ENTRE DERRROTISTAS (MAKEGUMI) E VITORISTAS (KASHIGUMI): O CASO SHINDO-REMEI NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO DE MILÍCIAS NIPOBRASILEIRAS NO PERÍODO DO PÓS-GUERA.

Diego Avelino de Moraes Carvalho1

RESUMO: A Shindo Renmei (“Liga dos súditos do caminho”) se tratou de uma organização paramilitar de descendência nipônica que se formou no interior de São Paulo, no período do pós-guerra. Tal milicia agia no sentido obtuso de “preservar o verdadeiro espírito nipônico” (Yamatodamashi) combatendo aquilo que nomeavam de “falsa propaganda inimiga”: a aceitação por parte de membros da colônia na “suposta” rendição do Japão na II Grande Guerra. Para esses, crer nisso seria violar a identidade japonesa, traindo a pátria e o imperador – pena imposta unicamente através da morte. Contudo, pouco se sabe de sua origem ao certo ou de seu desiderato/desintegração. Este presente artigo - como introdução de minha tese de Doutorado sobre o assunto - tem como objetivo, de modo suscinto, apresentar as dificuldades em torno do trato do tema, analisando a forma como se deu a produção de fontes para documentar estes acontecimentos e, sobretudo, a partir de quais prismas se orientaram a formação dessas milicias e sobre quais, supostamente, se deu sua desintegração. PALAVRA-CHAVE: Shindo-remei. Makegumi. Kashigumi. Pós-guerra. Memória

“Os laços que nos unem a vós, nossos súditos, não são o resultado da mitologia ou de lendas. Não se baseiam jamais no falso conceito de que o imperador é Deus ou qualquer outra divindade viva...” (Imperador Hiroíto, em seu discurso de rendição em 1 de janeiro de 1946)

O discurso de rendição do Japão - mais do que expressar sua proposta literal representou algo bem mais complexo em sua exposição já ambígua. De um lado, não se tem claro as expressões “derrota”, “rendição incondicional” – o que já reforça o sentimento obtuso dos receptores da mensagem. De outro lado, traz consigo uma afirmação mais delicada de que a ‘suposta’ reiteração da derrota japonesa: tratava-se do próprio imperador, o “descendente direto da Deusa-Sol”, se proclamar um mortal, falível, portanto, em seu empreendimento bélico. Tratava-se do Imperador negar o título de divindade, ferindo diretamente a crença de milhões de nipônicos verdadeiramente devotos à sua figura. O impacto que este discurso teve sobre a comunidade japonesa pelo mundo trouxe agravantes e outras consequências variadas que até os dias de hoje maculam a imagem das colônias e mesmo das descendências já imersas numa cultura global. Sobretudo no Brasil –

1

PPGH (UFG) – Doutorando; IFG/Campus Anápolis – Docente.

tida com a maior colônia japonesa no mundo2 –, após a segunda grande guerra, o que se viu foi a formação de diversas milícias agindo sobre a comunidade nipônica, seja sob o prisma de máfias já conhecidas da cultura popular – a Yakuza – ou de instituições visando a manutenção de valores tradicionais (o yamatodamashi) e a sustentação de discursos obtusos, como foi o caso de um de nossos objetos de estudo: a Shindo Renmei. A Shindo-Remei (Liga do caminho dos súditos) surge num contexto bastante peculiar da História do Brasil. Acredita-se que a mesma se formou já no inicio das primeiras medidas restritivas aos imigrantes, com o objetivo primeiro de salvaguardar paramilitarmente a colônia de qualquer investida mais agressiva por parte do Estado. Entretanto, as fontes mais seguras datam-na do período pós-guerra, com um tempo de atuação relativamente, tendo o seu desfecho jurídico tomado apenas em 1958, com a prescrição do caso. Em linhas gerais, a Shindo-Renmei se tratou de uma organização paramilitiar (miliciana) que visava a manutenção radical do Yamatodamashi e o combate a qualquer ideia que poderia ferir estes princípios ou obliterar o seu desenvolvimento. No entendimento coletivo, aquela situação só poderia representar uma fraude de graves proporções, sendo que quem acreditasse nessa “mentira dos inimigos” deveria ser considerado um traidor da pátria, um Makegumi, como ficaram conhecidos os “derrotistas” japoneses que “propagavam as inverdades sobre o óbvio”. No entanto, o que parece intrigar é do por que - para além dessa crença mística na supremacia da “raça de Yamato” – as colônias japonesas não tomaram os fatos que eram noticiados na imprensa da época como vereditos sobre o fim da guerra, levando-os a atos extremistas para sustentar a ideologia “vitorista” do Japão na segunda grande guerra. Na tentativa de compreender estas motivações, percepções e crenças, é preciso ser considerado a própria condição de vida que a colônia japonesa vivia, sobretudo no Brasil, seja no “entre-guerras” ou no pós-guerra. As medidas restritivas aos chamados “quistos asiáticos” levavam a população a um estado de calamidade imigratória, de severas consequências para o processo de adaptação da colônia. O Brasil abarcou o maior contingente de imigração, seguido do Canadá e do Havaí. Durante os primeiros sete anos do acordo cooperativo entre Japão-Brasil cerca de 3430 famílias – ou 14.983 pessoas – foram despachadas para cá. Com a eclosão da primeira guerra mundial, em 1914, o fluxo migratório aumenta vertiginosamente, subindo este contingente para cerca de 160 mil imigrantes japoneses, situando especialmente no Estado de São Paulo. Embora como parte de um acordo de cooperação econômica, num primeiro momento, isso não representou a garantia de boas 2

