.

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RICARDO CUNHA COSTA Betim - 11 08 2014 FINISTERRA Adiante o mar Oceano, o mar sem fim, Lá pelo limite onde a terra finda. Galega é essa gente alva e bem-vinda Em nossas terras tórridas de ―enfim!‖. Maravilhosa fala dentro em mim, Feita à ria nevoenta aonde ainda Ecoam as cantigas que el-Rey brinda Fingindo-se pastora, ébrio e arlequim. Extrema estrada para os meus andares; Último pontal para os meus olhares; Seja antes que o barqueiro chegue. E parta! ... Porque se o Novo Mundo é tão imenso, Na rocha fria deve estar, eu penso, Um náutico ―adeus‖ onde o mostra a carta. Betim - 08 09 2014

FORTUNA CRÍTICA Para uns, um sonetista d‘essa corte Florescente, mas de memória parca. Cujos versos, bem ao povo e ao monarca, Agradaram conquanto quase à morte. Para outros, talvez já não importe Se rimas ou se primas nos traz na arca, Tão-só lhe felicitam o que abarca Algum século d‘ouro em triste sorte. Seus detratores ‗inda o veem refém D‘uma arte ultrapassada, sem procura Para quem quer vender Literatura. Ao que ele lhes diz que se opõem, porém, À graça por gratuita... E tanto faz Se ele escreve: É favor deixá-lo em paz!

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SONETOS 2014 Betim - 29 03 2014 FOTOPINTURAS Rostos de mortos fitam da parede A família reunida em refeição. Parecem observar com atenção Como cada um na casa então procede: Aquele filho tem muita sede... Este, come calado o seu feijão. A filha olha nervosa p‘ro portão Enquanto o pai dormita em sua rede. A mãe está ninando o menorzinho, E seu cachorro a um canto, tão sozinho, Já salivava à espera d‘alguns ossos. Mais no alto, bruxuleava a lamparina, Que, vivos ou não, bem pouco ilumina... Todos absurdamente sãos e moços! Betim - 28 08 2014

HUMÍLIMO Rio de mim, tamanho o desatino D‘eu ser ou resoluto ou relutante. Pareço me admirar como se diante Das próprias misérias que rumino. Consideraria um sol matutino, Qualquer novidade ou algo interessante... Porém nada me ocorre n‘este instante, Além do meu insólito destino. Às voltas co‘os cuidados de cada dia, Ocupei-me em poetar o quotidiano Ciente de quão só tão-só me faria. E insisto n‘esse ofício, ano após ano: Mesmo que inapto e não raro inepto, Busca o poeta um leitor, não um adepto.

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RICARDO CUNHA COSTA Belo Horizonte - 20 02 2014 ICEBERG A grande massa segue o seu declínio: Um monte branco em mar azul-escuro... Ela vai à deriva, sem apuro Em surgir no horizonte retilíneo. À luz, desde o branquíssimo ao alumínio Transcende a vã matéria em estado puro. Qual viagem sem passado nem futuro, Vendo a vida passar sob escrutínio. D‘uma ilha subantártica, um farol Sinaliza a raríssimos navios, Ainda que à meia-noite o baço sol Surpreenda n‘estes mares tão vazios, Bem ao largo das rochas d‘esse atol, A geleira flutuando aos ventos frios. Betim - 25 04 2014

IMPUDICA Tenso isso de tocar a áspera pele E eriçar-te à nuca cada pelo... Para tanto, acarinho teu cabelo A navegar as negras ondas d‘ele. Cuida que a tua mão leve revele O desejo apertado sob o apelo De entregar-se tão-só por bom e belo, Não por acostumar-se ao que repele. Qual fora demonstrado, essa lascívia, Que brilha a exsudar pela face nívea, É uma clara e pura luz d‘amor. Não se deve, portanto, apequená-la. Visto que tal ardor que fala e cala Tu te permites para estar melhor.

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SONETOS 2014 Betim - 13 11 2014 INCOMENSURÁVEL É sabido que até a última estrela, Brilhando anônima entre outras bilhões, Dista certa medida em explosões Que a expansão do Universo nos revela. Mas, e ela?... Como ver se os olhos d‘ela, Cuja luz atravessa as imensidões, Hão-de causar tão-só desilusões Ou uma esperança maior e mais bela? Ao contrário de estrelas, não se mede A verdade d‘alguém ou d‘algum modo O brilho d‘um olhar ardendo todo. Porque amar na medida em que é amado É algo que tão belo se concede Quanto a luz vista n‘um céu estrelado. Betim - 27 10 2014

INSÍDIAS Vens co‘as mãos estendidas, suaves falas... E abraças ocultando-se o punhal. Tens as boas maneiras que tão mal Fazem àquelas tolas que bem calas. Sempre amistoso e vão a narrar galas, Tu confundes com ânimo jovial, Enquanto já preparas, afinal, O laço que nos joga pelas valas... De discurso arrastado e insidioso, Foste desarmando uma a uma as reservas Levantadas ao assalto melindroso. Mas quando por fim triunfas, tu te enervas. Sorrindo n‘um esgar de mofa e gozo Sobre as donas que tornas tuas servas!

