CADERNO DE TEXTOS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES DE TERAPIA OCUPACIONAL UFMG 2015

CADERNO DE TEXTOS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES DE TERAPIA OCUPACIONAL UFMG – 2015 Demandas Sociais x Formação Acadêmica Formação Acadêmica ...
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CADERNO DE TEXTOS DO XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDANTES DE TERAPIA OCUPACIONAL UFMG – 2015 Demandas Sociais x Formação Acadêmica

Formação Acadêmica x Demandas Sociais

F

Belo Horizonte - 2015 1

Para os que virão

Não importa que doa: é tempo de avançar de mão dada com quem vai no mesmo rumo,

Como sei pouco, e sou pouco,

mesmo que longe ainda esteja

faço o pouco que me cabe

de aprender a conjugar

me dando inteiro.

o verbo amar.

Sabendo que não vou ver o homem que quero ser.

É tempo sobretudo de deixar de ser apenas

Já sofri o suficiente

a solitária vanguarda

para não enganar a ninguém:

de nós mesmos.

principalmente aos que sofrem

Se trata de ir ao encontro.

na própria vida, a garra

(Dura no peito, arde a límpida

da opressão, e nem sabem.

verdade dos nossos erros.) Se trata de abrir o rumo.

Não tenho o sol escondido no meu bolso de palavras.

Os que virão, serão povo,

Sou simplesmente um homem

e saber serão, lutando.

para quem já a primeira e desolada pessoa

Thiago de Mello

do singular - foi deixando, devagar, sofridamente de ser, para transformar-se - muito mais sofridamente na primeira e profunda pessoa do plural.

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1. Um pouco sobre o Histórico das executivas de curso

As executivas de curso surgem a partir da década de 70. Estudantes de alguns cursos sentiram a necessidade de se organizar para assuntos mais coorporativos que a UNE (União Nacional dos estudantes) não dava conta. Nesta época, a UNE já existia (ela surgiu na década de 30), e iria, a partir da década de 80, protagonizar eventos importantes de luta como “Diretas já” e “Fora Collor”. A UNE foi representativa de fato até a época de combate contra a ditadura. Na década de 90 ela começou a se burocratizar e com isso deixou de pautar grandes lutas do ME como um todo. Assim, o ME sentiu necessidade de fundar suas executivas de curso, para poder dar respostas às questões que a UNE não abarcava mais, ou seja, as executivas surgiram por causa da necessidade de representação. Mas algumas executivas já surgiram após o rompimento do ME com a UNE. Como exemplo, temos a nossa Executiva, EXNETO. Existem muitas executivas de curso, entre estas podemos citar as dos cursos de saúde (DENEM – Direção executiva nacional dos estudantes de medicina, EXNEEF- Executiva Nacional dos estudantes de educação física, ENEEnf – Executiva Nacional dos estudantes de enfermagem, DENEFONO – Direção executiva nacional dos estudantes de fonoaudiologia, ENEFI – Executiva Nacional dos estudantes de fisioterapia, ENEP – Executiva Nacional dos estudantes de psicologia; ENEN – Executiva Nacional dos estudantes de Nutrição entre outras). Com o tempo, estas executivas e outras se fortalenceram em torno de temáticas especificas dos cursos (como os currículos, avaliação, questões da universidade, qualidade dos cursos...) e questões políticas mais gerais, mas que se aproximam do cotidiano dos estudantes. Tem se a necessidade de articular em âmbito nacional as executivas de curso. Para tanto, as executivas encontram-se periodicamente em um Forum de Executivas – FENEX (Forum Nacional de executivas e federações de curso), que se propõe como espaço não deliberativo, mas de reflexão e articulação entre as entidades estudantis. Assim é um espaço de trocas de experiências entre as executivas, sem processos de votação, sem disputa de cargo, sem sede e diretoria fixa, em contrataste com a UNE. Não é um espaço representativo (ninguém e nenhum grupo político fala pelo fórum) mas um espaçorede, descentralizado e democrático. Tem tocado, principalmente, o boicote ao ENADE (Exame Nacional de desempenho dos estudantes) e aos ataques do REUNI (Reestruturação e expansão das universidades federais) às Universidades. 3

As executivas em sua maioria, trazem estruturas mais flexíveis que aquelas do Movimento estudantil clássico. Procura ser uma entidade que dialoga e se aproxima mais do estudante. Por esta razão os espaços das executivas privilegiam a discussão em pequenos grupos e construção de um pensamento critico, e por esta razão difere de espaços de seminários e congressos. Facilita também se aproximar de problemas específicos de cada localidade, como falta de professores, características próprias da região e outras questoes. Propõe-se também como um importante espaço de entrosamento e interação entre os estudantes de todo pais. As executivas tem revelado um importante papel na participação dos estudantes no movimento estudantil, agregando estudantes que de outra forma não se organizariam.

O inicio da ExNETO: Na década de 70, estudantes dos cursos de Fonoaudiologia, Fisioterapia e Terapia Ocupacional fundaram a Executiva Nacional de Universitários de Reabilitação (ENUR), uma das primeiras tentativas de organização e troca de conhecimentos entre os estudantes. No que se refere a organização específica dos estudantes de Terapia Ocupacional, tem-se a realização do I ENETO (Encontro Nacional de Estudantes de Terapia Ocupacional) que foi realizado na Universidade Federalde São Carlos (UFSCar) em 1998. Outros ENETOs aconteceram depois desse primeiro e até hoje esse evento configurase como o principal espaço de construção e deliberação dos estudantes: 1999 (São Paulo); 2001(Campinas); 2002 (Belo Horizonte) - nesse encontro os estudantes de terapia ocupacional de todo o Brasil sentiram a necessidade de se organizar e continuar a trocar informações nacionalmente criando a União Nacional dos Estudantes de Terapia Ocupacional (UNETO); 2003 (Belém) – inicia-se a idéia de criação de uma Executiva Nacional; 2004 (Salvador) – a ExNETO é fundada; 2005 (Curitiba); 2006 (Belo Horizonte); 2007 (Maceió); 2008 (São Paulo); 2009 (Belém); 2010 (Recife)

Os espaços do movimento estudantil da TO: A ExNETO surgiu em meados de 2004, não só como organização administrativa acadêmica, mas também como organização social, ela surgiu com o objetivo de defender que não há formação de qualidade sem que haja o conhecimento do que é a sociedade e de como ela realmente funciona. A ExNETO encampou e continua encampando lutas a favor da educação e saúde pública, gratuita, democrática e de qualidade, além de condições materiais que homens e mulheres tenham uma vida digna e justa, por meio de discussões, campanhas, 4

ocupações e atos públicos, fazendo isso junto ao coletivo de estudantes de T.O., de outros estudantes, trabalhadores e mais pessoas que sonham e se movimentam para dizer não as injustiças que acontecem em nossa sociedade e se propõem a modificá-la. (Mercedes Queiroz Zuliani, terapeuta ocupacional e ex-militante da ExNETO). A ExNETO – Executiva Nacional de Estudantes de Terapia Ocupacional corresponde a entidade máxima de representação estudantil dos estudantes de Terapia Ocupacional. Cabe a ela viabilizar articulação com estudantes do curso, através dos centros ou diretórios acadêmicos principalmente, para discutir os posicionamentos dos estudantes sobre os mais variados assuntos, representá-l@s em espaços nacionais como conferências de saúde, congressos estudantis, etc. e depois socializar tais vivências com a comunidade estudantil, alem de organizar e incentivar que este movimento se concretize através de uma discussão e ações critica nos assuntos que interferem no curso. Ela se estrutura por meio de uma Coordenação Nacional (CN). Além da Coordenação Nacional, a ExNETO também possui Coordenações Regionais.

CAs e DAs: O Centros e Diretórios acadêmicos que constroem a ExNETO terão um contato mais próximo com a realidades dos estudantes, desempenhando este papel fundamental da ExNETO com a base. A proposta da ExNETO não é ser uma entidade burocrática e verticalizada, portanto os centros e diretórios acadêmicos desempenham um papel importante de dialogo com a executiva e com os estudantes.

ENETO: O ENETO – Encontro Nacional dos estudantes de terapia ocupacional concretiza-se como principal fórum de organização, discussão, articulação e Maximo de deliberação. Os Encontros Nacionais ocorrem anualmente e são os eventos de maior importância para o movimento de Terapia Ocupacional. Neles que realizamos boa parte de discussões e construímos as deliberações para serem seguidas pela executiva/ METO (Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional). Alem disso é um importante espaço para aproximação com estudantes que não conhecem a ExNETO. O ENETO se concretiza através da articulação da EXNETO e da COMORG (Comissão organizadora) local, que ira sediar o encontro. São propostas como espaços mesas, grupos de discussão, coletivos (para discussão e manutenção do encontro, pois é um evento 5

feito por e para estudantes), vivencias em movimentos sociais, grupos de trabalho (que encaminham propostas) e a plenária final ( onde serão deliberadas as propostas discutidas nos GTS)

CONEETOS: Os CONEETOS – Conselho de entidades estudantis de terapia ocupacional ocorre duas vezes ao ano. Ambos acontecem com o objetivo de formação da coordenação nacional e fortalecimento da localidade que ira receber o CONEETO. O primeiro ocorre a posse da coordenação nacional que foi eleita no ENETO. No segundo é feito a programação de todo próxima ENETO.

Nossas bandeiras de luta:

Educação: Lutamos para que todos tenham acesso à educação gratuita, pública, socialmente referenciada e de qualidade, pois isso é um direito de todos brasileir@s. Nossas discussões sobre educação focalizam a qualidade da formação do estudante de Terapia Ocupacional. Defendemos a idéia de que nossos estudos não podem ser distanciados da realidade brasileira e devem propor soluções para os problemas da nossa sociedade. Dessa forma, nos colocamos contra a precarização da educação visualizada em propostas do Estado como REUni e PROUni, nas reduções de verbas e as formas de processo seletivo (Novo ENEM e vestibulares), e formas de avaliações reguladoras impostas (como o SINAES), ou seja, contra a Reforma Universitária.

Saúde: Defendemos o conceito ampliado de saúde. Acreditamos que a luta pela saúde não pode ser separada da luta por uma sociedade que permita o SUS funcionar da forma como seus princípios o orientam: universal, integral, igualitário, equânime, eficaz, eficiente e com uma verdadeira participação popular. Por considerarmos a Saúde um direito de todos e um dever do Estado e não uma mercadoria, nos colocamos contra todas as formas de privatização e mercantilização dos serviços de Saúde.

Movimentos Sociais: 6

Defendemos o direito de organização do coletivo e entendemos o Movimento Estudantil como um Movimento Social. Por esta razão nos opomos a qualquer criminalização de movimentos sociais. Neste âmbito nos colocamos na luta ao lado dos outros movimentos cujas bandeiras dialoguem com o caráter político dessa entidade. Ex: Movimento antimanicomial, movimento pelo poder popular, pela reforma agrária, movimentos sindicais, movimento da pessoa em situação de rua, movimento pela moradia, outros âmbitos do movimento estudantil...

Terapia Ocupacional: Discutir de forma crítica junto aos estudantes a formação acadêmica e atuação profissional e suas repercussões na sociedade. Problematizar também a representatividade, regulamentação e fiscalização da profissão (conselhos, associações) e a questão da organização dos trabalhadores (sindicatos). Consideramos o caráter dinâmico da sociedade e dos nossos posicionamentos, não nos restringindo às pautas aqui citadas, mas com abertura a revisão das mesmas e debatendo com compromisso as demandas, uma vez que visamos instigar a ampliação da consciência política dos estudantes . Acreditar e afirmar os princípios de luta da ExNETO são elementos fundamentais para perpetuar o projeto de transformação que a entidade propõe

Discussão sobre o trabalho e a necessidade de se organizar: Nosso movimento reconhece a importância de analisar, debater e modificar a sociedade em que vivemos. Para que esta análise e debate não sejam feitos da boca para fora, temos trabalhado muito no sentido da nossa formação prática e teórica sobre o assunto. Adotamos depois de muitos debates uma linha teórica marxista, que entende que a sociedade capitalista é composta por duas classes opostas, a primeira que tem somente sua força de trabalho e sobrevive de sua venda e outra que detém os meios de produção e vive da exploração do trabalho da primeira. Isso ocorre porque o trabalhador recebe somente uma pequena parte da riqueza que produz, o restante fica com os detentores dos meios de produção. Outra reflexão importante do pensamento marxista é que o trabalho é central na vida humana e o ser humano surge a partir do trabalho e a forma como este se dá influencia nas relações e organizações sociais. 7

É

a

partir

dessa

discussão

que

destacamos

o

trabalho

e

as/os

trabalhadoras/trabalhadores como tema do nosso encontro tanto por reconhecer a importância deste para ocorrem modificações em nossa sociedade, quanto debater nossa prática como futuros terapeutas ocupacionais. Questionamos

o

papel

da

T.O.,

principalmente

em

relação

a/ao

trabalhadora/trabalhador, se este será de ajudar na emancipação do trabalhadora/trabalhadora ou servir para a reprodução da exploração. Muitas vezes a prática da T.O., tem servido para manter o trabalhador produtivo, sem levar em conta as condições de precariedade e exploração que este se encontra. Outro debate importante é o reconhecimento de que seremos também trabalhadoras/ trabalhadores e temos que construir uma organização que lute contra a precarização principalmente em relação à saúde e também das/dos demais trabalhadoras/ trabalhadores. Para isso precisamos nos colocar como trabalhadores da saúde para tornamos militantes e poder lutar coletivamente aos outros trabalhadores. Para isso, avançamos de forma que nossa luta não seja restrita a defesa de mercados de trabalho, de uma produção acrítica de saúde, mas por uma promoção da mesma, entendo-a não como bem ou mercadoria. Para isso, percebemos que a luta individual ou corporativista, academicista não nos faz avançar, só nos restringe. Por esta razão, nos colocamos ao lado dos outros movimentos sociais, que apontam para uma necessidade de transformação da sociedade.

Texto da Executiva Nacional de Estudantes de Terapia Ocupacional

2. ESTATUTO DA EXECUTIVA NACIONAL DOS ESTUDANTES DE TERAPIA OCUPACIONAL

TÍTULO I Da Ordem Institucional CAPÍTULO I Da Denominação

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Artigo 1º- A Executiva Nacional dos Estudantes de Terapia Ocupacional, sociedade civil de direito privado, propõe-se a representar os estudantes dos cursos de ensino superior de Terapia Ocupacional do Brasil com ideais anti-capitalistas, sem fins lucrativos, com duração por tempo indeterminado, fundada no ano de dois mil e quatro, no Município de Salvador, Estado da Bahia, República Federativa do Brasil.

Parágrafo único - A sede administrativa da Executiva Nacional dos Estudantes de Terapia Ocupacional será determinada pela gestão em mandato vigente, aprovada no CoNEETO designado para empossar tal gestão.

Artigo 2º - A Executiva Nacional dos Estudantes de Terapia Ocupacional, denominarse-á através da sigla oficial “ExNETO”, sendo adicionada à sua logomarca o lema “Em atividade para transformar a realidade”.

CAPÍTULO II Do Quadro Social Artigo 3º - O Quadro Social da ExNETO é constituído por todas/os estudantes dos cursos de graduação em TO do Brasil. Artigo 4º - Os Direitos e Deveres dos membros do Quadro Social da ExNETO são os constantes nas disposições deste Estatuto e os dispostos em outros Regimentos e Regulamentos aprovados pelos seus Órgãos e Foro.

CAPÍTULO III Dos Objetivos Artigo 5º - A ExNETO tem por objetivos:

I. Representar o conjunto das/os estudantes dos cursos de ensino superior de Terapia Ocupacional do Brasil, em todos os seus âmbitos; 9

II. Promover os Foro do Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional (METO), coordenando sua organização e realização através de suas coordenações eleitas e legitimadas;

III. Coordenar e executar propostas planejadas e aprovadas em Foro do Movimento Estudantil de TO;

IV. Coordenar campanhas de âmbito nacional, direcionadas a quaisquer públicos, promovidas ou apoiadas pelo METO;

V. Fornecer subsídios e apoio a iniciativas de movimentos locais que busquem alcançar objetivos comuns aos do METO;

VI. Documentar as deliberações dos Foro do Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional e divulgá-los às/aos estudantes;

VII. Promover discussões a fim de desenvolver o senso crítico através do diálogo com a base, construindo a formação política das/os militantes e sua identidade com o METO.

VIII. Primar pela união no Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional e fomentar a comunicação entre a militância;

IX. Lutar por uma formação profissional que contemple aspectos técnicos, científicos, sociais e políticos.

CAPÍTULO IV Dos Princípios 10

Artigo 6º- A ExNETO tem por princípios:

I. A defesa do ensino público, gratuito, laico, de qualidade e de acesso universal;

II. A independência em relação a movimentos de cunho partidário e religioso;

III. A defesa da saúde e do Sistema Único de Saúde enquanto público, gratuito e de qualidade;

IV. Atuação junto aos movimentos sociais que tenham lutas comuns às do METO;

V. Não se valer de sua condição para divulgar e/ou permitir a divulgação, em veículos de comunicação formativos e/ou informativos da Entidade ou sob qualquer outra forma de divulgação, ou ainda qualquer tipo de vinculação do nome da Entidade a marcas partidárias e/ou privadas, quando não aprovado em reunião ordinária de âmbito nacional.

VI. Combate a todas as formas de opressão e preconceito.

VII. À construção coletiva de um projeto alternativo de sociedade.

TÍTULO II Da Ordem Social Artigo 7º- Cessará o mandato dos membros dos Órgãos da ExNETO pela morte, renúncia, exoneração de acordo com as prescrições e procedimentos constantes nas disposições deste Estatuto e nas deliberações dos Órgãos e Foro da ExNETO, ou pela exclusão do Quadro Social da ExNETO.

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Parágrafo Único – A destituição e conseqüente substituição de membros da Coordenação Nacional e/ou Regional da ExNETO, será feita através do CoNEETO convocado especialmente para tal fim. Artigo 8º - Todos os Órgãos e Foro da ExNETO deverão ter um Regimento Interno que complemente sua organização e competências, os quais deverão ser lidos e aprovados após abertura dos trabalhos ou gestão de cada Órgão ou Fórum, segundo os critérios do estatuto da ExNETO.

CAPÍTULO I Dos Órgãos Artigo 9º – A ExNETO é composta pelos seguintes órgãos: I. Coordenação Nacional; II. Coordenações Regionais.

SEÇÃO I Da Coordenação Nacional Artigo 10º - A Coordenação Nacional é o órgão administrativo máximo da ExNETO, sendo constituído pelas Pastas de Finanças e Secretaria Geral. Além das pastas descritas acima, prevê-se a possibilidade de inclusão na Coordenação Nacional de GTs temáticos. A Coordenação nacional deve conter no mínimo cinco e no máximo dez membros oriundos de, no mínimo, três regionais distintas.

Parágrafo único - Compete à Coordenação Nacional: representar em primeira instância a ExNETO em reuniões convocadas por outras entidades; compor o fluxo de informação entre ExNETO e outras entidades; responsabilizar-se pelas relações externas; construir com o METO sua organização nas instâncias e nos foro nacionais.

I - A Coordenação Nacional é eleita no ENETO para mandato de um ano a partir do CoNEETO imediatamente após o ENETO que a elegeu.

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II - Os membros da Coordenação Nacional, não necessitam serem ligados à estrutura das diretorias dos CAs ou DAs.

III - A sede administrativa da Coordenação Nacional será determinada pela gestão em mandato vigente, aprovada no CoNEETO designado para empossar tal gestão.

Artigo 11º - Os membros da Coordenação Nacional são investidos em seus cargos e funções mediante assinatura de Termos de Posse que permanecerão armazenados nos arquivos da ExNETO.

Artigo 12º - É função das/os coordenadoras/es nacionais: I – Pela Pasta de Finanças: movimentação jurídico-financeira da ExNETO; responder pela pessoa jurídica da ExNETO; movimentar a conta jurídica da ExNETO a partir das suas deliberações, bem como fazer divulgação trimestral de seus dados; realizar as obrigações perante a Receita Federal; receber os repasses financeiros das coordenações regionais; elaborar a Prestação de Contas da Gestão; cobrar, receber e arquivar as Prestações de contas dos Foro da ExNETO; assessorar captação e movimentação de recursos para os foro da ExNETO e orientar quanto à sua prestação de contas em questões de organização e comprovação fiscal. II – Pela Pasta da Secretaria Geral: responsabilizar-se pela documentação da ExNETO; confeccionar memorandos, ofícios, convocatórias e outros documentos em nome da Entidade; confeccionar e disponibilizar as atas de todas as reuniões da coordenação nacional; coordenar a relatoria dos foro da ExNETO; organizar o banco de dados da ExNETO através do repasse de informações (contatos, documentos e outros) coletados pela gestão; promover a comunicação interna da gestão (convocar reuniões, promover o contato entre coordenações, atualizar listas eletrônicas de discussão, entre outros).

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Artigo 13º -

A Coordenação Nacional reunir-se-á, através de presença real ou por

meios virtuais, com maioria absoluta de seus membros, sempre quando convocada por um dos coordenadores.

§ 1º - As decisões da Coordenação Nacional serão tomadas por consenso (prioritariamente) ou por voto da maioria absoluta (50% mais 1) de suas/seus membros, podendo estender-se o direito de voto a todas/os participantes da reunião em questão, desde que componentes de Coordenação Regional. Caso exista uma espera de mais de quinze minutos para a chegada ao quorum, a reunião se efetivará mediante quorum livre. § 2º - Das Atas serão expedidos comunicados com as decisões tomadas pela Coordenação Nacional. Artigo 14º - Compete à Coordenação Nacional, as representações ativas, passivas, judiciais e extrajudiciais da ExNETO.

Artigo 15º - Compete à Coordenação Nacional as ações de: I – Fazer trabalho de articulação das regionais; II – Fazer o debate trazido pelas regionais; III – Formação Política.

SEÇÃO II Das Coordenações Regionais Artigo 16º - São cinco as Coordenações Regionais: I. Sul: Paraná e Rio Grande do Sul; II. Sudeste I: São Paulo; III. Sudeste II: Rio de Janeiro; 14

IV. Sudeste III: Minas Gerais e Espírito Santo; V. Nordeste: Alagoas, Bahia e Pernambuco; VI. Norte: Pará. Parágrafo único – O número de regionais bem como sua composição poderão ser alterados de acordo com as decisões dos Foro do METO. Artigo 17º - Cabe aos Foro Regionais eleger os Coordenadores Regionais, e ao CoNEETO empossá-los. Os coordenadores regionais podem ou não estar ligados às coordenações locais (CA ou DA). Artigo 18º - São objetivos das coordenações regionais: promover a comunicação entre CA ou DA e ExNETO e fomentar a comunicação dos CA e DA entre si; promover e auxiliar a formação e estruturação de novos CA e DA; construir a intervenção política do METO nos espaços pertinentes à coordenação; articular com outras instâncias do Movimento Estudantil e com Movimentos Sociais intervenções de acordo com as deliberações do METO; alimentar o banco de dados da ExNETO através do repasse de informações (contatos, documentos, entre outros) coletadas pela coordenação regional.

Artigo 19º - Compete às Coordenações Regionais as ações de fazer trabalho em suas localidades, passagem nas escolas, contato com CA e DA, apresentação da executiva, debate com a ExNETO a partir das realidades das escolas, trazer debate nacional para escolas, formação política regional.

SEÇÃO III Da Escolha das Coordenações Artigo 20º - A escolha da composição da Coordenação Nacional dar-se-á em momento específico na plenária final do ENETO, podendo se candidatar ao cargo qualquer estudante de graduação em Terapia Ocupacional do Brasil. I. A escolha para composição da coordenação nacional dar-se-á através da inscrição de chapas para concorrer ao mandato em plenária final do ENETO. II. A composição das coordenações regionais dar-se-ão por indicação dos foro regionais anteriormente realizados. 15

SEÇÃO IV Das Entidades de Base Artigo 21º - As Entidades de base são constituídas pelos Centros Acadêmicos (CA) e Diretórios Acadêmicos (DA) de Terapia Ocupacional. § 1º - As eleições das Entidades de base da ExNETO dar-se-ão de acordo com os respectivos estatutos dos CA e DA. § 2º - Os CA e DA formam o Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Terapia Ocupacional (CoNEETO). § 3º - As escolas que não possuem CA ou DA poderão enviar representantes estudantis para as reuniões do CoNEETO. § 4º - Fica vedada a representação de qualquer CA ou DA que esteja impossibilitado de comparecer ao Fórum, através de procuração ou qualquer outro documento, mesmo que registrado em cartório. Excetuam-se os casos onde o CA ou DA escolhe ser representado por estudante de Terapia Ocupacional da mesma Instituição de Ensino a qual pertence.

