COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO/VOL. VII

SONETOS 2012-2013 POESIA

BH/16

EDITORA PENA FIEL

_________________________________________________________ COSTA, Ricardo Cunha. 1976 - ... SONETOS 2012-2013 - Espólio literário: SONETOS VOL. VII / Ricardo Cunha Costa, Belo Horizonte: Editora Pena Fiel, 2016. pp. 69 – (Coleção Espólio Literário) ISBN .... 1. Poesia em língua portuguesa 2. Geração milenarista 3. Soneto contemporâneo __________________________________________________________

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Impresso no Brasil Primavera de 2016

RICARDO CUNHA COSTA

SONETOS 2012-2013 COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO -SONETOS / VOLUME VII -

POESIA PRÉ-EDIÇÃO

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EDITORA PENA FIEL BELO HORIZONTE - MINAS GERAIS

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SONETOS 2012 - 2013

COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO SONETOS __________________________ 10 VOLUMES TREZENTAS _____________________ VOLUME ÚNICO RONDÉIS, RONDOS E BALADAS ________ 2 VOLUMES REDONDILHAS E DÉCIMAS ____________ 2 VOLUMES GAZAIS E HAI-CAIS _______________ VOLUME ÚNICO IMPROVISOS E PROSAÍSMOS ___________ 2 VOLUMES PROSA LIGEIRA _____________________ 3 VOLUMES POESIA DISPERSA ________________ VOLUME ÚNICO CONTOS ________________________ VOLUME ÚNICO

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DOS ORIGINAIS MANUSCRITOS DE RICARDO CUNHA COSTA

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RICARDO CUNHA COSTA TEMPO PREFACIADO Seguindo com a revisão e edição dos sonetos para esta Coleção Espólio Literário, chegamos ao volume VII – SONETOS 2012-2013. Tem sido um trabalho diferente este, haja vista termos começado a edição pelo volume IX e, sem concluir o X, temos regredido no tempo. Esse é, portanto, o terceiro livreto editado que vem a lume seguindo esse ordenamento peculiar que, com a devida vênia do leitor, tentarei senão justificar algo explicar... Enfim, desde que comecei a publicação de poemas em ambientes virtuais, eu me deparei com o problema da organização e pesquisa do conteúdo publicado. De facto, segundo a lógica própria da visibilidade na web, é de suma importância que se publique frenquentemente conteúdo nas páginas mantidas pelo autor. A atualização de blogues, perfis e páginas consome boa parte do tempo que escritores dispõem para a divulgação de seus textos. É um dos problemas mais interessantes dos tempos que correm: o acesso à informação versus a relevância do conteúdo. Essa contínua renovação de conteúdo realizada no afã de fidelizar o visitante à página, contudo, dá a sensação de que só o conteúdo mais recente é de real interesse, o que não se verifica correto em termos literários. Isso porque – na Literatura em geral e na Poesia em especial – relevância pouco tem a ver com a necessidade de novidade ou de exposição ao público. Nesse sentido, o presente prefácio se propõe a advertir o leitor nessa mídia ao que tudo indica já em vias de extinção – isto é, o códice de papel impresso – de que os sonetos aqui compilados foram originalmente publicados em redes sociais e blogues para um público ainda muito próximo ao autor. Ratifico essa advertência ao leitor por perceber que os sonetos deste período talvez se ressintam do afã de renovação contínua de conteúdo que motivava a frequente publicação destes. Aliás, as mídias eletrônicas que prometem paulatinamente substituir os livros impressos mudaram também o modo como o público se coloca diante do texto literário, haja vista a importância que a visualização de conteúdos assume cada vez mais em comparação com os antigos parâmetros para avaliar a qualidade e a relevância de livros, em especial, as vendas. Acredito mesmo estarmos presenciando o fim da era dos best-sellers enquanto baixamos de graça bibliotecas inteiras em telefones celulares portácteis. Afinal, se ninguém mais paga por livros e o público leitor é percebido com ainda mais detalhe em face da poesia ou prosa literária em apreciação, não se existe mais uma obrigação para o escritor mercantilizar sua obra. Ao contrário, o escritor passa a necessitar cada vez menos de intermediários entre ele e seu público. Deixa de ser parte do ofício do escritor a promoção do enriquecimento corriqueiro de editoras ou livrarias. Não, o ofício do escritor é escrever.

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SONETOS 2012 - 2013 O circo publicitário das empresas de entreternimento multimidiáticas – a que se convencionou chamar de “mercado editorial” – torna-se menos importante numa realidade em que o leitor é apresentado a inúmeros escritores dentro de seus círculos de relacionamento. Penso que a apresentação de textos literários em mídias electrônicas seja uma revolução em curso e que caiba aos escritores se engajarem o quanto antes numa luta pela aproximação radical entre autores e leitores. Tudo isso dentro do programa de uma poesia que se pretende milenarista, cujo aspecto forçosamente escatolólgico justifica para mim a ideia de que fazer públicos os meus versos era mais importante que guardar material inédito para um livro que talvez sequer tenha ocasião de pôr no prelo... Enfim, libertar os versos de questões meramente autorais, é reconhecer que também o leitor completa o verso enquanto o lê. Essa profunda troca entre autor e leitor faz da poesia forma de linguagem diferenciada ao considerar sua mensagem mais ampla que aquela contida em seu texto propriamente dito. A melhor comparação que me ocorre para entender o caráter quase mágico da poesia é o palco do teatro: Quando o actor sobe ao palco caracterizado, ele finge ser a personagem e a plateia finge que aquilo faz sentido... Há ali um acordo tácito entre fingidores e fingidos que permite à ficção ser percebida como realidade. O mesmo para mim acontece com a poesia, pois, quando o leitor se depara com um texto em versos sua postura muda. Difentemente da prosa – literária ou não – a poesia é lida e intrepretada mediante sentidos que são projetados pelo leitor por sobre o texto apresentado pelo poeta. E ainda que proponha notas para orientar a leitura, o autor é incapaz de definir os limites e as interpretações que seu texto poético suscita. Mal comparando, é como a impossibilidade histórica de ortodoxias religiosas em restringir a intepretação de textos sagrados. Isto posto, a leitura de poemas faz-se, também, uma acção criativa; ou melhor, poeto na fé de que para se ler poesia é preciso ter tanta sensibilidade quanto para a escrever. É isso. Ricardo Cunha Costa, o autor.

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Para Mariana, Maria Eduarda e Bárbara Maria, as “Três Marias”.

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A BESTA-FERA Temerário sinal dos tempos, ando Pelas remotas terras só à espreita. Já fui gente já. Gente hoje me enjeita... E foge, feito bicho solto, em bando. Vivia assim, sem fim e rumo, quando Entendi que cá nada se aproveita. Foi para punir toda obra imperfeita, Que quase um animal fui me tornando. Então, justificado p‘la maldade Da vã e corrompida Humanidade, Procurava ser pior do que os já maus. E o hediondo que me julgam essas gentes Fez com que após se vissem inocentes Ao me hostilizar com pedras e paus! Contagem - 22 01 2012

A EMPAREDADA Nada podem as mãos contra o concreto E os gritos que jamais alcançam um. Resta tão-só, sujeita à lei comum, Reduzir-se bem rápido a esqueleto. De parede à parede, chão ao teto, O espaço não lhe dá conforto algum. Devora-se, por fim, em vão jejum Vítima d‘algum péssimo projeto... Estranho é que a razão d‘essa clausura Seja o amor que lhe pôs em solitária A viver sua noite mais escura. E a pena que ela cumpre feito pária Apenas lhe adia a hora da amargura E sua morte... A morte, essa arbitrária! Betim - 30 08 2013

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A FADISTA É tão triste a canção que, só, eu canto, Que me espanto d‘haver alguém tão triste. Nem sei se uma tristeza assim existe Ou se o canto é também forma de pranto. Chego a duvidar que se chore tanto E, entretanto, entretém-se quem insiste Em ter de sua dor estranho chiste, A cantar tão agudo a alma em quebranto. Traz de sua tristeza uma alegria Quem como eu ama mal e em demasia Para lamentar com alto e bom tom. Porém — digo por mim — tal dor é dom: Saber sofrer e ter prazer co‘o som Torna mais leve a pena a cada dia. Betim - 18 04 2013

A HIDRA Há relatos de insólita criatura A habitar os abismos mais profundos. Ao que, arisca, de tais obscuros mundos, Bem raramente emerge à luz pura. Não obstante, ela está sempre à procura: Silentemente, co‘os seus olhos fundos, Vai espreitar os pobres moribundos, Que antes envenenara à noite escura. Atenta, ela os vê cair e se aproxima E espera a escuridão tudo envolver Para lhes devorar o imóvel ser. Desce — deixando restos cá em cima, Porquanto em apetite igual dizime — Satisfeita consigo e com seu crime Betim - 09 10 2013

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A NOIVA Se ela, d‘entre todas as mulheres, Quisesse receber-me o anel argírico, Este poeta menor, alçado a lírico, Se lhe daria alheio a alheios misteres... Ela é aquela cujos sós quereres Têm me posto n‘um êxtase quase onírico, Que cada verso meu, um panegírico, A exaltá-la tal-qual míticos seres. Amor imenso; extrema e insã paixão... Não há-de querer menos a que ousar Em seguir, obstinada, o coração. Porque a beleza a obriga a desejar — A despeito de dor e de ilusão — Um que mais e melhor a saiba amar! Contagem - 10 02 2012

ACHADOS Dizem alguns que versos são achados E que seja trovar um dar sentido Àquilo que caminha para o olvido Em meio a corações desencontrados. Talvez sejam uns zéfiros alados A soprar desde os polos o tempo ido No vento que às auroras tem despido Após amanheceres neblinados. O facto é que se escreve ainda versos, Muito embora os julguem pertencentes A más neurastenias pré-existentes... Fragmente inutilmente os eus dispersos Quem apenas por entre trevas trova No afã de se achar uma arte nova. Belo Horizonte – 12 12 2012

