Eixo 8 – Direito dos Pacientes Internação compulsória à luz dos Direitos Humanos dos Pacientes Aline Albuquerque 1

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a adequação da internação compulsória, prevista na Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida como a “Lei da Reforma Psiquiátrica”, à luz dos Direitos Humanos dos Pacientes. Trata-se de pesquisa documental baseada na produção institucional de organismos e agências internacionais com o objetivo de concorrer para o balizamento da atuação dos Estados quanto à restrição de liberdade e autonomia das pessoas com transtornos mentais ou de pessoas com deficiência mental ou intelectual. Observa-se, na esfera internacional, a presença atual de profundo debate sobre a vedação ou não de qualquer internação involuntária a partir do advento da CIDPD. Por outro lado, constata-se que não há nenhuma alusão nos documentos e na jurisprudência internacional à internação compulsória como medida de saúde mental. Conclui-se que a única interpretação aceitável acerca da internação compulsória prevista na Lei nº 10.216, de 2001, é a de que se restringe à pessoa condenada com pena de reclusão e declarada inimputável; a outra interpretação, a de que a internação compulsória pode ser determinada pelo juiz sem crime, é frontalmente violadora dos direitos humanos. Palavras-chave: direitos humanos; saúde mental; internação compulsória. Introdução A Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001, conhecida como a “Lei da Reforma Psiquiátrica”, tendo em conta o momento histórico de sua aprovação, constitui avanço no tratamento das pessoas com transtornos mentais ou de pessoas com deficiência mental ou intelectual (1). A Lei citada prevê duas espécies de internação sem o consentimento do paciente, a involuntária, determinada por médico, e a compulsória, pelo juiz. Sendo assim, este artigo tem como objetivo analisar a adequação da internação compulsória, prevista na Lei citada, sob a ótica dos Direitos Humanos dos Pacientes (2). Embora se revele importante o exame da internação involuntária, como categoria de institucionalização internacionalmente reconhecida, em razão do recorte feito, o foco recairá tão somente sobre a internalização compulsória, inexistente no plano internacional como medida de cuidado em saúde ou como “um recurso que deveria ser a última estratégia de cuidado” (3). Em consequência, as colocações feitas neste artigo dizem respeito à internação

1 Programa de Pós-Graduação em Bioética da UnB.

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involuntária, as quais serão empregadas posteriormente na análise da medida compulsória. Os Direitos Humanos dos Pacientes são um ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que abarcam o conjunto de convenções, pactos, declarações internacionais em matéria de direitos humanos aplicados aos cuidados em saúde; e a jurisprudência internacional correlata (4). Os Direitos Humanos dos Pacientes conferem especial atenção às pessoas com transtornos mentais em razão da sua persistente estigmatização e da sua submissão histórica a condições desumanas e degradantes. Atualmente, no plano internacional, o tema da internação involuntária de pacientes com transtornos mentais e de pessoas com deficiência mental ou intelectual é extremamente controverso (5), isto é, verificam-se duas posições sobre a temática: uma vertente aceita a internação involuntária se determinadas condições específicas forem atendidas; e a outra vertente considera tal tipo de internação contrária aos direitos humanos. Metodologia Trata-se de pesquisa documental baseada na produção institucional de organismos e agências internacionais com o objetivo de concorrer para o balizamento da atuação dos Estados quanto à restrição de liberdade e autonomia das pessoas com transtornos mentais. Sendo assim, foram utilizados os seguintes documentos: os Princípios de Proteção da Pessoa com Transtorno Mental e a Melhora dos Cuidados em Saúde, adotados pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas - ONU em 1991 (6); a Declaração de Caracas, adotada, em 1990, pela Conferência para a Restruturação do Cuidado Psiquiátrico na América Latina, evento promovido pela Organização Panamericana de Saúde (7); ainda, o documento produzido pela Organização Mundial da Saúde - OMS denominado “Legislação sobre saúde mental e direitos humanos” (8), o Relatório do Relator Especial sobre o Direito à Saúde (9) e o Relatório do Relator Especial sobre Tortura e Outro Tratamento Cruel, Desumano ou Degradante (10). Sob a perspectiva dos direitos humanos das pessoas com deficiência, o tema será examinado à luz da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência - CIDPD, interpretada pelo Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (11) e pela OMS, por meio do QualityRights (12).

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Resultados Primeira vertente: interdição involuntária aceitável sob o prisma do Direitos Humanos dos Pacientes A primeira vertente parte da concepção de que, sob o prisma dos Direitos Humanos dos Pacientes, é aceitável a internação involuntária, se determinadas condições forem atendidas, tais como: a) seja comprovada a presença de transtorno mental conforme critério internacionalmente aceito e baseado em evidência; b) o diagnóstico de transtorno mental e a medida de restrição devem ser atos praticados por profissional de saúde; c) presença dos melhores interesses para o paciente: ser adotada quando o paciente coloca sua própria vida em risco e não detém capacidade mental; d) a internação deve ser analisada por Corpo de Revisão, legalmente estatuído; e) a internação deve ser precedida de cuidados em saúde e seu propósito há que ser terapêutico; f) a internação deve ser a medida mais eficaz, após todas as demais terem sido tentadas e se revelado incapazes de obstar a ameaça do paciente a si mesmo; g) a medida deve ser de curta duração; h) características específicas da instituição de saúde mental. No que toca às condicionantes, sublinha-se que em razão da gravidade da internação involuntária, a legislação internacional de direitos humanos as estabelece de modo a reduzir ao máximo a ocorrência de violações de direitos humanos dos pacientes (13). No que tange à abordagem de cada um dos critérios apontados, inicialmente, destaca-se que a OMS assenta que deve haver comprovação de que o paciente seja diagnosticado com transtorno mental, de acordo com critérios baseados em evidências científicas e internacionalmente aceitos (14). Quanto ao segundo critério, os Princípios de Proteção da Pessoa com Transtorno Mental e a Melhora dos Cuidados em Saúde, da ONU, tratam da internação involuntária em seu Princípio 16 como “se, e apenas se, um profissional de saúde mental qualificado e autorizado por lei para este fim determinar, de acordo com o Princípio 4, que a pessoa apresenta um transtorno mental:” (15). Além de a internação involuntária dever ser determinada por profissional de saúde, uma salvaguarda adicional para proteger os direitos da pessoa detida involuntariamente consiste no exame do paciente por outro profissional de saúde independente, em separado do profissional que determinou a medida (16). No que tange à presença dos melhores interesses para o paciente, sublinha-se que a internação involuntária apenas pode ser determinada por profissional de saúde quando 876

houver séria possibilidade de dano imediato iminente à pessoa, aplicando-se no caso os melhores interesses do paciente (17). Embora documentos internacionais assentem que o dano a outrem ou a necessidade de tratamento possam ser motivação da internação involuntária, atualmente, entende-se que tais fatores não amparam a internação (18). Com efeito, caso a pessoa apresente risco para outrem, o Estado pode lançar mão de outros instrumentos jurídicos existentes para a prática de atos ilícitos, com a observância do devido processo legal e outras garantias de direitos humanos (19). Quanto à imperiosidade da revisão da medida, os Princípios da ONU assentam que o Corpo de Revisão deve ser um órgão judicial ou outro, cuja atuação se alicerça na assistência de um ou mais profissionais de saúde mental, qualificados e independentes. Como se nota, o Poder Judiciário constitui instância de revisão da internação involuntária. Dessa forma, é essencial, do ponto de vista dos direitos humanos, que a decisão da internação involuntária passe pelo crivo de instância judicial. A Corte Europeia de Direitos Humanos fixou que a privação de liberdade de pessoas com transtornos mentais sem o escrutínio judicial é arbitrária (20). A internação involuntária só é admissível quando há um propósito terapêutico, o que não implica necessariamente a medicalização do paciente, pois seu cuidado pode envolver uma ampla gama de terapêuticas, como abordagens reabilitativas e psicoterapêuticas (21). A internação deve ser a medida mais eficaz após todas as demais terem sido tentadas e terem se mostrados incapazes de obstar a ameaça do paciente a si mesmo, isso em razão do atual modelo de cuidado em saúde mental alicerça-se na preservação dos vínculos sociais do paciente, dessa forma, a internação, seja voluntária ou involuntária, é medida a ser adotada se, e apenas se, todas as outras formas de tratamento foram tentadas e não surtiram efeito (22). Com efeito, a Declaração de Caracas assenta a priorização dos cuidados comunitários e integrados com as redes sociais do paciente (23). Portanto, a internação involuntária deve ser sempre a última medida terapêutica. A internação involuntária deverá ser de curta duração para observação e tratamento preliminar e se encontrará pendente até sua reavaliação pelo Corpo de Revisão (24). Por fim, no que concerne à instituição que recebe o paciente admitido involuntariamente, essa apenas poderá recebê-lo se tiver sido designada para tal pela autoridade competente prescrita legalmente (25). Com efeito, a instituição deve ser

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acreditada para prover cuidados em saúde mental, adequados e apropriados previamente à admissão de pacientes internados involuntariamente (26). Em seguida, tratar-se-á da abordagem que se coloca contrária a qualquer forma de internação involuntária.