http://www.saopaulo.sp.gov.br/imigracaojaponesa/historia.php

condições de vida e trabalho, levando nos primeiros anos a fortes eventos de desagregação. Isso se devia à ausência de assistência médica, escolas para os filhos e, principalmente, às condições de trabalho semiescravo. Somado a todos estes fatores, décadas após a iniciada imigração em massa japonesa no Brasil, fatores de dissabores passam a ocorrer em virtude de um forte sentimento xenofóbico por parte dos próprios brasileiros. O surgimento, em pouco tempo, de uma colônia estrangeira tão numerosa acabou por despertar ódios nacionalistas, abertamente racistas, como demonstra a posição de homens públicos como Miguel Couto, Félix Pacheco e Xavier de Oliveira, dentre outros, que defendiam uma espécie de política de “melhoramento do tipo racial”, como foi expresso na Constituinte de 1934, num texto conhecido como “cruzada contra o perigo amarelo”: (...) Muitos anos antes do começo da segunda guerra os ‘eugenistas’, com o indisfarçado apoio da conservadora Igreja Católica de Dom Sebastião Leme, cardealarcebispo do Rio de Janeiro, já viam o imigrante japonês como um problema. Um perigo cuja prevenção exigia ‘cuidados extremos e vigilância atenta’. Influenciada por essas ideias, grande parte da imprensa se referia aos núcleos de imigrantes como ‘quistos asiáticos’. (MORAIS, 2001, p. 32)

Como se não bastassem as consequências que este tipo de mentalidade recaiu sobre a colônia, seja como atitudes fortemente excludentes ou como sintomas de uma forte intolerância ao “diferente”, foi a partir do chamado “Estado Novo” que a onda de perseguição aos japoneses e outros imigrantes inicia-se, se instalando de modo mais veemente. Estudos foram feitos a mando de Vargas para “questionar o problema da mestiçagem das raças, da eugenia, do perigo dos quistos raciais e da necessidade de um rígido controle da imigração, entrando em cena “o perigo semita” e o “perigo amarelo” (CARNEIRO, 1988, p. 101). Nesse sentido Vargas a partir de 1938, lança uma série de decretos em torno dos imigrantes entre eles o decreto 868, de 18 de novembro de 1938, que resulta no “fechamento de 200 escolas japonesas no Estado de São Paulo e na denúncia de vários professores pelo exercício de atividade ilegal” (HATANAKA, 2003). A partir de 1933 fora aprovada uma série de leis restritivas como a proibição do ensino de língua japonesa a crianças menores de 10 anos de idade. Endurecendo ainda mais estas políticas de caráter xenofóbico e eugenistas, no dia 29 de Janeiro de 1938, a Superintendência de Segurança Política e Social de São Paulo publicou uma portaria regulatória acerca da atividade de imigração de estrangeiros ligados aos “países do Eixo”. Segue o texto:

