A COMUNIDADE TRADICIONAL CAIPIRA DO SUL DE MINAS GERAIS Mariana Gravina Prates Junqueira1 RESUMO O Vale do Gamarra, na zona rural de Baependi, no sul de minas Gerais, é uma região onde vive uma comunidade tradicional Caipira. A análise do modo de vida dessa população, suas relações culturais, festas rituais religiosos e modo de reprodução sociocultural constituem o objeto deste artigo. Num diálogo com Darcy Ribeiro, Antônio Candido, Antônio Carlos Diegues e Rinaldo Arruda foi possível perceber semelhanças conceituais e defini-los assim. A compreensão das características da população tradicional caipira e da sua reprodução cultural permitiram verificar as influências, que acontecem com a chegada dos meios de comunicação e de novos moradores nessa área cultural caipira. Essa comunidade, apesar de relativamente isolada não está isenta às transformações decorrentes de fluxos migratórios e influência da sociedade urbano-industrial. Portanto contradizendo Antônio Candido, 2002 que defende o desaparecimento dessa população em São Paulo, pude observar a existência dessa comunidade. Entretanto não isenta a mudanças, as populações não estão estáticas e nem paradas no tempo, mas sujeita á transformações. Enfim, a comunidade caipira insere-se com suas práticas sociais tradicionais em um mundo contemporâneo diverso e múltiplo, sofrendo influência e também influenciando novos atores que chagam a área cultural caipira. PALAVRAS CHAVES: Comunidades tradicionais. Caipiras. Reprodução sociocultural. Vale do Gamarra, Cultura.

INTRODUÇÃO Esse artigo tem por objeto o estudo dos habitantes do Vale do Gamarra, sul de Minas Gerais, município de Baependi sua forma de sociabilidade e reprodução sociocultural. Tal como as transformações a que estão sujeitos no mundo atual. A pesquisa portanto esteve focada na população local, que possui uma cultura tradicional e passa por grandes transformações em relação às suas atividades culturais, econômicas e em relação ao meio ambiente. Para a compreensão do modo de vida da comunidade tradicional do Vale do Gamarra a pesquisa de campo foi utilizada e em um diálogo com Antônio Candido, Darcy Ribeiro, Antônio Carlos Diegues e Rinaldo Arruda, defini-los como uma população tradicional caipira, inserida em uma área cultural caipira. A pesquisa 1

Doutoranda da Pontifícia Universidade católica de São Paulo- PUC-SP e bolsista do CNPQ [email protected]

participante foi fundamental para essa analogia, uma vez que o meu contato com a população local era antigo. No entanto, busquei aprofundar as minhas observações com as entrevistas e as histórias de vida, de modo a descrever a forma de vida dessa população tradicional, suas atividades econômicas, seu cotidiano, seus valores, suas festas e seus encontros religiosos, enfim, seu modo de reprodução sociocultural. As transformações da atualidade foram também discutidas assim como suas influências no modo de vida tradicional. Uma delas é a nova legislação ambiental, uma vez que a região integra área de preservação ambiental (APA – Mantiqueira) e entorno do Parque Estadual da Serra do Papagaio (PESP). A infra-estrutura básica oferecida pelo Estado também tem contribuído para essas mudanças: estradas mais conservadas, energia elétrica e educação foram introduzidas na comunidade. A partir dessa descrição da realidade local, dediquei-me às descrições e análises feitas pelos autores supramencionados para tecer comparações em relação ao sistema cultural caipira descrito por eles e ao observado pela pesquisa. O estudo nessa fase encontrou algumas dificuldades, como a compreensão do dialeto local. Os moradores mais novos são facilmente compreendidos, entretanto, a tarefa é bem mais árdua com os moradores mais velhos que, além de terem dificuldades em nos compreender, a recíproca é verdadeira. 1.O CAIPIRA DO SUL DE MINAS GERAIS E SUA PECULIARIDADES O processo de povoamento da região teve a participação de inúmeros agentes, como os índios e portugueses, que vão estabelecendo relações sociais e mercantis totalmente diferentes das da metrópole brasileira. Os arraiais paulistas e mineiros eram constituídos por pequenos casebres de taipa, cobertos de palha. A agricultura de subsistência da mandioca, feijão, milho e tubérculos garantiam a alimentação do caipira, que a incrementava com uma carne de caça ou peixe. Mesmo os bandeirantes mais proeminentes com índios cativos a seu serviço, também se enquadravam nessa atmosfera de pobreza; interagindo constantemente com os índios, falavam a língua geral, variante do Tupi, e utilizavam técnicas da lavoura indígena, como a coivara, artefatos indígenas, como a peneira e a canoa. (RIBEIRO, 2006). Esse mestiço, que se constitui como um grupo étnico inserido em relações sociais, culturais e históricas peculiares distingue-se do negro escravo e depois