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RICARDO CUNHA COSTA Betim - 12 02 2014 INSIGNIFICÂNCIA Em que pese às pessoas, tudo muda... Ao longo d‘esses anos que vivi, Quanto de desengano e dor sofri Fizeram-me a verdade mais aguda. Desde a mais expansiva à mais sisuda, Toda sorte de gente conheci. E eis a máscara de quem agora-aqui Em torno d‘uns quereres se desnuda: É sem significado se a importância Que me dão as pessoas em olhares — Um brilho que se perde perdida a ânsia. Desta feita concluo, sorumbático, Que até mesmo o discurso mais enfático Queda apagado diante dos vulgares. Betim - 28 11 2014

INSÓLITO SOL Logo ao tocar a serra, o sol, já rubro, Faz incandescer nuvens vãs em ouro. Como se enrubescesse o céu ao agouro D‘um insolitamente seco outubro. Lá longe, sobre os morros, eu descubro Refulgir — desde púrpura a alvilouro — A luz que se reflete ao miradouro Nas pálidas ruínas d‘um delubro. Partindo, o sol transmuta a realidade E traz outras nuanças que, em verdade, Dão ao olhar tais distintas aparências. Embora o mesmo, novo vejo o mundo. Pois vê-lo renovado é tão fecundo, Que imagino infinitas transcendências.

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SONETOS 2014 Betim - 08 10 2013 INTRÍNSECO Ando pensando em tudo o que perdi, Sem precisar ao certo o que ganhei. Dentro de mim parece haver um rei Em cuja triste queda eu consenti. Portanto, todo o bem que havia aqui Junto co‘o soberano ora exilei E, sob o império d‘uma nova lei, Qual castelo de cartas me construí. Dizem que boa história a se contar Não se sabe como há-de terminar E leem, ininterrupta, até o fim. A minha, todavia, de hora undécima Obro, por pessimismo, só e péssima, Feita de explorações adentro em mim. Betim – 21 06 2014

IRRELEVANTE Mas pelo estranhamento momentâneo Formam-se o vil juízo e o vão sentido... Têm para si que todo o bem havido Perde o poeta no afã contemporâneo. Seus versos, d‘um azul mediterrâneo, Empalidecem sob sombras de olvido. Dir-se-ia que o mal, por repetido, Tolhe qualquer encanto se espontâneo. Não se lamentaria o sol não fosse O dia em dissabores e tristezas, Que a sua luz insólita nos trouxe. Logo não restarão senão mais cruezas, Quando o olvido do poema toma posse E ruem em hora ruim suas certezas.

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RICARDO CUNHA COSTA Betim – 08 10 2014 LAGRIMINHAS Ela tatuara lágrimas no rosto, Porque seus olhos tinham já secado. Falava muito pouco do passado N‘um sorriso a negar qualquer desgosto. Três pequenas figuras que têm posto Muita gente confusa do seu lado A saber o que lhe houve então de errado, Se seu semblante sempre bem disposto. Jamais a viram triste ou murmurando... Ao invés, só sorridente desde quando Chorou todas as lágrimas que tinha. Pois o seu revés guarda para si E, como cicatriz, as pôs ali Para nunca esquecer que está sozinha. Betim - 25 10 2014

LÁPIS-LAZÚLI Eis a pedra que dera nome à cor! Ornando, desde os césares de Roma, Um poder absoluto que se toma À graça de ter os céus em seu favor. Joia, cujo inestimável vão valor, Tão-somente a Realeza ostenta e soma: Quem a terra domina e ao povo doma É, pelo ultramarino, um Grão-senhor. Porque o poder tem rito e indumentária Postos n‘um distintíssimo amuleto, Que o mais intenso azul torna concreto. N‘ele reconhecemos como é vária Toda a aventura humana n‘esse mundo Onde, por céu e mar, o azul profundo.

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SONETOS 2014 Betim - 16 11 2014 LUAR PLENO Eu caminhava à noite pela rua. Ainda estava cedo e reparara Que, decerto, haveria uma aura rara, Aquando, enormemente linda, a lua... Cheia, sobre estratos-cúmulos flutua, Banhando o imenso manto em prata clara. Se o contorno da serra então separa, À penumbra, um coqueiro perpetua! Fiquei ali parado alguns minutos, No meio do meu caminho que seguia, Diante d‘essa beleza fugidia. E a custo tenho meus olhos enxutos, Maravilhado que andei noite afora Tal a luz de que a lua se assenhora. Betim - 09 09 2014

LUCIDEZ Paradoxo!... Eu te amo ‗inda que não te ame Do modo que querias ser amada. Sim, amor pode ser tudo; amar, nada. À medida que o ideal se torna infame. Não importa quão alto o amor proclame, Tampouco se te trago a cruz ou a espada: O coração decide de levada, Pois já frouxos os nós e roto o liame. Então há-que buscar um outro modo De amar e ser amado, mas a medo De se nos esquecer o amor tão cedo. Resta apenas não pôr os pés no lodo E não sangrar o peito todo em mágoa Enquanto escrevo versos tão vãos, na água...

