1

FACEBOOK E ALGORITMOS: UM ESTUDO DE CASO DO USO DO FACEBOOK COMO SUPORTE PEDAGÓGICO NA DISCIPLINA DE ALGORITMOS E TÉCNICAS DE PROGRAMAÇÃO DO CURSO DE SISTEMAS DE INFORMAÇÃO EM IES FACEBOOK AND ALGORITHMS: A CASE STUDY OF THE USE OF FACEBOOK AS A PEDAGOGICAL SUPPORT TO THE DISCIPLINE ALGORITHMS AND PROGRAMMING TECHNIQUES IN INFORMATION SYSTEMS COURSE IN A HEI Fabio Neves de MIRANDA1

1

Faculdade de Minas, Faminas-BH, Professor da disciplina de Algoritmos e Linguagens de Programação do curso de Sistemas de Informação e-mail: [email protected]

Resumo O presente trabalho teve como finalidade mostrar de que forma a rede social facebook pode contribuir para processo de aprendizagem dos discentes da disciplina de algoritmos e linguagens de programação proposta pelos cursos de Sistemas da Informação na modalidade presencial em uma Instituição de Ensino Superior. Para atingir este fim, foi utilizado como metodologia a pesquisa qualitativa usando como instrumentos metodológicos a pesquisa bibliográfica, estudo de caso e a observação desde a implantação e criação da disciplina na rede social facebook até o final da primeira etapa da disciplina em questão. O resultado que se obteve deste trabalho demostraram a satisfação dos alunos com o fato do professor usar esta ferramenta de interação da geração Y para envolver e interagir com os alunos, entendendo que a disciplina de algoritmos e linguagens de programação é base para posteriores disciplinas do curso de Sistemas de Informação. Este trabalho no futuro poderá servir de apoio a professores, que preocupados com o aspecto colaborativo da web 2.0 atual, exercerão de forma eficaz o ensino da disciplina de algoritmos e linguagens de programação, além de vislumbrar possibilidades pedagógicas em diversas disciplinas que requer maior apoio sistemático em uma Instituição de Ensino Superior (IES).

Palavras-chave: Redes Sociais. Algoritmos. Linguagem de Programação.Colaboração.

Abstract This study aims at showing how the social network Facebook may contribute to the learning process of students enrolled in the Algorithms and Programming Languages discipline from the Information Systems on-site courses offered by a Higher Education Institution. Thus, the qualitative research was used as methodology which included the following tools: literature research, case study and observation that lasted from the creation and deployment of the discipline in Facebook through the end of the first stage of the given discipline. The result obtained in this work displayed the students' satisfaction with the teacher's use of Facebook, which is a typical interaction tool of the Y generation, to interact and get the students engaged; understanding that the subject Algorithms and Programming Languages is the basis for subsequent courses of the program Information Systems. This work may serve ultimately as a support for teachers who, worried about the collaborative aspect of the current Web 2.0, will be able to teach the discipline of Algorithms and Programming Languages effectively besides being able to picture pedagogic possibilities in several disciplines that require more systematic support in a Higher Education Institution (HEI). Keywords:Social Networks. Algorithms.Programming Language.Collaboration.

2

1 Introdução As novas maneiras de comunicar e se relacionar têm levado os educadores a repensarem seus processos de ensino. As redes sociais tornam-se uma realidade do contexto chamado web 2.0. Há algum tempo as “tecnologias interativas” tinham ênfase no cenário tecnológico, porém atualmente as atenções tem se voltado para os chamados “sistemas colaborativos”, “cultura participativa”. O termo Web 2.0 que foi cunhado inicialmente por Tim O’Reilly em 2005, e que significa uma web interativa, descrita como: Web 2.0 é a revolução de negócios na indústria de informática causada pela mudança para a Internet como plataforma, e uma tentativa de entender as regras para o sucesso nessa nova plataforma. A principal entre essas regras é a seguinte: Construa aplicações que tenha os efeitos de rede para obter melhor aproveitamento das pessoas que usá-los. (Isto é o que eu tenho chamado em outro lugar de "aproveitamento da inteligência coletiva"). (O'REILLY, 2005, tradução nossa)1

A Web 2.0 é a mudança para uma Internet como plataforma (arquitetura em que as aplicações de software são construídas e usadas sobre a Web) e o entendimento da filosofia subjacente de modo a atingir tal objetivo. Entre outros, um dos objetivos mais importantes passam pelo desenvolvimento de aplicativos que aproveitem os efeitos da rede para se tornarem melhores quanto mais forem usados pelas pessoas, beneficiando a inteligência coletiva (O’Reilly&Battelle, 2009). As tecnologias Web 2.0 (podcasts, wikis, redes sociais e mundos virtuais) fazem parte do dia-a-dia dos nossos alunos e, a pouco a pouco, os professores procuram fortalecer a relação pedagógica entre ambos através de tecnologias e ferramentas Web que favoreçam a interação com conteúdos e com os intervenientes dos processos de aprendizagem. O objetivo deste estudo e da investigação é apresentar inicialmente os fundamentos das Redes Sociais, dedicando especial atenção à rede social Face book. Seguidamente, será descrito uma experiência pedagógica mediada por esta rede social com 30 alunos de uma turma de 1º período do curso de Sistemas de Informação na disciplina de Algoritmos e Linguagens de Programação e suas contribuições no processo de ensino-aprendizagem na disciplina em questão de uma IES. Por fim, são tecidas algumas considerações relevantes, nomeadamente para

1

“Web 2.0 is the business revolution in the computer industry caused by the move to the internet as platform, and an attempt to understand the rules for success on that new platform. Chief among those rules is this: Build applications that harness network effects to get better the more people use them. (This is what I've elsewhere called "harnessing collective intelligence.")” (O'REILLY, 2005)

3

aqueles que procuram novas modalidades de utilização das redes sociais em contextos educativos em Instituições de Ensino Superior (IES). 2 Redes Sociais As redes sociais são formadas pelas pessoas e seus relacionamentos. Alguns relacionamentos são duradouros e fortes, assim como relacionamentos em membros da família ou de amizade, outros são passageiros e desaparecem com o tempo. As redes sociais na web são ambientes virtuais onde os participantes interagem com outras pessoas e criam redes baseadas em algum tipo de relacionamento. De acordo com Nielsen (NIELSEN, 2009), o uso das redes sociais e dos blogs já representa a quarta atividade mais realizada na web, e já atinge 66,8% da população mundial. O tempo gasto nos sites de relacionamento cresce três vezes mais do que o crescimento do tempo total gasto na internet, o que indica a tendência ainda maior do crescimento das redes. Como afirma Fuks (2011), as redes sociais atuam como auxílio na resolução de problemas do “mundo real” tais como: a) armazenar e difundir o conhecimento entre pessoas que vivem situações semelhantes, mas vivem ou trabalham em locais distintos; b) reproduzir e gerar conexões entre pessoas e organizações; conectar pessoas ainda que desconhecidas no presencial, para estabelecer parceria e colaboração; dentre outros aspectos fundamentais na geração Y. Estudos importantes realizados no âmbito brasileiro têm levantado a possibilidade do uso das redes sociais na educação; a utilização de Redes Sociais na Internet na educação (na aprendizagem), entre os principais estão Alves, 2008; Costa, 2008; Hardagh, 2009.Teorias importantes na era digital têm sido propostas como o conectivismo de Siemens (2012) que possui alguns princípios norteadores como: a) aprendizagem e conhecimento baseiam-se na diversidade de opiniões e posições; b) aprendizagem é a capacidade de conectar nós específicos ou fontes de informações; c) aprendizagem pode residir em dispositivos não humanos; d) cultivar e manter conexões são necessários para a aprendizagem contínua, dentre outros aspectos. Para Lima (2011), as redes sociais Virtuais são grupos ou espaços específicos na Internet, que permitem partilhar dados e informações, sendo estas de caráter geral ou específico das mais diversas formas (textos, arquivos, imagens, fotos, vídeos, etc).

4

Formando grupos que possuem afinidades e que encontram nas Redes Sociais Virtuais espaço para debates e discussões. Assumiu-se neste trabalho que o conceito de Rede Social é uma estrutura organizada de indivíduos, grupos de indivíduos, organizações conectadas por laços fortes ou fracos compartilhando um ou mais objetivos comuns. Existem diversas plataformas para este fim, mas o foco em questão será o facebook.

2.1 Facebook Uma pergunta importante se faz necessária: Por que usar o facebook na Educação? Bozarth (2010) afirma de maneira apropriada os motivos: facilita a conversação; ajuda a diminuir as relações hierárquicas de poder entre professor e alunos; melhora o “nível” de relacionamento; suporta a interação entre alunos, rompendo com o discurso limitado tipo aluno-professor. Bozarth (2010) ressalta ainda que na cibercultura atual alguns aspectos educacionais sejam importantes como: noção de conhecimento como uma construção; aprendizagem inteligência

participativa; coletiva

que

integração favorece

o

das

tecnologias

fluxo

digitais

comunicacional

ao por

currículo; meio

do

compartilhamento das mídias sociais, ou seja, o que está em jogo é mesmo o fluxo de signos; a interação e a conectividade entre pessoas e conteúdos. “Dar às pessoas o poder de compartilhar e tornar o mundo mais aberto e conectado2” é a missão desta plataforma (Facebook, tradução nossa), conforme o próprio criador Mark Zuckerberg descreve na página do Facebook destinada a apresentar o produto à comunidade. No lançamento desta plataforma ela foi restrita aos alunos da Universidade de Harvard, sendo que rapidamente ganhou dimensão mundial, chegando hoje a cerca de 880 milhões de usuários. O Facebook tornou-se não só um canal de comunicação e um destino para pessoas interessadas em procurar, partilhar ou aprender sobre determinado assunto, mas também, um meio de oportunidades para o ensino superior, designadamente: é uma ferramenta popular; fácil de usar; não necessita de desenvolvimento interno ou de aquisição de software; é útil para alunos, professores e funcionários; permite a integração de diversos recursos no Facebook (RSS feeds, blogs, twitter, etc.); fornece

2

“Facebook's mission is to give people the power to share and make the world more open and connected.”

5

alternativas de acesso a diferentes serviços; permite o controlo de privacidade (podemos controlar a informação que queremos que os outros vejam sobre nós); e, acima de tudo, não a podemos ignorar (Kelly, 2007). Em face desta realidade, a seguir procuramos utilizar o facebook como uma forma de interagir e promover situações de aprendizado em uma disciplina considerada base para o curso de Sistema de Informação: Algoritmos e Linguagens de Programação da turma do 1º. Período de 2012.

3 Facebook e a disciplina de Algoritmos e Linguagens de Programação A disciplina de Algoritmos e Linguagens de Programação faz parte da grade curricular dos cursos de Sistemas de Informação proposta pelo MEC e tem como finalidade apresentar ao aluno a lógica de programação, suas estruturas, suas formas de representação dessa lógica (algoritmos) e o uso aplicado destes algoritmos por meio da linguagem de programação C. Um algoritmo pode ser visto como uma sequência de ações executáveis para a obtenção de uma solução para determinado tipo de problema. Os programas são formulações concretas de algoritmos abstratos, baseado em representações e estruturas específicas de dados. Em outras palavras, programas representam uma classe especial de algoritmos capazes de serem seguidos por computadores (ZIVIANE, 2011). Essa disciplina muitas vezes é encarada pelos estudantes como uma barreira intransponível principalmente nos cursos de computação e algumas engenharias, dentre outros. A dificuldade em assimilar os conceitos envolvidos em tais disciplinas é facilmente observável especialmente nos primeiros semestres em que são introduzidas nos cursos de graduação. Com o avanço do curso, para muitos as deficiências de aprendizagem nos conceitos básicos de programação limitam o nível de abstração e amadurecimento conceitual dos conteúdos subsequentes, dificultando ainda mais a aprendizagem e impulsionando altos índices de evasão e reprovação.

4 Estudo de caso do Facebook em Algoritmos e Linguagens de Programação

6

Os discentes utilizados neste trabalho são os alunos do 1º. período do curso de Sistemas de Informação. É comum no 1º. período o aluno ter dificuldades para se engajar no âmbito do curso superior. Como a disciplina de Algoritmos e Linguagens de Programação requer grande esforço por parte do aluno dentro e fora de sala aula, o facebook veio como um instrumento eficaz que os alunos já usam no seu dia a dia. Apesar de todos os esforços do docente em impulsionar o uso da plataforma, este apenas registrava um incremento de acessos que antecediam momentos de avaliação. Portanto, se os alunos já estão motivados para o uso de redes sociais e utilizam diariamente podendo ser um veículo de aprendizagem colaborativa e informal, por que não usá-las em contexto educativo? Neste sentido, foi proposto explorar e identificar o potencial educativo da rede social Facebook, através de aplicações, recursos e atividades que pudessem suportar o processo de ensino/aprendizagem, com a finalidade de obter uma participação mais proativa, e interativa dos alunos. Este estudo de caso foi implementado com os discentes de uma turma de 1º período do curso de Sistemas de Informação da Instituição de Ensino Superior em questão. A técnica de coleta de dados usada foi a sondagem simples e a recolhimento de informação baseada na observação.

4.1 Interações iniciais no Facebook A experiência pedagógica teve início Fevereiro de 2012 com a criação do um grupo chamado “SI-PERIODO-01” dentro do Facebook pelo professor administrador do grupo. Logo após, o professor administrador do grupo orientou o representante de turma para aos poucos inserir outros colegas que eles já conheciam na sala dentro do grupo. Esta ação foi intencional pelo professor, assim o representante de turma poderia atuar também como um elo entre o professor e a turma em questão. Logo no início da criação do grupo e das primeiras interações, o representante da turma (figura 1) busca na internet o livro da disciplina de Algoritmos e Linguagens de Programação que consta no plano de ensino conforme orientação do professor em sala de aula. Compartilha com os outros colegas da turma que a edição da biblioteca é mais atual que a edição da internet. Isso demostra a preocupação do aluno em ir até a biblioteca e também compartilhar com os outros colegas sua preocupação com a edição do livro que servirá de base para os estudos da disciplina.

7

Figura 1 – interação do representante sobre o livro

referência

Para melhor orientação quanto aos conteúdos da disciplina lecionada, o professor da disciplina emite um comunicado para que os alunos possam continuar seus estudos fora da sala de aula, ou seja, por meio de Ambientes Virtuais de Aprendizagem conforme Figura 2. Figura 2 – primeira comunicação do professor

O professor volta a incentivar o representante da turma para adicionar mais colegas para obter maior interação por parte dos alunos e professor na disciplina. No primeiro momento havia poucos alunos. O universo previsto observado é de 30 alunos para esta pesquisa. Na figura 3observa-se 34 alunos adicionados, porém ao final deste processo, haverá mais de 80 alunos cadastrados no grupo em questão. Há uma intensa participação do representante da turma para a participação dos que ainda não tinham entrado no grupo (figura4).

8

Figura 3 – mais de 30 membros já adicionados no grupo para

interação

Figura 4 – representante da turma incentivando os

colegas

4.2 Dúvidas iniciais compartilhadas entre os discentes e o docente A disciplina de algoritmos requer por parte dos alunos intensa prática fora de sala de aula. Observa-se que a dúvida do aluno (Figura 5.1 e 5.2) é compartilhada com outros discentes juntamente com o professor passam a interagir e a participar ativamente na dúvida do aluno. Ao final, o aluno tira eficazmente sua dúvida podendo prosseguir no processo de aprendizagem da disciplina.

9

Figura 5.1 – dúvidas iniciais do discente determinado

exercício

Figura 5.2 – dúvida respondida ao final das

contribuições

4.3 Aumento da intensidade de indagações pelos discentes À medida que a turma interage com outros discentes e o professor, a complexidade das perguntas aumenta. O aluno neste caso (Figura 6) resolve não somente perguntar, mas colar o conteúdo do algoritmo que ele está tentando resolver para todos dentro do facebook, facilitando ainda mais o compartilhamento de informações por parte de todos. Após várias interações, o aluno também sana sua dúvida ficando satisfeito em continuar seu processo de aprendizagem.

10

Figura 6 – aluno “cola” o algoritmo para compartilhamento de

informações

O outro aluno em vez de “colar” o conteúdo diretamente no campo para inserir textos no Facebook, ele resolve copiar literalmente a tela (com a tecla printscreen) e colar dentro do Facebook para outros colegas lhe ajudarem (Figura 7). Mais uma vez, o compartilhamento de informações aconteceu e o aluno tirou sua dúvida de forma satisfatória. Figura 7 – aluno “cola” a tela para tirar

dúvidas

11

Alguns alunos além de interagirem dentro do Facebook procuram formar os chamados grupos de estudos (Figura 8). O aluno compartilha sua excelente ideia e o os outros discentes discutem e ao final omitem a opinião dizendo da grande importância que é um grupo de estudo para a disciplina em questão. Figura 8 – proposta de grupos de estudos para melhor aprendizagem

Importante salientar aqui este outro caso onde o aluno compartilha o fato de que terminou de fazer um determinado exercício, porém ficou com uma dúvida e expõe sua dúvida aos demais discentes. Neste caso houve 20 comentários (figura 9), ou seja, uma intensa interação e a dúvida compartilhada e sanada de forma altamente interativa. Figura 9 – 20 (vinte) interações por parte dos discentes

12

Constantemente o professor, como mediador do aprendizado, procura comunicar aos discentes informações importantes durante a disciplina tornando ainda mais interativo a relação do aluno com a disciplina (Figura 10).

Figura 10– comunicações ao longo da disciplina pelo

professor O monitor (Figura 11) da disciplina de Algoritmos e Linguagens de Programação também interage para ajudar os alunos na disciplina. O monitor é ativo, participativo e contribui efetivamente para o entendimento do conteúdo da disciplina. Figura 11 – aluno e monitor interagindo na disciplina

13

Percebe-se nitidamente uma intensa interação e motivação por parte do docente e dos discentes em uma disciplina que requer intensa busca e muita disciplina. 5 Percepção final dos discentes no uso do facebook na disciplina Ao final da primeira etapa da disciplina, o professor procurou obter por parte dos alunos suas opiniões sobre a eficácia do facebook na disciplina de algoritmos e linguagem de programação. A pergunta foi feita da seguinte forma: de que forma o Facebook tem contribuído para o aprendizado dos discentes de Algoritmos e Linguagens de Programação? Eis as respostas dos alunos conforme figuras 12. É nitidamente perceptível a opinião dos alunos. Os comentários ressaltam aspectos colaborativos, troca de conhecimentos e experiências. Outros afirmam aspectos diferentes como: Aluno 1: “o facebook tem colaborado para tirar dúvidas de forma rápida e todos têm contribuído para o crescimento geral de nosso desenvolvimento e aprendizado de nosso conteúdo. Obrigado Professor” Aluno 2: E como ajuda, entro no facebook ultimamente mais para estudar, do que qualquer outra coisa... Vendo a galera interagindo sobre as matérias. “Aqui acabamos ajudando uns aos outros e tirando muitas dúvidas, ou seja, compartilhamos e curtimos conhecimentos...” Aluno 3: “O uso do Facebook tem ajudado a orientar e compartilhar informações e dicas sobre a matéria, além de contribuir para interação entre professor e aluno”. Figura 12 – opiniões finais sobre a eficácia do facebook

14

6 Conclusão Os discentes na geração Y, já adotaram estilos de vida mais flexíveis, interativos e atemporais, servindo-se das tecnologias Web 2.0 para participar, partilhar e comunicar. As redes sociais são ambientes sociais e digitais, com conectividade e ubiquidade, baseadas na procura de aprendizagem, levando os educadores a ampliar a visão de pedagogia para que os alunos sejam participantes ativos e coprodutores de conteúdos, de modo que a aprendizagem seja um processo participativo, social, de apoiado em objetivos e necessidades individuais (MacLoughlinet al., 2007). Numa primeira análise, os resultados parciais deste estudo permitiram evidenciar que os alunos se adaptam melhor às tecnologias quando vão ao encontro dos seus interesses e necessidades pessoais. Ou seja, a utilização prévia do Facebook num ambiente de aprendizagem informal contribuiu para que esse ambiente fosse gradualmente organizando-se como um espaço de integração, comunicação e colaboração entre todos, conforme demostrado em vários momentos neste trabalho, observando-se de fato como um ambiente propício à aprendizagem formal, cooperativa e colaborativa e altamente interativa na sociedade em rede que vivemos. No cenário atual da cibercultura torna-se patente que o Facebook pode ser utilizado como um recurso pedagógico potencializador importante para promover a interação, a colaboração e as competências tecnológicas em Instituições de Ensino Superior (IES), em cursos de Sistemas de Informação como também em outros cursos de nível superior. Por se tratar de um campo vasto e novo, o papel do facebook do ponto de vista educacional já é uma realidade, principalmente, com o lançamento recente do facebook for educators gerenciado pelos doutores Linda Fogg Phillips, Derek Baird, MA, & BJ Fogg, Ph.D (FACEBOOK, 2012). Siemens (2012) propõe uma nova abordagem pedagógica colaborativa chamada de Conectivismoque tem sido pesquisada e também aceita como uma espécie de teoria de aprendizagem da era digital. Para futuros trabalhos, pretende-se abordar aspectos desta suposta teoria aplicada à disciplina em questão.

