COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO/VOL. X

SONETOS 2016 POESIA

RICARDO CUNHA COSTA

BH/16

EDITORA PENA FIEL

_________________________________________________________ COSTA, Ricardo Cunha. 1976 - ... SONETOS 2016 - Espólio literário: SONETOS VOL. X / Ricardo Cunha Costa, Belo Horizonte: Editora Pena Fiel, 2016. pp. 69 – (Coleção Espólio Literário) ISBN .... 1. Poesia em língua portuguesa 2. Geração milenarista 3. Soneto contemporâneo __________________________________________________________

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Impresso no Brasil Primavera de 2016

RICARDO CUNHA COSTA

SONETOS 2016 COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO -SONETOS / VOLUME X -

POESIA PRÉ-EDIÇÃO

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EDITORA PENA FIEL BELO HORIZONTE - MINAS GERAIS

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SONETOS 2016

COLEÇÃO ESPÓLIO LITERÁRIO SONETOS __________________________ 10 VOLUMES TREZENTAS _____________________ VOLUME ÚNICO RONDÉIS, RONDOS E BALADAS ________ 2 VOLUMES REDONDILHAS E DÉCIMAS ____________ 2 VOLUMES GAZAIS E HAI-CAIS _______________ VOLUME ÚNICO IMPROVISOS E PROSAÍSMOS ___________ 2 VOLUMES PROSA LIGEIRA _____________________ 3 VOLUMES POESIA DISPERSA ________________ VOLUME ÚNICO CONTOS ________________________ VOLUME ÚNICO

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DOS ORIGINAIS MANUSCRITOS DE RICARDO CUNHA COSTA

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RICARDO CUNHA COSTA POR UMA METAPOÉTICA O ofício de poetar distingue-se pela busca da verdade. Mas não, o poeta não é um filósofo que propõe suas teses por meio de versos, o poeta é um artista. Sua função é recriar a realidade e a si próprio com vias a lançar luzes, mais intuitivas que racionais, sob seus estados psíquico-mentais. Mais que compor frases de acordo com um certo metro e uma certa forma, no caso sonetos decassílabos e dodecassílabos, é preciso que o poeta escreva o que nem ele mesmo sabe o que é. Esta meta transcende o conhecer e o estabelecimento de limites ou rótulos pessoais, mesmo porque, a poesia não raro transfigura os seres a ponto de torná-los objetos que fogem a qualquer análise racional. Bem, este intróito tem o objetivo de amarrar o sentido geral dos poemas que se seguem neste livro sétimo. Não são, ao contrário que o título faz pressupor, teses, modelos ou exemplos de uma tentativa de teoria poética particular. Se o leitor der sentido ao que os sonetos seguintes expõem não verá uma possibilidade de poética, mas múltiplas. O poetar se pensa enquanto sujeito e objeto, é ação reflexiva por excelência. Todavia, lança luzes, como já disse antes, com intenções diversas do filosofar ou do analisar os fatos e as coisas para lhes traduzir a essência. Estas luzes, tomando as artes plásticas por analogia, podem ter sentidos que jogam com as diversas aparências que algo iluminado tem - claro-escuro; podem buscar concretizar o abstrato, imaginar o imaterial - luz mística; ou ainda a natureza em cujos matizes de cor o homem se reconhece e se espelha - luz natural. Todas estas formas de iluminação artística são obviamente diversas da que - chamemos de luz artificial - se valem os que de forma analítica observam o ser, fragmentando-o. A matéria-prima do poeta é a palavra. Mais que qualquer um é ele quem vibra com os sentidos e possibilidades que suas intenções adquirem. As palavras guardam em si histórias, línguas mortas, sentidos e subsentidos, sons, melodias, valores etc.. Há algo quase como que uma combinação numerológica nos vocábulos a decifrar o destino de fictícios ou suprarreais eus que se manifestam nestes poemas. As palavras são mágicas, são pedras-detoque, não o próprio ouro. Creio ser neste ponto que os parnasianos se enganaram: viam na raridade ou hierarquia das palavras um valor intrínseco ao poema. Falam muito da perfeição formal que os parnasianos buscavam, qual seus pares arquitetos com as ordens clássicas. Sem embargo, todas as épocas lograram sonetistas de forma primorosa, e nem por isso podem eles ser chamados parnasianos. Eu, por exemplo, não tenho a menor pretensão de obter a perfeição formal como efeito em meus sonetos: meu ritmo segue uma linha melódica pessoal, e não os tratados de versificação. Fazendo novamente paralelo com os arquitetos e suas ordens clássicas, os poetas não devem seguir cegamente as normas do soneto se quiserem fazer verdadeira poesia.

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SONETOS 2016 Devem, ao contrário, saber onde e como transgredi-las, ou como prefiro dizer, evoluí-las. O leitor poderá ter, porfim, se assustado com os arcaísmos, neologismos, e por vezes até estrangeirismos galegos e castelhanos, e sobretudo, lusitanismos a nortear, inclusive, uma minha proposta alternativa de ortografia. Não considero, sem embargo, lusitanismos como corpos estranhos em meu escrever como o seriam em meu falar. Creio que ser lusófono é ser lusófilo outrossim, sobretudo na poesia, onde nossa Pátria não é outra senão a língua portuguesa, d’aquém e d’além-mar. É isso. Ricardo Cunha Costa, o autor.

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Para Mariana, Maria Eduarda e Bárbara Maria, as “Três Marias”.

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A PEDIDO Ela me pede qu'eu lhe cante aquela Cantiga que lhe fiz dos olhos seus. Eu lhe peço qu'ela olhe os olhos meus Para que a possa ver 'inda mais bela. Eu me aproximo assim dos olhos d'ela E os olhos fundo veem porque, plebeus, Só no amor da princesa e o semideus Se permitem amar quem se revela. Eu lhe recito, enfim, verso por verso, Enquanto cada frêmito lhe observo Ouvindo-me o cantar n'alma disperso. Ela olha p'ra mim, seu humilde servo. Se Andrômeda e Perseu em trova eu verso E, ao amor d'eles, o meu eu lhe conservo. Betim - 10 02 2016

ABENÇOADO Porque assim como a bênção não altera O sabor do alimento consagrado, Assim também um homem abençoado Não difere d'aquele que antes era... Não que agora aja bem. Tampouco outrera Tinha seus olhos fixos no passado. Pecava sem saber que era pecado, Ignorando dos céus o que lhe espera. Em sua superior sabedoria, Deus não revelou quanto sabia E deixou as pessoas n'este mundo. Aperta algum botão liga-desliga Quem com súbita fé mais se bendiga: Fecha os olhos e sonda-se profundo. Betim - 04 06 2016

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ALEGRO Amanhece e já canta o passarinho A sua melodia docemente. Paro para ouvi-lo, displicente, Enquanto repetia o meu caminho. Música ou não, aquele barulhinho Era algo assim tão terno e tão dolente Que soía fazer cócegas na mente Tal a alegria em seu trinar sozinho. Dou-me conta ao escutá-lo que feliz É quem percebe a música de tudo, Entendendo o que cada coisa diz. Pouco importa se a ouvir aves me iludo, Todo imerso d'encantos infantis, Eu atravesso a rua e a vida, mudo... Betim - 28 10 2016

ALMA PENADA Sentia tamanho ódio de si mesma Que apenas se entregara à escuridão. Tentava olhar além, mas era em vão: Rondava a noite feito uma avantesma Ou mula-sem-cabeça na quaresma... Mantinha fundo olhar de assombração Enquanto contemplava outra ilusão No rastro pegajoso d'uma lesma. Como se presa àquela vizinhança, Rodava rua a rua na esperança De ver os seus que tão cedo deixara. De modo que jamais se despedia, Passando longas noites de vigia No afã de ver a vida algo mais clara. Betim - 12 10 2016

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AMANTES Que seja doce teu beijo em minha boca, Embora as acres lágrimas ao rosto... Conheça eu de teu corpo o amargo gosto, Ao te provar a pele que me toca. Isso implica deixar a cabeça oca; Seguir do coração o ritmo posto. Para haver-te o calor tal como gosto Quando o teu olhar óbvio me provoca. E, em transes de ternura desmedida, Acarinhar-me o peito cuja ferida Cicatrizasse rubra entre teus dedos. Ou, displicentemente, pôr-te nua Face ao afã que, contudo, continua Oculto em fantasias e segredos. Betim - 09 01 2016

AMAR SEM AMOR Ao beijo o lábio sente, mas o quê? São outros olhos estes; não aqueles... Solto palavras ternas, à Meireles, Como se mal actor que ninguém crê. Saio para vê-la (levo-lhe um buquê?). Mas, tão logo se tocam nossas peles, Sei-me dos miseráveis, o mais reles; Fingindo sem sequer saber porquê. Nus, nós permanecemos mascarados Ao gozo distraído que, abraçados, Nos permitimos n'uma noite fria. Depois pernoito insone em sua alcova Para guardar d'aquela face nova Talvez uma improvável nostalgia. Betim - 02 08 2016

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AMOR?! Eu, de facto, não te amo. Ou melhor, amo Àquela que sonhei e tu não és. Sinto sequer o chão sob os meus pés: Amor?! Mais me interrogo e mais me exclamo... Não lembro porque tanto 'inda reclamo Ou quanto já contei de um até dez... Teu rosto me pareça outro, talvez; Tampouco sei de qual nome te chamo. Amor?! Não sei agora o que te diga, Tanto ignoro as respostas e as perguntas P'ra que duas pessoas fiquem juntas. Quisera te deixar palavra amiga, Mas, se me silencio, é porque nada Me impede outra palavra enamorada!... Betim – 28 03 2016

AMPULHETA Não te demores, minha linda amante, Em gozar no meu corpo os teus prazeres. Os grãos da vida caem sobre os quereres A ocultar-nos o amor de instante a instante... Não deixes de sentir no peito arfante Um encanto maior vir sem o souberes E aceita-me, mulher entre as mulheres, Os meus olhos nos teus olhos bem diante. O tempo que nos passa, todavia, Parece correr mais rápido e em vão Agora que te sei no coração. Apressa-te! Ou senão nossa alegria Permanecer-nos-á uma lembrança, Enquanto cada grão de mim se lança... Betim - 03 12 2016

