Pestalozzi: o Romantismo e o nascimento da Pedagogia Social

Pestalozzi: o Romantismo e o nascimento da Pedagogia Social João Francisco Lopes de Lima* Resumo O artigo Pestalozzi, o Romantismo e o nascimento da ...
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Pestalozzi: o Romantismo e o nascimento da Pedagogia Social João Francisco Lopes de Lima*

Resumo O artigo Pestalozzi, o Romantismo e o nascimento da Pedagogia Social analisa a contribuição do educador suíço Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1825) para a formulação do pensamento pedagógico moderno e, de modo particular, para o surgimento da pedagogia social. O estudo destaca o contexto do pensamento do autor sobre educação, situado entre influências iluministas e românticas, e os fundamentos de sua proposta educacional de formação integral, calcadas numa pedagogia intuitiva, que vincula formação moral e formação religiosa, e que vê na educação dos mais pobres uma possibilidade de redenção social, a partir de uma educação profissionalizante. Para Pestalozzi, se todo homem deve ser educado, independente de condição social, deve, portanto, ser aperfeiçoado em sua integralidade de coração (educação moral), mente (educação intelectual) e mão (educação profissional). Essa síntese mostra que, para Pestalozzi, não basta educar a mente ou formar a virtude. É preciso fazer as duas coisas e ainda fornecer ferramentas de trabalho. Por fim, o artigo discute as possíveis relações do pensamento pedagógico de Pestalozzi com o cenário educacional atual. Palavras-chave: Discurso pedagógico. Pedagogia social. Pestalozzi. Formação integral.

1 Introdução Trabalhar com “o coração, a mente e as mãos” costuma ser uma máxima pedagógica que ilustra o pensamento de Pestalozzi e a contribuição à educação gerada por esse suíço, nascido em 1746. Considerado o criador da “escola do povo,” um tipo de educação preocupada em atender as camadas sociais menos favorecidas numa época de educação tipicamente elitizada, o pensamento de Pestalozzi se inscreve no veio da tradição humanista, influenciada pelo Iluminismo em seus ideais de formação e marcada pela influência do Romantismo nos aspectos de fomentar uma cultura “espiritualista, tradicionalista e liberal ao mesmo tempo” (CAMBI, 1999, p. 415). * Doutor em Educação pela UFF e Mestre em Educação pela UFRGS. Graduado em História e Especialista em Supervisão e Administração Escolar. Professor de Educação Básica, Coordenador Pedagógico, diretor escolar. Professor universitário e pesquisador nos temas discurso pedagógico, pós-modernidade, gestão educacional. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 123-135, jan./jun. 2010 Disponível em:

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Este artigo pretende recuperar os principais elementos que marcam a pedagogia de caráter social formulada por Pestalozzi, verificando o contexto do pensamento do autor sobre educação, situado entre influências iluministas e românticas, e os fundamentos de sua proposta educacional de formação integral, calcada numa pedagogia intuitiva, que vincula formação moral e formação religiosa e que vê na educação dos mais pobres uma possibilidade de redenção social, a partir de uma educação profissionalizante. Por fim, procede-se a uma análise da contribuição dos fundamentos dessa pedagogia para o pensamento pedagógico atual.