“Em face da ruptura das relações diplomáticas do Brasil com a Alemanha, Itália e Japão, faço publico que ficam os súditos destes últimos países residentes neste Estado, proibidos: - Da disseminação de quaisquer escritos nos idiomas de suas respectivas nações; - De cantarem ou tocarem hinos das potencias referidas; - Dar saudações peculiares a estas potências; - Do uso de idioma das mesmas potências em concentrações de lugares públicos; - De exibir em algum lugar acessível ou exposto ao público retrato de membros do governo daquelas potencias; - De viajarem de uma para outra localidade sem salvo conduto fornecido por essa superintendência; - De se reunirem, ainda que em casas particulares, a título de comemoração de caráter privado; - De discutirem ou trocarem ideias, em lugar público sobre a situação internacional; - De usarem armas mesmo que hajam anteriormente obtido o alvará competente, bem como negociarem com armas, munições ou materiais explosivos ou que possam ser utilizados na fabricação de explosivos; -De mudarem de residência sem comunicação previa a esta superintendência; - De se utilizarem de aviões que lhe pertençam; -De viajarem por via área sem licença especial concedida por esta superintendência. Os salvos condutos serão fornecidos todos os dias uteis, das 9 as 11 horas – das 14 as 18 horas - das 21 às 23 horas. Aos domingos das 14 às 17 horas. Olinto de França de Almeida e Sá, major do exército, superintendente da segurança política e social.

Agora nos parece mais claro, portanto, a razão do aparecimento de diversas agremiações/milícias ou mesmo um discurso peculiar no interior da colônia japonesa: que toda informação que chegava da grande guerra deveria ser ouvida com reservas, já que os meios de comunicação haviam sido obliterados pelo “inimigo do espírito japonês”. Em 1938, no bojo da repressão, o presidente Getúlio Vargas baixa um decreto de 20 de agosto proibindo quaisquer publicações em línguas estrangeiras, sem o consentimento do Ministério de Justiça. Pelo menos duas dezenas de periódicos circulavam em São Paulo, tais como: Seishu-Shimpo, Brasil Asahi, Nambei, Nippak, Shimbu e Bujairo Jiho. Embora não fosse o propósito getulista, tais medidas acabaram por decretar a morte da imprensa japonesa no Brasil, uma vez que estes eram os principais veículos de informação, com tiragem média diária de 50.000 cópias. “Os imigrantes japoneses enxergaram no decreto, porém, um detalhe que os deixou ainda mais apreensivos. Em nome da necessidade de impedir ‘o cultivo demasiadamente vivo da língua, de tradições e costumes estrangeiros numa determinada zona’, o governo também proibira, além de jornais e revistas, a edição de livros em línguas estrangeiras. Como praticamente todos os japoneses educavam seus filhos na língua pátria – com livros escritos em japonês, importados ou impressos no Brasil -, o decreto significava que suas crianças seriam as próximas vítimas dos problemas internos brasileiros”. (MORAIS, 2000, p.36)

As medidas restritivas, mais do que dificultarem o acesso a noticias factuais do

período bélico representou para a comunidade ser condenada ao silêncio e à desinformação. Tais medidas expressaram algo profundamente significativo para o povo japonês: uma violação ao “Yamatodamashi” – a doutrina do “espírito nipônico” e do “modo de vida japonês”. Como dentro das medidas estavam expresso o fechamento de escolas japonesas, para a colônia as suas crianças estariam privadas, portanto, de aprender o “real padrão de comportamento japonês”, aprendendo a ser bons e leais súditos do imperador Hiroíto. Somado a todos estas “violações”, acrescem ainda medidas que afetariam definitivamente o sonho da grande maioria dos japoneses: o retorno à pátria depois de ter angariado os louros da (i)migração. Dentre as medidas destaca-se a que proibia a transação financeira com empresas dirigidas por japoneses, italianos e alemães – a não ser que fossem “autorizadas” pelo Banco do Brasil. “Não era de surpreender, assim, que o retorno à terra natal fosse o sonho de 85 por cento dos japoneses residentes em São Paulo no começo da guerra, segundo pesquisa feita pelo governo. Mas eles sabiam que, enquanto a guerra durasse, a volta ao Japão seria apenas isso, um sonho. O confisco das economias, a proibição de se reunir em grupos de mais de três pessoas, o fechamento dos jornais japoneses, a proibição de viajar, de andar armado e até de falar, tudo isso parecia ser o ‘insuportável’ que o imperador havia pedido a seus súditos que suportassem. À noite, antes de dormir, as famílias oravam silenciosamente pedindo bênçãos a Fudo, o deus budista encarregado de combater os demônios, e a Kannon, a deusa da misericórdia”. (MORAIS, 2000, p.48)