alforriado, do imigrante que começou a chegar à região de São Paulo para trabalhar na agricultura comercial que se expandiu e também do índio. Esse grupo possui um espaço delimitado e é inserido nesse território onde acontece a reprodução social do Caipira, como define Antônio Candido, totalmente descolada dos moldes capitalistas, com características culturais e étnicas muito peculiares. Como afirma Darcy Ribeiro (2006: p.333): “Formavam uma sociedade que, por ser mais pobre, era também mais igualitária, na qual senhores e índios cativos se entendiam antes como chefes e seus soldados, do que como amos e seus escravos”. Com o advento da mineração o fluxo migratório para as minas gerou a possibilidade da existência de núcleos urbanos e da diversificação das atividades econômicas. Passados cinquenta anos, Minas Gerais já era a região mais rica da colônia com grande rede urbana. Essa demanda urbana possibilitou o desenvolvimento da agricultura comercial na região.Entretanto, foi a decadência da mineração a responsável por lançar a região mineradora de Minas Gerais em uma economia de subsistência, na qual os citadinos e mineradores passam a engrossar a vida rural caipira, numa variante, que passou a ser conhecida como” área cultural caipira”. Apesar de ter havido uma evasão de áreas urbanas em regiões de Minas Gerais nas quais a mineração era a atividade principal, esse fato não significou substancial transformação na região a que estamos estudando no Sul de Minas Gerais, na zona rural do município de Baependi. Essa região teve uma incipiente atividade mineradora e a principal atividade econômica sempre foi a agricultura. Portanto, não podemos considerar a decadência da mineração o início dessa área cultural, pois ela já existia. A vida rural do caipira valoriza o equilíbrio entre o trabalho e o lazer, numa forma autárquica e não mercantil que não pretende um padrão mais alto de vida ou um ritmo intenso de trabalho, mas sim sua independência inserida no sistema tradicional de produção. A implantação de um novo sistema produtivo, com agricultura comercial, mercado de carne e a exportação desses gêneros alimentícios associados ao crescimento das cidades, vão tornando insustentável a vida do caipira de muitas regiões, que vai gradativamente perdendo suas terras e encontrando imensas dificuldades em trabalhar em parceria com os grandes produtores. Veem - se restritos a poucas alternativas, como a de tornar - se posseiros a espera de um trabalho esporádico no campo ou incorporar-se definitivamente às massas urbanas.

A economia caipira pode ser considerada como uma economia semifechada nas estruturas dos bairros, utilizando técnicas rudimentares, troca de produtos e serviços e a autossuficiência dos bens de consumo, evitando ao máximo os intercâmbios constantes entre a cidade e o campo. Contudo, com as influências capitalistas e a transformação de valores sócio culturais, associado ao movimento interno e externo da sociedade, essa autossuficiência foi se deteriorando, manifestando os sintomas de grandes mudanças que acarretam uma crise social e cultural. Nesse momento de crise, observamos dois possíveis movimentos, de persistência ou de alteração, podendo originar uma reorganização das estruturas socioculturais ou uma desorganização das mesmas. Assim, segundo Antônio Candido produziria: enquistamento; desorganização; aculturação. O caipira pode reagir migrando ou adaptando-se como possível. É exatamente o que vem acontecendo no Vale do Gamarra: alguns moradores mudam-se e outros continuam ali, numa reprodução sociocultural mutável e sujeita às influências. O modelo de vida desses grupos tem mantido um sistema de produção e reprodução social, cultural e ecológica por um longo período histórico, diferenciando-as muito da sociedade capitalista, que pode ser considerada menos homogênea ou igualitária que as primeiras. O manejo permite ao ecossistema uma renovabilidade que confere sustentabilidade aos recursos naturais geridos por essas populações. Seu sistema produtivo possui pequena capacidade de acumulação de capital, dificultando a emergência de classes sociais. Se por um lado não podemos falar em aparecimento de classes sociais e grandes desigualdades, elas também passaram a existir no transcurso do processo histórico na região. Assim, as famílias que receberam heranças maiores e têm propriedades mais extensas, acabam tendo mais oportunidades de prosperar pela agricultura, ter mais fartura em decorrência do trabalho da família. Seus herdeiros também estarão assistidos, podendo inclusive construir uma casa em um pedaço de terra e ter o sustento garantido. Aqueles que tiveram a propriedade excessivamente dividida pelo grande número de herdeiros ou pela venda de terra, podem ter a produção inviabilizada pelo tamanho insuficiente. Muitas vezes precisam buscar um emprego, e se não conseguem, são impulsionados a mudar-se para outra região. Essas culturas ditas tradicionais possuem um modo de vida específico, uma relação peculiar com a natureza e os recursos naturais, interagindo sem acarretar

destruições e transmitindo o conhecimento para perpetuar a identidade do grupo (DIEGUES, 1998). Estabelecem, no interior de seus grupos meios de subsistências peculiares, que só podem ser compreendidos inseridos em um conjunto de reações culturais que são desenvolvidas a partir de necessidades básicas dos indivíduos que compõem esse grupo social (CANDIDO, 2001). Nesse contexto, sociedades caipiras tradicionais que ainda preservam suas relações de sociabilidade são extremamente raras em nossos dias e estão confinadas às áreas mais remotas e menos integradas ao sistema produtivo nacional. Segundo Antônio Candido, constituiria uma extensa camada marginal, com condições precárias de vida, sem possibilidade de mobilidade social. No estudo da vida social do caipira, deve-se justamente levar em conta estas necessidades, desenvolvidas, em virtude do rompimento da estrutura tradicional e do aparecimento de novos incentivos, tudo devido à passagem da economia fechada de bairro à economia aberta, dependente dos centros urbanos e suas flutuações econômicas. (CANDIDO, 2001: p.282).

No entanto, no século XXI, observando essas realidades distintas, nos deparamos com uma situação muito peculiar no Vale do Gamarra, com outras características socioculturais e outros valores de vida, os moradores nem sempre pretendem uma transformação social ou essa possível mobilidade, pois a vida que lhes cabe é satisfatória.