2 A caminhada pessoal e educacional de Pestalozzi Johann Heinrich Pestalozzi, nascido em 1746, em Zurique, e morto em 1827, é filho do século XVIII e visto e estudado como um dos maiores representantes do pensamento pedagógico do século XIX, no qual desenvolveu o principal de seu trabalho como educador. O educador ficou órfão aos cinco anos, situação que parece ter-lhe marcado o pendor por cuidar de crianças em situação de abandono ou dificuldade social. Casou em 1769, aos 23 anos, com Anna Schulthess, oito anos mais velha do que ele, e teve um único filho, Jean-Jacques, nascido em 1770, cujo nome é uma homenagem ao mestre Rousseau, a quem Pestalozzi deve uma certa influência, em particular a partir da leitura de “Emílio”, conhecido romance pedagógico do autor. Pestalozzi fez o ensino primário e o ensino secundário em Zurique, entre 1751 e 1763. Entre 1763 e 1765, estudou Linguística e Filosofia, também em Zurique, não tendo realizado por completo qualquer formação universitária. Esse fato talvez explique o pouco vigor teórico de sua obra e a sua pedagogia mais focada na prática, com fraco lastro conceitual. Suas ideias são expostas com um “ardor apostólico,” como nos dizem Leif e Rustin (1968, p. 257), e traduzem “uma teoria pedagógica talvez não muito rigorosa nem orgânica,” conforme conclui Cambi (1999, p. 420). Pestalozzi foi mais intuitivo do que conceitual, dado que o seu fôlego teórico era frágil, e isso explica a faceta eminentemente empírica de sua reflexão pedagógica. Ele replicava o modelo familiar como modelo educativo, adotando-o em suas experiências educacionais, nunca demarcadas como espaço escolar, em sentido estrito. Em 1764, Pestalozzi se envolveu, em seu país, em movimentos políticos que requeriam reformas, e manteve esse pendor por justiça e correção social durante toda a sua vida. Nessa época sofreu a influência do pensamento de Rousseau, a partir da leitura de Emílio e do Contrato Social. 124

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Pestalozzi viveu por oitenta e um anos e desenvolveu suas experiências educativas nem sempre associadas ao êxito. Ele experimentou as agruras da vida “em primeira pessoa”, como diz Cambi (1999, p, 415). Órfão muito cedo, foi criado pela mãe em meio a dificuldades financeiras. Não teve um grande desenvolvimento de formação acadêmica e “parecia não ter vocação para as questões corriqueiras da sobrevivência. Faltavalhe capacidade administrativa, e suas ideias, quando postas em prática, sofriam pela sua inabilidade financeira,” referenda Incontri (1996, p. 31). Pestalozzi iniciou a sua primeira experiência educacional em 1774, aos 28 anos, em Neuhof, onde criou e desenvolveu uma escola para pobres, “uma escola onde recolhe órfãos, mendigos e pequenos ladrões” (ARANHA, 1989, p. 184), promovendo um trabalho que combinava instrução e formação profissional. Lá os jovens faziam o trabalho no campo e recebiam instrução intelectual, moral e religiosa. Considerada como a primeira escola profissional para os pobres (MONROE, 1977, p. 280), o projeto acabou por não conseguir sustentar-se financeiramente, e Pestalozzi decidiu encerrar o trabalho em 1780. Nesse projeto fracassado em Neuhof, Pestalozzi perdeu tudo; ficou sem bens e sem ter onde morar, indo viver com a mulher e o filho, acolhido pela caridade de uma senhora da localidade (INCONTRI, 1996, p. 32). Além do fracasso administrativo, também houve a falta de apoio local e a desconfiança dos moradores com o trabalho que fazia com os órfãos em Neuhof. Pestalozzi tinha então 34 anos. Entre 1780 e 1797 (dos 34 aos 51 anos), dedicou-se à pesquisa teórica e publicou parte de sua obra, como Vigílias de um Ermitão (1780) e Leonardo e Gertrudes (1781), um romance pedagógico de grande êxito, que teve acréscimos em 1783, 1785 e 1787. Publicou também Cristóvão e Elsa, em 1782, e, em 1797, publicou Investigações sobre o curso da natureza no desenvolvimento do gênero humano, estas com menor repercussão. Em 1798 dirigiu o Jornal Folha Popular Helvética, onde divulgou suas ideias pedagógicas. O tema geral de sua obra era o mesmo: as reformas sociais deviam surgir da educação, que promoveria uma reforma moral, pois não se faria uma sociedade justa sem que houvesse homens justos. Aliás, para ele, a moral prática representava a melhor expressão da educação que se pode ter. Entre 1798 e 1799, dirigiu um instituto para órfãos em Stans. Nessa escola de órfãos, Pestalozzi desenvolveu novas práticas educativas, continuando a combinação de atividades intelectuais com o trabalho manual. Nessa etapa organizou princípios pedagógicos importantes, adotando o ensino mútuo e o método intuitivo. A situação de guerra que seu país vivia deu fim ao trabalho em menos de um ano. Pestalozzi partiu, aos 53 anos, de mais um projeto fracassado, visto como um “visionário desacreditado” (MONROE, 1977, p. 282). Dali seguiu para a aldeia de Burgdorf, lá atuando de 1799 a 1804. Nessa etapa trabalhou com a formação de professores e desenvolveu a intenção de buscar uma psicologia para o seu processo educacional. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 123-135, jan./jun. 2010 Disponível em:

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Em 1801, quando trabalhava em Burgdorf, publicou Como Gertrudes instrui seus filhos. Nesse mesmo ano, uma dor familiar lhe abateu, com a morte de seu único filho, com apenas 11 anos. Após o fechamento do Instituto em que atuava, em Burgdof, abriu uma nova frente em Yverdon, onde trabalhou de 1805 até 1825, indo dos 59 aos 79 anos nesse trabalho. Nessa etapa, seus esforços maiores prosseguiram na formação de professores. Conforme Cambi (1999, p. 418), é em Yverdon que Pestalozzi tem a maturidade do seu trabalho pedagógico e também o reconhecimento externo. O Instituto de Yverdon floresceu e chegou a ter 150 alunos em 1809. No entanto, as dificuldades continuariam acompanhando-lhe. Em 1810 começaram desentendimentos entre o professorado, e os problemas internos se sucederam nos anos seguintes, com dissidências no grupo. Em 1815, acresceu mais um momento de quebra em sua família, com a morte de sua esposa. Em 1818, Pestalozzi criou um instituto para pobres em Clindy, lugar próximo a Yvderdum, mas seu projeto perdeu crédito, e não vingou, devido aos desentendimentos que vivia com os professores em Yverdon. Os conflitos aumentaram, e Pestalozzi encerrou o trabalho, retornando a Neuhof em 1825. Lá publicou o Canto do Cisne, sua última obra, em 1826. Adoeceu e morreu no ano de 1827, em Brugg.

3 Pestalozzi e a formação de uma pedagogia assentada entre a influência do Iluminismo e do Romantismo Pestalozzi se inscreve no contexto do nascimento da pedagogia moderna, mas muitas vezes é visto como um autor secundário, na esteira do pensamento de Rousseau, de quem é tributário. Tem seu pensamento pouco explorado na educação brasileira e há pouca produção nas pesquisas recentes1 que lhe tomem como assunto. Assim, ocupar-me com a tradição pedagógica moderna, buscando as raízes do pensamento pedagógico hoje corrente, em suas diferentes versões, tem sido uma tarefa de pesquisa a qual tenho me dedicado,2 e por isso o encontro com Pestalozzi. 1

Uma “pesquisa na plataforma “Scielo” – www.scielo.org – com o termo de busca “Pestalozzi” retornou apenas duas indicações: um artigo sobre como o ensino de geografia no Brasil foi influenciado pelo pensamento de Pestalozzi (Zanatta, 2005) e uma resenha de tese de doutorado publicada em forma de livro (Arce, 2003) sobre a Pedagogia na “era das revoluções”, em que a autora considera o pensamento de Pestalozzi e de Froebel. A pesquisa na plataforma “Domínio Público” - www.dominiopublico.gov.br, onde estão armazenadas as dissertações de mestrado e teses de doutorado realizadas nas universidades brasileiras não retornou nenhum resultado com o mesmo termo de busca.

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Em minhas pesquisas, tenho investigado autores modernos que auxiliaram na configuração do pensamento pedagógico brasileiro contemporâneo e analisado as bases filosóficas de sua pedagogia. Anísio Teixeira, a formulação do ideário escolanovista e sua vinculação ao pragmatismo de Dewey e Dermeval Saviani, sua contribuição para a pedagogia crítica, de