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ANSIOSO Decerto me enervasse indo te ver Feito um adolescente pela rua: Tímido, observa e hesita; treme e sua... E em frente ao teu portão chego a volver! Mas por mais desejar contigo ter, Levantasse a cabeça olhando a lua. E chamando, por fim, à porta tua Sentisse o coração quase romper. Tu te demorarias, com certeza, Para mais me deixar a língua presa, Enquanto te esperasse comovido. Silente, sem saber que mais fazer, Eu te olharia os olhos sem te ver, De ti mal disfarçando o ardor sentido. Betim - 21 01 2016

ANTROPOCENO Quem tão pequeno face à imensa cava Remove altas montanhas a olhos frios? Quem, aplainando a serra, entulha rios E alicerces da Terra fundo escava? É gente d'ambição eterna escrava Em lavras por sertões antes vazios. Vem e revira o chão; torna baldios Solos em que plantando tudo dava... A Terra se transforma. Era uma outra era: Não apenas marés, vulcões e sismos Mudam a sua face em cataclismos. Agora a acção humana é quem altera Tudo sob as pegadas de bilhões Deixadas em brutais explorações. Itatiaiuçu - 05 06 2016

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AO BOM AMOR Um amor que não doa; que não faça Chorar quem antes quis com tanto ardor. Que não confunda a mente se o calor Faz arder suas faces quando a abraça. Amor que o coração não espedaça... Para que permaneça em seu favor. Um amor que talvez nem seja amor Porque calmo, tranquilo e até sem graça. Tão cansado de guerra e de conflito, Já não me ilude um rosto que, bonito, Traz desastres que nunca mais se olvida... A companhia faz a companheira. Porquanto amiga a amada verdadeira, Que tanto procurei por toda a vida! Contagem - 28 04 2016

AO CAFÉ Há quem finja não ver que está de pé Sobre chão movediço e sob estrelas... Anda como se nunca fosse às belas, Ou visto um mal-de-amor de boa-fé. Julgando que todo homem culpado é, Não se comove com alheias mazelas, Antes passa bem longe e arisco d'elas Enquanto à rua vai rumo ao café. Chega sozinho e senta junto à mesa; Pede seu expresso, abre seu jornal E faz seu desjejum habitual. Escreve n'um caderno, olha a despesa E abala sem dizer palavra a alguém, No mais grave silêncio que convém. Belo Horizonte - 03 06 2016

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AO MENOS A cada dia menos penso em ti. Menos lamento; menos me desgosto... O que é bom, visto qu'eu tenho me imposto Mais distância entre mim e o que senti. Tenho buscado estar longe d'aqui. Esquecer teu olhar; não ver teu rosto... Evito até o céu quando ao sol posto O lusco-fusco lembra o que vivi. Se não tenho ilusões, sonhos tampouco. Às vezes me veem só; às vezes louco, Mas ao menos ninguém me vê mais triste. Mesmo se vir, agora pouco importa. A ideia de te olvidar não me conforta, Só nega o sentimento que persiste. Betim - 13 06 2016

ARRAIOLOS Sobre uma talagarça, a tecelã Borda escuros contornos de primeiro, Surgindo formas pelo quadro inteiro Horas a fio com muita arte e afã. Depois enche de tons a fina lã, Cujas cores compõem um verdadeiro Matizado de nuanças bem ligeiro Sem que lhe ousem julgar a estrela vã. O que fica é apenas maravilha... Quando, por fim, se tece todo o fundo Do qual cada figura feita brilha. E, diante d'um trabalho tão fecundo, Ver essa arte passar de mãe p'ra filha Já através dos tempos e do mundo. Betim - 25 09 2016

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ARRUAÇA Começa, a bem dizer, por puro tédio. Quando a gente s'encontra e engana a morte E até, por não morrer, fica mais forte Diante d'alguma angústia sem remédio. Tínhamos algo de louco, olhos de assédio; Certo gosto em jogar co'a própria sorte. Talvez porque a folia nos conforte Ou só por não querer ficar no médio. E tome esculachada, dedo em riste, Tapa na cara, sangue a arder na veia... Enquanto a plebe em roda se incendeia. Quando a gente s'esquece de ser triste E sente o corpo doer por ter que existe, Deixa mais que pegadas sobre a areia. Belo Horizonte – 02 07 2016

ÀS MARGENS DO RIO SECO Acolá, fina areia a que as reptícias Se agarram a buscar a última gota... Sol em barro rachado que desbota O chão coberto d'ervas malpropícias. Outrora era vereda de delícias; D'eterno enverdecer por sua rota. Nada mais, todavia, hoje se nota Onde antes buritis, pequis... Primícias! Pela terra assolada, igual fantasma O rio ressequido nega ao açude Sua água, sem ter mais com que lhe ajude. E a gente ribeirinha mais se pasma Por vazio o remanso de banhar Na seca a entristecer este lugar. Betim - 18 04 2016

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ÀS MOSCAS A casa abandonada... O chão, vazio. Na tulha em ruína, erva daninha; Que à plantação também cobre maninha Ao se estender por todo esse baixio. Aliás, é ora areia onde era rio E o morro em voçorocas se avizinha. Tudo desolação onde antes tinha Fartura após lavrar anos a fio. Acolá, o curral sem qualquer gado. Mas no eito se vê por todo lado Cabanas de caboclo das mais toscas. Não mais que margaridas 'inda engendre A terra bem sombria ao pé do alpendre: Toda uma vida aqui deixada às moscas... Sobrália - 07 09 2016

ASSUNTANDO Para ficar junto há-que ter assunto: Ser agradável; ser agradecido... São duas faces d'um agrado havido: Duas emoções n'uma só ajunto. É por isso que insistente eu te assunto... Busco para as palavras um sentido, Que faça eu te falar perto do ouvido, Dando um jeito de a gente estar mais junto. Não é nada demais; é só um papo... Jogar conversa fora e, quando em quando, Olhos nos olhos ir bebericando. Então -- nem mais princesa e nem mais sapo -Sabendo ser a vida tão fugaz, Nós possamos trocar ideias em paz. Betim - 19 10 2016

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AUDÁCIA -- “Desculpas, eu que peço, minha flor! Não quero te turvar o olhar sereno, Mas, permite que admire, tão moreno, O teu rosto banhado em luar e amor.” “Deixa-me que te traga algum calor, Que tenho em minhas mãos desde pequeno, Por te aquecer a pele ao vento ameno. Deixa qu’eu te toque a alma, por favor...” “Pois, mesmo que te rias dos meus ais, Obrigado eu te sou já por demais Tão-só por me fazeres sentir isso.” “Leva, linda morena, os olhos meus... Parte –- sem que sequer te diga “adeus” –Antes que já me perca em teu feitiço.” Betim – 10 08 2016

BAMBUZAL Bailado de taquaras envergando Enquanto cai a chuva tropical. Uma cortina verde, o bambuzal Parece mil veleiros sem comando!... O aguaceiro emborrasca quando em quando... Uivando desvairado o vendaval, Os bambus têm ressoado tal-e-qual Um grande concerto onde oboés tocando. N'aquele inusitado movimento Se põem, agitadas pelo vento, Sincronismo de música mais dança. E por público d'esta maravilha, Nos alegramos, eu e minha filha, Diante d'um bambuzal na vizinhança. Betim - 22 10 2016

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BARBA RUIVA Só sei de mim que tenho um olhar negro E a pele bem morena dos cafuzos; Mais faces salpicadas de confusos Pontinhos pelos quais tanto me alegro. Por ditames alheios eu não me regro, Tampouco referendo olhos obtusos. Jamais tive interesses vis ou escusos Nos grupos que por vezes eu integro. Eu, todavia, tenho a barba ruiva... Sim, a de imperadores e piratas, Cuja figura aumenta entre bravatas. Sou um homem que como lobos uiva, Saudando a lua cheia em ampla estepe, Por solitário ou todo serelepe!... Betim - 05 10 2016

BEM-TE-VI Surpreendera-me ao andar pelo telhado Aquele passarinho mais singelo. Tinha o peito retinto de amarelo E cada olho de preto mascarado. Esse mexeriqueiro só e alado Vinha me acompanhar em meu desvelo: Amanhecia o dia bom e belo Quando ele veio cantar bem do meu lado. Parecia inusitado a ele eu ali Na altura do telhado; na alva aurora... Admirando o nascer do sol em si. Como a me denunciar, não ia embora; Ficava repetindo: "Bem te vi!" Só por estar do lado cá de fora... Betim - 13 11 2016

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BOA VIAGEM Espero que os ventos estejam propícios E que te vás e voltes sem demoras. Que te sintas feliz nas boas horas, Plenas de belas artes e artifícios. Sim, pois, guardarás desde os inícios A lembrança das mais áureas auroras. Porém, se por ventura ainda coras Com estes meus insólitos auspícios, Olha-os como carinho e gratidão, Que sinto transbordando ao coração E inundam com amor todo um oceano. Porque quando voltares, a verdade É que te desejei por felicidade Com tua boa viagem, um bom ano! Betim - 04 01 2016

BONANÇA Em manhã luminosa de janeiro, Percebi que o pior tinha já passado... Olhava sem revolta enfim meu fado E não mais como via de primeiro. Este olhar tão diverso ao costumeiro Eu tive sem pensar se certo ou errado. O dia estava lindo!... Era um pecado Não sorrir face a um gozo verdadeiro. Eu me sentia bem sem mais motivo Além de o tempo estar tão bom e eu, vivo, Para fruir plenamente este momento: O sol, a revelar-me o novo dia, Renovado também me parecia E alegre sem qualquer constrangimento. Betim – 07 01 2016

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CALAMIDADE Enquanto a ordem social se desmorona, Crianças e idosos vão morrendo à míngua... Nos hospitais, não curam nem uma íngua! E o povo à própria sorte se abandona. Nas câmaras, discursam da poltrona Com risco de morder a própria língua; Porém, quando a paciência em todos míngua, Conspiradores armam outra intentona. Acossados ou omissos, os Poderes Se entreacusam nas páginas de capa E se cortejam, ávidos de haveres. A única coisa que ora ao olhar escapa É o que surgirá d'este sinistro, Que desoladamente aqui registro. Betim – 13 03 2016