15

Referências

BOZARTH, Jane. Social Media for Trainers.John Wiley & Sons, 2010. FACEBOOK, for Educators.Disponível em: http://facebookforeducators.org/. Acesso em: 09 jun 2012. FUKS, Hugo. Sistemas Colaborativos. São Paulo: Elsevier , 2012. KELLY, B. Introduction To Facebook: Opportunities and Challenges For The Institution. Disponível em: http://www.ukoln.ac.uk/web-focus/events/meetings/bath-facebook-2007-08/. Acesso em: 21 de Mar 2012. KENSKI, V. M. Tecnologias e ensino presencial e a distância. Campinas: Série Prática Pedagógica, 2003. LIMA, A. B. Social networks: uma nova onda? Disponível em: Acesso em: 04 mar. 2012. SIEMENS, G. Connectivism: A Learning Theory for the Digital Age.elearnspace. Dezembro, 2004.Disponível em: . Acesso em: 11 jun 2012. SIEMENS, G..Learning and knowing in networks: Changing roles for educators and designers. Paper 105: University of Georgia IT Forum, 2008. MCLOUGHLIN, C., & LEE, M. J. (2007).Social software and participatory learning: Pedagogical choices with technology affordances in the Web 2.0 era. Ascilite . Singapore. NIELSEN. Global Facesand Network Places. Março de 2009. Disponível em: . Acessoem: 04 mar. 2012. O'REILLY, T. (2005).What Is Web 2.0. Design Patterns and Business Models for the Next Generation of Software. de O'Reilly Network: Disponívelem: http://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html. Acessoem: 21mar 2012. ZIVIANE, Nivio. Projeto de algoritmos.São Paulo: Cengage Learning, 2011.

16

O MODELO FLEURIET DE ANÁLISE DO CAPITAL DE GIRO APLICADO EM ENTIDADES DESPORTIVAS: COMO ERA A SITUAÇÃO FINANCEIRA DOS MAIORES CLUBES DE FUTEBOL BRASILEIROS NOS ANOS DE 2009 E 2010? THE FLEURIET MODEL OF WORKING CAPITAL ANALYSIS APPLIED IN SPORTS ENTITIES: WHICH WAS THE FINANCIAL SITUATION OF THE GREATEST BRAZILIAN SOCCER TEAMS IN THE YEARS 2009 AND 2010? Renato Thiago da SILVA1 Cristiane Margareth RIBEIRO2 Bárbara Angélica Pereira SILVA3 1

Faculdade de Minas, Faminas-BH, Professor do curso de Graduação em Ciências Contábeis. Email: [email protected] 2

Faculdade de Minas, Faminas-BH, acadêmica do Programa de Pós Graduação. E-mail: Cristiane Ribeiro [email protected] 3 Bacharel em Ciências Contábeis pela PUC Minas. E-mail: [email protected]

Resumo O artigo se propõe a analisar a situação financeira dos maiores clubes de futebol brasileiros, nos anos de 2009 e 2010, de acordo com o Modelo Fleuriet do capital de giro. A pesquisa, de cunho qualitativo e natureza descritiva, utilizou como procedimentos metodológicos a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental. Na pesquisa bibliográfica, buscou-se caracterizar a metodologia proposta pelo modelo Fleuriet de análise dinâmica do capital de giro, sendo apresentados os indicadores de análise do modelo, que são a necessidade de capital de giro, o capital de giro e o saldo de tesouraria. Na pesquisa documental foram coletadas e analisadas as demonstrações financeiras dos 18 clubes brasileiros de maior faturamento em 2010. Os resultados da pesquisa mostraram que, de acordo com o Modelo Fleuriet, em 2009, 15 clubes (83% do total) possuíam uma situação financeira considerada “muito ruim” e três clubes (17% do total) uma situação financeira “Péssima”. Já em 2010, 17 entidades (94% do total) apresentaram uma situação financeira “muito ruim” e apenas uma apresentou uma situação de “alto risco”. Concluí-se que as situações financeiras dos clubes em ambos os anos são consideradas insatisfatórias e indicativas de um grande risco de insolvência. Palavras-chave: Modelo Fleuriet. Capital de giro. Necessidade de capital de giro. Saldo de tesouraria. Situação financeira. Abstract The article proposes to analyze the financial situation of the greatest Brazilian football teams, in the years 2009 and 2010, according to the Fleuriet Model of economic-financial analysis. The research, of qualitative and descriptive nature, used as methodological procedures the bibliographic research and the documental research. In the bibliographic research, it was sought to describe the methodology proposed by the Fleuriet Model of dynamic analysis of working capital, being presented the analysis indicators of that model, which are the working capital necessity, working capital and the cash balance. In the documental research were collected and analyzed the financial statements of the 18 Brazilian teams that had the highest billing in 2010. The research results showed that, according to the Fleuriet Model, in 2009, 15 teams (83% of total) had a financial situation considered “bad” and three teams (17% of total) a financial situation considered “very bad”. In 2010, 17 entities (94% of total) showed a financial situation “bad” and only one showed a financial situation of “high risk”. It was concluded that the financial situations showed by the teams both years are considered unsatisfactory and indicative of a big risk of insolvency. Keywords: Fleuriet Model. Working capital. Working capital necessity. Cash balance. Financial Status.

17

1 Introdução Nos últimos anos, o mundo dos negócios tem sofrido muitas mudanças, o que vem gerando a evolução dos modelos de gestão das empresas. Acontecimentos como a crise financeira de 2008 e a recente crise Européia, têm forçado os gestores das organizações a assumirem uma postura mais proativa na gestão dos negócios, lançando mão cada vez mais de ferramentas de gestão sofisticadas objetivando a continuidade dos negócios. Nesse cenário, um processo de tomada de decisão estabelecido nas empresas de forma estruturada e com embasamento em dados contábeis é fundamental para o sucesso do empreendimento. Nesse contexto, o administrador financeiro passou a ser mais exigido, devendo ser cada vez mais dotado de uma maior de atualização e especialização no que tange às ferramentas de gestão financeira. Para auxiliar tais gestores financeiros em seus processos de tomada de decisão, surgiram importantes ferramentas e métodos de análise, dentre as quais se pode destacar o Modelo Dinâmico de análise econômico-financeira, também conhecido como Modelo Fleuriet. Segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) este modelo se diferencia dos métodos tradicionais de análise das demonstrações financeiras por considerar a dinâmica operacional com relação à questão do capital de giro. Para os autores, por meio da aplicação desse modelo, pode-se identificar como o capital de giro está sendo empregado pelos gestores financeiros, sendo possível diagnosticar a situação financeira da empresa e gerar subsídios para a tomada de decisões financeiras preventivas e corretivas, com o objetivo de buscar a continuidade e o sucesso do empreendimento. Importantes estudos já foram desenvolvidos sobre a aplicação prática do Modelo Fleuriet, como a pesquisa desenvolvida por Santos (2005), que aplicou o modelo em uma empresa agroindustrial e a pesquisa desenvolvida por Costa e Garcias (2009), que aplicaram o modelo nas indústrias brasileiras de papel e celulose. Os grandes desafios na gestão financeira das empresas também são enfrentados pelos gestores dos clubes brasileiros de futebol. Nos últimos anos são recorrentes as crises financeiras nessas entidades, o que faz com que os gestores dediquem bastante tempo e recursos com a gestão do capital de giro dos clubes de futebol, buscando a continuidade e perenidades destas instituições. No Brasil tais entidades são em sua maioria constituídas sob a forma de associações civis sem fins lucrativos, o que limita a capacidade de capitalização dessas empresas, pois não existem sócios, e torna ainda mais importante uma adequada gestão do capital de giro.

18

Assim, diante da importância da aplicação de ferramentas de análise das demonstrações contábeis para auxiliar a gestão financeira das empresas num contexto de crescentes desafios aos clubes de futebol, o presente artigo teve como problema de pesquisa a seguinte questão: Qual a situação financeira dos maiores clubes de futebol brasileiros nos anos de 2009 e 2010 de acordo com o Modelo Fleuriet de análise econômico-financeira? Para alcançar uma resposta a este questionamento, o artigo teve como objetivos: Conceituar o Modelo Fleuriet de Análise do Capital de Giro; Aplicar o Modelo Fleuriet nas demonstrações financeiras dos anos de 2009 e 2010 dos maiores clubes de futebol brasileiros e analisar como evoluiu a situação financeira e o processo de gestão do capital de giro dos referidos clubes nos anos analisados. Do ponto de vista metodológico, quanto à abordagem do problema de pesquisa, o estudo é de cunho qualitativo. Godoy (1995) afirma que na pesquisa qualitativa, o pesquisador busca entender o fenômeno em estudo a partir da perspectiva das pessoas nele envolvidas, levando se em consideração todos os pontos de vista relevantes. Quanto aos objetivos, a pesquisa foi descritiva. Gil (2002) afirma que as pesquisas descritivas têm como objetivo a descrição das características de determinada população ou fenômeno, ou então, a existência de relações entre variáveis. No que tange aos procedimentos de coleta de dados, foram utilizadas a pesquisa bibliográfica e a pesquisa documental. Na pesquisa bibliográfica, segundo Vergara (2009), a coleta dos dados é feita na literatura, que direta ou indiretamente, trata do assunto pesquisado, como livros, artigos, dentre outros. Já a pesquisa documental, segundo Godoy (1995), utiliza-se de documentos que constituem uma rica fonte de dados. Assim, a análise documental do presente estudo foi baseada nas demonstrações financeiras dos anos de 2009 e 2010 dos clubes de futebol pesquisados. A população ou universo da pesquisa, segundo Vergara (2009), se refere ao conjunto de elementos (empresas) que possuem as características que serão objetos de estudo. Por isso, no presente projeto de pesquisa, a população são todos os clubes de futebol brasileiros. Vergara (2009) conceitua amostra como a parte da população que será estudada. Portanto, no caso do presente estudo, a população foram os 18 clubes de futebol brasileiros com maior faturamento em 2010, que publicaram em sues sites oficiais suas demonstrações financeiras dos anos de 2009 e 2010, conforme descrito no quadro abaixo:

19

Quadro 1 – Clubes de Futebol componentes da amostra da pesquisa Nro Clube / Estado

Nro

Clube

1

Atlético Mineiro – MG

10

Goiás - GO

2

Atlético Paranaense – PR

11

Grêmio - RS

3

Botafogo – RJ

12

Internacional – RS

4

Corinthians – SP

13

Palmeiras – SP

5

Coritiba - PR

14

Portuguesa de Desportos – SP

6

Cruzeiro – MG

15

Santos – SP

7

Figueirense – SC

16

São Paulo – SP

8

Flamengo – RJ

17

Vasco da Gama - RJ

9

Fluminense – RJ

18

Vitória - BA

Fonte: Elaborado pelos autores.

A amostra da pesquisa é não probabilística, escolhida por tipicidade. Segundo Vergara (2009), na amostra não probabilística por tipicidade são selecionados os elementos que o pesquisador julgue serem relevantes e representativos do universo-alvo. Assim, partiuse o pré-suposto de que os 18 clubes de maior faturamento em 2010 representem adequadamente o universo da pesquisa (clubes de futebol brasileiros). 2 Referencial Teórico

2.1 O Modelo Fleuriet de Análise Financeira Dinâmica Na década de 70, a Fundação Dom Cabral trouxe para o Brasil, o professor Michael Fleuriet com o intuito de desenvolver métodos e sistemas gerenciais apropriados ao ambiente brasileiro. Fleuriet conduziu um grupo de trabalho para desenvolvimento de um método de análise da dinâmica financeira das empresas, mais coerente com a realidade operacional brasileira. A abordagem permitiria a tomada rápida de decisões e mudaria o enfoque da análise contábil tradicional, privilegiando uma visão menos estática da empresa. Nesse sentido foi criado um novo método de análise, orçamento e planejamento financeiro, implantado com sucesso em várias organizações, conhecido como Modelo Fleuriet. Para desenvolver e aplicar o modelo Fleuriet, é necessário reclassificar as contas do Balanço Patrimonial. Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) explicam que essa nova classificação enfatiza os ciclos econômico e financeiro de uma organização, os quais fornecem os dados necessários para se realizar uma análise dinâmica, em oposição à análise estática, realizada normalmente, por meio dos dados fornecidos pela classificação do Balanço Patrimonial Societário. No Balanço patrimonial societário, elaborado em conformidade com as normas

20

estabelecidas pelas leis 6.404/76, 11.638/07 e 11.941/09 e pelo pronunciamento técnico CPC 26 – Apresentação das Demonstrações Contábeis emitido pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), os elementos do ativo circulante caracterizam-se por constituir bens e direitos realizáveis financeiramente, em condições normais, em prazo inferior a um ano. O passivo circulante, por sua vez, expressa obrigações comprometidas em igual período. Os demais ativos e passivos, bem como o Patrimônio líquido representam itens de natureza de prazo mais longo que um ano. Assim, as contas do ativo são dispostas em grau decrescente de liquidez, ao passo que as contas do passivo e patrimônio líquido são apresentadas em ordem decrescente de exigibilidade. Já no modelo Fleuriet, segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), as contas do Ativo e Passivo são consideradas em relação à análise dinâmica da empresa, devendo de acordo com os autores ser classificadas de acordo com seu ciclo. Os autores afirmam que determinadas contas apresentam uma movimentação lenta quando analisadas isoladamente ou em relação ao conjunto de outras contas que podem ser consideradas, em uma análise de curto prazo, como “permanentes ou não cíclicas” (realizável em longo prazo, investimentos, reserva de lucros). Outras estão relacionadas com o ciclo operacional e apresentam um movimento “contínuo e cíclico” (estoques, clientes, fornecedores), e finalmente, existem as contas que não estão diretamente ligadas com a operação, apresentando movimento “descontínuo e errático” (disponível, títulos negociáveis, duplicatas descontadas, etc.). Logo, na concepção de Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) as contas do ativo estão divididas em contas erráticas, que são as contas de curto prazo, não necessariamente renováveis ou ligadas à atividade operacional da empresa, agregadas no grupo Ativo Errático (financeiro). Assaf Neto e Silva (2002) explicam que as contas componentes desse grupo, de natureza errática, variam em função do risco de maior ou menor liquidez que a empresa queira assumir. Também há as contas cíclicas do ativo, que são as contas de curto prazo, renováveis e ligadas à atividade operacional da empresa, denominado

Ativo

Cíclico

(operacional) (FLEURIET;

agrupadas em um grupo KEHDY;

BLANC,

2003).

Complementando esse raciocínio, Assaf Neto e Silva (2002) afirmam que o Ativo Cíclico é composto por valores diretamente influenciados pelo volume de negócios e pelas fases do ciclo operacional. Por fim, de acordo com Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), o modelo Fleuriet propõe a criação de um grupo denominado “Ativo permanente (não cíclico)”, que abriga as contas não cíclicas ou permanentes do ativo, que são aquelas que representam aplicações por prazo

21

superior a um ano. Nesse grupo, segundo Braga e Marques (1995), estão classificadas as contas representantes as aplicações de recursos de longo prazo. No que diz respeito às contas do passivo, Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) explicam que tais contas, no modelo Fleuriet, são divididas em três grupos. O primeiro deles é formado por contas erráticas de curto prazo, não necessariamente renováveis ou ligadas à atividade operacional da empresa, recebendo a denominação de Passivo Errático (financeiro). Assaf Neto e Silva (2002) argumentam que nesse grupo são classificadas as dívidas da empresa com as instituições financeiras e outras obrigações que não possuem vínculo direto com a atividade operacional. O segundo grupo do Passivo é formado pelas contas cíclicas de curto prazo, renováveis e ligadas à atividade operacional da empresa e recebe o nome de Passivo Cíclico (operacional) (ASSAF NETO; SILVA, 2002; FLEURIET; KEHDY; BLANC, 2003).

Por

fim, segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) o terceiro e último grupo do passivo do modelo Fleuriet, é composto pelas contas não cíclicas ou permanentes do passivo (Passivo não circulante e Patrimônio Líquido), recebendo a denominação de Passivo Permanente (não cíclico). Braga e Marques (1995) afirmam que esse grupo abriga as contas representantes das fontes de recursos de longo prazo utilizadas pela empresa no financiamento da sua atividade. Assaf Neto e Silva (2002) argumentam que as contas do passivo permanente representam fontes de financiamento em longo prazo próprias e de terceiros, cuja importância é financiar as necessidades permanentes de recursos. O quadro 2 demonstra a estrutura do Balanço Patrimonial de acordo com o modelo Fleuriet: Quadro 2 – Classificação do Balanço Patrimonial conforme o modelo Fleuriet Ativo Errático (financeiro)

Passivo Errático (financeiro)

Ativo Cíclico (operacional)

Passivo Cíclico (operacional)

Ativo Permanente (não Cíclico)

Passivo Permanente (não Cíclico)

Fonte: Elaborado pelos autores com base em FLEURIET; KEHDY; BLANC, 2003.

A partir da reclassificação proposta pelo modelo Fleuriet e demonstrada no quadro acima, é possível realizar o cálculo de três indicadores que são a Necessidade de Capital de Giro (NCG), o Capital d Giro (CDG) e o Saldo em Tesouraria (T), que analisados em conjunto permitem o diagnóstico da situação financeira da empresa, conforme será demonstrado na sequência.