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ADVENTO Feito mula sob albarda e enxalmos, — Tamanho o jugo do ouro e do pecado — Invejo ao campo santo lado a lado Tantos já a dormir a sete palmos!... As cítaras e os címbalos dos salmos Ressoam pelo templo iluminado. Escuto um cantochão antepassado Saudar nosso Senhor com versos calmos. Versículos no ambão; hóstias no altar. Em tudo de Jesus se faz memória Inclusive essa cruz sempre a sangrar. A antífona, a aleluia, o kyrie, o glória... Que a vinda do Senhor tenha lugar Nos séculos dos séculos da história! Belo Horizonte - 03 12 2012

AÉREO As nuvens a ocultar o sol lá fora Alertam de que tudo é fugidio... Tarde de céu de chumbo e vento frio, Que me fez recordar outras d‘outrora. E o tempo vai passando sem demora No vento a me zunir seu assovio. Já me sentia há tanto tão vazio, Como se eu com o vento fosse embora. Eu, de ponta-cabeça sob o céu, Me imaginava a andar nas nuvens densas Enquanto rascunhava algum papel. E ainda que me julguem bem pretensas As evasões de quem vivesse ao léu, Me aceito catador de ideias suspensas. Betim - 21 05 2012

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ALDEBARÃ Quando de noite, à abóboda infinita, Surges a guardar quanto se constela Em Touro, que por seu olho revela A estrela mais vermelha e mais bonita... És aquela que há tempos se acredita Quem sobre teu poeta o sono vela. Permite-me ao menos ser, imensa estrela, Um planeta que ao largo te gravita. Possa eu refletir os olhos teus E, pela tua luz, luzir também A ponto d‘eu ser para ti alguém. Ou senão, vem me dar o último adeus E mais um beijo só de despedida Para lembrar de ti por toda a vida. Betim – 19 03 2013

ALTOS UIVANTES Vinte e duas e vinte e dois: É hora! Saio a buscar verdades inquietantes Para entender os factos o quanto antes, Sob pena de perdê-los vida afora. Avanço pela noite, muito embora Já sem ter a ira cega dos errantes. Meus passos p‘los altos uivantes Buscam na névoa espíritos d‘outrora. Aí encontro, sem mais nem quê, o verso A caber dentro em si todo o Universo Mais o oceano e a Santíssima Trindade! Isso pode ser mal, talvez perverso, Ou não mais que outra débil liberdade... Que tomo, aqui e agora, por verdade. Betim - 15 05 2013

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ANOITECER Quando as cigarras cantam à tardinha E o arrebol sangra os longes do horizonte Que a lua, alfange em prata, além desponte, Se d‘ela a estrela d‘alva se avizinha! Deveras, n‘aquela hora tão sozinha, Haja um concerto cá do alto do monte, No qual a passarada outra vez conte A bela melopeia que me convinha. Avesso ao burburinho das cidades, Encontre eu pelas brenhas alterosas Lindas soledades, poentes rosas... De modo que com amplas liberdades, Minh‘alma evada além na serrania Para eu me despedir de mais um dia. Betim - 27 09 2013

ANTAGONISTAS O teu ódio é como é o meu amor, Ou seja, algo jamais correspondido! Mas vivo o que podíamos ter sido, Feito uma canção sempre por compor. A tua raiva é como é minha dor, Mas toda incompreensão ora olvido... Só resta o coração que, dividido, Em vão levo comigo aonde eu for. É como é... Mesmo tudo estando errado! Quando se arrasta qual grilhão pesado Um quotidiano só de estranhamentos. E essa fúria que tu te permitiste Enche de sombras uma hora já triste: Faz quase insuportáveis maus momentos. Contagem - 05 03 2012

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AO PASSAR A mulher que passou ora por mim Leva-me parvo o olhar enquanto passa. Vou lhe seguindo ao longe até a praça E a ela se abrem as flores no jardim!... Abalou d‘ali, para sempre e enfim, N‘um passo elegante e cheio de graça. Mas deixa seu perfume, áurea fumaça, Que rescendia a almíscar e jasmim. Aquela mulher leva-me consigo. Levo-a no meu olhar aonde eu for. Já a ver sem a ver, admirador. Parecia volver d‘um sonho antigo: Ao passar perfumosa pela rua, Só d‘eu fechar os olhos, vejo-a nua! Betim - 19 04 2013

AO OUTRO O outro — aquele que não-eu — é quem diz Exacto o que se deve ou não dizer. E eu? Paro para adiante compreender Quão diferentes são nossos perfis. O outro — aquele que não-eu — que é feliz. Porque faz o que bem quiser fazer. E eu... Fizera-me servo sem querer, Muito obrigado a quanto jamais quis. Quisera ser como o outro, mas não sou... Quisera saber ser bom, mas não sei... Eu toda a vida fora vão, não rei! Contudo, hei-de arrastar-me grilhões ou Andarilho vaguear por sós desterros Até que eu seja maior do que meus erros. Contagem - 22 08 2012

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SONETOS 2012 - 2013

APRENDIZADO Da vida tudo um pouco, aqui e ali, Tenho aprendido. Não por mais arguto Ou por mais sábio, sim porque discuto E com contradições sempre aprendi. Entendo que cada um cuida de si, Mas, vai saber... Eu falo, calo e escuto. Todos têm — desde o herói ao dissoluto – Dito algo que razoável percebi. Se um caco de vidro brilha ali na rua — Multicor no raiar d‘um sol nascente — Dir-se-ia a coisa mais linda existente. Assim a ideia que o acaso constitua Súbita solução e à vista nua Reluz a quem lhe topa pela frente. Contagem - 25 08 2012

AQUELE ÉBRIO Parecia falar com uma planta... Enquanto ele bebia no boteco, A luz cambiante pelo vinho seco Lhe refletia o olhar em fúria santa. A raiva lhe descia p‘la garganta Só co‘a folhagem vã lhe fazendo eco. Se não por falta, por excesso eu peco E a dúvida em minh‘alma se agiganta: — ―Que é isto?‖ — A fala ecoa no vazio! E embora estranho, o olhar já não desvio Esperando de seus gestos sentido. Imerso em si, ele não me vê a vê-lo. Continua a altercar n‘um pesadelo, Sozinho demais para ser ouvido. Betim - 16 03 2013

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ARMAGEDONIANO Pode até ser que enfim o mundo finde, No fim do dia de hoje; ao pôr-do-sol. Talvez seja mais rubro esse arrebol E a maior chuva d‘estrelas a Hora alinde. Saudemos a nova era com um brinde! Obscurecido por nuvens, o sol Passe a girar nos céus em caracol... Testemunhas do fim de tudo, vinde!... Cumpridas as palavras do profeta Ou o calendário maia, um mal menor Que ver a lenta morte do Planeta. Senão, ao menos pelo grande horror De se ouvir soar a sétima trombeta E o mundo partir d‘esta p‘ra melhor. Belo Horizonte – 21 12 2012

ATLÂNTIDA Se os Açores e seus vulcões extintos Guardassem os vestígios d‘essa terra A oeste de Gibraltar, onde o mar encerra Remotas intuições ou sós instintos; Se através do mar Oceano, homens distintos A ir e vir com sua barca que erra Mundo afora, sem lábaro de guerra, Haveria mais vãos, não labirintos; D‘ali, as duas margens do amplo Atlântico Alcançar-se-ia, apesar do triste cântico Das sirenas que ecoa sobre o mar. Muitos, porém, jamais a acharam onde Entre ondas vãs Atlântida se esconde... Terra na qual ninguém soube chegar. Contagem - 14 04 2013

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SONETOS 2012 - 2013

AUTOCORTANTE Há quem se fira para ter certeza De que está mesmo vivo e sente dor. Ou muitos têm razões para supor De que em cortes na carne haja beleza. E experienciam... Sangram-se com crueza! Ocultam d‘alheios olhos, por pudor, Navalhadas no corpo pelo ardor De, contudo, deixar sua alma ilesa. O ímpeto d‘haver mais real a realidade Os conduz à essa estranha liberdade De permitir-se o mal p‘ra ter um bem. E experimentam... Porque a novidade É impulso que já não se contém, Mesmo em face da morte, de se ir além!... Contagem - 13 03 2012

CAMINHO DO SOL A sombra do pináculo da igreja Descreve, diariamente, o movimento Que me aparenta o sol desde o momento Que, ao amanhecer, seus raios ele dardeja. Qual perfeito relógio, a hora se veja Medindo d‘essa sombra o comprimento. Para marcar um a um cada elemento E me recordar onde quer que esteja. Contudo, quando ao zênite é meio-dia O sol por vertical se me irradia Sem mais sombra senão do próprio prumo. D‘aí espero ao ocidente se tombar A fim-de que o declínio possa dar A ilusão de seguir seu mesmo rumo. Betim - 21 12 2013

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CANTADOR Tens aprendido a amar errado e pouco, Visto só te ensinarem sobre o amor Como algo, sobretudo, de valor Ou o que, se não faz bem, males tampouco. Tem-de, no entanto, ser meio louco Para te arder as faces seu calor E após te dar prazer, malgrado a dor Já me deixara o canto um tanto rouco. Ademais, tem-de ter algo de fúria! Enquanto faz calar toda a lamúria Que, inopinadamente, solta o amante... Tem-de ser um lamento quase inútil, Que mesmo a essa mulher tida por fútil Consiga enternecer por um instante. Betim - 05 05 2013

CAPITULAÇÃO Porque os deuses disseram aos antigos Que, ávido, Amor vence tudo e a todos. Em vão tentei por tantos e tantos modos Vencer Amor com seus mores perigos... Tanto quanto homens contra os inimigos, Avancei entre vis ardis e engodos. E, embora ouvisse o alerta dos rapsodos, Vejo-me à noite escura sem abrigos! Abraço essa hora má como a uma irmã, Que me chega solícita pela manhã E pensa as chagas feias d‘essa peleja. Pois, nem deuses nem homens têm por vã A luta ao invicto Amor! E talvez seja O único fracassar que se deseja! Contagem - 17 08 2012

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CARNAVAL Os sentidos governem a ébria mente, Que sujeita ao apetite mais carnal, Tenta, desde o pecado original, Reencontrar-se no gozo tão-somente. Se à alegria não se é indiferente, Hoje eufórico grito: — ―É carnaval!‖ Seria uma experiência espiritual Se não excessos d‘uma alma indolente. Álcool, água-de-cheiro, suor, saliva... À pele ardendo nua em brasa viva Co‘o sangue a correr quente pelas veias. Eu brinco, pulo, caio e me levanto: Vou todo transtornado, mas de encanto, Perdido de desejo em ruas cheias. Ouro Preto - 20 02 2012