Capítulo II Dos Foro

SEÇÃO I Encontro Nacional dos Estudantes de Terapia Ocupacional Artigo 22º - O Encontro Nacional dos Estudantes de Terapia Ocupacional (ENETO) é o Fórum e instância máxima de deliberação do Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional, reunindo-se anualmente em data definida em fórum nacional, do qual participa qualquer pessoa com direito a voz. Somente as/os estudantes de curso superior de Terapia Ocupacional inscritos no ENETO terão direito a voto.

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Artigo 21º - Compete ao ENETO: I. Discutir sobre o papel do Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional e propor mecanismos de ligação entre este e a conjuntura política geral das/os estudantes;

II. Eleger a Coordenação Nacional da ExNETO

e as sedes dos próximos Foro

nacionais;

III. Deliberar as principais atividades a serem desenvolvidas pelo Movimento Estudantil até o ENETO seguinte;

IV. Deliberar sobre o movimento e organização política das/os estudantes de Terapia Ocupacional. Artigo 24º - A/O(s) estudante(s) da(s) escola(s) pretendente(s) a ser sede, deve apresentar no ENETO condições para a realização do ENETO seguinte. Artigo 25º - A prestação de contas do ENETO será realizada no CoNEETO subseqüente.

SEÇÃO II Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Terapia Ocupacional Artigo 26º - O Conselho Nacional de Entidade Estudantis de Terapia Ocupacional (CoNEETO) é o Fórum e instância imediatamente inferior ao ENETO, do qual participam com direito a um (01) voto a ExNETO, um (01) voto o CA ou DA de cada Instituição de Ensino e um (01) voto a representação estudantil de acordo com o § 3º do Artigo 21º. Reúne-se obrigatoriamente, no primeiro e no segundo semestre do ano, com data definida no fórum nacional anterior. Parágrafo Único – Todos os inscritos no CONEETO terão direito a voz. Artigo 25º - Compete ao CoNEETO: 17

I. Empossar a Coordenação Nacional e as Regionais;

II. Encaminhar o que foi decidido no ENETO;

III. Avaliar os rumos e definir prioridades e ações para o Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional;

IV. Atualizar a discussão sobre o papel do Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional e propor mecanismos de ligação entre este e a conjuntura política geral das/os estudantes;

V. Legitimar a operacionalização dos Foro do Movimento Estudantil de Terapia Ocupacional;

VI.

Assessorar os CA e DA e as coordenações regionais nas suas atribuições;

VII. Avaliar o impacto das ações definidas no planejamento implantadas pelas Coordenações da ExNETO;

VIII. Estruturar o ENETO imediatamente posterior;

IX. Promover discussão e formação política das/os militantes do METO.

Artigo 26º - A pauta prioritária do CoNEETO subseqüente ao ENETO deve ser planejamento da gestão empossada e formação política. A pauta prioritária do CoNEETO anterior ao ENETO, construção do mesmo.

SEÇÃO III Encontro Regional dos Estudantes de Terapia Ocupacional Artigo 28º - O Encontro Regional dos Estudantes de Terapia Ocupacional é o Fórum máximo de deliberação regional, do qual participam com direito a voz, qualquer pessoa, 18

e com direito a voz e voto, todas/os as/os estudantes de cursos superiores de Terapia Ocupacional da regional inscritos no encontro. Parágrafo único – A periodicidade do fórum deverá ser decidida em cada regional, devendo ser ao menos anual. Artigo 29º - Compete ao Encontro Regional:

I. Eleger a Coordenação Regional

II. Discutir sobre as questões concernentes à regional;

III. Atualizar a discussão sobre o papel do Movimento Estudantil em Terapia Ocupacional e propor mecanismos de ligação entre este e a conjuntura política geral das/os estudantes;

IV. Levantar propostas e realizar atividades preparatórias para o ENETO e/ou deliberadas no ENETO anterior.

V. Eleger a próxima sede do Encontro Regional.

TÍTULO III Da Ordem Econômica

Capítulo I Do Regime Econômico Artigo 30º - A receita da ExNETO é constituída de contratos, convênios, contribuições, lucros dos Foro e doações dos membros do Quadro Social e de terceiros cujas verbas não sejam de instituições, estabelecimentos ou entidades com fins estritamente privado, e outros estabelecidos pelos Órgãos e Foro da ExNETO respeitando os princípios de autonomia do METO.

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§ 1º - Toda arrecadação de receita, deve ser realizada mediante emissão do respectivo recibo de entrada, contendo as especificações, que originaram a receita, e movimentada mediante conta bancária nominal da ExNETO, em instituição financeira autorizada pelos órgãos e Foro da ExNETO e um das/os Coordenadoras/es de Finanças. § 2º - Deve-se destinar à Coordenação Nacional da ExNETO 50% do lucro/prejuízo dos Foro Nacionais e outros 50% destinado para a Comissão Organizadora Local realizadora do Fórum em questão. Artigo 31º- A documentação para prestação de contas deve ser restringida a notas fiscais.

CAPÍTULO II Do Regime Patrimonial Artigo 32º - Constituem o Patrimônio Social da ExNETO os bens numerários, bens móveis e imóveis, créditos diversos, investimentos, direitos e outros bens que possua ou venha possuir. Artigo 33º - Todos os bens ou direitos sobre os mesmos que compuserem o Patrimônio Social da ExNETO deverão figurar em livro ou fichas denominados “Inventário do Patrimônio”, com a descrição, valor histórico ou de aquisição, data de aquisição ou da cessão, condições físicas, e na cessão de direitos, alienação ou extravio, em que condições ocorreram. § 1º - Ao fim do mandato, os órgãos da ExNETO levantarão na forma da legislação pertinente, o Balanço Patrimonial, o Balanço Financeiro, o Movimento da Receita e da Despesa e o Relatório de Atividades. § 2º - Igualmente, a cada Encontro Nacional dos Estudantes de Terapia Ocupacional (ENETO), deverá haver prestação de contas do patrimônio e a gerência dos recursos pelas Coordenações Nacional e Regionais da gestão que termina.

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§ 3º - O prazo para prestação de contas dos Foro, exceto ENETO, vence no último dia do ENETO do ano correspondente. § 4º - A Sede que não prestar conta, ficará impossibilitada de sediar qualquer Fórum ou Órgão da ExNETO. § 5º - O ano fiscal coincide com o ano civil. Artigo 34º - A aquisição ou alienação de bens imóveis ou duráveis, ou os direitos a eles relativos, a constituição de ônus reais sobre os mesmos, assim como, contrair ou conceder empréstimos, obrigar-se cambiriamente a prestar garantias reais ou pessoais a obrigações de terceiros, deverão ser aprovados pelos Órgãos e Foro competentes.

TÍTULO IV Dos Poderes Artigo 35º - Os poderes jurídico-financeiros da ExNETO serão representados pela pessoa do Coordenador Nacional responsável pela Pasta de Finanças legitimamente eleito e empossado conforme as disposições deste estatuto.

TÍTULO IV Das Disposições Gerais Artigo 36º - A ExNETO somente poderá ser dissolvida mediante norma emanada de poder competente ou pela extinção da formação profissional e acadêmica em Terapia Ocupacional no Brasil. Parágrafo Único – Em caso de dissolução da ExNETO, a Coordenação Nacional destinará o patrimônio que for apurado, deduzido o passivo, á instituições públicas e/ou privadas sem fins lucrativos cujos objetivos assemelhem-se aos da ExNETO.

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Artigo 37º - A ExNETO tem personalidade jurídica distinta de suas/seus dirigentes e membros, as/os quais não respondem, nem mesmo subsidiariamente, pelas suas obrigações sociais. Artigo 38º- A ExNETO não responde por qualquer compromisso assumido ou declarado, pelos seus dirigentes ou membros, que contrariem as suas deliberações e disposições legais. Artigo 39º - As atividades de qualquer pessoa, no exercício de qualquer cargo ou função na ExNETO, será honorífico, sendo vedado o recebimento de qualquer lucro, remuneração, bonificação ou vantagem, exceto o custeio ou reembolso de despesas realizadas pelas/os mesmas/os no interesse da ExNETO, desde que autorizadas pelos Órgãos e Foro competentes da ExNETO. Artigo 40º - A ExNETO, através da Coordenação Nacional, pode constituir mandatárias/os e procuradoras/es, para representá-la judicialmente e extrajudicialmente, especificando-se nos respectivos instrumentos, os limites, a extensão de seus poderes e a duração do mandato ou procuração. Artigo 41º - A alteração parcial ou total do presente Estatuto só poderá ser realizada no ENETO, que deverá ser convocado para este fim no CoNEETO anterior, mediante solicitação de qualquer estudante de terapia ocupacional do país. Artigo 42º - Os casos omissos e as dúvidas que por acaso vierem a surgir neste Estatuto serão resolvidos pelo ENETO. Parágrafo único – Caso exista a impossibilidade da resolução dessas questões no ENETO, em plenária final do mesmo, deverá ser deliberada resolução no CoNEETO subseqüente. Artigo 43º - O Estatuto é a lei orgânica da ExNETO conjuntamente com os Regimentos dos Órgãos e Foro da ExNETO que o completarão supletivamente e suas disposições

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aplicam-se á todos as/ os Dirigentes e membros do Quadro Social e dos Órgãos e Foro da ExNETO.

Parágrafo Único - O não cumprimento das especificações estatutárias e regimentais, que caracterize má fé, acarretará a destituição do cargo das/os responsáveis pelo descumprimento a ser deliberada em um fórum nacional. Artigo 44º - O presente Estatuto entra em vigor após o Registro Civil de Pessoa Jurídica da ExNETO no Cartório de Registro de Títulos e Documentos de acordo com a Lei de Registros Públicos em vigor.

3. A doença da "normalidade" na universidade

Doença sempre foi algo associado à anormalidade, à disfunção, a tudo aquilo que foge ao funcionamento regular. Na área médica, a doença é identificada por sintomas específicos que afetam o ser vivo, alterando o seu estado normal de saúde. A saúde, por sua vez, identifica-se como sendo o estado de normalidade de funcionamento do organismo. Numa analogia com os organismos biológicos, o sociólogo Émile Durkheim também sugeriu como identificar saúde e doença em termos dos fatos sociais: saúde se reconhece pela perfeita adaptação do organismo ao seu meio, ao passo que doença é tudo o que perturba essa adaptação. Então, ser saudável é ser normal, é ser adaptado, certo? Não necessariamente: apesar de Durkheim, há quem considere que do ponto de vista social, ser normal demais pode também ser patológico, ou pode levar a patologias letais. Os pensadores alternativos Pierre Weil, Jean-Ives Leloup e Roberto Crema chamaram isto de Normose, a doença da normalidade, algo bem comum no meio acadêmico de hoje. 23

Para Weil, a Normose pode ser definida como um conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou por maioria em uma determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte. Crema afirma que uma pessoa normótica é aquela que se adapta a um contexto e a um sistema doente, e age como a maioria. E para Leloup, a Normose é um sofrimento, a busca da conformidade que impede o encaminhamento do desejo no interior de cada um, interrompendo o fluxo evolutivo e gerando estagnação. Estes conceitos, embora fundados sobre um propósito de análise pessoal e existencial, são muito pertinentes ao que se vive hoje na academia. Aqui, pela Normose não é apenas o indivíduo que adoece, que estagna, que deixa de realizar o seu potencial criador, mas o próprio conhecimento. E não apenas no Brasil, também em outras partes do mundo. Peter Higgs, Prêmio Nobel de Física de 2013 disse recentemente que não teria lugar no meio acadêmico de hoje, que não seria considerado suficientemente produtivo, e que, por isso, provavelmente não teria descoberto o Bosão de Higgs (a “partícula de Deus), descrito por ele em 1964 mas somente comprovado em 2012, quase 50 anos depois, com a entrada em funcionamento de uma das maiores máquinas já construídas pelo homem, o acelerador de partículas Large Hadron Collider. Higgs contou ao The Guardian que era considerado uma “vergonha” para o seu Departamento pela baixa produtividade de artigos que apresentava, e que só não foi demitido pela possibilidade sempre iminente de um dia ganhar um Nobel, caso sua teoria fosse comprovada. Ele reconheceu que, nos dias de hoje, de obsessão por publicações no ritmo do “publique ou pereça”, não teria tempo nem espaço para desenvolver a sua teoria. À sua época, porém, não só o ambiente acadêmico era outro como ele próprio era um desajustado, um anormal, uma espécie de dissidente que trabalhava sozinho em uma área fora de moda, a física teórica expeculativa. Então, sua teoria é também fruto desta saudável “anormalidade”. A mim, embora não surpreendam, as declarações de Higgs soam estarrecedoras: ou seja, com os sistemas meritocráticos de avaliação de hoje, que privilegiam a produção de artigos e não de conhecimentos ou de pensamentos inovadores, uma das maiores descobertas da humanidade nas últimas décadas, que rendeu a Higgs o Nobel em 2013, provavelmente não teria ocorrido, como certamente muitos outros avanços científicos e intelectuais estão deixando de ocorrer em função dos sistemas atuais de avaliação da “produtividade em pesquisa”. É a Normose acadêmica fazendo a sua maior vítima: o próprio conhecimento.

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Aliás, nunca se usou tanto a autoridade do Nobel para apontar os desvios doentios do nosso sistema acadêmico e científico como em 2013. Randy Schekman, um dos ganhadores do Nobel de Medicina deste ano, em recente artigo no El País, acusou as revistas Nature, Science e Cell, três das maiores em sua área, de prestarem um verdadeiro desserviço à ciência, ao usarem práticas especulativas para garantirem seus mercados editoriais. Schekman menciona, por exemplo, a artificial redução na quantidade de artigos aceitos, a adoção de critérios sensacionalistas na seleção dos mesmos e um absoluto descompromisso com a qualificação do debate científico. E afirmou que a pressão para os cientistas publicarem em revistas “de luxo” como estas (de alto impacto) encoraja-os a perseguirem campos científicos da moda em vez de optarem por trabalhos mais relevantes. Isto explica a afirmação de Higgs sobre ser improvável a descoberta que lhe deu o Nobel no mundo acadêmico de hoje. O próprio Schekman publicou muito nestas revistas, inclusive as pesquisas que o levaram ao Nobel: diferentemente de Higgs, que era um dissidente, Schekman também já sofreu de Normose. Porém, agora laureado, decidiu pela própria cura e prometeu evitar estas revistas daqui para adiante, sugerindo não só que todos façam o mesmo, como também que evitem avaliar o mérito acadêmico dos outros pela produção de artigos. Foi preciso um Nobel para que se libertasse da doença. A atual Normose acadêmica se deve à meritocracia produtivista implantada nas universidades, cujos instrumentos, no Brasil, para garantir a disciplina e esta doentia normalidade são os sistemas de avaliação de pesquisadores e programas de pós-graduação, capitaneados principalmente pela CAPES e CNPq. Estes sistemas têm transformado, nas últimas décadas, docentes e alunos em burocráticos produtores de artigos, afastando-os dos reais problemas da ciência e da sociedade, bem como da busca por conhecimentos e pensamentos realmente novos. A exigência de produtividade é um estímulo ao status quo, obstruindo a criatividade, a iniciativa, o senso crítico e a inovação, pois inovar, criar, empreender, fugir ao normal pode ser perigoso, pode ser incerto, pode ser arriscado quando se tem metas produtivas a cumprir; portanto, não é desejável: o mais seguro é fazer “mais do mesmo”, que é ao que a Normose acadêmica condenou as universidades e seus integrantes ao redor do mundo. Eu escrevi em um artigo de 2013 que a meritocracia leva a uma ilusão de eficiência e progresso que não podem se realizar, porque as meritocracias modernas são burocracias. Como bem ensinou Max Weber, a burocracia é uma força modeladora inescapável quando se racionaliza e se regulamenta algum campo de atividade, como acontece no sistema científico 25

atual. Para supostamente discriminar por mérito pessoas e organizações acadêmicas, montouse um tal sistema de regras, critérios avaliativos, hierarquias de valor, indicadores, etc., que a burocratização das ações acadêmicas tornou-se inevitável. Agora é este sistema que orienta as ações dos acadêmicos, afastando-os de seus próprios valores, desejos e convicções, para agirem em função da conveniência em relação aos processos avaliativos, visando controlar os benefícios ou penalidades que eles impõem. Pessoas sob regimes de avaliação meritocráticos se tornam burocratas comportamentais; e burocratas, como se sabe, pela primazia da conformidade organizacional a que se submetem, tornam-se inexoravelmente impessoalistas, formalistas, ritualistas e avessos a riscos e a mudanças. Tornam-se normóticos, preferindo, no caso da academia, uma produção sem significado, sem relevância, sem substância inovadora porém segura, a aventurarem-se incertamente em busca do novo. Agora, depois de já ter escrito isto naquele artigo, descubro que o Nobel de Medicina de 2002, o sul-africano Sydney Brenner, em entrevista de fevereiro deste ano à King’s Reviw, afirmou exatamente o mesmo. Dentre outras coisas, disse ele que as novas ideias na ciência são obstruídas por burocratas do financiamento de pesquisas e por professores que impedem seus alunos de pós-graduação de seguirem suas próprias propostas de investigação. É ao menos alentador perceber que esta realidade insólita não é apenas uma versão tupiniquim da busca tardia e equivocada por um lugar o sol no campo acadêmico atual, mas uma deformação que assola também os “grandes” da arena científica mundial. E também constatar que os laureados com a distinção do Nobel tem se percebido disto e denunciado ao mundo. De certa forma, todos na academia sabem que estes sistemas de avaliação acadêmicos têm levado a um produtivismo estéril, mas isto não tem sido suficiente para mudar nem as condutas pessoais, nem as diretrizes do sistema, porque a Normose é uma doença coletiva, não individual. Ela advém da necessidade de legitimação do indivíduo frente ao sistema de regras, normas, valores e significados que se impõe a ele. Por isto é que o pesquisador australiano Stewart Clegg afirmou, certa vez, que “pesquisadores que buscam legitimação profissional podem com muita facilidade ser pressionados a aprender mais e mais sobre problemas cada vez mais desinteressantes e irrelevantes, ou a investigar mais e mais soluções que não funcionam”. Mas agora me advém uma questão curiosa: por que tantos Nobéis tem denunciado este sistema? Creio que porque do alto da distinção recebida, eles já não tem mais nenhum compromisso com a meritocracia acadêmica, e podem falar do dano que ela causa às ideias realmente inovadoras que, inclusive, podem levar à láurea. Mas também porque o Nobel foge 26

à lógica da meritocracia, ele não é um mecanismo meritocrático, portanto, não é burocrático. Ele é até mesmo político, antes de ser meritocrático e burocrático! É um reconhecimento de “mérito” sem ser uma “cracia”. Ou seja, não há, através dele, um sistema de governo das atividades científicas, e por isso ele não leva a uma racionalidade formal, pois ninguém em consciência normal pautaria sua atividade acadêmica quotidiana pela improvável meta de, talvez já na velhice, ganhar o Nobel; e mesmo que tivesse este excêntrico propósito como pauta, teria que fugir da meritocracia que governa os sistemas científicos atuais para chegar a um lugar reconhecidamente distinto, pois ser normal não leva ao Nobel. Mas este não é o mundo da vida dos seres acadêmicos de hoje, aqui vivemos em uma meritocracia burocrática, e num contexto assim, pouco adiantam as advertências da editorachefe da revista Science, Marcia McNutt, publicados no Estadão, de que a ciência brasileira precisa ser mais corajosa e mais ousada se quiser crescer em relevância no cenário internacional. Segundo ela, para criar essa coragem é preciso aprender a correr riscos, e aceitar a possibilidade de fracasso como um elemento intrínseco do processo científico. Mas quando as pessoas são penalizadas pelo fracasso, ou são ensinadas que fracassar não é um resultado aceitável, elas deixam de arriscar; e quem não arrisca não produz grandes descobertas, produz apenas ciência incremental, de baixo impacto, que é o perfil geral da ciência brasileira atualmente, segundo ela. É a Normose acadêmica “a brasileira” vista de fora. Somos todos normóticos em um sistema acadêmico de formação de pesquisadores e de produção de conhecimentos que está doente, e nossa Normose acadêmica tem feito naufragar o pensamento criativo e a iniciativa para o novo em nossas universidades. Sem eles, porém, não há futuro significativo para a vida intelectual dentro delas, nem na ciência nem nas artes.

Texto de Renato Santos de Souza.

4. A universidade popular dos movimentos sociais: entrevista com o prof. Boaventura de Sousa Santos No desenvolvimento do Fórum Social Mundial (FSM) algumas organizações dos movimentos sociais, ONGs, sindicatos e intelectuais concluíram pela necessidade de dar mais atenção à diversidade dos conhecimentos que circulam na sociedade para fortalecer as lutas 27

sociais, o que Boaventura de Sousa Santos sintetizou na frase "não há justiça social global sem uma justiça cognitiva global". Nesse contexto, começou a ser gerada a ideia de constituição da Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), a qual foi amadurecendo com as seguidas edições do Fórum. Durante o encontro de 2003 do Fórum Social Mundial foi lançada a Universidade Popular dos Movimentos Sociais por uma democracia cognitiva global.1 A Universidade Popular dos Movimentos Sociais – Rede Global de Saberes é um espaço de formação intercultural e interpolítica que promove um processo de interconhecimento e autoeducação, com o duplo objetivo de aumentar o conhecimento recíproco entre os movimentos e organizações e tornar possíveis coligações entre eles e ações coletivas conjuntas. Constitui um espaço aberto para o aprofundamento da reflexão, do debate democrático de ideias, da formulação de propostas, da troca livre de experiências e da articulação para ações eficazes, de entidades e movimentos sociais locais, nacionais e globais que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo. Já foram realizadas várias oficinas da UPMS no Brasil e em outros países latinoamericanos. São elas: Oficina de Tradução Cultural em Medelín – Colômbia (29 e 30 de setembro de 2007); Oficina na Costa Rica (2007); Oficina de Tradução entre Movimentos Sociais em Córdoba – Argentina (12 e 15 de setembro de 2007); Oficina em Belo Horizonte – Minas Gerais (1 e 2 de agosto de 2009); Oficina em Porto Alegre – Rio Grande do Sul (24 e 25 de julho de 2010). Durante a reunião da UPMS realizada, no Fórum Social Mundial, em Belém, no ano de 2009 e, posteriormente, na edição do Fórum Social Mundial realizado em Dakar, em 2011, decidiu-se pela realização de três oficinas latino-americanas no Fórum Social Temático (FST), em Porto Alegre (RS), em 2012. Estas aconteceram nos dias 22 e 23 de janeiro de 2012, com os seguintes temas: Oficina 1: Terra e soberania alimentar, direitos humanos,economias solidárias/populares (em São Leopoldo); Oficina 2: Interculturalidade, plurinacionalidade, afrodescendentes, indígenas/dissidência sexual (em Canoas); Oficina 3: Ecologia. Madre Tierra, recursos naturais, extrativismo (em Porto Alegre). Além dessas oficinas, aconteceram dois encontros da UPMS no FST. O primeiro, no dia 24 de janeiro de 2012, possibilitou o encontro dos integrantes das três oficinas para 28

socialização dos resultados entre os participantes e o segundo, no dia 28 de janeiro de 2012, foi organizado como atividade autogestionária do FST, aberto aos demais interessados com o tema o futuro da UPMS. É possível afirmar que a realização da atividade autogestionária no FST marcou a refundação da UPMS. Sua organização, a partir de então, ultrapassa a Secretaria Técnica que inicialmente a constituiu, incorporando a participação de outros integrantes, vinculados diretamente aos movimentos sociais, quer sejam ativistas ou intelectuais engajados. Todos eles participantes das três oficinas. Dessa refundação teve origem a constituição de comissões de trabalho para organizar uma nova carta de princípios, parcerias, ampliação internacional da UPMS, atualização e alimentação da home page, construção de grupo de discussão dos integrantes e de orientações gerais para a entrega dos relatórios de cada uma das oficinas realizadas. No âmbito da Conferência Rio + 20, foi realizada em Aldeia Velha mais uma oficina, nos dias 14 e 15 de junho, com o tema "Saúde, sustentabilidade e bien vivir", bem como outra atividade aberta ao público durante a Cúpula dos Povos, no dia 18 de junho, pela manhã. Esta última intitulou-se UPMS: desafios do futuro e foi uma reunião importante para leitura do texto pré-final da Carta de Princípios da UPMS, documento que deverá conduzir a organização e realização das oficinas nas diferentes regiões do mundo. O encontro na Cúpula dos Povos foi um importante momento para socializar a trajetória da UPMS até hoje e os resultados dos encaminhamentos acordados durante a atividade autogestionária do FST, em Porto Alegre. É possível dizer que a UPMS entrou em um estágio mais maduro. Porém, o que vem a ser a Universidade Popular dos Movimentos Sociais? Quais são os seus objetivos? Para falar sobre isso, ninguém melhor do que o idealizador dessa proposta, o prof. Boaventura de Sousa Santos, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra (Portugal). Júlia Benzaquen (JB): Quais são os objetivos da UPMS? O que é a UPMS? Por que Universidade? Como se propõe a desafiar o conceito de universidade, que tem analisado criticamente nos seus trabalhos? Por que Popular? Por que dos Movimentos Sociais?