Inadequação compulsória

aos

direitos

humanos

da

interdição

involuntária

e

A inadequação de qualquer medida de internação involuntária fundamenta-se na perspectiva dos Direitos Humanos dos Pacientes sob a ótica da CIDP, especificamente, interpretada pelo Comitê sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU (27) e pela OMS, por meio do QualityRights (28). Sendo assim, com base na CIDPD é vedada qualquer forma de privação de liberdade baseada na deficiência mental ou intelectual da pessoa. Nessa linha, a maioria da literatura sobre o tema publicada após a CIDPD sustenta que o artigo 14 estabelece a proibição de todas as formas de privação de liberdade baseada unicamente na deficiência. Em consequência, o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência recomenda que os Estados repilam todas as leis vigentes que permitam a institucionalização e o tratamento forçado de pessoas com deficiência, incluindo psicossocial e intelectual, bem como sua internação involuntária vinculada a um suposto diagnóstico de deficiência. Aduz o Comitê que a internação involuntária de pessoas com deficiência baseada no risco ou no perigo, bem como na necessidade de tratamento é contrária ao artigo 14 da CIDPD. O Grupo de Trabalho sobre Detenção Arbitrária, vinculado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU também se posiciona no sentido da absoluta proibição da privação de liberdade de pessoas com deficiência (29). Particularmente quanto à internação involuntária de pessoas que fazem uso de drogas, a OMS e o United Nations Office on Drugs and Crime – UNODOC assenta que “nem a detenção e o trabalho forçado têm sido reconhecidos pela ciência como tratamento para desordens de pessoas que fazem uso de drogas” (30). A internação sem consentimento de pessoas que fazem uso de drogas, comumente determinada sem avaliação médica, revisão judicial ou direito de apelo, se mostra sem evidência científica ou como um tratamento efetivo. Ao revés, a detenção dessas pessoas consiste em violação aos direitos humanos e são substitutos ilegítimos de medidas baseadas em evidência, tais como terapia de substituição, intervenções psicoterapêuticas e outras formas de 878

tratamentos consentidos. As evidências demonstram que a detenção arbitrária e injustificada é frequentemente acompanhada de abuso mental e físico (31). Subsequentemente, abordar-se-á a internação compulsória prevista na Lei nº 10.216, de 2001 com base na primeira vertente exposta. Discussão Embora não seja o recorte deste artigo, nota-se que a internação involuntária no Brasil

segue

precariamente

a

compreensão

internacional

acerca

dos

critérios

indispensáveis para que se coadune com os direitos humanos da pessoa com transtorno mental ou da pessoa com deficiência mental ou intelectual, ou seja, cumpre apenas parcialmente dois critérios: é determinada por profissional de saúde e há previsão de Corpo Revisor. Ao se tratar do enfoque escolhido, há que se sublinhar que a internação compulsória, enquanto medida de saúde pública, inexiste no plano internacional, porquanto se admite tão somente a hipótese da internação involuntária, medida determinada por profissional de saúde que objetiva o tratamento do paciente, submetida ao crivo de Corpo Revisor, com todas as salvaguardas procedimentais necessárias para assegurar os direitos humanos do paciente. Com efeito, o que se observa, na esfera internacional, é a presença atual de profundo debate sobre a vedação ou não de qualquer internação involuntária a partir do advento da CIDPD, assim, não há nenhuma alusão nos documentos e na jurisprudência internacional à internação compulsória, medida de caráter judicial e sem natureza terapêutica, como prática de saúde mental. Diante de tal fato, conclui-se que a internação compulsória prevista na Lei nº 10.216, de 2001, não se enquadra no campo da saúde mental, pois se não for esse o entendimento, ou seja, se sustentar que detém natureza de cuidados em saúde, concluir-se-ia que o Estado brasileiro ignora todos os ditames da OMS, da OPAS, da ONU e outras instâncias internacionais sobre pessoas com transtornos mentais e pessoas com deficiência intelectual e mental. Consequentemente, é insustentável afirmar que uma internação sem o consentimento do paciente pode ser determinada pelo Poder Judiciário sem intermediários do campo da saúde, haja vista que em qualquer Estado democrático tal Poder realiza o papel de Corpo Revisor de medidas restritivas de liberdade. No mesmo sentido, é inaceitável, sob a ótica dos Direitos Humanos, que a internação sem o consentimento do paciente não seja submetida em curto lapso temporal à sua revisão ou que sua autorização deixe de passar pelo crivo de mais de um

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profissional de saúde. Ainda, a medida de saúde mental apena se justifica se for destinada aos cuidados em saúde do paciente internado, o que não se coaduna com a previsão, constante da Lei nº 10.216, de 2001, de que os pacientes serão internados em estabelecimento com condições de segurança no caso da internação compulsória; ademais, o fato da Lei fazer referência apenas à segurança da instituição que receberá o paciente conduz à nítida acepção de que não se trata de internação com finalidade terapêutica, conforme entendimento exposto da jurisprudência internacional. Atualmente, no Brasil, se constata a presença de posições absolutamente dissonantes dos parâmetros internacionais e que se traduzem na determinação judicial da internação compulsória como suposta medida de saúde publica, notadamente quando se trata de pessoas que fazem uso de drogas. Embora não seja o objeto deste artigo, pode-se conjecturar que tal entendimento disseminado se correlaciona com os traços históricos da sociedade brasileira de autoritarismo e exclusão das pessoas com transtornos mentais e de pessoas com deficiência intelectual e mental. Desse modo, é, de fato, alarmante como decisões e entendimento dos órgãos do Sistema de Justiça se revelam completamente alheios às normas de direitos humanos e ao que se apregoa internacionalmente em matéria de saúde mental. Por fim, à luz dos Direitos Humanos dos Pacientes, a única interpretação aceitável acerca da internação compulsória é a de que se restringe à pessoa condenada com pena de reclusão e declarada inimputável. A outra interpretação, a de que a internação compulsória pode ser determinada pelo juiz sem crime, é frontalmente violadora dos direitos humanos e incompatível com a imagem que o Estado brasileiro almeja na comunidade internacional de ente compromissado com os direitos humanos. Referências 1. Esses termos serão utilizados neste artigo sem se adentrar na controvérsia acerca do emprego de cada um deles. SURJUS, Luciana TL; CAMPOS, Rosana TO. Interface entre Deficiência Intelectual e Saúde Mental: revisão hermenêutica. Rev Saúde Pública 2014;48(3):532-540. 2. ALBUQUERQUE, Aline. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá, 2016. 3. GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima; LARA, Lutiane; ECKER, Daniel Dall’Igna. A internação compulsória como estratégia de governamentalização de adolescentes usuários de drogas. Estudos de Psicologia, 21(1), janeiro a março de 2016, 25-35. 4. ALBUQUERQUE, Aline. Direitos Humanos dos Pacientes. Curitiba: Juruá, 2016.

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5. OMS. Legislación sobre salud mental y derechos humanos. Disponível em: http://www.who.int/topics/human_rights/Legislacion_salud_mental_DH.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 6. UNITED NATIONS. The protection of persons with mental illness and the improvement of mental health care. Disponível em: http://www.un.org/documents/ga/res/46/a46r119.htm. Acesso em: 2 ago. 2017. 7. PAHO. The Caracas Declaration. Disponível em: http://www1.paho.org/hq/dmdocuments/2008/DECLARATIONOFCARACAS.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 8. OMS. Legislación sobre salud mental y derechos humanos. Disponível em: http://www.who.int/topics/human_rights/Legislacion_salud_mental_DH.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 9. HUNT, Paul. Report to General Assembly (Main focus: Main focus: Mental disability and the right to health). Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/Issues/Health/Pages/AnnualReports.aspx. Acesso em: 3 ago. 2017. 10. MÉNDEZ, Juan E. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session22/A.HR C.22.53_English.pdf. Acesso em: 2 ago. 2017. 11. WANG, Daniel W Liang; KNEENE, Alex Ruck; FLETCHER, Ruth et al. Disability, deprivation of liberty and human rights norms: reconciling European an international approaches. International Journal of Mental Health and Capacity Law. 2016. p. 75-101. 12. WHO. WHO QualityRights Tool Kit. Genebra: WHO, 2012. 13. MÉNDEZ, Juan E. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session22/A.HR C.22.53_English.pdf. Acesso em: 2 ago. 2017. 14. OMS. Legislación sobre salud mental y derechos humanos. Disponível em: http://www.who.int/topics/human_rights/Legislacion_salud_mental_DH.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 15. UNITED NATIONS. The protection of persons with mental illness and the improvement of mental health care. Disponível em: http://www.un.org/documents/ga/res/46/a46r119.htm. Acesso em: 2 ago. 2017. 16. OMS. Legislación sobre salud mental y derechos humanos. Disponível em: http://www.who.int/topics/human_rights/Legislacion_salud_mental_DH.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 17. OMS. Legislación sobre salud mental y derechos humanos. Disponível em: http://www.who.int/topics/human_rights/Legislacion_salud_mental_DH.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 18. MÉNDEZ, Juan E. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment. Disponível em:

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http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session22/A.HR C.22.53_English.pdf. Acesso em: 2 ago. 2017. 19. WANG, Daniel W Liang; KNEENE, Alex Ruck; FLETCHER, Ruth et al. Disability, deprivation of liberty and human rights norms: reconciling European an international approaches. International Journal of Mental Health and Capacity Law. 2016. p. 75-101. 20. WANG, Daniel W Liang; KNEENE, Alex Ruck; FLETCHER, Ruth et al. Disability, deprivation of liberty and human rights norms: reconciling European an international approaches. International Journal of Mental Health and Capacity Law. 2016. p. 75-101. 21. UNITED NATIONS. The protection of persons with mental illness and the improvement of mental health care. Disponível em: http://www.un.org/documents/ga/res/46/a46r119.htm. Acesso em: 2 ago. 2017. 22. OMS. Legislación sobre salud mental y derechos humanos. Disponível em: http://www.who.int/topics/human_rights/Legislacion_salud_mental_DH.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 23. PAHO. The Caracas Declaration. Disponível em: http://www1.paho.org/hq/dmdocuments/2008/DECLARATIONOFCARACAS.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 24. UNITED NATIONS. The protection of persons with mental illness and the improvement of mental health care. Disponível em: http://www.un.org/documents/ga/res/46/a46r119.htm. Acesso em: 2 ago. 2017 25. OMS. Legislación sobre salud mental y derechos humanos. Disponível em: http://www.who.int/topics/human_rights/Legislacion_salud_mental_DH.pdf. Acesso em: 3 ago. 2017. 26. UNITED NATIONS. The protection of persons with mental illness and the improvement of mental health care. Disponível em: http://www.un.org/documents/ga/res/46/a46r119.htm. Acesso em: 2 ago. 2017. 27. WANG, Daniel W Liang; KNEENE, Alex Ruck; FLETCHER, Ruth et al. Disability, deprivation of liberty and human rights norms: reconciling European an international approaches. International Journal of Mental Health and Capacity Law. 2016. p. 75-101. 28. WHO. WHO QualityRights Tool Kit. Genebra: WHO, 2012. 29. WANG, Daniel W Liang; KNEENE, Alex Ruck; FLETCHER, Ruth et al. Disability, deprivation of liberty and human rights norms: reconciling European an international approaches. International Journal of Mental Health and Capacity Law. 2016. p. 75-101. 30. MÉNDEZ, Juan E. Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel, inhuman or degrading treatment or punishment. Disponível em: http://www.ohchr.org/Documents/HRBodies/HRCouncil/RegularSession/Session22/A.HR C.22.53_English.pdf. Acesso em: 2 ago. 2017. 31. HUNT, Paul. Report to General Assembly (Main focus: Main focus: Mental disability and the right to health). Disponível em: http://www.ohchr.org/EN/Issues/Health/Pages/AnnualReports.aspx. Acesso em: 3 ago 2017

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Um olhar sobre o nascer: vozes e vivências de parto e puerpério no hospital regional de Ceilândia Thaís Damasceno1 Silvia Badim2