CHUVAS E TROVOADAS Aceito como se uma tempestade A saraiva que sai de sua boca. Irrompe sobre mim — meio vã, meio louca — Crendo-se a detentora da verdade. O espírito, porém, distante evade; Deixa-me o corpo como se casca oca. Não cuido sequer do mal que me provoca Somatizar tamanha insanidade. Ora apenas me calo... De mamente, Escuto os impropérios que inclemente Ela me lança em tão triste figura. Resta-me culpar tão-só o Universo: Cato os cacos de mim em vão disperso, De lhe encarar os olhos sem ternura. Betim - 17 03 2013

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CIRCUM-NAVEGAÇÃO Ao saírem d‘Espanha p‘ra além-mar As naus de Magalhães no mar Oceano, Era ‗inda a Terra ignota; o Mar, engano. D‘onde poucos logravam regressar... No extremo Sul, inóspito lugar, Por um gélido estreito vão com dano. Nomeando tudo a cada meridiano, Nebulosas no céu foram achar! Não obstante, chegando às longes ilhas, O Fado ao Capitão nega-lhe a glória Indo ter, ele e os seus, em armadilhas. Pois não cabem senão e enfim na História Aqueles que em tamanhas maravilhas Têm, apesar da morte, mor vitória. Contagem - 28 02 2012

CIRCUNSTÂNCIAS Carrega a tua culpa e torna-a leve Com todas necessárias atenuantes. A consciência jamais julga um facto antes De contemplar o caso que descreve. Alegra o rosto, pinta-o: A vida é breve! Esquece tais tristezas extenuantes E corre o mundo co‘a fé dos errantes: — ―A sorte existe para quem se atreve...‖. Vive. Colhe-te as flores do caminho E cuida para que nunca tão sozinho Fique teu coração diante da dor. Contudo, busca nunca te envolveres; — Faze, enfim, como todas as mulheres: Bela, aviva a esperança vã do amor!... Betim - 23 10 2013

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COMPANHEIRA Das mulheres as quais me fiz amado Poucas me conheceram como tu. Aos teus olhos me sinto quase nu Tal o modo que tens me devassado. Confesso que por vezes do teu lado Me via um tanto rude ou mesmo cru Co‘as minhas emoções face ao tabu De enfim me ver alegre e enamorado. Porque, das outras vezes qu‘eu amara, Eu nada conheci senão o amor Andando de mãos dadas com a dor... Tu soubeste, porém, de forma rara Fazer-te companheira a cada instante, Sendo tão boa amiga quanto amante. Betim - 10 04 2016

CONTRAÉDITO Contrário às proibições ora em contrário, Dispõe o presente e útil instrumento A revogar em válido momento D‘outrém o acto ilegal discricionário. Quem mandou o editar — um temerário Que contra a ordem social fez movimento — Causara tão-só dor e sofrimento, No afã de se fazer mais numerário... A interesse do povo, manda e pune Àquele que co‘a lei todos desune Ou impõe com mão pesada a tirania. Isto posto, em total contradição, Contrariando contrária proibição Legislar o que exacto contraria... Betim - 09 03 2016

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CORPO ESTRANHO Há em meu corpo um corpo acidental. Algo a me incomodar; que não é meu. Feito trave que ao olho se prendeu E ora atravessa meu campo visual. Há em meu corpo um corpo irracional Algo a mal influenciar; que não sou eu. Pois, sensibilidade, se perdeu De quanto sei e sou e coisa e tal. Porquanto o que eu deveras tanto estranho: — Um corpo em meu corpo, tão e tamanho, Capaz de me impedir de ser e estar — Ganha os contornos d‘uma anomalia, Em cuja escuridão, a luz do dia Já não chega sequer ao meu olhar. Betim - 13 01 2013

CRÔNICAS D’EL REY - coroa de sonetos soneto geratriz Escuto o velho rei em seu lamento De experiência inútil, pois tardia. Glosa o mote da vã sabedoria, Por não valer ao sábio em sofrimento. N‘esse trono frio onde tem assento, Reina absoluto sobre a Boa-Vista... Pelo paço atravessa oculto à vista D‘alguém que o bajulasse desatento. Por fim, como um rosário de remorsos Tornava a recordar seus vãos esforços À semelhança d‘um ritual noturno. Parvo! Não obtêm glórias a obsessão... Esplendores tampouco... Certos ou não, Chamam-no Dom Fuão, o taciturno. ***

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SONETOS 2012 - 2013 soneto primeiro Escuto o velho rei em seu lamento De figura admirável na real sala: Mais bruxuleiam os círios sua opala, Pondo as sombras do paço em movimento... Às vezes, ele hesita n‘um momento Até quase inaudível sua fala. Se terrível o crime ao qual se cala, Só segreda às paredes seu tormento. O remorso percebe-se tão denso Que o poderia até tocar — eu penso — Enquanto a narrativa reinicia. Nem sequer justifica mais seu trono, Tal a sinceridade no abandono De experiência inútil, pois tardia: *** soneto segundo De experiência inútil, pois tardia, Renuncia à realeza e à realidade... Habitante das nuvens, em verdade, Entre sombras e luz se refugia. —‖Trovador‖ — diz El-Rey — ―Quem o diria?...‖ ―Canta meu reinado que se evade Fazendo-me memória da vontade Que desde cedo o espírito me ardia‖ ―A noite nos acolhe em seu regaço Tão-só constelo estrelas pelo espaço Enquanto te relato outra ousadia Jamais favorecida pela sorte...‖ — Ora El-Rey, quer alerte; quer conforte Glosa o mote da vã sabedoria... ***

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RICARDO CUNHA COSTA soneto terceiro Glosa o mote da vã sabedoria: —‖Quem pelas convicções mais verdadeiras Por extremos de tão móveis fronteiras, Derrota após derrota conhecia...‖ ―O Reino em expansão nos florescia, Quando ascendi ao trono por maneiras Tão vis que eu nem sequer às derradeiras Palavras de meu pai obedecia.‖ ―Eu fora convencido por bandidos A reinar os nomeando meus validos, Movido por urgências do momento.‖ ―Feito por fazedores de maus reis, Governava ao arrepio já das leis, Por não valer ao sábio em sofrimento‖. *** soneto quarto Por não valer ao sábio em sofrimento Mal vê diferença entre certo e errado. El-Rey — pela lembrança atormentado — Cala-se com um esgar mais violento... Ele me olha em profundo desalento Sem saber que dizer de seu passado. Por crimes bem sabia ser lembrado, Esperando da História o julgamento. Anseia ser esquecido enfim, talvez. Porém, quer confessar tudo o que fez Em rimas a guardar-lhe o pensamento. Pressente enfim a queda da Coroa, Enquanto eu interpelo a real pessoa N‘esse trono frio onde tem assento: ***

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SONETOS 2012 - 2013 soneto quinto — ―N‘esse trono frio onde tem assento Vossa Alteza Real, grande senhor nosso! Se for de seu agrado, ainda posso Dar a suas razões o entendimento.‖ ―Oxalá seja eu fiel em meu intento, E logre ater-me aos factos com o endosso Já d‘El-Rey dado a mim, servo revosso, Fazendo jus a tal agraciamento.‖ Ao que responde El-Rey devidamente: — ―Sê, pois, quem me fará de novo gente, Mediante rimas límpidas de artista.‖ Dito isso, ambos quedamos expectantes Enquanto o silêncio, tal como antes, Reina absoluto sobre a Boa-Vista... *** soneto sexto — ―Reina absoluto sobre a Boa-Vista Um rei velho, cansado e lamentoso. Vislumbra pelas sombras o andrajoso Poeta cuja desgraça conhecia.‖ ―Coube a este pôr em letras quanto ouvia, Memorando um Reinado desgostoso...‖ — E calo... Eu me interrompo pesaroso Que tal sinceridade me traía. — — ―Prossegue, trovador, já não te cales. O retrato que narras tem os males Do retratado, não do retratista.‖ Ao que respondo: — ―Sim, assim farei.‖ Quando — pôs-se a narrar o velho rei — Pelo paço atravessa oculto à vista: ***

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RICARDO CUNHA COSTA soneto sétimo — ―Pelo paço atravessa oculto à vista O infante que conspira pelo trono. Cercam-no outros larápios, cujo sono Se perde na ambição de má conquista.‖ ―Já morto o irmão e louca a mãe, invista Em reger a coroa no abandono!...‖ – Então argumentavam pelo abono, Só às suas fortunas tendo em vista.‖ ―Assim fora Regente e, após, El-Rey... E, por confuso, o Corso eu enganei Quando o Antigo Regime ruía lento.‖ Saboreando a ironia vã da História Pausa para gozar sua mor glória D‘alguém que o bajulasse desatento. *** soneto oitavo — ―D‘alguém que o bajulasse desatento, Napoleão a enganar fora enganado... Na partida ao Brasil, trouxe ao meu lado Um misto de esperança e desalento.‖ ―Cá, sem embargo, mais sofrimento: Não vi senão conflitos no Reinado... Mesmo ao fugir de guerras, derrotado Fora ao longo d‘um século violento.‖ ―E embora o Corso longe se condoa Sequer posso voltar para Lisboa, Sem contar com britânicos reforços.‖ ―El-Rey de Portugal, Brasil e Algarve Remoendo pelo paço, insone e alarve, Por fim, como um rosário de remorsos...‖ ***

