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A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE ÍNDIOS KAINGANG EM SANTA MARIA/RS KAINGANG INDIAN SCHOOL EDUCATION IN SANTA MARIA / RS Andressa de Rodrigues Flores Graduada em ...
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A EDUCAÇÃO ESCOLAR DE ÍNDIOS KAINGANG EM SANTA MARIA/RS KAINGANG INDIAN SCHOOL EDUCATION IN SANTA MARIA / RS Andressa de Rodrigues Flores Graduada em História/UNIFRA [email protected]

RESUMO O presente trabalho tem como objetivo colaborar para o debate sobre a educação de povos originários, identificando assim, fragmentações e possibilidades para a construção de uma escola indígena ideal do ponto de vista indigenista. A metodologia consiste em, primeiramente, fazer uma breve contextualização dos índios kaingang no Brasil. Em seguida, busca-se analisar a Constituição Brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação e o Estatuto do índio, bem como resoluções na lei, a fim de formular parâmetros que dessem respaldo para a consolidação de uma escola indígena ideal que contemplasse os povos em questão. Busca-se, também, fazer um paralelo entre a constituição vigente e as ideias e contribuições de importantes educadores, como: Paulo Freire, Moacir Gadotti, José Carlos Libâneo e Demerval Saviani. No caso das cultras distintas, usca-se respaldo teórico nos estudos e publicações de Roque Laraia e Luciano Gersem. Nesse sentido, optou-se também por um levantamento bibliográfico acerca de outras escolas indígenas e seu funcionamento. Por meio de entrevista oral, foram elaboradas duas entrevistas com professores vinculados a escola investigada. Questionou-se como educadores índios e não índios observam o modelo de aprendizagem vigente, bem como êxitos e fragilidades da educação escolar na aldeia em que eles estão inseridos. Desse modo tal metodologia, permitiu constatar possibilidades para a existência de uma escola indígena autônoma e diferenciada. Palavras-chave: Autonomia. Educação Indígena. kaingang.

ABSTRACT This work aims to contribute to the debate on the education of indigenous peoples, identifying thus fragmentations and possibilities for the construction of an ideal Indian school of indigenous point of view. The methodology consists of, first, make a brief background of the Kaingang Indians in Brazil. Then seeks to analyze the Brazilian Constitution, the Law of Guidelines and Bases of Education and the Statute of the Indian as well as resolutions in the law in order to formulate parameters that give support to the consolidation of an ideal Indian school contemplating the people concerned. Search is also making a parallel between the current Constitution and the ideas and educators important contributions, such as Paulo Freire, Moacir Gadotti, José Carlos Libâneo and Demerval Saviani. In the case of distinct cultras if usca-theoretical support in studies and Roque Laraia publications and Luciano Gersem. In this sense, it was decided also by a literature about other indigenous schools and functioning. Through oral interview they were prepared two interviews with teachers linked to school investigated. It was questioned as educators Indians and non-Indians observe the current learning model as well as successes and weaknesses of education in the village in which they are inserted. As such, this methodology allowed to establish possibilities for the existence of an autonomous and differentiated indigenous school. Keywords: Autonomy. Indigenous education. Kaingang.

Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.102-115. .