Neste contexto – não é, portanto, de se estanhar - surgirem no Brasil, em especial em território

paulista

(onde

se

concentrava

a

maior

parte

da

colônia)

diversas

associações/milícias que se arregimentavam em torno de preservar um silogismo claro: “o Japão não perdeu a guerra. Toda informação contrária a isso é propaganda inimiga. Aceitar esta inverdade representa trair a pátria”. À margem da lei, três associações merecem destaque primal: Seinem Doski Kai (Associação dos Jovens Correligionários), originalmente fundada em Mogi das Cruzes, Zaihaku Zaigo Gunjin Kai (Sociedade dos ex-militares japoneses no Brasil) e Shindo-Remmei (Liga do Caminho dos Súditos) todas instaladas durante a Segunda Guerra Mundial. Tais associações/milícias visavam a preservação do “Yamatodamashi” (ou “espírito nacionalista nipônico”). “Preservar”, neste contexto, representava mais do que manter vivo um legado cultural (como já era empreendido na colônia através da pratica diária do idioma, dos ritos religiosos, das datas festivas/comemorativas, etc, a despeito do rosário de proibições expressas pelos decretos), mas antes, sustentar a premissa de que negar a vitória ao Japão na guerra representaria negar a própria condição de ser japonês. De todas as associações/milícias, seguramente a Shindo Renmei merece destaque primal, seja pela motivação pela qual se sustentou, seja pelo seu desiderato – não bem esclarecido pela historiografia que se ocupou da questão. Embora tenha surgido com o

propósito de manter viva a chama da cultura japonesa, o espírito nacionalista inquebrantável, assim como a imagem do imperador Hiroíto, a partir da Segunda Guerra e a derrota do Japão, a associação tornou-se mais radical e passou a assassinar os imigrantes japoneses que acreditassem na derrota japonesa frente aos aliados. Os membros da Shindo-Renmei falsificaram revistas e jornais internacionais para que os japoneses acreditassem que seu país de origem havia vencido a guerra. Valia a premissa muito difundida entre seus principais líderes: “combater a mentira com a mentira” – tudo para que não se ferisse a imagem do imperador, ou que se sustentasse “a verdadeira inverdade” sobre a suposta derrota do Japão “propagandeada pelo inimigo”. As ações contra japoneses não patriotas e brasileiros durante os anos de 1945 a 1950, por associações clandestinas se transformaram de tal forma a sair do controle da justiça. O balanço de vitimas, “Durante os treze meses de atuação da Shindo-Renmei, 23 pessoas foram mortas pela organização e 147 ficaram feridas. Ao todo a polícia paulista prendeu, identificou e fichou 31.380 japoneses, embora 1.423 tenham sido acusados pelo Ministério Público, a Justiça só aceitou a denuncia contra 381”. (MORAIS, 2001, p.331) Em 1946, o presidente Eurico Gaspar Dutra baixou um decreto considerando “elementos nocivos aos interesses nacionais” e expulsando do Brasil oitenta imigrantes, acusados de serem mandantes ou executores dos crimes da Shindo-Renmei (Idem, p.334). Segundo Dezem, “Em 1950, o governo brasileiro intercedeu. A justiça brasileira preocupada com o crescimento da ousadia Shindo-Renmei, reuniu mais de mil indiciados num dos maiores processos judiciários do país”(DEZEM, 2000, p.81). As audiências foram em vão durante todo o ano de 1950, nenhum acordo foi firmado entre o governo e os japoneses indiciados. Nenhum japonês citado na lista presidencial foi expulso e, em dezembro 1956, metade dos imigrantes presos já tinham cumprido dez anos de prisão, neste ano “o Presidente Juscelino Kubitschek cancelou todas as prisões, colocando todos os presos em liberdade” (Idem, p.85) Em agosto de 1958, devido à demora, a Promotoria Pública decretou a prescrição do caso Shindo-Renmei. Logo após, entre dezembro de 1959 e junho de 1963, o ato expulsório decretado em 10 de agosto de 1946 foi revogado, atingindo oitenta japoneses. Finalmente em maio de 1966, foi julgada extinta a punibilidade de todos os réus de acordo com a sentença de agosto de 1958 (MORAIS, 2000). Dava-se, portanto, o fim (ao menos jurídico) de um dos capítulos mais obscuros da história do Brasil. No entanto, algumas questões surgem a partir dessa “narrativa standart” sobre os acontecimentos. Embora tenha sido evidente um movimento de repressão mais agudo para