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SONETOS 2012 - 2013 soneto nono — ―Por fim, como um rosário de remorsos, Hão-de me recordar indecisões. Ao meu redor, tão-só conspirações Para após anistiar de maus desforços ‖ ―Os corruptos às voltas com extorsos E os fidalgos com outros galardões. São parasitas vistos aos milhões Pelo sangue e suor de negros dorsos...‖ ―Acompanho este século perplexo Nem as Cortes, ao arranjo mais complexo, Hão-de nos afastar de novos Corsos...‖ — Hesita novamente o soberano, Pois, buscando ser fiel ao próprio plano, Tornava a recordar seus vãos esforços. *** soneto décimo Tornava a recordar seus vãos esforços: — ―Para manter unido o Reino inteiro, Ordenei desde o Rio de Janeiro Organizar a volta co‘os reforços. ―Todavia, grassavam os extorsos, Quer em solo europeu; quer brasileiro. Contra os quais me isolei por altaneiro. Embora claudicando com estorços.‖ ―Ousara o que jamais um rei ousara. Quando, ao sul do Equador, tive a luz clara, De ver o Corso em França mais soturno.‖ ―No Brasil, fiz o Reino ser reunido. Por isso, o paço tenho percorrido À semelhança d‘um ritual noturno...‖ ***

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RICARDO CUNHA COSTA soneto undécimo —‖... À semelhança d‘um ritual noturno, As insones andanças pelo paço. Conciliam minha angústia co‘o cansaço D‘esse terrível ímpeto diuturno.‖ ―Há anos n‘essa sala já me enfurno Em longos beija-mãos que aqui refaço, Para voltar à noite, passo a passo Carregando um semblante taciturno.‖ ―Quem por acaso vê não me compreende A dor que do Encoberto ‗inda descende Obrigada às razões do coração.‖ — E embora insone sonhe o Quinto Império, Ele súbito explode ao extremo hespério: — ‖Parvo! Não obtêm glórias a obsessão!...‖ *** soneto duodécimo ―Parvo... Não obtêm glórias a obsessão...‖ — Repete El-Rey a si já se acalmando. Após tal paroxismo, ao seu comando, Tornei a acompanhar sua narração: — ‖Dos remorsos que trago ao coração, O pecado maior; o erro mais nefando, Foi não manter o Reino unido quando Cai em definitivo Napoleão ―A partilha do Império já tramada Pelas nações amigas... Cuja entrada Em nossos portos dera eu permissão!...‖ ―Assim vimos partir tais rios d‘ouro: Exauridas as Minas; sem Tesouro... Esplendores tampouco, certos ou não...‖ ***

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SONETOS 2012 - 2013 soneto tridécimo — ―Esplendores tampouco, certos ou não?...‖ — Contesto: — ― Vossa Alteza reina ao sul!‖ — ‖Deveras... Qual corresse por um paul Ir governar dos trópicos Nação...‖ ―Britânicos com brigues vêm e vão; Franceses, de Lisboa a Istambul... Parecem pretender tocar o azul E do orbe fazer um pequeno grão‖. ―Terras e reinos reuni n‘um mesmo cântico D‘uma margem até a outra do Atlântico N‘esse meu caminhar só e noturno.‖ — Todavia — pensei comigo mesmo — Por caminhar insólito à noite e a esmo Chamam-no Dom Fuão, o taciturno... *** soneto quadridécimo — ―Chamam-no Dom Fuão, o taciturno, Vossa Alteza Real, não grande ou clemente... A sua caminhada, veramente, Mais faz especular o horror noturno.‖ ―Pois, se era Napoleão corso e soturno, Também um vencedor, cuja alva gente, Parece idolatrar como somente Veneravam romanos a Saturno...‖ ―Enquanto o sirvo pela noite, Alteza, Eu tento traduzir dor em beleza E ainda acompanhar seu passo lento. Mas digo se perguntam o que faço A noite toda andando pelo paço: — ―Escuto o velho rei em seu lamento.‖ ― Contagem - 30 09 2012

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D’ALVORADA Têm sido raras n‘essa latitude Manhãs assim, de densa e alva neblina. Mas gravo o inopinado na retina: Uma imagem de paz e solitude. Fiquei ali parado o quanto pude, Envolto em cerração e chuva fina. Sonho, que o despertar já não termina, Com névoas esvoaçantes sobre o açude... Contemplo a onipresente claridade Enquanto o sol aos poucos tudo invade, Cegando-me alto o olhar na plena alvura. Então, experimento a ausência em tudo E posso enmimesmar-me, a solo e mudo, Pela neblina diáfana em luz pura. Betim 31 05 2013

DEPAUPERADO Minha pobreza não é mais a falta Do que se necessita para a vida, Tampouco alguma angústia desmedida Nos tomando de súbito à hora incauta. Sequer me empobrece uma vista alta, Já que nunca qualquer luz conhecida Houvera em mim, frustrado de saída, Pois nem conquistador, nem argonauta. Eu sempre me senti alguém com menos... E é por tal sensação que me amesquinho, Vivendo com anseios tão pequenos. Quem, entre ser e ter, um pobrezinho! Mesmo não sendo caso de somenos, Sei-me quanto mais pobre, mais sozinho. Betim - 10 05 2013

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DESAMANDO De amar a desamar… Deixar de amar, Ou melhor, desfazer o amor já feito: Ir trocar os lençóis vãos do meu leito; Fazer a cama e n‘ela me deitar. Acordo e desconheço este lugar... Levanto-me e me lavo; olho e me afeito. Dói... Sequer podia ser d‘outro jeito; Eu sigo em frente já sem me importar. Ando de luto sim, porque é preciso. Vigilo, mas tão-só de sobreaviso, Pronto para mudar de direção. E rezo. Imploro pelo fim do dia, Na fé de que já uma outra alegria Aconteça e ilumine o coração. Ipatinga - 12 10 2013

DESENCONTRADOS Fomos juntos. Estávamos a sós. Nós, porém, já não éramos um par... Tanto que mal podia lhe falar, Tal o nó embargando a minha voz. Voltamos para casa logo após. Não sei sequer como a pude acompanhar. Com seus olhos fugindo ao meu olhar, Quase não mais sabíamos de nós... Foi então qu‘eu lhe disse: ―Estou cansado‖. Ao que me respondeu: ―Pois eu também!‖ Se que nenhum dos dois seguisse além... Os dias se passaram. Quis o fado Que pouco a pouco, igual tantos casais, Nos perdêssemos para nunca mais. Betim - 02 08 2012

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DESPOJADO Eu sei: Já fui melhor do que sou hoje. E exacto a dignidade em mim perdida — Aquele sobranceiro olhar à vida — Que, miseravelmente, ora me foge. Deixo que o que é vil a minh‘alma despoje Simplesmente por já não ter saída. Enquanto para a próxima recaída Cate os trocos d‘alguém que mais me enoje. Caminho pelas sombras sem descanso E apraz-me a alcunha já de louco manso, Que me propõem à guisa de estandarte. Contudo, talvez justo isso é ser livre... Certo apenas que tudo o mais me prive, Seja mais breve a vida, mais longa a arte! Betim - 08 04 2013

DIR-TE-IA Tendo tanto a dizer, eu nada falo Só te olho sem saber o que fazer... E, quando balbucio um som qualquer, Sem que me faça ouvir, eu já me calo. Às vezes, parecia que d‘estalo Sairia quanto tinha a te dizer, Mas estacava apenas de te ver, Como se iluminada por um halo... Olhos ardósias qual lousa de giz Com tão mimosos lábios e nariz Compondo a tua face inconfundível. Dir-te-ia que te quero mais do que antes. Por desgraça, porém, n‘estes instantes Silencio co‘a voz quase inaudível!... Betim – 08 08 2012

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DOBRÃO D’OURO Lugares onde devo ter estado... Amores qu‘eu já deva ter vivido... Meu coração é um dobrão partido Cujo ouro me reluz lado por lado. O meu valor está em ser prensado Nas Minas Gerais! N‘um tempo há muito ido... Tem-se de meus valores repetido Não haver ouro mais valorizado. Os quatro emes nos vãos da cruz de malta Descrevem que de Minas sua origem: Muito melhor sobrar que fazer falta!... Em roda, El-Rey nos faz quanto lhe exigem E no anverso, valioso a si se pauta Um século dourado de vertigem. Ouro Preto – 12 02 2012

DUAS SOLIDÕES Amor, paixão, desejo, enamoro... Podem te parecer palavras ocas Repetidas em vão por tantas bocas De sós desesperados quase em coro. Facto é: Finado o amor, finda o decoro. Ambos vão recolher-se a suas tocas! E o coração na mão por fim colocas Após te desabrires n‘um mal choro. Mas porquê de tamanha comoção? Se nós dois juntos somos, afinal, Só duas solidões, não um casal! Talvez seja tão-só desilusão... Em todo caso, tu passas e vês De novo o amor ficar para outra vez. Juatuba - 30 10 2013

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É GIRA É toda gira. É toda sã. Mulher! Quem muito bonita gira e roda em roda E sabe ser linda sem seguir a moda Certa de que é si mesma a quem quiser. Ela dança e lança olhares a perder Sem cuidar que enfeitiça a gente toda Mas quem tenta a prender, logo se engoda Mesmo que ela se encante sem querer. Porque ama a liberdade mais que o amor. E se por ventura a amar, faça o favor De deixá-la ser livre para amar. Senão, igual a todas outras, ela Há-de deixar de ser exacto aquela Que de tão gira conquista-nos o olhar. Betim - 25 01 2016

ELEGIA AMIGA Àquela que te fez sempre tão leve, Como se sempre a dois dedos do chão!... Não te lamento a perda, em facto, não. Sim a hora que contigo ela não teve. Eu não a conheci a não ser neve Que herdaste em tua pele alva... Ora então, O que posso dizer-te ao coração Além de que essa vida é mesmo breve? Nada... Melhor calar e olhar adiante, Enquanto outra lembrança cativante Te faz brilhar os olhos e molhá-los. Não há como negar: Ainda dói E muito! Mas é porque, morto, o herói Vive no coração de seus vassalos. Betim - 03 08 2013

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EM RETIRADA Sombras do que já fomos, vamos vãos Na noite mais escura e mais extensa. Loucura é não conter o que se pensa, Vendo a vida escorrendo pelas mãos. Sob domínios mais e mais mal-sãos, Derrota é! Não importa já quem vença... A mágoa fala quando cala a ofensa E armas quedam inúteis já nas mãos. Alta noite com ordem de marchar! Lua e estrelas já não dão mais lugar A uns olhos cintilando como sóis. Eu só lamento... Sequer entendo o quê. Isso torna mais triste o que se vê, Mortos os poetas; rotos os heróis... Contagem - 28 10 2012