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Boaventura de Souza Santos (BSS): A primeira pergunta é aquela que está mais caracterizada no meu trabalho. Eu tenho vindo a propor que a universidade é a instituição com mais continuidade, desde a mais distante modernidade ocidental, desde Bolonha. Mas é uma instituição que está neste momento em convulsão bastante grande. E por acaso, curiosamente, o Prêmio Jovens Cientistas Sociais, outorgado pelo CES, em sua edição de 2011, foi ganho por André Rubião – do Observatório da Justiça Brasileira do Centro de Estudos Sociais da América Latina (CES-AL), da UFMG –, pela sua dissertação de doutoramento sobre o tema da universidade participativa, o que é muito interessante. Tenho vindo a pensar que a universidade nesta fase permite, por um lado, que dentro das universidades convencionais seja necessária muita inovação. E, portanto, tenho vindo a propor, por exemplo, o que designo por extensão ao contrário através da ecologia dos saberes, dentro das universidades convencionais, e tenho vindo a dizer que isso não chega. Isto é, há de haver outras instituições que se reclamam da tradição da universidade, mas que vão fazer aquilo que não é possível fazer dentro de uma universidade convencional. A Universidade Popular dos Movimentos Sociais é uma dessas propostas, entre muitas outras que podíamos imaginar. Donde é que vem o termo? O termo vem de uma tradição que se desenvolveu, sobretudo, na Europa nas primeiras décadas do século passado, mas também na América Latina, das Universidades Populares que, na altura, estavam muito vinculadas ao movimento operário e aos partidos comunistas. Eram fundamentalmente instituições de caráter de cultura geral para os operários e para as classes populares que não tinham qualquer acesso, digamos, ao ensino formal. Portanto, fui buscar esse termo para propor algo que nasce do mesmo impulso de democratizar o conhecimento, mas que tem desse impulso um entendimento muito diferente. A Universidade é popular, não porque o conhecimento acadêmico tenha de ser divulgado entre as classes populares, mas porque são as classes populares a protagonizar diálogos entre os seus conhecimentos próprios e os conhecimentos acadêmicos. E dos movimentos sociais por quê? Porque realmente é a forma como as classes populares têm vindo a se organizar, ao contrário do que sucedia no princípio do século 20, em que os partidos operários e os sindicatos eram as formas específicas de organização das classes populares, que eram fundamentalmente as operárias; as outras não contavam. Temos hoje formas novas de organização das classes populares e é por isso que se fala em novos 30

movimentos sociais, de formas de organização das classes populares que nem são os partidos e nem são os sindicatos, são os novos movimentos sociais. Portanto, a ideia foi juntar, exatamente: o popular, que evoca uma tradição já conhecida, e os movimentos sociais, que ampliam criticamente essa tradição. Portanto, é popular, mas não é de partidos; é popular, mas é dos movimentos sociais. São instituições de tipo paralelo. Chamamos de universidade como podíamos chamar de outra coisa; a Escola Florestan Fernandes chamou-se Escola, podia se chamar academia ou outra coisa, mas optamos por nos apropriarmos do termo universidade por pensarmos que é um termo que pode ser apropriado para fins contra-hegemônicos. Se tu quiseres, a UPMS é uma versão contra-hegemônica de um instrumento hegemônico ou de uma instituição hegemônica. Como eu tenho feito para o Direito e para outras áreas, os conceitos, os instrumentos, as instituições hegemônicas podem ser usados para objetivos e para formas contra-hegemônicas ou para fins contra-hegemônicos. A UPMS é exatamente isso, uma maneira de utilizar a universidade de forma contrahegemônica. O objetivo geral da UPMS é contribuir para que o conhecimento da globalização alternativa seja tão global quanto ela e que, nesse processo, as ações transformadoras sejam mais esclarecidas e eficazes e os seus protagonistas, mais competentes e reflexivos. Para atingir este objetivo, a UPMS terá de ser mais internacional e mais intercultural do que as iniciativas existentes que com ela têm alguma semelhança. JB: O que a UPMS tem de comum com outras experiências de educação popular? O que a UPMS tem de específico? Em que sentido a tradução intercultural difere da proposta de Paulo Freire? BSS: Obviamente que, sobretudo na América Latina, mas também em África, há uma riquíssima tradição de educação popular. Quem participa na Universidade Popular dos Movimentos Sociais são líderes ou ativistas dos movimentos sociais que já têm um conhecimento e uma experiência social e política que se vinculam e articulam na UPMS. Então, a UPMS é uma troca de saberes, é uma ecologia de saberes basicamente. Paulo Freire, de alguma maneira, organiza todo o seu modelo de educação popular dentro de uma grande preocupação com as divisões sociais, de classes e de desigualdades de classes, com os oprimidos, mas com pouca ênfase na diversidade cultural. Esse recorte de 31

Paulo Freire na questão das classes possui boas razões. Porém, os movimentos sociais vieram trazer ao nosso conhecimento o fato de que não há apenas divisões de classes, há também as divisões culturais e modos desiguais de se tratar as culturas. Divisões, desigualdades e formas de discriminação contra índios, negros, quilombolas, mulheres, povos do campo, população GLBT, etc. Aprendemos com os movimentos sociais que as relações de poder são mais complexas. Além disso, mais do que uma vocação que tenha como escala as localidades, as regiões e o país, como é mais enfatizado por Paulo Freire (sem desconsiderar a influência de seus estudos e práticas no contexto internacional), a UPMS tem uma vocação mais internacional que não se realizou até agora em pleno, mas já teve o seu início em janeiro deste ano, no Fórum Social Temático, em Porto Alegre. Essa vocação é internacional e intercultural. Portanto, congrega uma diversidade não só de atores, mas, sobretudo, diversidades culturais. A UPMS se guia pela tradução intercultural. Não há na UPMS uma doutrina, um princípio dogmático que seja orientado a partir de um comitê central que diga qual é a linha correta, quais são os movimentos que estão certos, quais são as formas de saber que estão certos. A única hipótese é a tradução intercultural que é a alternativa à teoria geral. É a forma pela qual, por vezes, nós podemos traduzir isso. Obviamente, a tradução intercultural pode ter lugar entre universos simbólicos totalmente distintos ou muito distintos. E universos simbólicos que tenham variações internas. Então, entre o urbano e o rural há uma diferença, mas não é tão grande quanto a diferença entre o urbano e o rural, no seu conjunto, e o indígena ou o afro, por outro lado. Portanto, há graus diferentes de diversidade cultural. A UPMS, efetivamente, procura captar através da tradução intercultural maneiras de podermos criar inteligibilidade, pautada no respeito às autonomias e às diferenças, etc. Ao fazê-lo, cuida para que essas diferenças não se tornem nem incomensuráveis ou incomunicáveis, nem que se caia no relativismo. É importante que haja espaço para o diálogo, para a conversa por meio da hermenêutica diatópica, como já expliquei nos meus livros sobre teoria social. Basicamente, a tradução intercultural é em função disto. JB: Segundo o texto sobre a UPMS, da Gramática do tempo (Santos, 2006, p. 171): "A UPMS é composta por três atividades principais: atividades pedagógicas, atividades de pesquisa-ação para a transformação social e atividades de difusão de competências e instrumentos de tradução intertemática, transnacional e intercultural". As atividades de pesquisa-ação aconteceriam no sentido de criar e não apenas articular os saberes plurais

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para a transformação. Foram desenvolvidas atividades de pesquisa-ação no âmbito da UPMS? Se foram desenvolvidas, de que maneira? Se não aconteceram, por quê? BSS: O projeto da UPMS tem realmente na sua matriz a ideia de que pudéssemos ir além dessas atividades de formação, o que nós chamamos de oficinas, mas poderíamos chamar de formação coletiva, autoformação, autoaprendizagem; que nós pudéssemos ter também formas de pesquisa-ação mais avançada, isto é, eu continuo a pensar que, ainda hoje, é muito difícil realizar, ao nível das universidades ou dos centros de investigação, pesquisa que corresponda efetivamente à necessidade dos diferentes atores sociais, porque é inclusivamente difícil captar quais são as suas necessidades, porque eles não são audíveis, não estão nas universidades e, obviamente, não podem estar nos concursos da Capes... Portanto, a UPMS tem essa vocação de, eventualmente ou no futuro, ser um centro a partir do qual surgem iniciativas por parte dos movimentos que é preciso investigar, fazer pesquisa e que essa pesquisa possa ser feita pela UPMS. Até agora isso não foi possível. Por que não foi possível? Bem, não foi possível porque não tem sido fácil financiar a UPMS. Ela não é um projeto comum que se aproxima dos formatos das ONGs internacionais que apoiam o desenvolvimento internacional no chamado terceiro mundo. Não entra nisso porque é muito politizada na forma de criar entendimento entre os movimentos sociais para a transformação social. Por outro lado, também não é um projeto de investigação, não é um projeto de pesquisa. Portanto, não é nem uma coisa nem outra, e isso foi o que tornou impossível até agora que a UPMS se desenvolvesse mais. Basicamente, foi essa a razão. JB: De acordo com o mesmo texto, as atividades de difusão de competências e instrumentos de tradução organizariam os resultados dos momentos pedagógicos e das pesquisas, naquilo que o professor chamou deléxicos e de manifestos. Até onde tenho conhecimento, não foram organizados nem léxicos e nem manifestos. No entanto, os relatórios das oficinas realizadas passaram a ter uma função central. Qual o sentido desses relatórios? Existe alguma forma específica para produzi-los? O objetivo dos relatórios é serem o mais fiel possível com a realidade ou servirem de inspiração para outras oficinas? BSS: É preciso ver que o que foi publicado na Gramática do tempo é realmente o programa amplo da UPMS. Eu resolvi aí estabelecer o horizonte de possibilidades da UPMS para tentar ver que o horizonte é muito vasto e a realização é que pode ficar aquém. Basicamente é isso. Portanto, por um lado, tinha ali a questão da pesquisa-ação e, por outro 33

lado, tinha a ideia de que, dessa forma de autoaprendizagem coletiva muito intensificada, iriam começar a surgir novas noções de esquerda, novas noções de política, novas noções de emancipação social, novos conceitos como, por exemplo, aqueles que foram surgindo, trazidos

pelo

próprio

movimento

indígena:

os

conceitos

de Sumak

kawsay e

de Pachamama presentes nas universidades indígenas. Portanto, houve uma série de novidades que foram trazidas para a educação. A nossa ideia é que a Universidade Popular pode estar nessa origem, porque está, digamos assim, a receber de maneira primária, direta, através das oficinas, o conhecimento que circula entre os movimentos sociais e que estes possam a partir daí começar a desenvolver novos conceitos. É esta a noção dos novos léxicos. Por outro lado, essas ideias e esses conceitos podem nos levar a estabelecer novas cartas de princípio, digamos, novos manifestos. São princípios de ação, convites, chamadas para ação, novas formas de ação, novos objetivos, novos slogans, novas estratégias para a transformação social. Bem, é evidente que isto não foi avante porque até agora, como eu digo, a UPMS ainda não se tornou numa prioridade para os movimentos e também porque não foi possível que alguém se pudesse ocupar o tempo inteiro da UPMS. Todo o trabalho tem sido voluntário. Também não consegui que nenhuma das ONGs mais diretamente envolvidas, nem sequer do meu Centro, a assumisse, porque no meu Centro teria que ser através de um projeto de investigação e, como disse, essa parte ficou precludida. Da parte das ONGs, cada uma das que participam tem a sua própria agenda, as suas próprias formas de educação popular e, apesar de terem apoiado a UPMS, não transferiram recursos, sobretudo humanos, que podiam, eventualmente, ter transferido para podermos ter um pequeno grupo internacional que pudesse trabalhar mais intensamente nisto. É evidente que, no momento em que entrarmos em léxicos e manifestos, a Universidade Popular será mais polêmica, talvez nos léxicos nem tanto, mas, sim, nos manifestos, pois teremos que tomar posição. Ao longo destes anos, a UPMS tem sido uma experiência que atraiu muita gente, muita gente curiosa. A sua própria tese e a da Ana Prestes são exemplos disso, assim como outras que estão em preparação. Isso porque a UPMS é uma ideia que captou a imaginação das pessoas e que se insere, então, num conjunto de outras universidades que já existem. A minha ideia inicial era que a UPMS pudesse, mais tarde ou mais cedo, ser adotada pelo Fórum Social Mundial (FSM), como, digamos assim, uma das suas dimensões. Ela hoje funciona junto ao Fórum, com gente dele, mas não é uma instituição do Fórum, não foi 34

discutida pelo Conselho Internacional, por exemplo. Mas eu pensei numa maior vinculação ao FSM, sobretudo no momento em que, por volta de 2004, 2005, houve certa crise do processo do FSM, que depois foi ultrapassada. Pensava que, eventualmente, se houvesse uma crise no Fórum que pusesse em causa a sua realização, a Universidade Popular poderia assegurar certa continuidade da reflexão, porque o espírito do FSM está todo na UPMS: é o espírito não dogmático das articulações entre diferentes movimentos; é mais horizontal do que vertical, embora naturalmente tenha que ter algum princípio de organização e, eu tenho que dizer, o Fórum não foi ainda apropriado pelos movimentos sociais, é um processo ainda em curso. Também não foi apropriado por ONGs, o que é curioso. Ele não foi suficientemente forte para que também algumas ONGs decidissem apropriá-lo, chamá-lo de seu e controlá-lo. De fato, tem sido sempre a minha política tentar que haja espaços de grande criatividade, através de um princípio que tem sido seguido de alguma maneira e que me parece ser o mais correto: é haver algumas ideias gerais que, entretanto, se foram construindo sobre a UPMS, não carregar muito sobre metodologias e princípios e deixar que aqueles que organizam as oficinas sejam as pessoas mais legítimas para falar em nome da própria UPMS. E, portanto, continuo a pensar que as pessoas que podem falar sobre a UPMS, sobre a sua prática, entre outros aspectos, são aquelas pessoas que organizaram as oficinas. Não é nenhuma teoria que eu tenha produzido; produzi a ideia, avancei a ideia e acompanho sempre com muito carinho. As pessoas continuam a querer a minha participação nas oficinas da UPMS que vão sendo realizadas, mas é evidente que a atividade da UPMS decorre de quem a organiza, são eles que conhecem os problemas: a Norma Fernandez, em Córdoba, a Nilma Gomes, em Belo Horizonte, sobretudo, e a Beatriz Soto, em Medellin, são pessoas com quem tive muitas conversas, antes, durante e logo depois das oficinas, que mostraram como elas tinham suscitado problemas novos, porque estes surgiram quando elas estavam a organizar as oficinas e é com base nisso que eu tenho vindo a alimentar a minha própria elaboração. Portanto, eu acho que é cedo demais para isso, para os manifestos. As oficinas realizadas produzem, ao final, os relatórios. Tenho chamado esse produto de relatório, pois não quero chamar de sistematização porque há toda uma filosofia, uma metodologia de sistematização da educação popular e há organizações especializadas em sistematização. E eu, francamente, sou sempre um bocado contra todos os códigos e uniformizações, porque eu penso que a UPMS é uma entidade ainda muito frágil de formação. E, portanto, eu não queria que os relatórios também tivessem formatos. Quero que aqueles que organizam as oficinas definam os seus próprios modelos de relatório e tragam coisas 35

diferentes. Se tu olhares para os relatórios das diferentes oficinas, verás que são muito diferentes, em estilo, em preocupação e até em forma, nos aspectos formais do próprio relato. JB: A ideia de propagação da UPMS é que, a partir da realização de uma oficina, outras irão surgindo de acordo com os interesses dos movimentos sociais participantes, e a proposta vai se ampliando. Quais as instituições e/ou pessoas possuem legitimidade para propor e promover oficinas da UPMS? Cada movimento social que se identifica com a Carta de Princípios da UPMS deve ser capaz de ter a iniciativa de organizar oficinas ou outras atividades? Mas existe o risco de que a proposta seja desvirtuada por alguém que não a entenda bem ou que tenha interesses escusos. Como fazer esse controle e ao mesmo tempo estimular a expansão da proposta? BSS: A questão da legitimidade da UPMS é fundamental porque realmente nós não temos nenhuma certificação de legitimidade para fazer as oficinas. O que nós temos tido é na base da confiança das pessoas que estiveram próximas na formação da UPMS, que estiveram nos atos fundadores dentro do Fórum Social Mundial, nos painéis que realizamos, nas oficinas, enfim, que estiveram aí presentes. As pessoas que foram se identificando com a UPMS são aquelas que têm vindo a fazer propostas. Mas já tivemos propostas de organizações que até fazem consultoria de formação e que acharam que a ideia da UPMS era interessante e quiseram fazer sessões da UPMS com seminários pagos, o que causou certo embaraço, porque nós não temos nenhuma agência de legitimação ou certificação. Após a refundação da UPMS no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, com a realização das três oficinas internacionais, fizemos uma assembleia no dia 28 de janeiro e construímos orientações e procedimentos para a continuidade da UPMS com comissões internacionais. Será construída uma nova carta de princípios, a partir daquela que já existe e com contribuições dos participantes das três oficinas. Também teremos princípios e orientações para a construção de parcerias, para a reativação do nosso site, entre outras coisas. Qualquer movimento que participa no Fórum Social Mundial pode organizar oficinas da UPMS. Não estamos livres de que alguém queira organizar alguma coisa e que a gente possa dizer que temos copyright sobre isto e sobre as formas de organização. É como na educação popular: quantas coisas se dizem que é educação, cidadão, educação popular e não são. Obtiveram o nome e utilizaram o nome. Por acaso, o nosso nome é demasiado específico para as pessoas tentarem dele se apropriar. A UPMS é um bocado mais difícil de imitar, as pessoas 36

não entendem muito bem essa mistura entre intelectuais ou universitários ou não, artistas, comprometidos com os movimentos sociais e líderes ou ativistas dos movimentos. É uma proposta mais difícil. Isso é um núcleo duro, em meu entender, da organização da UPMS. Obviamente, há o risco de que a proposta seja desvirtuada. Está aí. Até agora, por que não corremos muito esse risco? Porque a Universidade Popular não se desenvolveu muito; por enquanto, ela ainda é pouco conhecida. Há muito mais gente que conhece o slogan da UPMS, que tem curiosidade por ela, mas não sabe muito bem o que ela é, como funciona e nunca teve ocasião para nenhum contato direto. Nós também não tivemos nenhum staff, nenhum pessoal e nem mesmo material que possa ser distribuído para além do que está no nosso site. JB: Com relação à viabilidade, é importante pensar a respeito do financiamento das atividades da UPMS. Quem pode conseguir recursos pela UPMS? É interessante institucionalizá-la em uma pessoa jurídica, no sentido de permitir pedido de financiamento? Quais as desvantagens da institucionalização? BSS: É uma boa questão. Discutimos, durante o FST, com o governo de Porto Alegre a possibilidade de abrigar uma sede da UPMS no Memorial do Fórum Social Mundial e nossa proposta foi aceita. Mas isso não quer dizer que o trabalho da UPMS se limite ao Brasil. Quer dizer, não quero que ela seja brasileira ou argentina ou colombiana. O meu grande objetivo é internacionalizar a UPMS. Na assembleia da UPMS durante o FST e no encontro realizado no Rio de Janeiro, durante a Cúpula dos Povos, discutimos que um dos eixos da organização da UPMS serão as parcerias com governos progressistas e universidades ou núcleos de pesquisa que atuem de forma articulada com os movimentos sociais. Mas essa parceria tem que ser mais bem discutida para não incorrer em aparelhamento ou aprisionamento da UPMS. Ela tem que continuar autônoma. JB: As atividades até agora realizadas pela UPMS se centraram na América Latina. Por quê? Outras oficinas e/ou atividades estão a ser planejadas noutros contextos geográficos? BSS: Centra-se na América Latina por uma razão simples: é uma experiência internacional e não obriga à tradução simultânea. Porque nós não temos dinheiro para tradução simultânea e acho que, entre espanhol e português, com o "portunhol", a gente entende-se. Para termos movimentos da África ou da Ásia, teríamos que conduzir tudo em 37

inglês ou então com tradução simultânea e, para isso, é preciso muito dinheiro. A razão é um pouco esta. Mas também foi retirada na assembleia do FST uma comissão internacional que irá articular oficinas da UPMS na Europa e na África. Estamos a crescer. JB: Como avalia as atividades até então desenvolvidas pela UPMS? Qual o potencial da UPMS? Como vê o desenvolvimento da UPMS? BSS: Tenho um grande carinho por esta iniciativa. Considero certa paternidade nisso. Por quê? Por que acho isso muito importante? Porque, realmente, no fundo, isso foi a minha maneira de dar alguma institucionalidade à minha epistemologia, quer dizer, todo o meu trabalho de epistemologia. As epistemologias do Sul operam através desses dois grandes procedimentos: a ecologia dos saberes e a tradução intercultural. Ora são estes exatamente os mesmos instrumentos que orientam a UPMS. De alguma maneira, a UPMS significa as epistemologias do Sul aplicadas. O meu sonho, digamos assim, o meu objetivo é este: uma forma de aplicar as epistemologias do Sul. Eu ando, por um lado, a fazer conferências por todo o mundo sobre isso e a escrever livros e, por outro lado, está em gestação uma instituição que procura desenvolver, na prática, as epistemologias do Sul. Também por isso é importante que não haja nenhum engessamento da UPMS. Eu tenho vindo a aplicar as epistemologias do Sul à própria ideia da UPMS. E se ela é, de fato, uma expressão das epistemologias do Sul, ela tem que ser construída também sob uma lógica destas epistemologias, que é nunca perder de vista as necessidades, as aspirações e os conhecimentos daqueles que nela participam e respeitar muito isso. Pois quanto mais tivermos uma visão cerrada, mais difícil é incluir a diversidade. Tem uma metodologia, que são princípios muito gerais e depois a gente chega a uma oficina e deixa a liberdade criativa seguir, porque pode haver gente que diga: – mas eu gostava que fosse dessa maneira ou desta. Não há nenhum impedimento para que isso ocorra dentro do projeto da UPMS. Ao contrário, se nós tivéssemos uma metodologia cerrada, teríamos depois aqueles indivíduos que se considerariam, digamos, os pais da metodologia. Poderíamos repetir alguma coisa que acabou por suceder com a experiência de Paulo Freire, com um grupo que se considera os únicos herdeiros do legado de Paulo Freire. Eu penso que ser freireano ou ser da UPMS é estar em consonância com os objetivos de hoje e, portanto, não podemos ter nenhum dogmatismo, nenhum catecismo. As coisas tiveram a origem que tiveram, com as pessoas que estiveram envolvidas. O que nós partilhamos todos é, isso sim, a proposta das epistemologias do Sul, a nossa resposta a um problema político em que convergimos. Qual é o problema político? É articular as diferentes ações dos diferentes 38

movimentos sociais sem destruir a autonomia deles. Para isso, é preciso criar inteligibilidades múltiplas e interconhecimento. A Universidade Popular dos Movimentos Sociais é um esforço de interconhecimento. E é isto. Texto: Júlia F. Benzaquen. Doutora em Sociologia pela Universidade de Coimbra (Portugal)

5. DIREITOS SOCIAIS: afinal do que se trata? Direitos sociais: afinal do que se trata? A pergunta não é retórica. Tampouco trivial. Significa, de partida, tomar a sério as incertezas dos tempos que correm. Pois falar dos significa falar dos dilemas talvez os mais cruciais do Brasil (e do mundo) contemporâneo.Suscita a pergunta - e dúvida - sobre as possibilidades de uma sociedade mais justa e mais igualitária. Pergunta que não é de hoje, certamente. Mas que ganha uma especial urgência diante da convergência problemática entre uma longa história de desigualdades e exclusões, as novas clivagens e diferenciações produzidas pela reestruturação produtiva e que desafiam a agenda clássica de universalização de direitos, e os efeitos ainda não inteiramente conhecidos do atual desmantelamento dos (no Brasil) desde sempre precários serviços públicos, mas que nesses tempos de neoliberalismo vitorioso ao mesmo tempo em que leva ao agravamento da situação social das maiorias, vem se traduzindo em um estreitamento do horizonte de legitimidade dos direitos e isso em espécie de operação ideológica pela qual a falência dos serviços públicos é mobilizada como prova de verdade de um discurso que opera com oposições simplificadoras, associando Estado, atraso e anacronismo, de um lado, e, de outro, modernidade e mercado. Operação insidiosa que elide a questão da responsabilidade pública. E descaracteriza a própria noção de direitos, desvinculando-os do parâmetro da justiça e da igualdade, fazendo-os deslizarem um campo semântico no qual passam a ser associados a custos e ônus que obstam a potência modernizadora do mercado, ou então a privilégios corporativos que carregam anacronismos que precisam ser superados para que o país possa se integrar nos circuitos globalizados da economia. Mas ao abrir esse texto de uma forma interrogativa, não se está aqui sugerindo ou solicitando definições modelares que apaziguem, nem que seja um pouco, nossas próprias perplexidades. Na verdade, é um modo de propor o debate que recusa exatamente a facilidade 39

das definições. Não porque eu seja contrária à precisão das palavras, mas porque essas definições no mais das vezes deixam escapar o que talvez mais nos interessa compreender. 2 Então vejamos: poderia lembrar que desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU em 1948, os direitos sociais foram reconhecidos, junto com os direitos civis e os direitos políticos, no elenco dos direitos humanos: direito ao trabalho, direito ao salário igual por trabalho igual, direito à previdência social em caso de doença, velhice, morte do arrimo de família e desemprego involuntário, direito a uma renda condizente com uma vida digna, direito ao repouso e ao lazer (aí incluindo o direito a férias remuneradas), e o direito à educação. Todos esses são considerados direitos que devem caber a todos os indivíduos igualmente, sem distinção de raça, religião, credo político, idade ou sexo. Com variações, esses direitos foram incorporados no correr desse século, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, nas constituições da maioria dos países, ao menos do mundo ocidental. No Brasil, essa concepção universalista de direitos sociais foi incorporada muito tardiamente, apenas em 1988, na nova Constituição, que é uma referência política importante em nossa história recente, que foi celebrada (e hoje é contestada) como referência fundadora de uma modernidade democrática que prometia enterrar de vez 20 anos de governos militares. É importante saber que esses direitos estão inscritos na lei e é importante lembrar que, em algum momento na história dos países, fizeram parte dos debates e embates que mobilizaram homens e mulheres por parâmetros mais justos e mais igualitários no ordenamento do mundo. Mas se tomarmos essas definições, por assim dizer canônicas, dos direitos sociais como ponto de partida para avaliar os tempos que correm, então não teríamos muitas alternativas a não ser constatar (mais uma vez!) a brutal defasagem entre os princípios igualitários da lei e a realidade das desigualdades e exclusões - e nesse caso, falar dos direitos sociais seria falar de sua impotência em alterar a ordem do mundo, impotência que se arma no descompasso entre a grandiosidade dos ideais e a realidade bruta das discriminações, exclusões e violências que atingem maiorias. Além disso, e talvez o mais importante, não poderíamos ir muito além do que constatar - e lamentar - os efeitos devastadores das mudanças em curso no mundo contemporâneo, demolindo direitos que mal ou bem garantem prerrogativas que compensam a assimetria de posições nas relações de trabalho e poder, e fornecem proteções contra as incertezas da economia e os azares da vida. Nesse caso, além da impotência para fazer frente aos rumos excludentes que vem tomando o reordenamento da economia e do Estado no mundo inteiro, falar dos direitos sociais também significaria falar de uma perda.

