Do Mundo Fechado ao Universo Infinito

PET FILOSOFIA – UFPR Data: 05 de novembro de 2014 Aluna: Fernanda Ribeiro de Almeida Parte II de III do fichamento do capítulo XI do livro Do Mundo ...
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PET FILOSOFIA – UFPR

Data: 05 de novembro de 2014 Aluna: Fernanda Ribeiro de Almeida

Parte II de III do fichamento do capítulo XI do livro Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, de Alexandre Koyré, intitulado “O Deus da semana e o Deus do Sabá – Newton e Leibniz” (pp. 220 – 233).

Na primeira parte do fichamento, vimos a crítica de Leibniz se dirigir, sobretudo, a dois aspectos da teoria newtoniana:a caracterização do Espaço comoSensorium Dei e o papel de Deus na manutenção do mundo de Newton mundo que funcionaria como um relógio em que Deus deveria, vez ou outra,dar corda.Nessa segunda parte, valendo-se do quarto e quinto ensaios de Leibniz e das réplicas de Clarke, veremos como Koyré procurará mostrar quão profundas são as diferenças entre os fundamentos que sustentam, respectivamente, as noções de Espaço e atração de Leibniz e Newton. Leibniz retoma a discussão apontando a centralidade do princípio da razão suficiente em seu pensamento. Universalmente válido, o princípio coloca a necessidade de se ligar uma determinada escolha a uma motivação; em um cenário onde possíveis situações se equivalem, não existe motivo para preferir uma em detrimento da outra. Assim, não há razão para que Deus crie dois objetos idênticos no mundo1. É também a ausência de uma razão que limite a capacidade de realização divina que leva Leibniz a afirmar a infinitude de quantidade de matéria no universo e, consequentemente, a inexistência do espaço vazio.

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Ainda que não seja possível, como Leibniz afirma no Discurso da Metafísica (§5), conhecer as razões que movem as escolhas de Deus, “podem-se fazer algumas considerações gerais a respeito da conduta da Providência no governo das coisas”, conduta que será comparada por Leibniz a uma série de ações perfeitas: “aquele que age perfeitamente é semelhante a um excelente geômetra, que sabe encontrar as melhores construções de um problema; a um bom arquiteto, que arranja o lugar e o alicerce, destinados ao edifício, da maneira mais vantajosa, nada deixando destoante ou destituído de toda a beleza de que é suscetível; a um bom pai de família, que emprega os seus bens de forma a nada ter inculto nem estéril; a um maquinista habilidoso, que atinge seu fim pelo caminho menos embaraçoso que se podia escolher; a um sábio autor, que encerra o máximo de realidade no mínimo possível de volumes”. (Leibniz, Discurso da Metafísica; São Paulo: Martins Fontes, 2004. p 10). Assim, a perfeição na ação se relaciona ao alcance de um ponto ótimo segundo uma lógica econômica de escolha, lógica que será importante quando Koyré nos lembrar, na conclusão do livro, que o mundo de Leibniz é apenas o melhor dos mundos possíveis, e não um mundo perfeitamente bom.