103 Introdução Este artigo é uma síntese de dois capítulos do meu trabalho final de graduação do curso de licenciatura em história do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Este trabalho justifica-se pela necessidade de um olhar além das contribuições materiais e imateriais que estes povos originários nos deixaram, de valorizar as suas tradições para que permaneçam vivas com o passar dos tempos. Justifica-se também pela necessidade de expandir o conhecimento dos diversos ambientes onde se desenvolve a educação básica. No desenvolvimento desta pesquisa procurou-se observar como ocorre o processo educacional de índios kaingang na cidade de Santa Maria-RS. Analisar como os educadores índios e não índios enxergam o processo educacional, bem como os êxitos e as fragilidades existentes na respectiva aldeia. Desse modo, busca-se por meio desta pesquisa, colaborar para o debate acerca da educação de povos originários, identificando possíveis fragmentações e possibilidades para a construção de uma escola indígena ideal. Sendo assim, para o desenvolvimento das reflexões acerca da temática escolhida, o presente trabalho dar-se-á em três partes. A primeira parte discorre acerca do povo kaingang e da situação deles atualmente em Santa Maria - RS. Em um segundo momento abarcou-se um paralelo estabelecido entre educação indígena e a constituição brasileira, abordando leis e decretos relacionados a esta temática, relacionando a teoria e a prática. A terceira repartição é sobre a entrevista oral com os professores selecionados. Desse modo, utilizou-se da história oral por acreditar que esta possibilita resgatar informações valiosas que possam passar despercebidas, “a história oral se mostra como fator significativo e meio de manter a experiência passada viva” (MEIHY, 2005, p.25). As colocações dos entrevistados estão seccionadas de acordo com o tema abordado. Ao transcrever as entrevistas, percebeu-se a importância da opinião de quem vive a realidade do contexto indígena, “a história tradicional oferece uma visão vista de cima” (BURKE, 1992, p.12), ou seja, uma história com destaques a grandes homens e líderes religiosos e militares. Por outro lado, segundo Peter Burke (2012), “o movimento da história vista de baixo também reflete uma nova determinação para considerar mais seriamente as opiniões das pessoas comuns sobre seu próprio passado”. A metodologia para o desenvolvimento deste trabalho conta, primeiramente, com uma pesquisa bibliográfica acerca da cultura kaingang e de sua história, pois se trata de uma pesquisa de cunho hipotético e indutivo. Posteriormente, realizou-se uma breve análise das Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.102-115. .

104 leis que regem o sistema educacional no Brasil, principalmente as que são específicas para a educação indígena. Realiza-se também a técnica da história oral em duas entrevistas com professores da Escola Augusto Ope, sendo um deles indígena, professor Juvino Salles1, e outro não indígena, professor Eder Mattos2. No que tange ao estudo de um núcleo em específico, utiliza-se nesta pesquisa a redução da escala de observação para fins de experimentação. Trata-se da micro-história italiana que, segundo Giovani Levi (1992), “é essencialmente baseada na redução da escala de observação, em uma análise microscópica e em um estudo intensivo do material documental. Cabe destacar que esta redução da escala de observação não se refere à história local ou demográfica. Constata-se também a possibilidade de, por meio da observação de pequenas escalas, investigar vias que podem vir a contribuir para uma análise histórica mais profunda, como questionar o ponto de vista dos indígenas acerca da história do seu povo na cidade de Santa Maria. Diante das abordagens sobre a histórica do povo kaingang, da sua situação atual na cidade de Santa Maria e do paralelo entre a teoria e prática das leis em vigor e das entrevistas realizadas com professores, é possível analisar algumas fragilidades do sistema educacional da Escola Augusto Ope. Além disso, procurou-se levantar algumas possibilidades para a formação de uma escola indígena que busque o desenvolvimento pleno do educando de acordo com sua cultura.

1.

Os kaingang em Santa Maria/RS: Aldeia Três Soitas A etnia kaingang é uma das mais populosas do território brasileiro. Em Santa Maria –

RS, eles vivem próximo à rodoviária da cidade, na Rua Pedro Santini, Bairro Nossa Senhora de Lourdes. Estes povos passaram mais de dez anos acampados no local onde hoje se constitui a Aldeia Três Soitas. Antes de receber a posse do local, os indígenas tiveram muitas dificuldades, pois viviam em barracas com estruturas precárias. No ano de 2011, esta situação teve um importante desfecho, pois, a partir de uma decisão judicial em primeira instância, foi estabelecida a posse oficial do terreno. Dessa forma, com o auxilio do Grupo de Apoio dos Povos Originário (GAPIN)3 e com o aporte de 1

Acadêmico do curso de Pedagogia/UFSM. Professor bilíngue e de Educação Infantil na Escola Augusto Ope na Aldeia Três Soitas em Santa Maria – RS. 2 Ex-professor de história da Escola Augusto Ope na Aldeia Três Soitas em Santa Maria – RS. 3 O GAPIN é um importante movimento de militância a favor dos povos indígenas em Santa Maria – RS na luta por direitos e melhorias.