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RICARDO CUNHA COSTA Betim - 20 03 2014 MAIS OU MENOS Mas poderia alguém me amar sabendo Tudo o que sabem todos já de mim? Isto é, que amei demais e que, por fim, Tornei-me pouco menos que um adendo... Na verdade, tudo isso é estupendo! Dirão que "menos é mais" ou algo assim No afã que respondamos sempre "sim", Sem saber o que está acontecendo. Mais ou menos bem... Mais ou menos mal... Tanto faz o que sinto, ora e afinal, Conto outra história triste embora linda. O que sei é que tudo um dia passa: Já não sou mais nem menos que a vidraça Onde a pedra atirada sempre finda!... Betim – 20 02 2014

MALASARTES Era um dos quais se ria e se dizia: ―O mais vil dos vilões d‘aquela vila...‖. Tinha as finezas mesmas d‘um gorila Todo p‘la contumaz velhacaria. Tido por bem influente, noite e dia, Acorrem até sua porta em fila, N‘uma vaga esperança de entreabri-la. Com súplicas bizarras, todavia... Caminhava janota pela rua Certo que a própria máscara cultua, Vivendo a articular conspirações! E ria do rir do povo: ―Gente à-toa! ‖ Afinal, quem julgar sua pessoa Não fará mais que ter mais ilusões.

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SONETOS 2014 Betim - 15 06 2014 MARES DO SUL Por onde tanto mar, tão pouca terra... Somente ilhas remotas e vazias Banhadas pelas águas ainda frias Cerca d‘onde o Pacífico se encerra. Lá aportaram n‘um vaso de guerra, Fazendo descobertas já tardias Para ancorar em suas fundas baías, Essa gente que por extremos erra. Estando em terra firme, ardem a barca, Pois, fogem da marinha do monarca Cuja justiça já condena à morte. Mas enfim a habitaram, isolados. Ali, no fim do mundo, tendo a sorte De nunca terem sido reencontrados. Betim - 05 11 2014

MARINHAS Foi n‘aquela manhã de muito sol, Que ele ousou pôr à sombra o cavalete. À frente, o fim da estrada lhe promete A paz n‘uma paisagem com farol. E havia um pescador e seu anzol Nos arrecifes já feito joguete Pela arrebentação que se repete Mais fumarolas indo em caracol. O mar, encapelado e sem navios, Se descortina em tantas cores, tons, Que, à palheta, percebe-se até sons! Sua visão, mais que costões bravios, Fixava o ensolarado sentimento Com que se refestela no momento.

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RICARDO CUNHA COSTA Betim - 15 09 2014 MICROSCOPIA Foi a guerra entre fungos e bactérias Em lâmina de vidro acontecer... Estava ali p‘ra quem quisesse ver, N‘um mundo diminuto, as vis matérias. Ali, bem ali, são nossas misérias Em forma de corpúsculos quaisquer, Que se movem e vivem n‘outro ser, Causando-lhe moléstias más e sérias. A vida vista pelo microscópio Parece prescindir d‘uma razão Além da mais letal competição. Igual Ulisses frente ao afã ciclópeo, Uns micróbios derrubam os humanos... Sim, os menores dão os maiores danos! Betim - 18 09 2014

MINERAÇÕES Tudo depende só do veio que escavo: Olho a cor e a dureza em cada rocha, Onde à marreta, ponteiro e brocha Busco extrair da pedra seu pó flavo. Assim as palavras com que me agravo: Jazem na escuridão até que a tocha As faz brilhar na cava que se arrocha Como ao duro labor do Rei-escravo. Após vem a lavagem no garimpo, Cujo paciente afã, um ouro limpo Pesa, por fim, no prato da balança. Seja, pois, o verso tão rútilo quanto! E haja na sua glória todo o encanto Da verdade e beleza que se alcança.