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Fictício, o espaço vazio existe somente na imaginação, pois somente a existência de corpos garante a existência do espaço: este é uma mera função dos corpos ou, como afirmará mais adiante, uma ordem das coisas. O espaço repleto de matéria é prova de que seria possível a Deus preenchê-lo sem depreciar as outras coisas criadas; e o mesmo, afirma Leibniz, é válido no que diz respeito à subdivisão de corpúsculos 2 .Quanto ao espaço vazio, Leibniz levanta as impossibilidades metafísicas que essa ideia acarreta: sendo o espaço uma propriedade de alguma Substância, à qual Substância pertenceria uma propriedade limitada – o espaço vazio? E, se o espaço infinito é a Imensidade e o espaço finito seu oposto - a Mensurabilidade ou Extensão limitada – a extensão deve ser qualidade de coisas extensas. Contudo, se o espaço for vazio, de que coisa será qualidade ou de qual sujeito será atributo? Ainda que Leibniz concorde com Clarke quando este afirma ser o espaço uma Propriedade, concebê-lo como uma realidade absoluta é algo que o filósofo alemão não admite. Sendo absoluto, o espaço possuiria mais realidade que as próprias Substâncias e Deus seria incapaz de modificá-lo em qualquer aspecto, o que implicaria na existência de múltiplas e simultâneas coisas eternasao lado de Deus. Contudo, como aponta Koyré, é desse argumento que newtonianos se valem ao afirmar que o espaço está em Deus. Argumento que Leibniz prossegue apontando as contradições: se o espaço é infinito e homogêneo, admite-se que ele não é formado por partes ou espaços finitos e que é capaz de subsistir independentemente deles. Ora, isso equivale à afirmação de que o mundo material existe mesmo que nele não exista nenhum corpo. Para Koyré, é possível observar a diferença inconciliável entre a concepção de espaço de Leibniz e de Newton: enquanto esta é “uma unidade que precede e possibilita todas as relações que nela se possam descobrir” (p. 222), aquela é “uma rede de relações quantitativas” (p. 222). Sem a intenção de conciliar em alguma medida essa diferença, Leibniz prossegue negando o caráter absoluto não só do espaço, mas também do tempo: ambos não são nada além de uma certaOrdem das Coisas. As contra-objeções de Clarke, que criticavam principalmente a ideia leibniziana de espaço como ordem das coisas – ideia a qual Clarke contrapunha a possibilidade, no sistema de Newton, do mundo se deslocar em linha reta e de maneira uniforme – são respondidas por Leibniz segundo o princípio da razão suficiente: é impossível conceber que Deus dotaria o mundo com um movimento despropositado. Quanto à necessidade com que as forças ativas decresceriam no mundo newtoniano, Leibniz diz ser essa afirmação fruto de um desconhecimento completo do funcionamento das forças naturais. Desconhecimento que inclusive leva Clarke a pensar a atração como algo 2

A continuidade da matéria em nível “atômico” também reflete a ausência de razão limitante da potência divina.

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natural: sem um meio que a transmita, a atração entre os corpos é sobrenatural na medida em que não é explicada pela natureza das coisas. Clarke, agora já no quarto ensaio, não consegue conceber o princípio da razão suficiente como um princípio que não limite a vontade divina. O Deus leibniziano é agrilhoado pela necessidade e pela fatalidade, é um mecanismo que seria incapaz de qualquer ato de criação se não pudesse privilegiar um dentre dois objetos idênticos: afinal, a matéria, composta por átomos, possui uma natureza uniforme. Porém, se a física newtoniana tem como fundamento a existência de partículas duras e indivisíveis, a filosofia de Leibniz é incompatível com o atomismo. E, como Koyré deixa entrever, esse é o ponto de onde partem fundamentalmente as divergências entre Leibniz e Clarke. Assim, cabe a Clarke afirmar o contrário de Leibniz sobre a natureza do espaço e do tempo. Se a matéria é finita, deve existir um espaço fora do mundo real, não-imaginário. E se o ato de criação divina do mundo não se desse em um determinado instante, o mundo não teria sido criado no tempo em que foi – o que também prova a realidade do tempo. A finitude da matéria, aliás, faz com que ela seja móvel em sua natureza, pois, como afirma Clarke, “nada que é finito é imóvel” (p. 224). Ainda resta a Clarke restaurar as qualidades metafísicas newtonianas atribuídas ao espaço e que Leibniz pensou refutar. Ao contrário do que afirma Leibniz, o espaço é atributo de uma substância incorpórea, por isso mesmo

O Espaço Vazio não é um Atributo sem Sujeito, porque por Espaço vazio jamais entendemos Espaço vazio de tudo, mas apenas de Corpo. Em Todo Espaço vazio, Deus está certamente presente, como possivelmente estão presentes muitas outras Substâncias que não são Matéria, e que não são nem Tangíveis nem Objeto de qualquer um de Nossos Sentidos. (Clarke, p. 225)