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105 materiais disponibilizados pela FUNAI, foram erguidas as residências para as famílias que ali habitavam, a fim de que pudessem viver de forma mais digna, uma vez que em baixo de lonas não obtinham saneamento básico. A aldeia Três Soitas conta com área verde para o cultivo da horta comunitária. A constante resistência e as lutas diárias dos kaingang servem para que permaneçam em busca de melhorias e em busca de direitos para a sua aldeia, a qual vive, atualmente, da venda de artesanatos confeccionados pelos seus membros. Após a posse oficial de o território ser deferida e as residências na aldeia serem construídas, a escola foi outra conquista da comunidade kaingang. Sabe-se que a educação no Brasil passa por constantes transformações, como por exemplo, o acesso ao ensino superior com a inserção por meio de cotas e a construção de uma base curricular comum para a educação básica. Assim, pode se dizer que a educação indígena, além de ser um direito fundamental para o desenvolvimento e fortalecimento da cultura, é hoje um instrumento de luta para os povos originários e, desse modo, também é identificado na aldeia Três Soitas a constante busca por melhorias no seu processo educacional, além dos grandes desafios a serem vencidos. A educação vai além de mediar o conhecimento ente os alunos, mas também é um desafio para o professor que, frequentemente, é mal remunerado e trabalha em condições que desfavorecem o aprendizado, como por exemplo, o processo educacional de uma aldeia indígena sob os moldes da cultura branca. Neste caso, tratando-se de uma cultura indígena em específico, vale ressaltar que a escola em questão está inserida em uma aldeia localizada em área urbana e que ainda está em processo de regulamentação. É necessário observar que, mesmo que a sua regulamentação esteja em tramitação, é preciso buscar alternativas para que os educandos possam estar inseridos em um processo de aprendizagem que seja condizente com a sua cultura e que fortaleça a mesma, e não a enfraqueça.

1.1

Escola Indígena Augusto Ope

A referida escola foi criada no ano de 2012 por meio de uma parceria entre a 8°CRE (8° Coordenadoria Regional de Educação) e a SEDUC (Secretária de Educação do Estado do Rio Grande do Sul) após a conquista da posse da área habitada via decisão judicial. A partir daí, foi construída na aldeia uma Escola Estadual que recebeu o nome de Augusto Ope da

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106 Silva. Em 2013, a escola passou por uma greve devida as suas condições precárias, como falta de professores bilíngues e materiais didáticos. A escola ainda funciona por decreto, pois sua regulamentação ainda está em tramitação. Atualmente, a Escola Augusto Ope é uma extensão do Colégio Estadual Tancredo Neves, localizado na zona oeste da cidade de Santa Maria. A luta por direitos tem se intensificado cada vez mais. Hoje, a Escola Augusto Ope da Silva conta com uma turma de EJA (Educação de Jovens e Adultos) de nível fundamental no turno da noite, com oito alunos matriculados. No turno da tarde, há uma turma regular de ensino fundamental composta por vinte e três alunos, já o ensino médio só é cursado em escola branca4. Além disso, há quatro alunos matriculados na Escola Estadual Irmão José Otão, localizada próximo à aldeia. No turno da manhã, há uma turma de educação infantil com oito alunos em aulas ministradas por professores bilíngues. Na educação infantil da escola em questão existe o empenho dos professores indígenas para que as crianças desenvolvam a coordenação motora, além da atenção especial a introdução de histórias da cultura kaingang para estas crianças. O corpo docente da escola é formado por seis professores brancos e três professores indígenas. Já a direção da escola fica sob responsabilidade da 8° coordenadoria regional de educação. O ensino para os kaingang se dá de diversas formas como, por exemplo, a educação infantil que está extremamente ligada aos princípios e as tradições dos povos kaingang. Os ensinamentos também se dão de modo coletivo, todos tem algo a ensinar. A educação não se dá única e exclusivamente dentro da instituição escolar, mas, também, junto aos pais no convívio familiar, na confecção do artesanato e, sobretudo, Com os membros mais velhos da aldeia. Na comunidade kaingang, a educação se dá desde o nascimento, com os ensinamentos a serem levados para a vida, a fim de que perpetuem sua cultura. Tenta-se preservar a liberdade dos alunos durante o processo de ensino-aprendizagem, não pressionando os educandos para que saiam da sala de aula sabendo responder tudo.