22

2.2 Indicadores do Modelo Fleuriet 2.2.1 Necessidade de Capital de Giro Quando as saídas de caixa ocorrem antes das entradas de caixa, segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), a operação da empresa cria uma necessidade de aplicação permanente de fundos, esta aplicação é denominada de Necessidade de Capital de Giro (NCG). Nesse sentido, Padoveze (2003, p. 290) afirma que a NCG “equipara-se a um conceito de permanente, mesmo que, à luz dos princípios contábeis geralmente aceitos, não o seja”. A NCG, segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), é um conceito financeiro que se refere ao saldo de contas cíclicas ligadas às operações da empresa. Silva (2008), afirma que a NCG está contida no Capital Circulante Líquido (CCL) que é a diferença entre o ativo e passivo circulantes. Contudo, Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) afirmam que a NCG é diferente do CCL, uma vez que o CCL é definido no sentido financeiro clássico, sendo igual à diferença entre o ativo e passivo circulantes, enquanto que a NCG é calculada pela diferença entre os ativos e passivos cíclicos, que constituem apenas uma parte do ativo e passivo circulantes. Os autores explicam ainda que a NCG é evidenciada por meio da seguinte fórmula: NCG = ativo cíclico (operacional) – passivo cíclico (operacional) Matarazzo (2010) explica que quando a NCG for positiva, a empresa deverá encontrar fontes de financiamento para essa necessidade, sendo esta uma situação normal na maioria das empresas. Quando a NCG for nula, ou seja, a fórmula acima descrita apontar um valor zero para a NCG, não existe a necessidade de financiamento. Por fim, segundo o autor, quando a NCG for negativa, ocorre uma sobra de recursos das atividades operacionais, que poderão ser usados para a realização de uma aplicação financeira ou para a expansão da planta fixa. A NCG, de acordo com Assaf Neto e Silva (2002), depende do volume de atividade e do ciclo financeiro da empresa. Segundo os autores, quando a empresa se deparar com uma situação de elevação da NCG, a organização deverá gerir recursos de caixa provenientes de suas operações para financiar tal demanda. Se seus recursos gerados internamente não forem suficientes para cobrir a demanda, a empresa terá que recorrer a empréstimos de longo prazo ou ao aumento do capital próprio. Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) concordam com os referidos autores, afirmando que a NCG pode variar de acordo com as informações obtidas sobre os ciclos econômicos e financeiros da organização. Ainda segundo os autores, a NCG depende basicamente, da

23

natureza e do nível de atividades dos negócios da empresa. Nessa linha de raciocínio, Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) também advertem que a NCG, quando positiva, reflete uma aplicação permanente de fundos que, deve ser financiada normalmente, com fundos permanentes da empresa. Quando a NCG é financiada com recursos de curto prazo, o risco de insolvência da empresa aumenta. “Quanto maior a participação de recursos de curto prazo na estrutura de financiamento de ativos permanentes, mais elevado é o risco de insolvência da empresa” (ASSAF NETO; SILVA, 2002, p.74). 2.2.2 Capital de Giro (CDG) O capital de giro (CDG), segundo Assaf Neto (2006), se constitui no fundamento básico da avaliação do equilíbrio financeiro de uma empresa. Para Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) o CDG não é uma definição legal e sim um conceito econômico-financeiro, constituindo uma fonte de fundos permanente, a qual é utilizada para financiar a NCG da empresa. Padoveze (2010) afirma que a gestão do CDG refere-se ao monitoramento completo do ciclo operacional de uma empresa, o que pode ocorrer, inclusive, por cada atividade que a empresa desenvolve. O CDG, para Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), possui o mesmo valor que o CCL, somente seu cálculo é realizado de maneira diferente. Assim, o cálculo do CDG pode ser realizado pela seguinte fórmula: CDG = Passivo não circulante (Permanente) – Ativo não Circulante (Permanente) O comportamento do capital de giro é extremamente dinâmico, exigindo modelos eficientes e rápidos de avaliação da situação financeira da empresa. Nesse contexto, para Assaf Neto (2006), um CDG mal dimensionado é certamente uma fonte de comprometimento da solvência da empresa, com reflexos sobre sua posição econômica de rentabilidade (ASSAF NETO, 2006). Ao se referirem ao CDG, Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) explicam que o mesmo apresenta-se estável ao longo do tempo, podendo diminuir quando a empresa realiza novos investimentos em bens do ativo permanente. Segundo os autores, o CDG pode ainda, apresentar-se negativo, quando o ativo permanente for maior que o passivo permanente. Essa situação mostra que a empresa financia parte de seu ativo permanente com fundos de curto prazo o que aumenta o risco de insolvência. Braga (1991) argumenta que a administração do capital de giro é muito dinâmica e exige muita atenção por parte dos executivos de finanças. Segundo o autor, “qualquer falha

24

nesta área de atuação poderá comprometer a capacidade de solvência da empresa e/ou prejudicar a sua rentabilidade” (BRAGA, 1991, p.1). 2.2.3 Saldo em Tesouraria (T) O Saldo de Tesouraria (T) segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), define-se como a diferença entre o ativo e o passivo erráticos (contas circulantes que não estão diretamente ligadas à operação e cujos valores se alterem de forma aleatória), sendo calculada pela aplicação da seguinte fórmula: T = Ativo errático (financeiro) – Passivo errático (financeiro) O Saldo de Tesouraria, de acordo com Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), será negativo quando o Capital de Giro for insuficiente para financiar a Necessidade de Capital de Giro, o que indica que a empresa financia com recursos de curto prazo, parte de sua NCG e/ou ativo permanente, aumentando assim, seu risco de insolvência. Em conformidade com os autores, Silva (2008) afirma que quando o saldo de tesouraria for negativo, a organização possui junto às instituições financeiras débitos de curto prazo ou até mesmo outras dívidas de curto prazo que não estão relacionados a seu ciclo operacional, que são superiores aos seus recursos financeiros de curto prazo. Silva (2008) argumenta que as empresas devem planejar a evolução do saldo em tesouraria, para evitar a insolvência. Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) afirmam que quando o saldo tesouraria for positivo, a empresa terá disponibilidade de fundos de curto prazo que poderão ser aplicados, por exemplo, em títulos de liquidez imediata, aumentando assim, sua margem de segurança financeira. Os autores lembram que é importante observar que o saldo positivo não significa necessariamente uma condição desejável para a empresa, e sim, pode significar que a empresa, por falta de uma dinâmica de investimentos, não esteja aproveitando as oportunidades de investimentos propiciadas por sua estrutura financeira. Quando o saldo de tesouraria se torna negativo e assume tendência crescente, gerando uma diferença entre a NCG e o CDG, pode-se afirmar que a empresa está em efeito tesoura (SILVA, 2012). 2.3 Situações Financeiras do modelo Fleuriet Devido às características operacionais de cada ramo de atividade e do dinamismo empresarial, Oliveira (2008) afirma que várias situações financeiras podem surgir, o que exige

25

dos administradores ações para gerenciar a liquidez, de acordo com as particularidades do negócio. Nesse sentido, a partir da combinação dos indicadores do modelo Fleuriet, (CDG, NCG e T), Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003) identificaram seis possíveis tipos de situações financeiras. Na obra dos referidos autores, são demonstrados e explicados apenas quatro tipos, fazendo apenas referência aos outros dois tipos. Contudo, Braga e Marques (1995) descreveram os dois tipos faltantes em sua obra. No quando 3 estão demonstradas as situações financeiras possíveis previstas no modelo Fleuriet: Quadro 3 – Situações financeiras de acordo com o modelo Fleuriet Tipo

CDG

NCG

T

Situação Financeira

1

+

-

+

Excelente

2

+

+

+

Sólida

3

+

+

-

Insatisfatória

4

-

+

-

Péssima

5

-

-

-

Muito Ruim

6

-

-

+

Alto Risco

Fonte: BRAGA; MARQUES, 1995.

O Tipo 1 representa uma situação financeira Excelente, não aparecendo com freqüência no mercado, pois se trata de empresas que vendem mercadorias a vista e compram a prazo, tendo como exemplo supermercados, empresas de transporte, restaurantes, entre outras. Empresas que apresentam esse tipo de balanço possuem uma situação financeira excelente em razão do alto nível de liquidez praticado, o que significa que as contas cíclicas possuem um giro elevado, em especial as contas de clientes e de estoques, o que contribui para que o ciclo financeiro se torne reduzido (FLEURIET; KEHDY; BLANC, 2003). No Tipo 2, segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), a empresa dispõe de um saldo em tesouraria positivo que permite enfrentar as variações da NCG. Esse tipo de perfil revela uma empresa bem administrada financeiramente, mas um pouco conservadora. Nesse caso, o CDG sempre cobre as necessidades do ciclo financeiro, estando o saldo de tesouraria sempre do lado das aplicações da empresa. O tipo 3 representa a situação financeira insatisfatória, onde a NCG é maior que o CDG. A diferença é financiada por empréstimos de curso prazo, o que justifica o saldo de Tesouraria (T) negativo. Este tipo de balanço aparece bastante na prática (FLEURIET; KEHDY; BLANC, 2003).

26

O tipo 4 demonstra uma situação financeira péssima, em que a empresa luta para não entrar em processo de recuperação judicial, pois financia suas aplicações permanentes de recursos (NCG e parte do ativo permanente) com fundos de curto prazo que podem não ser renovados. Empresas com esta estrutura tentem a desaparecer ou a se manterem funcionando graças à ajuda do Estado (empresas estatais). O tipo 5 representa uma situação financeira muito ruim, tendo em vista que a NCG e o CDG apresentam-se negativos, o que demonstra que fontes de curto prazo financiam ativos de longo prazo. A situação só não é pior, pois a empresa consegue receber de seus clientes antes de pagar suas contas (FLEURIET; KEHDY; BLANC, 2003). Por fim, o tipo 6 representa uma situação financeira de alto risco, onde a NCG negativa é mais do que suficiente para financiar o CDG negativo, sobrando ainda recursos para a empresa aplicar no curto prazo, o que justifica o saldo de tesouraria positivo. O risco é de que haja uma recessão econômica que faça com que o nível de vendas caia e que a NCG fique positiva, o que pode levar a empresa à falência caso não consiga financiamento para a NCG e para os ativos permanentes (FLEURIET; KEHDY; BLANC, 2003).Oliveira (2008) argumenta que não se pode avaliar a qualidade do gerenciamento do capital de giro de uma empresa unicamente pela análise da sua situação financeira de acordo com o Modelo Fleuriet, mas que o modelo fornece importantes atributos baseados nos princípios básicos de gerenciamento da liquidez. 3 Avaliação da situação financeira das entidades pesquisadas nos anos de 2009 e 2010 Na análise dos resultados da pesquisa, buscou-se identificar a situação financeira dos 18 clubes brasileiros de futebol de maior faturamento nos anos de 2009 e 2010, de acordo com o Modelo Fleuriet de análise econômico-financeira.

Para compreender mais

adequadamente a situação financeira das entidades pesquisadas, inicialmente foram realizadas algumas análises acerca das receitas e dos resultados de tais entidades. Nesse sentido, as principais receitas apresentadas pelos clubes de futebol pesquisados são ligadas a venda de cotas de transmissão para a televisão, patrocínios e publicidade, bilheteria e venda de jogadores. No que tange à receita bruta, em 2010 os clubes pesquisados obtiveram um montante total de receita de R$1,63 bilhão, apresentando um crescimento de 11,5% em relação ao ano de 2009, quando a receita bruta consolidada foi de 1,47 R$ bilhão. A tabela 1 demonstra a receita bruta por clube nos anos de 2009 e 2010, com a participação relativa de cada uma das entidades no total da receita consolidada:

27

Tabela 1 – Receita bruta dos clubes pesquisados nos anos de 2010 e 2009 (Em milhares de

Reais) Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa.

Nos dois anos avaliados, o Corinthians apresentou a maior receita bruta, alcançando uma participação de 13% em 2010 e de 12,3% em 2009, em relação à receita bruta gerada pelas 18 entidades pesquisadas. Já o Figueirense, nos dois anos avaliados, apresentou a menor participação (1,0% em 2010 e 1,2% em 2009). Apesar da relevante receita bruta, quando considerados os resultados consolidados apurados nas demonstrações de resultado, os clubes apresentaram conjuntamente um déficit (prejuízo) de R$227,6 milhões em 2010 e de R$242,1 milhões em 2009, o que demonstra que as receitas obtidas foram insuficientes para cobrir as despesas e os custos nos dois anos avaliados. A Tabela 2 demonstra o resultado obtido por cada clube nos anos analisados: Tabela 2 – Resultado dos clubes pesquisados nos anos de 2010 e 2009 (Em milhares de Reais)

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa

28

Como se pode observar na tabela 2, tanto em 2010 quanto em 2009, apenas quatro clubes obtiveram resultados positivos (superávits): Atlético Paranaense, Corinthians, São Paulo e Vitória, em 2009 e Atlético Paranaense, Corinthians, Cruzeiro e São Paulo, em 2010. Em ambos os anos avaliados, 14 clubes (78% do total), apresentaram déficits (prejuízos) em seus resultados, sendo que apenas 4 (22%) apresentaram resultados econômicos superavitários (lucros), o que evidencia um relevante problema na capacidade dos clubes pesquisados em gerar resultados positivos e, com isso, se capitalizarem. Esse problema ganha uma importância ainda maior nessas entidades, tendo em vista que todos os 18 clubes pesquisados são associações civis sem fins lucrativos, sendo o superávit (lucro) integralmente reinvestido na operação da entidade, o que faz com que o superávit seja fundamental para a continuidade das operações. O gráfico 1 demonstra a distribuição dos clubes com superávits e os clubes com déficits de resultado nos dois anos avaliados: Gráfico 1 – Superávits e Déficits nos clubes pesquisados nos aos de 2009 e 2010

Fonte: Elaborado pelos autores com base na pesquisa

Para se identificar a situação financeira nos anos de 2009 e 2010 dos 18 clubes pesquisados, os balanços patrimoniais, que foram obtidos nos sites oficiais dos clubes, foram padronizados e tabulados em uma planilha eletrônica. Nos referidos dados, foi aplicada a metodologia de reclassificação dos balanços patrimoniais, sendo calculados o capital de giro (CDG), a necessidade de capital de giro (NCG) e o saldo em Tesouraria (T), conforme proposto por Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003). Os referidos dados estão demonstrados no gráfico 2:

29

Gráfico 2 – Indicadores do Modelo Fleuriet dos clubes pesquisados (em milhares de Reais)

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa.

Como se pode observar no gráfico 2, em 2009 todos os clubes pesquisados possuíam NCG negativa. Juntos, em 2009, os clubes pesquisados possuíam uma NCG negativa em R$246,7 milhões. Já em 2010, 15 clubes apresentavam NCG negativa, sendo esse indicador positivo apenas em três clubes, que foram o Atlético Paranaense, o Cruzeiro e o Vasco da Gama. O montante total da NCG negativa em 2010 era de R$ 359,8 milhões, apresentando assim uma queda de 45,8% em relação ao ano anterior. Conforme Matarazzo (2010), quando a NCG é negativa, ocorre uma sobra de recursos das atividades operacionais, que poderão ser usados para a realização de uma aplicação financeira ou para investimentos no ativo fixo. A NGC negativa nos clubes é explicada pelos grandes montantes de dívidas de natureza operacional (salários, impostos e direitos de imagem) que juntamente com a antecipação de receitas, superam os ativos operacionais, gerando uma fonte de recursos permanentes para os clubes aplicarem no ativo permanente. No que tange ao capital de giro (CDG), tanto em 2009 quanto em 2010, todos os 18 clubes pesquisados apresentavam CDG negativo. Em 2009 esse montante era negativo em R$ 855 milhões e em 2010 era negativo em R$1,09 bilhão, o que significa uma queda de 27,9%. Essa situação é preocupante, tendo em vista que em ambos os anos os clubes de futebol pesquisados financiaram ativos de longo prazo, como instalações, estádios, e direitos econômicos de jogadores, com recursos de curto prazo. Dos 18 clubes pesquisados, seis entidades em 2009 (33% do total) e sete em 2010 (39% do total), apresentavam passivo a descoberto (Patrimônio Líquido Devedor), o que indica que sucessivos prejuízos consumiram

30

todo o montante de recursos próprios aplicados nas entidades, fazendo com que as dívidas desses clubes superassem seus ativos, o que diminui ainda mais o CDG. Segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), essa situação aumenta o risco de insolvência de uma empresa. De maneira semelhante, Assaf Neto (2006) argumenta que essa situação compromete a solvência da empresa, causando reflexos em sua rentabilidade. Assim, os seguintes clubes apresentavam Patrimônio Líquido devedor (passivo a descoberto): Fluminense, Goiás, Flamengo, Santos, Vasco da Gama e Botafogo em 2009; e Curitiba, Fluminense, Goiás, Flamengo, Santos, Vasco da Gama e Botafogo em 2010. Nos dois anos pesquisados, os montantes negativos de CDG foram menores do que a NCG, o que significa que os clubes de futebol têm recorrido a passivos erráticos, como dívidas de curto prazo junto a instituições financeiras e parcelamento de impostos, para financiar seus ativos de longo prazo. Essa situação é evidenciada pela ocorrência, nos dois anos estudados, de saldos em tesouraria negativos. Em 2009, o saldo de tesouraria consolidado dos clubes pesquisados foi negativo em R$ 608,4 milhões e em 2010 foi negativo em R$ 733,8 milhões.

Esta estrutura financeira dos 18 clubes pesquisados pode ser

considerada inadequada, o que é evidenciado pelas situações financeiras dos anos de 2009 e 2010, indicadas com base no Modelo Fleuriet, conforme demonstrado no quadro 4: Quadro 4 – Situação financeira dos clubes nos anos de 2009 e 2010 de acordo com o Modelo Fleuriet

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa.

Em 2009, dos 18 clubes analisados, 15(83%) apresentaram situações financeiras do tipo 5 – “muito ruim” e três (17%) apresentaram situação financeira do tipo 6 - “péssima”. Já em 2010, 17(94%) das entidades apresentaram situação financeira do tipo 5 – “muito ruim” e uma (Atlético Paranaense) apresentou situação financeira do tipo 4 –“Alto risco”. O gráfico 3 demonstra a distribuição percentual das situações financeiras dos clubes nos dois anos pesquisados.

31

Gráfico 3 – Situações financeiras dos clubes pesquisados

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da pesquisa.

As situações financeiras diagnosticadas em todos os clubes pesquisados, à luz da literatura, não são consideradas adequadas do ponto de vista financeiro. Segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), na situação financeira “muito ruim”, identificada em 15 clubes em 2010 e em 17 em 2010, a NCG e o CDG apresentam-se negativos, o que demonstra que fontes de curto prazo financiam ativos de longo prazo. Segundo os mesmos autores, a situação só não é pior, pois nesse contexto a empresa consegue receber por suas operações antes de pagar suas contas. Já na situação financeira “péssima”, identificada em três clubes no ano de 2009 (Atlético Paranaense, Cruzeiro e Vasco da Gama), segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), indica que a empresa luta para não entrar em processo de recuperação judicial, pois financia suas aplicações permanentes de fundos (NCG e parte do ativo permanente) com fundos de curto prazo que podem não ser renovados. Segundo os autores, empresas com esta estrutura tentem a desaparecer. Por fim, na situação financeira de “alto risco”, percebida em apenas uma das entidades no ano de 2010 (Atlético Paranaense), a NCG negativa é mais do que suficiente para financiar o CDG negativo, sobrando ainda recursos para a empresa aplicar no curto prazo, o que gera um saldo de tesouraria positivo. Segundo Fleuriet, Kehdy e Blanc (2003), o risco é de que haja uma recessão econômica que faça com que o nível de receitas caia e que a NCG fique positiva, o que pode levar a empresa à falência, caso não consiga financiamento para a NCG e para os ativos permanentes. 4 Conclusão O presente artigo buscou analisar a situação financeira dos maiores clubes de futebol brasileiros, nos anos de 2009 e 2010, de acordo com o Modelo Fleuriet de análise do capital

32

de giro. A aplicação do referido modelo permitiu a identificação da situação financeira das entidades pesquisadas. Em atendimento ao objetivo da pesquisa, os dados demonstraram que em 2009 15 clubes apresentaram situações financeiras consideradas pelo modelo Fleuriet como tipo “muito ruim”, o que representa 83% das entidades avaliadas.