O espaço como propriedade, e não substância, de um Ser Necessário, existe mais necessariamente que outras substâncias que não são necessárias, por isso é imenso, imutável e eterno. E o mesmo vale, afirma Clarke, para a Duração. Isso não implica, contudo, que ambos existam fora de Deus: são consequências imediatas e necessárias da existência do Criador. Quanto ao espaço infinito, este é percebido como fracionado em partes somente pela nossa imaginação, pois o espaço é “essencialmente Uno em si mesmo e absolutamente indivisível” (p. 225). Somente nesse espaço é possível que se realize o movimento absoluto – o movimento verdadeiro, mudança da 3

localização de um corpo – pois somente nele existem lugares semelhantes, mas ainda assim diferentes. Assim como Deus não limita a Duração do mundo nem a quantidade de matéria criada (pois o tempo, análogo ao espaço, é imenso, imutável e eterno), ele pode fazê-lo; caso contrário, o mundo material seria necessário e independente de Deus. Segundo Koyré, tornar Deus “receptáculo universal de tudo” (p. 227) é o único meio dos newtonianos evitarem a autossuficiência da matéria, tendo em vista a necessidade de se manter a existência do ato de criação divina. Isso não implica, contudo, que Deus se identifica com as coisas criadas, pois

O Espaço é o Lugar de Todas as Coisas e de Todas as Ideias, da mesma maneira que a Duração é a Duração de Todas as Coisas e de Todas as Ideias... Isto não encerra nenhuma Tendência para transformar Deus em Alma do Mundo. (Clarke, p. 227)

Para Clarke, o sistema newtoniano não só garantiria, no ato de criação, a independência do Criador em relação às criaturas, como também permitiria a Deus manter sua onipresença e dar continuidade à sua existência mesmo que nada fosse criado. Deus é tão independente da criação que a realiza, afinal, por um ato de vontade infinitamente livre – liberdade que Clarke em nenhum momento vislumbra no Deus de Leibniz. Quanto à objeção de Leibniz à atração, caracterizada por ele como uma força sobrenatural 3 , Clarke responde que não seria um milagre, mas sim contraditório, que um corpo agisse sobre outro sem qualquermeio que intermediasse a ação. Newton, contudo, não afirma a inexistência desse meio, mas também não o impede de ser pensado como um meioinvisível e intangível;a regularidade e a constância de sua ação permitiriam, aliás, considerá-lo um meionatural. Koyré concorda com Clarke quando este afirma ser uma concepção puramente mecanicista da natureza que impede Leibniz de ir além do dualismo matéria-espírito e ampliar o espectro de entidades que formam a totalidade da natureza.

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Cabe lembrar que o alvo da crítica de Leibniz não é propriamente o caráter miraculoso da força de atração – pois também há espaço, no sistema leibniziano, para milagres (“[...] digo que os milagres e concursos extraordinários de Deus possuem de característico o não poderem ser previstos pelo raciocínio”, (p. 35) diz Leibniz no Discurso), mas sim a regularidade com que essa força se apresenta e coloca, portanto, a necessidade de um milagre perpétuo e de um Deus “reformador”.

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Entretanto, incomodou a Leibniz, sobretudo, a precipitação com que Clarke tratou o princípio da razão suficiente, identificando Deus com um mecanicismo necessário e fatalista. Por essa razão, no quinto ensaio, Leibniz trata sobre a diferença entre motivo e causa real. O motivo não compele o sujeito, mas somente o inclina à determinada ação, preservando sua liberdade; a causa, por sua vez, necessariamente produz seu efeito, logo, está de acordo com ações mecânicas e passivas. Para Leibniz, atribuir à vontade divina a arbitrariedade na escolha é um erro que somente leigos – Newton dentre eles – cometem. A liberdade de Deus é consonante com a determinação de sua vontade, pois, como explica Koyré, não é “razoável pedir a Deus que aja de maneira irracional e despropositada, ainda que, falando-se estritamente, Ele seja capaz” (p. 229). Seguindo ainda a validade do princípio da razão suficiente, Leibniz volta a lembrar a ausência de razões para que Deus crie um universo limitado em matéria ou mova o mundo segundo uma trajetória linear e uniforme. Essa última ação não possuiria nenhum desígnio, “seria trabalhar sem nada fazer, agendo nihilagere” (p. 230). Porém, Leibniz ainda não havia exposto todas as razões que o levara a recusar esse movimento: Koyré afirma que o filósofo não havia mencionado a mais importante, a que se baseia no princípio da observabilidade do movimento. Segundo esse princípio,

