A Polêmica Savigny-Thibaut sobre a Necessidade de uma Codificação para a Alemanha: O historicismo e o caminho para o positivismo jurídico

A Polêmica Savigny-Thibaut sobre a Necessidade de uma Codificação para a Alemanha: O historicismo e o caminho para o positivismo jurídico Gustavo Tei...
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A Polêmica Savigny-Thibaut sobre a Necessidade de uma Codificação para a Alemanha: O historicismo e o caminho para o positivismo jurídico

Gustavo Teixeira Gonet Branco1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo demonstrar a famosa polêmica sobre a necessidade de uma codificação do direito civil para a Alemanha havida entre Savigny e Thibaut no início do século XIX, bem como suas consequências importantes para o pensamento jurídico e para a realidade política.

Palavras-chave: Codificação, polêmica savigny-thibaut, Escola Histórica do Direito, positivismo jurídico.

Abstract: This paper aims to demonstrate the famous controversy between the German jurists Thibaut and Savigny, about the necessity and utility of the codification of law in the German context in the beginning of the 19th century, as well as its consequences in both political and legal studies.

Keywords: Codification, Savigny-Thibaut controversy, Historical School of Law, legal positivism.

1. Introdução

Os séculos XVIII e XIX foram marcados por numerosas revoluções e transformações de cunho político e intelectual que tiveram como principal palco a Europa ocidental. Essas revoluções foram influenciadas por novas correntes de pensamento, mas também possuíram um papel não menos importante na influência que proporcionou ao pensamento filosófico da época. Evidentemente que as transformações de pensamento tiveram importantíssimo papel nos debates políticos e jurídicos que se 1

Graduando em direito pela Universidade de Brasília – UnB.

travavam. Entre as implicações que as revoluções – principalmente a revolução francesa – trouxeram, destaca-se, para o presente artigo, a discussão acerca da necessidade e utilidade da codificação do direito de uma nação. É, de fato, nesse contexto que se tem a famosa polêmica havida entre Thibaut e Savigny sobre a ideia de uma codificação do direito civil para a Alemanha. A importância desse debate havido entre os professores alemães superou a realidade espaço-temporal em que se desenvolveu. Isso porque, dentre outras consequências, teve grande influência na elaboração do Código Civil alemão do início do século XX (de conformações em muitos pontos diferentes da ideia que se tinha de código civil à época da polêmica tratada), bem como contribuiu enormemente para a evolução e divulgação da Escola Histórica do Direito, que tem como marco inicial a obra de Savigny acerca da codificação. Como se verá, a metodologia científica elaborada pela Escola Histórica, e sua evolução pela ciência jurídica alemã ao longo do século XIX, proporcionou a abertura dos caminhos para o desenvolvimento do positivismo jurídico. Portanto, a polêmica que os professor alemães Thibaut e Savigny protagonizaram no ano de 1814 em uma Alemanha recém livre da intervenção da França e de Napoleão será determinante para o desenvolvimento do pensamento jurídico, transcendendo o debate sobre a codificação para a Alemanha. Assim, o presente artigo se propõe a comentar os principais pontos dessa polêmica, a estendendo a Hegel, que também assumiu posição firme no debate, e a demostrar suas consequências, não só no âmbito político-alemão, mas, principalmente, no que diz respeito ao pensamento jurídico em geral. 2. Contextualização Histórica

O século XVIII foi marcado por relevantes transformações de ordem políticas e intelectuais, que tiveram como palco principal os Estados integrantes da Europa ocidental continental. Isso porque a Grã-Bretanha, após o século anterior revolucionário, passou por um período estável, sem maiores crises que pudessem gerar alguma forma de transformação acentuada. Por outro lado, a parte continental europeia passou por momentos de intensas mudanças ao longo do século XVIII. Papel relevante entre os atores dessas transformações foi conferido à França, que, após governos extremamente dispendiosos, baseados em guerras não lucrativas e