Essa situação

financeira é considerada crítica, pois tais clubes estão financiando ativos permanentes em parte com a NCG negativa e em parte com dívidas de curto prazo, o que aumenta o risco de insolvência de tais entidades. Os outros três clubes (17% do total) apresentaram em 2009 uma situação financeira do tipo “péssima”, o que indica uma situação financeira muito arriscada, com grande possibilidade de falência. Já em 2010, 17 entidades apresentaram situação financeira “muito ruim” (94% do total de clubes pesquisados) e uma entidade apresentou situação financeira de “Alto risco”. Assim, à luz da teoria pesquisada, é possível concluir que as situações financeiras apresentadas pelos 18 clubes nos anos de 2009 e 2010 não são consideradas adequadas e indicam um grande risco de insolvência das entidades pesquisadas. Os dados demonstram que todos os clubes analisados passavam por dificuldades financeiras em 2009 e em 2010. A ocorrência de sucessivos déficits de resultado econômico (prejuízos) e a manutenção de uma política inadequada de gestão do capital de giro são os fatores que explicam as situações financeiras diagnosticadas com a aplicação do modelo Fleuriet. Tais condições, se mantidas, podem comprometer a continuidade das operações dos clubes de futebol pesquisados. Por fim, os resultados obtidos na presente pesquisa abrem margem para a realização de outros estudos envolvendo os clubes de futebol. Nesse sentido, seria interessante a realização de uma pesquisa voltada para a avaliação do modelo de gestão dos clubes de futebol brasileiro, o que possivelmente permitiria a identificação dos fatores que levam a maioria dos clubes a apresentarem sucessivos déficits (prejuízos) e, por consequência, a possuírem situações financeiras tão arriscadas como demonstrado pela presente pesquisa. Referências ASSAF NETO, Alexandre. SILVA, César Augusto Tibúrcio. Administração do capital de giro. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2002. BRASIL. Lei nº 6.404/1976. Dispõe sobre as Sociedades por Ações. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 dez. 1976, suplemento. . Lei nº 11.638/2008. Altera e revoga dispositivos da Lei no 6.404, de 15 de dezembro de 1976, e da Lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e estende às sociedades de grande porte disposições relativas à elaboração e divulgação de demonstrações financeiras. Diário Oficial da União, edição extra, Brasília, DF, 28 dez. 2007.

33

COSTA, Flavio. GARCIAS, Paulo Mello. Concentração de mercado e desempenho das indústrias brasileiras de papel e celulose - recorrendo à modelagem de Fleuriet para analisar o paradigma ECD. Revista de Contabilidade e Organizações. 2009, vol.3, n.6, pp. 143-163. CPC - Comitê de Pronunciamentos Contábeis. Pronunciamento Técnico CPC 26 (R1). Apresentação das Demonstrações Contábeis. Dez. 2011. Disponível em: < http://www.cpc.org.br/pdf/cpc26_r1.pdf> Acesso em 15 abr. 2012. FLEURIET, Michel; KEHDY, Ricardo; BLANC, Georges. O modelo Fleuriet: a dinâmica financeira das empresas brasileiras: um método de análise, orçamento e planejamento financeiro. Rio de Janeiro: Campus, 2003. 169p. BRAGA, Roberto. Análise avançada do capital de giro. Caderno de Estudos FIPECAFI. São Paulo, v. 3, n. 1 : 1-34, set.1991. , Roberto. MARQUES, José Augusto Veiga da Costa. Análise dinâmica do capital de giro: o modelo Fleuriet. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, SP , v.35, n.3 , p. 45-63, maio/jun. 1995. GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. 175 p. GODOY, Arilda Shmidt. Pesquisa qualitativa: tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, SP, v.35, n.3 , p.20-29, maio/jun. 1995. MATARAZZO, Dante C. Análise financeira de balanços: abordagem básica e gerencial. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2010. 384p. OLIVEIRA, Virgínia Izabel de. Gestão da Liquidez In: ROSSETTI, José Paschoal, et al. Finanças corporativas: Teoria e prática empresarial no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier 2008, 2 ª reimpressão. Cap. 5 p. 79-110. PADOVEZE, Clóvis Luiz. Controladoria Estratégica e Operacional: Conceitos, estrutura, aplicação. 1. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2003. , Clóvis Luiz. Controladoria Básica. 2. ed. São Paulo: Cengage Learning, 2010. SANTOS, E. . Decisões financeiras em uma cooperativa agropecuária: uma análise pelo Modelo Fleuriet. In: XLIII Congresso da Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural, 2005, Ribeirão Preto. Instituições, Eficiência, Gestão e Contratos no Sistema Agroindustrial. Brasília: Sociedade Brasileira de Economia e Sociologia Rural, 2005. SILVA, Edson Cordeiro da. Como administrar o fluxo de caixa das empresas: guia de sobrevivência empresarial. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. , José Pereira da. Análise financeira das empresas. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2012. 608p. VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2009. 94 p.

34

A ATUAÇÃO INTERDISCIPLINAR NA GERÊNCIA DO CUIDADO EM DIABETES MELLITUS TIPO 2

THE PERFORMANCE MANAGEMENT IN INTERDISCIPLINARY CARE IN TYPE 2 DIABETES MELLITUS

Aline Cerqueira CRUZ¹, Gizele Ferreira DAVID², Juliana Costa LIBOREDO³

¹Enfermeira, Mestre em Enfermagem. Auditora Assistencial, Docente do Curso de Enfermagem da Faculdade de Minas- FAMINAS. E-mail: [email protected] ²Enfermeira, mestranda pela EEUFMG em Educação em Saúde. Docente do Curso de Enfermagem da Faculdade de Minas – FAMINAS. E-mail: [email protected] ³Nutricionista, mestre e doutoranda em Ciência de Alimentos. Docente do Curso de Nutrição da Faculdade de Minas – FAMINAS. E-mail: [email protected]

Resumo O sucesso do tratamento do Diabetes depende de diferentes fatores relacionados à própria doença, ao acesso à saúde e ao paciente no seu contexto emocional, social e familiar. A partir dessa perspectiva, deve-se considerar a importância do acompanhamento desses pacientes com o objetivo de assegurar a aquisição de conhecimentos sobre a doença e o desenvolvimento de habilidades para o autocuidado. Nesse sentido, uma estratégia fundamental para moldar o comportamento dos pacientes no que diz respeito a pratica de exercícios físicos, à dieta e ao tratamento medicamentoso é a educação em saúde. A visão do paciente como um ser complexo e o trabalho direcionado para os diferentes aspectos que interferem no autocuidado podem contribuir para aumentar a adesão ao tratamento e consequentemente melhorar a qualidade de vida do paciente com diabetes. Com base nisso, este artigo fornece uma visão geral sobre a importância da interdisciplinaridade na educação do paciente diabético. Palavras – chave: Interdisciplinaridade, Diabetes Mellitus, Gerência do Cuidado Abstract The successful treatment of diabetes depends on different factors related to the disease, access to health and patient in its emotional context, social and family life. From this perspective, one must consider the importance of monitoring these patients in order to ensure the acquisition of knowledge about the disease and the development of skills for self care. In this sense, a fundamental strategy to shape patient behavior with regard to the practice of physical activity, diet and drug therapy is the health education. The vision of the patient as a complex being and work directed to the different factors related to self-care can help to increase treatment adherence and thus improve the quality of life in diabetes. Based on this, this article provides an overview of the importance of interdisciplinary education in the diabetic patient. Key words: Interdisciplinary, Diabetes Mellitus, Management of Care

35

1 Introdução O Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) representa, dentre as classificações em diabetes, aproximadamente, 90% a 95% de todos os casos diagnosticados da doença (CDCP, 2011) e é considerado um problema de saúde pública em função de sua elevada e crescente prevalência em vários países do mundo. Em 2030, estima-se um aumento da prevalência entre adultos (20-79 anos) de 7,7% o equivalente a 439 milhões de pessoas; sendo que no Brasil, essa expectativa será de 12,7 milhões de adultos (WHO, 2011; SHAW, 2010). Essa característica epidemiológica do crescente número de casos de diabetes mellitus tipo 2 está relacionada ao aumento da expectativa de vida ou envelhecimento da população e aos hábitos pouco saudáveis, como o sedentarismo, dieta inadequada e obesidade (BRASIL, 2006; ADA 2011). A complexidade do tratamento desta patologia onera o Sistema Único de Saúde (SUS), devido, principalmente às complicações crônicas associadas, tais como retinopatia, nefropatia, neuropatia, cardiopatia, pé neuropático, entre outras (SBD, 2007). A reorganização da Atenção Primária à Saúde (APS), como porta de entrada dos usuários aos serviços, é uma estratégia para a prevenção e o controle do diabetes pela conscientização do usuário ao autocuidado, autogerenciamento e, consequentemente, o controle glicêmico (BRASIL, 2006). O investimento em programas de promoção e educação em saúde configura-se como uma estratégia de prevenção e controle dessa doença e é fundamental para o autocuidado e para a mudança de comportamento dos pacientes (RODRIGUES, 2010; OLIVEIRA, 2011). Dessa forma, para garantir o sucesso do tratamento do Diabetes, é importante considerar o paciente como um ser complexo e direcionar o trabalho para os diferentes aspectos que interferem no autocuidado para aumentar a adesão ao tratamento e, consequentemente, melhorar a qualidade de vida. Com base nisso, este artigo fornece uma visão geral sobre a importância da interdisciplinaridade na educação do paciente diabético.

2 Fatores que interferem na adesão ao tratamento A adesão ao tratamento é um fator indispensável para se conviver bem com a diabetes (COMIOTTO; MARTINS, 2006), no entanto, a aceitação do tratamento pelo paciente depende de muitos fatores relacionados à própria doença; de características pessoais, como a motivação e auto-estima; e o apoio familiar.

36

Em estudo realizado com 11 indivíduos diabéticos hospitalizados, em sua maioria (63,3%) por problemas que podem estar relacionados ao diabetes descompensado em longo prazo (angina instável, insuficiência cardíaca congestiva, infarto agudo do miocárdio e insuficiência renal crônica), os maiores déficits de autocuidado encontrados foram nutricional, de monitoramento e de conhecimento sobre a doença. Entre os fatores relacionados, foram encontradas dificuldades de controlar a glicemia no domicilio por condições financeiras que impossibilitaram a aquisição do aparelho medidor e de restringir o açúcar da dieta (COMIOTTO; MARTINS, 2006). É, sobretudo, por meio das restrições no comportamento alimentar que o diabético toma consciência da doença e das limitações impostas por ela, pois a doença surge como uma ameaça à autonomia e representa um fator limitante para a qualidade de vida desses pacientes (SANTOS et al., 2005). Nesse contexto, a participação familiar deve ser considerada como ponto chave para a adesão ao tratamento, pois o suporte de quem convive com o paciente é um requisito para se colocar em prática as orientações recebidas e para enfrentar a doença (ZANETTI et al., 2007). Para Moreira et al. (2001), o grupo que apoia o familiar doente compreende as modificações decorrentes do problema e permite os ajustamentos necessários para garantir o tratamento da doença. Por isso, a orientação da família é fundamental para que a aceitação e a colaboração com o tratamento aconteçam de maneira menos traumática (ZANETTI et al., 2007). O problema no controle da alimentação também foi relatado em estudo de caso realizado por Santos et al. (2005) que observou sensação de frustração na paciente analisada, por não poder desfrutar do prazer da alimentação produzida por ela mesma e de não poder comer o que gosta nas condições e no momento que deseja. Além desse, também foram observados outros fatores que influenciam a adesão ao tratamento, como a desconfiança sobre a efetividade dos medicamentos, a busca de soluções alternativas e as influências interpessoais. Cyrino (2009) ainda descreve outros aspectos apontados por diabéticos como interferentes no autocuidado, tais como: o medo das complicações da doença, o nervosismo, a depressão, a renda familiar exígua, o medo da insulina, a descontinuidade do atendimento médico e a inadequada comunicação com os profissionais de saúde.

3 A abordagem interdisciplinar O debate acadêmico acerca da interdisciplinaridade emerge no bojo da crítica à fragmentação do saber e da produção de conhecimento. Para alguns autores, extrapola a mera

37

agregação dos seus campos de origem, visando à associação dialética entre dimensões polares como teoria e prática, ação e reflexão, conteúdo e processo (GARCIA ET Al 2006). Lück (2002) ambiciona avançar na superação da visão restrita de mundo e resgatar a centralidade humana na produção do conhecimento como determinante e determinada. A integração entre diferentes áreas e a abordagem de problemas de forma criativa demanda mudanças individuais, institucionais e ações intersetoriais. Vasconcelos (2002) descreve alguns obstáculos que a construção tão ambiciosa enfrenta. O arcabouço das Instituições de Ensino Superior (IES), organizado em faculdades e departamentos que eventualmente não se comunicam, pode impedir o desenvolvimento de cultura acadêmica que desenvolva e compartilhe o trabalho de forma interdisciplinar. Além disso, a formalização das profissões implica em reivindicações de saberes e competências exclusivos, às quais é atribuído um mandato social para realização de tarefas específicas, controle de recursos e responsabilidade legal, cristalizando a divisão social e técnica do trabalho. A institucionalização de organizações corporativas exerce controle na formação, nas normas éticas e na defesa de interesses econômicos e políticos dos respectivos grupos. Assim, as práticas na saúde incorporam estratégias de negociação saber/poder, de competição intra e intercorporativa em processos institucionais e socioculturais que impõem barreiras à troca de saberes cooperativa. O desenvolvimento de práticas interdisciplinares envolve flexibilização dos mandatos sociais e revisão das legislações profissionais, bem como a ampliação destas práticas na formação dos profissionais, buscando uma nova profissionalização capaz de enfrentar novos desafios teórico- práticos. Inclui a integração do ensino-pesquisa- extensão, a democratização da hierarquia institucional e a possibilidade de quebra das defesas corporativas, permitindo a troca e o aprendizado (VASCONCELOS, 2002) No campo da saúde, a interdisciplinaridade acena com a possibilidade da compreensão integral do ser humano no contexto das relações sociais e do processo saúde-doença. Sua construção ultrapassa a mera renovação de estratégias educativas, necessitando ser consolidada pela reestruturação acadêmica e institucional via o compromisso com as necessidades sociais de saúde.

38

4 A interdisciplinaridade na educação em saúde para pacientes diabéticos

A educação em saúde deve ser estabelecida por meio de uma equipe multidisciplinar integrada empreendida em superar o isolamento dos saberes, adotar ações articuladas por meio de sistematização do serviço e melhoria de comunicação entre os profissionais, ou seja, é crucial romper a visão fragmentada constituída por bases disciplinares isoladas e adotar um modelo que contextualize ideias por meio de relações de troca de experiências (MEIRELLES, 2005). Para a realização da prática educativa são necessários comunicação e trabalho em equipe. A comunicação efetiva é capaz de favorecer o usuário no entendimento do processo saúde-doença e, a partir disso, a enfrentar seus problemas, podendo mudar posteriormente o seu comportamento (DIAS; SILVEIRA; WITT, 2009). Já no trabalho em equipe a ação de um profissional interage com a do outro, e ambos se transformam para causar impacto nos determinantes do processo saúde-doença de uma população (ARAÚJO, 2007). Paralelo a esse cenário a interdisciplinaridade em saúde ainda é confundida com o trabalho em equipe. Não havendo a construção de conhecimento, aquela não pode ocorrer apenas com a justaposição de ações fragmentadas que não atendem às necessidades emergentes de saúde, de compreender as novidades tecnológicas e as transformações das relações de trabalho e da vida cotidiana. A atuação interdisciplinar nas equipes de saúde implica na construção de conhecimento, aquisição de competências, prática de inter-relação e interação entre as diversas disciplinas, articulação dos conhecimentos e constante troca para resolução dos problemas e alcance dos objetivos (MEIRELLES, 2005). Segundo Torres (2010) a atuação envolvendo diversos saberes e profissionais, torna a atuação da equipe mais fácil, baseada na troca de saberes e compartilhamento dos mesmos, isso tudo objetivando a promoção da saúde do usuário portador do diabetes mellitus tipo 2. O contato com diferentes estruturas possibilitado pela interdisciplinaridade oferece condições do profissional de saúde perceber o homem como um todo, ultrapassando a especificidade de sua formação acadêmica, trazendo novas formas de cooperação, comunicação com os usuários; sobrepondo à valorização da concepção biológica do processo saúde e doença (LOCK-NECKEL, 2009). Substitui a didática de transmitir e produzir o conhecimento, ampliando a visão de mundo, da realidade, e de cada um enquanto pessoa e profissional. Assim, pode-se falar de interdisciplinaridade a partir do momento que houver a

39

comunicação entre conceitos e disciplinas dando origem a um novo conhecimento (VILELA, 2003). No diabetes, a educação deve ser constituída por um conjunto de estratégias para transmitir informações sobre a doença bem como desenvolver habilidades para favorecer o cuidado. E para o seu sucesso da educação, os programas devem visar ao atendimento global do diabético, sendo essencial considerar os fatores que influenciam a adesão ao tratamento, os aspectos emocionais e motivacionais para o autocuidado, bem como a participação da família e dos que convivem com os pacientes (FERRAZ, 2000). A necessidade de desenvolver atividades de ensino e práticas educativas de saúde, direcionadas à pessoa com diabetes e sua família, centradas na disponibilização do conhecimento e no fortalecimento de atitude ativa frente à doença, está relacionada à prevenção de complicações por meio do automanejo da doença, o que possibilita à pessoa conviver melhor com a sua condição (TORRES, 2003; TORRES, 2009). O tratamento do diabetes tipo 2 é baseado na mudança de hábitos de vida, que englobam a alimentação, a prática de exercícios físicos, bem o tratamento medicamentoso. E considerando essa diversidade no cuidado do paciente diabético, o processo educativo em saúde requer o envolvimento de diferentes profissionais para o sucesso do tratamento. Dentre eles, o médico tem participação importante para determinar a estratégia terapêutica a ser seguida para o controle da doença e a prevenção de complicações. Também se destaca o papel do enfermeiro na equipe multiprofissional em atividades nas quais ele conhece a realidade do indivíduo, podendo conduzi-lo à construção do seu próprio conhecimento sobre o diabetes (ZANETTI;

OTERO;

OGRIZIO,

2008) objetivando proporcionar ao paciente

o

desenvolvimento de habilidades e atitudes para o autocuidado. Entre essas atitudes, cumprir a dieta adequada é essencial no tratamento do diabetes. Porém, valores, símbolos e significados estão associados ao ato de comer e precisam ser compreendidos pelos profissionais de saúde para maior eficácia das ações com pacientes submetidos a rigoroso controle alimentar (PERES et al., 2006). Nesse sentido, o nutricionista tem papel importante para auxiliar o diabético a mudar os hábitos alimentares para adequar a dieta à sua necessidade, controlar a glicemia e prevenir ou retardar a ocorrência de complicações, considerando assim aspectos nutricionais, culturais e econômicos que influenciam a alimentação. Outra atitude importante que deve ser considerada na prática educativa é a realização de exercícios físicos que podem ser estimulados e melhor planejados com o auxílio de um educador físico considerando as possibilidades e individualidades de cada paciente.