[...] o Movimento não depende de ser Observado; mas depende de Observabilidade. Não há Movimento quando não há Mudança que possa ser Observada. E quando não há Mudança que possa ser Observada, não há absolutamente Mudança. A Opinião contrária funda-se na Suposição de um Espaço absoluto real, que eu refutei demonstrativamente pelo Princípio da necessidade de uma Razão suficiente para as coisas. (Leibniz, p. 231).

O movimento, concebido como uma mudança e não como um estado, é uma ideia que remonta a concepções aristotélicas e difere radicalmente daquela defendida por Newton, que afirma ser movimento verdadeiro a mudança de lugar. Essa diferença é tão essencial que a adoção do princípio da observabilidade por Leibniz coloca em xeque a validade do princípio mais eminente da física newtoniana, o da inércia. Se a permanência do estado de repouso ou de movimento retilíneo uniforme de um corpo não depende da 5

existência de outros corpos no mundo, essa permanência é sem sentido, pois não é mudança, tão pouco é uma ação provida de sentido. O princípio da observabilidade confirma o caráter relativo do movimento e do espaço. Relações que são, por sua vez, ideais. O espaço fora do mundo e o espaço vazio somente existem, lembra novamente Leibniz, na imaginação: é assim necessariamente, como os próprios escolásticos reconheceram. Ainda que, como nota Koyré, Leibniz abuse, em certo medida, do sentido das afirmações escolásticas – essas diziam que tais concepções do espaço eram imaginárias devido à finitude do mundo, finitude que Leibniz nega – essa apropriação é legítima: para os escolásticos, tempo e espaço são inseparáveis do mundo criado e não existem fora ou independentemente dele. Importante para Leibniz é deixar em evidência que espaço e tempo são análogos e ideais, e que a Duração não pode ser concebida como uma coisa real e eterna:

Tudo o que existe do Tempo e da Duração parece continuamente: e como poderia existir Eternamente uma coisa que (para falar exatamente) não existe jamais? Pois como pode existir uma coisa da qual nenhuma Parte jamais existe? Do Tempo não existe jamais senão Instantes, e um Instante não é sequer uma parte do Tempo. Quem quer que se detiver Nestas Observações compreenderá facilmente que o Tempo só pode ser uma coisa ideal. (Leibniz, p. 232).

Ainda que análogo, o paralelismo entre tempo e espaço não deve ser levado ao limite: ao fazê-lo, corre-se o risco de se admitir ou a infinitude do tempo ou a finitude do universo. O tempo, se infinito, implicaria na eternidade do mundo, o que traria consigo a eliminação do ato de criação divina. Porém, como afirma Leibniz, admitir que o mundo possui um começo não significa invalidar a infinitude de sua duração posterior; já afirmar que o universo possui limites invalida seu caráter infinito. Ora, é mais razoável atribuir a Deus o começo do mundo do que a finitude do universo. São esses axiomas leibnizianosque os adeptos de Newton relutarão em aceitar e, segundo Koyré, por bons motivos: a existência da física newtoniana depende do conceito de espaço absoluto. Leibniz prosseguirá então sua crítica à noção absoluta do espaço, de extensão e força de atração apresentadas por Clarke, críticas às quais o teólogo também apresentará, por sua vez, objeções. 6

BIBLIOGRAFIA KOYRÉ, A. Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Trad. Donaldson M. Garschagen, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. LEIBNIZ, G. W. Discurso da Metafísica; São Paulo: Martins Fontes, 2004.

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