Entretanto a transformação socioeconômica no Brasil leva a

interação, cada dia mais intensa, entre o caipira no campo e o homem da cidade ou a sociedade urbano- industrial. Essa influência da sociedade urbano-industrial, apesar de ainda não ter determinado grandes alterações ao modo de vida da população rural, chegou também com a presença de “eco turistas” e citadinos que buscam novas áreas para estabelecer um novo modo de vida e com os meios de comunicação. Os indivíduos mais influenciáveis são, sem dúvida nenhuma, os jovens que muitas vezes optam por uma vida com novas oportunidades na cidade. Entretanto, os mais velhos estão satisfeitos com seu modo de vida e não almejam transformações. Mas para os jovens essas inovações encantam, e para os indivíduos da cidade a beleza do local é especialmente atraente, em meio uma vida agitada, conturbada, deslocada da natureza veem na região a possibilidade de uma vida nova, com novos valores individuais e a possibilidade da tão sonhada “felicidade”.

O caipira do Gamarra, não poderia ser estudado como uma população totalmente isenta de transformações e influências. E sim, influenciado por um movimento cultural dinâmico de todas as sociedades, criando e recriando formas distintas de reprodução social, interagindo constantemente interna e externamente com diferentes indivíduos oriundos de locais diferentes, com modos de vida diferentes e que vão constituindo a vida na região um movimento todo particular. 2. VALE DO GAMARRA E A SUA POPULAÇÃO A vida rural dessa região ainda bastante isolada é muito peculiar: pequenos sítios ocupam a região. As propriedades que costumavam ser maiores começaram a ser sistematicamente divididas pelos herdeiros com o passar do tempo. Consequentemente, a quantidade de área resultante das subdivisões é inversamente proporcional ao tamanho da família. Assim, alguns herdeiros hoje vivem em fazendas, enquanto outros em pequenos lotes ou sítios. Contudo, um fato pode ser observado na região: são todos parentes. As relações sociais entre as famílias do Vale do Gamarra são estreitas na medida em que os casamentos também acontecem entre primos e familiares dos arredores, impedindo que os laços de parentesco se distanciem muito. Apesar de viverem em uma região isolada, a amizade, a solidariedade e o companheirismo das famílias aproximam as pessoas e as ajudam a enfrentar as dificuldades impostas pela vida no campo e o isolamento. Grande parte das famílias cria gado para a venda do leite e produção de diversos tipos de queijos: mussarela, parmesão, minas (fresco); e também produzem para o próprio consumo. Os intermediários vão buscar o leite no vale e a rotina do produtor estará condicionada aos horários do comerciante. Assim, o horário da alvorada poderá variar das cinco às sete horas dependo da chegada do “leiteiro”, pois se deve ordenhar as vacas e acondicionar o leite em latões que serão transportados para a cidade. Para a produção de queijo, que acontece na própria fazenda ou na do vizinho, pode haver uma flexibilização deste horário. A ordenha é uma tarefa principalmente masculina, assim tanto o pai como os filhos mais velhos se encarregam dessa tarefa. Entretanto, as mulheres podem também se ocupar da retirada do leite em algumas famílias, o que ocorre quando o número de parentes homens é reduzido. Já o queijo é feito pelas

mulheres, que instalam queijeiras nas fazendas e alternam o tipo de queijo a ser produzido. Em casas onde não moram mulheres, os homens também podem dedicar-se ao queijo. A pecuária de corte também existe no Vale; alguns proprietários vendem o animal para o abate, pois julgam ser mais rentável do que o leite. Esse fato foi observado principalmente em fazendas mais afastadas da estrada, na qual a chegada do carro se faz mais difícil. “Eu planto milho e feijão para o gasto, crio gado para vender, não vendo leite, pois não vale a pena. Tenho orgulho em dizer que não sou um cara rico, mas nunca fui apertado.” (Seu J, 65 anos). Ao amanhecer, o desjejum consiste em café com leite com farinha de milho, bolinhos, que são preparados com ovos, leite e fermento, e podem ou não ser fritos, e algum outro tipo de pão, biscoito ou broa de milho, a “quitanda”, como são chamados por eles. Essa quitanda é preparada pelas mulheres em um dia especial e conta com a ajuda de vizinhas e familiares. Um forno de barro fora da casa é construído especialmente para esse fim. Nesse dia de encontro, grande quantidade de pães e biscoitos, doces e salgados são feitos e repartidos entre as participantes, que podem presentear amigos e parentes e reservar para o consumo diário. No almoço é servido arroz, feijão, macarrão, farinha de milho e podem também preparar alguma carne ou algum legume da horta, refeição que poderá ser repetida no jantar depois do café da tarde. A carne mais consumida na região é o porco: toucinho e linguiça são pendurados em cima do fogão à lenha para defumá-los e serem consumidos mais tarde. A gordura usada na cozinha consistia unicamente em banha de porco, entretanto hoje, o óleo de soja também é comprado na cidade para o uso cotidiano, mas nem todos apreciam esse novo hábito culinário. “Eu como comida feita com óleo de soja e logo já estou com fome, eu fui criado comendo comida feita com banha de porco e ainda uso, ela sustenta” (Seu A, 70 anos). A caça já foi muito comum na região, abastecendo de carnes exóticas a população. Entretanto, com o aumento de pastagens e campos cultivados, essa prática foi sendo abandonada. Hoje a carne que é comida provém unicamente da criação de frangos, porcos e bois. São das mulheres as obrigações domésticas, a limpeza da casa, das roupas, da cozinha, o cuidado das crianças e também a manutenção das hortas que se localizam