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SONETOS 2014 Betim - 24 11 2014 MORGADIO Herdara uma excelente propriedade Que dominava do alto d‘um outeiro Toda a margem esquerda do ribeiro Espraiado nos confins da soledade. Não admira que seu ato primeiro Fora cercar em torno a sua herdade E, recluso, alcançar toda a verdade; Ou senão um sentido verdadeiro. Nominou de ―O palácio da ventura‖ À sua solitária moradia De alva e vernacular arquitetura. D‘ali mirava o fim de cada dia Enquanto acarinhava com ternura As árvores que tem por companhia. Betim – 21 07 2014

MORTO-VIVO Desde aquele dia eu me sinto assim, Como se vivo por simples acaso. Pois sim, na mira d‘um soldado raso Quase que, inadvertido, vi meu fim. É falso se dizer então de mim, Que fora corajoso ou de bom azo; Verdadeiro somente é que me aprazo Em cada olhar que deixo, agora e enfim. — ―Podia ter morrido. É... Estar morto!‖ — Digo, às vezes, mas sem qualquer conforto, Senão de que, apesar do outro, estou vivo. Embora eu me perceba diferente, Pois, repetidamente, a Hora revivo Vejo o inimigo armado à minha frente.

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RICARDO CUNHA COSTA Betim - 23 07 2014 NÃO IMPROVÁVEL Talvez sim. Porque eu a olhe e veja nua Ou porque o tempo fez-se enfim propício; Ou porque quão mais raro, mais difícil. Embora o encanto enquanto se insinua... Talvez fosse bonita ou porque a lua Estivesse tão plena de artifício. Talvez porque, já cerca ao precipício, Eu me precipitasse pela rua. Talvez não. Talvez nada fosse assim; E talvez sequer era para mim Seu sorriso mais terno àquele instante. Talvez eu nem devesse estar aqui. Mas não tivesse eu visto quanto vi Jamais a encontraria d‘oravante. Betim - 31 12 2014

NUA PELE Admirava-a pensando quão macia A sua pele exposta quase ao toque... Pois, por mais errático que a foque, O olhar não se furta à fantasia. Ela era toda sorrisos. Parecia Não se importar que fácil me provoque. Nem oculta o cabelo, preso em coque, Um ombro que moreno se exibia... Eu chegava a sentir em minha boca O gosto acre de seus pelos eriçados, Se bem levemente o hálito lhe toca. Ela, por sua vez, tinha contados Os centímetros cuja dor evoca Prazeres prometidos, mas negados.

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SONETOS 2014 Betim - 26 08 2014 O COLOSSO Gigantes, quando caem, causam estrondo; Um ensurdecedor choque de massas. Mas quem até então lhe rendeu graças, Hoje se admira, vãs razões propondo... Ídolo imenso d‘um globo redondo Onde imperou outr‘era, ei-lo aí às traças! Levaram-lhe memórias, ouros, taças... Só deixando as relíquias que ora escondo. Eu, pelo extenso campo, cato os restos D‘aquele que, alteroso, sobranceiro, Reduziu-se a fragmentos tão modestos. Não cuido mais de glórias. Verdadeiro Monumento é a ruína que aqui jaz: — ―De volta ao pó, ao sol, descansa em paz. ‖ Belo Horizonte – 08 07 2014

O DÂNDI DE MANCHESTER Não entendo porque é desimportante A tantos isso d‘eu me debruçar Sobre o mais impetuoso e só olhar D‘aquele que poetou co’a luz do instante. Criança, eu subo nos ombros d‘um gigante Para ver bem mais longe que o lugar Comum onde as ideias vão se cruzar E achar quem faz a vida interessante. O amor, se não eterno, seja intenso. Não seja tão-somente quanto penso, Tampouco extremamente quanto sinto. Seja dor entremeada de prazer, Que faça eu me lembrar e me esquecer, Perdido nos desvãos d‘um labirinto.

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RICARDO CUNHA COSTA Betim – 11 09 2014 O DESAFETO De vera, a dúvida é um benefício Que muitos homens não merecem mais. A culpa recai sobre os teus iguais Enquanto te animarem o ócio e o vício. Investiga os alicerces do edifício, Que te construíste com cartas banais. Mas não lamentes tu junto aos boçais Viveres no absoluto desperdício. Eu não te reconheço: És qualquer um! Renego até o dia em que te vi No mais convencional lugar comum. E apesar de entender tua ilusão, Nada resta senão fazer de ti Outro rosto a sumir na multidão. Betim - 29 10 2014

O DUODÉCIMO E fora logo ele, o último dos Doze, Aquele que haveria-de O entregar. Chamado para cair e fracassar Tal-e-qual os viciados à ultradose. Embora a meninada agora goze Grande divertimento em o judiar, Sua triste figura ia ilustrar Evangelhos do Cânon e da Gnose! As trinta moedas foram o seu preço E a corda da forca o único adereço, Em lugar das auréolas dos demais. O mais é desespero e solidão: Veio-lhe o remorso, as lágrimas em vão, E a culpa mais extrema entre os mortais.