CARAMANCHÃO Nós, de mãos dadas sob as primaveras, Vimos a repousar-nos dos caminhos. O sol estava forte e os passarinhos Gorjeiam em derredor suas quimeras... Os zéfiros, que vêm das priscas eras A nos testemunhar ternos carinhos, Sopram-nos suaves brisas, torvelinhos, Enquanto atlantes soerguem-se as esferas. Abelhas, borboletas, mariposas... Esvoaçantes nos vêm saudar as flores Que estão pelo jardim maravilhosas. Nas fontes, belas ninfas sem pudores Te espreitam a beleza, as invejosas, Tanto quanto te sonham os amores. Betim - 28 01 2016

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CÁRCERE Sob o piso, alicerce em cantaria Cuja humidade sua o extenso arrimo. As pedras esverdeadas já de limo E os pés gretados sobre a laje fria. Aonde jamais chega a luz do dia, Entre sombras e breus, eu desanimo... Mesmo o mínimo som passa por mimo A quem habita só essa enxovia. Uns camundongos mortos pelos cantos Fedem terrivelmente no ar parado Qu'eu insensível tenho respirado. Todavia, apesar dos maus espantos E as chagas a exsudar de sangue e pus, No escuro meu olhar ainda luz. Betim - 01 08 2016

CARNE DE SOL Os sertões que atravesso são imensos, Em face das perguntas sem respostas... Dize-me exactamente do que gostas Ou permite-me tocar teus ombros tensos. Apesar de meus olhos tão pretensos, Ainda o sol açoita as tuas costas: As carnes ao desejo estão expostas N'uma nudez sem véus ou mesmo lenços. Sim, esvaziados já de todo o pejo Sejamos n'este instante só desejo... Só carnes a curtir ao sol e ao sal. E qu'eu te crave os dentes sem saber Se por fome ou vontade de comer. Sejamos carne além do bem e mal. São Mateus - 09 07 2016

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CHORAMINGAS O leite derramado está no chão... Inútil lamentar o acontecido! Qualquer que seja a causa, já perdido, Não tem mais serventia nem razão. O que fica é apenas emoção Em face d'algo absurdo ou sem sentido. Mas que ainda te deixa comovido, Porquanto desolado o coração. Choramingas, malgrado nada mude... Talvez até esteja sendo rude Por mais te confrontar com tua perda. É, todavia, o leite derramado -- Seja por negligência, seja Fado... -A poça que tens vã à tua esquerda... Sobrália - 10 09 2016

CONCRETUDE Lança mão de imagens enquanto lavras As palavras ao encanto de seus sons. E, embora achando versos muito bons, Evita os demais poetas e suas lavras. Visto que tu, como eles, escalavras Os muros sempre cinzas e marrons. Que depois, grafitados de mil tons, Violentam o concreto com palavras. Deixarás tua marca pelas ruas Como cenário a quanto acontecia Entre homens vãos e damas seminuas. Tuas obras nos mostrem, todavia, Nas curvas do concreto que insinuas As serras onde raia um novo dia. Belo Horizonte - 24 04 2016

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CONDICIONAL Talvez se fosse loura ou se mais jovem; Se co'os olhos azuis puxando a gris... Ou tivesse aquilino o seu nariz; Ou aqueles lábios grossos que comovem. Ou vivendo n'outra época em que trovem Às matronas e seus seios de nutriz!... Ou, à curva generosa dos quadris, Que no seu caminhar tão bem se movem. Mas, fosse como fosse, não seria Aquela cuja errática alegria Dependa d'outro olhar para sorrir. Certa de que se for condicional O amor às aparências em geral, Não vale a pena amar face ao porvir. Betim – 29 04 2016

CONSCIENCIOSO É comum admirar-me em estar vivo Apenas por sentir minha consciência Sim, sentir: Pensar sem complacência; Sem ter controlo e mesmo sem motivo. Porque não faz sentido se me privo D'isto ou aquilo senão onde a existência Me fez sentir exacto com violência E rememora já sem qualquer crivo. A culpa que carrego não é minha; É ancestral! Vem desde antigamente Pesando, inexorável, pela mente. Do que me acusa uma hora tão sozinha? Agora é sentimento o pensamento; Agora sou sem ser por um momento... Betim - 05 03 2016

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DE CONLUIO Dois embusteiros -- cada um a seu modo -Juntos são uma pedra de tropeço... Têm revirado a vida alheia do avesso, No afã de se lograr mais um engodo. Um, só faz espalhar mentira a rodo; O outro, quase um estúpido confesso. Simulam toda sorte vã de apreço Já contra todo mundo e o mundo todo. Incautos são seus alvos prediletos, Sempre prontos a cair n'aquela lábia Que embroma gente tida como sábia... Decerto colecionam desafetos, Mas sabem já ficar de sobreaviso Contra a ilusão oculta em seu sorriso. Betim - 12 08 2016

DESAPEGO Une o inútil ao já desagradável Quem d'amor se ressente por perdê-lo. Se dorme, todo sonho é pesadelo, Pois sua amada não é mais amável. Não obstante, percebe inevitável O fim de tudo em meio ao seu desvelo: A trama desenvolve outro novelo Quando não se perdoa o imperdoável... Acaba e cada um vai para o seu lado, Tentando ter o peito sossegado Mesmo que sua mente não se minta. Porque toda a esperança que sofrera Pouco lhe serve quando não espera E sequer saiba mais o que lhe sinta. Betim - 27 01 2016

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DOCEMENTE À bela, desejo esse olhar que a veja Muito além da beleza que figura. Pois mais que espelho ou lente, a si procura Olhos que a querem onde quer que esteja. Entre ver e querer ter o que deseja, Há gentilezas feitas de ternura, Cujo carinho todo ardor apura, Para que, docemente, à pele seja. Sei que o medo não é bom conselheiro Mas tampouco embriaguez e excitação Fazem mais que iludir o coração. O que fica é de facto verdadeiro Face ao olhar que alimenta meu desejo... À bela, desejo esse olhar que a vejo. Betim - 18 01 2016

E A VIDA CONTINUA... Humanamente, entendo muito bem Essa fome de amor que nos motiva E mesmo a fé teimosa que mais viva Faz a vida para irmos mais além. Mas, por via de regra, o amor também, Tanto nos decepciona quanto priva, Passando da esperança intempestiva Para a angústia que logo sobrevém... E a vida continua... Bem ou mal. Menos bela talvez, mas em geral Mais verdadeira; mais honesta. Não temo estas tristezas reticentes... Que nos vêm, vez ou outra, tão presentes, Somente aceito ser o que nos resta. Betim - 23 09 2016

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É PORQUE É Costumava ser bom estar aqui... Olhar em volta e ver-te em quase tudo! Talvez porque estúpido me iludo Ou porque ignoro exacto o que te vi. É porque é -- pois tu quem estava ali! -Para me acontecer de quedar mudo Diante d'outra esperança que desnudo Desde que em meu peito a pressenti. Estava escrito ou coisa parecida D'eu encontrar algum sentido à vida, Que logo após não faz sentido algum... Sobremaneira aflito de partir, Vou me reacostumar a não sorrir, Mesmo porque não é nada incomum!... Betim – 28 02 2016

ÉCFRASE Era um silvo agudo entre alguma fresta, Que se ouvia do vento pela casa E ainda o gotejar que aos canos vaza Entremeando a modorra vã da sesta. Enquanto dormitava, suava a testa. Como os olhos ardessem quase em brasa, Tinha do pernilongo um zunir d'asa Varejando-me em roda a fazer festa. A mornidão da tarde pesa os membros Ao passo que o mormaço dos dezembros Parece me exaurir o corpo todo. Mas sonhava d'amor assim violento Que ao quadro que a vós-outros apresento De nenhum desconforto me incomodo. Betim - 25 01 2016

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EM GUERRA Sangue nos olhos fundos e vermelhos, Vêm prontos p'ra matar ou p'ra morrer. Armas em punho, lutam a estender Longe as suas coroas e evangelhos. São meninos ainda e já tão velhos Marcham indiferentes ao que vier, Repetindo-se mesmo já sem crer: -- "Antes morrer de pé a cair de joelhos!" A vida, essa aventura sem sentido, Lhes parece ora breve; ora excessiva, A caminhar somente rumo o olvido. Porém, mais goza aquele que se priva E mais perto da morte tem vivido... Em guerra, não importa quanto viva. Contagem - 09 08 2016

EM RESPOSTA Não. Não sou melhor; só não sou menor... Não tenho porque amar sem ser amado Nem porque odiar alguém que do meu lado Se foi sem ter me dado o seu amor. Olho para o alto; escuto algum motor: O céu amanheceu todo riscado D'aviões a jato e -- encanto d'encantado -Ora andorinhas vêm em derredor. Inobstante, isso nada já te diz, Visto que uma manhã assim feliz Passa como por ti o amor passou. Pois se aqui fora o céu está tão lindo, Mais me aborrece alguém 'inda dormindo A se esquecer quem fui e até quem sou... Betim - 26 06 2016

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EM TERRA DE CEGO Vez em quando aparece aqui um caolho, Dizendo ver melhor que todos juntos! Alardeia conhecer vastos assuntos, Enquanto arregala o único bom olho. Bem se dizia diante do restolho: “Tem boa-fé quem faz frutos com seus sumptos”... Mas se fez nosso rei... Desconjuntos Deixou-nos os trens feito trambolho. Quem tem olho e não vê, tal como nós, Torna-se escravo em sua própria terra Sem ver o outro levar quanto ela encerra. Quando nosso rei fez-se nosso algoz, Cercamo-lo a cegar seu olho bom E ser igual a nós, sem qualquer dom. Betim – 19 03 2016

EM VERSO E PROSA Trata-se de pegar toda a tristeza Para fazer da dor algo diverso: Pôr tamanha ilusão em prosa e verso, Demanda obscurecer a chama acesa... Demanda acontecer outra beleza Além das que me têm assim disperso. Ocorre-me expandir mais o Universo... Tão-só para manter a frase coesa. Porque isto é pôr a vida por escrito... Como quem oferece rosa e amor Incerto se os recebem com valor. Ocorre-me expandir mais o Infinito... Pôr tamanha ilusão em verso e prosa, Demanda anoitecer o amor e a rosa. Betim - 24 03 2016