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Suspeito no entanto que as idéias de perda e de impotência montam uma armadilha que trava o pensamento por mantê-lo encerrado nos termos como as coisas vem se armando à nossa volta, como o mundo vem se ordenando. Por mais que as evidências de perda e impotência possam ser demonstráveis pela análise sociológica e política, o problema está quando se transforma essas evidências em pressuposto, algo como solo epistemológico a partir do qual o pensamento se estrutura, pois aí a reflexão termina por esbarrar nas fronteiras que nosso próprio presente impõe - e nesse caso, nada teríamos a opor a não ser a denúncia indignada, o discurso edificante ou então as frágeis certezas da análise esclarecida que são, elas sim, impotentes para dissolver ou ao menos abalar essa convicção que vem ganhando corações e mentes de que estamos diante de processos inexoráveis e que a pobreza é inevitável dados os imperativos da nova revolução tecnológica que se impõe pelos circuitos de uma economia globalizada. Em outros termos, ao se fixar nas evidências de perda e impotência dos direitos sociais, há o risco de demissão do pensamento, para não dizer da ação, por conta de uma espécie de aprisionamento no próprio presente, sem abertura para um campo de possíveis. E se assim for, uma discussão sobre os direitos sociais não poderia mesmo ir além da justa indignação contra a miséria do mundo ou 3 então a repetição do discurso sociológico que explica a ordem de suas causalidades e determinações. Mas então talvez seja necessário deslocar o terreno da discussão e repensar os direitos sociais não a partir de sua fragilidade ou da realidade que deixaram de conter, mas a partir das questões que abrem e dos problemas que colocam. É certo que falar dos direitos sociais é um modo de se apropriar da herança (um certa herança) da modernidade e de assumir a promessa de igualdade e justiça com que acenaram. Mas ao invés de tomar isso como dado da história agora superado ou negado pela fase atual de reestruturação do capitalismo mundial, trata-se de tomar os direitos sociais como cifra pela qual problematizar os tempos que correm e, a partir daí, quem sabe, formular as perguntas que correspondam às urgências que a atualidade vem colocando. É preciso dizer desde logo que o texto que segue não tem a pretensão de responder às inquietações até aqui comentadas e certamente está aquém das questões acima formuladas. Pode ser entendido como uma primeira tentativa, não mais do que um exercício (ainda tateante) de reflexão para colocar à prova o sentido crítico e questionador que a linguagem do direitos contém, ou pode conter, desde que a consideremos como um modo de descrever e

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nomear a (des)ordem do mundo que põe em cena as aporias das sociedades modernas – e da nossa própria atualidade. Seria possível dizer que nessa encruzilhada de alternativas incertas em que estamos mergulhados, as mudanças em curso no mundo atual fazem vir à tona as dimensões dilemáticas da vida social. Se bem é certo que os modelos conhecidos de proteção social vem sendo postos em xeque pelas atuais mudanças no mundo do trabalho e que conquistas sociais vem sendo demolidas pela onda neoliberal no mundo inteiro, também é verdade que esse questionamento e essa desmontagem reabrem as tensões, antinomias e contradições que estiveram na origem dessa história. E fazem ver as difíceis (e frágeis) relações entre o mundo social e o universo público da cidadania, na disjunção, sempre reaberta, entre a ordem legal que promete a igualdade e a reposição das desigualdades e exclusões na trama das relações sociais; entre a exigência ética da justiça e os imperativos de eficácia da economia; entre universos culturais e valorativos de coletividades diversas e a lógica devastadora do mercado. Mas essa disjunção estrutura o terreno dos conflitos que inauguraram a moderna questão social e que reatualizam a cada momento a exigência de direitos, reabrindo a antinomia entre as esperanças de um mundo que valha a pena ser vivido e a lógica excludente de modernizações que desestruturam formas de vida e bloqueiam perspectivas de futuro. Lembrar isso não é uma trivialidade, pois esses conflitos, longe de se reduzirem ao puro confronto de interesses, colocam em pauta o difícil e polêmico problema da igualdade e justiça CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social. Petrópolis: Vozes, 1998 4 em uma sociedade dividida internamente e fraturada por suas contradições e antinomias. Por isso mesmo, ao revés de um determinismo econômico e tecnológico hoje em dia mais do que nunca revigorado, será importante reativar o sentido político inscrito nos direitos sociais. Sentido político ancorado na temporalidade própria dos conflitos pelos quais as diferenças de classe, de gênero, etnia, raça ou origem se metamorfoseiam nas figuras políticas da alteridade - sujeitos que se fazem ver e reconhecer nos direitos reivindicados, se pronunciam sobre o justo e o injusto e, nesses termos, reelaboram suas condições de existência como questões pertinentes à vida em sociedade. Colocar os direitos na ótica dos sujeitos que os pronunciam significa, de partida, recusar a idéia corrente de que esses direitos não são mais do que a resposta a um suposto mundo das necessidades e das carências. Pois essa palavra que diz o justo e o injusto está 42

carregada de positividade, é através dela que os princípios universais da cidadania se singularizam no registro do conflito e do dissenso quanto à medida de igualdade e à regra de justiça que devem prevalecer nas relações sociais. Para além das garantias formais inscritas na lei, os direitos estruturam uma linguagem pública que baliza os critérios pelos quais os dramas da existência são problematizados em suas exigências de eqüidade e justiça. E isso significa um certo modo de tipificar a ordem de suas causalidades e definir as responsabilidades envolvidas, de figurar diferenças e desigualdades, e de conceber a ordem das equivalências que os princípios de igualdade e de justiça supõem, porém como problema irredutível à equação jurídica da lei, pois pertinente ao terreno conflituoso e problemático da vida social. Mas isso também significa dizer que, ao revés da versão hoje corrente que reduz os direitos a meras defesas corporativas de interesses, em torno dos vários sujeitos que os reivindicam abrem-se horizontes de possibilidades que, desenhados a partir da singularidade de cada um, não se deixam encapsular nas suas especificidades pois a conquista e reconhecimento de direitos tem o sentido da invenção das regras da civilidade e da sociabilidade democrática. Ou para colocar em outros termos, e mais sintonizados com debates recentes, tem o sentido de inventar, em uma negociação sempre difícil e sempre reaberta, os princípios reguladores da vida social. É nesse registro que se pode perceber a abismal distância entre a linguagem dos direitos e o discurso humanitário sobre os “deserdados da sorte” que constrói a figura do pobre carente e fraco, vítima e sofredor das desgraças da vida, fixados nas determinações inescapáveis das leis da necessidade. Mas também a diferença em relação ao discurso técnico que fixa a pobreza como elenco de problemas identificáveis pela análise sociológica e postos como alvos de um possível gerenciamento político tecnicamente fundado. De um lado, essa palavra, individual ou coletiva, que diz o justo e o injusto, é também a palavra pela qual os sujeitos que a pronunciam se nomeiam e se declaram como iguais, igualdade que não existe na realidade dos fatos, mas que se apresenta como uma exigência de equivalência na sua capacidade de interlocução pública, de julgamento e deliberação em torno de questões que afetam suas vidas - e essa exigência tem o efeito de desestabilizar e subverter as hierarquias simbólicas que os fixam na subalternidade própria daqueles que são privados da palavra ou cuja palavra é descredenciada como pertinente à vida pública de um país. E é isso o que faz com que o conflito se desdobre na polêmica e debate sobre as regras da vida em sociedade. O que instaura o dissenso não é, portanto, o reconhecimento da espoliação dos trabalhadores, a miséria dos sem-terra, o desamparo das populações nos bairros pobres das grandes cidades ou 43

ainda a humilhações dos negros vítimas de discriminações seculares, a inferiorização das mulheres, o genocídio dos índios e também a violência sobre aqueles que trazem as marcas da inferioridade nas sua condição de classe, de cor ou idade. Em todas essas negatividades o discurso humanitário pode seguir tranqüilo, é seu terreno por excelência - aqui as identidades de cada uma nas geometria simbólica dos lugares é apenas confirmado. O que desestabiliza consensos estabelecidos e instaura o litígio é quando esses personagens comparecem na cena política como sujeitos portadores de uma palavra que exige o seu reconhecimento - sujeitos falantes, como define Rancière, que se pronunciam sobre questões que lhes dizem respeito, que exigem a partilha na deliberação de políticas que afetam suas vidas e que trazem para a cena pública o que antes estava silenciado, ou então fixado na ordem do não pertinente para a deliberação política. Mas é isso também que desestabiliza cenários predefinidos que fixam essas figuras como “problemas sociais” plenamente objetivados na ordem de suas determinações e causalidades. Ao revés dessa suposta objetividade de um problema social passível de ser gerenciado tecnicamente, na voz desses sujeitos se enunciam outros universos de valores: aspirações e esperanças, desejos e vontades de ultrapassamento das fronteiras reais e simbólicas dos lugares predefinidos em suas vidas, sonhos de outros mundos possíveis, mundos que valham a pena ser vividos. Por isso mesmo, se a reivindicação de direitos está longe de ser a tradução de um suposto mundo das necessidades, tampouco pode ser reduzida simplesmente ao jogo dos interesses. Os direitos estruturam uma linguagem pela qual esses sujeitos elaboram politicamente suas diferenças e ampliam o “mundo comum” ao inscrever na cena pública suas formas de existência, com tudo o que elas carregam em termos de cultura e valores, esperanças e aspirações, como questões relevantes à vida em sociedade e pertinentes ao julgamento ético e à deliberação política. É nessa dimensão transgressora dos direitos que vale a pena se deter, pois é aqui, nesse registro, que talvez tenhamos uma medida para avaliar os dilemas contemporâneos. Se é certo que a reivindicação por direitos faz referência a princípios universais da igualdade e da justiça, se é essa referência que marca a diferença entre o discurso da cidadania, de um lado e, de outro, o discurso humanitário e o discurso tecnicamente fundado, igualdade e justiça não existem porém como campo de consensos e convergência de opiniões. Ao contrário, é o que define o terreno do conflito e a gramática pela qual disputas e antagonismos ganham visibilidade e inteligibilidade na cena pública. De um lado, essa referência não apenas torna visível a distância entre a promessa igualitária acenada pela lei e a realidade das desigualdades, discriminações e violências.

Está se 44

tomando aqui a noção de mundo comum no sentido de Hannah Arendt, diferente portanto de uma versão comunitária hoje muito corrente da política ou da também freqüente noção de consenso como pressuposto da política. Para Arendt, o mundo comum supõe a existência de esferas públicas, é construído pela pluralidade da ação e do discurso e diz respeito às referências, partilhadas e não necessariamente consensuais, cognitivas e valorativas dos “negócios humanos”, como questões que articulam os indivíduos num horizonte comum e numa interlocução possível. rotineiras, mas permite que essa distância seja nomeada como problema que exige o julgamento e a deliberação política. Ainda, e o mais importante: o peculiar à presença de “sujeitos falantes” na cena política é que colocam à prova os princípios universais dos direitos, já que desestabiliza a geometria estabelecida dos lugares e abre o litígio em torno da medida de igualdade (e suas equivalências possíveis) nas relações sociais essa medida é o terreno do conflito. Para colocar nos termos de Rancière, esse é o terreno do desentendimento, que não é a mesma coisa que simples diferenças de opinião, de pontos de vista ou mesmo de interesses. Pois é um dissenso sobre o que conta e deve ser levado em conta no mundo comum da política, sobre quem fala e tem ou não a prerrogativa da palavra, e sobre a pertinência ou não pertinência das questões e realidades nomeadas por essa palavra. Quando os trabalhadores sem-terra fazem as ocupações de terra, instauram um conflito que é mais do que o confronto de interesses, pois abrem a polêmica - e o dissenso - sobre os modos como se entende ou pode se entender o princípio da propriedade da privada e seus critérios de legitimidade, sobre o modo como se entende ou pode se entender a dimensão ética envolvida na questão social e sua pertinência na deliberação sobre políticas que afetam suas vidas, sobre o modo como se entende ou pode se entender a questão da reforma agrária, suas relações com uma longa história de iniqüidades e o que significa ou pode significar para o futuro desse país. Quando o movimento negro reivindica tratamento igual e protesta, por exemplo e só para ficarmos em alguns casos mais conhecidos, contra o racismo embutido em uma letra de música popular, em cenas de novelas televisivas ou em imagens veiculadas pela mídia, abre a polêmica sobre o que se entende ou pode se entender sobre o princípio da igualdade perante a lei, sobre as questões e temas que devem ser levados em conta na deliberação política, sobre a partilha entre o que é da ordem da natureza das coisas e que por isso mesmo está aquém do juízo ético sobre as regras de eqüidade nas relações sociais e as questões que fazem parte da invenção humana e dizem respeito às arbitrariedades e iniqüidades inscritas nessas relações. Quando as populações indígenas reivindicam a demarcação de suas terras, colocam em pauta os modos como se entende ou pode se entender 45

os princípios constitucionais que garantem os direitos indígenas, mas também abrem o debate sobre a validade de outros universos culturais, cognitivos e valorativos, e rompem a unanimidade construída em torno das concepções convencionais de nação e território, progresso e desenvolvimento, tradição e modernidade. Quando finalmente os trabalhadores defendem os direitos do trabalho abrem uma disputa sobre o que se entende ou pode se entender sobre modernização e modernidade, ao colocar em pauta, contra o primado da racionalidade instrumental do mercado para a qual os direitos aparecem no registro de custos e ônus a serem eliminados, a exigência de uma regulação das relações de trabalho mediadas por categorias, também elas em disputa, de eqüidade e justiça. Esses exemplos - outros poderiam ser referidos - comentados aqui de forma muito sumária e certamente muito aquém das questões que cada qual propõe ao debate, nos fazem ver que o “mundo comum” tal como definido por Hannah Arendt, construído em torno daquilo sobre o qual debatemos e que nos articula e interessa em uma interlocução possível, não é dado pela “opinião comum” ou o consenso; a cifra desse “comum”, ao contrário, são as polêmicas e divergências, os conflitos e litígios que põem em cena aquilo que concerne – exatamente porque problemático – à vida em sociedade. Daí ser possível dizer que esse “comum” – instável porque sempre sujeito a novos questionamentos e sobretudo ao imponderável da história e à indeterminação da política – é construído pelas questões e temas em torno dos quais o conflito se arma, e a divergência e a polêmica se estruturam. É nessa tessitura polêmica da vida política construída no cenário das disputas e antagonismos, divergências ou não-convergências em torno de temas pertinentes ou projetados como tais na vida pública pela própria dinâmica democrática dos conflitos, que se pode ter uma senda para o deciframento de nossa própria atualidade, seguindo a configuração necessariamente polêmica e plural de seus dilemas, as questões abertas e em aberto na cena pública e os horizontes de possíveis que descortina no campo sempre imprevisível da história. E é também por referência a esse “mundo comum” ampliado pela presença polêmica de sujeitos falantes, que talvez se tenha uma chave para compreender o sentido forte alteridade política, que não é a mesma coisa que o princípio liberal da pluralidade e vai além da genérica asserção do “reconhecimento das diferenças”. Se as questões até aqui colocadas fazem algum sentido, então seria possível dizer que essa alteridade é construída pela mediação das esferas públicas democráticas nas quais essa palavra que se pronuncia sobre a ordem do mundo se faz audível e reconhecível na cena política. Mas essa palavra não exige apenas o reconhecimento da diferença dos que a pronunciam. Essa palavra significa sobretudo o alargamento do “mundo comum” pelas linhas de horizontes abertas por um leque 46

multifacetado de problemas, dilemas, dramas, histórias e tradições que singularizam formas de existência. E isso significa dizer que na ótica desses “sujeitos falantes”, os dilemas atuais se especificam, se singularizam, em torno de feixes diferenciados e heterogêneos de problemas, de questões, de desafios - feixes que põem em foco, e sob o foco do debate, diferentes modos de descrever o país em sua história e tradições, nas possibilidades e limites inscritos no presente, mas também nos horizontes alternativos de futuro. Daí que essa palavra tem também o poder de tornar possíveis e relevantes coisas que antes não existiam em nosso horizonte cognitivo e valorativo. Para usar os termos de Rorty, essa palavra permite outras “descrições do mundo” e amplia nossos “repertórios de descrições alternativas”. Assim, se antes foi enfatizada a dimensão transgressora dos direitos, a questão agora pode ser recolocada, pois essa é uma dimensão inscrita na própria palavra que pronuncia os direitos: a palavra é transgressora (ou pode ser, quando não se trata apenas da palavra instrumental que tão somente mobiliza os dados postos pelas circunstâncias para garantir sua eficácia imediata - racionalidade instrumental, poderíamos aqui dizer, apenas para delimitar o terreno em que essa discussão está sendo proposta), não só pelos efeitos desestabilizadores de lugares e consensos estabelecidos. Mas pela possibilidade de descrições alternativas do mundo, que ampliam nossas referências cognitivas e valorativas, tornam relevantes ou possíveis coisas que antes não existiam e desestabilizam o já sabido ou posto como evidência que não suscita a reflexão pois apenas existente na nossa paisagem cotidiana. *** É sob esse prisma, da dimensão transgressora da palavra, que se pode talvez avaliar o efeito devastador da corrosão dos direitos em curso no país. As possibilidades do campo democrático construído nos últimos anos parecem, hoje, na segunda metade da década de 90, desafiadas por um projeto conservador que já se traduz em práticas reais, no qual a neutralização da dimensão ética da justiça e da igualdade em nome dos critérios de eficácia e racionalidade técnica da economia, passa pela imposição de uma ordem pública subtraída das esferas políticas de representação, negociação e interlocução. Além da evidente fragilização das condições de vida e trabalho de maiorias, a destituição dos direitos - ou, no caso brasileiro, a recusa de direitos que nem mesmo chegaram a se efetivar - significa também a erosão das mediações políticas entre o mundo social e as esferas públicas, de tal modo que estas se descaracterizam como esferas de explicitação de 47

conflitos e dissenso, de representação e negociação; é por via dessa destituição e dessa erosão, dos direitos e das esferas de representação, que se ergue esse consenso que parece hoje quase inabalável, de que o mercado é o único e exclusivo princípio estruturador da sociedade e da política, que diante de seus imperativos não há nada a fazer a não ser a administração técnica de suas exigências, que a sociedade deve a ele se ajustar e que os indivíduos, agora desvencilhados das proteções tutelares dos direitos, podem finalmente provar suas energias e capacidades empreendedoras. Se é verdade que os direitos supõem uma palavra, esse encolhimento da cena política tem o efeito também de tornar invisíveis, não existentes ou nãolegítimas as realidades que essa palavra nomeia e as alternativas com que acena. Trata-se de um estreitamento do horizonte do possível e do pensável. A rigor, o que está em jogo é a demolição desse horizonte – horizonte de possíveis – por via de um aprisionamento da ação e do pensamento em um presente tramado pela lógica, percebida como inescapável, do mercado. Esse encolhimento da cena política produz algo que um curto circuito entre a dinâmica societária e o universo público da política. Pois as reivindicações de direitos e as ações políticas pautadas pelo reconhecimento de direitos, para além das prerrogativas e garantias demandados como conquista de cidadania, significam também ou sobretudo uma ampliação dos horizontes da invenção política e uma diversificação dos campos de experiências possíveis. E é isso precisamente que vem sendo neutralizado nesses tempos de neoliberalismo vitorioso. É sobre essa neutralização que se ergue a convicção de que estamos diante de processos inexoráveis regidos pelas leis inescapáveis da economia que, tal como a lei da natureza (ou a lei de Deus) se subtraem à ação, à deliberação e à vontade políticas. Discutir as circunstâncias que produzem esse silêncio e a invisibilização de alternativas possíveis, está além dos limites desse texto. Mas é quase impossível deixar de notar que no rumo que as coisas estão tomando, esse desmanche dos direitos tem o peculiar efeito de metamorfosear as figuras clássicas de nosso “atraso“ nos símbolos de nosso progresso. Ao que parece, ficamos finalmente modernos. Em terras brasileiras, o assim chamado neoliberalismo consegue a façanha de conferir título de modernidade a um privativismo selvagem e predatório, de sólidas raízes em nossa história, que faz do interesse privado a medida de todas as coisas, que recusa a alteridade e obstrui, por isso mesmo, a dimensão ética da vida social por via da recusa dos princípios da responsabilidade pública e obrigação social. Hoje, no Brasil, nossa velha e persistente pobreza ganha contemporaneidade e ares de modernidade por conta dos novos excluídos pela reestruturação produtiva em curso no país. Mas não só por isso: lançando mão dessa ficção regressiva do mercado auto48