40

Toda a abordagem educacional descrita anteriormente, feita pelo enfermeiro, médico, nutricionista e educador físico, tem importância fundamental para o paciente diabético, mas a educação não deve se restringir apenas à transmissão de conhecimentos. É de grande relevância considerar também os aspectos subjetivos e emocionais que influenciam a adesão ao tratamento. Por isso, a participação de um profissional da psicologia é fundamental para auxiliar o paciente e a família a lidarem com as dificuldades frente ao diabetes considerando os fatores emocionais para que eles aceites o tratamento e consigam enfrentar as mudanças necessárias.

5 Conclusão As contribuições das práticas educativas por meio do trabalho interdisciplinar mostram um resultado significativo na promoção do autocuidado do usuário e na organização dos serviços de saúde. A importância da formação de competência durante a graduação busca a autonomia e a responsabilidade do estudante diante do aprendizado e forma um profissional crítico e atualizado, capaz de promover mudanças com a equipe de trabalho e com a comunidade. A educação deve estar articulada entre teoria e prática, na participação ativa do estudante e na problematização da realidade, e ainda da participação conjunta de profissionais do campo como enfermeiro, nutricionista, médico, educador físico, psicólogo dentre outros. Para que a interdisciplinaridade ocorra é necessário desenvolver o trabalho em conjunto, no qual o objeto de estudo e os métodos devem ser gradativamente estabelecidos pela equipe, existindo reciprocidade, enriquecimento mútuo e horizontalização das relações de poder. A solução dos problemas, como os relacionados à gerência do cuidado do diabetes mellitus tipo 2, ocorrerá por meio de aprendizagem social, abertura e formação de redes, princípio da autonomia dos membros dos grupos, cooperação, trabalho das diferenças e a comunicação dos achados científicos. Além disso, é necessário que o diabético encontre uma rede de apoio nas práticas interdisciplinares, no sistema familiar e aparelhos sociais. A avaliação das intervenções das práticas interdisciplinares deve ser estimulada para que se possam firmar estratégias eficazes na promoção, na prevenção e no controle do diabetes mellitus tipo 2. Sendo assim, este estudo destacou a importância da comunicação dos saberes interdisciplinares para a promoção do autocuidado em diabetes e na sistematização do processo educativo.

41

Referências Bibliográficas ADA, American Diabetes Association. Diagnosis and classification of diabetes mellitus. Diabetes Care. 2011, jan.; 34 (1): 62-9. ARAUJO, Marize Barros de Souza; ROCHA, Paulo de Medeiros. Trabalho em equipe: um desafio para a consolidação da estratégia de saúde da família. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 2, abr. 2007. BRASIL; MINISTÉRIO DA SAÚDE. Diabetes Mellitus: Caderno de Atenção Básica, Brasília, DF, n. 16, 2006, 64 p. CDCP, Center For Disease Control and Prevention. National diabetes fact sheet: national estimates and general information on diabetes and prediabetes in the United States, 2011. Atlanta, GA: U.S. Department of Health and Human Services, Centers for Disease Control and Prevention, 2011. Disponível em: . COMIOTTO, Gabriela; MARTINS, Joseane de Jesus. Promovendo o autocuidado ao indivíduo portador de diabetes: da hospitalização ao domicílio. Arq Catarin Med, v. 35, n. 3, p. 59-64, 2006. CYRINO, Antonio Pithon. Entre a ciência e a experiência: uma cartografia do autocuidado no diabetes. São Paulo: UNESP, 2009. DIAS, Valesca Pastore; SILVEIRA, Denise Tolfo; WITT, Regina Rigatto. Educação em saúde: protocolo para o trabalho de grupos em atenção primária à saúde. Revista de APS, América do Norte, n. 12, jun. 2009. FERRAZ,Ana Emilia P et al. Atendimento multiprofissional ao pacientecom diabetes mellitus no ambulatório de diabetes do HCFMRP-USP. Medicina, Ribeirão Preto, v. 33, p. 170-175, abr./jun. 2000. GARCIA, Maria Alice Amorim et al. Interdisciplinaridade e Integralidade no ensino em saúde. Rev. Ciênc. Méd., Campinas, 15(6):473-485, nov./dez., 2006. LOCK-NECKEL G et al. Desafios para a ação interdisciplinar na atenção básica: implicações relativas à composição das equipes de saúde da família. Ciência & Saúde Coletiva, 14(Supl. 1):1463-1472, 2009. LÜCK, H. Pedagogia interdisciplinar: fundamentos teórico- metodológicos. 10. ed. Petrópolis: Vozes; 2002. MEIRELLES, B.H.S; ERDMANN, A.L. A Interdisciplinaridade como Construção do Conhecimento em Saúde e Enfermagem. Texto Contexto Enfermagem 2005. Jul-Set; 14(3):411-8. MOREIRA, Thereza Maria Magalhães; ARAÚJO, Thelma Leite de Araújo; PAGLIUCA, Lorita Marlena Freitag. Alcance da teoria de King junto à família de pessoas portadoras de Hipertensão Arterial Sistêmica. Rev Gaúcha Enferm, v. 22, n. 2, p. 74-89, 2001. OLIVEIRA O. Ação Educativa de Enfermagem no Controle do Diabetes. Acta Paulista de Enfermagem. São Paulo, v. 13, Número Especial, Parte I, 2000. Disponível em: . Acesso em: 01 set. 2011. PERES, Denise Siqueira; FRANCO, Laércio Joel; SANTOS, Manoel Antônio dos. Comportamento alimentar em mulheres portadoras de diabetes tipo 2. Rev Saúde Pública, v. 40, n. 2, p.310-7, 2006. RODRIGUES, ACS, Vieira GLC, Torres HC. A proposta de educação permanente em saúde na atualização da equipe de saúde em diabetes mellitus. Ver. Esc. Enf. USP. 2010.

42

SANTOS, Ellen Cristina Barbosa dos; ZANETTI, Maria Lúcia Zanetti2; OTEROS, Liudmila Miyar ; SANTOS, Manoel Antônio dos. O cuidado sob a ótica do paciente diabético e de seu principal cuidador. Rev Latino-am Enfermagem,v. 13, n. 3, p. 397-406, maio-junho, 2005. SANTOS Laura Maria dos. Competências dos profissionais de Saúde Nas Práticas Educativas em Diabetes Tipo 2 na Atenção Primária à Saúde. 2011. 80 f. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG, Belo Horizonte 2011. SBD, Sociedade Brasileira de Diabetes. Diretrizes da Sociedade Brasileira de diabetes: tratamento e acompanhamento do Diabetes mellitus. Rio de Janeiro, 2007. SHAW, J.E., SICREE, R.A., ZIMMET, P.Z.. Global estimates of the prevalence of diabetes for 2010 and 2030. Diabetes Research and Clinical Practice - January 2010 (Vol. 87, Issue 1, Pages 4-14, DOI: 10.1016/j.diabres.2009.10.007). Disponível em: < http://www.diabetesresearchclinicalpractice.com/article/PIIS016882270900432X/fulltext>. TORRES, H. C.; HORTALE, V. A.; SCHALL, V. Experiência de jogos em grupos operativos na educação em saúde para diabéticos. Cad Saúde Pública, v. 19, p. 1039-47, 2003. TORRES, H. C. et al. Avaliação estratégica de educação em grupo e individual no programa educativo em diabetes. Rev. Saúde Pública. São Paulo, v. 43, n. 2, abr. 2009. Disponível em: . Acesso em: 24 mai. 2009. TORRES, H.C; ROZEMBERGE, B; AMARAL, M.A; BODSTEIN, R.C.A. A percepção dos profissionais de saúde da atenção primária sobre educação em diabetes melitus no Brasil. BMC Public Health 2010. VASCONCELOS, E. M. Complexidade e pesquisa interdisciplinar: epistemologia e metodologia operativa. Petrópolis: Vozes; 2002. VILELA, E.M; MENDES, I.J.M. Interdisciplinaridade e saúde: estudo bibliográfico. Rev Latino-am Enfermagem. 2003;11: 525-31. WHO, World Health Organization. Diabetes. [ serial on the Internet]; 2011. Diponível em: “http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs312/en/”. 2011. Acesso 20 julho 2011. ZANETTI, Maria Lúcia et al. O cuidado à pessoa diabética e as repercussões na família. Rev Bras Enferm, Brasília, v. 61, n. 2, p. 186-92, mar-abr, 2008.

43

O CARÁTER CRÍTICO MARXISTA DO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL

Elaine LIMA¹

¹Faculdade de Minas, Faminas-BH, Programa de Graduação e Pós-Graduação Email: [email protected]

Resumo Discutir a importância da constituição crítica do serviço Social nos dias atuais é absolutamente necessário, visto que vivemos em um momento em que o projeto neoliberal que vem se efetivando está reduzindo e até eliminando direitos sociais historicamente conquistados pela classe trabalhadora e degradando a humanidade de forma nunca antes vista. Esse estudo se baseia na análise do marxismo como fonte fundamental para a elaboração crítica e combativa do Serviço Social. Palavras-chave: Serviço-social. Marxismo. Crítica. Projeto ético-político.

Abstract Discuss the importance of stablishing criticism of social Service today is absolutely necessary, since we live in a time when the neoliberal project that has been effecting is reducing and even eliminating social rights historically achieved by the working class and degrading humanity as never before. Thus study is based on analysis of marxism as a fundamental source for the preparation and combative critique of social work. Key-word: Service to society. Marxism. Critical. Ethical-political Project.

1 Introdução O projeto ético-político do Serviço Social é a expressão mais acabada da importância de reflexão crítica que guia uma prática direcionada a defesa do projeto emancipatório da classe trabalhadora. A hegemonia da perspectiva da emancipação posta pela categoria dos assistentes sociais está diretamente relacionada com uma adequada apreensão da realidade social. Ao compreender os nexos da realidade, através de uma reflexão criticamente orientada, a categoria incorpora as necessidades verdadeiramente humanas, por trás do véu nebuloso da mercadoria forjado pelo capitalismo. A postura contra as alienações de uma sociedade regida pelo capital se sintetiza no projeto ético-político da categoria enquanto apreensão da posição crítica marxiana de uma proposta emancipatória. Por isso, pretendemos compreender o que significa essa crítica em

44

Marx e qual seu reflexo na constituição do projeto profissional da categoria dos assistentes sociais. Em momento de crise, este que estamos vivenciando agora, é essencial fortalecer o projeto profissional do Serviço Social e garantir a sua hegemonia. Esse projeto significa exatamente o enfrentamento das contradições desse sistema e um colocar-se a favor da liberdade e da emancipação humana. 2 A constituição do projeto ético-político do Serviço Social O projeto ético-político do Serviço Social se constitui no momento em que acontece no país uma ampla movimentação democrática exigida pela organização dos movimentos sociais e das lutas operárias que intencionavam derrubar a ditadura, aliado a isso se promulgava a carta constitucional de 1988, e se declarava a defesa do Estado de Direito. Vê-se, nesse momento, nas palavras de Netto: A mobilização dos trabalhadores urbanos, com o renascimento combativo do seu movimento sindical; a tomada de consciência dos trabalhadores rurais e a vitalização da sua organização; o ingresso, também na cena política, de movimentos de cunho popular (entre os quais o associacionismo de moradores) e democrático (os estudantes, as mulheres, as minorias, etc); a dinamização da vida cultural, com a ativação de setores intelectuais; a afirmação da opção democrática por segmentos da igreja católica e a consolidação do papel progressista desempenhado por instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) – tudo isso pôs na agenda da sociedade brasileira a exigência de profundas transformações políticas e sociais. (1999, p.100).

Assim, podemos perceber que a condição política foi absolutamente necessária na luta a favor da democracia com fortes expressões no projeto ético-político do Serviço Social. Esse projeto não se instaurou sem contradições e divergências, pelo contrário “(...) supõe o reconhecimento da presença de orientações distintas na arena profissional assim como o embate respeitoso com as tendências regressivas do Serviço Social, cujos fundamentos liberais e conservadores legitimam o ordenamento social instituído.” (Iamamoto, 2008, p.226) A condição política não foi a única necessária para construção de um projeto éticopolítico do Serviço Social. Juntaram-se à condição política mais duas questões importantes: a reforma universitária e o componente crítico das novas investigações teóricas, assim como, a formação profissional e seu reconhecimento pelos usuários. Sobre a primeira questão, a reforma universitária, ocorrida ainda durante a Ditadura Militar, permitiu uma maior legitimação do Serviço Social no espaço acadêmico ocorrendo assim o surgimento de pós-graduação que permitiam uma maior qualidade quanto à referência teórica dos profissionais. Assim, configurou-se uma ‘massa crítica’ capaz de garantir o vínculo com as ciências humanas em geral e a articulação inédita e necessária com a vertente

45

crítica fundada no marxismo de apoio direto ao projeto societário da classe trabalhadora. Segundo Iamamoto: Por meio dessa renovação, buscava-se assegurar a contemporaneidade do Serviço Social, isto é, sua conciliação com a história presente, afirmando-o como capaz de decifrar a sociedade brasileira e, nela, a profissão, de modo a construir respostas que possibilitassem ao Serviço Social confirmar-se como necessária no espaço e tempo dessa sociedade. (2008, p.223).

Somente uma olhada nos últimos 20 anos nos permite afirmar como o Serviço Social avançou na qualidade das produções acadêmicas que hoje são reconhecidas pelas agencias de fomento. Ou seja, nos deparamos com segmentos importantes dos profissionais conectados com o interesse de uma consciência crítica decorrentes de melhores predicativos políticos e teóricos e no interesse de combater ferozmente os rastros conservadores que ainda disputam o Serviço Social. Sobre a formação profissional, podemos dizer que ganhou um maior destaque após a reformulação curricular de 1982 quando as condições sociais com relação à questão social e intelectuais da massa crítica exigiram um novo perfil profissional para atender as necessidades da sociedade brasileira. Essa mudança da prática profissional a uma condição mais ampla se recoloca pelo reconhecimento dos usuários, por uma formação teórica mais qualificada e também pelos ganhos políticos e sociais que emergiram com a derrubada da Ditadura. Tais considerações demonstram quais os acontecimentos que possibilitaram a construção de um novo projeto ético-político para o Serviço Social e mais que isso, demonstram que os projetos profissionais e societários estão em constante articulação e transformação, não sendo um modelo fixo e imutável. O código de ética de 1993, ainda em vigor, tem sua característica mais fundamental como combate ético e político ao conservadorismo profissional no enfrentamento das políticas neoliberais postas em prática. Nas palavras de Barroco: A partir de 1993, o código de ética passa a ser uma das referências dos encaminhamentos práticos e do posicionamento político dos assistentes sociais em face da política neoliberal e de seus desdobramentos para o conjunto dos trabalhadores. É nesse contexto que o projeto profissional de ruptura passa a ser definido como projeto ético-político referendado nas conquistas dos dois códigos (1986 e 1993), nas revisões curriculares de 1982 e 1996 e no conjunto de seus avanços teórico-práticos construído no processo de renovação profissional, a partir da década de 60. (2008, p.206).

46

A ofensiva do grande capital por meios das políticas neoliberais, das privatizações, da mercantilização da educação, da violência econômica, perda dos direitos sociais, radicalização da questão social e mais uma série de questões vão ao sentido contrário dos interesses da classe trabalhadora e, portanto, ameaçam o projeto ético-político do Serviço Social. No entanto, é como respostas a essas ameaças que o serviço social se coloca em posição de enfrentamento – nesse sentido o código de 1993 foi muito significativo, como explica Barroco – e aliado ao revigoramento dos movimentos sociais e democráticos ainda existentes e combativos se coloque no sentido de aprofundamento e expansão de seu projeto. Assim, a construção e aprovação democrática do código de ética de 1993 que legitimam e exaltam os diretos e deveres dos profissionais vinculados ao norte de superação das relações sociais reificadas serve de guia para uma prática social cotidiana mais humanista com vistas à emancipação.

3 O projeto ético do Serviço Social enquanto crítica social Ao considerarmos o Serviço Social na reprodução social podemos dizer que ele está inserido numa malha de relações que permite a continuação da sociedade de classes que possibilitam sua superação. No Brasil, o Serviço Social emerge desde o movimento de reconceituação3 – crítica ao conservadorismo moral e político que influencia a profissão – com um projeto profissional que tenta se articular da forma mais estreita possível ao projeto societário da classe trabalhadora, ou seja, projeto societário que visa a emancipação humana. O código de ética de 1986 é um passo enorme nessa direção que alcança seu ápice no código ético de 1993 com a consolidação definitiva de um projeto ético-político do Serviço Social diretamente ligado ao interesse da classe trabalhadora. Como afirma Barroco: O código de 1993 afirma a centralidade do trabalho na constituição do homem: Sujeito das ações éticas e da criação dos valores. Revelada em sua densidade histórica, a sua concepção ética está articulada a valores éticos-políticos, como a liberdade, a justiça social e a democracia, e ao conjunto de direitos humanos (civis, políticos, sociais, culturais e econômicos) defendidos pelas classes trabalhadoras, pelos segmentos sociais excluídos e pelos movimentos emancipatórios ao longo da história. (2008, p.18).

3

“A chegada entre nós dos princípios e ideais do movimento de reconceituação deflagrado nos diversos países latinoamericanos somado à voga do processo de redemocratização da sociedade brasileira formaram o chão histórico para a transição para um Serviço Social renovado, através de um processo de ruptura teórica, política [inicialmente mais político-ideológica do que teórico-filosófica] com os quadrantes do tradicionalismo que imperavam entre nós”. (Teixeira e Braz, p.12).

47

Assim, podemos ver que as forças sócio-políticas possibilitam a categoria profissional construir formas de lutas favoráveis às classes desfavorecidas que são o foco das ações profissionais. O projeto profissional do Serviço Social, portanto, possui um caráter progressista, tem sua constituição na vida em sociedade e são herdeiros de uma perspectiva crítica. Segundo Guerra: Um projeto profissional pela sua natureza (projetare, lançar adiante, construir no futuro), como um conjunto de intenções a serem realizadas no futuro, não proporciona resultados imediatamente auferíveis, não se converte no âmbito do imediato. Entre as intenções e a sua realização há um conjunto de mediações que devem ser apropriadas pelo pensamento e mobilizadas no cotidiano, na intervenção profissional. Não obstante, é o referencial teórico adotado no projeto que permite fazer a crítica em nível do imediato e estabelecer alternativas para transcendê-lo. Nesse âmbito, o projeto profissional hegemônico, pela sua perspectiva crítica, constitui-se um instrumento, o único capaz de permitir aos assistentes sociais uma antevisão da demanda, a captação de processos emergentes e das tendências históricas que se configuram e requisitam uma intervenção profissional a curto, médio e longo prazos, o significado social e político da profissão e da intervenção que desenvolve. Esta capacidade de captar tendências e de se preparar técnica e intelectualmente para respondê-las é o diferencial que se estabelece entre os profissionais na conjuntura atual. (2007, p.30).