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EMOLUMENTOS Passei o dia lendo velhas datas Em certidões, contratos, relatórios... Papéis e documentos de cartórios Recordado esperanças ora ingratas. Folha após folha, contam tão exatas Uma história de anos ilusórios. Resgato, entre notários e notórios, Factos sob as rubricas das erratas... Dando fé de quem fomos algum dia, Trazem-me essa irrefreável nostalgia Que me põe simplesmente desolado. Nas escrituras, tantos sentimentos... Já tudo pago mais emolumentos E no devido livro registrado. Betim - 11 08 2016

EMPÁFIA Há alguma ironia na bondade, Capaz de pôr a nu tanto egoísmo... Ainda que sorrindo com cinismo, Disfarçado de vã civilidade. Olha de cima toda novidade Ou finge não ver próximo outro abismo? Não importa! Atravessa o cataclismo Com a mesma habitual temeridade. A pedra de tropeço do mais sábio É a mesma em que cai o menos hábil Se, orgulhosos, não olham para o chão. Acto contínuo: Cair e levantar. Manter, ainda assim, altivo o olhar E após desconversar do tropicão... Belo Horizonte - 27 07 2016

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ENCANTADORA Porque aquela mulher soube dizer As mágicas palavras d'um feitiço. E tudo foi confuso depois d'isso, Como nada houvesse a se fazer... Mesmo que a paixão possa parecer Muitas das vezes quase um desserviço, Com tal felicidade eu a cobiço, Que não me nego ao risco de sofrer. Porque aquela mulher soube falar Algo que me tocasse o coração Já todo entregue a uma única emoção. Como não conseguisse me furtar A ouvir, jamais tão linda quanto agora, Sua voz simplesmente encantadora. Inhapim - 03 04 2016

ENSOLARADO Como se a céus abertos, seu sorriso Era um sol ardente em minhas faces. Tão bom!... Ainda lembro quão rapaces Meus olhos cobiçaram-na sem siso... E, desde então, estão de sobreaviso À espera que, postos os impasses, Não nos venham jamais mais desenlaces A me privar de quem tanto preciso. Enquanto em solidão me silencio, De noite sonho o sol brilhar de novo, Ainda que ao sereno sinta frio... Porém, ao amanhecer eu me renovo, Na esperança que os céus como confio Permitam ver o sol que n'ela trovo. Betim - 18 03 2016

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ENTRE QUATRO PAREDES Chegara porta adentro me beijando. Não me disse palavra. Mal sabia... Mas ela tinha em mente àquele dia Não mais que submeter-me ao seu comando. Tinha d'esses caprichos quando em quando, Onde ela se esmerava na ousadia Em me dar a indizível alegria De lhe gozar co'as unhas me cravando. Contra a parede, punha-me de costas Feliz de ver-me as carnes tão expostas Enquanto me tocava as coxas nuas. Sem parar, mordiscava a minha nuca... Vinda como amante linda e eunuca, Tinha-me todo entregue nas mãos suas. Betim - 22 09 2016

ERRO MEU Não foram as citadas alegrias Aquelas que me têm entorpecido. Ao contrário, não vem senão d'olvido Essa paz que senti faz alguns dias. Não qu'inda me arvorasse estripulias Em nosso teatro já d'um tempo ido... Apenas constatei, por atrevido, Um sopro de esperanças bem tardias Concedo até que pela minha idade Tal paz um interlúdio pareceu Entre cenas de extrema intensidade. No palco, a personagem se perdeu, Restando qu'eu dissesse de verdade -- "Desculpa te querer bem... Erro meu!" Betim - 20 03 2016

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ESPECULATIVO A quem serias tu capaz de amar? Um aplicado atleta das alcovas Ou o poeta que perscruta as luas novas? Escolhe o que te colhe a flor ao luar! Não seja o muito afoito em te tocar, Tampouco o valentão a sonhar sovas E mesmo o bem falante que diz trovas Já de cor e salteado em meu lugar. Escolhe o que te colhe a flor mais rubra E que jamais a noite por fim cubra De triste escuridão; de solidão. Ama quem te ama e a quem tu amarás Por te querer até nas horas más E que te entrega a mente e o coração... Betim - 22 01 2016

ESPICLONDRÍFICO Que significa "olhar de ratazana"? Talvez toda a avidez em uma imagem. Eu tento decifrar tua mensagem Mesmo que nada diga ou mesmo insana. Tem algo de profética e profana A expressão que te leio n'essa passagem, Embora desconheça na abordagem Que espírito d'olhar da rata emana. Escrito espiclondrífico este teu... Que d'entre absurdos máximos, penso eu, Criaste-me toda sorte de pavores. Nada sei censurar-te, todavia, Visto que na loucura haja alegria! Recebe-me os aplausos e os louvores. Betim - 01 02 2016

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ESTRADA REAL Seis cavalos fogosos atrelados À carruagem ligeira que atravessa Pelos confins do reino a toda pressa Por levar mil malotes bem selados. São animais velozes descansados A correr sempre com ordem expressa, Cruzando a imensidão da noite espessa Com uníssonos pés acelerados! A lanterna da luz que se carrega Tem, relativamente, à realidade D'algum observador, velocidade... Se verdade absoluta não se nega, Seja, pois, da luz; seja dos corcéis, O tempo-espaço vão d'estes tropéis! Betim - 09 04 2016

EU EM MIM Que saudade de apenas ser e estar! Ficar à toa olhando para tudo... Ouvir de cada som o grave e o agudo... Passar horas sem ver a hora passar. Tanta vontade!... Chego a imaginar: Contemplar o mundo no olhar mudo! Atravessar a insólita hora, contudo, E ir aonde a alegria me alcançar. Ter os olhos abertos para ver E mesmo a mente certa para ser Tudo aquilo que quer o coração. Ou ao menos só deixar o tempo fluir Na esperança de àquele instante fruir Livre na mais perfeita solidão. Betim - 29 01 2016

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EXPEDIÇÕES Convém redesenhar todos os mapas, Revisitando assim terras e mares. É preciso dispor os novos lugares De antigas ilhas, serras, baías, lapas... Carece calçar botas, vestir capas E pôr-se em marcha aonde tu ousares. Enquanto me permito novos ares, Eu sigo a tua trilha, mas me escapas! O mundo mudou tanto que sequer Já reconheço aonde ando ou ainda Que lugar vejo quando a estrada finda. Tudo por causa só d'uma mulher... Tu, que meu mundo mudas sem querer Ao deixares a Terra tão mais linda. Betim - 22 01 2016

FEMININA Saía correndo atrás de borboletas Nas tardes de indistintos fevereiros. O vestido estampado em jasmineiros E tranças presas com fitas violetas. Usava as suas luvas prediletas, Aquelas que a beijar, os cavalheiros Se inclinam com seus olhos sorrateiros Para se lhe apertar as mãos inquietas. As faces afogueadas, todavia, Ainda são as mesmas com que um dia Sorrira satisfeita aos bem-te-vis. Menina crescida, ela me surpreende Brincando de ser fada, gnomo, duende... Feliz por se saber sempre feliz. Betim – 15 03 2016

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FILIGRANAS Enquanto os fios d'ouro entrelaçados Se superpõem até compor a forma, O ourives o metal nobre transforma Em arte ao lhe enredar significados. Com volteios sobremodo delicados, Gavinhas de videira ali conforma, Abstraindo da Natura sua norma Por ver modelos na obra sublimados. O valor dado à tão fria matéria Não vem apenas d'essa longa féria De lavor a que o ourives se abandona. Tampouco d'aquele ouro claro e fino Antes porque já algo feminino, Como belo atavio à bela dona. Betim - 07 03 2016

FLORAÇÃO Dizes para arrancar tudo, porém, Como cortar na raiz se já deu flor? Erva daninha ou não, o meu amor Florescia viçoso em ti também. Julgar o amor tão mal não nos convém A despeito do belo e seu valor. Porque, quando tu flores; quando eu flor, Florir nos levaria mais além. O que quero, contudo, tu não queres... Serás qual prudentíssimas mulheres, Que sempre o amor em si cedo podaram? Aliás, eu me recuso a acreditar Que amores sejam flores a arrancar Dentro dos corações onde brotaram. Betim - 09 03 2016

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FOLHAS CADUCAS Os mulungus se vestem de vermelho Quando a mata alcatifa todo o chão: Desfolhadas, as árvores em vão Tentam me ocultar um trilho velho. Lá, zumbem o besouro e o escaravelho Enquanto eu atravesso em solidão As grotas ressequidas do sertão Aonde ao peito fui buscar conselho. As floradas sanguíneas, todavia, Sabem me convencer de que a alegria Resiste até ao seco mês de agosto. Assim meu coração sossega um pouco Ouvindo à passarada o canto rouco Para eu desatentar de meu desgosto. Betim - 15 08 2016

FORTALEZA Tal-qual a sentinela nas ameias, Eu conheço das noites tanto breu, Que ao andar na solidão não sou mais eu, Sim a névoa ao clarão das luas cheias. Longe, avistava os campos e as aldeias Que amo como se tudo fosse meu. Súbito a vida então me pareceu Igual uma ampulheta a encher de areias... Senti tanta ternura d'essa gente, Cuja existência feito grãos escorre Enquanto o mundo apenas segue em frente. Talvez visse a ir-e-vir ao pé da torre, Contemplando as estrelas, de repente, Outra nova a brilhar por um que morre. Betim - 22 06 2016

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GARATUJAS Minha escrita, estas mal traçadas linhas... Insisto em escrever para o outro ler, Sem eu saber sequer quem possa ser Ou mesmo se aprecia as trovas minhas. Escrevo, embora estúpidos poeminhas Que a boa gente entende de não ver Senão como um excêntrico afazer De pessoas ociosas ou mesquinhas. Com estes, solidário, eu me irmano Sem questionar se sou pior ou melhor, Tampouco se nas rimas há engano. Quem sou para julgar alheio lavor? Tão-só sigo a espalhar-me as garatujas Por já trazer das tintas as mãos sujas. Betim - 30 01 2016