próximas às casas. Nessas hortas são cultivadas hortaliças, legumes e plantas medicinais para chás e temperos. No terreiro das casas, também são plantadas árvores frutíferas, tais como abacateiro, goiabeira, laranjeira, limoeiro, jabuticabeira e pessegueiro. As roças de milho, feijão, cana e mandioca são as mais freqüentes na região, cultivadas em época de chuva, que acontece entre outubro a março. Nesse período os campos são roçados e as terras são preparadas para o plantio, que acontecerá quando as chuvas são mais intensas. Para o plantio, a família inteira participa da empreitada, que tem que ser feita velozmente para aproveitar o período úmido e quente. Pois o inverno é extremamente seco e também muito frio, com geadas. O arado da terra pode ser feito manualmente ou com ajuda de animais, principalmente as juntas de boi. O arado mecanizado por meio de tratores é extremamente raro e só acontece quando um trator da prefeitura está no Vale em decorrência de um serviço extraordinário como a conservação ou abertura de novas estradas. Muitos proprietários usam a prática da coivara em áreas destinadas à agricultura. As áreas agrícolas são restritas hoje em dia, uma vez que a pecuária leiteira é a atividade predominante. Assim quando o proprietário percebe um rendimento baixo em seus cultivos em um ano, ele pode lançar mão do fogo para renovar a terra. Essa prática é tradicional na região, apesar de hoje estar restrita pelos órgãos públicos ambientais (IBAMA e IEF2). Após roçar a capoeira mais alta, se pode queimar a área para então ará-la, para posteriormente serem lançadas as sementes. A utilização de adubo de cobertura é hoje comum, assim compram o adubo químico NPK (nitrogênio fosfato potássio) na cidade, para as suas roças. Depois do plantio é feita a manutenção do cultivo capinando as áreas plantadas. Os instrumentos utilizados nessas atividades são rústicos: o penado para o roçado e a enxada para a capina. A agricultura está diretamente ligada à pecuária, pois o milho e a cana produzidos serão utilizados para o trato de animais (vacas, bois, cavalos, éguas, mulas, burros) e muitos legumes da horta destinam-se a engorda dos porcos. Se por um lado o fogo utilizado para a agricultura em nada impacta as áreas vizinhas, já que acontecem em pequenas áreas e ajudam a fertilizar o solo, pois mineraliza a matéria orgânica que fica disponível no solo para a planta, o mesmo não se dá com as queimadas das pastagens. Assim, após o roçado do pasto, a forma utilizada 2

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, IEF - Instituto Estadual de Floresta.

para renová-lo é a queimada, que acontecerá em uma data associada à umidade do ar quando o céu estiver encoberto ameaçando chuva. Apesar dos aceros3 que são feitos em volta de toda a área a ser queimada para evitar que o fogo alcance áreas vizinhas, os ventos violentos podem levar as labaredas para além dos aceros, dos pastos que seriam queimados para áreas vizinhas, provocando grandes incêndios na região. Apesar de a coivara ser a única forma conhecida pelos proprietários do Vale, ela é limitada pelos órgãos fiscalizadores ambientais, ou seja, os proprietários só podem fazê-las legalmente mediante autorização dos mesmos. Essa autorização tem que ser obtida no escritório do órgão responsável, IEF, na cidade de Itamonte a 100 Km de distância. Essa medida restritiva diminuiu bastante essa prática evitando novos grandes incêndios; entretanto não foi disponibilizado ao produtor uma assistência técnica rural alternativa que solucionasse de fato esse problema. A fiscalização ambiental é exclusivamente punitiva e não disponibiliza técnicos agrícolas que proponham formas de manejo para as pastagens. O milho é o produto agrícola mais cultivado na região e pode ser plantado em associação com o feijão, que traz benefícios para a recuperação do solo por meio da nitrogenação, pois é uma planta leguminosa. Depois da colheita faz-se farinha do milho e fubá para o consumo humano e o farelo do milho destina-se ao trato dos animais. A cana também é utilizada para produção de ração junto ao capim. O feijão e a mandioca podem ser exclusivamente para o próprio consumo, como também para venda. Os pastos destinados ao gado precisam de constante manutenção. O roçado dessas grandes áreas é obrigação dos homens, pais e filhos, que cumprem parte da empreitada e no período que julgam ser mais conveniente, a lua minguante, chamam os vizinhos, familiares e amigos para o mutirão. Nesse dia, os convidados vão à casa estipulada, na hora marcada (geralmente às oito horas), depois das obrigações de suas próprias fazendas, tomam café da manhã e começam o trabalho de roçado. Na hora do almoço, ao meio dia ou à uma hora, se alimentam da comida do anfitrião, que consiste em arroz, feijão, macarrão, uma carne que pode ser frango, leitão ou boi, farinha de milho e alguma verdura como a batata. As carnes mais comuns são: o frango e a carne de porco; e mais raramente, o boi. De volta ao campo continuam o serviço até o entardecer, às dezessete horas, com uma breve parada de meia hora para o café da tarde, 3

O acero consiste na retirada do mato em volta de onde será a queimada, por meio da capina por uma área de dois a três metros com auxílio da enxada.