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Pestalozzi é um educador moderno, marcado em seu pensamento pelo Iluminismo, contemporâneo que é da Revolução Francesa, de Kant e de Rousseau, sendo, portanto, filho do seu tempo, inclusive quando enfrenta os excessos racionalistas e a concepção individualista de educação, pois o faz com os recursos da própria modernidade. A pretensão de ver a educação como elo transformador da humanidade a partir do melhoramento individual apenas se amplia ao pensar que esse processo deve ser estendido a todos e o coloca num tronco filosófico plenamente moderno. Dora Incontri (1996, p. 16), em seu extenso estudo sobre Pestalozzi, diz, em seu esforço de apontá-lo como essencialmente iluminista “até o fim de seus dias” que “esqueceram-se do filho do século XVIII, para apenas exaltarem o pai do século XIX”. No entanto, parece que a influência romântica é maior do que a do Iluminismo sobre o pensamento pestalozziano. O Iluminismo se desenvolve como tradição filosófica no esteio do século XVIII, ancorado na tradição humanista que remonta ao movimento renascentista e reformista do século XVI. O Romantismo, por sua vez, é um movimento artístico que se desenvolveu na Europa no fim do século XVIII, começando na Alemanha e estendendo-se pelo século XIX. O Romantismo teve várias vertentes além da alemã e não pode ser resumido numa única síntese, assim como o Iluminismo não contém essa homogeneidade abarcável pelas definições. O romantismo sinaliza que nem todo conhecimento é externo ao homem e puramente racional. Elementos como a intuição e a inspiração, uma certa mística que tenta reunir racionalidade e espiritualidade no homem e considerar a sensibilidade, o lúdico, fornecem alguns elementos tomados como gasosos ao cenário epistemológico iluminista, esse dado a uma maior fixidez. A concepção de Deus no Romantismo, e também para Pestalozzi, não é puramente deísta. O deísmo é uma premissa iluminista que contém uma postura anticlerical e a não aceitação de verdades reveladas. Para Pestalozzi, a visão de Deus possui um caráter cristão, ancorado na sua raiz protestante, mais especificamente pietista3 (INCONTRI, 1996, p. 18), o que significa a adesão a uma “fé simples, longe das complicações teológicas, preocupada com uma prática da moral cristã que se traduz em fraternidade e amor ao próximo”.” (INCONTRI, 1996, p. 37). Pestalozzi, diz Incontri (1996, p. 38), “se afasta da religião racionalista do Iluminismo, mas não se atira num sentimentalismo místico.” Coerente com a sua forma prática de ver o mundo, em que ideia boa é a ideia que se aplica, defende um cristianismo de ação, expresso pela carifundo marxiano-gramsciano, são estudos recentes apresentados em eventos da área da educação no ano de 2009. 3

“Num sentido mais amplo, caracterizam-se como pietistas quaisquer grupos cristãos cujo núcleo doutrinário seja a prática individual da devoção e da moral de Cristo, em oposição às formas institucionais das igrejas.” (INCONTRI, 1996, p. 37). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 123-135, jan./jun. 2010 Disponível em:

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dade e pelo amor ao próximo. A ênfase social o afasta do individualismo racionalista, assim como a sua visão religiosa. A pedagogia iluminista é laica por natureza. Já para Pestalozzi, a formação religiosa é a chave para a formação moral suficiente, havendo uma relação inseparável entre uma e outra. O fato é que Pestalozzi se viu entrecruzado por essas duas influências, de um lado o Iluminismo e de outro ligado a um certo tipo de idealismo romântico, acompanhando neste caso, Fichte, Schelling e mesmo Schiller e Hegel (INCONTRI, 1996, p. 17; CAMBI, 1999, p. 414) na composição do que estamos aqui chamando de pedagogia romântica.