GATA ANGORÁ Talvez tamborilasse uma angorá Enquanto o sol ardia no telhado... Imagino-a correr de lado a lado, Mas sem saber de vera onde ela está. Eu a escuto ora aqui; ora acolá, Grunhir estranha e aflita o seu estado. E ainda qu'eu me veja preocupado, Aguardo tudo até ver no que dá. Parece enfim que a gata se incomoda Depois de circular a tarde toda Bem leve e solta lá pela cumeeira. Não tem jeito: Vou ter de pôr a escada!... Só assim p'ra findar sua jornada E resgatar a gata aventureira... Betim - 07 12 2016

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GLOSSOLALIA Ainda qu'eu falasse a língua d'anjos, Santos, beatos e afins... -- E eu não a falo! -Quando fingem que falam, eu me calo, Embora lhes respeite os maus arranjos... Porque cantam e grunhem feito arcanjos A confrontar a Besta: Envoltos d'halo! E aqueles que não cantam, vão no embalo N'um grande caos de vozes, violas, banjos... Experiência da força da oração, Leva homens e mulheres a abstração De se falar com Deus sem dizer nada. Pois creem que dão suspiros inefáveis Enquanto as falas soam indecifráveis Por toda e qualquer graça desejada. Betim - 03 09 2016

INCONSCIENTE Talvez ligasse o rádio a ensurdecer A voz que vem de dentro e que me diz Qu'eu, apesar de tudo, sou feliz Quando deixo, abismado, até de ser. E esqueço quanto afora possa haver... Ou me abandono em tudo o que já fiz... Meu coração decerto é outro país Aonde ninguém vai sem se perder. Tomo já por alheias minhas memórias, Enquanto as revisito nas histórias Que conto sem saber o que é ficção. Verdade, tão-somente meus intentos Na esteira d'estes tantos sentimentos Que há, sem quê nem p'ra quê, no coração. Betim - 05 07 2016

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JARDIM FECHADO Amor oferecido se enjeitado Se torna estranha forma de vazio... Súbito o que reluz se faz sombrio Feito um dia de sol logo nublado. Quando o espírito queda amargurado E o carinho no peito jaz tardio, As horas ao passar me trazem frio Tão-só por não estar mais ao seu lado. Ela se foi... Levou-me o seu calor, Mais a beleza oculta de meus olhos N'algum jardim fechado ora a ferrolhos. Longe, eu lhe rememoro linda flor Mas me pergunto se tem de ser assim, Se não, por que rejeita o amor em mim? Betim - 01 04 2016

LEGADO Era a felicidade das pequenas; Das poucas alegrias d'esta vida, Face à esperança já desiludida Do cativo à dureza das cadenas: Outra luz, de manhã... Horas amenas Em que o olhar vê a flor adormecida Abrir-se, lentamente, na acolhida Que faziam aos nautas as sirenas. É assim que desejo ser lembrado, Quando todo o passado houver passado E esteja sem presente nem futuro. Não mais que alguma vaga e vã memória, Que me guarda da vida toda a história Por reviver n'aquilo em que perduro. Betim - 10 02 2016

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LUAR ENCOBERTO Quando a lua, apesar do céu nublado, Teima em atravessar quanto lhe esconde Há-que se procurar sem saber onde Um verso com que a poete entusiasmado! Olho-a e me parece um sol apagado Na seda do céu níveo até que sonde, Toda a atmosfera por chegar aonde Meu olhar a observasse apaziguado. Logo o sereno sobre a folha orvalha A humedecer com gotas cristalinas Até quando escorrerem pela galha. E esse luar encoberto nas retinas Em nocturna fragrância se espalha Por velar suave o sono das meninas. Betim – 22 02 2016

MADURO Saúdo a madrugada agradecido Por, enfim, compreender em plenitude O quanto a gente mal se desilude Quando ama o que podia se ter sido. Considero amplamente qual sentido Eu extraí do amor enquanto pude E chego a vislumbrar na solitude Os equívocos qu'eu tenho vivido. Assim, sei me perdoar por isso tudo Que já me fiz sofrer sem que, contudo, Lograsse qualquer bem senão viver. E perscruto confiante a escuridão Certo de alimentar meu coração Apenas com verdade e bem querer. Betim - 25 01 2016

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MAL-ENTENDIDOS Por fim, já reduz tudo a outro engano E não a incompatíveis e maus gênios, Que apresentamos por tantos proscênios Até baixarem ao palco escuro pano. Pretende a infeliz ser algo humano Arrastar-me a seus pés pelos milênios, Celebrando-nos bodas, mas de arsênios Sob alguma outra luz d'amor insano. Sim, eu parto e ela observa-me partir... Sem qualquer emoção senão o medo Que desde sempre tinha do porvir. O equívoco profundo fomos nós, Não a fala maldosa vinda após Na esperança de ter-me tolo e ledo. Betim - 21 01 2016

MANGUEIRAL Lá das tardes da infância, em qu'eu me lembro, Havia sempre um bosque de mangueiras Onde frutas a rolar pelas ladeiras Maduras nos mormaços de dezembro... Um a um ainda os cachos eu desmembro Nas sombras de memórias costumeiras. Enquanto as verdades verdadeiras Secam em meio às flores de setembro: Hoje, a paisagem surge ressequida Bem diante dos meus olhos desolados, De volta a estes sertões antepassados. Já sem os pés de manga, jaz sem vida Aquele só grotão onde ladino À sombra das mangueiras fui menino. Sobrália - 10 09 2016

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MAUS MODOS Se mal disfarço o quanto me incomodas, É porque estou cansado de verdade. Às favas tu com tua urbanidade! Pois que a usas a irritar-me as vezes todas. Não cumprimento mesmo; fujo a bodas. Omito e minto sem necessidade. Espalho lixo às ruas da cidade, Quando não alguns boatos pelas rodas... Sim, tenho desprezado as convenções Já incerto se em certas ocasiões Isto é problema meu ou de quem quer. O facto é qu’eu somente finjo menos Que tu com teus discursos tão amenos, Por tudo falar p'ra nada dizer. Betim – 28 03 2016

MINAS Trago em mim o perfil de muitas serras Gravados no lampejo das retinas. N'um piscar de olhos, topos e ravinas Me projetam as linhas d'estas terras. Muito longe, aboiam bois, vacas, bezerras... O ocaso em luz e sombra nas campinas Se ondula sobre as curvas das colinas Trazendo paz às minhas tantas guerras. Pelas cumeadas, nuvens a enevoar Fazem solene ver pela distância A solidão silente do lugar. Sorrio, como exige a circunstância, E deixo a imensidão me reencontrar A terra que me cerca desde a infância. Caeté - 17 07 2016

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MINEIRÍSSIMO O belo-horizontino -- esse sujeito Cercado igual boi por curral de serra -Vive, cosmopolita, paz e guerra Em meio ao mar de morros mais perfeito. Nas alturas se debruça ao parapeito D'edifícios que ao abismo mais se aferra. Para avistar nos longes d'esta terra Os sertões por onde anda satisfeito. Livre, porque mais ampla a sua vista Ou senão por mais árdua esta conquista De quem vem do interior para o interior. O belo-horizontino -- esse ignorado... Bem sabe que o que é seu está guardado Nos versos que cultiva com amor. Belo Horizonte - 30 06 2016 MOAIS Gigantes monolíticos habitam A ilha quase deserta já de gente. Não há árvores sob o sol ardente Tampouco coqueirais à praia se agitam. As cabeças tombadas explicitam Uma fé ou alguma ordem pré-existente. Os povos que os fizeram, simplesmente, Vivendo em meio a deuses se acreditam. A terra desolada, todavia, Muito pouco abençoada parecia Àqueles que chegaram bem depois. E crentes que eles eram, só tombaram Uma a uma as estátuas que encontraram Mal enchendo toda a ilha só de bois... Betim - 27 10 2016

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MUIRAQUITÃ Carrego presa ao peito uma pedrinha Que por bela cunhã me fora dada. Ela mesma que a fez, lisa e esverdeada, Para eu nunca me esquecer de que ela é minha. Hoje, sobre igapós ela caminha Feliz em se saber por mim lembrada. Embora eu ande longe, engravidada, Sorri porque não mais está sozinha. Carrega preso ao ventre um curumim Que após lides d'amor eu lhe deixei Como o melhor que tenho dentro em mim. Por isso essa pedrinha ela me deu, Em troca do menino qu'eu lhe dei: Para eu nunca me esquecer de que sou seu. Betim - 05 09 2016

NADA RAZOÁVEL Quando elencas razões para não amar, Buscas justificar tua injustiça. Assim o próprio amor se desperdiça Em meio a más desculpas sem lugar. Vãos motivos repetes a ocultar Tua verdadeira e única premissa: Sem amor, a vontade é insubmissa; Sabe tão-só carinho ao outro negar. O facto é que não amas. Nunca amaste. Quem ama bem supera, temerário, Toda e qualquer razão posta em contrário. Quem não, por outro lado, que se arraste Tendo o outro como carga vida afora, Se junto e sem amar seu mal ignora. Inhapim - 12 06 2016

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NAS ALGIBEIRAS Tinha consigo apenas duas moedas Mais sua caderneta para notas E, decerto, uma pena e um conta-gotas Para suas más vistas pôr mais ledas. Andando saudosíssimas veredas, Revisita à cidade a alegres rotas Sem que saiba porquê... A gastar botas Sob tão róseas floradas d'alamedas. Senta-se n'um café, pede um pingado... Que após toma co'o gosto da lembrança D'aquele que tomava quando criança. E sorri... Igual parvo ou retardado, Tendo a si, pois, bem diante do nariz, Com duas moedas ser quase feliz. Belo Horizonte - 02 01 2016

NAS LINHAS DAS MÃOS Minha linha da vida se abre em duas Tanto no seu início quanto ao fim. Talvez quisesse Deus mangar de mim N'algum destino escrito há muitas luas. Quis Deus qu'eu caminhasse pelas ruas Com medo de que o amor me volte, enfim. Porque apenas quem vem lá d'onde vim Sabe o que me guarda as palmas nuas... Eu ser duas pessoas no começo Moldou o modo como reconheço A ambiguidade toda que há em tudo. Assim, de novo duplo no final Haverei-de viver o bem e o mal, Quando todo mistério for desnudo. Betim - 15 08 2016