Utilizar-se-á a expressão “escola branca” para se referir a escolas não indígenas. Esta referencia é adotada pela comunidade para se referir ao ensino não indígena. 4

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107 2

Educação indígena e a constituição

Sabe-se que a constituição prevê que o ensino respeite a liberdade e a diversidade cultural, porém é necessário mais do que isso para que se tenha essa concretização. Há inúmeras terras indígenas em situação de vulnerabilidade em rodovias e locais urbanos, estas não possuem estrutura para a construção de espaços voltados à educação de índios, fazendo com que os educandos sejam matriculados em escolas que não dão suporte para a prática de sua cultura. A Constituição do Brasil (1988), concretizada com a LDB (1996) propõe que:

Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; VII - valorização do profissional da educação escolar; VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX - garantia de padrão de qualidade; X - valorização da experiência extra-escolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais. XII - consideração com a diversidade étnico-racial (BRASIL, 1996).

Desse modo, cabe ao Estado a responsabilidade de promover uma educação pública, obrigatória, gratuita e de qualidade para o cidadão brasileiro. Os princípios de liberdade e igualdade, bem como a valorização do profissional devem ser efetivados para que haja uma educação plena. Mesmo a escola tendo como base a gestão democrática, como propõe a constituição, ainda assim, ela possui pouca participação na própria organização curricular, que já vem pronta do Conselho Federal de Educação, condicionado pela LDB. No que diz respeito à educação e à cultura dos povos nativos, estava previsto no Estatuto do Índio (1973) Art. 50 que “a educação do índio será orientada para a integração na comunhão nacional mediante processo de gradativa compreensão dos problemas gerais e valores da sociedade nacional [...]”. Em 1991 com a portaria 559/91ficou estabelecido que:

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108 Art. 1º Fica atribuída ao Ministério da Educação a competência para coordenar ações referentes à educação indígena, em todos os níveis e modalidades de ensino, ouvida a FUNAI. Art. 2º As ações previstas no Art. 1º serão desenvolvidas pelas Secretarias de Educação dos Estados e Municípios em consonância com as Secretarias Nacionais de Educação do Ministério da Educação (BRASIL, 1991).

Desde 1967, a FUNAI era responsável pela educação escolar indígena, porém em 1991, após este decreto, a educação formal indígena passa a ser de responsabilidade do Ministério da Educação/MEC. Portanto, a educação indígena não tem mais caráter integracionista, mas sim, devem exercer o direito de serem reconhecidos e se organizarem culturalmente. Atualmente por lei é garantido aos povos indígenas uma educação pública e gratuita, com autonomia para planejar metodologias que fortaleçam sua cultura. O Decreto n° 6. 861 também garante que a escola pode ter “localização em terras habitadas por comunidades indígenas; ensino ministrado nas línguas maternas das comunidades atendidas e organização escolar própria” (BRASIL, 2009). Esta lei respalda o funcionamento da escola de acordo com a identidade de cada povo, ou seja, a organização do currículo bem como a metodologia a ser utilizada nas aulas deve ser planejada e consolidada por membros da comunidade, além de estar de acordo com os valores da cultura em questão. É necessária uma educação que respeite o patrimônio cultural das comunidades, patrimônio este que pode ser material e imaterial, formado por uma língua materna, com costumes diferenciados, conceitos de trabalho, propriedade, educação; tudo distinto da cultura branca. Sendo assim, destaca-se que o ensino da língua materna deve ser parte do currículo da escola, bem como todas as suas formas de representação. Quanto ao corpo docente de uma escola indígena, cabe destacar que o Art.9 do decreto n°6.861