regulável, nossas elites podem ficar satisfeitas com sua modernidade e dizer, candidamente, que a pobreza é lamentável, porém inevitável dados os imperativos da modernização tecnológica em uma economia globalizada. E sendo assim, entre os “resíduos” do atraso de tempos passados e as determinações da moderna economia integrada nos circuitos globalizados do mercado, a pobreza é fixada onde sempre esteve – como paisagem na qual é figurada como algo externo a um mundo propriamente social, como algo que não diz respeito aos parâmetros que regem as relações sociais e que não coloca por isso mesmo o problema das injustiças e iniqüidades inscritas na vida social. Quanto aos desempregados e excluídos, esses não têm lugar na atual fase do capitalismo globalizado, sua pobreza apenas é evidência de sua incapacidade de se adequar ao progresso contemporâneo – são os “inempregáveis”, gente que por falta de qualificação e competência se tornou dispensável no atual ciclo da modernização brasileira. Nas figuras dessa gente que não tem como ser absorvida pelas força do progresso, o “país por subtração” de que fala Roberto Schwarz não precisa mais da mediação narrativa (e literária) para construir as suas imagens palatáveis e promissoras porque modernas. A subtração, mais do que evidência sociológica, vira fato bruto, sem mediação, dado da natureza, desprovido por isso mesmo de algum sentido que possa fornecer uma medida ou parâmetro para avaliar em sentido crítico, ao menos abalar, as certezas acerca dos rumos da modernização brasileira. E esse é o outro lado do desmanche ora em curso, pois nessa pobreza transformada em dado bruto da natureza há também o esvaziamento da função crítica das noções de igualdade e justiça. Mas nisso também ficamos modernos. Sabemos que, na tradição brasileira, essas noções nunca tiveram função crítica. Pois hoje isso ganha atualidade já que em sintonia fina com esse espantoso deslizamento, em operação no mundo inteiro, do campo semântico no qual as noções de direitos e cidadania foram formuladas como promessas da modernidade, aparecendo agora como seu avesso, como figuras de atrasos e anacronismos, privilégios e corporativismos que obstam a potência modernizadora do mercado. As figuras dessa pobreza despojada de dimensão ética e transformada em natureza nos dão uma chave para compreender o modo como a questão social é (e sempre foi) tematizada no horizonte simbólico da sociedade brasileira: não há autoridade pública nesse país que não proponha o problema em termos de uma exigência de igualdade e justiça social. No entanto, é um debate inteiramente montado sobre as evidências mais tangíveis da chamada pobreza absoluta, esses deserdados da sorte e infelizes do destino que já estão - ou parecem estar - fora do contrato social. Com isso, é neutralizado o problema das iniqüidades e privilégios que se inscrevem no 49

modo mesmo como as relações sociais são ordenadas. Tendo como referência quase exclusiva esses que já estão (ou parecem estar) “fora”, todo o problema da igualdade parece se esgotar em garantir que essa gente tenha acesso aos “mínimos vitais de sobrevivência”. Poder-se-ia dizer que é uma noção pré-social de igualdade, pois remetida a algo como as leis naturais da vida e da morte, esse pressuposto e suposto do qual depende a vida em sociedade, mas que ainda não configura propriamente uma vida social. Menos do que um problema propriamente mundano (que é político) da convivência social, é uma noção de igualdade que opera com uma medida que diz respeito aos mínimos vitais dos quais depende a reprodução da espécie - uma medida de igualdade que não diz respeito ao contrato social, mas a algo anterior a ele, aos imperativos da sobrevivência. É uma definição de igualdade e de justiça que não constrói a figura do cidadão. Mas sim a figura do pobre: figura desenhada em negativo, pela sua própria carência. É sobretudo uma definição de igualdade e justiça que constrói uma figura da pobreza despojada de dimensão ética. Rebatida para o terreno das necessidades vitais - modo peculiar de alojar a pobreza no terreno da natureza - a própria noção de justiça e de igualdade é desfigurada, pelo menos nos termos como foram definidas enquanto valores fundadores da modernidade: a igualdade é definida por referência às necessidades vitais, esse marco incontornável da vida perante o qual - assim como ocorre com a morte - todos são não apenas iguais, mas como lembra Hannah Arendt, rigorosamente idênticos. Como essa medida absoluta, medida de vida e de morte, não há propriamente o problema do julgamento, da escolha e dos critérios de discernimento entre o justo e o injusto. Há apenas o imperativo inarredável da sobrevivência. É essa figuração da pobreza que é demolida - ou ao menos questionada - em cenários públicos abertos à palavra do direito. E talvez aqui o leitor possa perceber qual foi na verdade o percurso desse texto ao discutir a questão dos direitos sociais na ótica da palavra que os pronuncia, e não na ótica da carência e da pobreza desvalida, tão comum quando o tema entra em debate. Mas nos tempos que correm, essa figuração (e tradição) vem sendo reatualizada. Para retomar uma questão colocada páginas atrás, se as aporias da sociedade moderna se expressam e se fazem ver em torno da questão social, são elas também que nos dão uma pista para compreender essa espécie de esquizofrenia de que padece a sociedade brasileira, nas imagens fraturadas de si própria, entre a de uma sociedade organizada que promete a modernidade e seu retrato em negativo feito de anomia, de violência e atraso; entre a celebração das virtudes modernizadoras do mercado e de seu ethos empreendedor que nos 50

promete tirar da tacanhice própria dos países periféricos, e o “social” projetado como uma esfera que escapa à ação responsável porque inteiramente dependente dessa versão moderna das leis da natureza hoje associadas à economia e seus imperativos de crescimento. Mas há também uma outra maneira de apresentar os desafios atuais, abrindo uma interrogação sobre as circunstâncias que ainda ainda será preciso decifrar e compreender, nas quais essa palavra que diz o direito e se pronuncia sobre a ordem do mundo, pode ser ou está sendo reinventada e reelaborada na dinâmica de conflituosa da vida social. E é esse na verdade o sentido forte da pergunta do início desse texto ao propor uma indagação sobre os direitos que seja também uma interrogação sobre campos de experiências possíveis. Nesses tempos incertos em que o consenso conservador que tomou conta da cena política do país tenta fazer crer que estamos diante de processos inelutáveis e em que o encolhimento da política mostra seus efeitos no aprisionamento de homens e mulheres em um presente sem abertura para futuros alternativos, nesses tempos, enfim, o deciframento dos campos de experiências possíveis não é pouca coisa. E certamente não é tarefa fácil. Pois parte considerável dos dilemas dos tempos atuais está na dificuldade de identificar e nomear processos societários. Há quem, no cenário das mudanças atuais, fale de uma social de perdeu sua lisibilidade, por conta de uma espécie de disjunção entre as formas (categorias, representações, tipificações) de nomeação/descrição do real e a emergência. A condição humana de novas formas de diferenciação e hierarquização social, mas também novas configurações da experiência do mundo e novas situações que escapam a categorias estabelecidas e a formas conhecidas de representação. E se assim for, é questão inteiramente pertinente aos direitos pois os direitos são também uma forma de dizer e nomear a ordem do mundo, de produzir o sentido de experiências antes silenciadas e de formalizar o jogo das relações humanas estabelecendo as regras das reciprocidades e equivalências por referência a noções sempre em disputa e sempre reinventadas de um bem comum, medida de um mundo comum possível, figurações simbólicas do que se imagina como mundo que valha a pena ser vivido. É por esse ângulo que será preciso decifrar as possibilidades de futuro descortinadas no horizonte das experiências e experimentos democráticos que, nesses tempos incertos, continuam a acontecer em várias regiões do país. Pois, no fio da navalha em que transitam suas promessas dependem grandemente da refundação da política e da própria noção de direitos e cidadania, porém nos termos que o mundo contemporâneo está a exigir. Enfrentar as questões acima exigiriam muito mais espaço do que é possível nos limites desse artigo. Diria, no entanto, que são desafios como esses que suscitam o pensamento – 51

como diz Hannah Arendt, pensamento não é a mesma coisa que conhecimento (das causalidades, das determinações), é o exercício da faculdade de discernimento (e juízo ético) na nossa experiência de mundo, que é exigida pelas perplexidades que compartilhamos com nossos semelhantes e faz apelo à imaginação sem a qual não conseguiríamos sair dos limites que o nosso presente nos impõe e que o já-sabido prescreve nos envolvendo na muda tranqüilidade daquilo que nos é desde sempre familiar. Talvez seja nisso que possamos encontrar a convergência entre a atividade do pensamento e os direitos como palavra que introduz fissuras na ordem das coisas, acenando com outros mundos possíveis - mundos que valham a pena ser vividos. Texto de: Vera da Silva Telles, Departamento de Sociologia USP

6. Intervenção no fenômeno das drogas: algumas reflexões e contributos para a definição de boas práticas Introdução Há já vários anos que o fenômeno das drogas vem sendo midiatizado e construído como um dos mais importantes problemas sociais, sendo utilizado como bandeira política, especialmente em períodos de poder político conservador (Humphreys & Rappaport, 1993). O foco dos discursos dominantes, tanto da sociedade em geral como da comunidade científica, nos aspetos negativos destas substâncias e em representações negativas dos seus consumidores tem promovido um sentimento de pânico moral e a estigmatização e marginalização destes atores sociais. Do mesmo modo, tem vindo a legitimar a orientação repressiva da legislação e da intervenção sobre o fenômeno, defendendo-se a necessidade de pôr cobro à utilização da maioria das substâncias psicoativas. De fato, ao longo de todo o século XX, grande parte dos países ocidentais foi implementando medidas proibicionistas, graças, em larga medida, aos esforços norte-americanos (Barbosa, 2006; Fernandes, 2009; Quintas, 2006; Romaní, 2003; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s.d.). No nosso país, foi com o Decreto-Lei nº 420/70 que se encetou uma política criminalizadora, justificada pelo argumento de que a droga acarretava riscos para a saúde dos utilizadores e que estes representavam um perigo para a sociedade (Barbosa, 2006; Maia Costa, 2001).

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Limitações da abordagem proibicionista Apesar de ter imperado durante largos anos e de continuar a reunir inúmeros defensores, a lógica proibicionista tem vindo a ser contrariada por uma ideologia anti-proibicionista, cujos argumentos se centram, sobretudo no fracasso dos ideais do proibicionismo. Desde logo, é colocada em causa a legitimidade jurídica e governamental para proibir e criminalizar1 estilos de vida que se afastam da norma social mas que não prejudicam terceiros, argumentando-se que isso desrespeita os direitos, as liberdades, a autodeterminação e a responsabilidade dos indivíduos (Farr, 1990; Fernandes, 2009; Pallarés, 1996; Poiares, 2002; Quintas, 2006; Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992). Mesmo enquanto estratégia de salvaguarda da saúde pública, via pela qual tem vindo a ser legitimado (Maia Costa, 2001), o proibicionismo é alvo de críticas. Zorrilla (1993, como citado em Quintas, 2006, p. 32), por exemplo, considera que não é a saúde o bem jurídico que se pretende proteger com a legislação, visto que os prejuízos para a saúde provêm de todas as drogas e não apenas das ilegais” . Questionados são também os propósitos de erradicação das drogas e promoção da abstinência subjacentes às políticas repressivas, por serem considerados pouco realistas (Einstein, 2007; Farr, 1990; Fernandes, 2009; Pallarés, 1996; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007; Szasz, 1992). Nesta lógica, alguns autores advogam que não é necessário punir, criminalizar, estigmatizar e tentar acabar com os consumos (Farr, 1990; Maia Costa, 2001; Romaní, 2008; Shukla & Kelley, 2007; Szasz, 1992) e apresentam como alternativa manter apenas, ao nível legislativo, estratégias dissuasoras não punitivas, como a difusão de informação sobre os seus danos, à semelhança do que já ocorre com o tabaco (Maia Costa, 2001). No entanto, o proibicionismo tem sido acusado de promover campanhas educativas que veiculam informação parcial e, por vezes, errônea sobre as substâncias ilícitas, contribuindo para a ignorância e deseducação sociais (Szasz, 1992). Ações preventivas norteadas pela mensagem simplesmente diz não’

podem servir como ilustração, pois

fracassam no intento de transmitir informação relevante sobre as drogas (Moritz, 2005; Rovira 53

& Hidalgo, 2003) e tendem a afastar quem pretende continuar a usá-las (Rovira & Hidalgo, 2003). Um dos principais argumentos usados contra o proibicionismo diz respeito à sua falta de eficácia na diminuição das taxas de prevalência dos consumos (Quintas, 2006; Rovira & Hidalgo, 2003), pese embora lhe seja reconhecido algum sucesso no que diz respeito ao controlo do tráfico (García & Sánchez, 2006) e à redução do crime associado a estas substâncias (Reuter & Stevens, 2008). São vários os estudos que têm vindo a denunciar a modesta influência que a abordagem jurídica de repressão das drogas exerce na redução do seu uso, que se tende a manter independentemente desta (Cohen, 1999; Farr, 1990; Reuband, 1995; Reuter & Stevens, 2008; Romaní, 2008; Quintas, 2006). Não menos importante é a crítica de que a orientação proibicionista, além de não solucionar os prejuízos que advêm diretamente do uso destas substâncias, tem provocado problemas adicionais, nomeadamente, em termos sanitários, sociais, jurídicos e econômicos. Entre outros, destaca-se o fato de a reprovação e repressão sociais sobre as drogas promoverem a estigmatização e marginalização dos consumidores (Fernandes, 2009; Poiares, 2002; Romaní, 2008) e, desse modo, os desmotivarem da procura de cuidados de saúde especializados (Smith & Smith, 2005). Considera-se, também, que o proibicionismo tem concorrido para que os consumidores acabem por utilizar estas substâncias em condições adversas ou perigosas (Quintas, 2006; Romaní, 2008) e, consequentemente, para o aumento dos danos para a saúde pessoal e pública (Barbosa, 2006; Smith & Smith, 2005; Thornton & Bowmaker, s.d.). Do mesmo modo, salienta-se o facto de ter potenciado a proliferação de vias ilícitas de distribuição das drogas, a violência e a criminalidade (Fernandes, 2009; Romaní, 2003; Smith & Smith, 2005; Szasz, 1992; Thornton & Bowmaker, s.d.). Dadas as limitações frequentemente associadas ao proibicionismo, vários autores propõem medidas alternativas, como a adoção de um livre mercado deste tipo de substâncias (Szasz, 1992) e a sua legalização (Pallarés, 1996). Estas medidas descriminalizadoras parecem constituir uma opção viável, já que trabalhos que analisam as consequências da sua implementação têm sugerido que não potenciam um aumento significativo da utilização de drogas ilícitas (Cohen, 1999; Quintas, 2006). A título ilustrativo, Reuband (1995) não encontrou diferenças significativas nas prevalências do uso de cannabis e de drogas tidas como duras entre países europeus mais repressivos (e.g., França, Reino Unido) e mais 54

tolerantes (e.g., Holanda, Eha), concluindo que as políticas e os sistemas de controlo formal sobre as substâncias não exercem uma influência decisiva nos seus consumos. Na Holanda, onde estas políticas são mais tolerantes e onde as drogas estão mais facilmente acessíveis, os consumos têm-se mantido estáveis, deixando antever um expressivo nível de controlo (Cohen, 1999). Da análise da realidade nacional, Quintas (2006) concluiu que a lei da descriminalização provocou, sobretudo, um aumento da perseguição da polícia sobre o uso de canabinóides e uma redução significativa nos policonsumos e na utilização de heroína. Importância das formas de controlo social alternativas às formais As limitações que os sistemas de controlo social formal têm evidenciado, no que respeita à regulação dos consumos, deixam, desde logo, antever a necessidade de promover outras formas de controlo social sobre este fenómeno. A importância destes processos alternativos tem vindo, também, a ser sustentada pela constatação de que o uso de substâncias psicoativas tem sido uma constante ao longo da história da humanidade e de que as diversas sociedades o têm conseguido controlar sem recorrer a medidas legais, impedindo efetivamente o desenvolvimento de padrões problemáticos de consumo (Castel & Coppel, 1991; Quintas, 2006), bem como pela evidência de casos de remissão espontânea (Walters, 2000). De facto, sujeitos que abandonaram o consumo sem qualquer suporte formal tendem a identificar o apoio social informal como um dos principais motivos para tal decisão, a par dos prejuízos gerados pelas drogas, em termos sociais, de saúde e de finanças (ibidem). Assim sendo, vários autores alertam para a importância de estimular o desenvolvimento de mecanismos de controlo alternativos aos formais, como o autocontrolo (Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Fernandes & Ribeiro, 2002; Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992) e o controlo social informal (Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Matos & Simões, 2008; Quintas, 2006; Reuband, 1995; Walters, 2000; Young, 1971). Globalmente, entende-se que é necessário exercer algum controlo formal mas que deve ser apenas o indispensável e surgir a par de processos de controlo informais (Castel & Coppel, 1991). Tais processos, que se admite poderem ser mais efetivos do que os controlos tradicionais (Quintas, 2006; Reuband, 1995), operam no meio natural dos consumidores através da influência reguladora da família e dos amigos, entre outras (Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Quintas, 2006; Reuband, 1995; Walters, 2000; Young, 1971).

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Considera-se, portanto, que recorrer ao grupo de consumidores ou à subcultura das drogas pode ser um meio de promover o controlo social informal, ao educar sobre os consumos (Young, 1971). Do mesmo modo, aponta-se para a importância de estimular a autorresponsabilização pelos consumos e o empoderamento dos consumidores, de modo a fomentar o seu autocontrolo (Cohen, 1999; Einstein, 2007; Fernandes, 2009; Matos & Simões, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992; Walters, 2000; Whiteacre & Pepinsky, 2002). Para tal, defende-se que os profissionais devem veicular a mensagem de que os consumidores têm competência para governar a sua vida e os seus consumos, não obstante possam necessitar de auxílio para desenvolver outras capacidades (e.g., sociais, emocionais, de autorregulação) e para as pôr em prática (Percy, 2008; Walters, 2000). Devem, portanto, evitar que os consumidores se considerem incapazes de controlar os consumos, já que esta perceção tende a reduzir a sua motivação para alterar os comportamentos danosos, potenciando o processo da profecia auto-realizada (Rovira & Hidalgo, 2003; Walters, 2000). Nesta lógica, realça-se também a premência de envolver os próprios consumidores, enquanto peritos, em conversas sobre o tema e no processo de mudança (Fernandes, 2009; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003). Torna-se, assim, essencial dar voz aos consumidores – atendendo às suas perceções, valores, práticas de consumo, quotidiano e necessidades (Fernandes, Pinto, & Oliveira, 2006; Goren, 2005; Moritz, 2005) –, e permitir que decidam acerca do seu envolvimento com as drogas, embora encorajando sempre um consumo responsável (Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992; Whiteacre & Pepinsky, 2002). Reconhece-se que estimular uma tomada de decisões informada e o empoderamento dos consumidores requer, desde logo, informá-los, de forma ampla e precisa, acerca das drogas (Cohen, 1999; Deehan & Saville, 2003; Goren, 2005; Matos & Simões, 2008; Moritz, 2005; O’ Malley & Valverde, 2004; Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián & Valenzuela, 2009; Shukla & Kelley, 2007; Szasz, 1992). Neste sentido, não basta informar sobre os riscos dos consumos, tendo de ser também admitidas e discutidas as potencialidades e prazeres que os sujeitos tipicamente lhes reconhecem (Levy, O’ Grady, Wish, & Arria, 2005; Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián & Valenzuela, 2009) para os conseguir cativar e envolver efetivamente nas ações sobre as drogas e no processo de mudança. Além disso, para a eficácia das ações educativas, Moritz (2005), partindo do seu trabalho com estudantes, identifica a importância destas decorrerem de forma interativa e de nelas se tratarem os jovens como 56

adultos, deixando-os à vontade para falar abertamente com convidados especializados no assunto. Não obstante a inegável importância de informar sobre as drogas, reconhece-se que apenas fornecer informação pode ser insuficiente para a mudança de comportamentos (EMCDDA, 2011; Levy et al., 2005; Rovira & Hidalgo, 2003), sendo igualmente importante apostar no trabalho de desenvolvimento e treino de competências básicas, nomeadamente, as sociais e emocionais. De acordo com o mais recente manual do European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction “ o desafio da prevenção reside em ajudar os jovens a ajustar o seu comportamento, capacidades e bem-estar face às múltiplas influências das normas sociais, da interação com os pares, das condições de vida e dos seus próprios traços de personalidade” (EMCDDA, 2011, p. 19). Para concluir, importa notar que, embora seja amplamente reconhecida a importância de estimular o autocontrolo dos consumidores e os processos de controlo social informal sobre as drogas, os Estados têm dificultado o seu desenvolvimento, ao invés de o promoverem (Cohen, 1999; Fatela, 1991). Segundo Cohen (1999, p. 6) “ muitos sistemas de controlo de drogas baseados na proibição são focados predominantemente em destruir condições para o controlo do uso individual (… ) Estruturas comunicativas de utilizadores de drogas são constantemente ameaçadas, reduzindo a sua eficácia como veículos de conhecimento sobre uso seguro” . Potencialidades da abordagem de redução de riscos Ao longo das últimas décadas tem vindo a ser fortalecida a noção de que, ao invés de trabalhar para a abstinência – propósito considerado, aliás, pouco realista (Einstein, 2007; Farr, 1990; Fernandes, 2009; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007; Szasz, 1992) –, é mais proveitoso tentar reduzir os potenciais danos dos consumos, auxiliando os sujeitos a utilizar as drogas das formas menos prejudiciais possíveis e a manter o seu ajustamento nas várias áreas de vida (Cruz & Machado, 2010; Rovira & Hidalgo, 2003; Pallarés, 1996; Percy, 2008; Shukla & Kelley, 2007). Os principais argumentos a favor desta conceção prendem-se com as evidências de que o uso de substâncias psicoativas ocorre desde tempos imemoriais (e, provavelmente, continuará a acompanhar a história da humanidade), de

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que vários sujeitos conseguem controlar esta prática sem necessidade de intervenção externa formal e de que o proibicionismo não tem logrado resultados satisfatórios. Em diversos países europeus, as políticas de redução de riscos e minimização de danos vêm sendo, assim, cada vez mais defendidas (Einstein, 2007; Pallarés, 1996; Percy, 2008; Quintas, 2006; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007) e implementadas (Barbosa, 2009; Fernandes, 2009; IDT, 2010; OEDT, 2009; Quintas, 2006; Romaní, 2003). Alguns trabalhos apontam, de facto, para a eficácia destas medidas no controlo e diminuição, quer da criminalidade (Barbosa, 2009) quer dos problemas de saúde pública, como as doenças infecto-contagiosas, comuns em casos de consumo por via endovenosa (Barbosa, 2009; IDT, 2009; OEDT, 2008). No nosso país a consagração legislativa da redução de danos e o início da descriminalização do uso de todas as drogas e da posse para consumo ocorreu no início do século XXI, o que permitiu proteger os consumidores de procedimentos criminais e da consequente estigmatização, passando a ser sancionados administrativamente (Lei nº 30/2000 de 29 de novembro)2. Mesmo com o, recentemente instituído, Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) 3, os programas de redução de riscos e minimização de danos mantêm-se como uma importante atribuição (Decreto-Lei n.º 17/2012 de 26 de janeiro). Uma das mais distintivas características da redução de riscos prende-se com o seu caráter pragmático (Einstein, 2007; Fernandes, 2009; Parker, 2005; Quintas, 2006; Rovira & Hidalgo, 2003), privilegiando-se uma abordagem de saúde pública (O’ Malley & Valverde, 2004; Zajdow, 2005). Tal abordagem foca-se na minimização dos potenciais danos das drogas e no evitamento de consumos problemáticos (Fernandes, 2009; Fernandes & Ribeiro, 2002; Keene, 2001; Parker, 2005; Percy, 2008; Romaní, 2003; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007; Zajdow, 2005), substituindo os megalómanos ideais da abstinência pela hierarquização de objetivos (Einstein, 2007; Rovira & Hidalgo, 2003). Apela-se, assim, a uma noção de prevenção das drogas mais ampla e abrangente nos seus propósitos, como a que é veiculada pelo mais recente manual do EMCDDA (2011) e cujos objetivos passam por “ prevenir ou atrasar a iniciação do uso de drogas, promover a cessação do consumo, reduzir a frequência e/ou a quantidade do uso, prevenir a progressão para padrões de consumo perigosos ou nocivos, e/ou prevenir ou reduzir as consequências negativas do consumo” (p. 26).