RESUMO: A temática humanização do parto e nascimento vem sendo estudada, discutida e analisada mundialmente. Pesquisas, políticas e iniciativas vem tentando mudar a lógica tecnocrática e intervencionista que é considerada hoje no Brasil o modelo de atenção obstétrica predominante nas instituições públicas e privadas. Este estudo buscou analisar a percepção das puérperas que tiveram atendimento durante o trabalho de parto e puerpério no Hospital Regional de Ceilândia, no Distrito Federal, bem como identificar o nível de implementação das políticas e iniciativas de humanização do parto e nascimento. Foram entrevistadas 50 mulheres, a maioria classificou o atendimento no parto como bom (80%), entretanto a partir dos relatos foram identificadas algumas práticas consideradas pela Organização Mundial da Saúde como claramente prejudiciais e ineficazes, como taxa excessiva de episiotomia, uso rotineiro de ocitocina e predominância da posição supina durante o trabalho de parto. Das mulheres entrevistas 34% relataram terem sofrido algum tipo de constrangimento ou injustiça no parto, apesar do hospital ser considerado Hospital Amigo da Criança há 20 anos, mais mudanças devem ocorrer nas rotinas e normas organizacionais para tornar o atendimento mais humanizado. Palavras chave: Humanização; parto e nascimento; violência obstétrica. Introdução A vivência do parto é estabelecida de forma distinta entre o profissional da saúde e a mulher. O processo parturitivo ao longo dos séculos é descrito por sentimentos antagônicos: alegria e dor, esperança e medo. O tema adquiriu relevância e grande preocupação dos estudos, além de políticas de humanização dos serviços voltadas para o parto e nascimento (1). Milhares de mulheres morrem anualmente no mundo devido complicações maternas, a vulnerabilidade social é um fator determinante dessa alta taxa de morbimortalidade. Apesar da assistência ao parto e nascimento no Brasil ser institucionalizada, sendo realizada principalmente em hospitais por profissionais de saúde habilitados, com acesso à tecnologia, insumos e equipamentos médicos, não foi revertido em tempo esperado a razão de mortalidade materna e neonatal, sendo considerado um paradoxo perinatal (2). 1 2

Universidade de Brasília. E-mail: [email protected] Universidade de Brasília

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A garantia dos direitos à saúde das mulheres tem uma relação direta com o direto à saúde estabelecido na Constituição Federal de 1988 e nos princípios do Sistema Único de Saúde, entre eles a integralidade e a igualdade que buscam a concretização de práticas de atenção que garantem o acesso das mulheres às ações resolutivas elaboradas a partir das especificidades do ciclo vital feminino e do contexto em que surgem as necessidades das mesmas, considerando todos os aspectos envolvidos no processo saúde e doença, como gênero, etnia e classe social (3). No Brasil, o estado a fim de minimizar os problemas que cercam o processo gravídico, implantou em 1984, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM), que foi aprimorado 20 anos depois com a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PNAISM). A temática humanização do parto e nascimento no Brasil teve um marco histórico fundamental com a criação do Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento (PHPN) em 2000, firmando os direitos de cidadania das mulheres e crianças (4). Apesar da Organização Mundial da Saúde (OMS) evidenciar boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento, classificadas em evidências científicas, o modelo de parto no Brasil continua sendo centrado na atuação do profissional médico, retirando o protagonismo da mulher e dos demais profissionais de saúde envolvidos no ciclo gravídico puerperal, colocando-a no papel de submissa e frágil, num corpo sem voz nem direito à autonomia (5). Segundo o Dossiê “Parirás com dor” de 2012, a violência obstétrica é caracterizada por atos praticados contra a mulher no exercício de sua saúde sexual e reprodutiva podendo ser cometidos por profissionais de saúde, ou outros profissionais envolvidos na atenção prestada a mulher. (6). A violência obstétrica é um conceito em construção, que vem sendo utilizado para caracterizar as mais diversas violências físicas, psíquicas e patrimoniais, sofridas pelas mulheres na hora do parto. Inclusive, violando diversas normativas legais e de políticas já estruturadas pelo Ministério da Saúde. Este estudo pretende analisar a percepção das mulheres que tiveram assistência ao trabalho de parto e puerpério no Hospital Regional da Ceilândia (HRC) no Distrito Federal, sobre a assistência recebida no pré-natal, parto e nascimento, e uma identificação do nível de implementação das últimas políticas voltadas ao tema no hospital, o qual foi intitulado

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Hospital Amigo da Criança, e busca adequar o Centro Obstétrico e a Maternidade às mudanças preconizadas pela IHAC, PHPN e Rede Cegonha. Metodologia Trata-se de estudo descritivo qualitativo realizado na maternidade do Hospital Regional de Ceilândia, no Distrito Federal. Este estudo foi pautado na Resolução 466/2012, submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências da Saúde da SES – FEPECS/SES, CAAE: 57113316.9.0000.0030 . Foi elaborado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE),

apresentando

proposta

em

linguagem

simples

e

acessível

ao

entendimento/compreensão das puérperas assegurando-lhes informações sobre o objetivo do estudo, liberdade em participar da pesquisa, privacidade, anonimato, bem como direito de desistir a quaisquer fases desta pesquisa, sem prejuízo para sua imagem e assistência. Os riscos referem-se a eventuais constrangimentos que as mulheres poderiam sentir durante a entrevista, ou ainda com a presença dos pesquisadores em seus aposentos. Para tanto a equipe contou com estratégias de humanização e cuidado na abordagem, respeitando sempre o tempo e a vontade das mulheres em participarem das entrevistas. Os benefícios referem-se à avaliação dos serviços referentes ao pré-natal, parto e puerpério, que possibilitou identificar estratégias para a sua melhoria e adequação às normas do Ministério da Saúde e da Rede Cegonha. O estudo contou com uma amostra aleatória de 50 mulheres, que foram entrevistadas por meio de um questionário semiestruturado, constituído de questões que buscou avaliar a percepção das puérperas que receberam atendimento do parto e puerpério no Hospital Regional de Ceilândia, sobre o atendimento prestado no pré-natal, no processo parturitivo e pós-parto. Os critérios de inclusão foram de serem maiores de idade e terem sido atendidas no hospital em todo o processo de parto e puerpério. Os dados foram tabulados em planilha do Programa Excel for Windows, e em seguida analisados no programa SPSS versão 22.

Resultados Das 50 mulheres que participaram da pesquisa, a média de idade foi de 28 anos. A maioria das mulheres eram multíparas 64% da amostra. A respeito de etnia 58% eram negras, e 42% brancas. A frequência do parto normal foi maior em relação a cesárea, com 32 partos normais e 18 cesarianas.

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A maioria das mulheres (54%) relataram não terem recebido orientações sobre planejamento familiar. O local de realização do pré-natal variou entre as entrevistadas, a maioria realizou na Ceilândia, mas Águas Lindas em segundo lugar (22%), teve um número expressivo de mulheres. Um dado relevante é que 4% das mulheres que receberam atendimento no hospital relataram não terem realizado o pré-natal. Da utilização de um plano de parto a frequência de mulheres que não tiveram essa oportunidade de expressar suas vontades foi superior das que tiveram, sendo 11 relataram terem um plano de parto e 39 de não terem. Sobre o processo de parto e nascimento as mulheres avaliaram o atendimento recebido no centro obstétrico em sua maioria como bom e regular (86%), e 14% como ruim. Das 50 puérperas, 40 receberam orientações, explicações e deram consentimento para a realização dos procedimentos durante o parto, entretanto 10 relataram não terem recebido esse tipo de conduta. Das puérperas que tiveram parto normal (32) quando questionadas sobre procedimentos realizados no processo de parto, em nenhuma foi utilizado o enteroclisma, fórceps e a analgesia. Em apenas uma puérpera a prática de tricotomia foi utilizada. A indução foi relatada em mais da metade dos números de parto normal, com 59,4%. A posição prevalente foi a supina, com 93,8% de uso, apenas duas mulheres relataram estar em posições diferentes no parto, sendo elas cócoras e a outra sentada. A episiotomia foi citada em 11 partos, a orientação sobre puxos foi em maioria no período expulsivo (93,8%). Ao avaliarem o atendimento recebido na maternidade 82% consideraram como bom, 14% regular e 4% como ótimo. A presença do acompanhante não foi permitida em nenhum parto cesáreo, dentro dos partos normais 20 puérperas tiveram acompanhante e 12 não tiveram. Na maternidade mais da metade das mulheres não tinha acompanhantes totalizando 56%. Ao serem questionada sobre terem passado por algum tipo de constrangimento ou injustiça no atendimento, 34% das mulheres responderam que sofreram. Sobre o conhecimento do termo “humanização do parto”, 42% das puérperas desconhecem, e dentre as que conheciam algumas consideraram como sendo apenas o parto domiciliar e acham perigoso, outras classificaram como bom, mas longe da realidade delas, visto como um parto para pessoas de alto poder aquisitivo. Discussão 886

Uma das formas de combater a mortalidade materna e infantil é o acompanhamento do pré-natal, a privação desse cuidado pode gerar prematuridade, retardo do crescimento intrauterino, baixo peso ao nascer e óbito (7). Entre as puérperas que realizaram o prénatal a maioria classificou o atendimento como bom, acharam que as informações foram suficientes e quando tiveram dúvidas as mesmas foram esclarecidas. Porém uma parte da amostra não realizou o pré-natal. Os insumos de contraceptivos enviados a atenção básica, não garantem que o planejamento familiar alcance a qualidade e eficácia desejada, para que todo cidadão possa exercer sua livre escolha de ter ou não filhos, quando e quantos desejar, para isso os profissionais devem entender o planejamento familiar como parte da atenção básica (8). Este estudo confirmou um déficit na orientação sobre planejamento familiar, a maioria das mulheres (54%) relataram não terem recebido informações sobre o tema. Ao analisar a procedência das mulheres, neste estudo, observa-se que uma parte das mulheres (34%), eram de outra localidade, o que evidencia a razão da superlotação na maternidade, que além de suprir a demanda da Ceilândia, o hospital atende um número expressivo de mulheres de Águas Lindas do Goiás. Existe uma relação positiva entre o uso do plano de parto e nascimento com práticas que diminuem o número de hospitalizações e gastos na saúde, reforça a autonomia das mulheres e influencia positivamente o trabalho de parto e sua finalização, aumentando a segurança, eficácia e satisfação, bem como o empoderamento (9). Neste estudo poucas mulheres tiveram oportunidade de ter um plano de parto, o que demonstra o pouco uso desse instrumento na atenção às mulheres em processo gravídico na região. A prevalência da cesárea no Hospital Regional de Ceilândia neste estudo foi de 36%, bem abaixo da encontrada no setor de saúde suplementar em 2012, que chega próximo de 86% e da média nacional do SUS que fica próxima de 43%, porém ainda acima da recomendação da OMS de 15% (10). Em geral a diminuição do número de cesárea devese ao comprimento das recomendações baseadas em evidências para indicações de cesarianas eletivas e intraparto ou de urgência. Não sendo abordada a situação da cesárea “a pedido”, sem indicação médica definida (11). Ao avaliarem o atendimento recebido durante o trabalho de parto as mulheres classificaram a maioria como bom, mas uma parte avaliou a assistência como ruim. Dentre as que tiveram parto normal, nenhuma relatou o uso de enteroclisma, fórceps ou