isenção de tributos às camadas mais ricas da sociedade, foi o centro da corrente de pensamento que dominou a época, o Iluminismo. A importância que as ideias advindas do pensamento iluminista tiveram para o pensamento da época é notável, uma vez que possibilitou uma nova concepção institucional a partir da razão2. No tocante ao direito, o Iluminismo, responsável pela alcunha de Idade da Razão ao século XVIII, conferiu grande importância e valor ao direito natural, desenvolvendo amplamente as ideias preconizadas por Hugo Grócius ainda no século XVII. Nesse sentido, passou-se extensamente a atribuir, por meio da razão, existência secular a valores transcendentais. Com relação à situação da Alemanha, que no século XVIII se encontrava fragmentada em diversos pequenos reinos e Estados, o direito natural era o responsável pelo substrato e pelos limites atribuídos aos seus sistemas jurídicos. Foi, portanto, nesse contexto, ainda antes da Revolução Francesa, que teve origem a ideia de codificação do direito, que consistia em um tentativa de sistematização racional em código de leis seguindo os preceitos do direito natural. A primeira iniciativa de codificação teve berço na Áustria, ainda sob o governo da imperatriz Maria Teresa (1740-80). Essa soberana convocou, no ano de 1753, uma comissão destinada a codificar as leis do Império Habsburgo, com fundamento em critérios da razão e do direito natural. A comissão apresentou o primeiro projeto de código no ano de 1766, apelidado de Código Teresiano, o qual, todavia, somente entrou em vigor no século seguinte, no ano de 1811 (Allgemeines Bürgerliches Gesetzbuch). O primeiro código a ser promulgado, ainda que não tenha sido fruto da primeira iniciativa de codificação, foi o Código Prussiano (Allgemeines Landrecht), ainda no ano de 1794. Esse Código, cujos trabalhos iniciaram-se em 1780, tinha a finalidade de por fim à obscuridade e heterogeneidade em que se encontrava o direito da Prússia, assim como ocorreu no caso austríaco. Foi Frederico, o Grande, – amigo pessoal de Voltaire – quem promulgou o decreto determinando a elaboração do Código, o qual deveria ser norteado pelo direito natural, tendo esse evidente prevalência sobre o direito romano. Por fim, também é fruto do século XVIII – ainda que somente tenha sido promulgado no início do século seguinte (1804) – o Código Civil Francês, dentre os quais era o que possuía menos influências das regras do direito natural, conservando de

Nesse sentido, vale citar o seguinte trecho da obra de John M. Kelly: “Alguns aspectos da mentalidade iluminista são de especial interesse para a história da teoria jurídica. A própria ideia de que as instituições políticas ou jurídicas podiam ser criticamente avaliadas e sua conveniência, questionada, manifestava-se na percepção de Montesquieu de que as leis são contingentes, tendentes a refletir as condições de vida das pessoas que vivem segundo elas, e não a adaptar-se a um único padrão universal; […] [o] padrão pela qual elas deveriam ser substituídas por estruturas ideiais era o da razão e do ‘direito natural’ em sua forma do século XVIII. (2010, p. 331) 2

forma bastante rigorosa o direito já existente na França (com fontes como o direito romano e o direito canônico). É relevante para compreensão da polêmica entre Savigny e Thibaut o fato de que os Estados alemães ficaram, por algum tempo, sob o regime do chamado Código Napoleônico. Todavia, em grande parte dos reinos que compunham a Alemanha, ainda não havia o senso de codificação aflorado, mesmo porque a extensa fragmentação que caracterizava a região constituía óbice lógico a essa empreitada. É nesse ponto que reside o papel fundamental da Revolução Francesa para que fosse possível a polêmica travada entre Thibaut e Savigny. Isso porque as inúmeras guerras travadas com a França – principalmente a marcante batalha de Jena (1806)3 – e a opressão imposta por Napoleão teve papel determinante para a união intelectual e política que se pôde perceber na Alemanha a partir de então, conforme a seguinte passagem de Hermann Kantorowicz é clara em exemplificar: The year 1814 marked the height of that Teutonic nationalism which was a natural product of the Great Revolution, the French wars, and the Napoleonic oppression. The Great Revolution by opening the door to democratic ideas made the German nation conscious of its own right to self-expression, the French wars by smashing most of the German petty States had paved the way for political unity, and the Napoleonic oppression had resulted in that moral unity of the nation, which always is directed against some real or imaginary inimical power.

Ainda assim, o pensamento jurídico na Alemanha nos séculos XVIII e XIX, mesmo que tenha algumas manifestações inovadoras como a expressada por Thibaut, constituía-se sobre fundamentos eminentemente históricos. Isso significa que, ainda que os juristas alemães fossem essencialmente antijusnaturalistas, não se inclinavam ao direito positivo característico da Escola da Exegese, mas sim o substituíam pelo chamado direito histórico (PALOMBELLA, 2005, p. 113). É portanto nesse contexto de grande união e forte sentimento nacionalista na Alemanha que tem origem a celebérrima polêmica havida entre Thibaut e Savigny, no ano de 1814, acerca da necessidade e conveniência de uma codificação para Alemanha, a qual será agora tratada.