às duas horas. O serviço que o proprietário levaria uma semana pode ser cumprido em um único dia, além da velocidade do trabalho, a animação e a descontração estão presentes, aliando trabalho e diversão. A carne é sempre encontrada nos mutirões, alimento apreciado por todos. Quando o anfitrião mata um boi, vende uma parte e reserva outra para os companheiros de roçado. Entretanto, como os mutirões agora agregam menos gente que no passado, os frangos, por serem pequenos e de abate fácil, e a carne de porco, muito consumida na região, têm sido os mais comuns nesses dias. Muito popular também é a pinga, que vem da cidade e é consumida no final do serviço. Grupos de dez a vinte camaradas fazem o serviço em uma fazenda e na lua minguante seguinte vão para outra propriedade para ser roçada, também em esquema de mutirão. Em outros tempos juntavam-se até cinquenta homens para o trabalho, mas como muitos já foram para a cidade, esse número hoje é reduzido. Não é somente o serviço do roçado do pasto que lança mão dos mutirões, a capina para o plantio do milho ou qualquer outro serviço que se faça necessário pode solicitar ajuda dos companheiros. Essa prática antiga de solidariedade é comum na região, todos participam. Entretanto, caso alguém não atenda ao chamado de um vizinho, esse também se sentirá desobrigado a atender-lhe o convite e não comparecerá no mutirão organizado por aquele que esteve ausente em seu mutirão. Esses laços de solidariedade que unem as famílias, os vizinhos e os parentes, garantem a proximidade dos indivíduos, a coesão social e a possibilidade de reprodução social em um sistema isolado e distante da cidade, cuja sociabilidade é extremamente peculiar. As dificuldades são vencidas com essa ajuda mútua. Uma realidade semelhante foi observada por Antônio Candido em Bofete, São Paulo, na década de cinquenta, na qual os mutirões exemplificavam a reprodução sociocultural da população, com práticas de ajuda mútua e sentimento de localidade que integravam as famílias, agregados e posseiros numa estrutura de bairros e localidade que era de fundamental importância para a coesão social. Estrutura que foi denominada pelo autor de solidariedade caipira (CANDIDO, 2001). Portanto, a solidariedade caipira pôde ser observada no Vale do Gamarra na atual pesquisa, onde os mutirões e os movimentos de solidariedades são extremamente

peculiares a essas áreas ditas caipiras, mesmo que os movimentos de transformação já estejam presentes na região. A produção de gêneros alimentícios já foi maior no passado, os proprietários possuíam propriedades maiores e mais terras agricultáveis, podendo, inclusive arrendar para algum produtor, mediante divisão da colheita ou pagamento em dinheiro de aluguel. Hoje os arrendamentos são mais raros, mas ainda acontecem. O isolamento da região vem sendo alterado, assim, há quinze anos, os moradores compravam pouquíssimas coisas na cidade. A maior parte dos alimentos era da própria região, como feijão, milho, café, batata, legumes e verduras, carnes e banha de porco, usada como óleo. A farinha era toda produzida, o café torrado e pilado e a banha, extraída na fazenda, dos porcos que eram criados nas propriedades. Atualmente, a lista de compras vem aumentando bastante na medida em que a interação campo - cidade se torna mais estreita. Muitas vezes os produtores encontram mais vantagem em comprar batata do que plantá-la. É também mais barato comprar o café a plantá-lo e estar sujeito às intempéries climáticas, pragas e geadas. E ainda como os afazeres das fazendas são muito numerosos e a cada dia atrai menos os jovens, a mão-de-obra se torna menos abundante dentro da família, dificultando o cumprimento de todas as atividades realizadas no passado. Na época do meu avô, ele comprava só sal na cidade, até açúcar eles produziam aqui, faziam rapadura da cana. A minha mãe também torrava e pilava o café e fazia farinha, mais é um serviço muito pesado: sempre que tinha um irmão por perto ela pedia ajuda. Se meu pai tivesse, ele também ajudava. Já a farinha, todos ajudavam. Como demora pra ficar pronta, cada um que passava dava uma ajuda. Então se não tem muita gente em casa, o mais fácil é comprar na cidade (F, 25 anos).

Contudo, as famílias que não obtêm uma renda fixa com a venda do leite ou a confecção de cestos, procuram ao máximo plantar e produzir seus alimentos. Quando não conseguem produzir compram de outro sitiante; tempos atrás, tinham por hábito a troca, a barganha por alimentos e serviço. Assim, aqueles que não produziam rapadura, podiam trocar por outro produto feito em sua casa ou acertavam a compra por dias de serviços. As lavouras multiplicavam-se pelo vale, nas encostas, nas várzeas e em diversas áreas apropriadas. Os grandes proprietários arrendavam parte de suas terras para que os pequenos pudessem ampliar suas produções. Com o passar do tempo, essas grandes

propriedades foram sendo subdivididas pelos herdeiros e quanto mais filhos um indivíduo tivesse, menores seriam as heranças. Podendo, inclusive, restringir o acesso de alguns a sítios maiores, pressionando-os a arranjar trabalho fora ou mudar-se para a cidade ou outros bairros rurais. A venda das propriedades também ocorre associada a alguma necessidade ou desejo de mudar-se para outra região ou para a cidade. Isso ocorreu com Seu A., 70 anos, pois seu avô tinha uma grande fazenda que deixou de herança para seu pai. Esse ficou muito doente e para comprar os remédios necessários, teve que vender toda sua propriedade, deixando para seu filho, que permaneceu morando na região, apenas a casa com um pequeno terreno em volta. Essa situação levou essa família, com sete pessoas, à pobreza. Quando os filhos mais velhos cresceram, arrumaram emprego com os novos moradores do local, mas a vida só teve uma substancial melhora quando um novo proprietário da região trocou o pequeno terreno de Seu A., que se situava no meio de sua propriedade, por outra terra com acesso à estrada e área para plantar. Nessa nova casa, não precisa arrendar terra para plantar, e ainda pôde construir uma casa melhor para si e também dispôs de espaço para novas construções para os filhos. Ademais, ganhou nessa barganha uma vaca, que agora rende leite e novilhos. Com terra para plantar a vida melhorou. As novas restrições ambientais também foram apontadas por alguns moradores, como motivo da diminuição da produção agrícola. A área do Vale do Gamarra constitui Área de Proteção Ambiental da Serra da Mantiqueira (APA Mantiqueira) desde 1995 e entorno do recém criado Parque Estadual da Serra do Papagaio, que engloba diversos municípios no Sul de Minas Gerais. Muitos moradores tiveram parte de suas terras inseridas no traçado do parque e outros tiveram que reelaborar suas atividades econômicas em decorrência das restrições ambientais. O Parque Estadual da Serra do Papagaio (PESP) foi criado em agosto de 1998, com uma área de 22.917 hectares abrangendo áreas dos municípios de Baependi, Aiuruoca, Alagoa, Itamonte e Pouso Alto e sede administrativa no escritório do Instituto Estadual de Floresta (IEF) na cidade de Varginha, também no Sul de Minas Gerais. A região é de grande relevância ecológica, pois concentra as nascentes de alguns dos principais afluentes do rio Grande, responsável pelo abastecimento e geração de energia de grandes centros urbanos de Minas Gerais e de São Paulo. É um local com