4 A Pedagogia Social e os princípios pedagógicos de Pestalozzi Vinculado a uma educação humanista, um possível demarcador de caracteres que se tornariam importantes para a Escola Nova, Pestalozzi é o grande fundador de uma pedagogia de caráter social, pois que preocupada com a educação dos mais pobres. Revigorou o conceito de formação, fundando uma noção de formação integral com forte preocupação social. Para ele, falar em educação popular não significava falar em educação pública. Afirma-se Pestalozzi como fundador da Pedagogia Social justamente por seu trabalho nunca ter tido um caráter escolar. Falar em uma Pedagogia Social significa falar de práticas educativas não formais, que surgiram justamente no século XIX como resposta ao atendimento de pessoas em situação de marginalidade. Na realidade contemporânea, com a universalização da matrícula escolar, o atendimento de estudantes em situação de marginalidade se junta às práticas de pedagogia escolar. No entanto, cabe esclarecer, quando se fala de Pedagogia Social, fala-se de práticas educativas desenvolvidas de forma extra-escolar (PAULA E MACHADO, 2009). Cabe destacar a sua contribuição original para a educação, que localiza-o como uma espécie de fundador da Pedagogia Social, voltada ao atendimento das classes populares. O surgimento dessa pedagogia popular não ocorre “no sentido puramente caritativo, senão com espírito social”, diz Luzuriaga (1984, p. 175). “Pestalozzi entregou-se à missão de educar as crianças mais deserdadas, preparando-as para a vida, a fim de que o ensino pudesse ser, sem dificuldade, distribuído a todos,” sintetizam Leif e Rustin (1968, p. 257). Essa educação assentada na experiência projeta o sujeito para a resolução dos problemas práticos e edificado pela formação moral, tem acento sensorial, enfatizado pelo exercício dos sentidos como forma de apreensão intelectual. Compreende-se que o acento intelectualista, de cunho enciclopédico, não é o forte na perspectiva formadora de Pestalozzi. 128

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O foco pedagógico da educação preconizada por Pestalozzi tem uma atenção especial à criança e para obter êxito em seu processo era necessário conhecer o caminho para melhor desenvolver o adequado “treino da percepção sensorial” (MONROE, 1977, p. 289). Para isso buscou constituir a “ciência do espírito da criança” que, imaginava ele, lhe forneceria o “método universal” com o qual sonhava (LEIF e RUSTIN, 1968, p. 285). O seu desejo de psicologizar a educação significava gerar um caráter “organizador” para o desenvolvimento do espírito, seguindo um roteiro de postulados relativamente simples, que conforme Larroyo (1974, p. 586), podem ser assim resumidos: a) Partir sempre de uma vivência intuitiva e compreensível pelo educando, dado seu nível cultural. b) Elevar-se à compreensão geral dela mediante uma associação natural com outros elementos (conceitos). c) Reunir no todo orgânico de cada consciência humana os pontos de vista alcançados.

Pestalozzi procurou estabelecer um “método intuitivo que permitisse realizar sistematicamente a elaboração das intuições sensíveis em ideias.” (LEIF; RUSTIN, 1968, p. 357). Para ele, a intuição primeira é o caminho para se chegar ao conceito. O seu pensamento, já citamos, carece de “uma penetração filosófica mais ampla e [de] uma erudição mais profunda” (MONROE, 1977, p. 278). Assim, o campo da ação lhe era mais fecundo e isso deve explicar a sua defesa de uma educação intuitiva. Conforme destacou Luzuriaga (1984, p. 177), para Pestalozzi a intuição era a própria atividade do espírito, era o “conhecimento em ação.” Suas ideias eram, portanto, o resultado da experiência que realizava e não uma construção meta-teórica como fizera Kant, por exemplo. Esse pendor pragmático vem junto com um sonho de transformação social, intenção maior de todo o seu trabalho como educador, e pode ser ilustrado nas palavras do próprio Pestalozzi quando afirma: [...] o principal do que digo, eu vi. E muito do que aconselho, eu fiz [...] Tudo o que digo repousa em essência, até nos mínimos detalhes, em minhas experiências reais.” E prossegue: “Não queria apenas dizer: é assim. Procurei mostrar por que é assim e o que se pode fazer para mudar. (PESTALOZZI apud INCONTRI, 1996, p. 43).

Pestalozzi não queria uma educação individual, ao modo de Rousseau. Pretendia uma educação social, que atendesse “seu afã de melhorar a situação do povo” (Luzuriaga, 1984, p. 175). Para ele, em suma, a expectativa de que “a educação deve tornar-se o principal meio de reforma social” (MONROE, 1977, p. 283) é o ponto de justificação e motivação de todo o seu trabalho.