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NO FIO DA MEADA Sabei: O tempo é curto e a vida é breve. O dia de amanhã não é ainda... Se não se atenta, a estrada logo finda E d'esta p'ra melhor a terra é leve. Se a sorte só sorri a quem se atreve, Encontro-me onde a verve for mais linda! A taça da vitória alguém me brinda... Com olhos de angorá, pele de neve... Eu amo estas auroras silenciosas Nas quais toda existência se me apruma Tijolo após tijolo a versiprosas... Não me seja a esperança mais que alguma Linha que me orienta a alvenaria Em paredes de sonho e de poesia. Betim -18 10 2016

NOME AO BOI Alguma das reses do rebanho, Arisca, desgarrou de madrugada; Passou pela cerca, andou na estrada E abalou pelas várzeas sem tamanho. Encontrá-la era ter o dia ganho: A comitiva fez ali pousada Para que a dois vaqueiros fosse dada A chance de torná-la com amanho. Eles foram; seguiram os seus rastros E ao toparem co'o boi preso n'um brejo Varejaram-no ao modo sertanejo. Retornaram se guiando pelos astros E então deram, contando como foi, Nome de "Sete-estrelo" àquele boi. Betim - 26 03 2016

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NOVEMBRADAS Não sei se alguém está contando os dias, Só sei que mês que vem fará um ano... O tempo passa sempre soberano E indistinto a tristezas ou alegrias. Dez anos se passaram nas sombrias Horas em que nós -- não sem perda e dano -Vivemos plenos esse encontro humano Que uns chamam amor; outros, agonias... Novembros têm sido aqueles meses Nos quais por repetidas-mas-vãs vezes Acontecem chegadas e partidas. Hoje, a questão sequer é ser feliz, Sim ir aonde aponta ora o nariz: Tão-somente seguirmos nossas vidas. Betim - 02 10 2016

O AVIADOR Contra o vento me inclino feito avião Co'os braços esticados para trás... O ar passa e seu arrasto bem me faz Alçar voo sem tirar os pés do chão. Brinquedo de menino grande ou não, Cuja imaginação me impele, audaz, Às alterosas serras onde jaz Um Sabarabuçu d'ouro e ilusão. Ventania de julho na invernada, Quando o topo da serra neblinada S'esconde recoberta d'alvas névoas. Tornam-me, em devaneio, um aviador As nuvens a baixar em meu favor, Junto da passarada e suas révoas. Belo Horizonte - 02 07 2016

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O BOMBISTA Quantas virgens terei nos céus de Alá? O mundo segue com seus males caóticos... Versos recito em transes quase hipnóticos No aguardo de explodir tudo quanto há. Se a guerra é santa ou não, quem lh'o dirá? Fanáticos proféticos despóticos!... Tornem bons mulçumanos uns psicóticos E, por detonação, mártires já. Deus é grande! Só Ele conhece o crente. Sua a vontade: Seja eu, indiferente Máquina matadora dos infiéis! Outro banho de sangue tudo irmana E a manchete do capa não engana: Terror em aeroportos, trens e hotéis. Belo Horizonte - 23 03 2016

O CANGACEIRO Égua branca com sela de bom couro E, em jaez de bronze, o signo-salomão! Vai a galope sem temor senão De topar com tocaia em varadouro. Tem estribo de prata; dente de ouro. Usa arreio trançado mais gibão. Avança na caatinga, corre chão... Por se deixar um nome duradouro. Traz a repetição já municiada Pronta para em qualquer encruzilhada Trocar com a volante muitos tiros. E depois abalar pelos abismos Perfumado co'os óleos dos batismos, A lhe fechar o corpo de suspiros. Betim - 22 03 2016

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O DRAMATURGO Aquele que faz d'ouro quanto toca Entende a vida mais interessante Sobre palco onde o público se encante De escutar o que sai de sua boca. Mesmo que tão-só bolha de ar oca, A Fama que persegue, não obstante, Como a Fortuna é dama inconstante E que, via de regra, se equivoca... Apesar d'isso, vive a cortejá-las Quando põe sua voz em certas falas, Que lograva escrever para terceiros. Quem entre tantas glórias e vaidades Soube se simular humanidades Ou, por mentir, sentidos verdadeiros. Betim - 23 03 2016

O ESPÓLIO Adentro o amplo vestíbulo: Lençóis Guardavam a mobília do pó de anos. Eu transito entre as tralhas e os enganos Dos que partiram já há muitos sóis. Na biblioteca, a ver bustos d'heróis, Livros de poetas, mapas eurasianos... E, sobre a escrivaninha, antigos planos De unificar os reinos espanhóis!... Reparo ali baús cheios de papéis Manuscritos com febre... Que uns pincéis Faziam parecer montes de lixo. Vou lendo sem saber que seja aquilo, Passando o entardecer só e tranquilo Em face d'um tesouro ou d'um capricho... Betim - 13 03 2016

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O QUINGENTÉSIMO Feito afinal o cômputo devido De quanto sonetara inopinado, Cheguei ao provisório e atrapalhado Número que confronto contra o olvido. Registro, por agora conhecido, Cinco centos de inútil palavreado Com que teria, insólito, rimado Quatorze versos cada sem sentido. Sem sentido senão de me entender A exacta imensidão dos sentimentos Ao que o mundo se deixa perceber. Ou serão expressão de sós momentos À sensibilidade de quem ler? Sim, mas isso são já outros quinhentos... Contagem - 06 01 2016

O REGALO Não te oferto jóias d’ouro reluzente, Que te acorrentarão, duras, corpo e alma. Tampouco alguma alfaia te trago à palma Para dar, apressado, de presente... Desejo oferecer-te tão-somente, Que me leias estes versos com voz calma E não te afastes mais, embora o trauma De na vida a alegria ver ausente. Não mais que te arrancar outro sorriso E ver sim teu olhar a mim tão lindo, Mais precioso que jóias, mais reluzindo. Não se compra o que não está à venda Nem se adquire com ouro o paraíso... Aceita, minha linda, a humilde prenda. Betim - 04 01 2016

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O VEXAME Não ter amor próprio é próprio do amor, Porque quem ama tem, não raro, em mente Mais confusões que luzes, simplesmente, Se busca em nua pele algum calor. Sem noção quem se diz um amador E, inobstante, calando-se consente... Arrasta-se ilusões mais para frente, Quando o que mais tolera é dissabor. Públicos, seus pecados e misérias, Ora à boca miúda entre pilhérias Escuta-se com grande alvoroço. De cabeça baixa passa e sequer olha. Mal esconde que às suas faces molha Enfim a última lágrima de moço. Betim - 19 06 2016

ORAÇÃO O que peço não ouso repetir Sob pena de tal graça aos olhos meus Seja devida aos homens, não a Deus... E a eles só agradeça no porvir. Peço a Ele que não deixe de seguir A abençoar todo dia os dias teus Com a vida que têm crentes e ateus E todas as criaturas ao existir. Por tua vida! E vida em abundância!... Aquela que sonhamos nós na infância Ou com sorte lembramos na velhice. Essa esperança feita de alegria Que tem sido a oração de cada dia Na fé que tão-somente Deus ouvisse. Betim - 03 02 2016

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PALAVREADO Não me ponhas palavras pela boca, Sem antes eu as ter no coração! Tudo o que escrevo, com ou sem razão, Eu senti... Mesmo quando em vão te choca. Tem palavra que sempre me provoca O afã de reviver uma emoção. Outra, reluz em mim feito clarão Tal a beleza qu'ela em si evoca. Por isso tento ornar o palavreado, Crente que na poesia cada termo Me pareça a seu modo destacado. Já nem reparo mais se velho e enfermo Escrevo em linhas tortas o meu Fado... Garimpo-me palavras n'algum ermo. Ibirité - 27 11 2016

PENA D'ÁGUA Um filete brilhando ao sol qual prata... A água da mina sua em pedra fria E desce à minha casa, noite e dia: Herdade dando fé lavrada em ata! Nascente ao pé da serra; d'alta mata, Ao vir canalizada até a pia Traz-me beijos de ninfa... Amor!... Poesia, Que o nó pela garganta me desata. Mas, lava-me corpo e alma, generosa, Quando me apraz a ponto de trazer De volta a fé na vida ao apenas ser. Sê-me refrigério, água dadivosa, Ao levar minhas lágrimas p'la rua, Até me deixar limpa a pele nua. Betim - 02 08 2016

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PEQUENINA Nem terminantemente lhe proibindo, Aquela zinha nunca dava ouvidos... Um espírito livre, de olhos sabidos, Cujo atrevimento era rude e lindo. Acostumada a estar sempre sorrindo, Divertia-se com mal-entendidos. Pois, de todos os modos conhecidos, Tornava a novidade algo bem-vindo. Ardia feito brasa espevitada Enquanto conduzia pela estrada Em rancho as raparigas do lugar. Como se não soubesse de tristezas, Das criaturas de Deus mais indefesas Fora a que ninguém pôde controlar. Inhapim - 02 04 2016

PERDIGOTOS Com uma fala tensa vocifera, Salpicando saliva sobre a audiência E mais factos que turvam a consciência D'aquela gente besta e rastaquera. Estes, nervosos, riem... Como se à espera D'um confrontante a opor-lhe com prudência Capaz de lhes sanar tanta violência Do que acusa com fúria feito fera. Mas, não!... Ele não para de berrar. Tem sua cólera a ira dos profetas, Que desmascara todos do lugar! Deixou n'aquele palco obras completas, Na ânsia de tudo e todos  transtornar Por força de palavras e caretas. Betim - 16 02 2016

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RICARDO CUNHA COSTA

PILHEIRA Não se usa rir d'aquilo que a outro fere, Mesmo que seja tudo brincadeira. Pois ferir para rir faz verdadeira A dor que à perversão melhor sugere. Ter gosto de pôr pilha em quem se altere Tão-só por assistir-lhe a quebradeira Ou, inopinado, expor sua caveira É a graça que o estúpido prefere. Outra pilheira n'outro abestalhado: Veem-no igual besta-fera dar seus urros E a tudo hostilizar com chutes, murros... Passa em definitivo como o errado, Enquanto no seu canto sorri mudo O vero causador d'aquilo tudo! Betim - 27 02 2016