com a colônia japonesa (contrariamente aos outros “súditos do eixo”), como justificar a formação de associações/milícias de atuação tão extrema, quando não vimos em igual propriedade nos “quistos italianos e alemães”? Estaria somente justificada a formação dessas verdadeiras instituições tomando-as apenas como sintomas de um processo de repressão imigratória? Perguntando de modo mais direcionado ao âmbito de nossa pesquisa: quais foram os elementos culturais determinantes para a formação dessas milícias, uma vez que elas se sustentavam sobre discursos bem estabelecidos no âmbito de suas crenças? E questionando de modo mais incisivo: estaria a narrativa standart verdadeiramente sintonizada com os acontecimentos, sobretudo no tocante ao desiderato dessas milícias? Na tentativa de ofertar respostas satisfatórias para este capitulo enegrecido da história do Brasil e da imigração japonesa, nosso trabalho pretende lançar luzes às questões aqui levantadas e que, seguramente, nos orientaram para uma narrativa não somente descritiva, mas, sobretudo, analítica. De modo geral, a primeira reação que a maioria das pessoas tem ao saber da história da Shindo-Renmei (Liga do Caminho dos Súditos) é acreditar que os japoneses que recusavam a acreditar na derrota do Japão eram um grupo de pessoas ingênuas ou meramente fanáticas. Questiona-se também o por que de algo tão significativo para a História do Brasil tenha sido ligeiramente esquecida ou debate nos círculos acadêmicos com a profundidade e rigor necessários. Sucintamente, a Shindo Renmei se tratou de uma organização paramilitar de descendência nipônica que se formou, predominantemente, na cidade de Tupã-SP, no período do pós-guerra, agregando adeptos de várias classes econômicas e nível cultural dentro da colônia. Pouco se sabe de sua origem ao certo ou de seu desiderato/desintegração. A historiografia que se ocupou do assunto dividiu suas abordagens em dois eixos: 1) Analisar o processo judicial dos indiciados; 2) Contextualizar o processo de “exploração/subjugação” econômica e social que a colônia viveu a partir da década 30, redundando no surgimento destas milícias.3 É preciso considerar, entretanto, a dificuldade encontrada na análise do caso, e isso se deveu, principalmente, à carência de fontes documentais sobre o ocorrido, à escassez de 3

Sobre a análise judicial, ver: HATANAKA, Maria Lúcia Eiko. O processo judicial da Shindo Renmei – Um fragmento da história dos imigrantes no Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo, Puc-Sp, 1993. Sobre a contextualização socioeconômica, ver: MORAIS, Fernando. Corações sujos. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.

registros relativos a inquéritos satisfatórios, mesmo havendo trabalhos acadêmicos que se ocupou inteiramente desta abordagem (HATANAKA, 2003); dos diminutos relatos orais de testemunhas vivas do evento, dado a esta resistência por parte da colônia em lidar com um passado que parecem querer esquecer ou simplesmente não considerar dentro de sua história. Desta forma, uma das obras que mais merecem destaque trata-se de um trabalho muito mais jornalístico (para não dizer “romanceado”) do que propriamente historiográfico. Refirome à obra do jornalista Fernando Morais, intitulada “Corações Sujos” (MORAIS, 2000) e da recente obra cinematográfica de título homônimo. Não desmerecendo o esforço intelectual destas obras, não se observa, entretanto, uma abordagem mais sistêmica, uma análise de fontes mais abrangentes ou mesmo um referencial teórico consistente. Busca-se nessas obras uma narrativa mais ligada a eventos e memórias fragmentadas, tratando de motivações até triviais ou quando muito, como expressões radicais e ultranacionalistas para os acontecimentos. O mérito, na verdade, se dá por serem obras de maior abrangência narrativa, mesmo que de modo sintético e por vezes superficial – o que no mínimo nos garante uma compreensão global dos eventos. Embora questionemos a abordagem e à análise muito simplista de fontes, sejam materiais e orais, destacam-se por promoverem um esforço balanceado dos acontecimentos – algo significativo em termos de síntese ou visão an passant, mas carente em termos de rigor analítico. O fato é que conhecer a história da Shindo-Renmei representa compreender o contexto histórico e cultural da colônia japonesa. Narrar os acontecimentos em torno dessa organização representa, de um lado, abordar a parte trágica da história da imigração japonesa no Brasil. História essa que deixou marcas profundas entre os imigrantes, gerando reservas de toda ordem por parte dos remanescentes deste período e de sua descendência. Algo relevante já encontrado no cerne das primeiras investigações sobre o referido tema é que estas associações não representavam de modo absoluto a insigna que acabaram por se estigmatizar. Sim, se trataram de organizações de fins extremos e não meramente “preservacionistas do costume nipônico”, embora aquele possa ser consequência da resignificação deste (como pretenderemos analisar no âmbito desta pesquisa, sobre o conceito de Yamatodamashi). Entretanto, a partir de breves entrevistas já previamente realizadas com descendentes, apontam para a compreensão de que no cerne dessas associações as visões sobre os acontecimentos, medidas a serem tomadas, estratégia para preservação dos costumes e tradições, do “espírito nacionalista” eram interpretados de forma muito variada por diversos membros, levando-nos a crer que os aspectos extremos de suas ações não pertenciam à motivação integral de seus membros.