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5 Considerações finais A contribuição ao pensamento pedagógico produzida por Pestalozzi é marcada pela implicação pessoal que a sua pedagogia tem, uma vez que a sua obra prática mostra que a sua condição de educador, mais do que um ofício, é uma forma de compreender o mundo e de resolver a sua condição humana na vida. Nascido em uma família protestante, escreveu a sua obra em alemão. Foi influenciado pelo pensamento de Rousseau, não teve um êxito constante em seus projetos, muitas vezes fracassou financeiramente, não construiu um instrumental teórico articulado e promoveu uma perspectiva de educação como fator de promoção social, possível a todos, iluminista na raiz e romântica no conteúdo. E o que recolhemos de relevante para pensar as nossas práticas educativas atuais? Pestalozzi compreende a educação com uma função equalizadora das diferenças sociais. Esse é um ponto básico de sua visão educativa. Se todo homem deve ser educado, deve, portanto, ser aperfeiçoado em sua integralidade de coração (educação moral), mente (educação intelectual) e mão (educação profissional). Essa síntese se organiza na percepção de Pestalozzi, de que não basta educar a mente ou formar a virtude, como domínio dos impulsos naturais. Para educar os mais pobres, sustenta ele, é preciso fazer as duas coisas e ainda lhes fornecer ferramentas de trabalho. Isso tudo feito com base na possibilidade de ação prática e no entendimento de que a sociedade ideal deve ser vivenciada na própria comunidade, esta modelada sobre a noção de família. Em todas as suas experiências educacionais, Pestalozzi destacou a ideia de espaço educativo como um espaço de natureza familiar. Para ele, a educação familiar tem relevo e é tomada como parâmetro organizador da educação que realiza por ser “o lugar, por excelência do afeto e do trabalho comum,” conforme pontua Aranha (1989, p. 185). Vivemos uma época em que a demanda pelo “ineditismo pedagógico” e a busca por uma suposta pedagogia “inovadora”, algumas vezes presume que é possível uma pedagogia sem história, apologicamente “nova.” Em alguns ambientes, falar em tradição pedagógica virou praticamente uma ofensa, sinal de atraso. Penso que as escolas exageram no apelo ao atendimento de demandas imediatas, tanto de estudantes, como de famílias e mesmo de professores. Também exageram na busca interminável da suposta inovação. Falta lastro na leitura do contemporâneo, falta resgate das boas práticas, falta compreender a origem das coisas e inclusive do pensamento pedagógico que traduz um olhar novo, específico sobre a questão educacional. Pensar a educação como inovação sempre se inscreve numa determinada tradição do pensamento educacional. A educação contemporânea é naturalmente devedora de influências enraizadas nas bases da pedagogia produzida na era moderna. Encontra-se ainda hoje dividida entre influências do Racionalismo cartesia130

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no, do Empirismo baconiano e de uma certa pretensão epistemologicamente superadora trazida pela teoria construtivista piagetiana, produzida no início do século XX. Agregam-se influências várias, ora pendendo para a interferência do social no processo educacional, ora para a crítica da função da própria escola, ora defendendo a inclusão das diferenças étnicas e culturais ou, ainda, trazendo ao campo do debate a eficácia desse ou daquele modo de compreender o processo de educar. As demandas típicas da Pedagogia Social, por natureza definidas como atividades educativas desenvolvidas fora do espaço escolar, foram em parte dirigidas ao espaço intra-escolar a partir dos processos de universalização da matrícula, que introduziu nos sistemas de ensino toda uma população que transitava fora dele e com o qual as instituições educativas lidam ainda hoje com dificuldades. Seja como for, na raiz moderna da educação, parece que todos estão de acordo de que existe um sujeito a ser educado, dotado de razão e com propriedades mais ou menos idênticas em todo o indivíduo e de que há necessidade de se organizar uma determinada metodologia para cada situação educativa como forma de assegurar a apropriação, por parte desses sujeitos, dos conteúdos formativos que se pretende instaurar. Da contribuição de Pestalozzi, que pensou a pedagogia, antes de tudo, como um fato social, destacam-se algumas premissas básicas sobre o seu modo de compreender a educação: a) a educação é um processo que deve seguir a natureza da criação familiar e reproduzir-se neste tipo de espírito, congregando formação intelectual, moral e oferecendo o aprendizado de um trabalho; b) a formação moral se dá pelo desenvolvimento espiritual do sujeito em processo de educação, como expressão de harmonia entre o mundo interior e o mundo exterior e forma de submissão consentida a imperativos interiores, ou seja, máximas morais interiorizadas de prática individual e aplicação universal geradas pela formação religiosa; c) o ensino deve partir sempre da intuição que se realiza na concretude das práticas realizadas no meio, na realidade em que se insere, colocando um apelo de atendimento ao que é mais imediato e presente no campo das necessidades dessas crianças e jovens que ele atendia em seus projetos educacionais. Para compor a sua pedagogia, Pestalozzi cunhou uma espécie de psicologia do conhecimento, que organizaria esses princípios e diria ao educador sobre como melhor agir para obter os resultados esperados. Essas formulações, no entanto, não seguem um método experimental e sistemático. Coerente com o que defendia, resultam mais do teste empírico das suas intuições do que de uma prática científica e metódica. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 123-135, jan./jun. 2010 Disponível em:

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Pestalozzi, por fim, prestou uma relevante contribuição sociopolítica, uma vez que enfrentou as demandas sociais do seu tempo, gerando opções de educação aos menos favorecidos, ainda que se possa dizer que privilegia uma pedagogia liberal, já que não contesta o sistema e as agruras sociais que esse promove e, sim, adapta os sujeitos a uma vida melhor nestas condições. Não faz a revolução ou a produz nos sujeitos, mas gera, com o senso prático que tinha, a solução que era possível, que estava ao alcance real dele. Desse embasamento pedagógico na prática concreta, recolho o convite a pensar que muitas vezes os educadores ficam presos num discurso do que deveria ser feito ou poderia ocorrer se as condições estruturais da sociedade fossem alteradas e deixam de promover melhorias possíveis, a partir das condições existentes, geralmente mais acessíveis no curto prazo. Não se trata de escolher entre forjar o futuro ou saciar o apetite imediato do presente. As duas intenções continuam válidas. Boa é a pedagogia que funciona no curto prazo e continua produzindo efeitos positivos em médio e longo prazo. Particularmente, vejo como insuficiente para a era do conhecimento a leitura de que vale mais “aprender como aprender mais” do que a preocupação em “saber o que foi aprendido.” A escola precisa dar conta das duas coisas. Ensinar bem e garantir que os estudantes aprendam bem. A opção pelo termo “ensinar” é por entender que a função do ensino é precípua da escola e distintiva da função docente. E isso não implica defesa de práticas didáticas obsoletas ou mesmo dizer que o estudante é tabula rasa. Significa, apenas, dizer e insistir que professor ensina, sim. Com abordagens e métodos pertinentes ao conteúdo, ao contexto social e à realidade de seus estudantes e à visão de mundo que quer cultivar, é claro. Esse comentário se deve ao fato de a pedagogia de Pestalozzi não ter um apego intelectualista, o que poderia nos seduzir em aderir à tese de minimização da função acadêmica da escola. Penso que no contexto em que ele desenvolveu o seu trabalho isso fazia algum sentido, focado que estava na melhoria das condições morais e no polimento para o trabalho com seus estudantes, já que via na instrução elementar o suficiente para compor esse quadro. Em nosso tempo, se estabeleceu um senso comum em algumas linhas pedagógicas que acabam promovendo um amortecimento do valor do saber, do conhecimento sistematizado e da função do ensino com o argumento duvidoso de que vale mais o modo de aprender do que o que vai ser aprendido, de que tudo deve ser submetido ao tribunal do “para que serve” e, mais ainda, de que a escola é um lugar onde deve reinar a felicidade. Valeriam mais os meios de aprender do que o que vai ser aprendido, já que não é possível abarcar na aprendizagem toda a dinâmica gerada pela dita sociedade do conhecimento. Entendo 132