afirma

que

“a

formação

dos

professores

indígenas

poderá

ser

feita

concomitantemente à sua escolarização, bem como à sua atuação como professores.” Sendo assim, é possível que a escola tenha professores índios que exerçam sua profissão sem ter a formação superior exigida, desde que o mesmo esteja em processo de formação. Para um ensino de qualidade, é importante que haja diferentes materiais e metodologias a serem utilizadas em sala de aula. Os materiais didáticos são de grande importância para ministrar uma aula que seja envolvente para o aprendizado dos alunos, sendo assim, “a produção de material didático e paradidático para as escolas indígenas deverá apresentar conteúdos relacionados aos conhecimentos dos povos indígenas envolvidos, levando em consideração a sua tradição oral” (BRASIL, 2009). Evidencia-se, dessa forma, que, para a consolidação de uma escola indígena, é necessário que os materiais de apoio Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.102-115. .

109 estejam voltados para os ensinamentos que contemplem a realidade na qual o aluno está inserido. Cabe destacar que até mesmo a merenda da escola faz parte do planejamento e deve ser incluída como um aspecto cultural, pois a “alimentação escolar destinada às escolas indígenas deve respeitar os hábitos alimentares das comunidades, considerados como tais as práticas tradicionais que fazem parte da cultura e da preferência alimentar local” (BRASIL, 2009). Essas práticas tradicionais, muitas vezes, estão ligadas a rituais, crenças e modos de organização social das comunidades indígenas.

3

Educação indígena e cultura

O ato de educar envolve uma complexa busca pelo modo ideal de conhecer, aprender e refletir sobre a sociedade a qual se está inserido e o que se busca para a mesma. Para Paulo Freire (1987), “não é possível fazer uma reflexão sobre o que é a educação sem refletir sobre o próprio homem” (p.27). É necessário refletir sobre o homem, sobre seus costumes, sobre sua realidade; bem como sujeito atuante na história. Freire (1987) defende que a educação “implica uma busca realizada por um sujeito que é o homem. O homem deve ser o sujeito da sua própria educação. Não pode ser o objeto dela. Por isso, ninguém educa ninguém” (p. 28). Educação envolve compreensão e tolerância, pois, ninguém é detentor absoluto do saber. O ato de educar está relacionado à mediação do saber e à uma troca de diferentes tipos de conhecimento. No que se refere à diversidade de saberes, é necessário valorizar o conhecimento com que os educandos chegam à escola, pois, por meio dele, o educador pode valorizar este saber e, ao mesmo tempo, o aluno pode se sentir sujeito atuante dentro do recinto escolar. Paulo Freire (2015) cita que a escola e os professores têm “o dever de respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária” (p. 31). No que diz respeito ao conhecimento construído de forma coletiva, cabe destacar que os educandos podem trabalhar este conhecimento de diversas formas devido à cultura a qual estejam inseridos. Evidencia-se também que, além do conhecimento, a maneira com que o aluno se comporta está ligada ao seu modo de vida, de acordo com Laraia (2014), todas as características, sejam elas materiais ou não, fazem parte de uma determinada cultura, sendo assim, esta cultura e suas expressões necessitam ser respeitadas e praticadas de acordo com seus valores. Deve-se tomar cuidado no que diz respeito ao modo de vida das diferentes Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.102-115. .

110 culturas, para que não haja juízo de valor sobre as mesmas com o intuito de diminuí-las, principalmente, quando se refere à diversidade de culturas indígenas no Brasil, pois:

O fato de que o homem vê o mundo através de sua cultura tem como consequência a propensão a considerar o seu modo de vida como o mais correto e o mais natural. Tal tendência, denominada etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais (LARAIA, 2014, p. 72-73).