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SONETOS 2014 Betim - 08 11 2014

O ENÉSIMO Parara de contar, perdera a conta; Tão indiferenciável que era já. Amara e desamara em hora má, Sob pena de tornar-se piada pronta. Ia por rumo: O que o nariz aponta! Tonto co‘os tombos que essa vida dá... E busca, tanto aqui quanto acolá, Outro tonto a quem sua história conta. Não. Aquele ali não fora o primeiro, Tal como não será o derradeiro, A conquistar o que veio a perder. Sem embargo, a verdade é que ‗inda dói. E quanto resta agora ao nosso herói É sempre a mesma angústia reviver. Betim – 12 06 2011

O EXPLORADOR Por rio acima, mata adentro, vida afora... Eu ando procurando algo que sequer sei. No tabuleiro tenho eu sido peão e rei Como se já alguém que de si se assenhora. Tanto faz se comando ou se comandado. Ora!... Contra o sol e a distância afinal marcharei! De alturas, o horizonte além descortinei, E o experencio em mim ao estar aqui e agora. Meu único plano é a vista que prolongo Depois de plotar sobre o mapa a trajetória Que registra em miúdo a minha longa história. Rugas sulcam-me o rosto ora pálido e oblongo Galgando o cume frio em alta cordilheira

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RICARDO CUNHA COSTA Onde nunca ninguém fincou sua bandeira. Betim - 27 09 2014 O FAZ-TUDO Se que o que aqui se faz, aqui se paga, Eu nada tenho por tudo o que fiz Além da insanidade de aprendiz, Que se esforçou até sangrar a chaga. N‘isso, dá-se e recebe-se por vaga Esperança em fazer alguém feliz: Por um nada o faz-tudo — assim se diz — Tem no muito fazer a própria paga. Ou não... Embora tantos afazeres, Intento atravessar o cativeiro, Prevalecendo, enfim, a vis quereres. Útil: A um só tempo, último e primeiro. Fiz de um tudo com mimos e prazeres, Pelo amor que sequer é verdadeiro... Betim – 30 06 2014

O FICCIONISTA Era pessoa muito peculiar, D‘essas que veem a vida em narrativa. Ou melhor, qualquer coisa que ele viva, Logo vira algo para se contar. Toma um caso bizarro do lugar E entra a romancear com herói e diva. Pois, entre ser e estar ele se esquiva Por força de outra história imaginar. Agrada-me ler seus longos enredos De sonhos, desventuras e segredos Tanto quanto pudesse eu me entreter. De maneira que a própria realidade Fica invadida pela liberdade

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SONETOS 2014 D‘alguém que experiencia p‘ra escrever. Betim - 16 07 2014 O FILELENO Byron, o poeta inglês, veio a morrer N‘uma guerra entre gregos e otomanos. Pouco se soube então dos desenganos Ou mesmo das ideias a se escrever. Fora para lutar ou para ver? ... — Talvez para tornar-se quem sem planos Ideara ele em seus versos durante anos, Mas só lá, estrangeiro, logrou ser. Às vezes, a poesia faz política, Porque as ideias precisam reluzir Àqueles que veem um outro porvir. E, se ele sonhava uma Grécia mítica, A terra que encontrara amara tanto, Que a própria Liberdade fez-se canto. Contagem - 24 05 2014

O HOMENZARRÃO Tinha um tipo antes grande do que gordo. Sua presença, assim, domina o ambiente, Olhando todos bem do alto e de frente. Logo, alguém p‘ra não ter em desacordo. O improvável herói que aqui abordo, Primava em ser ao máximo coerente. Conquanto não o fosse ultimamente, Sentido talvez por um mal recordo. De facto, estava agora tão perplexo Que, dir-se-ia, uma sombra do que fora A andar, cabeça baixa, estrada afora. E repete um discurso desconexo, Cuja verdade a si parece forte,

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RICARDO CUNHA COSTA Embora assustadora com seu porte. Betim - 17 07 2014 O ILHÉU N‘aquela ilha era como se somente Pudesse estar liberto sendo só. Habitava distante onde tão-só Houvesse solidão à sua frente. Era ele um solitário indiferente, Que olha marés e luas já sem dó E o trabalho do mar que torna ao pó Todas as inverdades vãs da gente. Caminhando sozinho pela praia, Condiciona o valor da liberdade Só à mais absoluta soledade. E segue além, embora a tarde caia: — ―O mar recebe o sol que devolveu, Mas tem p‘ra si apenas o que é seu...‖ Betim - 24 08 2014

O PRÓDIGO O gosto de seus lábios o endoidece A ponto de deixar tudo por eles. Alegremente, máscaras, bens, peles... Foi despindo de si. Ao que parece, Perdeu completamente outro interesse Que não os desfrutar como o mais reles. Sim: Preferirá estes afãs àqueles A fim de vir a ser quem lhe apetece. Ilusão — bem o sabe ele... — tudo isso. Se amar for encantar-se n‘um feitiço, Ama à penumbra a envolta em só mistério. Pois se maravilhavam ignorando Quem eram e quem foram até quando