ENGANAÇÕES As aparências — vejo enfim — se enganam. O contorno dos seios por sob a veste Em vão atrai o olhar d‘aquele ou d‘este Que, entre libidinosos e vis, flanam. Assim, falsos sinais a tantos danam Antes que a realidade lhes conteste. A beleza da fêmea à luz celeste Promessa é de prazer que aos sós irmanam. Mas se se engana, por que mostrar tanto? Se não, por que aproxima quem quer distante? Engana a si e aos seus a pôr quebranto. Quer-lhes o amor, mas sem querer-se amante. E arrasta atrás de si com seu encanto Toda aquela horda inútil por brilhante. Belo Horizonte - 22 08 2013

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ENTRETANTO Não teria outro fim senão a morte Quem quer que ousasse amar como eu amei... Pois, apesar de tudo o que passei, Sem ela, nada há já que me conforte. Posso culpar os céus por minha sorte Ou clamar em contrário à dura lei, Que inadvertidamente desafiei Em nome d‘esse amor sempre mais forte. Entretanto, ora o amor é meu algoz... Arrastando os grilhões de tantos erros, Aguardo minha pena preso a ferros. Como quem lhe aborrece a própria voz, Silencio estes ais dentro do peito Na solidão que, bem ou mal, aceito. Belo Horizonte - 22 08 2012

ESPELHAMENTO Quando me olho em teus olhos e não gosto É bem porque me vejo em ti tão mal. Se os olhos são janelas, tal e qual, Veem, refletem, deformam... Meu vil rosto! Pois aos teus olhos, como me tens posto, Tornei-me um pusilânime total… Mas encarar-te é ver-me como tal. Por isso, baixo os olhos com desgosto. Há muito evito meu próprio reflexo Visto que então me espelho no que julgas E, por fim, eu me vejo desconexo. Vês? Teu juízo reduz homens a pulgas! Só me resta afastar tanta desdita Ou aceitar parecer um parasita… Betim - 16 09 2013

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FARRAPOS Tendo o roto a dizer do esfarrapado Tudo o que lhe está preso à garganta, Nada mais qu'ele fale já lhe espanta Em vista d'esse seu péssimo estado. Por anos estiveram lado a lado. De sorte que sua má miséria é tanta, Que outra guerra oscila entre fria e santa De novo n'esse lar tão devastado. Como se na batalha se medindo, Perfilam suas armas vez em quando, N'um alerta de ataque quase infindo. O roto e o esfarrapado -- se atiçando! -Uma resposta esperam contravindo, Qual vanguarda avançando sem comando... Contagem - 22 07 2012

FIM DE NOITE Havia cá uns versos me remoendo; Ressoam por alma adentro e além e afora... De facto, eu já estava alto àquel‘hora: Depois da noite toda apenas sendo. Definitivamente eu não aprendo... Tomo um último gole vou embora. Mas tão desorientado ando lá fora Que sequer acho as chaves... Estupendo! Sinto uma aragem fresca. Paro absorto. Ouço (ou só penso que ouço) violoncelos E vacilo... Esgotado dos desvelos. Sento-me à guia sem qualquer conforto, Enquanto ao modo vão dos sós me alegro Sob a noite e seu vasto dossel negro. Belo Horizonte - 01 10 2013

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FLORES E FLORESTAS Por ali e acolá, roxas floradas A colorir a mata gris d‘agosto. Entrego-me, sem cálculo ou desgosto, A mais contemplações apaixonadas? Não... Trago as minhas pálpebras cansadas E um pesar dissimulo no meu rosto. Ao coração, o quadro ora composto Faz-se borrões em fortes pinceladas: A mata seca n‘um morro redondo Violentada por roxos jacarandás Como as boas paixões em horas más... Mas como lutar contra o sol se pondo?... São flores e florestas que meu ser Tão-só melancoliza ao entardecer. Betim - 27 08 2013

FLORES NOS CABELOS Tu meus olhos deixaste antes tão ledos, Agora tão distantes tu m‘os deixas... Não cuides se te faço novas queixas, Enquanto me reparas velhos medos. Embora com mesuras; cheio de dedos, Eu te afague gentil o ego e as madeixas, Não ignoras que até flores que enfeixas Se enciúmam de ti nos arvoredos... De nada te serviram meus bons modos, Se te vais e te mostras já, decerto, Com flores nos cabelos para todos! E quem meus olhos vê já de mais perto Lhes percebe a tristeza dos engodos Com que me manténs sempre desperto. Contagem - 28 08 2012

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FÓSMEO Nem tanto a falta que algo me faz hoje Ou mesmo os dissabores d‘essa vida. O que dói é a tão mal-resolvida Incompletude d‘uma hora que foge. Não há como impedir que em mim se aloje A angústia diante d‘alma ora despida. Feito uma amásia má tida e mantida Por fraqueza magrado me despoje. Sinto que a tirania venceu, e eu D‘ela vejo o cortejo já triunfal, Cujo esplendor sequer de longe é seu. Inexplicável, tudo é quase igual: A tristeza e a alegria têm de meu Apenas a certeza em acabar mal!... Contagem - 24 10 2012

FOTOGRAFIA Ela, criança, assopra um dente-de-leão, Desmanchando-se a flor por vão capricho. Não era obra de luxo, nem de lixo... Luz preciosa e precisa inspiração. Tinha a roupa em farrapos, pé no chão; Cabelo desgrenhado feito um bicho. Entretanto, a beleza encontra nicho, Perfeitamente, cá no coração. À Graça, na alegria da inocente, Festejo p‘lo instantâneo que revela O qu‘eu olhava ao olhá-la, displicente. Assim percebo quanto aprendo d‘ela Por, tão simples, a vida ser mais bela. E eis a felicidade à minha frente! Betim - 02 09 2012

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GUERRA DE GUERRILHAS Nas ruínas de nós entrincheirados, Combatemo-nos: Íntimos inimigos. As vilas bombardeadas, hoje abrigos Onde antigos rivais agora aliados. Em lutas fratricidas, mais pecados Que crimes são os nomes nos jazigos. Quando, entre escaramuças e perigos, Lutando sem descanso ambos os lados. Faz anos que se movem pelo escuro Sem já qualquer passado nem futuro Somente a aniquilar os seus iguais. A paz não nos trará dias serenos. Vence aquele que quer aquilo mais Ou senão quem souber se importar menos. Betim - 13 09 2013

HORAS ESCURAS Assim como se aceita o tempo ruim D‘um dia a céu nublado e vento frio; Como se aceita a dor, como o vazio Da vida desprovida d‘algum fim, Aceito como parte ampla de mim A tristeza e a beleza que desvio, Tal-qual a lua, n‘um lado sombrio E oculto: Meu deserto e só confim... Ora não, ora sim, contemplo o abismo E paro à espera de outro cataclismo Que precipite, enfim, a mim e o mundo. Está próximo o fim? Pois que assim seja! Mergulho o mar de mim sem que se veja Aonde um fundo mais e mais profundo. Betim - 10 07 2013

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IMPETUOSO Aquele tem o sangue quente, e corre... É veloz como o vento, é ventania. Seu porte formidável, todavia, Impõe uma impressão que jamais morre. Oxalá nada à sua escrita borre E acumule conquistas dia a dia. Avança, carga de audaz cavalaria, Lançada contra o rei e contra a torre! Tem garbo mesmo diante do fracasso, Quando em falso vacila o último passo. E embora a dor nos embote a vista turva, O outro pouco lhe esvoaça a crina espessa. Pois, se perde só por uma cabeça É porque, altivo, nunca ele se curva. Contagem - 02 10 2012

INOLVIDÁVEL Externar demais soa a essas ameaças Feitas ora impropério; ora desvelo. E após, arrependido, o último apelo No qual só desespero tu abraças... Considera tudo isso vãs fumaças Já d‘um errante em trôpego atropelo. Pois se sofrido o amor, melhor perdê-lo Do que se deixar ser deixada às traças! N‘outro amor, porém, hás-de te vingar Quando subindo ao altar qual alto pódio, Verás que reconhecem teu valor. Mas então, se insistires em me amar, Cuido que atormentas tu com ódio, Àquele que torturas com amor. Contagem - 05 02 2012

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INOXIDÁVEL A torre hoje não é mais de marfim... Vertical arquitectura de vidro e aço, D‘onde o poeta alça seus voos pelo espaço E descortina o mais amplo confim. Mas lindo é ver chegando o dia ao fim, Quando d‘ouro reluz cada pedaço! Da cidade, o seu último terraço, Que mais belo o horizonte faz enfim. Inoxidável, o aço é laminado Com uma precisão de milímetros Medida e conferida por parquímetros. No mais, todo o edifício foi montado Para o poeta pelo alto da cidade Sempre mais longe ver sua verdade. Belo Horizonte - 06 01 2012

INSÓLITO SOL Logo ao tocar a serra, o sol, já rubro, Faz incandescer nuvens vãs em ouro. Como se enrubescesse o céu ao agouro D‘um insolitamente seco outubro. Lá longe, sobre os morros, eu descubro Refulgir — desde púrpura a alvilouro — A luz que se reflete ao miradouro Nas pálidas ruínas d‘um delubro. Partindo, o sol transmuta a realidade E traz novas nuanças que, em verdade, Dão ao olhar tais distintas aparências. Embora o mesmo, novo eu veja o mundo. Pois, vê-lo renovado é mais fecundo, Se imagino infinitas transcendências. Betim - 08 10 2013

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INTERIORES Adentro o antigo alpendre do sobrado A elevar-se amplo sobre alto porão. Mas paro à porta meu passo sem chão Ao vazio de seu piso desabado. Embora sem ninguém mais ao meu lado, Sonho pessoas que, havidas ou não, Habitam o silêncio e a escuridão D‘esse estranho lugar abandonado. Logo, vejo sem ver crianças d‘antanho Tomando o espaço todo a gargalhar, Indiferentes a outro olhar castanho. E atravessa as janelas alvo luar... Ao que d‘orvalho e névoa em vão me banho, Absorto em sobre o nada contemplar. Lagoa da Prata - 10 10 2013