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As medidas de redução de riscos e minimização de danos são também caracterizadas por uma dimensão humanista, sendo privilegiadas estratégias não culpabilizantes nem estigmatizantes (Fernandes, 2009; Fernandes & Ribeiro, 2002; O’ Malley & Valverde, 2004; Quintas, 2006), por se acreditar que tal estigmatização pode amplificar os riscos e danos associados às drogas, nomeadamente, ao diminuir a probabilidade de os sujeitos procurarem apoio formal (Keene, 2001). A decisão de usar substâncias psicoativas é, portanto, respeitada, não se constituindo como critério de exclusão para o apoio formal (Carvalho, 2007; Fernandes, 2009; O’ Malley & Valverde, 2004; Romaní, 2003; Rovira & Hidalgo, 2003; Zajdow, 2005). Assiste-se, com a redução de riscos e minimização de danos, a uma alteração dos estatutos dos consumidores e dos profissionais (Fernandes, 2009; Romaní, 2003), deixando estes últimos de ser encarados como os peritos no fenómeno (Einstein, 2007). A aposta recai num trabalho horizontal e na participação dos consumidores nos esforços interventivos (Fernandes, 2009; Rovira & Hidalgo, 2003), sendo objetivadas as suas obrigações e clarificado o papel dos profissionais (Einstein, 2007), além de se “ negociar uma série de medidas, sociais e profilácticas” entre ambos (Romaní, 2003, p. 441). Com estas medidas, em contraponto com a lógica repressiva que enfatiza os padrões problemáticos, alarga-se o leque de destinatários, de objetivos e de estratégias interventivas, abrangendo-se não só os consumos problemáticos como outros alternativos, que não requerem tratamento, incluindo os que cada vez mais se verificam em contextos recreativos e no meio estudantil (Calafat, Fernández, Juan, & Becoña, 2005; Deehan & Saville, 2003; IDT, 2009, 2010; Keene, 2001; OEDT, 2008, 2009). Em Portugal, o antigo IDT vinha sendo, a par de algumas organizações não-governamentais (Cf. Carvalho, 2007), um dos principais organismos a atuar nestes meios, por exemplo, em festivais e em semanas académicas, promovendo um maior conhecimento sobre as drogas e os seus riscos e recolhendo dados sobre as necessidades de informação dos sujeitos e sobre as estratégias interventivas que consideram mais eficazes (IDT, 2009, 2010). No entanto, no nosso país as intervenções em contextos recreativos ainda não são sistematicamente implementadas, nem adotadas em todas as suas valências (Barbosa, 2009; Fernandes et al., 2006). Em Portugal os esforços em termos de redução de riscos e minimização de danos continuam a incidir nos padrões de consumo problemáticos, não só em meio natural como 59

também prisional. Aposta-se, sobretudo, em programas de substituição opiácea e de troca de agulhas e seringas, assim como na promoção da reintegração social dos consumidores, procurando desenvolver-se as suas competências sociais e alterar as suas frequentes condições de desemprego e de sem-abrigo (Fernandes, 2009; IDT, 2009, 2010; OEDT, 2008, 2009). A proximidade deste trabalho é favorecida, desenrolando-se cada vez mais no terreno, por meio de equipas de rua, unidades móveis e grupos de auto-ajuda (Fernandes, 2009; IDT, 2009). Enfatiza-se, ainda, a necessidade de intervir na prevenção das recaídas, típicas nestes padrões de consumo e pouco trabalhadas, auxiliando os consumidores no desenvolvimento de capacidades pessoais e sociais, bem como na ativação de redes de suporte social efetivas (Keene, 2001; OEDT, 2009). No que concerne a padrões de consumo alternativos aos problemáticos, o trabalho de redução de riscos e minimização de danos vem ocorrendo maioritariamente por via da intervenção em contextos recreativos. Esta ênfase crescente justifica-se pelo fato de tais contextos serem reconhecidos como palcos privilegiados do uso de substâncias ilegais, frequentemente combinadas com álcool, e pela preocupação que tal prática suscita (Calafat et al., 2005; OEDT, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003). Os principais propósitos de tais intervenções prendem-se com a promoção de mudanças nas normas e práticas de uso de substâncias ilegais e legais, e com a minimização das possibilidades de surgirem danos associados aos consumos (OEDT, 2008), criando as condições para uma festa mais segura (Carvalho, 2007; Rovira & Hidalgo, 2003). Nesta lógica, é comum a adoção de estratégias que visam informar os frequentadores destes contextos acerca das drogas, suas consequências e serviços de apoio, entre outros meios, através da divulgação de informação em flyers, bilhetes de entrada e posters, assim como pela presença anunciada de profissionais disponíveis para conversar e prestar esclarecimentos (Calafat et al., 2005; Deehan & Saville, 2003; IDT, 2009; Rovira & Hidalgo, 2003). Privilegiada é, também, a realização de testes de pastilhas, por se reconhecer a frequente adulteração das substâncias ilícitas e a sua potencial perigosidade (Calafat et al., 2005; Fernandes, 2009). Do mesmo modo, enfatiza-se a formação dos proprietários e dos profissionais de tais contextos acerca de questões relacionadas com as drogas, os seus perigos, os cuidados que exigem ao nível dos espaços e os modos de atuação em situações de emergência médica (Calafat et al., 2005; Deehan & Saville, 2003; OEDT, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003). O objetivo é também que, através destes agentes sociais, se consiga garantir 60

as condições de segurança dos espaços, como ventilação apropriada, disponibilização gratuita de água potável, locais de descanso e ausência de sobrelotação (ibidem). Além disso, pretende-se conhecer as percepções e hábitos de consumo destes profissionais, por se reconhecer o seu importante papel junto dos indivíduos que frequentam os contextos recreativos (Calafat et al., 2005). Uma aposta ainda recente, mas em crescimento, prende-se com o fornecimento de transporte para e dos locais de recreação noturna, de modo a promover deslocações seguras para os seus frequentadores (OEDT, 2008). É de notar que em Portugal se tem assistido, nos últimos anos, a um crescente investimento dos esforços de investigação e intervenção centrados nos meios universitários, designadamente pela atuação do IDT e do GIES (Grupo de Intervenção no Ensino Superior) em celebrações das semanas acadêmicas, nas quais se verifica uma expressiva utilização de drogas (IDT, 2009). Não obstante o amplo reconhecimento das vantagens das estratégias de redução de riscos e minimização de danos admite-se que estas encerram algumas limitações, sobretudo por continuarem a enfatizar as dimensões negativas e problemáticas dos consumos nas suas representações sobre os mesmos e, consequentemente, nos seus modos de atuação (Rovira & Hidalgo, 2003). Antecipa-se mais eficaz o investimento numa abordagem de gestão dos prazeres e dos riscos do consumo que aceite as escolhas dos indivíduos e os capacite para uma gestão mais informada e efetiva desta prática, o que requer que a informação seja trabalhada também tendo em vista uma perspectiva do prazer, nomeadamente para estimular o seu envolvimento e assegurar a consideração dos seus pontos de vista (Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003). A este propósito, Romaní (2008, p. 101) refere que talvez seja o momento, pelo menos para o trabalho com os jovens, de não falar tanto da redução de danos, que é uma terminologia, a do sofrimento, que os deixa muito afastados, mas mais da gestão dos prazeres, que é o que mais vivem e lhes importa” . Boas práticas de intervenção no fenômeno das drogas Partindo do que foi exposto nos tópicos anteriores pretendemos neste capítulo final enfatizar aquilo que consideramos serem boas práticas de intervenção no fenômeno das drogas.Na nossa perspectiva, estas boas práticas sustentam-se em dois pilares centrais: (i) abranger todos os sujeitos que utilizam substâncias psicoativas; e (ii) envolver todos os consumidores nos esforços interventivos.

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Para que tal seja possível, cremos que o primeiro passo é ter vontade de ver mais além do que aquilo que vem sendo mostrado pelos discursos dominantes, quer da sociedade em geral quer da comunidade científica. De facto, apesar de estes permanecerem focados nas dimensões negativas e problemáticas do consumo de drogas (e.g., Fendrich & Johnson, 2005; O’ Malley & Valverde, 2004; Stevens, 2007), são cada vez mais os trabalhos que discutem padrões alternativos de uso de drogas, sob as designações de ‘ não problemáticos’ 2011; Pallarés, 1996), não dependentes’ 2005) e ‘ saudáveis’

(Keene, 2001), ‘ funcionais’

(Cruz,

(Smith & Smith,

(Whiteacre & Pepinsky, 2002). Em tais padrões, os sujeitos

mostram-se capazes de controlar os seus consumos sem necessidade de intervenção externa, em grande medida pela adoção de cuidados de gestão do uso das drogas (e.g., Cruz, 2011; Fernandes & Ribeiro, 2002; Pallarés, 1996) 4 . Para que as práticas de intervenção nas drogas sejam efetivas não é possível continuar a ignorar tais padrões de consumo, pois ao fazê-lo estamos a contribuir para que os sujeitos que não se reveem nas noções de consumidor problemático e toxico dependente se afastem dos esforços interventivos. Pelo contrário, temos de aprender com estes sujeitos o que é necessário para manter consumos não problemáticos’

de modo a, a partir daí, se trabalhar

com os consumidores problemáticos. Cremos que o propósito central da intervenção no fenómeno das drogas deve ser o de auxiliar os sujeitos a utilizar estas substâncias das formas menos prejudiciais possíveis, por ser mais pragmático e proveitoso do que trabalhar para a abstinência (Cruz & Machado, 2010; Einstein, 2007; Gamella & Roldán, 1999; Pallarés, 1996; Percy, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003; Shukla & Kelley, 2007). Tal pragmatismo, a par do seu caráter humanista e da eficácia que tem demonstrado no controlo do crime e dos problemas de saúde pública, é o principal argumento que nos leva a valorizar a redução de riscos e minimização de danos como uma boa prática de intervenção nos consumos, quer problemáticos quer não problemáticos’ . Cremos, todavia, que não basta proporcionar aos consumidores este trabalho de redução de riscos, sendo necessário envolvê-los nos esforços interventivos, sob pena de estes não serem eficazes. A título de exemplo, estudos com sujeitos que realizaram tentativas de tratamento da dependência mostram que estas tendem a falhar, conduzindo a recaídas, quando os próprios não as desejam e quando não estão motivados (Cruz, 2011; Pallarés, 1996; Torres, Lito, Sousa, & Maciel, 2008). Tal envolvimento implica não demitir os sujeitos das suas responsabilidades, incluindo sobre os seus consumos, e estimular um estilo de 62

atribuição/locus de controlo interno (Einstein, 2007; Fernandes, 2009; Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992; Walters, 2000; Whiteacre & Pepinsky, 2002). Encaramos, aliás, como altamente criticáveis perspectivas mais tradicionais que tratam os consumidores como doentes e que lhes transmitem a mensagem de que não são capazes de, sem apoio externo, lidar com a sua doença’

de utilização de substâncias ilegais. Não negamos a existência de situações em

que o apoio externo é necessário, mas defendemos ser mais proveitoso estimular a responsabilidade pelos consumos, mesmo antes da sua eventual iniciação (Cruz, 2011). É neste sentido que valorizamos a promoção de um mecanismo individual de autocontrolo/autorregulação dos consumos como uma boa prática de intervenção no fenômeno das drogas, à semelhança do que defendem outros autores (Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Fernandes & Ribeiro, 2002; Rovira & Hidalgo, 2003; Szasz, 1992). Privilegiar uma política não proibicionista afigura-se-nos como a melhor forma de estimular o autocontrolo dos consumidores, pelo que propomos que: (i) nos casos em que o consumo não prejudica de forma significativa nem o próprio nem terceiros, se respeite a escolha dos sujeitos, procedendo apenas à sua informação, nomeadamente sobre os potenciais prejuízos das drogas e sobre o modo de os evitar; (ii) quando os consumos acarretam consequências negativas para os sujeitos, o sistema de apoio formal proporcione as necessárias estruturas de suporte, clínicas e sociais; e nos casos em que das práticas relacionadas com as drogas resultam prejuízos para terceiros (e.g., sinistralidade rodoviária pela condução sob o efeito destas substâncias, envolvimento em práticas criminais para financiar os consumos), os indivíduos sejam alvo de medidas sancionatórias, de natureza civil ou criminal5. A potenciação do referido mecanismo de autocontrolo/autorregulação requer também, a nosso ver, uma efetiva educação sobre e para os consumos (que capacite os sujeitos para a tomada de decisões informada)6 e um trabalho de desenvolvimento e treino de competências pessoais e sociais (e.g., Rovira & Hidalgo, 2003). Além disso, para se conseguir fomentar o interesse e o envolvimento dos consumidores nos esforços interventivos, julgamos essencial atender tanto aos riscos como às potencialidades (sobretudo o prazer) das drogas, já que o consumo parece resultar do balanço entre ambos (Cruz, 2011; Kelly, 2005; Levy et al., 2005; Romaní, 2008; Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián & Valenzuela, 2009). Num estudo anterior (Cruz, 2011) equacionámos em que medida a falta de eficácia das políticas oficiais das drogas não é alimentada pela discrepância entre um discurso público que se centra nos seus prejuízos (O’ Malley & 63

Valverde, 2004; Rovira & Hidalgo, 2003; San Julián & Valenzuela, 2009), ao mesmo tempo que os consumidores (funcionais) valorizam a sua utilização e o prazer que assim obtêm. Esta discussão pública sobre as drogas pode ser, assim, sentida pelos referidos consumidores como falseada, contribuindo para que se desliguem desse debate, além de não ajudar a uma compreensão adequada dos motivos e das experiências, de pelo menos parte, dos consumidores (Cruz, 2011). Com efeito, identificamos como boa prática de intervenção nas drogas a abordagem que aposta no trabalho de gestão dos prazeres, não se limitando à gestão dos riscos, proposta por autores como Romaní (2008) e Rovira e Hidalgo (2003). Na nossa perspectiva, o envolvimento dos consumidores nos esforços interventivos implica, também, a adoção de estratégias que permitam realmente chegar até eles, o que nos leva a valorizar, como boa prática de intervenção nas drogas, o trabalho de proximidade e em contexto natural (e.g., Fernandes & Ribeiro, 2002), tanto nos casos de consumos problemáticos como não problemáticos. Afigura-se-nos menos produtiva a intervenção que decorre em gabinete, por se tratar de um contexto pouco apelativo e por não facilitar a generalização das aprendizagens para as situações reais. O trabalho de proximidade implica, obviamente, que se vá ao encontro dos consumidores, o que se parece revestir de especial dificuldade no caso de consumos não problemáticos’ . Dados de estudos anteriores sugerem que estes padrões de utilização de drogas, além de envolverem maiores cuidados para a sua ocultação, tendem a ser algo fluidos em termos de localização espacial (cf. Cruz, 2011). Neste sentido, mais do que ocorrer em contextos específicos, tendem a acontecer em circunstâncias mais especiais e festivas que se desenvolvem tanto em espaços públicos, como semi-públicos e privados (e.g., Carvalho, 2007; Cruz, 2011; San Julián & Valenzuela; Silva, 2005). Com efeito, consideramos que apostar no desenvolvimento da intervenção através de pares é uma boa prática de intervenção no fenômeno das drogas, por facilitar o acesso a contextos e a consumidores mais difíceis de alcançar (Cruz, 2011; Pallarés, 1996; Young, 1971). Esta abordagem estratégica implica o estabelecimento (e contratualização) de parcerias com determinados sujeitos, que se mostrem disponíveis, identificando-se as responsabilidades e contrapartidas para todos os intervenientes, de modo a conseguir o seu efetivo envolvimento e responsabilização7. Com tais sujeitos desenvolver-se-ia um trabalho horizontal, de partilha e construção de informação em relação às substâncias psicoativas e a cuidados de gestão dos consumos consentâneos com a manutenção de utilizações ‘ não problemáticas’ , capacitando-os para veicular e trabalhar esta informação junto dos seus pares. No caso de 64

colaboradores consumidores tal estratégia visaria, também, dotá-los de competências para regular os seus usos de drogas, de modo a manter o ajustamento nas várias áreas de vida. Seria importante manter encontros regulares para ir monitorizando e atualizando o trabalho em curso, nomeadamente a partir do feedback obtido em situações da vida real. Esta intervenção através dos pares constituiria, igualmente, uma forma de estimular o desenvolvimento de mecanismos de controlo social informal, cuja relevância é amplamente reconhecida (Castel & Coppel, 1991; Cohen, 1999; Matos & Simões, 2008; Quintas, 2006; Reuband, 1995; Walters, 2000; Young, 1971), uma vez que as vivências com consumidores constituem um importante meio de aprendizagem sobre as drogas e de desenvolvimento das conceções de risco dos sujeitos (Cruz, 2011; Gamella & Roldán, 1999; Kelly, 2005; San Julián & Valenzuela, 2009; Shukla & Kelley, 2007). Tais colaboradores operariam junto dos seus pares como efetivos meios de aprendizagem, tanto direta, pela partilha de informação, como indireta, pela observação de comportamentos no caso de serem eles próprios consumidores. Para a concretização de um trabalho de proximidade parece-nos igualmente essencial que os técnicos estabeleçam com os consumidores uma relação de empatia, de valorização das suas opiniões e de respeito pelas suas escolhas (nomeadamente a de utilizar drogas), não patologizante, nem estigmatizante. Defendemos, assim, a necessidade de promover um trabalho horizontal e interativo, encarando os consumidores como peritos no tema e responsáveis pelos seus comportamentos e pela mudança (e.g., Fernandes, 2009; Whiteacre & Pepinsky, 2002). Importa, neste sentido, conhecer as condições concretas de vida e de consumo destes sujeitos para identificar as suas necessidades específicas e adaptar respostas interventivas mais eficazes (Fernandes et al., 2006; Goren, 2005; Moritz, 2005). A importância de envolver os consumidores nos esforços interventivos e de lhes dar liberdade para viver e discutir os seus consumos justifica-se também, a nosso ver, como forma de os incentivar a procurar suporte especializado quando acham que dele necessitam e a ser francos na informação que prestam nesses contextos (Eade, 2005)9. Julgamos, todavia, que tal só é possível se alterarmos as nossas conceções sobre as drogas ilegais, deixando de as usar como um depósito de moralizações e de estigmas e passando a encará-las de uma forma mais ‘ naturalizada’

e não criminalizadora. Neste sentido, afigura-se-nos mais efetivo optar pela

descriminalização do consumo pessoal e pelo trabalho de redução de danos, em detrimento da anterior política criminalizadora. De facto, a experiência portuguesa, acumulada desde o 65

início do século XXI, tem evidenciado as vantagens de se apostar nesta abordagem alternativa, nomeadamente por ter contribuído para uma expressiva diminuição do uso de substâncias ilegais, testemunhando-se no nosso país uma das mais baixas taxas europeias de prevalência dos consumos, à exceção dos de heroína (Greenwald, 2009; IDT, 2009; Poiares, 2009). Texto de: Olga Souza Cruz e Carla Machado

7. Redução de danos e saúde pública: construções alternativas à política global de "guerra às drogas" A Redução de Danos (RD) foi adotada como estratégia de saúde pública pela primeira vez no Brasil no município de Santos-SP no ano de 1989, quando altos índices de transmissão de HIV estavam relacionados ao uso indevido de drogas injetáveis (Mesquita, 1991). Proposta inicialmente como uma estratégia de prevenção ao HIV entre usuários de drogas injetáveis – Programa de Troca de Seringas (PTSs) – a Redução de Danos foi ao longo dos anos se tornando uma estratégia de produção de saúde alternativa às estratégias pautadas na lógica da abstinência, incluindo a diversidade de demandas e ampliando as ofertas em saúde para a população de usuários de drogas. A diversificação das ofertas em saúde para usuários de drogas sofreu significativo impulso quando, a partir de 2003, as ações de RD deixam de ser uma estratégia exclusiva dos Programas de DST/AIDS e se tornam uma estratégia norteadora da Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral a Usuários de Álcool e Ouras Drogas e da política de Saúde Mental. Esse processo de ampliação e definição da RD como um novo paradigma ético, clínico e político para a política pública brasileira de saúde de álcool e outras drogas implicou um processo de enfrentamento e embates com as políticas antidrogas que tiveram suas bases fundadas no período ditatorial. A construção de uma política de Redução de Danos será analisada a partir da interface entre o processo nacional de abertura política e a construção de uma política global de "guerra às drogas". O lento processo de abertura política no Brasil foi acompanhado de rearranjos macropolíticos que possibilitaram a manutenção de práticas autoritárias no interior do próprio 66

Estado Democrático. As políticas de drogas passaram a assumir uma posição estratégica nesta reforma estatal, impondo impasses para o amplo processo de democratização e restrições para a atenção equânime, integral e universal as pessoas usuárias de drogas. No cenário nacional, vivemos na década de 80, o fracasso do, então, "milagre econômico", o alto índice da inflação, a explosão demográfica nos grandes centros urbanos, aumentando os cinturões de pobreza nas periferias e favelas. A falência do modelo econômico nacional e o desemprego conjuntural vieram acompanhados do aumento do mercado ilícito. Podemos agregar a esse processo econômico o sucateamento da educação pública e o aumento da violência urbana. É dentro desse contexto nacional que, no final da década de 80 e início da década de 90, o tráfico de drogas, sobretudo de cocaína, ganha projeção tanto no mercado nacional quanto no mercado internacional (Batista, 1998, 2001). As favelas e periferias urbanas passam a ocupar um lugar estratégico para o forte mercado de drogas, recrutando jovens pobres para o tráfico. As disputas por pontos de venda de drogas entre facções inimigas e o enfrentamento direto com a polícia agregaram ao mercado de drogas o mercado de armas, dando início a uma verdadeira guerra civil que se encontra inserida num "ciclo global de guerras". No cenário internacional, as drogas - e posteriormente o terrorismo - passaram gradativamente a substituir o comunismo como figura ideológica de ameaça à democracia mundial (Batista, 2001; Negri & Cocco, 2005). A emergência da política global de "guerra às drogas", liderada pelos EUA, ampliaram e fortaleceram a economia bélica, fomentando práticas totalitárias em diferentes pontos do planeta, chegando a intervenções militares diretas, como as ocorridas na Bolívia, no Panamá e na Colômbia (Karam, 2003). A "guerra às drogas" e a "guerra ao terrorismo" trouxeram um novo sentido para o conceito de guerra, na medida em que essas guerras passam a lidar com um "objeto" global que torna cada vez mais imprecisa a distinção entre "conflitos externos" e "segurança interna". Enquanto as ditas "classes perigosas" eram o alvo da segurança interna, os conflitos externos tinham como alvo de intervenção os ditos "inimigos". Entretanto, no mundo contemporâneo, as ameaças externas e as ameaças internas tornam-se cada vez mais híbridas e, a um só tempo, alvos de uma guerra globalizada (Negri & Hardt, 2005).

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No atual estado de guerra global, as guerras passam a ser declaradas a inimigos não geográficos, inimigos transnacionais como são as "drogas" e o "terrorismo", ampliando seu alcance temporal e espacial, tornando seu estado cada vez mais permanente. A aposta na guerra como forma de manter a ordem social acaba por torná-la um estado contínuo nas sociedades contemporâneas, ao invés de um estado de exceção. A amplitude transnacional do problema gerado pelo tráfico de drogas confere a essa guerra um caráter difuso, ao mesmo tempo em que intensifica o controle social, identificando as drogas como a encarnação do mal. No campo da guerra global às drogas toda humanidade pode, por um lado, unir-se contra o mal e, por outro lado, qualquer um pode ser um inimigo da humanidade. A guerra às drogas se tornou ao mesmo tempo um exercício de controle social e uma estratégia para a ampliação da economia neoliberal a partir do exercício do poder e da violência. A economia neoliberal se fortalece através da intensificação de uma economia bélica, já que a lógica de guerra às drogas e a lógica de consumo não são lógicas opostas, elas se alimentam e se fortalecem mutuamente. A lógica de guerra às drogas busca combater a produção da substância, dividindo os países entre produtores, exportadores e consumidores, reprimindo a oferta dos países produtores, a procura dos países consumidores e a exportação nas fronteiras, portos e aeroportos. Tal estratégia se baseia numa lógica geográfica e desloca para os países periféricos a fonte causadora dos problemas gerados pelo trafico de drogas. Tal estratégia bélica e econômica não inclui como problema a ser enfrentado a produção de subjetividade consumista que movimenta o mercado internacional de drogas e que caminha de mãos dadas ao processo de transnacionalização da economia de mercado. Nas sociedades de consumo os produtos são intangíveis, como uma "sensação de bemestar", um "estilo de vida", uma "identidade pré-fabricada". O marketing e os meios de comunicação investem, sobretudo, na produção desejante como motor da economia. Dentro desse contexto, as drogas se inserem numa rede de produção de substâncias que se agencia a uma ampla rede de produção de subjetividade. As drogas permitem acessar de modo prático, rápido e de qualquer lugar a rede de produção de subjetividade consumista.