Desta forma, um projeto essencialmente crítico permite uma reflexão adequada da forma social vigente e combatem “os preconceitos, as verdades estereotipadas, o senso comum, as superstições que impregnam determinados fatos ou processos sociais reais” (guerra, 2007, p.23). Assim, o que se estabelece é uma real apreensão das determinações sociais. O emergir de um projeto crítico, nesse sentido, é o emergir de uma compreensão adequada dos nexos causais da realidade. “O projeto profissional, contém elementos que permitem estabelecer as devidas mediações entre uma intervenção imediata no cotidiano e determinados fins, interesses e projetos de classes.” (Guerra, 2007, p.27) Podemos dizer que o estabelecimento de um projeto profissional crítico, nos termos que já mencionamos, significa a apreensão do que é a crítica na teoria marxiana. A crítica para Marx está exatamente em estabelecer um posicionamento que tenha como horizonte a emancipação humana. Isto que dizer que a luta a favor da classe trabalhadora, dos desfavorecidos em geral, ao se sintetizar no projeto profissional do Serviço Social incorpora o que para Marx significa crítica social. Para Barroco a teoria Marxiana: tem uma função ideológica; trata-se de contribuir para o enfrentamento da luta de classes; as relações de dominação e exploração, as contradições e os conflitos vivenciados na vida cotidiana podem ser compreendidos em seus fundamentos objetivo, o que propicia um desvelamento do caráter histórico de tais condições, uma conexão consciente com a genericidade humana e uma práxis superadora. Ao mesmo tempo, tal desvelamento permite que as capacidades humanas sejam valorizadas como tal, isto é, as capacidades humanas construídas objetivamente

48

tornem-se valores a serem (re)apropriados, donde a possibilidade de tornarem-se ideologia para uma classe. (2001, 197).

Como teoria e prática estão em interação constantemente crítica, abri-se um horizonte capaz de superar as alienações próprias da sociedade de classe e estabelecer uma sociedade cujas relações serão efetivamente humanas. Ou seja, “para abrir caminho ao futuro – de sua profissão e da humanidade” (Netto, 2007, p.308) a reflexão surgida do e com o projeto profissional ético-político do Serviço Social se estabelece criticamente. 4 O conceito de crítica em Marx É nas obras de maturidade de Marx que se encontra a radicalidade do conceito de crítica. Essa afirmação se justifica pelo fato de ser nessas obras que a teoria marxiana se encontra

plenamente

madura

e

claramente

posta.

Esses

textos

preocupam-se

fundamentalmente com as determinações históricas da realidade, o que é de suma importância na construção de uma teoria crítica e revolucionária. Intenta-se demonstrar como Marx constrói sua crítica articulando os traços que definem a processualidade histórica do ser social. O ponto de vista crítico inaugurado por Marx propõe que a elaboração teórica de um determinado objeto se realize tendo em vista o tratamento crítico desse objeto. Crítica essa que se realiza determinada por dois critérios avaliativos: o da totalidade, que articula determinado objeto com a totalidade social, demonstrando seu caráter processual; e o da historicidade, visto que essa totalidade não é fechada, mas um movimento infindável da realidade social. Esses pressupostos se caracterizam pelo confrontamento das elaborações teóricas com a realidade social. Esse confrontamento da efetividade social às suas representações permite, ou não, a possibilidade de verificação real do objeto estudado. A teoria marxiana, embora não se reduza a esse confrontamento, o tem como base. Sua base é esse fundamento ontológico. Na concepção marxiana, a crítica é instaurada pela realidade objetiva. Sua crítica deriva dos nexos que compõem determinados processos da realidade em contraposição a elaborações teóricas que analisam esses processos. Marx afirma: “A consciência nunca pode ser mais que o ser consciente; e o ser dos homens é o processo de vida real” (2001a, p. 19), o que significa dizer que se parte da realidade constatada historicamente ─ ou seja, da gênese e do desenvolvimento histórico social –, uma concepção que apreenda e transforme em conceito as conexões dos objetos estudados. Não se torna possível, portanto, para Marx, uma tomada ahistórica dos processos sociais para se contrapor a uma teoria que está sendo realizada.

49

A própria realidade constituída historicamente se apresenta como critério para a verdade da investigação. O sujeito investigador parte de critérios objetivos para o estabelecimento da verdade e não de critérios meramente subjetivos. Marx deixa isso bem claro quando afirma: [...] não partimos do que os homens dizem, imaginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no pensamento, na imaginação, e na representação dos outros, para depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos homens em sua atividade real, é a partir do seu processo de vida real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos e das repercussões ideológicas desse processo vital (2001a, p. 19).

É importante ter em vista que toda construção teórica marxiana possui uma base real, efetiva, que não permite especulações subjetivistas. Sua teoria contraria terminantemente a filosofia kantiana de que o conceito que corresponda à nossa imagem de mundo criada pela razão é um conceito verdadeiro. Sobre isso, Marx afirma: “Com o conhecimento da realidade, a filosofia não tem mais um meio para existir de forma autônoma” (2001a, p.20). Ainda em sua crítica ao subjetivismo, opõe-se à teoria hegeliana de que o conceito verdadeiro corresponda à ideia que se desdobrou por si própria, através da História. No posfácio a o Capital, Marx diz: Meu método dialético, por seu fundamento, difere do método hegeliano, sendo a ele inteiramente oposto. Para Hegel, o processo do pensamento – que ele transforma em sujeito autônomo sob o nome de idéia – é o criador do real, e o real é apenas sua manifestação externa. Para mim, ao contrário, o ideal não é mais do que o material transposto para a cabeça do ser humano e por ela interpretado (2002, p.28).

Essa crítica fundada na história permite ao investigador a apreensão da realidade tal como ela é. É justamente o momento histórico do pensador que permite a realização dessa crítica. Isso ocorre porque os produtos teóricos dessa época já não mais correspondem às demandas do real e, portanto, não correspondem também a um salto qualitativo para além dessa época. A situação histórica na qual Marx estava produzindo teoricamente permitiu o emergir de uma perspectiva claramente radical e revolucionária, que se construía na medida em que nosso autor fazia a crítica às três formas mais elaboradas do pensamento moderno: filosofia idealista alemã, economia política clássica e socialismo utópico francês. A radicalidade revolucionária do conceito marxiano de crítica se configura ainda como representação teórica das exigências da classe do proletariado. Classe essa que possui em sua própria essência – determinada historicamente ─ os fundamentos que propiciam uma

50

compreensão radical de mundo, com vistas para uma transformação da sociedade capitalista. E o possui porque a superação de uma sociedade fundada na propriedade privada é a libertação da própria generidade humana. Para que essa transformação possua um estatuto objetivo e real se faz necessário demonstrar, ainda que rapidamente, a radical historicidade humana. O primeiro passo na constatação da realidade efetiva, para Marx, se dá através de indivíduos reais e ativos. Eles começam suas vidas em determinadas condições materiais de existência, herança das gerações anteriores e produto continuado de sua própria atividade. Em suas palavras: as premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já encontram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são pois verificáveis por via puramente empírica (2001a, p.10).

Esta constatação permite dizer que o trabalho, ao realizar o intercâmbio do homem com a natureza, impulsiona o desenrolar histórico. Dado o fundamento do ser social a partir do trabalho, com a transformação da natureza pela atividade humana, pode-se afirmar que o homem é ao mesmo tempo um ser social e natural. Desta forma a autoconstrução humana somente se efetiva articulada com a transformação da natureza. Para Marx, a relação com a natureza significa um momento indissociável do processo de entificação humana, o que permite dizer que tanto a materialidade natural quanto a consciência possuem o mesmo estatuto ontológico. Não há, portanto, prioridade do espírito em relação à matéria, e vice-versa. Neste sentido então, a produção e a reprodução da vida humana se dão como relação insuperável entre ser social e natural. O trabalho permite essa relação, conservando os traços específicos de cada um. Em a ideologia Alemã, Marx afirma que “Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião e por tudo o que se queira. Mas eles próprios começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência[...]” (2001a, p.10). É possível verificar empiricamente a existência de alguns animais que trabalham e que, portanto, criam suas possibilidades de existência. Quanto à distinção entre trabalho humano e trabalho animal, Marx anota: Pressupomos o trabalho sob forma exclusivamente humana. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que

51

ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade (2002, p.228).

Como é possível perceber, há uma diferença fundamental em ambos os trabalhos. Na atividade animal, o trabalho é desenvolvido somente enquanto estímulos instintivos fixados geneticamente, ou seja, sem mediação de uma consciência que oriente essa atividade. A atividade humana, ao contrário, por ser mediada pela consciência permite ao homem projetar idealmente o fim. Marx acrescenta: No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre a qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e à qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito (2002, p.229).

A diferenciação do mundo natural e da história humana, fundada pelo trabalho, segundo Marx, possibilita o processo de autoconstrução humana. E a apreensão dessa processualidade possibilita uma teoria crítica verdadeiramente articulada com os nexos que compõem a realidade social. É importante considerar que as determinações essenciais que compõem os fundamentos da teoria crítica marxiana, longe de estarem esgotadas, apenas põem o campo que permitirá resoluções de problemas teóricos decorrentes de análises unilaterais da realidade. Assim, a realização da crítica marxiana se dá na constatação do mundo real, não em tópicos desconectados entre si, mas em sua totalidade social. Essa crítica busca a raiz do mundo na atividade humana e sua gênese na esfera fundante primária. Daí resulta a progressiva autoconstrução humana como centro do processo social. Somente com um pensamento que seja reflexo das determinações desse processo é que Marx traz à tona uma teoria voltada para uma prática efetivamente transformadora. Ele traz, portanto, uma etapa filosófica genuinamente original. É importante deixar claro que essa originalidade da posição marxiana não é definida por si própria. Ela só é permitida dada sua articulação qualitativa ─ fundada ontologicamente ─ com teorias anteriores à dele. Esse critério de uma verdade filosófica original não possui seu desenrolar partindo de uma realidade qualquer definida pela subjetividade humana, mas de uma realidade concreta e teórica que precisa ser investigada. É o materialismo histórico e dialético que possibilita o tratamento crítico e original posto pela atividade teórica marxiana a todo arcabouço teórico por ela superada. O mundo

52

investigado por esse novo materialismo demonstra que o conceito de determinado objeto se encontra nesse mesmo objeto e é apreendido por uma subjetividade fundada na processualidade histórica social. Como diz Marx: a investigação tem de apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real (2002, p.28).

É a partir do momento em que a crítica se configura como representação teórica de uma realidade para além do capital que o mundo se apresenta em sua totalidade. Permite, então, conhecer o passado e transformar o presente segundo as aspirações futuras. A realização da crítica marxiana é, portanto, a constatação de um mundo que, por sua maturidade, se apresenta como uma processualidade histórica que revela o que é. Desta forma a crítica, para Marx, é a realização de uma ontologia. Ela já se apresenta como uma apreensão fundamental, visto que é uma abstratividade feita a partir da realidade objetiva. A crítica é o próprio conhecimento que se constitui pela coisa em sua processualidade. Um conhecimento que se diz pelo objeto. Como tradução do real e resultado desta tradução, é o próprio fundamento do conhecimento. Conhecimento este que aparece primeiramente como momento indissociável da atividade humana e só depois como crítica ontológica que fundamenta toda uma ciência e filosofia. A apreensão desta ontologia marxiana permite a constatação dos desdobramentos históricos efetivos, tal como a constituição essencialmente histórica da subjetividade humana. Como diz Marx, “... os homens que produzem as relações sociais conforme a sua atividade material produzem também as idéias, as categorias, quer dizer, as expressões abstratas ideais dessas mesmas relações sociais. Assim, as categorias são tão pouco eternas como as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios” (2001b, p.83). O pensamento de Marx é reflexo de determinado momento histórico, e como tal examina e critica a forma de sociabilidade vigente: o capitalismo. Enquanto crítica de uma forma social fundada na propriedade privada, nos antagonismos sociais e na produção mercantil, seu pensamento se apresenta como o mais radical e revolucionário. Somente num mundo fundado na atividade livre dos trabalhadores associados é que se pode, segundo Marx, superar “o estado de coisa atual”, ou seja, pode-se pensar num mundo para além deste. A instauração de uma perspectiva radicalmente revolucionária somente é possível se estiver clara a constituição histórica da generidade humana. Para Marx, não “são os sábios –

53

homens capazes de surpreender Deus nos seus pensamentos mais íntimos – que fazem a história” (2001b, 184), mas os próprios homens em sua atividade. “Deite os olhos à vida real” (2001b, 184) e apreenda as determinações sociais a partir de seu fundamento: o trabalho. O trabalho se consolida como força motriz que impulsiona a constituição social. Esse pressuposto marxiano permite ao investigador da realidade social não se perder em elucubrações dotadas de um sentido posto pela subjetividade humana. Quando Marx critica alguma concepção de mundo, não parte de uma ideia, de um método. Seu ponto de partida é empírico, um complexo. O processo investigado não é apreendido simplesmente a partir do método que o investigador define como o mais adequado. A verdade da investigação não está no método, mas nas coisas. O papel da subjetividade organizada na forma de um método é eficaz somente se partir de uma base objetiva e processual. O método marxiano é, portanto, histórico e dialético.

5 Conclusão A crítica ontológica marxiana aparece então como uma apropriação da realidade efetiva que expressa a possibilidade e a necessidade de uma transformação radical de mundo. Transformação de uma forma social cuja própria manutenção e desenvolvimento é a desumanização cada vez mais acentuada do homem. O projeto ético-político do Serviço Social, portanto, ao se apropriar do arcabouço crítico-teórico do marxismo consegue engendrar uma prática voltada para os interesses dos seguimentos da sociedade que mais sofre com a exploração capitalista. Assim, o fortalecimento desse projeto é fundamental para as lutas a favor de uma sociedade efetivamente ética.

Referências BARROCO, Maria Lúcia. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. São Paulo: Cortez. 2006. ________, Fundamentos éticos do Serviço Social, in: Serviço Social: Direitos Sociais e competências profissionais. BOTTOMORE, Tom (ed). Dicionário do pensamento marxista, Tradução de Waltensir Dultra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. CHASIN, J. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. In: TEIXEIRA, F. J. S. Pensando com Marx. São Paulo: Ensaio: 1995. CHASIN, J. O Método Dialético. s/d (Mimeo) ________. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. In: TEIXEIRA, F. J. S. Pensando com Marx. São Paulo: Ensaio, 1995.

54

CONSELHO FEDERAL DE ASSISTENTES SOCIAIS. Código de Ética Profissional do Assistente Social, 1986. CONSELHO FEDERAL D SERVIÇO SOCIAL. Código de Ética Profissional do Assistente Social, 1993. FRERERICO, Celso. O jovem Marx. As origens da ontologia do ser social. São Paulo, Cortez, 1995. GUERRA, Yolanda. O projeto profissional crítico, in: Serviço Social e Sociedade. São Paulo: Cortez, 2007 HEGEL, G. W. F. A Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 1992. 2 v. IAMAMOTO, MarildaVillela. Serviço Social em tempo de capital fetiche. Capital financeiro, Trabalho e Questão social. 2. Ed. São Paulo: Cortez, 2008. IAMAMOTO, M. V; CARVALHO, R. de. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: Esbolço de uma interpretação histórico-metodológica. 19.ed. São Paulo: Cortez. 2006. KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974a. LUKÁCS, G. As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem. In: Temas de Ciências Humanas, São Paulo, 1978. MARX, Karl. Glosas críticas ao artigo “O rei da Prússia e a reforma social. De um prussiano”. Práxis, Projeto Joaquim de Oliveira, n° 5. 1995. ________. Contribuição à Crítica da Economia Política (Prefácio). IN: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos. Col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1985. ________. O Capital: Crítica da Economia-Política (Posfácio). São Paulo: Civilização Brasileira, 2002. ________. A Questão Judaica. In: Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002. ________. Crítica à Filosofia do Direito de Hegel (Introdução). In: Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002. _________. Glosas Críticas Marginais ao Artigo O Rei da Prússia e a Reforma Social. De um Prussiano. Belo Horizonte: Práxis, 1995. ________. Manuscritos Econômicos-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. ________. A Sagrada Família. Crítica da crítica crítica contra Bruno Bauer e seus seguidores. São Paulo. Centauro editora. 2005. ________. O 18 brumário e cartas a Kugelmann. Rio de janeiro: Paz e terra. 1978 MARX, K. e ENGELS, F.. A ideologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1986. MELO, Adrielle Gois e Medeiros, Lays Caiçara. Os limites para efetivação do projeto éticopolítico do Serviço Social na sociedade capitalista. Trabalho de conclusão de curso em Serviço Social. Maceió/Al. 2009 NETTO, J. P. A Construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social. Frente à Crise Contemporânea. In: Capacitação em Serviço Social e política social: Módulo 1: Crise Contemporânea, Questão Social e Serviço Social, Brasília: CEAD, 1999. ________. O que é Marxismo. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Col. Primeiros Passos). ________. Ditadura e Serviço Social: Uma análise do Serviço social no Brasil pós-64. 11.ed.São Paulo: Cortez. 2007. TEIXEIRA, Joaquina Barata e BRAZ, Marcelo. O projeto ético-político do Serviço Social, in: Serviço social: Direitos Sociais e Competências profissionais. 2005.

55

O DIREITO E AS IMPLICAÇÕES BIOTECNOLÓGICAS: UMA BREVE COLOCAÇÃO DO PROBLEMA

Elce Arruda de ALMEIDA1 Silvânia Gripp MOZER1 1

Faculdade de Minas – Faminas BH, Programa de Graduação e de Pós-Graduação E-mail: [email protected]; [email protected]

Resumo

Os avanços biotecnológicos impõem a necessidade de análise da nova ordem ético-social imposta pela aplicação de suas técnicas. Se por um lado são alardeados os benefícios obtidos com as novas descobertas, incluindo-se aí desde a cura de doenças até então incuráveis, chegando-se à promessa de aumento dos alimentos disponíveis como forma de se eliminar a fome no mundo. Apesar disso, há de se ponderar as consequências advindas dos experimentos, que não são divulgadas, mas que, por força de sua implicação, deverão ser consideradas a partir de uma abordagem do Direito.

Palavras-chave: Biotecnologia. Direito. Transgenia. Células-tronco.

Abstract: The advances in biotechnology requires the need for analysis of the new ethical and social order imposed by the application of its techniques. On the one hand are the benefits touted by new discoveries, including around since the cure of diseases hitherto incurable, coming to the promise of increased food availability as a way to eliminate world hunger. Nevertheless, one should consider the consequences resulting from experiments, which are not disclosed, but which, by virtue of their involvement should be considered as an approach to the law.

Keywords: Biotechnology. Right. Transgenesis. Stem cells.