importantes conjuntos montanhosos, uma declividade acentuada e altitudes acima de 1800m. As maiores elevações constituem o Pedra Redonda, com 2353m, na Serra do Garrafão, o Pico da Bandeira, com 2357m, na Serra do Papagaio. Inserido no bioma da Mata Atlântica, o PESP integra-se ao Parque Nacional do Itatiaia e a APA Mantiqueira. A peculiar biodiversidade natural da área, associada à dificuldade de acesso ao local, possibilitou historicamente grande preservação da flora e da fauna nativas. A relevância cultural também merece grande destaque, pois toda a área do entorno do PESP, integra a área cultural caipira a que estamos discutindo nesse trabalho, com enfoque para região do Vale do Gamarra. E também têm recebido um fluxo migratório de novos moradores vindo de áreas urbanas que buscam um contato mais estreito com a natureza em ambientes de grande beleza cênica. Portanto, por meio de uma atividade econômica baseada na agropecuária rústica, mantém traços socioculturais tradicionais que permitiram a preservação da área, onde começa a nascer uma nova atividade econômica, o turismo. No Vale do Gamarra, em Baependi, as relações com o ambiente têm sofrido transformações. O município tem a mais extensa área dentro do PESP e as desapropriações ainda não aconteceram, contudo as áreas já têm seu aproveitamento econômico limitado. Em decorrência disto, as áreas de encostas e próximas aos cursos d’água deixaram de ser alternativas viáveis e produtos que anteriormente eram cultivados nesses brejos, como o arroz, tornaram-se inviáveis na região. Assim como a retirada de madeira para a construção de casas e para a obtenção de fogo. O que levou algumas famílias a optarem também pela utilização de fogão a gás ao invés de exclusivamente o fogão à lenha. Uma outra atividade extinta no Vale é a extração de madeira. Caminhões de candeias e outras espécies saíam constantemente, alimentando madeireiras locais. Com a extinção de algumas atividades, novas alternativas foram sendo encontradas, a exemplo, o artesanato de cestos de bambu a que muitas famílias dedicam-se. Confeccionam cestos, bandejas, balaios, baús para vender. As molduras são trazidas por atravessadores para que os artesãos as completem com as tirinhas de bambu, produzindo charmosos utensílios e móveis que serão vendidos em Baependi e também levados para o Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte. Essa atividade econômica é uma alternativa para as mulheres e famílias com pouca ou nenhuma terra.

As diversas atividades econômicas da região integram-se a um laço familiar e de compadrio que unem as pessoas, em uma reprodução social que pode ser considerada, não capitalista, na qual o trabalho não se tornou mercadoria e há uma grande dependência dos recursos naturais e dos ciclos da natureza; seu manejo visa à reprodução social e cultural e não o lucro; apesar de haver uma ligação com o mercado ela ainda é branda. (DIEGUES, 1994). As casas possuem arquitetura semelhante, são quadradas com sala, cozinha, quarto, um ou mais dependendo do tamanho da família. As construções mais recentes têm adicionado o banheiro, com serpentina4 no fogão à lenha para proporcionar banhos quentes aos moradores e a varanda. As mobílias variam de casa para casa, mas todas possuem fogão à lenha nas cozinhas, algumas têm mesa e cadeiras, outras grandes bancos, camas nos quartos e cadeiras ou sofás nas salas e algumas possuem estante na sala e fogão à gás na cozinha. Assim, tanto as casas como os modos de vida têm características comuns, simplicidade nas mobílias da casa, e na alimentação: arroz, feijão, farinha de milho, mandioca, banha de porco, alguma carne, café, bolinhos, broas e outras quitandas; atividade econômica: pecuária leiteira e a produção de queijo, trabalho no campo, agricultura, artesanato e um forte laço de solidariedade que une a todos. Esse laço se expressa por meio de festas, orações, mutirões e as visitas que uns costumam a fazer aos outros. Como as casas podem ser distantes o pouso do visitante para passar a noite é muito comum. As festas são frequentes, todos são convidados e muita comida e bebida são oferecidos. A bebida vem da cidade e a comida é feita na casa; muitos animais são abatidos e servidos aos convivas, com arroz, feijão e farinha. Essas comemorações podem ter vários motivos, festa de Santos Reis ou outro santo, promessas e comemorações. Recentemente o senhor J. promoveu uma festa de Santo Reis em sua fazenda como pagamento de uma promessa feita trinta anos antes. Com um funcionário picado de cobra em sua sala, o senhor J, diante da impossibilidade de transportá-lo para um local onde pudesse receber assistência adequada, recorreu à ajuda dos Santos Reis e fez a promessa de promover uma festa no dia 6 de janeiro, caso o