3. O Manifesto de Thibaut

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Nesse sentido, Jean Boulanger afirma: “Iéna était, pour l’âme allemande, une blessure toute récent et combien profonde!” p. 181.

Anton Friedrich Justus Thibaut, professor de direito da Universidade de Heidelberg, tinha 42 anos de idade (nascido no ano de 1772, na cidade de Hameln) quando publicou a obra literária que foi o estopim da polêmica acerca da necessidade e utilidade de uma codificação para a Alemanha, o livro Sobre a Necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha (Über die Notwendigkeit eines allgemeinen bürgerlichen Rechts in Deutschland). Anton Thibaut escreveu esse livro em apenas 14 dias, e o fez em forma panfletária, que o desagradava4. Contudo, considerando as necessidades da época, Thibaut percebeu que o momento assim necessitava e, portanto, era propício para a forma do manifesto que lançou. Trata-se de um livro de inequívoco cunho iluminista, o qual possui a finalidade de alertar aos alemães a necessidade de se elaborar um código civil, de inspiração racionalista, para toda a Alemanha. Como ocorrera previamente nas experiências austríaca e prussiana, exposto no tópico precedente, o professor de Heidelberg enxerga na extrema fragmentação da Alemanha a coexistência de inúmeras leis, em si conflitantes, que tornam o sistema jurídico alemão imensamente obscuro e impossível de ser apreendido por completo. Por essa razão, segundo Anton Thibaut, a forma em que se encontrava o direito alemão possuía a única finalidade de tornar confusas e inseguras as relações jurídicas, além de servir de meio de enriquecimento de advogados, uma vez que eram necessários advogados especializados nas leis das diversas regiões particulares que integravam a Alemanha. Nesse sentido, Thibaut se manifesta da seguinte forma:

Yo opino, por el contrario, que nuestro Derecho civil (por el que entenderá siempre aqui el Derecho privado y el penal, así como el procesal) necesita una rápida transformación y que los alemanes no podrán ser felices en sus relaciones civiles más que cuando todos los gobiernos alemanes traten de poner em vigor, uniendo sus fuerzas, un código promulgado para toda Alemania, sustraído al arbitrio de los gobiernos singulares. (1914, p. 11)

Foi partindo desse diagnóstico caótico do direito alemão que Anton Thibaut, sob as influências do Iluminismo, conclamou pela necessidade e extrema utilidade de se 4

Esse desconforto é manifestado pelo autor no primeiro parágrafo do livro Sobre a Necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha: “Ahora bien, me desagrada ver algo mío en esta corriente de fácil circulación que forman los folletos y tengo, además, pocos motivos para creer que se preste a mis opiniones una atención especial; sin embargo, considero que el momento actual es de tal índole que la timidez y el retraimiento no resultan apropriados a la perentoriedad de las circunstancias, y todo hombre reflexivo tiene más bien que levantar la voz en favor de lo bueno y de lo grande, ya que puede albergarse la esperanza que un primer impulso ponga en movimento muchas fuerzas.” (1914, p. 5).

elaborar um código civil para a Alemanha que superaria o direito herdado (direito romano) que ainda predominava na região. Dado o tom extremamente nacionalista francofóbico que permeia toda a obra em comento, é evidente que Thibaut desqualifica o Código Civil francês em virtude de este ser, segundo o autor, carente de racionalidade e por demais permeado por elementos políticos. Thibaut ainda afirma a vantagem que a codificação alemã traria para o ensino e a pesquisa jurídica, tendo em vista que tornaria o objeto de trabalho e estudo muito mais definido e nítido aos olhos não só dos juristas, mas de todos os alemães. Dessa maneira, Thibaut traça algumas linhas sobre a elaboração do código, principalmente considerando os contornos materiais e formais que devem prevalecer na obra legislativa a ser produzida, no seguinte sentido:

A toda legislación se pueden y deben exigir dos requisitos: que sea perfecta formal y materialmente: es decir, que formule sus preceptos de una manera clara, inequívoca y exhaustiva, y que ordene las instituiciones civiles de una manera sabia y conveniente, de completa conformidade con las necessidades de los súbditos. (1914, p. 11)

Portanto, Anton Thibaut traz em seu livro Sobre a Necessidade de um Direito Civil Geral para a Alemanha uma proposta de renovação institucional para a Alemanha da época, com o objetivo de superar as irracionalidades que diagnosticou no sistema jurídico existente e como meio de se garantir a unidade do povo alemão. Nesse ponto é nítida a influência das ideias iluministas, expostas na pretensão de se garantir a unidade e a sistematização de todo o direito por meio de um trabalho racional.