1 Introdução Nos últimos tempos, a sociedade tem presenciado considerável avanço biotecnológico, o qual vem gerando a necessidade de repensar os meios de garantia dos direitos tão caros e conquistados com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e cristalizados em algumas constituições nacionais. Nesse sentido, as inovações biotecnológicas humanas e ambientais devem passar a integrar os campos de estudo do Direito, pois ainda que tais inovações sejam propagadas como sinônimo de esperança para a humanidade, sua concretização poderá exigir a utilização de técnicas que representam verdadeira afronta aos

56

direitos humanos já conquistados. É sob esse pano de fundo que surge um novo questionamento: como conciliar o Estado Democrático e a tomada de decisão em matérias que exigem conhecimento técnico tão específico como aquelas concernentes à biotecnologia? Deverá o legislador pautar-se somente nas opiniões emitidas pela comunidade científica para a definição do que seja ético ou não, do que afrontaria ou não os direitos humanos que envolvem a biotecnologia? Como deverá ser a participação popular na tomada dessas decisões, considerando que nesse campo o conhecimento seja tão precário? Biotecnologia, segundo a Conferência das Nações Unidas – Rio 92 – são todas as “técnicas que possibilitam a realização pelo homem de mudanças específicas no ácido desoxirribonucléico (DNA), material genético, em plantas, animais e sistemas microbianos, conducentes a produtos e tecnologias úteis”. Segundo Fernando Lolas Stepke (STEPKE, 2007, p. 66), a biotecnologia moderna pode ser caracterizada como a [...] intervenção direta no patrimônio genético, seja para criar novos organismos pela combinação de dois ou mais genomas (organismos geneticamente modificados, organismos transgênicos), seja para gerar novos indivíduos a partir de células somáticas mediante transferência nuclear (‘clonagem’); para introduzir novos genes em um genoma (melhoramento ou modificação de espécies, ‘terapia gênica’) ou para intervir em genes de efeitos nocivos detectados precocemente (indicadores genéticos de doenças, cirurgia gênica).

Trata-se de uma revolução do conhecimento científico e tecnológico que tem eliminado as barreiras biológicas que isolavam evolutivamente os genomas. Nos últimos 30 anos, a Genética vem alcançando enorme desenvolvimento, concentrando recursos nas pesquisas referentes aos microorganismos, ganhando destaque a descoberta da estrutura da função do ácido desoxirribonucléico (DNA). Nos termos da Lei 11.105/2005, mais especificamente seu art. 3º, IV, Engenharia Genética é a “atividade de manipulação de moléculas ADN/ARN recombinantes”. Ainda no mesmo artigo, tem-se que essas moléculas são definidas como sendo aquelas manipuladas fora das células vivas, mediante a modificação de segmentos de ADN/ARN natural ou sintético que possa multiplicar-se em uma célula viva, ou ainda, as moléculas de ADN/ARN resultantes dessa multiplicação. Tal recombinação gênica, segundo Albert Lehminger, citado por Edis Milaré (MILARÉ, 2002, p. 202) consiste na “troca ou adição, biologicamente normal de genes de diferentes origens para formar um cromossomo alterado que possa ser replicado, transcrito e traduzido”. Muito antes do aparecimento da Genética (que em linhas gerais, é a ciência que estuda a hereditariedade), buscava-se o melhoramento de plantas e animais domésticos. De se mencionar Gregor Mendel, monge austríaco que em 1860 deu início a Genética, com os

57

famosos experimentos com ervilhas. Embora, naquela época, não se tenha dado o devido valor às suas descobertas, seu trabalho não só auxiliou o homem no aprendizado sobre a Genética e Hereditariedade, como também sobre Biotecnologia, servindo, inclusive, de fundamento para essa última1. A biotecnologia vegetal nada mais é do que uma evolução em termos de busca do melhoramento das espécies. Em tempos remotos, o homem cultivava culturas agrícolas selecionadas e também se utilizava da hibridação (polinização controlada de plantas) como forma de melhoramento dessas culturas. Como exposto no Fórum de Biotecnologia e Biodiversidade realizado em Brasília, a [...] Biotecnologia Vegetal de hoje permite a transferência de apenas um ou poucos genes desejáveis. Esta ciência, mais precisa, permite que os melhoristas vegetais desenvolvam culturas com características benéficas específicas, sem as indesejáveis, como aquelas que reduzem a produtividade.

Contudo, verifica-se que o tema é questão controversa em face da falta de certeza quanto às consequências que virão da aplicação da biotecnologia não só para o meio ambiente, como para a saúde humana. Maria de Fátima Labarrère (LABARRÈRE, 2001, p. 41) sublinha, recorrendo à Silvia Capelli, os riscos tanto para o meio ambiente como para a saúde humana, em especial pelo fato de estarem sendo liberados organismos geneticamente modificados antes mesmo de conhecer as consequências desta liberação. A realidade é que até mesmo a estimativa da diversidade real de espécies existentes no planeta é um dado marcado pela incerteza, “por controvérsias científicas” (FREIRE, 1998, p. 236). Como consequência, estimativas precisas dos índices de erosão da biodiversidade também ficam prejudicadas. Mas apesar de tais obstáculos, ressaltando que dados mais confiáveis necessitam de descobertas paleontológicas, variando conforme grupos taxonômicos e os períodos geológicos acredita-se que com a erosão da biodiversidade têm ocorrido aproximadamente 17.000 extinções por ano, sendo 10.000 vezes superior à erosão média natural. Atualmente o Brasil detém o maior patrimônio genético do mundo, estando aí incluída a biodiversidade brasileira. Na Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente, RIO 92, a importância da biodiversidade para a manutenção do equilíbrio ecológico também foi destaque. De se mencionar o Protocolo de Cartagena, cujas negociações prolongaram-se durante anos até se consolidar em encontro realizado na cidade de Montreal, em 29 de janeiro de 2000, no qual ficou expressa a preocupação com a proteção necessária

1

Fórum de Biotecnologia e Biodiversidade realizado no CEE/MCT, em Brasília, em 27/11/1999.

58

para a transferência, manipulação e utilização sustentável da diversidade biológica, tendo-se em conta os riscos para a saúde humana. Vislumbra-se, assim, a necessidade de um maior comprometimento do Direito quanto à proteção jurídica das conquistas biotecnológicas, em razão de os novos produtos oferecerem perfis de difícil assimilação pelos instrumentos jurídicos tradicionais, envolvendo conteúdos de natureza ética e interesses econômicos, os quais, pelo menos em princípio, devem ser considerados legítimos. A biotecnologia, pelo que se propõe, abre diversos campos para as indústrias e confere nova perspectiva para áreas da saúde. Se por um lado a capacidade de interferência na matéria viva é muito maior, por outro são imprevisíveis seus efeitos e, não raramente, de difícil controle. A biodiversidade é matéria prima das biotecnologias avançadas e a busca do melhoramento das espécies acaba por expor a fonte da variabilidade ao risco, pois o uso das técnicas biotecnológicas, nesse sentido, impõe uma uniformização, fazendo necessário e urgente resguardar a existência das formas de vida na terra (LABARRÈRE, 2001, p. 10). Não se pode olvidar que o inciso II, §1º, art. 225 da Constituição da República de 1988 confere ao Poder Público a incumbência de promover a preservação da diversidade e a integridade do patrimônio genético do país, bem como a fiscalização das entidades dedicadas à pesquisa e manipulação. Eis aí o fundamento para inserção dos transgênicos no rol das matérias afetas ao Direito Ambiental Constitucional, pois representa questão vinculada à garantia de um ambiente equilibrado e capaz de proporcionar uma sadia qualidade de vida. José Afonso da Silva (SILVA, 2002, p. 94) conceitua diversidade como sendo “o termo técnico que designa a riqueza do conjunto de seres (biocenose) (sic) localizados em determinada área (biótopo)”. Dessa forma, frisa que a questão da biodiversidade faz-se presente no inciso citado, pois a preservação da diversidade e da integridade do patrimônio genético, como exposto no texto constitucional, significa “preservar todas as espécies, através do fator caracterizante e diferenciador da imensa quantidade de espécies vivas do país, estando incluídos todos os reinos biológicos (vegetais e animais)”. Para Paulo Freire (FREIRE, 1998), o conceito de diversidade biológica diz respeito à variedade, variabilidade do conjunto dos seres vivos presentes na biosfera. Uma das indagações que são feitas acerca dos produtos transgênicos, por exemplo, é atinente à uniformização das espécies, o que contraria a previsão constitucional de preservação da diversidade (art. 225).

59

Se o desenvolvimento da biotecnologia vegetal impõe as preocupações acima apresentadas, o que dizer então da biotecnologia humana, que engloba desde pesquisas sobre inseminação artificial, passando pelas terapias gênicas, com células-tronco humanas, até a clonagem terapêutica, que envolvem, acima de tudo, conteúdo ético de maior complexidade, uma vez que nela se tem o homem, sob o pretexto de melhorar as condições de saúde e vida, abrindo mão de direitos tão caros como a dignidade do ser humano, ao passar a decidir sobre quem deve viver e sobre quem deve morrer. Poderia o homem dispor dos direitos daqueles que ainda não nasceram e por isso não têm condições de se autodefender? No campo da biotecnologia humana, muito se discute sobre as pesquisas envolvendo células-tronco de embrião humano. Uma pluralidade de vozes se levanta ora defendendo as pesquisa sob o argumento de que trarão grandes benefícios para o homem no futuro, ora condenando a tentativa de o homem agir como Deus. A humanidade busca um futuro melhor e os avanços biotecnológicos representam, entre várias outras conquistas, a cura de doenças consideradas até hoje incuráveis. Mas é preciso cautela. Assim como nas pesquisas relativas aos transgênicos, a aplicação do princípio da precaução é imprescindível. No mesmo sentido, o Protocolo de Cartagena reconhece que a biotecnologia moderna tem grandes possibilidades de contribuir ao bem da humanidade, mas desde que se desenvolva e utilize medidas de segurança adequadas ao meio ambiente e à saúde humana. Habermas (HABERMAS, 2004, p. 130) levanta um aspecto interessante na manipulação de células-tronco de embriões Em contrapartida, em relação ao embrião a ser modificado geneticamente, o ‘designer’ adota uma atitude otimizante e, ao mesmo tempo, instrumentalizante: em sua composição genética, o embrião no estágio de oito células deve ser melhorado conforme padrões escolhidos subjetivamente.

E isso leva a refletir, juntamente com ele: Será que a primeira pessoa, que determina outra ‘conforme suas próprias preferências’ em sua essência natural, também não destruiria aquelas liberdades iguais, existentes entre os iguais por nascimento, a fim de garantir sua diferença?

Assim, a importância dos debates relativos a tais matérias não deve ser tratado como circunscrito à comunidade científica, mas deve ser pautado nos princípios que informam uma verdadeira democracia4. Até porque é tema que não pode ser discutido no campo da certeza, seja de que não há riscos ao meio ambiente e à saúde humana, seja que represente o risco à perpetuação de espécies. Dentro do próprio conceito moderno de ciência, o conhecimento sobre o tema é limitado, pois não possui fundamentos absolutos. Nessa

4

A democracia aqui referida é a democracia participativa, segundo o modelo discursivo de Habermas.

60

perspectiva, resta saber como lidar com algo marcadamente imprevisível no paradigma do Estado Democrático de Direito, levando-se em consideração os direitos fundamentais previstos na Constituição da República de 1988. Por essa razão, assume papel relevante a Bioética e o Biodireito, pois enquanto a Bioética pode ser definida como o estudo da conduta humana no trato das ciências da vida e da saúde, sob o enfoque moral e principiológico, o Biodireito, nesse contexto, pode ser entendido como o estudo legal da atuação das ciências da vida e da saúde, com enfoque na dignidade e integridade humana, tendo reflexo nas esferas pública e privada (KOSTELNAKI, 2005, p. 176). Para melhor compreensão do tema, proceder-se-á a uma breve exposição das polêmicas que cercam alguns aspectos das implicações biotecnológicas, com o objetivo de ilustrar a necessidade manifesta de reflexão sobre o assunto. Isso será feito através de uma revisão bibliográfica capaz de mostrar que, embora o tema seja atual, os problemas levantados pelos pesquisadores são antigos.

2 A polêmica que envolve os transgênicos: os efeitos desconhecidos da técnica de melhoramento das espécies Rubens Nodari, geneticista e professor da Universidade Federal de Santa Catarina, sublinha que existem dois métodos naturais de transferência de genes, constituindo o primeiro no acasalamento sexual, o cruzamento; e o segundo, na recombinação (NODARI, 1999, p. 141). No entanto, ainda segundo ele, foi criado um 3º método, que é a transferência in vitro, conhecida como engenharia genética. Nesse contexto, plantas transgênicas “são organismos que tiveram seu material genético alterado por métodos não naturais”. A sigla OGMs é utilizada para indicar organismos geneticamente modificados, o que permite afirmar que os transgênicos são aqueles organismos com a estrutura genética modificada através da engenharia genética. Assim que os primeiros produtos oriundos da biotecnologia agrícola foram disponibilizados no mercado, considerações econômicas e comerciais estiveram em confronto com as questões pertinentes a possíveis impactos ambientais, bem como seus efeitos sobre a saúde humana e ainda o devido controle mediante regras claras e eficientes de biossegurança. Como bem observa Carlos Maria Romeo Casabona (CASABONA, 1999), a preocupação quanto ao tema tem se concentrado na manipulação genética de microorganismos e na sua posterior utilização. Tem ganhado relevo o cuidado com o

61

movimento transfronteiriço de produtos transgênicos sendo, inclusive, objetos de discussão no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica. Pode-se citar, também, como fruto dessa sensibilidade, as iniciativas empreendidas pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que expôs algumas reflexões sobre segurança para manipulação do ADN (Ácido Desoxirribonucléico Recombinante). A Comunidade Europeia, já no 4º Programa de Ação em matéria de Meio Ambiente (1987-1992), concluiu que a ação comunitária sobre as novas tecnologias deveria estar centrada na utilização sujeita a critérios de segurança máxima, visando à prevenção de contaminação do meio ambiente através da avaliação dos possíveis riscos e a elaboração de uma regulamentação que respalde e garanta duas atividades mais perigosas, sejam elas a utilização confinada de microrganismo (OMG) e a disseminação voluntária de microrganismos. As diretivas 90/219/CCE e 90/220/CCE expedidas em 23 de abril de 1990 pelo Conselho da Comunidade Européia, representaram a primeira iniciativa normatizadora supranacional relevante sobre atividades que apresentem alto risco tanto para o meio ambiente, como para a saúde humana. Na Declaração de Bilbao, formulada no Encontro Internacional sobre o Projeto Genoma Humano: Aspectos Legais5, realizado na Universidade de Deusto, encontra-se: O corpo humano, por respeito à dignidade da pessoa, não deve ser suscetível à comercialização. Não obstante, permitir-se-á a disponibilidade gratuita e controlada com fins terapêuticos ou científicos. Os conhecimentos genéticos são patrimônios da humanidade e devem ser compartilhados livremente.

Nessa discussão, há de se considerar que, no ordenamento brasileiro, alguns diplomas tratam especificamente sobre a matéria, como a Lei 10.814 de 15 de dezembro de 2003, que autoriza a comercialização e cultivo de produtos transgênicos, apresentando uma série de inconstitucionalidades flagrantes, sendo, inclusive, objeto de discussão da ADI nº 3.109; Lei 11.105/2005 que versa sobre a Lei de Biossegurança, tratando, além da questão afeta aos transgênicos, das pesquisas sobre células-tronco, a qual também foi levada à discussão no Supremo. Entretanto, com a evolução constante da biotecnologia, em face da legislação sobre a matéria, pergunta-se: o problema a ser enfrentado pelo Direito é a necessidade de mais textos de leis ou é a interpretação a eles conferida? E mais: como conferir legitimidades a essas leis, uma vez que as decisões de hoje afetam as gerações futuras?

5

El Proyeto Genoma Humano: Aspectos Legales. vol.II, Fundación BBV, Ed. Bilbao, 1995

62

2.1 As incertezas que permeiam as pesquisas

Como afirmado, a engenharia genética apresenta riscos que, em alguns casos, não são conhecidos. Diante disso, o legislador é convocado a intervir, pois estão sujeitos às consequências da manipulação genética, não somente as plantas e os animais, mas o homem também. E nesse processo de incertezas, mais evidente se torna a necessidade de uma discussão pública acerca do assunto, permitindo ao cidadão democraticamente fazer sua escolha, mas aqui não com vistas a interesses particulares simplesmente, mas visando o bem comum das presentes e futuras gerações. Isso porque o desenvolvimento das pesquisas e a utilização de seus resultados influem diretamente no futuro da própria humanidade. Entre os riscos, há de se mencionar aqueles assinalados por Paulo Affonso Leme Machado (MACHADO, 2011, p. 911). o aparecimento de traços patógenos para humanos, animais e plantas, perturbações para os ecossistemas, transferência de novos traços genéticos para outras espécies, como efeitos indesejáveis, dependência excessiva face às espécies, com ausência de variação genética.

Solange Bento Farah (FARAH, 1997, p. 203) adverte que, no que se refere ao cruzamento entre espécies transgênicas cultivadas e outras espécies daninhas há maior probabilidade de um gene introduzido pela Engenharia Genética em uma planta cultivada ser transferido à espécie agrícola próxima através do cruzamento. Assim, no plantio de plantas transgênicas haverá de ser obedecida determinada distância entre cada cultivo, regra essa que deverá constar da legislação pertinente ao assunto. Outro ponto que merece destaque é o possível surgimento de recombinantes não desejados ou mesmo “inesperados, sintetizando moléculas novas ou exprimindo vírus aparentemente inativados, quando se fabrica OGM”, Organismo Geneticamente Modificado (MACHADO, 2011, p. 911), o que pode ocorrer em função do cultivo de plantas transgênicas em áreas próximas a outros cultivares agrícolas sem que seja obedecida uma distância prudente. Considerando a hipótese de disseminação voluntária de OGMs, pode se perder o controle quanto a esses organismos, como quanto ao gene introduzido, provocando prejuízos ao meio ambiente. Alguns estudiosos acreditam que as funções dos ecossistemas sejam alteradas e, as alterações genéticas com o fim de tornar vegetais e animais mais resistentes ao uso de herbicidas e pesticidas, podem gerar a utilização desses produtos em escala maior, gerando graves problemas com a poluição que acarretariam.