JOGO D’AZAR Esses teus modos sempre tão joviais, Já nem sei se os admiro ou se os reprovo. Só sei que estarrecido vou de novo A estranhos entregar meus cabedais. Se a aposta por fim foi alta demais, Perdendo eu nem sequer mais me comovo. O risco sempre existe, velho ou novo, Mas o ardor de teus beijos, nunca mais!... Entrei n‘este carteado sem cacife E saio escorraçado igual patife Que mesmo a perder tudo ainda insiste. A vida continua e eu estou vivo, Mas de todas as coisas que me privo A tua companhia é a mais triste. Belo Horizonte - 02 08 2012

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LESA-DIVINDADE Sísifo há-de rolar a sua rocha, Eternamente, p‘la montanha acima. E o misterioso afã que em vão o anima O faz recomeçar, mão sobre a coxa... Que importa a face exangue, a olheira roxa? Se o suor do nada é matéria-prima! Segue sabendo que o esforço mima Exato àquele que lhe apaga a tocha. Os seus trabalhos devem continuar Até que os deuses morram de pesar, Quando esquecidos por tal tirania. A pena excede o crime presumido: Traz mais que o corpo, o esp‘rito combalido, Servindo a inúteis sempre, noite e dia. Contagem - 16 09 2012

LIVRAMENTO Quando caí quis manter meu olho aberto, Mesmo que fosse ver o próprio fim. E não me passou bem diante de mim A vida que vivi ou a dor que alerto. O que passou foi ver o chão de perto; Foi sua dureza áspera — pois sim! — Não me coube sequer ver a que vim Ou qualquer grão saber senão do incerto. ‗Té o último momento não quis crer, Que isso me passaria como passou E que, por puro acaso, ia viver... Era só lamentar o ocorrido ou Acabar, tonto, por agradecer Àquele que da morte me livrou. Contagem - 03 03 2012

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LUA BRANCA Uma lua tão alvinha que era albina Na antemanhã do dia já bem claro. Redonda, enorme, cheia... Paro e reparo Vê-la se esquecer que a noite termina. Mas o dia nascer sem sol, sem sina, Parece um desatino, embora raro. Pois, despe-me das rugas com que encaro Outra corrida faina matutina. Agora, já não sinto nem minto: sou! Porque a Natura pode ser bela, ou Fez-se-me extraordinário o quotidiano. Alvorece uma lua branca e linda. Encontro-me admirando-a, tonto ainda... Na beleza do instante me abandono. Betim - 26 04 2013

MAGNÂNIMOS Muitos são reis e estão sós em seus tronos, Os grandes, porém, avançam a cavalo! Têm o olhar sagaz, a aura feita um halo, E a barba encanecida em frios outonos. Alheios a quintos, dízimos ou nonos, Seguem correndo o mundo por amá-lo. E, ao contrário d‘aqueles por quem calo, A alimária conhece bem seus donos... Cavalgando, qualquer um é varão: Espada à cinta! — ―Irrá!‖ — Ginete à mão! Mais uns moinhos de vento a se enfrentar. — ―Ide, senhores, campo aberto a vós!‖— Cavalo e cavaleiro: Unos após A linha do horizonte se alcançar. Contagem - 23 04 2013

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MAVIOSA Já não a chamarei mais pelo nome Que, embora belo, pouco de si diz... Chamar-la-ei sim, d‘um jeito mais feliz: ―Maviosa‖!... Maviosa?... Eis seu nome: Tome. Leve-o como se música que some Em meio à madrugada, à lua gris. Quando sozinha ela, canções gentis, Compõe indiferente a vão renome. Maviosa, feita toda de ternura... Sua mirada azul, como luz pura, Ilumina seu rosto a amplo sorriso. Maviosa... Mas se tanto e só a chamo É porque n‘ela os Açores mais eu amo: — ―Vem navegar... Viver não é preciso!‖ Betim - 07 06 2013

MÁXIMA CULPA Pelo crime de amar sem ser amado, Mesmo ante as evidências em contrário, — Isto é, ao sentimento d‘ela, vário E morno — Eu me declaro, enfim, culpado. Talvez irresistível porque fado O desastre e o autoengano d‘um otário! Como quem um cadáver vil no armário Há anos ocultasse embalsamado. Nas origens de tudo, uma mentira, Na qual acreditei alegremente, E a todo custo fui levando em frente. De que a felicidade qu‘eu sentira, Era, ainda e tão-só, fraqueza minha... Metade de nada: Eis tudo o que eu tinha! Betim 16 12 2013

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METAIS NOBRES A realeza d‘El-Rey e a nobreza do conde. Do mesmo modo é o ouro e o cobre se medindo: O primeiro, por real, se nos reluz infindo Desde os profundos veios nos quais ele se esconde. O cobre, embora nobre, é mais útil onde Em corrente mantenha elétrons conduzindo. Muito pouco reluz, mas faz muito mais lindo E iluminado o mundo aonde à noite eu ronde. O amor é o ouro e, sim, é a paixão o cobre. E todo mundo sabe que o ouro nos é mais nobre, Tendo em vista que seja ele mais raro e caro. Tão-só paixão, porém, sobre a quem já tão pobre Perdeu todo o seu ouro onde um amor amaro... E os anéis se vão para as mãos do mais avaro. Lagoa da Prata - 26 10 2013

MIUDEZAS Eu queria estar co‘as minhas miúdas, As meninas que Deus me deu a amar. Cada coisa que vejo, vago o olhar Depois de as recordar em fotos mudas. E as lonjuras das penhas mais agudas... E as paragens desertas do lugar... E as histórias que guardo a lhes contar... Perdem-se entre pessoas vãs, sisudas. Trago tanto carinho em mim para elas, Mas me sei miserável sem ter nada A não ser fotos velhas e amarelas. E sigo, atravessando a madrugada, A ver, sob a luz fria das estrelas, Esses miúdos olhos pela estrada. Inhapim - 07 09 2012

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MISERANDO Eu sei: Já fui melhor do que sou hoje. E exacto a dignidade em mim perdida — Aquele sobranceiro olhar à vida — Que, miseravelmente, ora me foge. Deixo que o que é vil a minh‘alma despoje Simplesmente por já não ter saída. Enquanto para a próxima recaída Cate os trocos d‘alguém que mais me enoje. Caminho pelas sombras sem descanso E apraz-me a alcunha já de louco manso, Que me propõem à guisa de estandarte. Contudo, talvez justo isso é ser livre... Certo apenas que tudo ao que me prive, Faça mais breve a vida, mais longa a arte! Betim - 08 04 2013

MUITÍSSIMO Às vezes lhe pergunto se ela me ama: ―Muito‖. Diz. — ―Muito pouco ou muito muito?‖ — Insisto. Ao que ela explode: — ―Com que intuito Mais uma inquisição de melodrama?!‖ Mas se destemperada ela se inflama, Diante d‘um diálogo tão fortuito, Eu sequer cuido se é ou não gratuito Seu ar de ofendida e altiva dama... — Muitíssimo!!! — responde enfim, ambígua, Encerrando com frase tão exígua Um vão de intensidade e quantidade. Pois, algo que diz tudo, nada diz. Devo aceitar, julgar-me bem feliz, Sem ter-lhe a verdadeira e vã verdade... Betim - 12 06 2013

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NEURASTENIA Verdade: O que passei, só eu que sei... Embora as infindáveis as diatribes, Com mais impropérios já não me inibes: Eu já não me submeto à tua lei. Enerva-me saber que o que passei Fora recolher dilúvios em algibes... Desconheço em que exóticos Caribes Te pretendeste faustos como um rei! Mas o que me atormenta é essa folga; Essa facilidade em tomar tudo E ainda me exigir que fique mudo. Tenho dó do incauto que se empolga Co‘a vida falsa em teu amor fingido Que ofereces, magnânima, no olvido. Betim - 10 10 2013

NO JUQUINHA Quem desapareceu virou estrela E foi luzir bem alto lá no céu. Mas ficou na memória sob o véu Da serração mirando a aurora bela. O seu sorriso aberto por nós vela, N'esses sertões de andar de déu em déu, Deixando-nos aqui e ali e ao léu Os passos que veredas nos revela. Quem desapareceu virou estátua Depois de brilhar feito chama fátua E trilhar os caminhos mais distantes. Ele, que mereceu permanecer, Nos mostra co'a imagem de seu ser Quão bem-aventurados os errantes! Santana do Riacho - 10 10 2012

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NOS DIAS DE HOJE Foste dura contigo e má comigo Ao longo d‘estes anos convividos. Nossos sonhos e encantos compartidos Há muito não me servem mais de abrigo. Quis deixar-te de vez, mas não consigo: Este amor que te dei se furta a olvidos... Ciúmes, nossos velhos conhecidos, Têm, contudo, os motivos que persigo. Já não julgarei se algo bom ou ruim Possa após nos advir de teus delírios, Que enchem estes meus dias de martírios. Só isso, hoje em dia, é que és para mim... O facto é que estou já muito cansado De viver tão-somente de passado. Belo Horizonte – 25 07 2012

NOS TRILHOS Ninguém sabe de facto o que acontece Quando a mente percebe tudo em vão... A luz do trem que vem na escuridão Agora o olhar de Deus mais lhe parece. Resmunga sua boca insana prece E após se amaldiçoar, pede perdão; Enquanto a morte chega n‘um clarão Para a levar de si: Desaparece!... Restam só seu corpo estraçalhado E uma história difícil de contar Fosse acidente, noia ou mesmo fado. Pois nada dava conta de explicar, Além do instante mais  desesperado De quem decide só não continuar. Betim – 11 03 2016

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NOSTÁLGICO Talvez fosse bonito do teu lado Quando os olhos se abriam n‘um sorriso A transbordar-te o rosto que, impreciso, Eu tento recordar desde o passado. Assim, fico feliz por ter andado O terreno arenoso onde ora piso, Apenas por ficar de sobreaviso Ou simplesmente estar emocionado... N‘aquela época qu‘eu andei contigo, — como me aconteceu p‘la vida afora — Não me ocorrera exacto o que persigo. Quis a Hora que partisses, muito embora Somente na memória encontre o abrigo A quem em minha vida já não mora. Sobrália - 08 09 2012