PIROTECNIA Tantos fogos por sobre a escuridão Parecem nos querer iluminar. Embora a noite ainda esteja ao olhar E longe de findar a solidão. São muitos brilhos! Luz na imensidão A esperança em cada vão pipocar. Estouros ora por todo lugar Fazem-me do fugaz uma oração. Peço, mesmo sem crer, por minha vida! Na certeza de tê-la engrandecida Tão-só pela beleza d'estes fogos. E os mesmos céus, que tão bonitos vi, Possam escutar quanto ofereci, Sob colorida luz, humildes rogos. Betim - 01 01 2016

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POR FINDAR Seria bem mais fácil se uma placa Sinalizasse o início e o fim de tudo. Seria... Mas não é! Já não me iludo Quando a vida, inobstante e enfim, estaca. Vou me acostumando a outra idéia fraca Além d'aquelas vãs com que me escudo Das mazelas mesquinhas... Sobretudo, As do amor que vez ou outra ao peito ataca. Seria bem mais fácil se algum mapa Mostrasse aonde devo ir quando o mundo Mostra ser um deserto amplo e infecundo. Melhor parar e pôr a cara à tapa Ou admitir que fracasso, mas de pé. Seria bem mais fácil... Mas não é! Betim - 29 03 2016

POR SOB O SOBRETUDO Sai dos pés à cabeça bem coberta Entre veludos, lãs, couros e zuartes. Digna, esconde miséria com tais artes, Embora no sorriso haja uma oferta... Pela rua, ela logo me desperta Ao ver-lhe os olhos, claros estandartes! Por sob o sobretudo, as suas partes Traz nuas à excitante descoberta: Andou toda a cidade normalmente, Enquanto se lhe ardia pela mente A nua pele ao toque do tecido. Mas, ainda em seu gozo sorridente, Cumprimentei-a, quase comovido, Em face d'um prazer despercebido!... Contagem - 02 09 2016

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PROVOCATIVO Graças a Deus, eu nunca careci Da tua opinião, fosse má ou boa, Para me definir como pessoa E ser quem possa ser agora-aqui. Bem haja este lugar longe de ti, Onde não mais de mim eu me condoa! Cuido tão-só d'estar, em vão e à toa, Entre os prazeres qu'eu me permiti. Inobstante -- ora impróprio; ora impropício -Tenhas te acostumando desde o início A vir do bate-papo ao bate-boca... Não que tudo isso ainda me surpreenda, Até porque que a ideia, mesmo que lenda, O quanto mais honesta, mais provoca. Betim - 17 04 2016

QUARENTA Cumprir anos é melhor que não cumprir. E hoje os meus, bem ou mal, contam quarenta... Enfim, é quando tanto se comenta Que o bom da vida ainda está por vir. No entanto, há mais passado que porvir, Qualquer que seja o sol que se apresenta. Por isso uma palavra rabugenta, Vez ou outra eu deixo escapulir. Se não tenho ilusões, males tampouco. Não que já das pessoas faça pouco Ou mais contradições suas ignore. Tão-só estou feliz comigo mesmo, Embora enmimesmado caminhe a esmo Sem que à esfinge decifre ou me devore. Betim - 01 05 2016

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QUARTA DE CINZAS A quaresmeira explode em roxo e luto Enquanto mais foliões dormem ao sol. Caem a serpentinar em caracol Fitas rosas ao vento dissoluto... Observava em silêncio e me computo Um fim de festa feito peixe ao anzol: Se sim, morro da fome algo d'escol; Se não, vivo a nadar no nada, arguto. Resta observar que a vida continua, Apesar dos excessos e misérias, A confrontar com coisas tão mais sérias. Mas nada mais crescente por sob lua. Afinal, eu sou pó que volta ao pó Na cinza recebida ao olhar tão só. Betim - 09 02 2016

RAMALHETE As rosas murcham logo. Espinhos, não. Quedam a ressecar e, após, ferir! Devem ter-se razão lá d'existir, Mas ficam a espetar, presos à mão... Assim também o amor ao coração: Espeta sem saber quase o partir. Houvesse de o rasgar e ainda o abrir, Menos mal causaria que a ilusão! Todavia, é o amor que me acelera O sangue que me corre pelas veias E me traz de novo ess'outra quimera. Pois farto de verdades já às meias, Anuncia ora a vera primavera N'estas vermelhas rosas que me anseias. Betim - 01 01 2016

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RECOMEÇOS Embora muitos chamem de progresso Seguir em frente em busca d'algo novo, Não necessariamente eu me renovo Quando a vida me vira pelo avesso. Não. Isto não é mais que o recomeço N'outra estrada por onde ora me movo Co'os sabores exóticos que provo E os amores caóticos que esqueço... O novo é o insabido tão-somente... Ele não é melhor; é diferente. Ou muitas vezes é tudo o que resta. Contudo, um dia o novo fica velho E o novo novo vem logo parelho N'uma desilusão semelhante a esta. Betim - 13 08 2016

REENCONTRO Se ela provavelmente tem razão, Não significa qu'eu esteja errado... O tempo que tivemos lado a lado Talvez nos mereça outra conclusão!... Traga ela para mim sua emoção E venha conhecer melhor meu fado; Ou não: Fale para eu ficar calado Para me acelerar o coração... Diga as coisas que tem p'ra me dizer E me machuque um pouco sem querer Co'as verdades qu'eu tenho-de escutar. Mas me acolha depois em um abraço Para enfim repousar em seu regaço Onde toda a ternura tem lugar. Betim - 02 03 2016

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RESTOS Quando amar já não é mais o bastante, Tudo o que se tem é -- seguindo a estrada -Menos que pouco e pouco mais que nada... E tão-só me resta é tocar adiante... Feliz? Nem lá nem cá... Eu, n'este instante, Faço estudadamente a escolha errada, Visto que a outra me leva à deslumbrada Travessia aonde eu andei errante. De mais a mais, não trago senão restos... Nada mais posso dar além de gestos E o calor que possuo em minhas mãos. Pois, sim! Estão vazias... Que tenho eu? Senão a mim!... O mais se me perdeu. E tão-só me resta estes versos vãos... Belo Horizonte – 18 05 2016

RIO URBANO O rio que atravessa uma cidade Leva dos citadinos os seus suores. Lava, assim, desde os maiores aos menores, As mãos com indistinta humildade. Admirável, de facto, essa igualdade Para servir a todos, mesmo os piores. Visto as águas servidas sem pudores O tornarem imunda realidade. Às margens, altos muros de concreto Tolhem os seus meandros n’algo reto, Seguindo às linhas vãs das avenidas. Tão cheio de humanidade, o rio corre. E embora nutra e sirva a tantas vidas, Justo por estas vidas que ele morre. Betim - 20 05 2016

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ROÇAS Se as cinzas das matas fertilizam As touceiras gentis do mandiocal É porque antes aqui veio afinal Alguém onde meus pés agora pisam. As folhas verde-claras sinalizam Inequívocas roças e um jirau, Onde fui logo pôr meu embornal Mais as tralhas das trilhas que isam. Eu fiz um rancho ali de pau a pique Barreado e rebocado em tabatinga, Por cobrir de sapê que seco estique. E, no mais, vou pondo água na moringa... Não importando o tempo que ali fique, Tenho a colheita alheia que no chão vinga! Betim – 25 02 2016

SAMARCANDA -- "Caravaneiro ao tráfico da seda Carregado de sonhos d'Oeste oriundos, Que vens à encruzilhada de dois mundos, Aonde tanta gente se envereda?" "Acaso óleos d'aquela terra leda De olivais excelentes e fecundos? Ou trazes desde os poços mais profundos Cobres por ladrilhar nossa alameda!? "Revestidos de lazúli, ouro e jade Os ricos edifícios da cidade Testemunham a glória d'estes prados." "E tu, caravaneiro, o que nos levas Além das sedas por luas longevas Nos extremos caminhos palmilhados?..." Betim - 27 01 2016

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SARAU DE SARZEDO Poemas são esticados no varal Para nos revelar os instantâneos D'alguns olhares tão contemporâneos, De artistas cá reunidos p'ro sarau. Sentados sobre a guia ou no degrau, Todos ora acompanham espontâneos Àqueles versos quase momentâneos Fora dos livros, livres, afinal! Sem a quarta parede imaginária Pelos palcos dos teatros a impedir As intervenções d’uma plateia vária, Podiam ver-e-ouvir tudo ao redor... Pois se faz entender quem faz sorrir, De modo que o saber tenha sabor. Sarzedo – 20 03 2016

SENÕES Foi d’um dia para o outro: Não quis mais... Termina por pontuar suas razões, Falando cheia de boas intenções Ou -- porque não dizer? -- excepcionais!... Mas penso qu’eu a entenda até demais Em face dos insólitos senões, Que têm nos aturdido os corações A ponto de não ver outros sinais. Fácil decidir quando quase tudo Se decide só pelas circunstâncias A fim-de nos poupar de quaisquer ânsias! Pois venturas d'amor são, sobretudo, Aquelas que sonhamos sem vivê-las, Ainda que em histórias menos belas... Betim – 01 03 2016

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SERRANIA Pelos verdes recantos da serra alta, Descortino as distâncias onde montes, A neblinar de branco os horizontes, Fazem fria a manhã que aos olhos salta. Caminho onde a saudade encontra a falta. Mas, ao levantar muros, tombo pontes... Aguardo até que o sol pouse nas frontes E leve a névoa em roda d'alma incauta. Ocorre-me requentar o pão dormido, E coar um café preto bem mais forte A ver na borra escura alguma sorte. À caneca esmaltada, enternecido, Ao sorver-lhe a bebida fumegante, Dissipo em fumarolas este instante... Itatiaiuçu - 05 06 2016