4. A Resposta de Savigny

Friedrich Karl von Savigny, nascido em Frankfurt an Main no dia 21 de fevereiro de 1779, publicou o livro Da vocação de nossa época para a legislação e a ciência do direito poucos meses após a divulgação da obra exposta de Thibaut, também no ano de 1814. Realizando um trabalho mais extenso, fundamentado e eloquente, Savigny expôs suas objeções às ideias de codificação para Alemanha que estavam em voga à época, tomando como parâmetro dessas ideias o manifesto de Anton Thibaut sobre a necessidade de uma codificação do direito civil alemão. Percebe-se no livro de Savigny,

inversamente ao tom marcante da obra de Thibaut, inspiração anti-iluminista, romântica e com claro viés conservador da estrutura social e política alemã. De fato, essa obra, que foi uma das primeiras publicadas pelo jurista alemão, constitui-se em valiosa expressão e divulgação das ideias que seriam o fundamento da chamada Escola Histórica. Todavia, antes de ingressarmos nas consequências produzidas pela polêmica, principalmente pelas ideias exposta por Savigny, devemos realizar sinteticamente um apanhado global do que pretende Savigny em sua “resposta” a Thibaut. Como já foi adiantado, o autor pretende demonstrar, também carregado de forte teor nacionalista, que a ideia de uma codificação do direito civil para a Alemanha é inviável, está errada, pois as condições que diagnostica em sua época são em todas desfavoráveis à empresa proposta. Para tanto realiza uma particular análise histórica do direito civil, afirmando sua presença desde os primeiros momentos da história documentada. Nesse ponto, Savigny coloca o direito como emanação da natureza social do homem, da mesma maneira que o é a linguagem. Confira-se a seguinte ilustrativa passagem em que afirma essa característica do direito:

Allí donde nos encontramos por primera vez ante una historia documentada, el Derecho civil tiene ya un carácter determinado, peculiar del pueblo, lo mismo que su lenguaje, sus costumbres y su constituición. Em efecto, estos fenómenos no tienen una existencia separada, son tan solo fuerzas y actividades singulares de un pueblo, inseparablemente unidas en la naturaliza, y que solo aprarentemente se revelan a nuestra consideración como cualidades especiales.

Neste primeiro momento, Savigny considera que o direito vive na consciência do povo, o qual, ainda que não tenha conceitos bem trabalhados e definidos, tem pleno sentido de sua situação e constituição, o vivendo de forma plena, assim como também acontece na linguagem. Ainda traçando um paralelo estreito com a linguagem, Savigny aponta o caráter vivo do direito, o qual nunca deixou de existir e se encontra em constante mudança, de acordo com as demais tendências do povo. Nesse ponto Savigny afirma que, ainda que o direito viva na consciência do povo, este chegará a uma situação de evolução e complexidade cultural que influenciará diretamente na existência do direito, a qual se tornará muito mais complexa e artificial. Surge, nesse momento, o direito como consciência dos juristas, o qual será, portanto, ciência. Savigny não diz que o direito

como consciência do povo nesse momento tenha fim, mas que há nessa fase uma vida dupla deste. Também o comparando com a linguagem, Savigny coloca a evolução do direito e o surgimento da ciência jurídica ao lado da linguagem e o surgimento da gramática. Assim, chega à conclusão de que, assim como a gramática não pode preceder à linguagem, os costumes e a consciência civil e jurídica precedem sobre sua sistematização. Dessas considerações delineadas por Savigny é que surge a ideia do direito como consequência inconsciente do espírito do povo (Volksgeist). Prosseguindo em sua obra e identificando as propostas de codificação para a Alemanha que surgiam à época, principalmente aquela preconizada por Thibaut, Savigny as resume da forma que se segue:

El estado debe investigar todo su sistema jurídico y fijarlo por escrito, de manera que este libro valga en lo sucesivo como fuente única del Derecho y deje de regir todo lo que hasta entonces hubiera podido estar vigente. (SAVIGNY, p. 61)