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SONETOS 2014 O tempo os sujeitasse ao seu império. Betim - 14 10 2014 OBITUÁRIO Morreu ontem à noite quem eu fui, A zero hora, na minha própria casa. Fora encontrado só e, embora jaza, A causa de mal súbito se intui. Da memória — ou miséria — alguém conclui, Que santo sem auréola, anjo sem asa... D‘esta para melhor em cova rasa, Pois nada mais e além de mim se argúi. Findos já os reveses e os esforços, Entendo não levar senão remorsos D‘uma vida vivida como tantas. Deixo uns versos que pude ter sabido Para adentrar as portas vãs do olvido. Enfim, pôr minha voz n‘outras gargantas. Betim - 30 03 2014

OURIVESARIA O ouro brilha à luz quando é trabalhado. Em crisol liquefaz-se e o ardor intenso Purifica-o porquanto ‗inda mais denso Que o pó escuro e fino da bateada. Pois preto o ouro cuja ávida jornada Principia em mundéu de muro extenso. Ao fim, fira-o um buril na arte pretenso Com preciosa memória a ser gravada. Eis aí a sua bela e mor verdade... A arte é guardar dos homens o tesouro Em metal frio e à prova já da idade. No entanto, brilhará ao olhar vindouro, Contando o que a outrem era, por herdade,

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RICARDO CUNHA COSTA Um nome mais valioso que o próprio ouro. Betim 02 06 2014 PALAVRAS FURTADAS As palavras qu‘eu tinha, quem furtou? Sobretudo, por quê? Qual o sentido Têm senão para mim?! Terão valido Àquele que as levou para si ou Simplesmente bem boas as achou?... Penso que pensa ser muito sabido, Ainda que não saiba o que vivido Tenho para m‘as ter e ser quem sou. Furtadas, com certeza, às escondidas Sem que jamais tivessem sido lidas Nem ouvidas por mais quem quer que fosse! As palavras qu‘eu tinha, quem as tem? Furtadas, com certeza, por alguém Que ao domínio de todo mundo as trouxe!... Betim - 16 05 2014

PAUPÉRRIMOS Se nada me dás, muito pouco tens! Quanto a mim, tudo o que tinha te dei... E ainda assim vazia bem te sei Toda oportuna vez que me vens. Chamam pródigo àquele cujos bens Logo esbaldou, vivendo como um rei. Eu, porém, tanto quanto esperdicei, Pois tu, por infeliz, nada reténs. Iguais, tua ambição e meu desejo. Por insaciáveis têm nos impelido Quão incansáveis têm nos destituído. Nossa miséria é tal que nada vejo Senão que ora somados somos menos:

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SONETOS 2014 Juntos, os dois tão pobres; tão pequenos! ... Belo Horizonte – 21 12 2014 PÊNDULO Com que compararei o homem, senão A um corpo que, suspenso por um fio, Oscila indo-e-vindo sob sombrio Tatibitate d‘um só coração? A trajetória, não mais que emoção, Que leva do mais calmo ao mais bravio. Zunindo a sibilar; outro assovio Urge antes que o silêncio seja. Ou não... Pois, n‘esse balançar repetitivo. Compreende-se, portanto, que estar vivo, Não é o que evolui, sim o que alterna. Entre extremos, descreve seu amplo arco; A ponto d‘eu não ver se real abarco A dor que me entretém e me consterna. Betim - 05 09 2014

PENÉLOPE E não pôde uma história, embora triste, Retirar os seus olhos do horizonte... Vigia o mar até que a nau aponte Trazendo a si o herói que além persiste. A história que contaram não resiste À febre a latejar em sua fronte. Só soube desdenhar quem mal lhe conte O infortúnio do nauta em tom de chiste. Cerco, não corte, o que lhe fazem eles! Aborrecida, recolhe-se ao mirante E olhares e suspiros lança errante. De lá, lamenta tudo... Inveja o reles, Que livre goza o sol, o céu, o mar...

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RICARDO CUNHA COSTA Sem ter nada a perder. Nem a esperar. Betim - 01 11 2014 PÉRIPLO Rodamos alta noite p‘la cidade, Seguindo, passionais, de extremo a extremo. E assim todos os males que em mim temo Vira eu subitamente em liberdade. Tu e eu éramos ávida saudade Feita de idas-e-vindas que alfazemo: Como se o coração, senhor supremo, Mudasse a percepção da realidade... Tão variados humores e lugares A ponto de perder em labirinto Quem por ruas vazias busca azares Ou sortes talvez... Amo-te, não minto. Mas, se através da noite me levares, Nada mais sei ou sou: Apenas sinto. Belo Horizonte - 31 03 2014

PETRA A cidade de Petra no deserto, De templos esculpidos sobre rochas. Por róseos arenitos ardem tochas Em honra d‘algum deus ignoto ou incerto... N‘aquela terra inóspita, decerto Tremularam bandeiras aurirroxas, Entre as quais rebrilhavam alvas coxas De mulheres co‘o ventre descoberto. Palavras só descrevem o que existe. Não criam realidades, sim tão-só Especulam ao espaço vazio... E ao pó! Contudo, entre os rochedos bem resiste Ao vento, ao sol, aos ávidos, aos anos...