SILÊNCIOS Não tenho olhos senão para os teus olhos... Acredita-me, embora antigos medos: Nossa história e seus tantos desenredos Parecem conduzir-me sempre a escolhos... Porém, como se espreitasse por ferrolhos, Espio tolamente os vãos segredos, Que guardas co'as lembranças de anos ledos Abandonados entre outros trambolhos. Ou não... Silêncios só silêncios são! Interpretá-los é, na escuridão, Conseguir ver até o que se esconde. Nada tem a dizer quem nada diz... Eu só posso supor que estás feliz, Buscando um lugar sem saberes onde. Betim - 04 12 2016

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SOL D’ESTIO É lindo quando o céu se abre à tarde Após dias de chuva ininterrupta. Parece uma alegria quase abrupta D'esse sol que, a dourar nuvens, luz e arde. Quiçá uma beleza assim atarde Àquela solidão que vem inupta. Tal como a fala estúpida e incorrupta, Que se vê na coragem do covarde. Ou ainda possa ter que d'esta hora Se faça etérea e lúcida experiência Quando a Natura em cores comemora. Incline-se, por fim, em reverência Minh'alma emocionada, muito embora Acompanhe eu d'um rei a decadência. Betim - 16 12 2016

SORRISOS Ainda que te tenham ensinado A sorrir apesar de quase tudo, Lembra que n'um sorriso te desnudo Quando se de alegria ou se de enfado. Não careces comigo tal cuidado, Certa de que ao sorrires não me iludo... Tampouco me repares se tão mudo Diante de teu sorriso iluminado. É porque às vezes sorrio para dentro Mesmo que o coração esteja em festa, Se os olhos, de alegria, em ti concentro. Mal disfarço, porém, franzindo a testa, Que estou feliz em ver-te tão feliz, Pois, tudo é mais bonito, se sorris. Betim - 26 01 2016

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TARDIO Não tarde o fim de tarde sem porquê Ora que entre as estradas me perdi... No mais, cigarras chiando alto por aí E vinte e tantas aves voando em vê! Da mata me espia um caxinguelê Mais miquinhos e, perto, algum quati. Tinha hora p'ra chegar... Não consegui: -- "Aquele sítio onde é que está? Cadê?!" Era um caminho alegre, todavia, Pelo qual caminhava já sem pressa Enquanto declinava a luz do dia. Vazava o sol por entre a mata espessa Sobre um caminho qu'eu desconhecia, Onde chegar já nem mais me interessa. Juatuba - 08 10 2016

TEATRAL Era historieta à espera de escritor Ou um monólogo em busca de proscênio? Ao fim rompem palmas. Berram: --"Gênio!" Em meio a comentários de estupor. Têm diante de si não o actual louvor, Sim as misérias do último decênio: Dos olhos rolam lágrimas d'arsênio Sobre o mais cadavérico palor... A plateia que então ávida lhe exalta Não ignora que deixa ele na ribalta Tanto o melhor e o pior que tem de si. Talvez por isso céleres as palmas, Certo que hão-de guardar em suas almas O olhar d'um miserável que sorri. Betim – 07 06 2016

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TÉRMINO Eu não te odeio por não me amares mais. Talvez me odeie por não mais ser amado... Mas já não culpo a ti, antes o fado Ouso ainda indagar d'estes meus ais! Pois, mesmo qu'eu pudesse, a ti jamais Conseguiria odiar, embora errado Ao ter meu coração espedaçado, Repetindo promessas tão irreais... E tu não me amas... Sim, eu sei: Eu sinto... Se tanto me iludi, é que me minto Na esperança que ao meu lado me amasses. Mas foi em vão: O amor passou por nós... Ficamos, lado a lado, assim tão sós, Em ensaio d'hesitantes desenlaces... Betim - 06 01 2016

TESOURO DA JUVENTUDE Os versos que escrevi quando mais moço Releio agora um tanto comovido. Confuso é lembrar quem soube eu ter sido Sem me chocar o máximo que posso... Havia dentro em mim muito alvoroço Diante de cada verso revivido, Por trazê-los de volta desde o olvido Como se jóias no fundo d'algum poço. Memórias imprecisas-mas-preciosas, -- Pois, mais que importantíssimos eventos Contêm a descrição de sentimentos -São, literariamente, pretensiosas... Muito embora aos meus olhos valham ouro. As obras juvenis d'esse tesouro. Betim - 14 11 2016

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TREM DE FERRO Através das auroras neblinadas, Avança o trem de ferro sobre os trilhos. Longe, de bem-te-vis os estribilhos Escuto entre embaúbas desfolhadas. Onde veios nas rochas escavadas, Luzem d'itabiritos finos brilhos. Contorno a imensa cava... Dos caixilhos Do vagão, fundo avisto em cascalhadas... Os comboios carregados de minério Pouco a pouco nos movem as montanhas Alheias seja a louvor ou vitupério. Ao largo, serpenteiam penhas tamanhas, Como se centopeias d'aço e mistério Levando todo o chão desde as entranhas! Barão de Cocais - 20 07 2016

TRÊS BEIJINHOS Bela d'olhos a lápis desenhados E de lábios pintados a carmim... Qu'eu pude ver olhando para mim E pude olhar sem mais outros cuidados... Confesso, ante teus ombros desnudados, Que os beijar, extremoso, eu aqui vim. E se te acaso vens, ainda e enfim, Encontrar-me sabendo os maus pecados É porque vês a quanto o amor obriga, Mesmo que a vida diga-te o contrário E me ofereças a outra face amiga... Que seja! Beijarei por temerário Do contacto ao que tua pele abriga... Malgrado seu ardor quase incendiário. Betim - 02 01 2016

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TRÊS MARIAS Três meninas desceram lá do céu, Deixando três estrelas no lugar. Têm Maria no nome, amor no olhar E sorrisos mais doces do que o mel. São três anjos que por sob o dossel À mãe de Deus d'estrelas vêm coroar Enquanto cantam para a bem louvar Com pétalas de rosa e índigo véu. Mesmo que um dia venha as ver partir Agradeço por cada hora que tive No que a memória ainda me revive. Elas estarão sempre a me luzir N'essa constelação enfileirada, Que reconheço a cada madrugada. Betim - 08 02 2016

UNS PERRENGUES Foi quando eu decidi fazer caminho E fui, estrada afora, dar no mundo... No afã de conhecer-me, fui mais fundo, Sonho e memória pondo em torvelinho. Com muito pouco, quase que mesquinho A juntar meus vinténs de vagabundo, Tinha um gozo absoluto, sem-segundo, Sempre que ia seguir por aí sozinho. Sem ter para um café, sento-me à mesa; Pernoito em gares como se de trem Fosse ainda baldear e ir mais além... Dias de desconforto e de incerteza, Nos quais estive perto de mim mesmo Na liberdade plena de andar a esmo. Betim – 21 03 2016

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UTOPIA Deixa-me te levar para alguma ilha Aonde se possa ir sempre que a vida Se mostrar demasiado aborrecida Ou simplesmente já sem maravilha. Vamos aonde o sol ainda brilha! Enquanto a realidade por fim lida Co'as ondas da distância percorrida Em nosso navegar, milha após milha. Os teus olhos, espelho em que me miro, Vejam os mesmos luares que prefiro Às luzes mais feéricas da cidade. Contigo possa enfim compartilhar Toda a alegria d'um comum lugar Para habitar em ti felicidade. Betim - 24 01 2016

VAGA LEMBRANÇA Lembro-me muito mal de quando criança E tudo me parece em névoa envolto, Como se a infância fosse um fio solto Que no vento, perdido e baldo, dança. Era um menino triste na esperança De conter seu cabelo tão revolto Em redemoinho e em ondas que ora volto A ver em mim alguma semelhança. Todavia, quem fora eu já não sou E d'aquele menino o que restou É a vaga lembrança que disponho. Porque hoje d'ele pouco sei, senão Que sempre ensimesmado e em solidão Ia imerso na luz de cada sonho. Betim - 19 01 2016

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VENDE-SE Dos barbacãs do arrimo alguns filetes Minavam esverdeando a pedra escura, À vossa velha sede igual pintura Depois de ter chovido canivetes. Mais acima, elevavam-se ciprestes Por flanquear o caminho que se apura A uma vernacular arquitetura, Cujas ruínas vós bem conhecestes... Não tendes, com certeza, olhos enxutos A ver o que restara da fazenda Onde voltais a custo entre ais e lutos. E agora que ides, pondo-a enfim à venda, Lembrai d'aqueles olhos sempre astutos Do velho morto sem que vos entenda... Betim - 07 01 2016

VERSOS RASGADOS Tenho lido, sem quê nem para quê, Os poemas que escrevi quanto te amava. A porta está fechada; soo a aldrava Mas nenhuma pessoa ali se vê. Vivo dias sem ter outra mercê Senão andar por onde costumava Te encontrar sem ver que só errava Face ao que, inexplicável, mais se crê. É um mistério que haja este mundo No qual transito agora, recordando As coisas que vivi de quando em quando. Mas mistério maior é ver n’um segundo Tudo o que acreditava enfim findar: Rasgo a página qu’eu não sei virar. Betim - 12 05 2016

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VIA LÁCTEA Ao fim do dia, olhar dentro do sol. Para a partir d'aí ver o Universo... Até que caiba todo n'um só verso E estrelas constelar em caracol: Via Láctea! Cubra a noite o alvo lençol Onde constelações têm se disperso Aos bilhões pelo plano controverso De Deus desde a explosão do seu paiol. Esta estrada d'estrelas ladrilhada Com pedrinhas brilhantes pelo espaço Me faz agora a noite iluminada. Sinto como se Deus, em seu regaço, Pusesse a Terra e o sol a dar morada A quem vendo as estrelas como eu faço. Betim - 06 02 2016

XADREZ DE MÁRMORE Que lágrimas são essas? São por mim? Não chores, branca rainha... É nosso fado Jogarmos sem saber por um quadrado Como peças de mármore ao jardim. Um jogo interrompido aguarda enfim... Por perto, há donas indo p'ro mercado Ou homens que pelo andar sempre apressado Não veem o xeque-mate dado ao fim. Não chores, branca rainha, por quem amas! Inveja antes a sorte d'outras damas Que arrastam reis e peões no tabuleiro. Mas se acaso te enredas por tais tramas Lembra que, rei ou não, fui verdadeiro E, ao avançar contra as pedras, cavaleiro. Betim - 22 01 2016

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