63

Além dos já alardeados problemas ambientais, a introdução de novas substâncias ou plantas pela Engenharia Genética pode provocar reações não desejadas no homem. Não é fato desconhecido que algumas plantas possuem naturalmente moléculas que podem provocar alergia, como os grãos de pólen. Desta forma, é imprescindível o cuidado ao se certificar que as substâncias produzidas pelas plantas, resultado da biotecnologia, não desencadearão reações adversas nos indivíduos. Solange Farah (FARAH, 1997, p. 201) traz um exemplo dessa possibilidade. Cientistas da Universidade de Nebraska verificaram que determinado tipo de soja transgênica, modificada para que produzisse metionina, um aminoácido deficiente neste tipo de semente, poderia provocar em determinados indivíduos alérgicos, a produção de anticorpos contra a soja transgênica e sugeriram a possibilidade de desenvolver uma reação adversa ao cereal. Tal reação se daria porque na soja havia sido introduzido o gene que codifica a metionina na castanha-do-pará, castanha essa que provoca alergia em algumas pessoas. Por tal razão, a Pionner Hi-Bred International resolveu suspender a comercialização de tal produto. Por fim, cabe salientar, ainda dentro da transgenia, que não somente os vegetais são objetos de estudo, existindo também os animais transgênicos. Esse tipo de manipulação genética é realizada com vistas à ocorrência de transformações capazes de conferir aos animais novas propriedades biológicas, como a produção de carne mais magra, por conter lipídios mais magros e a alta capacidade reprodutiva (MACHADO, 2011, p. 912). Contudo se discute as implicações epidemiológicas, como, por exemplo, a proliferação de novos tipos de vírus, frutos de recombinações genéticas capazes de resistir a antibióticos disponíveis e, ainda, os efeitos do consumo dessas carnes, pois, em longo prazo, pouco se sabe sobre suas consequências. Apesar de todos os problemas apontados, o principal argumento utilizado para a defesa da prática da biotecnologia vegetal e animal é o aumento da produção de alimentos a partir do desenvolvimento de suas técnicas, sendo forte instrumento no combate à fome. A redução de custos na produção propiciando alimentos mais baratos e em quantidade maior e mais resistentes a variações climáticas representaria uma alternativa para o combate à fome em países onde o problema se mostra mais grave, como no caso de alguns países africanos. Entretanto, dois pontos devem ser arguidos: não basta a quantidade de grãos, é preciso que eles sejam de qualidade, ou seja, não prejudiciais à saúde, mantendo as mesmas características nutricionais; segundo, há de se indagar se realmente é a quantidade de grãos disponíveis o causador da fome, ou se são as formas de acesso a esses grãos os seus fatores determinantes. Não é desconhecido que nas “nações de famintos” e em outros países

64

subdesenvolvidos impera uma desproporcional distribuição de riquezas. É com esse pano de fundo que se descortina a finalidade do presente trabalho que é justamente despertar a sociedade para a necessidade de reflexão não só científica, mas moral e ética, que culminará na formação do aparato legal do Direito.

3 Pesquisas com células tronco embrionárias: descarte de seres humanos?

Reforçando a exigência da consciência social sobre o tema, cabe pontuar sobre as implicações diretas na vida humana dessas novas tecnologias com a polêmica sobre a utilização de células-tronco. Células-tronco, segundo a biomédica Lílian Piñero Eça (EÇA, 2005, p. 529), “são células indiferenciadas com capacidade de se transformarem, de acordo com os estímulos externos recebidos, em diferentes tecidos”. Por esse motivo, são chamadas também de células pluripotentes. Essas células se subdividem em células-tronco embrionárias e células-tronco adultas. As primeiras são aquelas que compõem “a massa celular interna (MCI) do embrião – fase de blastocisto – de 5 a 8 dias de vida.” São elas que darão origem ao novo indivíduo. Já as células-tronco adultas são aquelas presentes em todos os tecidos do indivíduo adulto e no cordão umbilical. São essas células que viabilizam a substituição das células mortas no organismo humano, trazendo consigo, ainda que já adultas, propriedades típicas das células embrionárias, sendo conhecidas também como células mesenquimais. Para fins do presente estudo, a distinção feita acima é de vital importância, pois os benefícios já obtidos com as pesquisas produzidas com um tipo de célula-tronco (célulastronco adultas) têm sido utilizados para fundamentar a liberação de pesquisas com o outro tipo (células-tronco embrionárias) o que, no meio científico, ainda é bastante polêmico. Fazendo-se um breve histórico das pesquisas e conquistas obtidas no campo da biotecnologia humana, o primeiro grande marco pode ser indicado como sendo o projeto genoma do qual se extraiu a terapia gênica. Grandes investimentos foram feitos, apesar do alerta de alguns estudiosos como Richard Lewontin, até que as aparências não mais se sustentaram diante da morte de uma das “cobaias humanas” da terapia gênica, Jesse Gelsinger. Nesse episódio, como pontua Lílian Piñero (EÇA, 2005, p. 530), vieram a conhecimento público os 691 eventos adversos6 e de sérias conseqüências que não foram comunicados ao National Innstitute of Health, dos Estados Unidos da América.

6

Eventos não esperados ou, se esperados com consequências não controláveis.

65

Se por um lado o projeto genoma e a terapia gênica mostravam sua fragilidade, por outro, o potencial das células-tronco adultas começava a ganhar contornos a partir das pesquisas de cientistas da área de biologia celular. Dessa descoberta, advieram resultados tão positivos que o foco voltou-se para as células-tronco embrionárias humanas, ao ponto de, segundo o professor Moshe D. Tendler, atraírem investimentos de ordem tão grande para as pesquisas com células tronco embrionárias humanas e clonagem humana para fins terapêuticos que, se tal linha de pesquisa fracassar, a falência desses grandes investidores será inevitável (EÇA, 2005. p. 530). Feitas estas primeiras considerações, é preciso passar agora para a problemática que envolve a questão. Considerada a panaceia da medicina, não são poucos os exemplos dos benefícios de sua aplicação, resguardados aqui dados científicos ocultos, podendo-se citar o caso divulgado pela BBC-Brasil em 5.3.2009, sobre a reparação da visão de uma menina britânica de dois anos de idade que nascera cega, a partir de terapia realizada a partir da utilização de célulastronco retiradas do cordão umbilical. Há de se esclarecer que a posição adotada neste trabalho é no sentido de alertar para a face oculta dessas pesquisas científicas, com vistas a destacar a necessidade, em função da complexidade envolvida, de uma participação ativa da sociedade na regulação jurídica da matéria. Passa-se, à polêmica. Segundo Lílian Piñeros, as pesquisas referentes à terapia com células-tronco embrionárias humanas, CTEHs, são condenáveis do ponto de vista científico. Estes fundamentos serão descritos resumidamente a seguir, tendo em vista que não foram expostos na mídia quando da “campanha” em prol da liberação das pesquisas com CTEHs. Em primeiro lugar, quando as células são oriundas de embriões humanos gerados da reprodução assistida, apresentam grau tão grande de rejeição que podem obrigar seu receptor, ou seja, aquele que recebeu CTEHs transplantadas, a tomar imunossupressores por toda a vida. Isso porque, na medida em que essas células se diferenciam na atividade de substituição das células lesadas, começam a liberar proteínas responsáveis pela rejeição, denominadas MHC, Major Histocompatibility Complex7. Outro problema cientificamente apontado é que células-tronco de embriões congelados dão origem, quando utilizadas em terapia, à teratomas, isto é, a tumores de caráter embrionário. Além disso, nesses embriões, ocorrem determinados eventos no DNA que podem “silenciar” genes de funções relevantes no âmbito celular. Essa constatação demonstraria que pesquisas 7

Nesse sentido, conferir os estudos de Drukker M., Karz G., Urbach A., Schuldiner M., Markel, G., Itskovitz-Eldor J., Reubinoff B., Mandelboim e Benvenisty N., na obra Characterization of the expression of MHC proteins in human embryonic stem cells da Proc. Natl. Acad. Science, v. 99, 2002. p. 9.864-9.869.

66

que se utilizem desse tipo de embrião seriam falhas e, pela ausência de segurança de sua base científica seus resultados não poderiam ser utilizados para fundamentar conclusões científicas. Em culturas de CTEHs tem-se observado grande descontrole dos eventos, apresentando, inclusive, anormalidades cromossômicas. Se estes apontamentos não bastassem, sublinha-se ainda o número de embriões necessários para utilização em uma terapia: cerca de 400.000 embriões frescos (não congelados e, portanto, armazenados). Aqui, para melhor compreensão da polêmica que cerca a questão, esclarece-se que, uma vez produzido um embrião, esse embrião é destruído para que se possam retirar as células-tronco embrionárias. A dificuldade de aceitação pacífica desse procedimento reside em fatores de forte cunho ético: esses embriões produzidos seriam diferentes dos embriões produzidos naturalmente no ato da concepção? Haveria o descarte de seres humanos? Importa saber quando se dá o início da vida. Para Larry R. Cochard (COCHARD, 2003, Introdução), Martin Catala (CATALA, 2003, cap. 11) e Romário de Araújo Mello (MELLO, 2000, Introdução), a vida se inicia com a fecundação. E uma vez iniciado esse processo da vida, ele não cessa enquanto esse novo ser humano não esteja completamente perfeito, não sendo possível separar as fases em que se tem e que não se tem um ser humano, pois o blastocisto, formado após a fertilização a partir do 5º dia, segundo Lilian Piñero, não pode ser considerado um mero “monte de células”, porque nele há substâncias que “sinalizam o programa da evolução para formar o ser humano”, o que estaria ausente em um simples grupo de células, por exemplo, de determinado tecido, o qual não seria capaz de se diferenciar em outros tipos de célula (EÇA, 2005, p. 527). Fernando Zegers-Hochschild (ZEGERS-HOCHSCHILD, 1998, p. 10), reforça a dificuldade de se estabelecer uma determinada fase como sendo passível de se determinar se humana ou não. No trecho a seguir pontua “Cualquier estado del desarrollo de un indivíduo requiere, para su existência, de una etapa previa de la cual no puede prescindir. No se puede llegar a adulto sin ser niño y no se puede ser niño sin ser embrión y así sucesivament hasta la etapa de un cigoto unicelular. Si cada etapa do desarrollo se valora por lo que ésta representa, independiente de si e expresará o no la etapa inmediatamente posterior, entonces, ás importante que el ser es estar en el camino al ser. Así, más importante que definir desde cuando se es persona es definir y respectar al camino a ser persona. Como éste es un camino lleno de transformaciones, nunca se está seguro que se ha llegado al final de su caminar, que sólo ocurre com la muerte.”8 8

Tradução livre: “Qualquer estado do desenvolvimento de um indivíduo requer, para sua existência, de uma etapa prévia da qual não se pode prescindir. Não se pode chegar a ser adulto sem ser criança e não se pode ser criança sem ter sido embrião, e assim sucessivamente até a etapa de um zigoto unicelular. Se cada etapa do desenvolvimento se valora pelo que representa, independentemente de se expressar ou não a etapa imediatamente posterior, então, mais importante que o ser é estar no caminho ao ser. Assim, mais importante que definir desde quando se pessoa, é definir e respeitar o caminho a ser pessoa. Come este é um caminho

67

Outro ponto relevante a se considerar contra a liberação de pesquisas com CTEHs é o fato de que, tendo em vista a inviabilidade de utilização de material biológico de outros animais, como soro fetal de bovino, tem-se utilizado para cultivar células-tronco embrionárias camadas de tecidos de fetos em qualquer estágio, as chamadas feeder layer, que são comercializadas nos Estados Unidos em dólares. Essa comercialização foi propiciada pela ordem executiva exarada em 1993 pelo então Presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que afastou a proibição existente de o contribuinte financiar pesquisas em fetos abortados. O trecho a seguir, apesar de longo, merece ser transcrito para uma melhor colocação do problema. Seu título já é impactante: “Oficinas de desmanche humano: o florescente negócio da colheita de tecidos” (GOLISZEK, 2004. p. 378). O sol mal tinha nascido sobre a pequena cidade do meio-oeste americano quando [...] Dentro da clínica, outro técnico estava atarefado, folheando uma lista gerada por computador de formulários de pedidos de pesquisadores em todo o mundo. Os pedidos do dia incluíam rins, cérebro, uma medula espinhal, pulmões, uma perna com quadril anexado, olhos, uma glândula timo e dois fígados. Os pedidos são cuidadosamente examinados para coincidir com as pacientes com hora marcada naquele dia para serem submetidas a abortos. Durante o restante da manhã e tarde, fetos alguns dissecados como numa linha de montagem, acondicionados em gelo seco e despachados pela USPS, FedEx e Airborne para os laboratórios, companhias farmacêuticas, universidades e clínicas, para uso em experimentos médicos. [...] Separado e vendido em peças, um único bebê poderia render até 14 mil dólares. Uma dessas empresas, a Opening Lines, Inc. de West Franklin, Illinois, processa mais de 1.500 fetos por dia e anuncia abertamente ‘tecido de primeira qualidade, de preços mais acessíveis, mais frescos, preparado segundo as suas especificações e entregue na quantidade de que você precisa, no momento em que você precisa. [...].

Seria esse lucrativo comércio a força invisível a promover as campanhas em prol da liberação de pesquisas com células-tronco? Antes de se prosseguir, há de se sublinhar que o escopo do presente trabalho não é assumir posição favorável ou contrária a tais procedimentos. Antes de tudo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, o que se pretende mostrar é que há toda uma complexidade envolvida e que cabe ao povo, povo soberano, decidir democraticamente o que deve ser feito nessas situações no âmbito de cada país. Ainda que o Supremo Tribunal Federal já tenha se manifestado sobre o caso, não há que se falar aqui em ponto final na questão. Até porque se colocada a polêmica com as CTEHs, há de se destacar que a terapia utilizando células-tronco adultas não apresenta os mesmos níveis de polêmica, sendo retiradas do próprio paciente e nele reimplantadas. A se citar de exemplo bem sucedido, o transplante com células tronco do próprio paciente realizado pioneiramente no Brasil em 2001. Um homem de

cheio de transformações, nunca se está seguro que se tenha expressado a totalidade desse indivíduo até que este tenha chegado ao final de seu caminhar, que somente ocorre com a morte.”

68

69 anos portador de cardiopatia grave teve células retiradas do seu organismo e reimplantadas nas áreas lesadas do coração, o que recuperou as funções do órgão após três semanas da realização da cirurgia. Apesar dos benefícios que se podem obter com o desenvolvimento das pesquisas, há de se contrapesar ponderando acerca dos meios utilizados, uma vez não se tratar, a utilização de células embrionárias humanas, a única alternativa científica. Como pontua Elimar Szaniawsky (SZANIAWSKY, 2001, p.97) A embriologia, embora se mostre extremamente promissora para a cura de diversas doenças graves, não nos convence como única e última solução as diferentes modalidades terapêuticas, que procuram restaurar a saúde plena do ser humano. Outras técnicas terapêuticas já desenvolvidas, que estão se desenvolvendo, ou que estão por surgir, possibilitarão a cura de muitas doenças graves a exemplo do que a história da medicina relata, como a descoberta da penicilina, dos antibióticos, que não sacrificam a vida de outros seres humanos, mesmo em estado embrionário.

4 Conclusão Os impactos da biotecnologia refletem em vários setores da sociedade. Há influência socioeconômica, ambiental, na saúde humana e mesmo na qualidade de vida das presentes e futuras gerações. Pode-se mencionar a dependência tecnológica e a perspectiva de agravamento do desemprego rural nos países periféricos, os perigos de uma “revolução verde”, pois os benefícios econômicos da biotecnologia podem conduzir à prioridade de planos de fortalecimento econômico estratégico de empresas que atuem na área, desprezando os riscos dessa atuação. Nesse contexto, problemas como o êxodo rural e hiperurbanização em áreas rurais de países em desenvolvimento poderão ser intensificados, pois a introdução das biotecnologias em economias de mercado obriga os produtores que ainda utilizem métodos tradicionais a mudarem seus métodos para os de tecnologias intensivas em capital. Quanto à biotecnologia humana, uma vez considerados os interesses envolvidos, não se pode afastar o risco de utilização e comercialização de células e tecidos humanos, ou mesmo o eugenismo induzido pelo diagnóstico preciso de doenças genéticas e pelas modificações do genoma de futuros embriões, enfim, os efeitos (que podem ser tidos como perversos por alguns) da adoção das técnicas de fecundação in vitro aliadas ao transplante de embriões, por via da utilização de células-tronco embrionárias. Diante de toda a problemática que envolve o desenvolvimento da biotecnologia, deve-se atentar para a regulamentação jurídica da matéria, que não poderá ser fechada. Uma vez revisada bibliografia sobre o tema, consta-se que há um contexto oculto, não muito

69

divulgado, mas que merece atenção social. Como o tema envolve a transformação de organismos vivos que podem se reproduzir e multiplicar de forma quase incontrolável, gerando efeitos não esperados, não desejáveis à continuidade da vida humana e do meio ambiente, dada à falta de precisão quanto à avaliação dos riscos e a complexidade do monitoramento dessas atividades cercadas de várias dificuldades operacionais, a regulamentação jurídica da matéria deve ser definida por todos os envolvidos. Há de se ponderar que, no marco da Modernidade, o máximo com que se consegue é lidar com os problemas, e no marco do Estado Democrático de Direito, sob a égide de uma Constituição como a brasileira de 1988, há de se pretender a definição de normas democraticamente produzidas objetivando o respeito aos direitos e garantias constitucionais conquistados, ainda que sob o pano de fundo de verdadeira revolução biotecnológica. Assim, os conteúdos próprios do tema nesse trabalho debatidos conduzem à conclusão que o avanço biotecnológico é inevitável, entretanto, nesse caminho a ser trilhado pela ciência, cabem à Bioética e ao Biodireito as discussões necessárias à adequação das práticas adotadas, fiscalizando e normatizando, na medida em que surgirem situações que exijam controle. Todavia, essa fiscalização e normatização devem, necessariamente, no contexto de um Estado Democrático de Direito, nascer de uma participação social também ativa, dentro, logicamente, de uma discussão que, pela sua complexidade, não poderá jamais fechar o tema, tomando-se decisões com a consciência de que impactarão as presentes e futuras gerações.

5 Referências Bibliográficas CASABONA, Carlos Maria Romeo. Do Gene ao Direito. São Paulo: Ibcrim, 1999. CATALA, Martin. Embriologia, Desenvolvimento Humano Inicial. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003. COCHARD, Larrry R.. Atlas de Embriologia de Netter. Porto Alegre: ArtMed, 2003. EÇA, Lilian Piñero. “Por que não à terapia com células tronco embrionárias – CTEH’s”. In: GANDRA, Ives coord.. Direito Fundamental à Vida. São Paulo: Quartier Latin, 2005. FARAH, Solange Bento. DNA Segredos & Mistérios. São Paulo: Sarvier, 1997. FREIRE, Paulo Vieira. “Erosão da Biodiversidade e gestão patrimonial das interações” apud VARELLA, Marcelo Dias (org). O Novo em Direito Ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. GOLISZEK, Andrew. Cobaias humanas: a história secreta do sofrimento provocado em nome da ciência. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. HABERMAS, Jürgen. O futuro da natureza humana. São Paulo: Martins Fontes, 2004. KOSTELNAKI, Marilise. Direito e Bioética – o princípio do respeito à autonomia da vontade da pessoa como fundamento do consentimento informado. In: CLOTET, Joaquim, et AL (coord.). Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

70

LABARRÈRE, Maria de Fátima. “A atual legislação de biossegurança no Brasil”, In: Boletim dos Procuradores da República. Ano IV – Nº 41 – setembro, 2001. MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental. São Paulo: Malheiros, 2011. MELLO, Romario de Araujo. Embriologia Humana. São Paulo: Atheneu, 2000. MILARÉ, Edis. Estudo Prévio de Impacto Ambiental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. NODARI, Rubens. Efeitos conhecidos e potenciais dos transgênicos sobre a saúde humana e ao meio ambiente, In: Seminário Internacional sobre biodiversidade e transgênicos. Brasília: Senado Federal, 1999. SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. STEPKE, Fernando Lolas. “De genômica e gen-ética: binômica e bioética”, in: CASABONA, Carlos Maria Romeo; SÁ, Maria de Fátima Freire de (coord.). Desafios Jurídicos da Biotecnologia. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007. SZANIAWSKY, Elimar. “O embrião excedente – o primado do direito à vida e de nascer. Análise do art. 9º do Projeto de Lei do Senado nº 90/99” In: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro. v. 8, out/dez 2001. ZERGERS-HOCHSCHILD, Fernando. “Dilemas de la reproducción asistida”, In: Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro: 1998. v. 14, nº 1, jan/mar.