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que a escola não deve abdicar de uma relação cerimoniosa com a questão do saber, a menos que queira abdicar da sua função maior, que é ensinar bem para formar gente de bem, gente culta, com um eixo de valores e capacidade de conviver com os outros. Outro ponto forte em Pestalozzi é o valor da formação moral, para ele atrelada à formação religiosa. Talvez para uma educação eminentemente secularizada como a que temos hoje, a vinculação entre formação moral e formação religiosa soe excessiva. Mas há que se dar atenção ao desenvolvimento moral dos estudantes, seja pelo eixo de valores de uma determinada orientação religiosa, para o caso das escolas confessionais, seja pela linha de valores humanistas e laicos, nas escolas de orientação secular. Em particular numa época de costumes cada vez mais elásticos, é pertinente que os próprios educadores se perguntem sobre a sua linha de valores e que se aprenda com o mestre suíço que a expressão das atitudes morais dos estudantes é que mostra a extensão da educação que se alcançou, para além da linha do conhecimento desenvolvido pela linha da intelectualização. Mas, como já sublinhei, não creio que se trate de escolher entre uma coisa e outra. Por fim, a educação como via para que os estudantes aprendam a fazer algo, que na época de Pestalozzi significava ensinar o trabalho e a partir dele ter condições de obter emprego e renda. Em nossos dias, poderíamos pensar no valor de retomar práticas “antigas”, como trabalhos manuais diversos, e fomentar o precioso cultivo da paciência e da ordem, ou através de práticas sociais relevantes como o trabalho comunitário, em que se possa contribuir para a melhoria do meio em que se vive com algo que não inclua o mero trabalho de caridade, que Pestalozzi tanto contestava. A pedagogia de Pestalozzi pode não ser rigorosa do ponto de vista científico, pois produziu uma contribuição que não é robusta em termos teóricos e pode não ser tipicamente escolar, já que se dedica a outro universo, em sua época demarcado pelo atendimento das classes pobres, fato que deu origem à Pedagogia Social. O seu valor está justamente no fato de que exalta com a sua prática a antecipação de um tema, a educação popular, que muito ocupará os educadores até os nossos dias. Exalada por uma forte compreensão de integralidade da formação humana (intelectual, moral e profissional), pensou um projeto educacional que vinha ao encontro das necessidades imediatas dos menos favorecidos. Em sua época, criou uma pedagogia e os atendia em espaços educativos não escolares. Talvez o desafio de hoje, seja dar conta dessa mesma pretensão; porém, dentro do espaço escolar, como ocorre principalmente nas instituições da rede pública, onde se encontra em quantidade uma população de crianças e jovens de condições sociais tão precárias como eram as que Pestalozzi atendia. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 47, p. 123-135, jan./jun. 2010 Disponível em:

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Essa pedagogia social ganha relevo na medida em que promove boa educação, em sentido amplo e não somente promovendo uma ou outra ênfase formativa. Se há uma natureza a ser desenvolvida no ser humano, podemos ficar atentos ao ensinamento de Pestalozzi, que nos convida a pensar que cada uma das crianças e jovens que educamos possa obter satisfação em perceber que se tornou o melhor do que poderia se tornar. A sua utopia romântica teve o papel de gerar uma tarefa inovadora para a pedagogia de sua época e de indiscutível valor social e democrático, em especial se pensarmos que a pedagogia pestalozziana adquire uma integralidade que pode ajudar a equilibrar o processo de formação, atendendo de forma competente “o coração, a mente e as mãos,” ou seja, uma formação que congrega intelectualidade, moralidade e trabalho. Recebido em abril de 2010. Aprovado em abril de 2010. Pestalozzi: Romanticism and the Birth of Social Pedagogy Abstract The article “Pestalozzi: Romanticism and the Birth of Social Pedagogy” examines the contribution of the Swiss educator Johann Heinrich Pestalozzi (1746−1825) for the formulation of modern pedagogical thought and, in particular, for the emergence of social pedagogy. The study highlights the context of the author thinking on education, settled between illuministic and romantic influences, and the foundations of his educational proposition of comprehensive training, established in an intuitive pedagogy that binds moral and religious formation, and sees in the education of the poorest a chance of social redemption, beginning with a vocational education. For Pestalozzi, if every man must be educated, regardless of social status, he must therefore be improved in his integrality of heart (moral education), mind (intellectual education) and hand (professional education). This synthesis shows that, for Pestalozzi, it is not enough to educate the mind or fashion virtue, as the domination of natural impulses. We must do both and still provide them with work tools. Ultimately, the article discusses the possible relationship between Pestalozzi’s pedagogical thinking and the current educational scene. Keywords: Pedagogic discourse. Social pedagogy. Pestalozzi. Full training.

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