O ALCAGUETE Esse indivíduo quem me aponta o dedo, Indicando-lhes todo o mal que fiz. Não é melhor do qu‘eu, sim mais feliz, Por ter em suas mãos o meu segredo. Basta vê-lo e meu dia é mais azedo, Enquanto sondo aflito quais ardis Prepara para mim como se juiz, Que condenasse após calar a medo... O mal é que revela quem eu sou A partir do que não estimo ser E, em consequência, oculto de se ver. Sem embargo, a verdade que contou Expõe toda a vergonha que escondia... Total escuridão em pleno dia! Betim - 14 04 2013

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O CHALAÇA Se organizava orgias para El-Rey, É porque o seu prazer ninguém reprova. Sim, plenipotenciário, mas de alcova... A lhe buscar amantes entre a grei. Muito embora ao arrepio ou não da lei, Quer sempre uma outra dama vã-mas-nova Faço a oportunidade ao que me mova Para além de tudo isso que hei ou sei. E usufruo, como seu melhor amigo, Dos privilégios d‘um regime antigo Co‘as pilhérias de Sua Majestade! Mas lembrarão que fui, malgrado às pressas, O homem que teve a rara qualidade De raciocinar co‘as duas cabeças!... Contagem - 01 01 2012

O GRANDE NORTE BRANCO Homens sem ilusões, sem esperanças, Habitam esse mesmo lugar frio Mais a norte do norte, onde o vazio Da estepe se abre com suas andanças. Alheios às estações e outras mudanças, Sobem o vale inóspito do rio Rumo à curva do vento, cujo assovio Apaga d‘alma as dores e as lembranças. Querem só esquecer, esses errantes, Para chegar ao fim, mas o quanto antes E contemplar-se lá no extremo abismo. E vão... Ciosos de sua vã jornada, Que os leva tão esforçados pelo nada. Sós, na imensidão plena do ostracismo. Contagem - 14 09 2012

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O HOMICIDA Recebe o coice d‘arma e após recua Enquanto que, matando o outro, o vê cair. Nada mais há por ver e nem por vir... Só silêncio na noite em plena rua. Sigo por entender a causa sua, Ainda que me force a lhe assistir Minha ascensão e queda do existir Havida sem estrela ou sequer lua. E são as mesmas luas, todavia. E são as mesmas ruas onde um dia Eu vi os olhos frios do homicida. Ele me viu a vê-lo. Foi-se embora... Abalou pelo escuro até a aurora Luzir por sobre o sangue na avenida. Betim - 17 05 2013

O MELÔMANO Tenho andado distante ultimamente, Como soasse uma música p‘lo peito Cujas vãs vibrações me têm me afeito Ao me levar às cegas para frente! Ouço atento e há encanto tão-somente... Embora seja em seu próprio proveito, Mais o meu coração nas mãos estreito Até ficar pequeno ao que ressente. ―A partir de hoje vou me permitir‖ — Devaneava... — ‖Ignorar as ignorâncias, Apesar do pesar de tantas ânsias‖... Enquanto silencio em mim a ouvir, Das angústias extremas do tenor, Mais altíssimas notas em tom maior. Betim - 06 03 2013

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O PEDERASTA Ele saliva só de ver as pernas Dos rapazes andando na calçada. Conhece-lhes as carnes e a mirada Ambígua de utopias pós-modernas... Apesar das verdades sempiternas A levar o existir do nada ao nada, Decide não seguir mais a manada, Muito menos às ordens das casernas. Jovem, ele lutou pelo o que é certo, Cumprindo mais missões pelo deserto Que muitos a servir longe da morte. Agora que voltou já não se importa: Se a mulher que ele amou não o conforta, Deseja outra carícia algo mais forte... Betim - 04 04 2013

O TRANSEUNTE Ele era mais um. Outro entre outros tantos. Seguia pela rua em que transito. Apressado, d‘olhar intenso e aflito, Vendo injustiças por todos os cantos. Andava alheio à vida e seus encantos; E um tanto depressivo, ora acredito. Interpelava estranhos o esquisito Sem saber se inimigos; quais nem quantos! Em meio à multidão ia perdido, Embora procurasse por verdade, Em cada rosto vão desconhecido. Logo atravessará toda a cidade Até quedar exausto e desvalido Por profundo imergir na realidade. Betim - 13 05 2013

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ÓRGÃO DA SÉ Há-que se abrir janelas ou o bolor, Consumirá os dons de toda a Terra! Na antiga catedral, um órgão berra Suas fugas triunfantes em tom maior. Ressoa pela música um louvor, Ao qual em dor e fé meu ser se aferra. Surpreendente bater de teclas: ―Guerra!!!‖ Despertando minh‘alma do torpor... Após, enchendo o altar de notas longas, Já faz de horizontais linhas oblongas A tender, sempiternas, ao infinito. E mais curvas sensuais em plena elipse: Para a Assunção, sinal do Apocalipse, Lhe acompanho os agudos como um grito! Mariana - 21 02 2012

ORTOGONAL Nem o prumo do metro mais heroico; Nem o esquadro das rimas encadeadas; Ou buscar em remotas coordenadas, Ou escavar ao horizonte mesozoico. Não se poeta senão por paranoico Co‘a retidão de escolhas tão erradas, Ao fazer retilíneas vãs jornadas, E em dura lei mais douto um verso estoico. Contudo, estabeleça os paralelos E, perpendicular, se cruze os dedos, Devesdando do espírito os segredos. Lamentaria se fossem bons e belos, Pois, se sua verdade não for reta, De que valem os versos do poeta? Contagem - 12 02 2012

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OUROPRETANO Longe, um menino lá reconheci Na pedra de silhueta inconfundível! Edificante, tomo o prumo, o nível... Por levantar paredes de sonho aí. Tão bela agora quanto quando a vi Há tantos anos já... É infalível Achar entre o improvável e o impossível Algo que me indicasse o ouro d‘aqui... Poderia ficar e deitar raízes Para viver meus dias mais felizes Absorvido em total contemplação. E quiçá acercar-me do mistério Ao deslumbre d‘um luar quase que etéreo Capaz de encher de luz meu coração. Ouro Preto - 20 02 2012

OUTONAL Gosto quando o concreto se contrasta Co‘o verde d‘ervas úteis ou nem tanto. Surpreendem-me tão logo me levanto E sua ânsia de existir ora me basta. Venta frio e por amplo céu arrasta Estratos cinza-azuis de canto a canto Através da manhã que, por encanto, Uivante faz gemer a hélice gasta. Meus olhos buscam novas alegrias Em meio às cores foscas, vãs e frias, Que junho sempre traz sem mais alarde. E alcatifam o chão folhas caducas... Sim, espevito o fogo e ideias malucas, Para sorrir liberto ‗inda que tarde. Betim – 14 06 2013

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PANÓPTICO D‘aqui que se controla tudo e todos, Observando o menor movimento. Tudo que se diz ou faz, qualquer intento, É registrado, enfim, de muitos modos. Ciente de subterfúgios ou de engodos, O coração vigia sempre atento, Senão os seus recalques n‘um momento Levantar-se-ão qual vândalos; qual godos... Contra iminente risco de perigo, A alma se precaveu, porque o inimigo Se dissimula qual sua intenção. Sob rotina de turnos das vigias, Tudo oculta com falsas alegrias À espera da fatal sublevação... Betim - 22 10 2013

PANORÂMICA Estar na imagem: Não mais que um minúsculo Píxel então estranho na paisagem... Que viajem não somente pela viagem Aqueles que amam púrpura o crepúsculo! Sorte o coração ser um forte músculo E a vida ser tão-só uma passagem. Porém, se os sentimentos interagem, A luz já não é onda nem corpúsculo. Dado a melancolias, eu costumo Ir nos lugares altos buscar paz N‘essas serras onde o ouro, oculto, jaz. Embora eu parecer seguir sem rumo, Vim só por essa luz, errante e errando... Onde a glória de Deus no céu brilhando. Ouro Preto - 20 02 2012

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PARADOXAL Passava há muito já como indeciso. Incapaz de seguir, ora o consome Uma carência muito pior que a fome, Vivendo em permanente sobreaviso. Falar d‘essa mulher lhe era preciso Pontuando cada frase co‘o seu nome E embora o velho tema ele retome Não cessa de zoar com estranho riso. Quiçá seja a loucura um mal menor, Por seguir onde o senso e o sentimento Estacam com um mútuo estupor... Assim leva a questão sem outro intento Senão provar a si que o sofrimento É a única resposta d‘esse amor. Betim - 09 10 2012

PATIFARIAS Se ouvir mais os senões do que os porquês, Talvez veja que tanta dor me calha. Concedo: Entre patético e canalha Tenho vivido à sombra do burguês... Por reserva afectiva, fiz mercês Que lograram favores da escumalha. A justiça que tarda também falha: Patife! -- em bom e claro português. Lê-se, de lés a lés, leda poesia Em lugar de, inobstante e todavia, Mais males que de mim tenham notícia. Douto em artes estúpidas e afins, Por meios que justifiquem quaisquer fins, Gozo de nada ser toda a delícia! Belo Horizonte – 18 10 2012

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PERDEDORES Tem poder quem não tem nada a perder. Aquele que possui o que deseja, Vive sempre com medo de que esteja Próximo de perder o que mais quer. Dinheiro, posição, fama, mulher... Tudo o que com esforço e dom se almeja Se para uns falta; para outros sobeja, Na ideia de que querer seja poder. Quem já não tem mais nada, não se importa, Quando o fio da vida a todos corta, Embora inteligente; embora forte. Isto faz perdedores poderosos, Ao ter em meio a olhares desdenhosos Total indiferença face à morte. Belo Horizonte - 07 08 2013

PLANISFÉRIO Dos homens; de seus vícios e virtudes, Vê-se como se desde um aeroplano Onde — ora um continente; ora um oceano — A Terra em desiguais vicissitudes. Deformada nas altas latitudes, A esfera a arredondar-se sobre o plano Dá a tantos o não tão ledo engano D‘haverem superiores actitudes. Isto porque o hemisfério acima, o Norte, Lhes aparece maior, logo, mais forte; Sobre-elevado por terras austrais. Assim também o mundo dito velho: Desde a era do sagrado escaravelho Se impera sobre os mais meridionais! Betim - 04 08 2013