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A serpentina é um sistema de encanamento que passa pelo fogão à lenha, e permite que a água esquente e se dirija a um boiler, onde será armazenada, ligando-se aos chuveiros e torneiras proporciona banho quente para as famílias.

enfermo fosse curado. Assim o fez, uma vez que o funcionário, apesar da gravidade de seu estado de saúde, conseguiu se recuperar. A notícia que a festa seria realizada no dia 6 de janeiro de 2007 se espalhou rapidamente pela região. Não existem convites individuais, todos que comparecessem seriam bem recebidos e a expectativa era de que aparecessem em torno de quinhentas pessoas. A fazenda possui difícil acesso a carros, ademais naquele ano em consequência das chuvas excessivas e das péssimas condições das estradas, os convidados só podiam chegar a pé ou a cavalo. O que acabou resultando em uma imagem bastante inusitada: mais de duzentos cavalos selados e arriados, amarrados, um ao lado do outro, na cerca em frente à fazenda. Assim que se chegava à festa, a primeira visão que se tinha, além da enorme fila de cavalos esperando seus donos, era o couro da novilha abatida para as comemorações. Ela estava esticada com uma armação de madeira e pendurada em uma frondosa árvore bem em frente ao local da festa, para secar e ser utilizada posteriormente. Além da novilha, foram abatidas três leitoas e uma grande quantidade de frangos caipiras. Esses formavam o cardápio oferecido, composto de arroz, feijão, carne de panela, leitoa assada e frango ensopado. A comida estava disposta em uma grande mesa, colocada em um alpendre ao lado da casa em enormes panelas onde os convidados podiam se servir à vontade com pratos coloridos de plástico. A bebida que seria servida na festa, os refrigerantes e a cerveja encomendados, não conseguiram chegar, em decorrência das fortes chuvas de verão. Assim, os convidados beberam água, servida das torneiras da fazenda, que vinha diretamente da nascente. Em frente ao alpendre, havia um grande terreiro de terra batida todo enfeitado de bandeiras, no estilo das bandeirolas das tradicionais festas juninas, com um grande mastro ao centro, de onde balançava ao vento um estandarte bordado em homenagem aos Santos Reis. Logo atrás se encontrava a sede da fazenda, emoldurada pela visão de uma cachoeira, cercada pela floresta, a antiga casa de adobe, feita com materiais da própria fazenda. Era a mesma que trinta anos antes havia presenciado os acontecimentos que deram origem à festa. Era também a mesma, a pequena sala, de assoalho de madeira e paredes caiadas de branco, onde o funcionário foi colocado depois de ter sido picado

pela cascavel, que os músicos convidados desfiavam os versos musicados que compõem a tradição das festas de Reis. O grupo era composto por dois violeiros, dois cantadores e dois percursionistas, um tocador de pandeiro e outro de zabumba, que chegaram à fazenda logo pela manhã, quando os primeiros convidados começaram a aparecer. Depois de receber os calorosos cumprimentos dos donos da casa, os músicos se instalaram na sala da casa e iniciaram a execução das músicas. Tocaram, com raras e curtas interrupções, até o fim da tarde, quando os últimos convidados estavam se retirando, os versos eram repetidos e com sua melodia triste eram acompanhados pelo couro. Ao entardecer, aqueles que ficaram na festa entraram na casa e ocuparam a sala, os corredores, os quartos e a varanda e as músicas com letras de inspiração religiosa, ecoavam na sede da fazenda criando um fundo musical que envolvia a todos, estabelecendo um ambiente, ao mesmo tempo alegre e austero. Afinal, se tratava de mais uma das festas do catolicismo popular brasileiro, onde o profano e o sagrado caminham de mãos dadas. Além das festas dos santos, outras formas de expressão de religiosidade são também bastante peculiares, como as novenas e rezas que acontecem nas casas dos moradores e também na capela que existe no Vale. Os moradores, a cavalo, seguem para as casas dos devotos, a fim de rezar o terço. Algumas vezes rezam dez ave-marias em uma casa, e dirigem-se para a próxima, até completar o terço. Esses encontros constituem momentos de interação social, uma vez que os moradores mais religiosos ou menos, dirigem-se às rezas para encontrar e rever amigos e parentes e passar um tempo juntos. Alguns homens, inclusive levam bebida, a pinga, para beber com os companheiros no terreiro e não dentro da capela ou na casa na qual estará acontecendo a reza. Os dias de santos também são muito importantes e todos os dias de santos são considerados sagrados, portanto os moradores não trabalham nesses dias. Nos feriados oficiais, eles trabalham normalmente, a não ser que seja um feriado religioso, como Nossa Senhora Aparecida. Essa reprodução cultural, as festas, os mitos, os ritos e as religiões possibilitam a coesão social; entretanto, não impedem o aparecimento de conflitos, e é claro, um movimento de transformações sociais. Não são sociedades estáticas, mas sim suscetíveis a mudanças decorrentes de fatores internos e externos da sociedade. Apesar de voltados

para a produção de valores de uso para sua auto reprodução enquanto grupo social ligam-se também ao mercado e incorporam em certa medida valores capitalistas. Seu modo de vida pode ser caracterizado, segundo Diegues de “pequena produção mercantil” (DIEGUES, 1994).