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SONETOS 2014 A maravilha d‘arte e engenho humanos. Betim - 22 09 2014 POLAROIDES Dentro da caixa, ao fundo da gaveta, Guarda pilhas de fotos já antigas. N‘elas, recorda faces mais amigas, Que píxeis a deixar su‘alma inquieta. Àquela época a vida era repleta De caminhos, achados e fadigas. Hoje, em meio a existências tão mendigas, Busca-se a verdade que o faz poeta. Caras — quer queridas; quer valiosas — As imagens registram o instantâneo Com luz e honestidade poderosas. Aí o riso aberto, o gesto espontâneo, Mais a outra face enfim reconhecida... Em foto, irretocável, toda a vida. Betim - 14 11 2014

POMPA E CIRCUNSTÂNCIA N‘esta terra de vales tão profundos, Onde reluzem penhas de basalto, Em pico agudo e abismos no cume alto... Porque fronteira extrema de dois mundos. Transito sobre saibros infecundos, Cuja poeira levanto só e incauto. Mas surpreendo o rio com seu salto, Em plena pedra negra e seus rotundos. É uma imensidão que me apequena E me faz ter consciência de quem sou, A um só tempo tão forte e tão serena. Se contra o céu eleva-se da terra, Ou se lhe aponta o sonho que deixou;

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RICARDO CUNHA COSTA Só sabe Deus que luz a rocha encerra. Antônio Dias - 29 12 2014 PRECIOSIDADES Amanhecem ao sol gotas d‘orvalho Rebrilhando nas taiobas bem por sobre, Onde a água — quase sólida! — algo nobre Vem acrescentar a folha e galho. Fôssemos definir esse trabalho, N‘ele não menos que Arte se descobre Para rivalizar com ouro e cobre, Tal brilho quando todo afã é falho. Pois obra só do acaso, da Natura; Não por mãos, sim pelo olhar criada Ao vislumbrar que o belo ali figura: Gema no verde escuro aprisionada, Fez-se forma translúcida; tão pura Que qual cristal reluz para e por nada. Betim – 20 12 2014

PRECISO, NECESSITO Preciso, necessito ser amado. Mas preciso que me ames para eu ser Alguém talvez capaz de te entender E assim permanecer sempre ao teu lado. Preciso, necessito ser tocado. Preciso que me toques para eu ver Que me queres tal-qual o meu querer, Antes que caia de vez necessitado. Careço que me tomes pela mão, Pondo-a segura sobre o coração Para que eu sinta que o sintas também. Porém, se muito a ti estou pedindo, Deves saber que o amor, embora lindo,

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SONETOS 2014 Tem as carências sós que lhe convém. Inhapim - 14 03 2014 PROSOPOPEIA Entreabri a janela do meu quarto E as cortinas puseram-se a dançar, Revoltamente, enquanto renova o ar A lufada de vento em que me farto. Lá fora, a pleno sol, vejo um lagarto Parado sobre o muro a se esquentar. Parecia d‘algum modo esperar Por velhas ilusões que em vão comparto. Nada tinha a dizer-lhe, todavia. Senão que a luz intensa d‘este dia Tornava seu semblante quase humano. Balançou a cabeça, concordando. E chegava a sorrir de vez em quando Como se me entendesse o desengano. Betim - 24 08 2014

RONDA NOTURNA Se por vias escuras e vazias Andasse noite adentro, solitário, Saberia — muito além do imaginário — O eco audaz de saudosas fantasias. Haveria a memória de outros dias, Retrazidas à luz de extraordinário Efeito sobre as horas que, ao contrário, Passavam em quietudes fugidias. Vejo e não vejo o que agora é aqui... Tudo desaparece ante o que vi E que torno a ver como se ao olhar. Sem óbice algum, ando a recordar Tanto quanto ora recordo a andar

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RICARDO CUNHA COSTA Entre as sombras em que vivo e vivi. Betim – 10 05 2014 SANT’ELMO Os mortos não lamentam; não reclamam. Os vivos, sim. Estúpidos ou não... Diante da morte, os homens pouco são E tão-só permanecem no que amam. De facto, isto é aquilo que alguns chamam De esperança e, às vezes, de ilusão. Mas se a alma caminhar na escuridão Haverá o sinal que tantos clamam? Um fogo que não queima arde pelo ar E quem o vê começa a se alegrar, Certo que a tempestade logo finda. Veem a vida tão frágil; tão sagrada, Que por mantê-la assim, fazem-na errada. Mas ao perdê-la, enfim, pensam-na linda. Betim - 13 08 2014