Savigny observa que a ideia de codificação pode partir de dois pontos. Por um lado há aqueles que consideram que o direito a ser codificado derivaria de um direito racional geral, e não do direito existente. A outra corrente corresponderia àquela que considera a codificação como tarefa de compilação de todo o direito vigente, logicamente com os expurgos e acréscimos políticos necessários. Não obstante, identifica que a experiência mostra o trabalho de codificação como uma conjugação de ambos os modelos expostos. Nesse sentido, afirma que há uma compilação do direito vigente, ao mesmo tempo em que há a criação de novas leis. Traçadas essas características, Savigny procura focar seu trabalho na reunião das leis existente, pois considera que a criação das novas leis podem ocorrer a qualquer tempo, não sendo fruto exclusivo do processo de codificação. Também considerando as propostas de codificação de sua época, Savigny afirma que os defensores da ideia proclamam a existência de duas vantagens que seriam promovidas pela codificação: a certeza e segurança jurídica e a correção dos limites externos de validade do direito, tendo em vista que o código seria vigente como fonte única do direito em toda a Alemanha. Com relação à primeira vantagem que seria consequência natural do processo de codificação segundo aqueles que defendiam essa proposta, Savigny se opõe da seguinte maneira:

En lo tocante a la materia, el cometido más importante y más difícil es la integridad del código, consistiendo el problema en comprender bien este cometido, en lo cual todos están de acuerdo. Puesto que el código está destinado a ser la única fuente del Derecho, debe contener efectivamente de antemano la solución para todos los casos que pueden presentarse” P. 64

Prosseguindo em sua crítica, quando trata das dificuldades e perigos que a unidade material pretendida pelo código pode trazer, Savigny tece as seguintes considerações, destacando-se o ponto em que afirma ser a verdadeira fonte do direito o espírito da nação: “La administración de justicia se hará aparentemente según el código, pero de hecho se hará según otra cosa ajena al código, la cual será, por tanto, la verdadeira fuente de Derecho. Pero esta falsa apariencia es sumamente nociva. Porque el código, por su novedad, por su afinidad con los conceptos que dominan la época y por su autoridad externa, atraerá indefectiblemente hacia sí toda la atención, desviándola de la verdadeira fuente del Derecho, de manera que esta oscura e inobservada existencia se verá privada de las fuerzas espirituales de la nación, que son las únicas que pueden conferirle autoridad.” p. 65

Já com relação ao aspecto formal que o código deve ter, Savigny limita-se a defender que este deve ser realizado com muito cuidado, invocando a experiência histórica para afirmar que a redação deve ser em forma de mandamentos curtos, certos e claros. Após identificar e caracterizar as propostas de codificação que surgiam à época, Savigny volta seus olhos para uma análise mais precisa do caso alemão, para firmar sua posição contrária à codificação do direito civil para Alemanha em sua época. Como já foi apontado, a Alemanha, até então, encontrava-se fortemente fragmentada, e o direito que vigia em todo o território era principalmente o direito comum, o qual era, por sua vez, eminentemente romano. Havia também os direitos especiais de cada pequeno Estado que integrava a Alemanha, os quais, da mesma maneira, possuíam como fonte principal o direito romano. Em virtude dessa característica e considerando toda a sua formação intelectual e jurídica, em seu livro sobre a vocação para a legislação, Savigny dedica todo um capítulo (n. 5) para examinar (e exaltar) o direito romano e sua relação com a codificação. Ao assim fazer, Savigny externa de forma bastante precisa sua concepção historicista do direito, tendo em vista que destaca a característica de direito vivo em evolução do direito romano, o qual permitia equilibrada relação entre a prática e a

ciência. Nesse sentido, Savigny avalia que no direito romano, quando se encontrava em seus áureos momentos, não ocorreu qualquer possibilidade, sequer cogitação, de alguma forma de codificação, tendo em consideração, para o autor, a sua patente desnecessidade. Por consequência, percebe-se tentativas análogas apenas quando se encontra em fase de decadência, momento em que aparece, entre outros, o Código Justinianeu. Para o autor, esse código está deveras afastado da grandeza e maestria do direito romano e de seus juristas dos magnos tempos. Não obstante, foi o meio que, procurando resgatar a melhor tradição do direito romano, permitiu que este chegasse aos tempos futuros. Isso possibilita a Savigny concluir que o direito, como processo de evolução, somente possui um estágio em que permite a codificação. Em seu momento inicial, o direito, assim como a linguagem, ainda que seja de extrema utilidade e eficiência, não possui auto-compreensão necessária para ser sistematizado. Por outro lado, em sua decadência, a ciência do direito está em muito debilitada, sendo momento extremamente inoportuno para a realização de qualquer tentativa de codificação. Portanto, seria em um momento intermediário, no qual ciência e prática jurídica se encontram em grande harmonia, que se revelaria a fase mais propícia à codificação. No entanto, essa não possuiria qualquer utilidade, tendo em vista que o direito estaria se realizando de forma plena. Diante disso, Savigny afirma que a única utilidade que poderia se obter por meio de uma codificação realizada em um momento intermediário seria possibilitar a guarnecer épocas de decadência futuras com códigos bem elaborados. Fica de certa maneira subentendido nessa conclusão de Savigny que nunca haveria o momento propício para a codificação. Tendo subsídio nessas considerações tecidas e conclusões alcançadas, Savigny reduz sua análise ao caso alemão para identificar a possível vocação de sua época para a realização da codificação almejada por parcela da sociedade. Primeiramente, Savigny procura afastar a afirmação de alguns de que a razão humana seria igual para todos os homens em todas as épocas e que, por decorrência desse fato, as gerações presentes sempre poderiam realizar o melhor trabalho possível em virtude de toda a experiência acumulada anteriormente. Para poder descontruir essa afirmação que representava o pensamento de alguns de seus contemporâneos, Savigny afirma o seguinte:

Pero precisamente esta opinión de que toda época tiene aptitud para todo constituye um prejuicio sumamente nocivo. Em las bellas artes tenemos que

reconocer lo contrario: ¿por qué no vamos a admitir lo mismo quando se trata de la formación del Estado e del Derecho?

Na continuação de sua análise, Savigny identifica que a Alemanha passou por um período, o século XVIII, de carência de grandes juristas. Para o professor de Berlim, para ser considerado um grande jurista, este deveria possuir dois sensos indispensáveis: (i) o histórico, que lhe permitiria captar com maior perspicácia as particularidades de cada época e de suas respectivas formas jurídicas, e (ii) o sistemático, que lhe permitiria ver a cada conceptos y a cada precepto en una conexión y una interacción vivas com el todo, es decir, en la única conexión que es verdadera y natural. Savigny, no entanto, conclui que os juristas de sua época não preenchem os requisitos que considera necessários para considerá-los como grandes, no seguinte sentido;

Este doble sentido científico escasea extraordinariamente en los juristas del siglo XVIII, cuyos reiterados y superficiales esfuerzos en el campo de la filosofia tuvieron un efecto muy desfavorable. Sobre la época en que vive uno mismo, es muy difícil emitir un juicio seguro: sin embargo, si no nos engañan todos los sintomas, a nuestra ciência há llegado un espíritu más vivo, que podrá elevarla de nuevo en el futuro a la altura de uma formación peculiar. Solo que todavía es muy poco lo que se ha hecho en este aspecto, por cuya razón niego yo nuesta capacidade para producir um código laudable. (p. 83)

É por essa razão que Savigny, portanto, nega a vocação da Alemanha de sua época para concretizar a realização de uma codificação do direito, adicionado a isso a constatação de que nenhum dos sistemas jurídicos alemães, ainda que realizados muitos estudos, foram capazes de reconhecer el espíritu que anima las Pandectas. A visão de Savigny, além de historicista, é nitidamente romântica, evidenciando-se tal característica em passagens nas quais sempre desvaloriza sua época frente ao passado5. No entanto, o maior valor que podemos extrair da obra de Savigny que ora analisamos se encontra no fato de ter servido de alicerce para o desenvolvimento da denominada Escola Histórica6, que preponderou de forma marcante no pensamento jurídico do século XIX. Antes, no entanto, de analisarmos suas consequências, passemos às influências hegelianas identificadas nos trabalhos de Savigny, bem como o posicionamento que se percebe em Hegel ante a polêmica sobre a codificação.

A seguinte passagem é bastante ilustrativa no sentido exposto: “Mas aún: creo que en este terreno incluso hemos retrocedido en los tiempos modernos. No conozco ninguna ley del siglo XVIII que pudiera ser comparada en rigor y fuerza de expresión con la ordenanza de los tribunales penales de Carlos V. 6 Nesse sentido, Hermann Kantorowicz afirma o seguinte: “The starting point of the historical school is, of course, Savigny’s small but celebrated pamphlet ‘Ueber den Beruf unserer Zeit für Gesetzbung und Rechtwissenschaft’.” p. 332 5

5. O Posicionamento de Hegel

Georg Wilhelm Friedrich Hegel foi contemporâneo de Anton Thibaut e Savigny, tendo nascido no ano de 1770 na cidade de Stuttgart. Desenvolveu extensa produção intelectual e, com relação ao direito possuía firme posição de sua impossibilidade racional e abstrata na forma da concepção Iluminista. Nesse sentido, também fica bem determinada a sua característica antijusnaturalista, conforme Gianluigi Palombella bem identifica:

Assim, a filosofia hegeliana do direito é acima de tudo antijusnaturalista, pois o direito racional abstrato, puramente pensado e artificiosamente introduzido na eterna fixidez da natureza, era o oposto exato da consciência hegeliana da história e expressão da unilateralidade e da subjetividade de toda atitude intelectualista. (2005, p. 88)

Todavia, ainda que Hegel se posicionasse contrariamente a uma ideia de direito universal pela razão, da mesma maneira que Savigny, os dois professores alemães se situavam em lados opostos intelectualmente7. Hegel, na realidade, era grande opositor da Escola Histórica do direito8, principalmente por esta defender a permanência do direito alemão como se encontrava, o que, ao entender do filósofo alemão, era nitidamente uma amarra ao desenvolvimento da liberdade e da propriedade. Assim, pode-se afirmar que Hegel assume, na polêmica havida entre Savigny e Thibaut acerca da necessidade e utilidade de uma codificação para Alemanha, uma terceira posição, não identificando-se com qualquer das duas proposições anteriores, conforme o seguinte trecho de Palombella deixa claro:

Por isso, na célebre polêmica entre Thibaut e Savigny, Hegel assume indiretamente uma posição nova: ao entusiasmo iluminista do primeiro por uma codificação que fosse fruto da elaboração “universal” do direito pela razão, ele opunha o caráter extrínseco de uma imposição normativa puramente intelectual para a sociedade alemã e suas peculiares instituições; ao respeito religioso e romântico de Savigny e da escola “histórica” do direito para com o direito consuetudinário, para com a continuidade e permanência das instituições consolidadas (tese que teria impedido o progresso da Alemanha rumo a um direito e a uma codificação a altura dos tempos), Hegel objetava a importância de levar certos conteúdos normativos depositados nas

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Nesse sentido, é interessante a seguinte colocação de Hermann Kantorowicz: “The greatest of Savigny's opponents was Hegel himself, who in his public lectures in Berlin on the philosophy of law declared that Savigny, by rejecting legislation, had put on the nation and its jurists one of the greatest insults that could be imagined.” (1937, p. 334) 8 Nesse sentido, conferir Klenner, que afirma: “Georg Friedrich Wilhelm Hegel was the most significant figure opposed to the Historical School of Law.” […]It was in his first lecture on the philosophy of law in that Hegel first presented his unequivocal critique of the Historical School of Law.” (1989, p. 76)

tradições de vida do povo a adquirir uma forma universal, a sair do perene estado de contingência, da sua arbitrária subjetividade. (2005, p. 89)

O filósofo alemão deixa seu entendimento acerca da necessidade de codificação do direito – não só para a Alemanha, mas para qualquer povo – bem claro em seu livro Princípios da Filosofia do Direito, no qual defende com palavras fortes a sua necessidade, mas não segundo a concepção abstrata e a partir da razão conforme fizera Anton Thibaut: Quando os direitos consuetudinários chegam a ser reunidos e codificados – o que um povo que atinge qualquer grau de cultura não pode demorar a fazer –, a coleção assim constituída é o código. Terá este, porque não é mais do que uma coleção, um caráter informe vago e incompleto. O que sobretudo o distingue daquilo a que verdadeiramente se chama de um código é que os verdadeiros códigos concebem pelo pensamento e exprimem os princípios do direito na sua universalidade, e, portanto, em toda a sua precisão. (2003, p. 187)

De fato, Hegel é enfático quanto à necessidade que enxerga relativa à codificação, considerando até mesmo um insulto qualquer forma de pensamento que se coloque contrariamente a esse entendimento, como o é aquele defendido tão eloquentemente por Savigny. O seguinte trecho é deveras significativo da posição que Hegel assume ante a questão posta:

Recusar a uma nação culta ou à classe dos juristas capacidade para elaborar um código seria o mais grosseiro insulto que se poderia fazer a essa nação ou a essa classe (não se trataria, para isso, de elaborar um sistema de lei novas quanto ao conteúdo mas apenas de reconhecer o conteúdo jurídico na sua definida universalidade, quer dizer, concebê-la pelo pensamento e acrescentar-lhe a aplicação aos casos particulares). (2003, p. 188)

Portanto, no debate travado acerca da necessidade de uma codificação para a Alemanha, Hegel assume uma terceira posição, a qual recusa os fundamentos iluministas trazidos por Thibaut, mas também não aceita a posição fortemente conservadora assumida por Savigny.