Figura 1: Capela no vale do Gamarra – exterior e interior Essas transformações acontecem também no Vale do Gamarra, onde muitos herdeiros acabaram vendendo suas partes da propriedade para a gente de fora, da cidade grande que começa a chegar à região atraída pelas belezas naturais surpreendentes do local com água pura e distante do modo de vida ocidental das grandes cidades. Por outro lado, a população local mais jovem também se vê atraída pelas possibilidades da cidade, escola para as crianças, várias possibilidades de trabalho e o conforto que esse novo modo de vida proporciona aos moradores, como a luz elétrica, transporte, hospitais entre outros. Observando tantas peculiaridades, seria pertinente enquadrar essa população ao que alguns autores denominam de sociedades tradicionais em regiões de São Paulo e também parte de Minas Gerais, como Caipiras. A denominação de tradicional é amplamente discutida e lançarei mão da definição que pensa essa sociedade como um grupo que isoladamente reproduz formas peculiares de vida. As sociedades tradicionais: grupos humanos diferenciados sob o ponto de vista cultural que reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a natureza. Essa noção refere-se tanto aos povos indígenas quanto a seguimentos da população nacional, que desenvolveram modos particulares de existência adaptados a nichos ecológicos específicos.” (DIEGUES; ARRUDA, 2000: p. 27).

Essa terminologia engloba a população rural sob as modalidades étnicas e culturais da região de São Paulo, como foi salientado por Antônio Candido e também em Minas Gerais. Partindo da observação dessa população na zona rural de Baependi, foi possível encontrar diversas semelhanças àquelas observadas por Antônio Candido em sua pesquisa. Também corresponde à cultura rústica caipira conforme definida por Darcy Ribeiro (2006). Entretanto, não é possível pensá-las como populações estáticas, que não estão sujeitas à mudança e às transformações sociais. Pois as populações descritas pelos autores acima, passaram por amplos processos de interação cultural e talvez, segundo Antônio Cândido, os caipiras até deixaram de existir enquanto tal, na região estudada por ele; Porém essa população rural do Vale do Gamarra em Baependi, ainda mantém características muito marcantes da cultura caipira, apesar de não serem idênticas às estudadas anteriormente, também não estão isentas de influências. O habitante dessa região é um caipira que interage com as populações que vêm da cidade, comercializa os seus produtos, faz compras nos mercados e por vezes procura emprego no campo ou mesmo na cidade. Sua reprodução sociocultural não está condicionada ao lucro, mas possuem de fato pequenos valores capitalistas presentes em seu cotidiano e um vínculo com o mercado. Não podem mais ser considerados, hoje em dia, uma sociedade totalmente isolada, mas apesar de inserida num contato mais amplo de sociabilidade, suas interações ainda não produzem grandes mudanças. Nestas novas relações campo-cidade, a proximidade que começa acontecer entre essas duas populações, o intercâmbio cultural, lança novos valores a essa população, assim, alguns jovens começam almejar prosseguir os estudos e também vão para a cidade com intuito de conseguir emprego. Portanto, a educação, as escolas, a busca por serviços e hospitais são os fatores que mais levam famílias para fora do Vale. Quando essas pessoas possuem terra, elas continuam com um vínculo ao local. Caso vendam suas propriedades ou se morassem em casas e propriedades alheias, esse vínculo se enfraqueceria e muitos só voltam para breves visitas. A dificuldade do acesso ao local teve uma substancial transformação nos últimos quinze anos. A estrada era muito precária, a circulação muito difícil e o ir e vir era tarefa árdua. Raramente chegavam visitantes à região e os moradores não possuíam meios de transportes motorizados, como carros e motos, apenas animais: cavalos, burros, mulas e jumentos. Hoje são duas as estradas conservadas e muitos moradores têm motos ou

carros. E ainda muitos sítios tiveram recentemente a abertura de estradas, dando acesso às suas propriedades. A população mais velha que vive no Vale desde a sua infância, tendo vivenciado um estilo de vida por décadas, não sente necessidade a essa altura de suas vidas de imprimir significativas transformações ao seu tradicional modo de vida. Não se interessa pela luz elétrica e pelos aparelhos que poderão ser utilizados a partir dela. Se para alguns as inovações não atraem, muitos estão satisfeitos com a possibilidade em desfrutar alguns dos confortos que vem da cidade. Enfim, é uma região onde o fluxo migratório para fora está vinculada principalmente à dificuldade de acesso a recursos básicos, como educação e saúde e uma estagnação da atividade econômica predominante, a pecuária leiteira e a agricultura. Assim a busca por empregos mais rentáveis associada a serviços básicos oferecidos nas cidades são as principais causas de êxodo rural. Fato comum em diversas áreas rurais brasileiras, uma vez que os rendimentos das atividades urbanas são superiores aos vinculados com a agropecuária. Esse fluxo algumas vezes concentra-se na cidade de Baependi e por outras, leva os camponeses caipiras para cidades do Vale do Paraíba. Segundo Graziano da Silva (2002), a falta de infraestrutura social básica nessas áreas rurais vinculadas à agropecuária é responsável pelo êxodo dessas populações que muitas vezes fixam-se brevemente nas pequenas cidades para então se dirigir para os grandes centros. O que de fato é uma realidade nessa região. 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Essa pesquisa esteve focada no caipira do sul de Minas Gerais, na região rural de Baependi, no século XXI e suas relações socioculturais entretanto compreendendo que são muitos os atores que tem provocado transformações. A comunidade caipira apresenta peculiaridades, são populações consideradas tradicionais, que estão em constante transformação, não são estáticas e sim, sujeitas às influências externas e internas, podendo reinventar seu modo de vida em uma reprodução social, que mesmo estando em processo de transformação, estão muito longe de se enquadrar em uma sociedade urbana-industrial. Por outro lado, não são também os caipiras típicos descritos por Antônio Candido. Entretanto, podemos observar que mesmo com todas as transformações em curso ainda mantém certas

características que os marcam como uma população peculiar que se reinventa num novo contexto, mas mantendo a conexão com a lógica da vida caipira.

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