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O tráfico de drogas não pode se reduzir à produção da substância, mas deve se estender ao plano de produção de subjetividade consumista. Os produtos (drogas) representam uma pequena parte do processo de produção do mercado transnacional de drogas que, apesar de ser uma prática ilícita, se beneficia e se fortalece dos meios lícitos de produção de subjetividade. Da mesma forma, as favelas representam um pequeno ponto dentro de uma ampla rede transnacional, que se constitui como um plano que articula produção lícita e produção ilícita através de um diversificado cardápio de meios de comunicação. Entretanto, ao focalizar esforços em combater a produção das drogas, as estratégias policiais e militares assumem a função de controle social das camadas pobres, pois passam a localizar geograficamente um processo de produção transnacional: responsabilizar as favelas e os países periféricos por um mercado que é movimentado por uma lógica de consumo que é acionada pelos países do primeiro mundo. No Brasil, práticas da ditadura, como a tortura, passaram a ser exercidas sobre comunidades pobres mediante uma intensificação do poder policial. Sobre a justificativa de defesa da democracia e combate às drogas, forças antidemocráticas constituíram uma complexa rede bélica no cerne da própria democracia. Mais do que um combate às drogas, esse arranjo vem garantindo um exercício de combate às próprias forças democráticas emergentes. Não estamos falando de guerra às drogas, e sim de uma repressão generalizada à própria democracia, um "Estado de Guerra" no cerne do "Estado Democrático de Direito" que se apoia ora sobre o eixo drogas, ora sobre o eixo terrorismo. É dentro dessa lógica que, em 1998, instituiu-se a "Secretaria Nacional Antidrogas, que, na sua origem, subordinava-se à Casa Militar da Presidência da República, transformada em 1999, sem perder seu caráter militarista, em Gabinete de Segurança Institucional do Presidente da República" (Karam, 2003, p.79). O exercício de poder gerado no embate entre forças democráticas e forças totalitárias constituiu um jogo de contradições entre uma Constituição que garante direito a liberdades individuais e uma lei do Direito Penal que impede que as pessoas usem certas substâncias. Cabe destacar que a lei 6368/762 foi proferida em pleno período ditatorial e seu caráter autoritário não foi reformulado a partir da Constituição de 1988. A contradição do próprio arcabouço jurídico remete, antes de tudo, à conciliação sinistra entre democracia e totalitarismo sobre o eixo das drogas. 69

A repressão ao tráfico de drogas que se exerce de forma mais violenta nas zonas de maior pobreza revela uma "falsa oposição" criada entre Estado Nação e Capitalismo Globalizado, que se atualizam sobre o eixo drogas. O desafio é poder captar o momento em que as aparentes oposições determinam uma aliança entre o avanço da lógica de consumo produzido pelo capital mundial e os modos de sujeição dos Estados Nacionais, ou seja, uma estranha e paradoxal aliança entre repressão e liberação. O modelo repressivo da política estatal contra as drogas evidencia um modo de operar no qual o Estado se vê às voltas com os efeitos da própria globalização da economia e do avanço da lógica neoliberal, ampliando o poder repressivo do Estado-Mínimo e o poder de governo do mercado transnacional sobre os próprios Estados Nacionais. Estabelece-se uma aliança entre termos aparentemente contraditórios, mas que comungam de interesses comuns, de modo a preservar a lógica de mercado. É neste cenário macropolítico que as drogas tornaram-se um mal a ser eliminado pelo Estado e, ao mesmo tempo, um produto a ser altamente consumido pela classe média e alta. É nesse mesmo cenário, de constituição de uma política de guerra às drogas, que ocorre a primeira ação de Redução de Danos no Brasil, em 1989, no município de Santos-SP. Santos vivia, nesse momento, um das gestões municipais mais promissoras para a implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) através de práticas concretas que animariam o sentido de saúde democrática. Apesar desse cenário, aparentemente favorável a práticas progressistas de atenção e gestão em saúde, o então secretário municipal de saúde, David Capistrano, e o Coordenador do programa de DST/AIDS, Fábio Mesquita, sofrem uma ação judicial por adotarem a estratégia de Redução de Danos, acusados de incentivarem o uso de drogas. Nessa época, Santos era conhecida como "capital da AIDS", cidade portuária, a maior da América Latina, lugar de trocas e encontros de todas as ordens, ponto estratégico do tráfico internacional de drogas. Dados epidemiológicos indicavam que 51% dos casos de contaminação de HIV/AIDS estavam relacionados ao compartilhamento de seringa para o uso de drogas injetáveis (Mesquita, 1991). A ação judicial que David Capistrano sofreu não será tomada como um episódio de uma história pessoal, mas sim como um acontecimento político que evidencia o encontro entre as forças conservadoras que sustentam uma política antidrogas e as forças progressistas que adotavam a RD como uma estratégia em defesa da vida e da democracia. A retaliação 70

judicial e policial sofrida por essa secretaria municipal de saúde pôs em evidência a contradição da própria máquina estatal, na medida em que o poder judiciário suspende o direito constitucional de acesso universal à saúde. É dentro deste enfoque, da problematização entre políticas totalitárias e políticas democráticas que coexistem e compõem o funcionamento da máquina estatal, que iremos situar os embates travados pela RD no Brasil. A restrição que sofre a RD no Brasil permite não só identificarmos atitudes arbitrárias, como a própria contradição do arcabouço jurídico do Estado. Essa ação inconstitucional não pode ser explicada unicamente a partir da Lei 6368/76, mas sim através dos meios pelos quais o autoritarismo mantém práticas que limitam o exercício da democracia.

O paradigma da abstinência: articulação entre justiça, psiquiatria e moral religiosa. A tarefa de entender os embates recorrentes entre RD e os aparelhos de Estado acaba nos colocando diante do conflito histórico que essa estratégia vem travando com a política antidrogas, legitimada judicialmente tal qual a Lei 6368/76 vigente até o ano de 2006, quando entrou em vigor a nova lei de drogas, 11.346/06. Expor as relações de poder que se teceram historicamente para a produção de uma política de guerra às drogas exige que realizemos uma análise micropolítica da política antidrogas objetivando apreender seus dispositivos capilares de reprodução do paradigma da abstinência. Em outras palavras, mudaremos o objeto de análise: desviaremos o olhar antes lançado sobre o Estado e passaremos a focalizar os dispositivos de poder (Deleuze, 1988, 1996; Foucault, 1988) que se consolidam junto da justiça e da Lei. É nesse ponto que encontramos a proximidade entre a política antidrogas e o paradigma da abstinência. Veremos como a abstinência se torna um eixo articulador entre a justiça, a psiquiatria e a moral religiosa que, em sua articulação, definem uma política do tratamento para usuários de drogas. Por paradigma da abstinência entendemos algo diferente da abstinência enquanto uma direção clínica possível e muitas vezes necessária. Por paradigma da abstinência entendemos uma rede de instituições que define uma governabilidade das políticas de drogas e que se exerce de forma coercitiva na medida em que faz da abstinência a única direção de tratamento possível, submetendo o campo da saúde ao poder jurídico, psiquiátrico e religioso. 71

A articulação entre criminologia e psiquiatria no Brasil vem de um diálogo iniciado na segunda metade do século XIX, numa interlocução direta com o Direito Penal. Uma diferença entre essas duas disciplinas consiste no fato de a criminologia surgir no interior do Direito Penal, enquanto a "psiquiatria se insurge do exterior, disputando com o direito penal o papel de gestora do criminoso, através de uma relação, progressivamente mais íntima, entre crime e doença mental" (Rauter, 2003, p. 41). Apesar das alianças, na história do Brasil, a relação entre criminologia e psiquiatria não foi harmônica e complementar. A ambição da psiquiatria encontrou resistência no interior do próprio Direto Penal, principalmente no século XX. Embora a psiquiatria tenha conquistado um espaço dentro do Direito Penal, os juristas determinaram um limite para essa atuação. É dentro deste jogo de poder que o usuário de drogas ora se vê perante o poder da criminologia, ora diante do poder da psiquiatria; ora encarcerado na prisão, ora internado no hospício. O saber psiquiátrico, bem como o saber criminológico, definiu uma forma, um enquadre, um "estrato" (Deleuze, 1988; Foucault, 1993) para o usuário de drogas. A histórica articulação entre poder psiquiátrico e direito penal se consolidou ao logo das décadas e pode ser entendida como uma das forças contrárias à implementação da Redução de Danos no Brasil. A produção histórica do estigma do usuário de drogas como uma figura perigosa ou doente nos permite compreender parte dos problemas que a RD passa a enfrentar quando essa se torna um método de cuidado em saúde que acolhe as pessoas que usam drogas como cidadãos de direitos e sujeitos políticos. A construção das políticas de saúde para usuários de drogas centradas no hospital psiquiátrico demarca uma significativa interferência do Direito Penal sobre os procedimentos clínicos, como também uma aproximação entre práticas jurídicas e práticas médicas. As diversas retaliações judiciais que ações de RD vêm sofrendo no Brasil apontam para um embate que não se reduz às limitações impostas pelo Direito Penal, mas apontam para a delimitação imposta ao campo da saúde constituída entre a psiquiatria e a justiça em torno do paradigma da abstinência. Logo, compreender essas relações de poder obriga-nos a situá-las na articulação entre as práticas discursivas da psiquiatria e as práticas não-discursivas das instituições de confinamento. O enfrentamento da RD não é só com o discurso da lei, mas também com as práticas não-discursivas das instituições disciplinares. Em última instância, pode-se dizer que a RD coloca em questão as relações de força mobilizadas sócio72

historicamente para a criminalização e a patologização do usuário de drogas, já que coloca em cena uma diversidade de possibilidades de uso de drogas sem que os usuários de drogas sejam identificados aos estereótipos de criminoso e doente: pessoas que usam drogas e não precisam de tratamento, pessoas que não querem parar de usar drogas e não querem ser tratadas, pessoas que querem diminuir o uso sem necessariamente parar de usar drogas. O Direito Penal e a psiquiatria explicam parte do poder que submete os usuários de drogas. O poder disciplinar opera por meio da normalização das condutas desviantes, em que o saber médico e o criminológico privilegiam como objeto de intervenção o criminoso, o louco, o delinquente, o "drogado". Desse ponto de vista, poderíamos facilmente concluir que os embates da RD acontecem, exclusivamente, contra os dispositivos disciplinares: a prisão e o manicômio. Porém não é somente dentro das prisões e dos hospícios que os usuários de drogas são confinados hoje em dia. As ditas Comunidades Terapêuticas e Fazendas Terapêuticas trazem outro elemento que não exclui a disciplina, mas a complementa: a moral religiosa. A moral cristã compõe, junto com a justiça e a psiquiatria, uma rede de instituições que tem por finalidade única e comum a abstinência. Porém, ao contrário da psiquiatria que se volta mais para a doença mental e da justiça que se volta mais para a delinquência, a moral religiosa inclui um terceiro elemento, a associação do prazer ao mal. O prazer da carne, que frequentemente tem sido associado ao uso de drogas, é objeto histórico de intervenção do poder pastoral e, atualmente, se associa ao poder disciplinar; mas a gênese desse poder é muito mais antiga do que a própria disciplina. O poder da Igreja sobre os usuários de drogas se justifica muito mais por uma problemática do "prazer" do que, exclusivamente, pela problemática da "razão". Enquanto a psiquiatria e a criminologia produziam verdades sobre a razão e práticas de "cura" do anormal, fosse louco ou criminoso, a moral cristã atém-se aos desvios da "carne", aos prazeres apetitosos. A problematização moral do uso de drogas se assenta em certa medida em um conjunto de regras morais de fundamento cristão, naquilo que o cristianismo historicamente definiu como conduta frente aos prazeres da carne. Coube ao cristianismo situar o prazer sob signo do mal e da morte, produzindo, segundo Foucault, uma inversão histórica na passagem da Antiguidade para a Era Cristã. Dessa forma, o uso dos prazeres se tornou objeto de interdição moral e "poder-se-ia acrescentar o alto valor moral e espiritual que o cristianismo, 73

diferentemente da moral pagã, teria atribuído à abstinência rigorosa, à castidade permanente, à virgindade" (Foucault, 1994, p. 17). Trata-se de uma malha fina, um poder capilar que, antes de fundar as práticas de tratamento, fundou a própria individualidade pecadora. Nesta semiótica, o prazer passa a ser identificado a um espaço interior, regido pelos pensamentos, sentimentos: intenções obscuras da alma. O espaço interior do desejo, a vigília e o pecado original redefiniram a própria subjetividade e as práticas que passaram a reger o prazer: confissão, retiro, punição. O poder pastoral sobre a carne atravessou séculos e constitui o mais longo diagrama de poder que Foucault pôde estabelecer. É dentro deste eixo de problematização e produção de verdades sobre o corpo e sobre o prazer que a RD abre um novo campo de possibilidades clínicas, políticas e existenciais. Sendo assim, não podemos reduzir os desafios que a RD vem enfrentando à sua dimensão de embate com a Lei. A ação judicial que o Secretário de Saúde de Santos sofreu revelou um embate com as práticas de sujeição dos usuários de drogas, relações de saber-poder que constituem na contemporaneidade o paradigma da abstinência, tecido entre o Direito Penal, poder psiquiátrico e a moral cristã. O encontro com essas relações de poder, construídas em torno do paradigma da abstinência, exige a criação de estratégias de mobilização e um sentido de luta para as ações de RD. O sentido de luta, comum à RD, coloca um novo desafio para esse dispositivo. O objetivo da RD não pode mais ser reduzido à prevenção de DST/AIDS, da mesma forma que o objeto de intervenção desse movimento não se reduz a um confronto com a justiça.

Produção e gestão do comum Em 1994 boletins do Ministério da Saúde indicavam que 25% dos casos de AIDS no Brasil estavam associados ao uso indevido de drogas injetáveis (Marques & Doneda, 1998). Essa realidade epidemiológica exigia que a RD deixasse de ser uma ação pontual do município de Santos e se tornasse uma ação dentro da política nacional. A construção dessa política passou por vários desdobramentos e interfaces em função do conjunto de instituições que se construíram ao redor do tema AIDS/drogas.

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Nesse mesmo ano (1994) iniciou-se um projeto de articulação política em torno da interface AIDS e Drogas: "Projeto Drogas" do Programa Nacional de DST/AIDS. Tal projeto contava com o apoio político e financeiro da Organização das Nações Unidas, por meio do Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas (UNDCP)3. Esse projeto buscou articular, em torno do tema drogas, a Coordenação Nacional de Saúde Mental, o então Conselho Federal de Entorpecentes - CONFEN - do Ministério da Justiça e as Secretarias do Ministério de Educação e do Desporto (Marques & Doneda, 1998). A RD foi inserida em diferentes programas e secretarias que criaram, junto ao Projeto Drogas, diferentes linhas de intervenção estadual e municipal, principalmente a criação dos Programas de Redução de Danos (PRDs). Como na Holanda, onde foram criadas as ações de troca de seringa entre usuários de drogas injetáveis, os PRDs foram fundados em muitos casos por usuários de drogas responsáveis tanto pelos processos de gestão quanto pelos processos de atenção, sendo denominados de Redutores de Danos. Ao inserir, no cenário nacional, um conjunto de estratégias de Redução de Danos, o PN - DST/AIDS criou um jogo de articulações e tensões no interior da própria máquina estatal. É esse jogo de tensões e articulações que ocorreram no interior da máquina estatal que nos permite acompanhar como a RD vai aos poucos deixando de ser uma estratégia de prevenção as DST/AIDS e vai se tornando um novo paradigma, na medida em que inclui os usuários de drogas como protagonistas dessas ações. Os investimentos do PN-DST/AIDS possibilitaram a criação de outro plano de sustentação da RD, não mais local, mas sim nacional. A RD tornou-se uma política de governo com pretensão de vir a ser política de Estado, encontrando forte tensionamento com outros setores da máquina posicionados a favor de uma política antidrogas. Apesar dos embates no âmbito federal, foi na esfera municipal, no plano concreto das ações que a RD sofreu as maiores restrições. Dessa forma, mesclavam-se um plano de articulação federal e um plano municipal. Diante dessa realidade política, foi fundada, no ano de 1996, a Associação Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA), com a função de capacitar e articular os Programas de Redução de Danos. A ABORDA mobilizou redutores de danos e usuários de drogas para que se organizassem politicamente, fundando diversas ONGs pelo Brasil. A direção política da ABORDA foi ao encontro da necessidade dos redutores de danos de alcançarem maior autonomia para gerir as políticas de RD, pois os mesmos não 75

encontravam ambiente favorável para se expressarem dentro dos PRDs. Por serem, inicialmente, aparelhos estatais, os PRDs encontravam-se inseridos num contexto institucional que impunha obstáculos à nascente militância dos redutores de danos e usuários de drogas. A militância política forçou a criação de espaços de gestão "exteriores" ao próprio Estado, como as associações nas quais os usuários de drogas viam a possibilidade de não serem identificados a doentes ou criminosos (Ministério da Saúde, 2003b). A ABORDA criou junto com as ONGs um método de inclusão das minorias, que foi ativado, principalmente, pelos redutores de danos. A ABORDA, por meio de encontros nacionais e redes de interação virtual (internet), colaborou na fundação e articulação das ONGs. Dessa forma, as diversas ONGs, dentre elas a própria ABORDA, teceram uma rede nacional de redutores de danos que contava com a participação tanto daqueles que atuavam em ONGs quanto dos que vinham dos PRDs que não fundaram ONGs (Ministério da Saúde, 2003b). Redutores de danos, travestis, usuários de drogas, profissionais de saúde, pessoas vivendo com HIV, estudantes e pesquisadores criaram uma gestão democrática através de redes abertas de interação e cooperação, evitando que os PRDs ficassem isolados e restritos a um contexto local. A consolidação dessa rede fez emergir um outro plano de produção das políticas de RD, que não se reduzia nem ao plano e local, nem ao plano estatal e federal. A tecedura dessa rede possibilitou a inclusão de grupos minoritários num circuito de relação, em que se passou a trocar muito mais do que seringas descartáveis. O método da RD foi, aos poucos, se descolando do foco específico de prevenir, efetivado através do dispositivo de troca de seringas, e assumiu objetivos mais amplos, acionados por novos dispositivos de gestão e atenção. A cooperação em rede fundou uma plataforma política situada entre as ações locais disparadas pelas ONGs (associações) e a máquina de Estado, criando um atravessamento entre as mesmas. . Mais importante do que localizar as instâncias de formulação das ações de RD é analisar o modo como essas passaram a serem apropriadas pelos usuários de drogas, gerando um grande efeito de mobilização (Ministério da Saúde, 2003b). A rede nacional de redutores de danos passou a exercer um papel importante de mobilização e articulação nacional por uma nova política de drogas. Mobilizadas em redes, as associações passaram a lutar pelos direitos dos redutores de danos e dos usuários de drogas. Nesse contexto, algumas associações foram fundadas por redutores de danos que trabalhavam em PRDs e passaram a se organizar politicamente, enquanto outras foram fundadas por usuários de drogas que lutavam mais 76

abertamente pela descriminalização do usuário de drogas dentro de uma proposta antiproibicionista. As ONGs desempenharam um importante papel na história da RD no Brasil, já que, a partir delas, os redutores de danos puderam construir uma rede cooperativa e democrática. Entretanto, a criação das redes de redução de danos não representou um desatrelamento da máquina estatal. Ao invés disso, a mobilização dos redutores de danos gerou uma estranha e paradoxal relação com o Estado: receber financiamento do Estado e, ao mesmo tempo, conjurar a política antidrogas ainda hegemônica na máquina estatal. Essa relação paradoxal da RD com o Estado leva à construção, na prática concreta dos redutores de danos, de um novo sentido de política pública, não mais identificada à política de Estado ou política de governo. Tal sentido de público se expressa doravante como gestão do comum (Benevides & Passos, 2005). O plano de articulação política criada pelas associações permitiu que os embates locais fossem inseridos num circuito de trocas e mobilizações através de redes nacionais. A inclusão do usuário de drogas nos serviços de saúde não só como um paciente, mas como ator corresponsável pelas políticas, vem sendo o desafio da RD. Nas associações de redutores de danos, os usuários de drogas participam como agentes políticos colaboradores na produção de redes de cuidado e de comunicação, criando uma mobilização coletiva, uma gestão do comum. O que estamos chamando de comum? Tomemos, então, o conceito de "multidão" de Negri e Hardt (2005). Segundo os autores, o conceito de multidão se distingue tanto do de povo quanto do de massa. O povo preservaria um caráter identitário e unitário do governo. Uma certa tradição da filosofia política define que somente o que é uno pode governar, seja o monarca, o partido, o povo ou indivíduos. Para essa corrente filosófica, sujeitos sociais que não são unificados, mas múltiplos, não podem governar, devendo pelo contrário ser governados. A multidão, ao contrário, é uma multiplicidade composta por diferenças singulares que encontram na gestão do comum um novo modo de governo. A RD indicou uma forma de governo da multiplicidade, lutando pela manutenção da heterogeneidade que se encontra numa multidão e ao mesmo tempo pela consolidação de um compromisso comum, sem 77

reduzir o usuário de drogas a formas identitárias como o doente ou criminoso. Através das associações, os usuários de drogas foram incluídos numa gestão comum organizada em rede. Segundo Negri e Hardt (2005), a mobilização do comum segue dois aspectos: um aumento intensivo das forças democráticas na esfera local e um aumento extensivo das lutas, quando passam a se comunicar com outras lutas, constituindo uma organização em rede. O modo como o movimento da RD foi se organizando permitiu que singularidades locais fossem inseridas numa rede de interação nacional e internacional. Podemos dizer que as associações de redução de danos são como nós de uma rede que consolidou um movimento social de grupos minoritários, dando passagem para uma gestão do comum baseada na diferença, articulando com outros movimentos sociais: luta antiproibicionista, luta dos portadores de HIV, luta dos gays, travestis e profissionais do sexo e luta antimanicomial. A RD se coloca como uma luta que comunica e, sobretudo, cria uma plano de comunicação entre lutas. Nesse modo de organização, o movimento de RD propôs e construiu uma gestão do comum exercida por uma multiplicidade, não reduzindo as singularidades a um governo unitário: uma gestão de grupos que lutam pela expressão das diferenças, constituindo redes de mobilização e comunicação. O comum é este plano de comunicação entre lutas fazendo da gestão do comum o acordo que se tece entre os que estão em luta. Pensar a dimensão pública das políticas de drogas como gestão do comum é afirmar a um só tempo que a prática democrática no campo da saúde é a condução comunitária da gestão e também a gestão que se faz do que nos é comum, isto é, o comum como agente da gestão e o comum como objeto da gestão; o comum que gere e é gerido a um só tempo. O método da cogestão e o cuidado de si A mobilização em rede introduziu os usuários de drogas em diversos dispositivos de gestão, nos quais era possível compartilhar interesses singulares e construir diretrizes comuns. A gestão do comum é um modo de operar com os efeitos gerados pela mobilização, é um método de cogestão realizado em Espaços Coletivos (Campos, 2000, p. 42). Como exemplo, nas associações de RD os usuários de drogas podem colaborar na produção de projetos, 78

construir projetos, estabelecer contratos, votar e se candidatar para a direção das instituições em que participam. Observa-se na experiência de gestão da RD que muitos usuários de drogas abandonam ou diminuem o uso de drogas quando experimentam um contexto no qual se sentem acolhidos. Além disso, o uso abusivo pode comprometer a execução de compromissos assumidos coletivamente: seja o trabalho de campo, acessar outros usuários de drogas em situações de vulnerabilidade, participar de uma reunião nos conselhos municipais ou nas assembleias da associação de que faça parte. A mobilização introduziu os usuários de drogas em redes locais de gestão comum, nas quais o consumo de drogas é constantemente ressignificado por acordos coletivos. Podemos observar, a partir da RD, uma construção coletiva e comum para as experiências com as drogas, indicando uma inseparabilidade entre atenção e gestão. Mediante esse modo de organização, além de participarem na gestão das políticas, muitas pessoas cessaram ou diminuíram o uso de drogas: das pessoas que usavam drogas abusivamente, 70% dos que se tornaram redutores de danos deixaram de ser dependentes químicos (Lancetti, 2006). A RD evidenciou que o governo de uma associação, por exemplo, e o governo de si são instâncias que se distinguem, porém não se separam. Segundo Campos, o método da cogestão realizado em Espaços Coletivos nos permite pensar uma coprodução de coletivos e de sujeitos autônomos. "Espaços existenciais contíguos, interagindo uns sob os outros, criando zonas autônomas, mescladas e de mútua influência, a que os Sujeitos estariam constrangidos a desvendar e a lidar para seguir vivendo" (Campos, 2000, p. 68). A gestão comum, ou cogestão, produz uma inseparabilidade entre coprodução de coletivos e coprodução de sujeitos autônomos, o que nos traz uma importante indicação para analisarmos a inseparabilidade entre governo comum e governo de si enquanto prática ou cuidado de si. A criação de uma rede coletiva e participativa produziu efeitos clínicos altamente significativos. Chama a atenção, nesse caso, que a RD não impôs aos usuários, como condição de participação coletiva, parar de usar drogas. No entanto, cabe ressaltar que o método da RD propõe certas regras de conduta que devem ser pactuadas coletivamente. Enquanto a abstinência está articulada com uma proposta de remissão do sintoma e a cura do doente, a proposta de reduzir danos possui como direção a produção de saúde, considerada como produção de regras autônomas de cuidado de si. No caso da RD, a própria 79

abstinência pode ser uma meta a ser alcançada, porém mesmo nesses casos trata-se de uma meta pactuada, e não de uma regra imposta por uma instituição. As regras da RD, mesmo a abstinência, são imanentes à própria experiência e não se exercem de forma coercitiva, enquanto regras transcendentais. A corresponsabilidade emerge como efeito da coprodução de saúde, uma vez que as regras de conduta são criadas na situação de um encontro e a partir dos vínculos que esse encontro é capaz de instaurar. Muitas vezes, os redutores de danos propõem determinadas regras de conduta como, por exemplo, substituir crack por maconha, ou substituir a via injetável pela inalável. Entretanto, o processo de corresponsabilização depende do modo como os usuários de drogas se apropriam dessa regra, depende das atitudes que começam a emergir desse encontro, gerando muitos desdobramentos possíveis, pois são muitos os dispositivos que a RD dispõe para dar continuidade a esse processo. O protagonismo dos usuários pode caminhar de uma dimensão mais individual para uma dimensão mais coletiva, passando de um cuidado de si para um cuidado do outro, dependendo dos dispositivos que os usuários de drogas passam a integrar. Esses podem ser colaboradores no território, podem fazer parte da gestão das associações, podem ser redutores de danos, ou podem simplesmente cuidar de si. É preciso entender como a criação de redes de cooperação altera a relação com as drogas à medida que delimita um território existencial para os usuários de drogas. O método empírico de cuidado se apresenta como um pragmatismo clínico já que refuta uma moral aplicada de forma homogênea a todos os sujeitos, como, por exemplo, a ideia transcendental de cura. O usuário de drogas deixa de ser considerado um doente a ser curado, e os encaminhamentos passam a ser múltiplos: parar de usar? Diminuir o uso? Substituir cocaína injetável por maconha? Usar somente nos finais de semana? Não podemos esquecer, e certamente isto é o mais essencial, que a RD é um método construído pelos próprios usuários de drogas e que restitui, na contemporaneidade, um cuidado de si subversivo às regras de conduta coercitivas. Os usuários de drogas são corresponsáveis pela produção de saúde à medida que tomam para si a tarefa de cuidado. Reduzir danos é, portanto, ampliar as ofertas de cuidado dentro de um cenário democrático e participativo.