Dessa forma, entende-se que não cabe ao ser humano de uma determinada cultura julgar o seu modo de vida mais correto e ideal que o modo de vida de outro, pois a consequência disso tende a ser trágica. É necessário tolerância e respeito à diversidade cultural, principalmente quando o assunto é a educação. Um exemplo de Escola Indígena referência em educação está situada na Terra Indígena de Chapecó, em Santa Catarina. A Escola Indígena de Educação Básica Cacique Vanhkrê5 é a primeira escola indígena a oferecer o ensino médio no Brasil, esta escola “nasceu com a preocupação do fortalecimento da cultura, sendo concebida e planejada como reflexo das aspirações particulares para esse povo indígena” (NOTZOLD, 2011, p. 41). Este ensino diferenciado, desde as estruturas materiais até a grade curricular junto às atividades alternativas, fortalece a cultura kaingang e os princípios e valores por eles praticados. As atividades educativas vão além do ensino tradicional que prepara para o mercado de trabalho, pois elas também contribuem para o pleno desenvolvimento do educando de acordo com a sua cultura e valores, sempre voltado para o fortalecimento da cultura kaingang.

3.1

Desafios da Escola Augusto Ope

Sabe-se que as escolas das aldeias normalmente levam o nome de um importante líder indígena e são compostas por alunos índios, no entanto possuem poucos professores indígenas e estão frequentemente sob a responsabilidade de professores brancos. Assim, diante deste panorama escolar supracitado, percebe-se a real interferência da “escola branca” na instituição de ensino que deveria ser exclusivamente indígena. Dessa forma, nota-se que “os desafios da escola indígena na atualidade não estão limitados a pouca qualidade de infraestrutura, recursos humanos e materiais didáticos, mas

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Esta escola faz parte do Observatório da Educação Escolar indígena (UFSC), pois, é uma referência neste quesito em Santa Catarina.

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111 também de dilemas político-conceituais, filosóficos e pedagógicos” (BANIWA, 2012, p.69), ou seja, os problemas vão além da estrutura material, eles abarcam as questões pedagógicas que incluem também a organização administrativa. Por meio de entrevistas realizadas com a metodologia da história oral, com dois professores, foi possível perceber alguns desafios encontrados na Escola Augusto Ope. Em destaque alguns deles: 

A Escola encontra-se em um lento processo de regulamentação;



Funciona com regimento e PPP da instituição a qual está vinculada;



Maioria de professores “não índios”;



Falta de material didático específico da cultura kaingang;



Carece de uma gestão democrática;



Carece de autonomia administrativa;



Carece de um calendário diferenciado;



Carece de um PPP e regimento voltado para a comunidade kaingang;



Despreparo de alguns profissionais não índios;



Falta de incentivo a pesquisa da cultura kaingang para elaboração de materiais didáticos;

O fato de a escola ainda estar em processo de regulamentação torna-se um empecilho para a comunidade, pois a mesma não consegue autonomia para gerir integralmente a escola. Por não poder dirigir a instituição de ensino na aldeia, outros problemas acabam surgindo, gerando fragmentações no sistema educacional vigente. Além da impossibilidade da gestão da escola, os alunos indígenas da Aldeia Três Soitas encontram dificuldades no aprendizado, por exemplo, para eles, o tempo de aprendizado, que para eles deveria ser diferenciado no âmbito do ensino fundamental e médio, já que está previsto em lei. Além disso, a prioridade do ensino deveria ser acerca do conhecimento e da história dos kaingang, no entanto, não é isso que ocorre, pois o ensino é ministrado frequentemente por professores inseridos na cultura e na escola urbana, interferindo na predominância da cultura e das matérias/disciplinas kaingang. O conteúdo ensinado na escola da aldeia é questionado nas disciplinas de história, matemática, em ciências, geografia, entre outras, pois, a cultura kaingang possui uma língua própria com vários dialetos, também possui suas crenças, sua maneira de contar numericamente e de se organizar socialmente; por isso, também, existe a necessidade de materiais didáticos com foco na cultura kaingang.