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analgesia, apenas uma relatou a realização de tricotomia pelos profissionais, essas práticas não serem mais rotina, mostra uma adequação do atendimento do hospital com o que é preconizado pela OMS, de eliminar essas práticas claramente prejudiciais ou ineficazes (12). A respeito do uso de ocitocina no trabalho de parto, mais da metade das mulheres que tiveram parto normal relataram que receberam a infusão, resultado parecido com o encontrado num estudo transversal sobre a utilização de intervenções e procedimentos obstétricos, realizado no Centro de Parto Normal (CPN) do Hospital Geral de Itapecerica da Serra (HGIS), que o uso foi em quase metade das mulheres, essa proporção é superior àquelas encontradas em diversos estudos de base hospitalar, comunitária ou domiciliar, com variações de 1,4% a 36,2%. A infusão rotineira de ocitocina interfere na fisiologia do parto, restringe os movimentos das mulheres e em alguns estudos as mulheres relacionam o seu uso com aumento da dor (13). Sobre a episiotomia neste estudo 34% das mulheres relataram que o procedimento foi utilizado em seus partos, tem sido sugerido que taxas acima de 20% a 30% são excessivas, as taxas do uso variam de acordo com o tipo de prestador da assistência, as diferenças regionais e as políticas institucionais adotadas sobre o manejo do parto. No estudo realizado por SCHNECK Et al (2006), mostrou que a posição lateral no parto normal reduziu significativamente o uso da episiotomia, evitaram a compressão de grandes vasos abdominais e permitiu melhores trocas maternas e fetais. Neste estudo realizado no HRC, a maioria das mulheres 93,8%, ficaram na posição dorsal e litotômica, justamente as que a OMS contraindica no processo de parto (13). “Queria ter um parto natural sem rasgar e sem induzir”

O protagonismo no parto deve ser da parturiente, entretanto é reconhecido os benefícios de um acompanhante nesse processo, o suporte emocional diminui a utilização de analgesia e ocitócicos e reflete num trabalho de parto mais curto. Das mulheres entrevistas neste estudo nenhuma das que tiveram parto cesáreo foram acompanhadas, dentre as que tiveram parto normal 62,5% tiveram acompanhante durante o parto (14). A maioria das mulheres neste estudo classificaram o atendimento recebido na maternidade como bom, a unidade funciona com o sistema de alojamento conjunto, após o nascimento o recém-nascido sadio permanece junto com a mãe 24 horas por dia, num mesmo ambiente, apesar das dificuldades estruturais, de segurança e superlotação

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identificadas pela supervisão de enfermagem, a prioridade é a manutenção do alojamento conjunto, que tem muitas vantagens na saúde binômio mãe e filho (15). Sobre o acompanhante na maternidade, 56% das mulheres relataram não terem nenhum acompanhante, sendo que muitas dessas disseram não terem recebido orientações sobre o assunto. No Brasil a violência obstétrica é vista como formas de violência ocorridas na gravidez, ao parto, ao pós parto e ao abortamento. Estudos mostram a existência de uma hierarquia sexual, de modo que quanto maior a vulnerabilidade da mulher mais rude e humilhante tende ser o tratamento oferecido a ela. A banalização da violência institucional é exemplificada por parturientes que já esperam sofrer algum tipo de maltrato (5). Das mulheres entrevistadas 34% relataram ter sofrido algum tipo de constrangimento ou injustiça dentro da instituição, na maioria dos relatos esses fatos ocorreram no momento do parto, as mulheres que sofreram esse tipo de violência se sentiram desrespeitadas, abandonadas e humilhadas. “Quanto mais gritar menos se é atendido, se ficar mais calada é dada mais atenção. ” “Funcionária falou que os gritos das gestantes durante o parto é frescura e sem necessidade” “O médico me falou ao sair: Até o ano que vem! ” “Algumas pessoas da equipe negaram atendimento quando pedi ajuda no Centro Obstétrico. ”

Os resultados sobre o conhecimento das mulheres sobre a humanização do parto e nascimento, revela que o assunto é pouco divulgado, 42% não sabiam do que se tratava, dentre as que tinham algum conhecimento sobre o tema classificaram como sendo algo bom para as mulheres e outras como sendo perigoso por assimilarem apenas com o parto domiciliar. “Humanização é interessante, evita da mulher escutar insultos ou sofrer algo constrangedor.” “É bom mas é coisa de gente que tem dinheiro, gente rica, pra pobre não tem isso não”

Conclusão Diante dos resultados obtidos neste estudo, bem como o atual modelo obstétrico encontrado no país em relação ao parto e nascimento, e apesar das evidências científicas, 889

das políticas e iniciativas públicas, a maternidade e o centro obstétrico do Hospital Regional de Ceilândia enfrentam ainda muitas dificuldades para mudar as rotinas e as normas organizacionais e atender de forma humanizada o parto e nascimento. Ainda que as mulheres tenham avaliado o atendimento no pré-natal como bom, algumas relataram não terem sido assistidas durante a gestação, sendo assim a atenção básica deve criar estratégias para que gestantes não fiquem sem assistência no pré-natal, além disso os profissionais devem compreender a importância de orientar sobre planejamento familiar, garantindo o direito à saúde sexual e reprodutiva. A análise dos dados demonstra que algumas práticas claramente prejudiciais e ineficazes já foram eliminadas no atendimento do hospital durante o trabalho de parto, como o uso de enteroclisma, fórceps e analgesia. Porém outras dessas práticas foram relatadas pelas puérperas, como o uso de rotineiro de ocitócicos, epsiotomia e posições de parto inadequadas. As mulheres em sua maioria classificaram o atendimento do parto como bom, o que evidencia o grau de desconhecimento sobre seus direitos, de acordo com o número de procedimentos desnecessários identificados e pelos relatos de constrangimento e injustiça sofridos no processo de parto e nascimento, o que leva a uma reflexão sobre o conhecimento dessas mulheres dos seus direitos em relação a atenção humanizada no parto e nascimento, o local atende uma população de baixa renda e pouca escolaridade o que pode estar associado a essa concepção de bom atendimento apesar de terem sofrido violência obstétrica e institucional. O tema humanização do parto vem sendo muito discutido no âmbito científico e político mas este estudo mostra que as mulheres não estão sendo orientadas sobre seus direitos e que na percepção delas a humanização está longe da realidade da população mais pobre, sendo assim mais esforços são necessários para que a atenção ao parto e nascimento seja de fato humanizada para todas as mulheres e visto como um direito. Referências 1 GRIBOSKI, Rejane; GUILHEM, Dirce. Mulheres e profissionais de saúde: o imaginário cultural na humanização ao parto e nascimento. Texto & Contexto Enfermagem, Florianópolis, v. 15, n. 1, jan./mar. 2006. Disponível em: . Acesso em: 20/05/2016 2 ANDRADE, M.; LIMA , J. O Modelo Obstétrico e Neonatal que Defendemos e com o 890

qual Trabalhamos. Cadernos Humaniza SUS, v. 4, p. 20 a 42, 2014. 3 COELHO Et al. INTEGRALIDADE DO CUIDADO À SAÚDE DA MULHER: LIMITES DA PRÁTICA PROFISSIONAL. Escola Anna Nery, Revista de Enfermagem, 2009. Disponível em: 05/10/2016 4 JÚNIOR Et al. A Doula na Assistência ao Parto e Nascimento. Caderno HumanizaSUS, vol 4, p. 201, Brasília, 2014. 5 DINIZ Et al. Violência Obstétrica como Questão para Saúde Pública no Brasil: origens, definições, tipologias, impacto sobre a saúde materna, e propostas para sua prevenção. Journal of Human Growth and Development, Vol 25, n° 3 São Paulo, 2015. 6 PARTO DO PRINCÍPIO. Dossiê Violência Obstétrica “Parirás com dor”. CPMI da Violência Contra as Mulheres, 2012. Disponível em: Acesso em: 20 de Junho de 2016 7 ROSA, Crisitane; SILVEIRA, Denise; COSTA, Juvenal. Fatores associados a não Realização de Pré-Natal em munícipio de grande porte. Rev Saúde Pública, Pelostas, RS, 2014. Disponível em:< http://www.scielo.br/pdf/rsp/v48n6/pt_0034-8910-rsp-48-60977.pdf > Acesso em: 12/09/2016 8 OSIS Et al. Atenção ao planejamento familiar no Brasil hoje: reflexões sobre os resultados de uma pesquisa. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 22(11):2481-2490, Novembro, 2006. 9 CORTÉS Et al. Uso e influência dos Planos de Parto e Nascimento no processo de parto humanizado. Universidad de Murcia. Facultad de Enfermería, Murcia, Espanha, 2015. Disponível em: Acesso: 19 de Junho de 2016 10 AMORIM, Melania; SOUZA, Alex; PORTO, Ana. Indicações de Cesarianas Baseadas em Evidências: Parte I. FEMINA, vol 38 , nº 8, Recife, Pernambuco, 2010 11 NAKANO, Andreza; BONAN, Claudia; TEIXEIRA, Luis. A normalização da como modo de nascer: cultura material do parto em maternidades privadas no Sudeste do Brasil. Instituto Nacional de Saúde da Criança, da Mulher e do Adolescente Fernandes Figueira / Fiocruz. Departamento de Ensino. Rio de Janeiro RJ, 2015. Disponível em: Acesso em : 06/10/2016 12 ROCHA, Jaqueline; NOVAES, Paulo. Uma reflexão após 23 anos das recomendações da Organização Mundial da Saúde para parto normal. FEMINA, volume 38. Março, 2010. Disponível em :< http://files.bvs.br/upload/S/0100- 7254/2010/v38n3/a002.pdf> Acesso em: 18/10/16

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13 SCHNECK Et al. Resultados maternos e neonatais em centro de parto normal perihospitalar e hospital. Rev. Saúde Pública vol.46 no.1 São Paulo, 2012 14 LONGO Et al. Participação do acompanhante na humanização do parto e sua relação com a equipe de saúde. Rev. Eletr. Enf, 2010. Disponível em: < https://www.fen.ufg.br/fen_revista/v12/n2/v12n2a25.htm> Acesso em: 02/07/16. 15 BRASIL, Ministério da Saúde. Normas Básica para Alojamento Conjunto. Brasília, 1993.