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POR SIMONIA Compra um terreno ao céu e constrói n‘ele Teu só paraíso ainda mais a leste. Põe todas as delícias que quiseste Para essa vida e além... Após revele A quantia devida a quem te impele... Pois, quem empresta a Deus não dá, investe! E o sucesso acompanha a via d‘este, Seja lobo ou cordeiro sob a pele. Por receber as graças e os perdões, Vende teus bens e lucra co‘as esmolas, Enquanto passam bons a encher sacolas. E ao morrer não lamentes os verões Que não verás... Mas antes a quimera D‘essa morada eterna que te espera. Betim - 07 08 2013

RAZÕES OUTRAS Poderia perguntar-me porquê, Mas nada mais responde se o cansaço Nos governa absoluto, a par e passo, Que toda a mesquinhez em mim se dê. Outros me saberão, como se vê, O real sentido em tudo o que me faço, Visto que me impõem, com desembaraço, Mais uma frase feita de clichê. Óbvio que nada d‘isso me interessa, A não ser pela própria vã promessa Com que falto ao dever por desprazer. N‘isto está todo o meu desassossego E a profunda tristeza a que me entrego É saudade de quem sabia eu ser. Betim - 06 09 2013

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RECORAÇÕES Tenho tido lampejos de memória Que se interpõem bem diante do que vejo. São visões de saudade e de desejo Co‘o viés d‘uma ventura provisória. Revi quase casual a minha história, Como se alegorias de azulejo Ou como quando um luar mais benfazejo, Pudesse se insinuar luz ilusória. O coração tem modos de pensar Que não cabem n‘aquilo que cogito. Sigo sem saber onde têm lugar Tais imagens oriundas d‘algum mito. Só projeções de mim a me encontrar Em retas que se cruzam no infinito. Belo Horizonte - 18 09 2013

RESSACA O pão amanhecido sobre a mesa, Tão solitariamente, a se comer... O café requentado e outra colher Só de melancolia já não pesa. A boca balbucia alguma reza E ralha maldições sem se mover. Pouco importa se bem ou mal me quer: Seca, a flor não se mostra ora surpresa. A chuva cai lá fora. A vida passa. Não. Nada falta, mas também não basta, Pois há muito vazias a alma e a taça. A manhã vem, dir-se-ia, tão nefasta Que traz o pressentir d‘uma desgraça. No desalento da hora que se arrasta. Betim - 20 01 2013

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RESTOS MORTAIS Uma hora o coração para de tudo E o corpo queda imóvel sobre o leito. A alma, qualquer que seja seu proveito, Deixa só um semblante duro e mudo. Não importa se com vidas me iludo — Além ou aquém, d‘aquele ou d‘este jeito — O que importa é a paz com que me deito E a com que me levanto, sobretudo. Percebo enfim que a morte não é triste. Como a vida, tampouco... Apenas ais Diante d‘uma memória que persiste. Certo apenas é que um dia não mais. Aí toda a angústia que no ser que existe A desaparecer de seus iguais... Betim - 24 08 2013

ROMPANTE Não me disse palavra. Apenas foi... Mas deixou um silêncio tão imenso, Quanto o vazio que há-de ter, eu penso, A expansão do universo como sói. Antes, urrou que nem bumba-meu-boi Em terra batida, perdendo o senso! E, embora vencido, não me convenço Ao vê-la partir sem sequer um oi. A despeito de tudo, não lamento Sua partida em meio ao desalento D‘uma tarde em que tão assoberbada. Lamentaria, sim, toda uma vida, De cuja estranha luz, desenxabida, Tivera-me lugar em hora errada. Betim – 10 12 2013

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SERENDIPITIA Para cada questão que me contesto, Há uma outra verdade por rever. Desconfio de tudo o que quis ser, Apenas para obter um senso honesto. Quero dizer, eu tento isso... De resto, Tantas coisas que estão por conhecer São reveladas só pelo prazer De buscar seu sentido manifesto. As grandes descobertas e as pequenas Acontecem ligando-se cadenas, Que não tão raro têm estranhos elos. Vai além do lampejo mais fortuito Ao se propor encontros, bem e muito: A maravilha está em saber vê-los. Betim - 19 08 2013

SERRA NEGRA Uns dois anos atrás estive aqui A contemplar abismos e uivar ecos. Titereiro de intrépidos bonecos, Ainda tento rir do que vivi. Não penso ter os anos que perdi: Melhor mirar além co‘os olhos secos! Melhor partir, juntar-me os cacarecos... Mais certo da jornada dentro em mi. Limítrofe andar para a distância D‘onde ainda olho as luzes da cidade Cintilando outro adeus já sem saudade. Pois esse derradeiro olhar, cheio de ânsia, Houve-de abrir os céus n‘um luar furtivo Para raiar-me em glória, redivivo. Betim - 22 10 2013

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SUBLIME Havia uma garota conversando Com as flores e as pedras do caminho. Admirada de tudo, ainda a adivinho A arder cidade afora em fogo brando. Vejo ampla a paisagem enquanto ando, Quando, súbito, eu d‘ela me avizinho. Sorri comigo mesmo, pois sozinho Àquela estranha cena ia observando. E ela sorriu de volta, indecifrável, Pronta a me devorar com seu enigma, Pois feito ora de luz; ora de estigma. E manteve o olhar fixo, mas afável. Até que, partindo, o encanto me deixou Junto às flores e às pedras que ela achou. Ouro Preto - 02 02 2012

TABEBUIAS Se n‘uma alameda então florida Eu fizesse outra longa caminhada, Por sob lindos ipês de áurea florada, Talvez me fosse menos vã a vida. Quisera eu a emoção assim sentida À névoa transcendente d‘alvorada Onde o raiar do sol mostrasse cada Pequena e só lembrança na mente ida. Ali, não pisaria mais senão Flores alcatifando todo o chão Até o extremo belo, o mais sublime. De modo que a alegria ao coração Fosse-me enfim um bálsamo, não crime; À luz que exuberante me redime. Betim - 18 08 2012

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TARDO-ROMÂNTICO Que sei de Amor senão que é fugidio? Que os olhos tem vendados p’ra não ver Os desastres que causa em envolver Àqueles que o veem como um bem tardio? Assim, toda afeição, paixão ou cio — Ou qualquer outro nome a me ocorrer — Pode Amor tornar, por seu bel-prazer, Em voltas feito meandros vãos de rio. E embora tudo voa... Longe vai... Eleva e leva a gente, desorienta Com força incontrolável e violenta. Tão alto sobe e, sim, tão alto cai! Amor sói se entreter com sós lamentos, Quão mais plena a emoção dos sentimentos. Belo Horizonte - 26 07 2013

TERRÍFICO Os olhos de afogados pelo rio Já não veem o que ou quem os vitimara... Esbugalhados sobre a pele clara, Revelam mudos só seu fim sombrio. Na luta mais renhida, o mais bravio Encontro onde o pavor os transtornara. E toda a dor por fim mal se compara Face a esse olhar de máximo vazio. Deixaram n‘agua turva quanto foram E as lágrimas estúpidas dos que oram Apenas molham rostos perturbados. A morte, embora fosse tão horrenda, Estava bem ali, sem que se entenda Qualquer graça ou razão para os poupados. Betim - 31 12 2014

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TRAUMÁTICO Encontra-se entre a luz e a escuridão Um território feito todo em nuanças, Onde ‗inda se confundem esperanças Com uns vagos espectros de ilusão. Será que saberemos se há ou não — À sombra de inexactas más lembranças — Verdades de quando éramos bem crianças Ecoando graves pelo coração? ... Somos também o que não esquecemos, E é triste sermos isto que tão triste Aconteceu. E nunca esqueceremos... Faz-se a tristeza tudo o que existe. Pois, ao a reconhecermos tão presente, Mantemos o passado à nossa frente. Betim - 11 11 2013

TROMBA D’ÁGUA Anoitecia. Vento de escarcéu, Chuva tamborilando no zinco... Escurecera ainda antes das cinco Com bigornas altíssimas no céu. Saraivada em granizo qual tropel Cujo afã bate o vidro, força o trinco: À janela apresenta todo o afinco Com que a Natura assombra o poviléu. De facto, eram estrondos de dar medo, Que reverberam ecos tão grotescos Quanto os urros de seres gigantescos. E tombam raios além, sobre o penedo, Rasgando o véu da noite tão profundo Feito um verdadeiro fim-de-mundo. Betim - 06 11 2013

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TURQUESA Se certas coisas fiz de forma errada, Maldade jamais tive quando as fiz. O tempo é com certeza o melhor juiz E um novo o céu azula a madrugada. Por talismã trazia bem guardada, Dando-me o livramento à hora infeliz. Quase acontece... Mas, como se diz: — ―Ruim o caminho, não a caminhada!‖ Às vezes se me impõe: Pedra de céu... E a mente gira diante da beleza, Tão mariposamente ora indefesa. E o nome da cor brilha no papel, A fim-de traduzir tanto conflito Como um azul um pouco mais bonito. Betim - 04 04 2013

VÃMENTE Às vezes, eu me sinto um homem vão, Vivendo em terra vã vã existência. É... Temo estar cercado de indolência Que enche d‘erva-daninha o coração. Pois vejo que as pessoas alheias vão E hoje isso é ser feliz, por excelência! Antes se desdenhar tal inconsciência Por reflexivos sim; reflexos, não. Penso que a vida faz isto conosco E, embora eu reconheça o belo e o bom, Tudo agora parece um tanto fosco... Mas seja-me a poesia ainda um dom Capaz d‘algum prazer, mesmo que tosco, Ou senão me emudeço qualquer som. Betim - 20 07 2013

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ZÊNITE Se tu, página a página, a esta folha Chegaste com o teu riso escarninho, Talvez já nem te admires se adivinho Que crês muito infeliz a tua escolha. Contudo, tudo muda quando se olha Quais as vicissitudes p‘lo caminho, Quer se escreva paixões em torvelinho Ou um instante fugaz então recolha. Lamento que tu não me saibas ler... E, ainda que me venhas a esquecer, Fica com estes versos que ora levas. Penso apenas não ser problema meu. Pois, mesmo o sol no céu em apogeu, Pode não alcançar algumas trevas... Betim - 03 03 2013

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