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112 Evidencia-se, também, a ausência de materiais disponibilizados na escola em questão, porém não se trata de materiais didáticos comuns disponibilizados a todas as escolas de cultura branca, mas sim de materiais que contemplem a cultura kaingang. Os materiais repassados às escolas não indígenas pelo Ministério da Educação são os mesmos que chegam à escola Augusto Ope. Os poucos materiais referentes à cultura kaingang que estão na escola indígena foram elaborados pela própria comunidade por meio de parcerias. Entre as dificuldades apresentadas até o momento, destaca-se uma que resulta de todas as outras já apontadas: a rotina. O cotidiano da escola observada é afetado, pois acaba tendo seu funcionamento extremamente semelhante ao de uma escola branca, ou seja, uma educação pensada e elaborada para uma cultura sendo aplicada em outra. Como já descritos neste artigo, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e os demais decretos e leis já promulgados garantem às escolas indígenas o direito de se organizarem de forma autônoma e diferenciada. Enquanto não for cumprida a legislação, as dificuldades tendem a aumentar, a cultura kaingang tende a perder, e o choque cultural refletirá no processo de ensino-aprendizagem. Considerando-se as dificuldades até então abordadas, nota-se que muitas fragmentações ocorrem devido ao choque entre as culturas. Em entrevista, um ex-professor da Escola Augusto Ope, não indígena, foi questionado sobre as dificuldades encontradas por ele na instituição de ensino: “enquanto professor de alunos indígenas, evidencia-se o choque cultural e a necessidade de adaptação ao cotidiano, costumes e interação na troca, principalmente, diante do processo de ensino-aprendizagem”6. Desse modo, diante de uma realidade distinta daquela que o profissional está adaptado, é fundamental que o mesmo busque conhecimento sobre como é a organização social e os aspectos culturais que abarcam a nova realidade a qual está inserido. Segundo outro professor entrevistado7, quando questionado sobre as mudanças que gostaria que fossem feitas na escola Augusto Ope, o professor indígena responde o seguinte:

Pras coisa funciona do jeito que a gente quer, a direção tem que ficar em nossas mãos. Autonomia indígena! Sem isso aí, a gente não vai conseguir fazer as coisas, porque a gente na aldeia a gente tem [pausa] apoio na comunidade indígena. A gente que é funcionário de uma escola ou tanto na área de saúde ou educação, a gente é escolhido pela comunidade pra gente trabalhar. Não é assim, eu cheguei aqui, to com diploma aqui e os cara me dão emprego. Não é assim. Primeiro tem que 6

Eder Matos em entrevista concedida à Andressa Flores, na Escola Cícero Barreto em 31/05/2016. Eder é exprofessor de história do núcleo EJA Fundamental na Escola Augusto Ope. Não é professor índio e, atualmente é professor na Escola Estadual Cícero Barreto. 7 Professor Juvino Salles: Acadêmico de Pedagogia da UFSM e professor na Escola Auusto Ope.

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113 conseguir o ok ta comunidade e aí é melhor de trabalhar também, porque você sente que você tem uma legitimidade do povo pra você trabalhar. Nesse sentido a gente só vai conseguir mudar alguma coisa se a gente mudar a direção e, mudando a direção a gente vai conseguir mudar o PPP da escola, que vai ser daí voltado só a realidade indígena e, alguma coisa também que, ao mesmo tempo os alunos tem que se preparar pro mercado de trabalho também. (JUVINO SALLES em entrevista concedida à Andressa Flores, na Aldeia em que o entrevistado reside em 27/05/2016).

Por meio desta colocação, evidencia-se, de fato, que a comunidade kaingang de Santa Maria acredita que haveria um funcionamento mais adequado se as decisões fossem tomadas em comum acordo com a comunidade e, também, se a educação fosse feita preferencialmente por professores que vivem a realidade kaingang. Para que possam ocorrer mudanças que atinjam o objetivo de pleno desenvolvimento do educando é necessária a autonomia da escola, assim, a comunidade pode elaborar um projeto político pedagógico voltado para a realidade na qual os alunos estão inseridos. Para os kaingang, é importante preparar os educandos para o mercado de trabalho, entretanto, apesar disso ser predominante na Escola Augusto Ope, não deve ser só este o objetivo.