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O ponto de interseção entre o Sistema Único de Saúde e a justiça Ísis de Siqueira Silva1 Thais L. L. Araújo Taynar J. L. Araújo RESUMO: Objetivo: Este artigo tem como objetivo levar a uma reflexão sobre os direitos e a qualidade do atendimento ao usuário dos serviços de saúde público. Ressaltando que ocorreu melhoria na legislação e na teoria do serviço de assistência sendo referencia em organização. Metodologia: foi realizada uma revisão bibliográfica no portal regional da BVS sendo utilizados como critérios de pesquisa- direitos (and) paciente (and) SUS (and) saúde, o resultado foi 16 artigos, que após a utilização dos filtros- Discussão: Com a lei orgânica do SUS os direitos dos pacientes ficaram mais nítidos no senário da saúde, contudo, a realidade da prática da assistência ainda apresenta falhas no que se refere a humanização do atendimento. Podemos considerar que a falta de conhecimento acerca dos direitos do paciente impede dificultam a reivindicação por parte deste e da família, por uma assistência mais eficaz em que ocorra a prevenção de doenças, recuperação de danos e promoção de saúde. Conclusão: Ao problematizar as questões éticas, é importante ressaltar a importância da contribuição do paciente como sujeito ativo no processo saúde-doença, e que os serviços públicos não visam lucro, a missão desses serviços é o atendimento a quem precisa, portanto se faz urgente a necessidade de um treinamento para a conscientização dos profissionais de saúde, de todos os níveis, para a importância de um melhor atendimento a este usuário de serviço de saúde. Já que conforme observado nesta revisão, a literatura já garante ao usuário um atendimento humanizado, ficando a prática com necessidade de aperfeiçoamento. Partido do pressuposto que o conhecimento dos direitos torna o usuário um sujeito ativo na luta pelas melhorias do SUS e em sua defesa. Palavras chave: Direito; Paciente; SUS Se a organização e o funcionamento dos sistemas de saúde na década de 1980 foram marcados pelos princípios da eficácia, otimização e eficiência, a partir dos anos 1990 são incorporadas as noções de qualidade, equidade, satisfação e autonomia do usuário. Neste bojo se situa a humanização da atenção à saúde, trabalhada com mais intensidade na atualidade. Até o final do século XVIII, o hospital não era um instrumento terapêutico, mas sim um lugar destinado à exclusão, pois confinava no mesmo espaço todos os segmentos da população considerados nocivos para a sociedade e que, portanto, mereciam viver à margem do convívio social, como loucos, prostitutas, pobres, além de pessoas doentes. Já o hospital moderno, tecnologicamente avançado, passa a privilegiar uma disciplina rígida 1

Universidade Federal de Campina Grande- UFCG. Email: [email protected]

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dos espaços, separando doentes e doenças, em nome da assepsia e da preservação dos corpos. Busca agora a terapêutica, com vigor e afinco cada vez mais diferenciados, negligenciando então, quase que rotineiramente, o caráter humano dos sujeitos que necessitam de cuidados em função de estarem acometidos por uma doença (1). O hospital não era apenas um instrumento destinado a curar, mas sim uma instituição de assistência aos pobres, e sobretudo ao pobre que está morrendo, que deve ser assistido material e espiritualmente. Para lá iam pessoas que estavam à morte. Caracterizava-se, então, segundo o autor, como um "morredouro", lugar de práticas religiosas que visavam a salvação de almas. Fica claro que há tempos a humanização do serviço está sendo estudada, quando se discutem práticas humanizadas na assistência à saúde, não se pode correr o risco de cair no obscurantismo científico, ao se defender uma atuação que leve em conta o acolhimento, a intimidade e a naturalidade nas relações de ajuda. Tais práticas, que resgatam a dimensão humana na assistência tem sido tratada como algo sintético, e não de forma espontânea profissional-paciente (2). Em primeiro lugar é necessário pensar como os profissionais desumanizam-se mutuamente no cotidiano do hospital, sem que tenham consciência de seus atos, antes mesmo de se falar em desumanização do atendimento. A começar pelas relações hierarquizadas e assimétricas que a realidade institucional lhes impõe. As rotinas de trabalho que muitas vezes submetem o profissional a turnos pesados atrapalham na relação entre o profissional e o paciente, o momento de informar doente e familiares sobre a realidade do quadro de saúde passa a ser um momento delicado, onde as informações não devem ser omitidas, e ficar bem esclarecidas para todos. O paciente possui o direito à informação em saúde, sendo que a “[...] compreensão pelo paciente das informações recebidas reveste-se de grande importância. Devem ser a ele transmitidos os elementos relevantes e suficientes para que possa emitir um consentimento livre e esclarecido”(³). Nesse sentido, os profissionais da saúde que não aplicam o direito à informação aos pacientes do Sistema Único de Saúde, são responsáveis por uma conduta ilícita e respondem por seus atos na esfera cível, gerando a chamada responsabilidade civil. Os profissionais da saúde têm o dever de informar e aconselhar o paciente: O médico tem o dever de informar o doente, familiares ou responsáveis legais, a respeito da enfermidade e suas peculiaridades, as complicações que poderão surgir com o tratamento e os efeitos colaterais”. o paciente tem

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o direito de receber informações claras acerca dos procedimentos que vão ser ministrados, seus custos, alternativas, riscos, benefícios, inconvenientes das medidas terapêuticas propostas, prescrições, cuidados a seguir e remuneração profissional.

O direito a uma comunicação eficiente entre profissional e paciente. Devido a natureza técnica da medicina, muitos pacientes não conseguem compreender, por si sós, toda a problemática de sua condição e tampouco os procedimentos adotados pela equipe médica. Assim, é fundamental que os profissionais busquem fazerem-se compreender, e que tente formar uma ligação com o paciente, deixando-o confortável para relatar seus sintomas, tirar suas dúvidas e, inclusive, opinar em seu tratamento. Outro ponto de importância é a obtenção do consentimento do paciente. Esse consentimento informado é um processo de comunicação entre médico e paciente, que deve abranger as informações a respeito de riscos dos procedimentos, benefícios, e alternativas, possibilitando ao indivíduo tomar uma decisão autônoma sobre se deseja ou não se submeter ao tratamento ou procedimento. Também é direito do paciente que seu prontuário seja elaborado com os devidos cuidados, constando toda a continuidade do tratamento e evolução, nele devendo serem anexados a anamnese e demais exames, devendo este prontuário ser preenchido de forma individual e com escrita legível. Sendo também é direito do paciente o completo sigilo dos seus dados e informações, que só podem ser acessados pela equipe médica ou de enfermagem, sendo vedada sua divulgação. Por fim, é direito do paciente que quaisquer erros ocorridos nos procedimentos a que for submetido sejam compartilhados consigo, cabendo aos profissionais traçarem então um plano de ação para a correção, sempre levando em conta os desejos do paciente. Ao problematizar as questões éticas, é importante ressaltar a importância da contribuição do paciente como sujeito ativo no processo saúde-doença considerando uma ética baseada na condição humana e nos ideais partilhados pelos homens, assim como a um conjunto de valores que fundamentam a compreensão dos empreendimentos científicos e tecnológicos. Pode ser expresso pelo caráter e qualidade da atenção, levando em conta interesses, desejos e necessidades dos atores sociais implicados nesta área. Bioética é parte do cotidiano de todo ser humano e, portanto, deve ser enfatizada e voltar-se para os conflitos e dilemas do dia a dia, como os direitos do usuário e o conteúdo do conceito de cidadania em saúde (5)

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Um novo entendimento que vem sendo utilizada em bioética é a finalidade do exercício dos direitos pelos usuários, que deve ter como propósito a humanização dos serviços de saúde, e a garantia da cidadania em saúde. “O direito é um componente central da noção de cidadania”. Assim, é fundamental que se tenha o respeito aos direitos do cidadão, como usuários do serviço, sendo este, o principal fator que indica a qualidade para o planejamento e admi-nistração dos serviços de saúde. Nesse sentido, para que se consolide todos os princípios preconizados pelo SUS relacionados aos direitos dos pacientes, as inúmeras barreiras de-vem ser enfrentadas diariamente, tanto por parte dos gestores quanto na mobilização da so-ciedade, a fim de favorecer o acesso e garantir uma melhor qualidade aos serviços de saúde prestados à população. [...] “Não se trata apenas da construção de um sistema de normas, portarias ou leis, mas da criação de condições objetivas para a implementação dos dispositivos que garantam o exercício dos direitos na vida cotidiana das pessoas”. Pode-se considerar que a falta de conhecimento acerca dos direitos do paciente impede dificultam a reivindicação por parte deste e da família, por uma assistência mais eficaz em que ocorra a prevenção de doenças, recuperação de danos e promoção de saúde. Con-tudo, vale destacar que as criações de ouvidorias locais representam um espaço para orien-tar usuário e família sobre seus direitos, essa seria uma iniciativa para a consolidação do exercício da cidadania nos espaços de assistência à saúde, Sendo importante o incentivo de todos os profissionais de saúde para que esses espaços de dúvidas e escuta de queixas não deixem de existir nos âmbitos de atendimento ao usuário. Ainda que seja a base estrutural da busca pela excelência do bom atendimento ao usuário dos serviços de saúde público, o termo “humanização” demonstra não estar cumprindo o papel que se espera dele, ficando desta forma carente de normas de procedimentos mais efetivas acerca das condutas dos profissionais de saúde em relação aos

usuários

ou

em

relação

a

outros

profissionais

quando

se

trata

de

atendimento/relacionamento interno. Entretanto, o profissional da área da saúde precisa compreender a importância de ter um paciente bem informado, pois essa característica possibilita o empoderamento deste, e historicamente falando, sabe-se que a construção do SUS se inicia com a luta popular em busca de seus direitos, portanto para que o sistema