SINO DE VENTO Deve ser uma aragem fresca, branda; A que me acaricia a testa e a mente, Mas solta notas vãs, indiferente, Ao atravessar à noite uma varanda. E sonho Passárgada; e passo Samarcanda... N‘uma viagem sonora tão-somente Por dentro da memória semovente, Que sobre areias ainda quentes anda. Era música tão minimalista A ressoar no sino que o vento toca À maneira de quase ausente artista. Porém, ainda assim ela provoca, Senão contemplação para ter em vista,

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SONETOS 2014 O acaso que ao silêncio mal se choca. Betim - 14 12 2014 TEMERÁRIO Tenho medo de que teu olhar tenha Uma verdade cuja luz sequer Ousaria admirar enquanto houver Dor... Mesmo que a dor venha e convenha. Como um que quer tanto que desdenha; Como aquele que vem só quando quer; Pudesse o olhar extremo da mulher Penetrar fundo tão obscura brenha! Não. Nem é mais talvez nem inobstante, O bom d‘estarmos sós é semelhante Aos derradeiros sonhos e esperanças. Entenda: Já não posso nem um passo. Sim, o tropeço só que ganha o espaço A rodopiar-me em falso estranhas danças. Betim - 30 12 2014

TOPONÍMIA Têm, às vezes, os nomes dos lugares A poesia da gente que os habita. Pôde a paisagem uma flor bonita, Que nas várzeas espalha seus bons ares. Lá, taboas irrompem em mil pares, Ondeando-se aos ventos da desdita... Onde o baixio em graça se acredita Até à santidade dos altares! O belo transfigura-se no olhar. E os antigos, no afã só de nomear, Forçaram as palavras ao deslumbre. Poeticamente, o encanto perpetua Do mesmo modo que a mais clara lua

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RICARDO CUNHA COSTA Reluz à terra um nome em que a vislumbre. Contagem - 09 10 2014 TRAGICÔMICO A gente até ri, mas é muito triste... É como ir cutucando a cicatriz Por ter que, latejante, ela condiz Co‘a forte dor que n‘alma ‘inda persiste. Se riem de gargalhar de quanto existe, É fé que apenas o outro é infeliz. E aplaudirão de pé se as obras vis Lhe forem justiçadas n‘algum chiste. Ser feliz talvez não seja uma opção; Tampouco esse alternar sorte e revés P‘las probabilidades da emoção. É mais como iludir-se só, ao invés D‘explodir contra um fado imerecido. A gente até ri, mas de constrangido... Betim – 16 12 2014

VILANIA Não me fales de amor! Não me interessa... O que julgas sentir sequer existe. Quero-te apenas quanto permitiste, No ardor que à noite tépida atravessa. Acontece-me às vezes d‘eu ir à pressa P‘ra explodir de alegria um olhar triste. Não penses, entretanto, que persiste O instantâneo prazer por vã promessa. Aliás, tudo o que tinha já te dei E se não reino sobre ti qual rei É porque reconheço o vil que sou. Não me importa se choras após rir, Muitas nem isso têm a lhes distrair...

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SONETOS 2014 Recebe, pois, o pouco que te dou. Betim - 02 09 2014 VIRULENTO Não foi uma nem duas vezes que ele, Um outro amargurado já sem sorte, Sentiu o sanguíneo hálito da morte, Que friamente lhe roça a nua pele. Pois — muito embora a sua fronte gele E, cada vez mais rápido e mais forte, O coração tão-só a dor reporte — Vocifera-se angústias a este e aquele. Ele espera, talvez em vão, a Hora. Observa-se que tudo quanto adora Leva consigo n‘uma mágoa imensa. Eis o pior d‘entre os homens: O ofendido! Sim, aquele que quando agredido Ensimesma-se sob a dor da ofensa. Betim - 05 08 2014

VISTA MINEIRA Há alguma verdade na beleza, Que se contempla d‘esse alto mirante. Galgado enfim, entre ávido e hesitante, Ao trilhar o sítio e toda redondeza. Não vim ao belo, sim pela incerteza D‘eu saber-me d‘algum solo habitante E, totalmente só, eu ficar diante De mim comigo e com minha tristeza. No entanto, a serrania me rodeia Dramática, aos confins do Quadrilátero, À inconfidência d‘um rubro equilátero... E como um mar de morros que se ondeia Estende-se-me além para o sol poente,

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RICARDO CUNHA COSTA Que nas serras deita ouro, indiferente. Nova Lima – 01 06 2014

VOO LIVRE Asas inflam por térmica ascensão E, após, descem em vórtice, planando... Onde um sol escaldante alerta quando O céu vai colorir-se de emoção. A urubuzada aflita deixa o chão Até tocar às nuvens ao olhar brando De quem se quer com pássaros revoando, Enquanto acelerado o coração. Voar com eles, como eles, o dia todo. Deve lhes ser, de facto, o melhor modo De, conhecendo os céus, se conhecer. E vão, como se parte da paisagem, Aproveitando ao vento outra viragem, Que simplesmente linda de se ver. Betim - 12 12 2014

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