3.2

Possibilidades para uma educação diferenciada

Buscando relacionar os ideais expostos com a educação indígena, entende-se que a autonomia filosófica pode estar lado a lado com os princípios e valores estabelecidos tradicionalmente pelos povos originários, e que, consequentemente, pode servir como um norte para eles. A autonomia política, assim como a administrativa, pode ser relacionada com as políticas educacionais propostas pela LDB.

A autonomia pedagógica e didática é

fundamental para que a escola defina o próprio currículo, bem como a liberdade de escolher as atividades que melhor contemplem os educandos da etnia kaingang. Na sequência de abordagens sobre possíveis possibilidades para a consolidação de uma escola diferenciada, questionou-se sobre quais as primeiras ações a serem executadas após a conquista de uma gestão autônoma:

A gente ia mudar, por exemplo, como é que a gente vai fazer os cálculos, por exemplo, como é que aconteciam os cálculos com os kaingang antigamente? a gente ia trabalha mais com isso. Por exemplo, dentro da religiosidade kaingang existe a linguagem dos pássaros, dos animais e que não tão nos nossos conteúdos das escolas, isso que a gente queria colocar pras crianças, por exemplo, como é que a gente fazia pra pegar o tatu antigamente? Por que, que não tem mais hoje? Porque isso não é trabalhado? Por que os índios tão nas grandes cidades? Isso não é trabalhado. É trabalhado, por exemplo, nos livros que vem pronto como é que foi se formando a sociedade. Então isso primeiro uma vila, primeiro uma casa, depois uma

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114 vila, depois formou a cidade e assim por diante, mas, o nosso jeito assim de formar uma comunidade a gente não é, a gente não estuda assim (JUVINO SALLES em entrevista concedida à Andressa Flores, na Aldeia em que o entrevistado reside em 27/05/2016).

Verifica-se, nesta pesquisa, que para garantir o funcionamento da Escola Augusto Ope de forma diferenciada e autônoma, conforme as necessidades da comunidade kaingang de Santa Maria, primeiramente, é imprescindível o cumprimento da legislação. Somente quando os fundamentos teóricos da constituição forem postos em prática é que será possível planejar uma educação diferenciada.

Conclusão

A partir desta pesquisa é possível fazer uma comparação entre a realidade da Escola Augusto Ope e o que está previsto em lei. No âmbito das políticas educacionais públicas, está previsto que as instituições educacionais indígenas possuam autonomia para organizarem um ensino diferente do tradicional. Dessa forma, constata-se dificuldades no que se refere à gestão da escola Augusto Ope, pois a mesma não possui autonomia administrativa. Ao falar em autonomia, é importante salientar que esta se refere ao poder de organização, de planejamento e de escolha de métodos que se adaptam melhor a comunidade e a cultura dos povos indígenas. Observa-se, também, que a falta de autonomia administrativa acarreta em fragmentações didáticas e culturais, como, por exemplo, a ausência da cultura kaingang no ensino, o aprendizado da história e da geografia com referências nos ideais e heróis da sociedade branca e, principalmente, o pouco uso da língua materna. Estas dificuldades se tornam cada vez maiores, uma vez que o material didático focado na cultura indígena se faz ausente, dando espaço para que os materiais de apoio e os recursos didáticos utilizados sejam os mesmos das escolas públicas convencionais. A comunidade kaingang em Santa Maria não busca um ensino que somente prepare o aluno para o mercado de trabalho, mas que também fortaleça a cultura e explore o âmbito escolar em todos os níveis. Uma educação que coloque em voga o conhecimento kaingang de forma interdisciplinar e que seja ministrada de forma concomitante com a ciência, pois é necessário que o educando indígena compreenda o que ocorre na sociedade dominante.

Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.102-115. .

115 Por meio deste trabalho, entende-se que não basta apenas a criação de leis que contemplem o ensino de um modo geral, mas de meios que possibilitem a transformação da realidade cultural e social de um povo.

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Anais do III Encontro de Pesquisas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.102-115. .