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continue a melhorar há a necessidade de difusão das informações, quando necessárias, para que o usuário tenha o devido atendimento na rede de saúde. Observou-se na literatura que são várias as falhas quanto ao respeito aos direitos dos usuários durante as consultas no SUS, e, que o mais evidente e comprometedor é o atendimento, seja ao usuário externo, ao usuário interno e ao usuário periférico. Cabe lembrar que quando citamos o usuário interno, externo e periférico, não podemos nos esquecer de que o usuário interno é todo aquele que faz parte do quadro de profissionais dos setores de atendimento ao usuário dos serviços de saúde, que o usuário externo é todo aquele que busca atendimento nas unidades de prestação de serviços de saúde, incluindo-se ai os próprios profissionais de saúde, e que ainda há aquele que recebe um atendimento indireto na busca dos serviços de saúde, podemos exemplificar neste caso os acompanhantes dos pacientes, as pessoas que dependem economicamente da boa saúde do usuário entre outros, estes, podemos nominar como sendo os usuários periféricos. Levando em consideração que os serviços públicos não visam lucro, e os serviços de saúde não são diferentes, a missão desses serviços é o atendimento a quem precisa, portanto se faz urgente a necessidade de um treinamento para a conscientização dos profissionais de saúde, de todos os níveis, para a importância de um melhor atendimento a este usuário de serviço de saúde. Diante deste distanciamento entre profissionais e usuários buscou-se através do PNHAH desenvolver ações visando estreitar essas relações tendo como objetivo a melhoria do atendimento a usuários e profissionais. A Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde editada em 2006 prevê em seus seis princípios que: 1. Todo cidadão tem o direito ao acesso ordenado e organizado aos sistemas de saúde; 2. Todo cidadão tem direito a tratamento adequado e efetivo para seu problema; 3. Todo cidadão tem direito a atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação; 4. Todo cidadão tem direito a atendimento que respeite a sua pessoa, seus valores e seus direitos; 5. Todo cidadão também tem responsabilidade para que seu tratamento aconteça de forma adequada;

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6. Todo cidadão tem direito ao comprometimento dos gestores da saúde para que os princípios anteriores sejam cumpridos.

Conclusão Humanizar, é tratar as pessoas levando em conta seus valores e vivências como únicos, evitando quaisquer formas de discriminação negativa, de perda de autonomia, é preservar a dignidade do ser humano. Essa dignidade que se busca preservar, a mesma que se vê ameaçada quando as políticas de humanização de atendimento ao usuário se mostram eficazes na teoria, mas não demonstram grandes efeitos e grande alcance na prática. Antes de entender o cidadão como apenas um consumidor em busca de um serviço, neste caso o serviço de saúde, é preciso que o entendamos como um cidadão fragilizado na sua saúde, portanto, em sua condição física e psicológica, o que exige nesse momento uma postura humanística e ética no que se refere ao acolhimento e respeito por parte dos profissionais acolhedores a este usuário, não podendo neste mesmo momento esquecer que este mesmo conceito deve ser aplicado pelos gestores aos profissionais que tenham um contato direto com os usuários que buscam atendimento e dependem exclusivamente dos serviços de saúde públicos. Logo, é necessário que se rompa o círculo vicioso onde se tem gestores não compromissados com a formação de profissionais de excelência, uma vez que estes, os profissionais, não se mostram interessados em prestar serviços de qualidade aos usuários, visto que não se sentem devidamente valorizados e por último, mas não em menor importância, onde se tem usuários que reclamam constantemente do atendimento recebido e cobram principalmente dos profissionais, que são a linha de frente, uma melhor atenção e acolhimento. É importante também que se tenha gestores e profissionais com conhecimento prático do funcionamento dos serviços públicos de saúde, uma vez que grande parte desses atuam ou gerenciam estes serviços, mas não os utilizam quando necessitam de buscar atendimento de algum tipo de serviço de saúde, utilizando-se, na grande maioria, dos serviços de saúde privados, que como se pode perceber, por visarem o lucro em suas atividades, tem um atendimento e relacionamento usuário/prestador inverso ao que se percebe na área pública.

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Diante de todo o exposto, fica a sugestão de que haja maiores e, sobretudo, melhores investimentos por parte dos gestores no treinamento dos profissionais, de forma que esses percebam claramente a importância de atender bem ao usuário dos serviços de saúde, além de se esperar também que os usuários sejam melhor conscientizados de seus direitos e das limitações dos serviços de saúde públicos e espera-se que com os resultados positivos destas ações, inverta-se o ciclo vicioso atual, onde se poderá ter usuários satisfeitos o que leva a menos reclamações, levando a profissionais mais receptivos o que levaria os gestores, diante da positividade dos serviços bem prestados em suas unidades, a investir cada vez mais no preparo dos profissionais e na informação dos usuários.

Referências - 1,2-Foucault, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal Editores(1985). - 3-Siqueira, Maria Fernanda Santos. Consentimento Informado: O direito do paciente à Informação, o respeito à sua autonomia e a responsabilidade civil do médico. Revista da Escola Superior da Magistratura de Pernambuco. Recife,1996. - 4-Policastro D. Erro médico e suas consequências jurídicas /Imprenta: Belo Horizonte, Del Rey, 2010.3. ed. - 5,6,7- Santos, Ellen Cristina Barbosa dos et al. Políticas públicas e direitos dos usuários do Sistema Único de Saúde com diabetes mellitus.Revista Brasileira de Enfermagem, 2011 - 8-Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde Programa Nacional de Humanização da Assistência Hospitalar / Ministério da Saúde, Secretaria de Assistência à Saúde,2001 - 9-Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização: a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS / Ministério da Saúde, 2004 - 10-Brasil, Ministério da Saúde, Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Brasília, 2006 - 11- RECH, CMF. Humanização hospitalar: o que os tomadores de decisão pensam a respeito? [Dissertação]. São Paulo, Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, 2003.

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Privacidad del menor maduro y tratamiento de datos clínicos en el derecho español: incoherencias del actual marco normativo (1) Inmaculada Vivas-Tesón1

RESUMO: La inconexa regulación española de los actos del menor de maduro en el ámbito biosanitario genera una enorme confusión e innumerables dificultades en la práctica cotidiana del profesional sanitario (quien no es un operador jurídico) cuando se trata de recabar su consentimiento y de proteger sus datos clínicos. Un detenido análisis de las normas apl icables y de algunas de sus interpretaciones nos conducirá a realizar algunas propuestas de lege ferenda. Palavras-chave: menor de edad, privacidad, protección de datos, salud

Introducción El menor de edad no emancipado se caracteriza por tener una capacidad limitada, por ello que requiera una representación legal para la realización de los actos jurídicos (a excepción de los contemplados en el art. 162 del Código civil, entre los cuales se encuentran los relativos a los derechos de la personalidad), en concreto, patria potestad o tutela, sistemas de guarda que han de ejercitarse siempre en interés superior del menor (art. 2 de la Ley Orgánica 1/1996, de 15 de enero, de Protección Jurídica del Menor, de modificación parcial del Código Civil y de la Ley de Enjuiciamiento Civil, precepto modificado en 2015), de acuerdo con su personalidad y con respeto a sus derechos, su integridad física y mental (art. 154 del Código civil). Además, su situación de especial vulnerabilidad provoca que el Ministerio Fiscal tenga encomendada su protección y defensa (art. 3 de la Ley 50/1981, 30 diciembre, por la que se regula el Estatuto Orgánico del Ministerio Fiscal). Si bien en el Ordenamiento jurídico español se parte de la premisa de que el menor de edad no emancipado tiene una capacidad limitada, se tiene muy presente que es un sujeto tendencialmente capaz, razón por la cual, a medida que va adquiriendo suficiente juicio para entender y querer, se le reconoce la posibilidad de realizar, por sí mismo (por consiguiente, sin ser sustituido por quien ostente su representación legal), actos tanto en la 1

Universidad de Sevilla (España). E-mail: [email protected]

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espera personal como en la patrimonial, antes de alcanzar su mayoría de edad y capacidad plena. Sin embargo, las normas que reconocen dicha posibilidad utilizan criterios dispares para cada acto jurídico y, además de ello, unos son de carácter objetivo y otros de índole subjetiva: para algunos actos la edad (12 años para ser oído en la toma de decisiones que le afecten o para consentir su adopción, 14 años para otorgar testamento salvo el ológrafo o para adquirir la nacionalidad ó 16 años para contraer matrimonio o emanciparse), para otros la madurez suficiente (el “madurómetro” aún no existe, de modo que surge el problema de a quién compete el juicio de si se trata o no de un menor maduro con el discernimiento necesario para el acto en cuestión) o bien ni uno ni otro (por ejemplo, para el reconocimiento de hijos extramatrimoniales ex art. 121 del Código civil).

Las cotidianas dificultades para el profesional sanitario ante el menor maduro Nuestra inconexa regulación legal del menor de edad genera una enorme confusión e innumerables dificultades en la práctica cotidiana del profesional sanitario (quien no es un operador jurídico) cuando se trata de recabar su consentimiento (acto para el cual, aun siendo preceptivo, no suele oírse al menor de 12 años o con suficiente madurez en la toma de decisiones que le afectan) (2) y de proteger sus datos personales y clínicos. Y ello porque el legislador español acoge fórmulas muy diferentes en relación al consentimiento del menor de edad no emancipado en el ámbito biosanitario. Siguiendo un orden cronológico, si el art. 9 de la Ley 41/2002, de 14 de noviembre, básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica fija la edad sanitaria en los 16 años (salvo que se trate de “una actuación de grave riesgo para la vida o salud del menor”), los arts. 4.2 y 20 de la Ley 14/2007, de 3 de julio, de Investigación Biomédica exige la prestación del consentimiento por los representantes legales del sujeto fuente menor de edad para ceder sus muestras biológicas (y la valiosa información genética que éstas contienen) con fines de investigación biomédica. Por su parte, el art. 13 del Real Decreto 1720/2007, de 21 de diciembre, por el que se aprueba el Reglamento de desarrollo de la Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, de protección de datos de carácter personal reconoce que el menor, a partir de los 14 años, pueda consentir por sí mismo el tratamiento de sus datos “salvo en aquellos casos en los que la Ley exija para su prestación la asistencia de los titulares de la 901