Seguramente, muitos destes romperam relações posteriores com a Shindo-Renmei preferindo não terem seus nomes ligados a esta associação, dado os escolhos que isso se tornou para a memória da colônia. Desta forma, tornou-se difícil o acesso, sobretudo, de fontes orais sobre o ocorrido, restando predominantemente abordagens de outras naturezas sobre o fato, como a análise inqueritorial. Nesse sentido, destaca-se outra obra de extremo valor: “Shindo-Renmei: Terrorismo e Repressão”, de Rogério Dezem (DEZEM, 2000), abordando várias séries de investigações preliminares. Entretanto, nessa obra, o autor não pretendeu reconstruir a história da Shindo-Renmei, antes, oferecer subsídios para futuras pesquisas sobre a citada organização que propunha o “resgate e manutenção dos valores da tradição comunitária japonesa”. Dezem adverte que a maior parte dos documentos consultados e analisados reflete a visão da polícia política do Estado de São Paulo (DEOPS) sobre a Shindo-Renmei. É com base nesses questionamentos que Dezem, catalogou cerca de 200 prontuários obtidos nos Arquivos do DEOPS, datados de 1945 a 1953, podendo assim viabilizar a pesquisa historiográfica e tornar público todo o processo em torno da ShindoRenmei. Excetuando estas obras – que acabaram por se tornarem “referências”- dado à escassez de fontes e até mesmo abertura para o tema, o que temos são obras tratando de aspectos bem específicos dos eventos, seja na aludida análise do processo judicial, ou ainda focando em aspectos sintomáticos das consequências de formação dessas milícias, tais qual o impacto econômico que isto trouxe para a colônia ou de que forma estes acontecimentos ajudaram a calar a memória de um povo já marcado pelos terrores do (pós) guerra. Entretanto, não encontramos na restrita bibliografia sobre tema, trabalhos que tenham se ocupado de modo profundo, sistemático e analítico sobre a questão de como se deu o processo de formação dessas milícias, tomando como referência o modo pelo qual se resignificaram suas crenças num período de intenso dissabor imigratório. É, portanto, sobre esse prisma que assenta nossa pesquisa, considerando, portanto a análise dos elementos culturais que levaram à formação dessas milícias no Brasil, mais do que necessariamente destrinchar o seu suposto modus operandi, como as obras de outrora. A motivação inicial para nos debruçarmos sobre essa pesquisa se deu pelo convivo direto que possuímos, seja com testemunhas oculares vivas do processo histórico, seja com descendentes diretos e indiretos destas. Após o centenário da imigração japonesa em 2008, diversos estudos sobre o processo de colonização foram publicados, notadamente sobre as comunidades que se formaram em Tupã, Mogi das Cruzes, Bastos e outras cidades do oeste paulista. Tais estudos nos ajudaram a mapear famílias que estiveram presentes neste contexto.