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A RD se torna uma estratégia ampliada de clínica que tem ofertas concretas de acolhimento e cuidado para pessoas que usam drogas, dentro de arranjos de cogestão do cuidado, tendo como um dos principais desafios a construção de redes de produção de saúde que incluam os serviços de atenção do próprio Sistema Único de Saúde, Emergências Hospitalares e internações breves, Postos de Saúde, Estratégias de Saúde da Família, Caps-ad. Paradoxos e desafios A partir de 2004, muitas associações tiveram suas ações paralisadas e algumas acabaram pela falta de financiamento. O movimento da RD mostrou uma certa fragilidade e dificuldade de se manter ativo frente às descontinuidades e instabilidades das políticas de financiamento do PN – DST/AIDS (Ministério da Saúde, 2003b). Apesar de as associações terem ativado importantes ações na consolidação desse movimento, a estreita relação com as políticas estatais eram marcadas por processos de terceirização e precarização do trabalho em saúde. Eis aí um jogo paradoxal diante do qual se encontra o movimento da RD. Esses acontecimentos representaram uma fragmentação da rede de redução de danos. Porém, o fim dos financiamentos a associações de RD foi antecedido por um importante acontecimento institucional para a RD: a Política do Ministério da Saúde para Usuário de Álcool e Outras Drogas, criada em 2003 (Ministério da Saúde, 2003a). Nesse momento, a RD passou por um grande rearranjo, migrando do campo exclusivo das políticas de DST/AIDS e se tornando uma importante diretriz na constituição dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (Caps-AD). Apesar dos incentivos criados pela Coordenação Nacional de Saúde Mental para implementação de ações de RD em Caps-AD, não houve uma adesão significativa que permitisse uma nova institucionalidade para a Redução de Danos. Esses impasses político-institucionais colocam desafios para a continuidade desse movimento, que vem ao longo doa anos ganhando novos contornos e novas direções. Quais direções o movimento de RD vai criar diante desses desafios? Que redes se constituirão? Devemos manter essas perguntas vivas ativando e acompanhando o devir do movimento da RD. Texto de: Eduardo Henrique Passos e Tadeu Paula Souza

81

8.

História da Assistência à Saúde Mental no Brasil: da Reforma

Psiquiátrica à Construção dos Mecanismos de Atenção Psicossocial

O conceito de loucura é uma construção histórica, antes do século XIX não havia o conceito de doença mental nem uma divisão entre razão e loucura. O trajeto histórico do Renascimento até a atualidade tem o sentido da progressiva separação e exclusão da loucura do seio das experiências sociais (FERNANDES e MOURA, 2009). A população que sofre de algum transtorno mental é reconhecida como uma das mais excluídas socialmente. Essas pessoas apresentam redes sociais menores do que a média das outras pessoas. Para Fernandes e Moura (2009) a segregação não é apenas fisicamente, permeia o corpo social numa espécie de barreira invisível que impede a quebra de velhos paradigmas. Vários estudos demonstram que a pessoa que sofre de transtorno mental severo e persistente, quando inserido em redes fortes de troca e suporte apresentam maior probabilidade de êxitos positivos no tratamento (MANGUIA e MURAMOTO, 2007). Este trabalho faz um resgate histórico das políticas em saúde mental no Brasil, mostra as mudanças na regulamentação e nas formas de atendimento, que trazem novas possibilidades de atendimento da loucura, priorizando o atendimento psicossocial em meio comunitário, tirando o privilegio dos manicômios e hospitais psiquiátricos como únicas formas de tratamento. São enfatizadas também as dificuldades enfrentadas na consolidação dessas políticas e as novas formas de cuidado ofertados ao portador de transtorno mental. A rede de atenção à saúde mental brasileira é parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), rede organizada de ações e serviços públicos de saúde, instituído no Brasil pelas Leis Federais 8080/1990 e 8142/90. Leis, Portarias e Resoluções do Ministério da Saúde priorizam o atendimento ao portador de transtorno mental em sistema comunitário. Nos anos 70 dá-se início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, um processo contemporâneo ao “movimento sanitário”, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, equidade na oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado (BRASIL, 2005). 82

O ano de 1978 marca o início efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano. É sobretudo este Movimento que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005). Em março de 1986 foi inaugurado o primeiro CAPS do Brasil, na cidade de São Paulo: Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cergueira, conhecido como CAPS da Rua Itapeva (BRASIL, 2004). Em 1987 aconteceu em Bauru, SP o II Congresso Nacional do MTSM que adotou o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro (BRASIL, 2005). Em 1989 a Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) deu início há um processo de intervenção em um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Anchieta, local de maus-tratos e mortes de pacientes. É esta intervenção, com repercussão nacional, que demonstrou a possibilidade de construção de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquiátrico. Neste período no município de Santos são implantados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) que funcionavam 24 horas; são criadas cooperativas; residências para os egressos do hospital e associações (BRASIL, 2005). A regulamentação da atenção psicossocial em saúde mental no Brasil No ano de 1989, dá entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde

83

mental. A partir deste período a política do Ministério da Saúde para a saúde mental começa a ganhar contornos mais definidos (BRASIL, 2005). Na década de 90 é realizada a II Conferência Nacional de Saúde Mental e passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços

de

atenção

diária,

fundadas

nas

experiências

dos

primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2005). Os NAPS/CAPS foram criados oficialmente a partir da Portaria GM 224/92 que regulamentou o funcionamento de todos os serviços de saúde mental em acordo com as diretrizes de descentralização e hierarquização das Leis Orgânicas do Sistema Único de Saúde. Essa Portaria define os NAPS/CAPS comounidades de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar; podem constituir-se também em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas à saúde mental e atendem também a pacientes referenciados de outros serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar. A Portaria GM 224/92 proíbe a existência de espaços restritivos e exige que seja resguardada a inviolabilidade da correspondência dos pacientes internados e feito o registro adequado dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos efetuados nos pacientes. As novas normatizações do Ministério da Saúde de 1992, embora regulamentassem os novos serviços de atenção diária, não instituíam uma linha específica de financiamento para os CAPS e NAPS;

e

as

normas

para

fiscalização

e

classificação

dos hospitais

psiquiátricos não previam mecanismos sistemáticos para a redução de leitos. O processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos e de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação ganha impulso em 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde, que instituem mecanismos para a redução de leitos psiquiátricos a partir dos macro-hospitais (BRASIL, 2005). A Portaria/GM nº 106 de 11 de fevereiro de 2000 institui os Serviços Residenciais Terapêuticos definidos

como moradias

ou

casas

inseridas,

preferencialmente,

na

comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de 84

internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares e, que viabilizem sua inserção social. A Portaria 106 propõe as Residências Terapêuticas como uma modalidade assistencial substitutiva da internação psiquiátrica prolongada, sendo que a cada transferência de paciente do Hospital Especializado para o Serviço de Residência Terapêutica será reduzido ou descredenciado do SUS, igual n.º de leitos naquele hospital. É somente no ano de 2001 que a Lei Paulo Delgado (Lei 10.216) é sancionada no país. A aprovação, no entanto, é de um substitutivo do Projeto de Lei original, que traz modificações importantes no texto normativo. A Lei Federal 10.216 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Ao final do ano de 2001, em Brasília, é convocada logo após a promulgação da lei 10.216 a III Conferência Nacional de Saúde Mental, dispositivo fundamental de participação e de controle social. A promulgação da lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. É no contexto da promulgação da lei 10.216 e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, que a política de saúde mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e visibilidade. Linhas específicas de financiamento são criadas pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para a fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país (BRASIL, 2005). No Relatório Final da III Conferência é inequívoco o consenso em torno das propostas da Reforma Psiquiátrica, e são pactuados os princípios, diretrizes e estratégias para a mudança da atenção em saúde mental no Brasil. Desta forma, esse evento consolida a Reforma Psiquiátrica como política de governo, confere aos CAPS o valor estratégico para a mudança do modelo de assistência, defende a construção de uma política de saúde mental para os 85

usuários de álcool e outras drogas, e estabelece o controle social como a garantia do avanço da Reforma Psiquiátrica no país. A Portaria/GM 336 de 19 de fevereiro de 2002 estabeleceu as modalidades dos Centros de Atenção Psicossocial como CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS AD E CAPSi, definindo-os por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional. A Portaria/GM nº 251 de 31 de janeiro de 2002 estabelece diretrizes e normas para a assistência hospitalar em psiquiatria, reclassifica os hospitais psiquiátricos, define e estrutura a porta de entrada para as internações psiquiátricas na rede do SUS. Estabelece ainda que os hospitais psiquiátricos integrantes do SUS deverão ser avaliados por meio do PNASH – Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria. A Lei Nº 10.708 de 31 de Julho de 2003 institui o auxílio-reabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social, fora de unidade hospitalar, de pacientes acometidos de transtornos mentais, internados em hospitais ou unidades psiquiátricas. O auxílio é parte integrante de um programa de ressocialização de pacientes internados em hospitais ou unidades psiquiátricas, denominado "De Volta Para Casa", sob coordenação do Ministério da Saúde. A Portaria nº 52, de 20 de janeiro de 2004 institui o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS – 2004. Propõe que o processo de mudança do modelo assistencial deve ser conduzido de modo a garantir uma transição segura, onde a redução dos leitos hospitalares possa ser planificada e acompanhada da construção concomitante de alternativas de atenção no modelo comunitário. O

Programa

Nacional

de

Avaliação

do

Sistema

Hospitalar/Psiquiatria

(PNASH/Psiquiatria); o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH); a instituição do Programa de Volta para Casa e a expansão de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial e as Residências Terapêuticas, permitiram a redução de leitos psiquiátricos no país e o fechamento de vários hospitais psiquiátricos. Em 2004 foi realizado em São Paulo o primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS (BRASIL, 2005). Em fevereiro de 2005 a Portaria nº 245 destina incentivo financeiro para implantação de 86

Centros de Atenção Psicossocial e a Portaria nº 246 destina incentivo financeiro para implantação de Serviços Residenciais Terapêuticos. A Portaria nº 1.876 de 14 de Agosto de 2006 instituiu Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio, a serem implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. E a Lei 11343 de 23 de agosto de 2006 institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. O papel estratégico dos CAPS na atenção a saúde mental no Brasil Os Centros de Atenção Psicossocial dentro da atual política de saúde mental do Ministério da Saúde são considerados dispositivos estratégicos para a organização da rede de atenção em saúde mental. Com a criação desses centros, possibilita-se a organização de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país. Esses dispositivos foram criados para organizar a rede municipal de atenção a pessoas com transtornos mentais severos e persistentes (BRASIL, 2007). Os CAPS são serviços de saúde municipais, abertos, comunitários que oferecem atendimento diário. Eles devem ser territorializados, devem estar circunscritos no espaço de convívio social (família, escola, trabalho, igreja, etc.) daqueles usuários que os frequentam. Deve ser um serviço que resgate as potencialidades dos recursos comunitários à sua volta, pois todos estes recursos devem ser incluídos nos cuidados em saúde mental. A reinserção social pode se estruturar a partir do CAPS, mas sempre em direção à comunidade. Seu objetivo é oferecer atendimento à população, realizar o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. O CAPS, assumindo um papel estratégico na organização da rede comunitária de cuidados, farão o direcionamento local das políticas e programas de Saúde Mental desenvolvendo projetos terapêuticos e comunitários, dispensando medicamentos e acompanhando usuários que moram em residências terapêuticas, assessorando e sendo 87

retaguarda para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e para a Estratégia Saúde da Família (ESF) no cuidado familiar (BRASIL, 2004). As práticas realizadas nos CAPS se caracterizam por ocorrerem em ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Os projetos desses serviços, muitas vezes, ultrapassam a própria estrutura física, em busca da rede de suporte social, potencializadora de suas ações, preocupando-se com o sujeito e sua singularidade, sua história, sua cultura e sua vida quotidiana (BRASIL, 2004). Todo o trabalho desenvolvido no CAPS deverá ser realizado em um “meio terapêutico”, isto é, tanto as sessões individuais ou grupais como a convivência no serviço têm finalidade terapêutica. Isso é obtido através da construção permanente de um ambiente facilitador, estruturado e acolhedor, abrangendo várias modalidades de tratamento. Ao iniciar o acompanhamento no CAPS se traça um projeto terapêutico com o usuário e, em geral, o profissional que o acolheu no serviço passará a ser uma referência para ele (Terapeuta de Referência - TR) (BRASIL, 2004). Cada usuário de CAPS deve ter um projeto terapêutico individual. Caracterizado como um conjunto de atendimentos que respeite a sua particularidade, que personalize o atendimento de cada pessoa na unidade e fora dela e proponha atividades durante a permanência diária no serviço, segundo suas necessidades, potencialidades e limitações. A depender do projeto terapêutico do usuário do serviço, o CAPS poderá oferecer, conforme as determinações da Portaria GM 336/02: atendimento Intensivo; atendimento Semi-Intensivo e atendimento Não-Intensivo. O processo de construção dos serviços de atenção psicossocial tem revelado outras realidades: as teorias e os modelos prontos de atendimento vão se tornando insuficientes frente às demandas das relações diárias com o sofrimento e a singularidade desse tipo de atenção. É preciso criar, observar, escutar, estar atento à complexidade da vida das pessoas, que é maior que a doença ou o transtorno. Para tanto, é necessário que, ao definir atividades, como estratégias terapêuticas nos CAPS, se repensem os conceitos, as práticas e as relações que podem promover saúde entre as pessoas: técnicos, usuários, familiares e comunidade. Todos precisam estar envolvidos nessa estratégia, questionando e avaliando permanentemente os rumos da clínica e do serviço (BRASIL, 2004). 88

Quando uma pessoa é atendida em um CAPS, ela tem acesso a vários recursos terapêuticos: atendimento individual; atendimento em grupo; atendimento para a família; atividades comunitárias; Assembléias ou Reuniões de Organização do Serviço. Dessa forma, o CAPS pode articular cuidado clínico e programas de reabilitação psicossocial. Os projetos terapêuticos devem incluir a construção de trabalhos de inserção social, respeitando as possibilidades individuais e os princípios de cidadania que minimizem o estigma e promovam o protagonismo de cada usuário frente à sua vida. Todas as ações e atividades realizadas no CAPS devem se estruturar de forma a promover as melhores oportunidades de trocas afetivas, simbólicas, materiais, capazes de favorecer vínculos e interação humana (BRASIL, 2004). O Conselho Federal de Psicologia (CFP) por meio do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) em relatório sobre a atuação dos psicólogos nos Centros de Atenção Psicossocial fala sobre as principais dificuldades enfrentadas no trabalho nos CAPS. Dentre os principais problemas apontados pela pesquisa estão: a ausência de políticas locais (estaduais e municipais) e de investimentos nos CAPS e nos equipamentos de saúde mental; dificuldades na articulação com o Ministério da Saúde; em algumas regiões os municípios ainda estão com muitas dificuldades em implantar e administrar os Centros; a falta de recursos; a permanência de um modelo de atenção centrado na figura do médico; resistência por parte de alguns psiquiatras, que se posicionam como contrários ao movimento da Reforma Psiquiátrica por medo de perder espaço; a dificuldade de realizar atividades extramuros. Em todos os relatos da pesquisa a questão da desarticulação ou mesmo inexistência de uma rede ampliada de atenção aos usuários dos CAPS foi apontada como uma das grandes dificuldades do trabalho neste contexto. Enfrenta-se a falta de integração entre os serviços existentes; dificuldades na atribuição das competências e atribuições de cada unidade de saúde; ausência de uma rede articulada (uma estratégia utilizada para o encaminhamento é o uso das relações entre os profissionais das diferentes instituições). Para o CFP (2009) os relatos indicam que o CAPS é referência para outros serviços, porém há muita dificuldade de que estes serviços funcionem como referência para os CAPS. 89

A ausência de uma rede de serviços de atenção a saúde mental da criança foi apontada como uma das dificuldades do trabalho em CAPS infantil. Problemas também foram relatadas especificamente no atendimento a usuários de álcool e drogas, como por exemplo a falta de uma rede de suporte para internação dos casos que necessitam de internação para desintoxicação em hospital geral (CFP, 2009). Em alguns CAPS falta estrutura física adequada, recursos materiais, recursos humanos. A falta de acessibilidade nos locais onde estão alguns CAPS, dificulta a locomoção de pessoas portadoras de algum tipo de necessidade especial. Além disso, há locais que não são adequados para garantir a qualidade dos atendimentos (CFP, 2009). A não adesão ao tratamento e às atividades oferecidas pelo serviço aparece como um desafio que necessita ser superado. Existem ainda as dificuldades relativas aos familiares e à sociedade. É preciso orientar constantemente as famílias para que essas possam auxiliar na continuidade do tratamento. Há ainda a questão do estigma associado aos transtornos mentais e aos preconceitos que circulam na sociedade relacionados aos portadores de problemas de saúde. A cultura “hospitalocêntrica” também é muito forte e se torna um desafio para os profissionais que atuam em CAPS. Segundo Prazeres e Miranda (2005) (apud Moura e Fernandes) os profissionais da saúde presentes nos serviços substitutivos ainda carregariam consigo os mesmos paradigmas das instituições psiquiátricas. Esse fato, segundo os autores, se expressaria em parte através das dificuldades apresentadas em referenciar os usuários para o serviço substitutivo demonstrando a possibilidade de um desejo de permanência por parte do hospital psiquiátrico na posição de poder historicamente construída. Os principais obstáculos verificados nessa passagem incluem de acordo com Jervis (2001, p. 266 apudMoura e Fernandes, 2009) dificuldades para superação do paternalismo, o recuperado tem dificuldades para encontrar emprego e geralmente há a volta para a mesma dinâmica familiar e social que o levou ao manicômio. As novas políticas em saúde mental devem objetivar bem mais que o fechamento dos manicômios. Devem buscar visualizar e romper com as barreiras impostas pela própria sociedade. O doente mental, entretanto, enquanto inserido socialmente perderia suas características incompreensíveis à maioria da população na proporção em que sua própria enfermidade fosse 90

parte de um contexto onde seriam respeitadas sua existência e suas razões (Moura e Fernandes, 2009). Para Alverga e Dimenstein (2006, p. 4) é preciso pensar na reforma psiquiátrica como um movimento social mais amplo, processo de desinstitucionalização do social “onde é preciso produzir um olhar que abandona o modo de ver próprio da razão, abrir uma via de acesso à escuta qualificada da desrazão”. A reforma deve buscar, antes de tudo, uma emancipação pessoal, social e cultural, que permita o não-enclausuramento de tantas formas de existência banidas do convívio social e “que permita um olhar mais complexo que o generalizante olhar do igualitarismo” de forma a buscar o convívio livre e tolerante com a diferença. Alverga e Dimenstein (2006) alertam que os primeiros passos para uma real reforma psiquiátrica implicam um imprescindível abandono do lugar de especialista ocupado por vários dos atores sociais envolvidos com a reforma. Este percurso requer atenção especial para as pequenas amarras responsáveis pela reprodução de valores, preconceitos, atrelados às idéias de controle, fixidez, identidade, normatização, subjugação. O portador de transtorno mental apresenta formas anticonvencionais de fazer-estar no mundo, sendo parte de uma minoria. A declaração universal dos direitos humanos prevê a ampla e irrestrita aplicação de seus princípios, entretanto, existe ainda a necessidade da implantação de leis que assegurem direitos universais aos ditos loucos. Requer-se antes de tudo um abandono do lugar de especialista ocupado por vários dos atores sociais envolvidos com a reforma. Este percurso exige atenção especial para as pequenas amarras responsáveis pela reprodução de valores, preconceitos, atrelados às idéias de controle, fixidez, identidade, normatização, subjugação. E a real mudança de postura se faz necessária para evitar a simples transposição de atitudes profissionais ligadas ao modelo hospitalar para o modelo de atenção primária. É preciso entender o processo histórico que invalidou a loucura como manifestação subjetiva humana. Deve-se caminhar no sentido de compreender a mesma como uma forma de subjetividade válida, onde o maior desafio da reforma é sua despatologização. O processo

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de mudança de papéis se dá de forma lenta e gradual, mas os movimentos para tantos já foram iniciados. Considerações finais A Reforma Psiquiátrica é um processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos. A Reforma avançou marcada por impasses, tensões, conflitos e desafios. O período atual caracteriza-se assim por dois movimentos simultâneos: a construção de uma rede de atenção à saúde mental substitutiva ao modelo centrado na internação hospitalar, por um lado, e a fiscalização e redução progressiva e programada dos leitos psiquiátricos existentes, por outro. É neste período que a Reforma Psiquiátrica se consolida como política oficial do governo federal (BRASIL, 2005). Os NAPS/CAPS foram criados oficialmente pela Portaria GM 224/92. Atualmente os CAPS e outros tipos de serviços substitutivos que têm surgido no país são regulamentados pela Portaria nº 336/GM, de 19 de fevereiro de 2002 e integram a rede do Sistema Único de Saúde. O Ministério da Saúde trabalha desde 2003 com oPrograma de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no Sistema Único de Saúde (SUS), que propõe várias alternativas ao modelo de institucionalização dos tratamentos de saúde mental. Os CAPS devem assumir seu papel estratégico na articulação e tecimento das redes de cuidado em saúde mental tanto cumprindo suas funções na assistência direta e na regulação da rede de serviços de saúde, trabalhando em conjunto com as equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários de Saúde, quanto na promoção da vida comunitária e da autonomia dos usuários articulando os recursos existentes em outras redes. Na construção da rede de apoio deve-se articular todos os recursos afetivos, sanitários, sociais, econômicos, culturais, religiosos e de lazer. Apesar das dificuldades os CAPS estão conseguindo interromper os ciclos de múltiplas internações. Pretendem reverter a tendência autoritária das instituições de saúde ao estimular o questionamento dos papéis esteriotipados das equipes de saúde e na construção do trabalho baseado em equipes multidisciplinares, sem hierarquia rígida.

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Existe ainda um longo caminho a ser percorrido, mas os primeiros passos já estão sendo dados com a construção da nova política e dos novos serviços em saúde mental. Texto de: Joviane A. Moura

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O Menino que Carregava Água na

Com o tempo descobriu que

Peneira

escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.

Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.

No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.

A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

O menino aprendeu a usar as palavras. Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. E começou a fazer peraltagens.

A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água. O mesmo que criar peixes no bolso.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela. O menino fazia prodígios.

O menino era ligado em despropósitos.

Até fez uma pedra dar flor.

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos. A mãe reparava o menino com ternura. A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta! A mãe reparou que o menino

Você vai carregar água na peneira à vida

gostava mais do vazio, do que do cheio.

toda.

Falava que vazios são maiores e até infinitos. Você vai encher os vazios com as suas peraltagens, Com o tempo aquele menino

e algumas pessoas vão te amar por seus

que era cismado e esquisito,

despropósitos!

porque gostava de carregar água na

Manuel de Barros

peneira.

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