patria potestad o tutela” y el art. 5.3 del Real Decreto 1090/2015, de 4 de diciembre, por el que se regulan los ensayos clínicos con medicamentos, los Comités de Ética de la Investigación con medicamentos y el Registro Español de Estudios Clínicos establece que “será necesario que se haya obtenido el consentimiento informado previo de los padres que no estuvieran privados de la patria potestad o del representante legal del menor, a quien deberá oírse si, siendo menor de doce años, tuviera suficiente juicio. El documento de consentimiento informado de los padres será válido siempre que vaya firmado por uno de ellos con el consentimiento expreso o tácito del otro que debe quedar suficientemente documentado, según lo dispuesto en el artículo 156 del Código Civil. Cuando las condiciones del sujeto lo permitan y, en todo caso, cuando el menor tenga doce o más años, deberá prestar además su consentimiento para participar en el ensayo”. El reciente Reglamento (UE) 2016/679 relativo a la protección de las personas físicas en lo que respecta al tratamiento de datos personales del menor de edad (3) y a la libre circulación de éstos, de obligado cumplimiento a partir del 25 de mayo de 2018, no arroja ninguna luz. El Reglamento UE, en su Considerando 38, exige una protección específica de los datos personales del menor de edad, lo que, en nuestra opinión, no ha de interpretarse como una restricción de la actuación del menor en este ámbito y consiguiente mayor sustitución por sus representantes legales, sino como un incremento de las cautelas dada su vulnerabilidad pero siempre con respeto de sus derechos y, en particular, del libre desarrollo de su personalidad. El art. 8 del Reglamento UE contempla el consentimiento del menor en relación con los servicios de la información, exigiendo una edad mínima de 16 años, si bien los Estados miembros pueden establecer legalmente una edad diferente siempre que no sea inferior a 13 años. Al respecto, recuérdese que el art. 13 del RD 1720/2007 de Protección de Datos de carácter personal contempla que el menor de edad de 14 años puede ceder sus datos, edad ésta que, pese a encontrar acomodo en lo dispuesto en el Reglamento comunitario, ha sido rebajada a 13 años por el art. 8 del Anteproyecto de Ley Orgánica de Protección de datos de carácter personal recientemente publicado por el Ministerio de Justicia (4). Intuimos que ello encuentra justificación en la

necesaria armonización con las

legislaciones de otros Estados miembros.

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Si tras el escenario normativo recién descrito la sensación del profesional (juristas, sanitarios, comités de ética, investigadores, etc.) es la de estar moviéndose en arenas movedizas, aquélla se agudiza aún más cuando los progenitores del menor de edad muestran discrepancias en cuanto a la realización de un acto jurídico concreto del hijo o bien cuando existe una ruptura parental. El profesional que pretende recabar el consentimiento informado del menor o bien comunicar un hallazgo inesperado se encuentra absolutamente perdido, sufriendo, a diario, contradicciones legales y dilemas deontológicos: a la ausencia de respuesta normativa en las leyes especiales respecto a cómo actuar en caso de suspensión o privación de patria potestad a uno de los progenitores o en caso de ruptura parental (¿se debe recabar el consentimiento de los dos titulares de la patria potestad o sólo del que ostente la custodia del menor?), se une los cambios de criterios de la Agencia Española de Protección de Datos en algunos de sus informes, como acontece en el acceso no consentido por los representantes legales (y, por tanto, tienen la obligación de velar adecuadamente por la salud del menor, sin olvidarse que también son responsables civiles por los daños por él cometidos ex art. 1903 del Código civil) a la historia clínica del menor para conocer datos relacionados, por ejemplo, con drogas o si es portador de VIH, los cuales, como es sabido, son especialmente protegidos (art. 7.3 de la Ley Orgánica 15/1999, de 13 de diciembre, de Protección de Datos de Carácter Personal). Así, si dicha Agencia en su Informe 409/2004 (5), atendiendo a una consulta planteada al respecto, respondía en los siguientes términos: “cabe considerar que los mayores de catorce años disponen de las condiciones de madurez precisas para ejercitar, por sí mismos, el derecho de acceso a sus datos de carácter personal, sin que pueda admitirse la existencia de una representación legal (y, en consecuencia, no acreditada) del titular de la patria potestad, dado que precisamente estos actos se encuentran excluidos de la mencionada representación por el tan citado artículo 162.1º del Código Civil. De este modo, si el padre o madre de un mayor de catorce años acude a un centro sanitario solicitando un informe de analítica o cualquier dato incorporado a la historia clínica de su hijo, sin constar autorización alguna de éste, no sería aplicable lo establecido en el artículo 18.2 de la Ley 41/2002, por lo que no debería procederse a la entrega de la información en tanto no conste la autorización fehaciente del hijo. Por supuesto, salvo en los supuestos en que el hijo haya sido previamente sujeto a incapacitación”.

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Sin embargo, en su posterior Informe 0222/2014(6), el cual reitera lo dicho en su anterior Informe 01148/2008, la Agencia Española de Protección de Datos considera que ante la obligación de los titulares de la patria potestad (o tutela) de velar adecuadamente por la salud del menor (art. 154 del Código civil), la cual permanece durante toda la minoría de edad del afectado, no es oponible al acceso a la información sanitaria la mera voluntad del menor sometido a patria potestad, “con la única excepción de que una norma con rango de Ley hiciese expresamente primar la voluntad del menor sobre la de los titulares que pretenden el acceso”. A la vista de ello y pese a que la interpretación conjunta de las normas reguladoras de la autonomía del paciente y de protección de datos de carácter personal confesamos no resultarnos satisfactoria, a efectos prácticos, sugerimos al personal sanitario que, además de la obligación de oír y escuchar al menor cuando legalmente corresponda, solicite fotocopia compulsada del libro de familia actualizado para comprobar cualquier circunstancia que pudiera afectar a la patria potestad, así como, en su caso, la sentencia de separación o divorcio para conocer si en ellas constan limitaciones o medidas concretas al respecto. Si persistieran dudas, deberá acudir a la autoridad judicial. La ambigüedad de las normas y la contradictoria lectura interpretativa de las mismas obliga a acudir a lo dispuesto (vaga e insuficientemente) por el art. 156 del Código civil. En el paso de la norma a la realidad surgen numerosas dudas, entre otras: ¿qué entiende el legislador por “representantes legales del menor”, pues únicamente lo son los titulares de la patria potestad o tutela?; ¿cómo y quién comprueba la madurez del menor?; ¿se oye al menor de 12 años o de menos edad con suficiente madurez? En caso afirmativo, ¿cómo y dónde se realiza la escucha del menor? ¿en un entorno amigable?; una vez oído, ¿se toma en consideración su opinión? ¿qué sucede en caso de que manifieste objeción?; el derecho a ser oído está directamente relacionado con el derecho a ser informado, ¿cómo se explica al menor el acto que va a realizar? ¿se utiliza un lenguaje comprensible?; cuando no se oye al menor o no se tiene en cuenta su opinión, ¿se justifica debidamente?; ¿se oye al menor de edad con 12 años con discapacidad?; ¿quién debe consentir cuando el menor esté en situación de desamparo o en acogimiento?; ¿en qué casos puede el menor de edad impedir el acceso a su historia clínica por parte de quienes ostenten su representación legal?; ¿hasta dónde alcanza el secreto profesional del facultativo en relación a la historia clínica del menor?; en el ámbito de la investigación

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biomédica, cuando el menor alcance la mayoría de edad, ¿debe recontactarse con él para ratificar o revocar el consentimiento que, en su momento, prestó un tercero?(7).

Conclusión y propuesta de lege ferenda La maraña normativa existente en torno a los actos del menor maduro en el ámbito biosanitario nos conduce a proponer, de lege ferenda, la elaboración de un Estatuto jurídico de la Infancia y la Adolescencia, existente ya en numerosos países, en el cual, además de la distinción terminológica entre “niño” y “adolescente” (más acorde con la realidad y las necesidades específicas de uno y otro), se establezca un único criterio legal (12, 14 ó 16 años para todos los actos sin excepción) y una única fórmula (consentimiento del menor, consentimiento del menor + asentimiento de sus representantes ó 2 consentimientos) para regular, de manera sólida y coherente, los actos y decisiones atinentes a la vida del niño o adolescente y, en consecuencia, respetar el ejercicio de sus derechos fundamentales en lugar de mutilárselos mediante su sustitución de quienes ostentan su representación legal bajo la excusa de la comodidad, falta de tiempo o la inseguridad jurídica que desprende el marco normativo existente en este ámbito. En dicho Estatuto debiera prestarse atención unitaria al menor con diversidad funcional, dos realidades que pueden concurrir simultáneamente en una misma persona y que, sin embargo, suelen presentarse normativamente por separado (8). Asimismo, debiera incluirse un protocolo para favorecer la escucha del menor (sin y con discapacidad) y tal vez debiera contemplarse una mayor intervención del Ministerio Fiscal (si bien con fórmulas operativas en la práctica, como, por ejemplo, la notificación de un acto y, en caso de no responder en un breve plazo de tiempo, se presume su anuencia, de manera similar a como se prevé en el art. 3 de la Ley 1/1982, de protección jurídica del honor, intimidad e imagen). Además de lo anterior, toda decisión que incumba al menor de edad debe ser siempre oportunamente justificada en su interés superior. En definitiva, se trata, sin más, de que tanto el legislador, como los aplicadores del Derecho y los operadores que trabajan con el menor de edad en el ámbito de la salud vayan superando la visión adultocéntrica del mundo de los niños, niñas y adolescentes, basada en la posesión y en el control social y conforme a la cual se legisla para ellos pero sin ellos. El menor ha dejado de ser un objeto de protección para convertirse en un sujeto