6. Conclusão: A importância histórica da polêmica

É inegável a importância que o debate teve à época, podendo-se afirmar que, naquele momento, a posição adotada por Savigny foi assumida pela Alemanha, tendo

em vista que a codificação do direito civil alemão somente teve lugar no início do século XX, o que trouxe sensíveis consequências políticas para a Alemanha em si9. No entanto, o seu valor histórico para o pensamento jurídico é também de incomensurável importância. Isso porque, a obra de Savigny e seu historicismo jurídico influenciam10 diretamente uma geração de juristas alemães que se debruçaram sobre os estudos das pandectas, segundo a metodologia científica desenvolvida. Gianluigi Palombella, sobre esse fato, assim expõe:

Porém, o que mais importa para a evolução subsequente da ciência jurídica é que a Escola e a metodologia científica produzida na Alemanha, o chamado estudo das pandectas (pandectas ou digesto, parte do corpus juris que compila os pareceres dos juristas romanos), mesmo partindo dessa inspiração histórica (necessariamente conjugada com o direito comum) e com a compreensão das raízes romanistas, abordam e promovem o método sistemático, já necessário para a obra de elucidação e organização do direito positivo. (2005, p. 117)

Todavia, a evolução da ciência jurídica alemã de origem na Escola Histórica vai ganhando novos contornos, principalmente de caráter sistemático, o qual proporciona uma maior estruturação conceitual fundamentada em hierarquia a qual, ao fim, será o caminho para o desenvolvimento do positivismo jurídico. A posição adotada por Puchta e Windscheid já se distancia bastante da Escola Histórica, ao utilizar o método de dedução lógica para a sistematização do direito. Confira-se a seguinte passagem de Palombella: Ao lado do “sentir histórico”, a nova ciência jurídica põe um “sentir sistemático”, que vê a norma como parte de um todo conceitual e com isso favorece um método que privilegiará cada vez mais a hierarquia e a relação entre conceitos, abrindo caminho à jurisprudência dos conceitos (Begriffsjurisprudenz), que constitui uma via racionalista para o estudo do direito: os elementos historicistas tendem a retroceder para um sistema ao qual faltará exatamente o elo com o sentir substancial que evolui no Espírito do Povo, e no qual a elaboração formal do direito romano se traduz numa genealogia progressivamente anti-histórica dos conceitos. A superação do jusnaturalismo iniciado assim por via historicística desemboca no juspositivismo não mais através dela, porém através da sistematização do direito e da abordagem estritamente formal-racional. (2005, p. 117) Analisando esse ponto, Palombella considera que “[e]m certo sentido, a obra de Savigny permitira, definitivamente, que a cultura jurídica alemã privasse (postergando) o processo de codificação das pretensões de cunho garantista que incorporara na França, acabando por chegar depois a um código que é oportunamente definido como representação áurea do estatalsimo.” (2005, p. 118) Da mesma maneira, Hermann Kantorowicz tece as seguintes considerações: “Thus, instead of that unity of legislation, which for political reasons could not be attained for the time being and which Savigny helped to postpone, there began to spread, again thanks to Savigny, a closer unity of juristic culture all over Germany than had ever existed before.” (1937, p. 338) 10 De fato, conforme observa Hermann Kantorowicz, a influência de Savigny no pensamento jurídico foi muito intensa, também por sua posição perante as universidades: “It must, however, be admitted, that in his later years, having become the head of the historical school, he used his powerful influence with the German faculties and the Prussian Government to exclude the adherents of other schools or of personal adversaries, even if of high merit, from the chairs of law or to put other obstacles, in their way.” (1937, p. 329) 9

Dessa forma, não se pode concluir de outra forma senão reconhecendo que, em que pese ao grande relevo que o debate teve para a sua realidade espaço-temporal e em relação às consequências da codificação, a polêmica havida entre Savigny e Thibaut no início do século XIX teve proporções muito maiores, principalmente em razão da obra de Savigny, a qual é um evidente manifesto da Escola Histórica do Direito. Nesse sentido, o desenvolvimento do pensamento jurídico alemão com fortes influências da polêmica Savigny-Thibaut permitiu que se traçasse os caminhos para o positivismo jurídico.

BIBLIOGRAFIA:

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THIBAUT, Anton Jusuts. Sobre la necesidad de un derecho civil general para Alemania. In THIBAUT SAVIGNY La Codificación, Madrid: Aguilar, 1970