Dado ao tipo de relações que desenvolvemos na esfera cultural-marcial, tivemos a oportunidade de estreitar laços de proximidade com tais famílias, se dispondo estas a nos auxiliar neste empreendimento acadêmico. É fato que durante muito tempo, tal assunto permaneceu (e ainda encontra eco deste sintoma) como um tabu para a colônia japonesa. De um lado, há aqueles que vivenciaram diretamente os acontecimentos, sendo artífices ou vitimas da “dupla repressão”. Para estes, trata-se de um assunto que merece ser varrido para o tapete da história, uma vez que além das dores da lembrança, na concepção destes, tais acontecimentos maculam a honra da cultura japonesa. Afirmam que as milícias de outrora, de modo geral, ao invés destas afirmar-se como meras “mantenedoras equivocadas do yamatodamashi”, se caracterizaram por se converterem numa própria negação deste conceito tão caro para a identidade nipônica, dado aos acontecimentos funestos ocorridos no interior da colônia. Não dispostos a rememorar os acontecimentos ou, simplesmente, “dar seguimento à vida simples, né” – como é de comum ouvir em suas falas – foi difícil para os que se ocuparam desta empresa até então, coletarem dados, informações e memórias significativas na tentativa de reconstruir uma narrativa mais analítica e rigorosa. Do outro lado do espectro dos acontecimentos, há os próprios “sobreviventes”, lides das associações, participantes diretos/indiretos, ou ainda descendentes destes que preferiram o isolamento da colônia, por medo de represálias por suas ações. Tudo isso dificultou o trabalho historiográfico dos últimos tempos, sobrando apenas aquilo que estava mais palpável em termos de fontes:, jornais, revistas, inquéritos policiais e processos judiciais ou parcas descrições de “sobreviventes”. Embora as dificuldades prementes deste esforço intelectual, fomos motivados a esta pesquisa por justamente dispormos de fontes orais inéditas sobre o assunto e mesmo “vivência” sobre parte do tema. Há cerca de quinze anos chegou a Goiânia-Go o senhor Kenjiro Misawa, descendente de Noriyoshi Misawa – personagem significativo em nossa pesquisa, sobretudo no tocante à conexão entre a “Zaihaku Zaigo Gunjin Kai” (Ordem dos ex-militares japoneses no Brasil) e a Shindo-Renmei e o desiderato que estas associações tiveram a partir de 1947. Senhor Noriyoshi Misawa continua vivo aos 87 anos de idade, residindo na cidade de Londrina. Seu filho, senhor Kenjiro Misawa se dispôs a ser o portavoz de sua família nas descrições e percepções sobre o ocorrido, além de servir de ponte com a comunidade japonesa remanescente, seguramente com outros membros e testemunhas oculares desses acontecimentos. Instalado em Goiânia-Go, o senhor Kenjiro Misawa mantém atividades de cunho marcial e cultural no “Aizu Hombu Gakko” – escola fundada há dez anos na capital com o objetivo de manter vivo o legado cultural dos samurais da região de Aizu

(Atual Fukushima, Japão), vivenciando o que se entende por verdadeiro Yamatodamashi – um conceito mais puro de identidade nipônica, completamente destituído do caráter extremista com o qual se resignificou sob o prisma dessas milícias. Desta forma, de posse de uma fonte oral inédita além de um repositório vivo dos conhecimentos ancestrais da cultura japonesa, acreditamos que nossa pesquisa se justifica como um esforço relevante em procurar compreender e reatualizar o debate sobre o tema. Vivenciando diariamente a cultura oriental nipônica e tendo o contato direto com remanescentes do ocorrido, cremos que a despeito dos subjetivismos próprios deste tipo de aproximação, nossa pesquisa ganha corpo em ineditismo e possibilidade de alocar a história da Shindo-Renmei com algo além de meras ações extremistas, localizadas num veio maniqueísta. Compete nossa pesquisa a ofertar uma compreensão profunda, dando um “sentido” para as ações e dissociações destas milícias, enquanto resultantes de uma forma de perceber e resignificar a realidade, o mundo e seus valores.

BIBLIOGRAFIA CARNEIRO, Maria Lucia. O Anti-Semitismo na Era Vargas (1930-1945). São Paulo: Brasiliense, 1988. DEZEM, Rogério. Shindô-Renmei : Terrorismo e Repressão – Módulo III – Japoneses . São Paulo, Arquivo do Estado/Imprensa Oficial. 2000. HATANAKA, Maria Lúcia Eiko. O processo judicial da Shindo Renmei – Um fragmento da história dos imigrantes no Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo, Puc-Sp, 1993. MORAIS, Fernando. Corações sujos. São Paulo, Companhia das Letras, 2000.