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cada vez más activo y autónomo jurídicamente; es el constructor de su niñez y adolescencia. Sólo asumiendo dicho cambio de paradigma sociocultural que exige el respeto de los sentimientos, deseos y aspiraciones de la persona lograremos brindar una protección integral a los derechos de niñas, niños y adolescentes que les permita crecer y vivir, con plenitu d y dignidad, su propia vida. Abandonar esa mirada miope de la infancia y la adolescencia debe ser uno de nuestros grandes retos del Siglo XXI (9). Referências 1. El presente trabajo se enmarca dentro del Proyecto “Uso de datos clínicos ante nuevos escenarios tecnológicos y científicos -Big Data-. Oportunidades e implicaciones jurídicas (BIGDATIUS)”, DER2015-68212-R, del Ministerio de Economía y Competitividad y Fondo Europeo de Desarrollo Regional (FEDER), Programa Estatal de Investigación, Desarrollo e Innovación Orientada a los Retos de la Sociedad, en el marco del Plan Estatal de Investigación Científica y Técnica y de Innovación 20132016, del que es Investigadora Principal la Profª. Drª. Pilar Nicolás Jiménez y del Proyecto “Discapacidad, Enfermedad Crónica y Accesibilidad a los Derechos (DECADE)” DER2016-80138-R, del Ministerio de Economía y Competitividad, del que es Investigador Principal el Prof. Dr. Miguel Ángel Ramiro Avilés. 2. En relación al derecho del menor a ser oído y escuchado y a su enorme importancia, destacamos el reciente pronunciamiento del Tribunal Europeo de Derechos Humanos (Sección 3ª) en su Sentencia de 11 de octubre de 2016, caso Iglesias Casarrubios y Cantalapiedra Iglesias contra España, en la que se condena al Estado español al pago de una indemnización por daños así como de las costas y gastos por no escuchar los tribunales españoles a una menor al establecerse un régimen de custodia en el procedimiento de divorcio de sus padres. 3. Resulta llamativo que el Reglamento UE se refiera a los “niños”, cuando precisamente, en la actualidad, se plantea la distinción, dentro del término “menor de edad” entre “niños” (de 0 a 9 años) y “adolescentes” (de 10 a 17 años), si bien creemos que ello es debido a la traducción de la normativa comunitaria al idioma español. 4. Puede consultarse en: http://www.mjusticia.gob.es/cs/Satellite/Portal/1292428451504?blobheader=application/ pdf&blobheadername1=ContentDisposition&blobheadervalue1=attachment;+filename=Proyecto_de_APLOPD.PDF 5. El Informe 409/2004 puede consultarse en https://www.agpd.es/portalwebAGPD/canaldocumentacion/informes_juridicos/datos_es p_protegidos/common/pdfs/2004-0409_Acceso-por-el-titular-de-la-patria-potestad-alas-historias-cl-ii-nicas-de-los-menores.pdf 6. El Informe 0222/2014 puede consultarse en https://www.agpd.es/portalwebAGPD/canaldocumentacion/informes_juridicos/common/

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pdf_destacados/2014-0222_Menores-e-historia-cl-ii-nica._Consentimiento-y-derechosde-acceso-y-oposici-oo-n.pdf. 7. El art. 23.2.n) del RD 1716/2011, por el que se establecen los requisitos básicos de autorización y funcionamiento de los biobancos con fines de investigación biomédica y del tratamiento de las muestras biológicas de origen humano, y se regula el funcionamiento y organización del Registro Nacional de Biobancos para investigación biomédica, contempla que el documento de consentimiento para la obtención, almacenamiento o conservación y utilización de muestras biológicas de origen humano con fines de investigación biomédica contenga, en el caso de almacenamiento de muestras de menores de edad, “garantía de acceso a la información indicada en el artículo 32 sobre la muestra por el sujeto fuente cuando éste alcance la mayoría de edad”. 8. Resulta llamativo que dicha garantía de acceso se contemple para el menor de edad pero no para la persona con capacidad judicialmente modificada, razón por la cual nos parece más acertada la fórmula legal empleada por el art. 4.3 del RD 1090/2015, de ensayos clínicos con medicamentos, según el cual cuando el menor o persona con capacidad modificada alcance o recupere la capacidad de consentir, deberá recabarse su consentimiento para continuar participando en el ensayo clínico. A la vista de ello y teniendo en cuenta que la normativa de ensayos clínicos es la más reciente y contempla expresamente recontactar con la persona, ¿será por qué incluye una ética de la investigación basada en el respeto a los derechos de las personas? 9. Para un estudio más detenido de la situación jurídica del menor con diversidad funcinonal vid. VIVAS TESÓN, I. “La (in)capacidad de niños, niñas y adolescentes en el Derecho español”. La Ley Derecho de Familia. 2017, núm 13: 14-29. 10. Para PICONTÓ NOVALES, T. “Derechos de la infancia: Nuevo contexto, nuevos retos”. Derechos y Libertades. 2009, núm. 21: 59, “el avance en el reconocimiento y desarrollo de mecanismos de protección de los derechos de los niños y adolescentes tiene todavía muchas tareas pendientes si se quiere pasar del reconocimiento a la efectividad de sus derechos”.

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Direito de Não Saber: breves notas Sephora Marchesini1 RESUMO: O “direito de não saber” do paciente vem lentamente emergindo nos últimos anos. Entretanto, há muitos entraves para a sua aceitação, afinal, como pode um paciente autodeterminar não saber? Aparentemente, é um direito contraditório ao novo paradigma da saúde, no qual o dever de informar é um dos alicerces da relação médico-paciente, permitindo ao paciente poder decisório nas questões referentes à sua saúde. Apesar da quase inexistência de referências sobre esse tema em Portugal e no Brasil, o “direito de não saber” encontra respaldo no ordenamento jurídico nacional e internacional. Contudo, para além da aceitação desse direito pelos profissionais de saúde, é preciso ultrapassar as barreiras da sua concretização formal. Isso porque não há nenhuma lei que especifique como é que o paciente pode exercer o seu “direito de não saber”. Palavras-chave: Direito de não saber, Consentimento Informado e Esclarecido, Testes Genéticos, Pacientes Terminais. Introdução O “direito a não saber” em contraste ao “direito de ser informado” pertencente aos pacientes vem tomando espaço na seara médica nos últimos trinta anos (1). O tema mantém-se atual, causando divergências no campo da saúde. Tendo maior repercussão no âmbito dos testes genéticos, em que o paciente prefere não querer ter conhecimento se é ou não portador de determinados indicadores de mutações genéticas (2). Mas também podemos verificar a presença desse direito em outros casos como os testes de detecção de doenças infectocontagiosas, como é o caso do HIV, ou durante o tratamento de doenças graves, em que o paciente opta por não ter todas as informações sobre o seu estado de saúde (diagnóstico, prognóstico, riscos dos tratamentos, etc.). O “direito de não saber” tomou seus primeiros contornos dentro da seara médica a partir do campo do rastreio genético, ao longo dos anos noventa. Segundo Chadwick, Levitt e Schckle (3) foi durante um jantar da Conferência em Turku, dentro do projeto de rastreio genético desenvolvido pelo Euroscreen, é que se percebeu a quantidade de questões em torno desse direito, e a necessidade de se discutir sobre. Na sequência, em 1997, foi publicado o livro “The Right to Know and the Right Not to Know: Genetic Privacy and Responsibility”.

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Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra. E-mail: [email protected]

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Contudo em data anterior, no ano de 1984, o “The “Right” Not to Know”, artigo publicado por David Ost no Journal of Medicine and Philosophy já referia o “direito de não saber”, sendo uma das primeiras publicações sobre o tema. Nesse artigo o autor defendeu a impossibilidade de se tomar decisões sem ter conhecimento de todas as informações, advogando contrariamente, por acreditar que o exercício do “direito de não saber” corresponderia a um ato irracional (4). Desde o seu berço é um direito que suscita dúvidas quanto às suas delimitações, ou mesmo validade. E isso ocorre pela ambivalência desse direito, visto que em algumas situações o exercício ou não do “direito de não saber”, pode vir a atingir os interesses de outras pessoas. Posto que diante da ausência de informações para si, outras pessoas ficam privadas de ter conhecimento, o que impede a procura de diagnóstico e tratamento. Ao mesmo tempo em que, ao exercer o direito à informação, terceiros podem vir a ter conhecimento sobre informações que não desejavam saber, atingido o “direito de não saber” de outras pessoas. A priori, parece quimérico, mas em inúmeras situações esse direito pode prejudicar ou salvar vidas, tudo dependerá de que perspetiva que é analisando.

O “direito de não saber” no plano legislativo O “direito de não saber”, vem sendo reconhecido em diferentes diplomas legais internacionais e nacionais. Em alguns países encontra-se assente em diplomas específicos sobre a saúde ou mesmo no Código Civil. Podemos citar talvez como primeiro diploma sobre esse direito, a Declaração de Lisboa, também conhecida como Declaração dos Direitos do Paciente (5). Foi entre Setembro e Outubro de 1981 durante a 34.ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial que essa declaração veio a ser aprovada, sendo alterada em 1995. Diploma legal este que trata dos direitos dos pacientes, preconizando no seu artigo 7.º, alínea “d” que “O paciente tem o direito a não ser explicitamente informado a seu respeito, a menos que isso colocasse em risco a proteção da vida de outra pessoa”. Em 1997 dois diplomas legais internacionais referiram o “direito de não saber”. A Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Biomedicina (6), conhecida como Convenção de Oviedo e a Declaração Universal da UNESCO sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (7). O artigo 10.º, n.º2 da Convenção Europeia afirma que "Qualquer

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pessoa tem direito de conhecer toda a informação recolhida sobre a sua saúde. Todavia, a vontade expressa por uma pessoa de não ser informada deve ser respeitada”. Na mesma senda a Declaração da UNESCO sobre o Genoma Humano traz em seu bojo a possibilidade do paciente querer ou não ser informado sobre o seu estado de saúde, bem como dispõem o artigo 5.º, alínea “c”, referindo que “Deve ser respeitado o direito de cada indivíduo de decidir se será ou não informado sobre os resultados da análise genética e das consequências dela decorrentes”. Ainda, no mesmo ano a WHO “Guidelines on Ethical Issues in Medical Genetics and the Provision of Genetic Services” (8) de 1997 trouxe descrito na tabela de n.º 7 que "the wish of individuals and families not to know genetic information, including test results, should be respected, except in testing of newborn babies or children for treatable conditions”. Bem como exposto por Andorno (9) todos os instrumentos internacionais dispõem a necessidade de uma manifestação explícita pelo paciente para a concretização do seu “direito de não saber”. Ainda, diante dos diferentes sistemas de saúde estabelecidos na União Europeia, em Novembro de 2002, em Roma, foi criado a European Charter of Patients (10) referente aos catorze direitos dos pacientes que devem ser observados pelos Estados Membros. Dentre eles, abrigado pelo item 4 desse documento, sob o título de “Right to consent”, que traz ao final de sua redação a possibilidade do exercício do “direito de não saber” por parte do paciente - “A patient has the right to refuse information about his or her health statu”. Evidenciando assim a proteção jurídica internacional sobre esse direito. Mas, para além dos instrumentos legais internacionais é possível citar algumas legislações nacionais que conferem o “direito de não saber” ao paciente a partir de instrumentos próprios ou sendo referido nos próprios códigos de direito civil de alguns países.

O “direito de não saber” no ordenamento jurídico brasileiro O direito a informação foi valorizado pela Constituição Federal Brasileira de 1988, estando disposto no artigo 5.º, XIV que "é assegurado a todos o acesso à informação”. Como os pacientes são também consumidores, recorremos ao Código de Defesa do Consumidor, que dispõem no artigo 6.º "São direitos básicos do consumidor: III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação

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correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem". Havendo uma primazia da informação na relação médicopaciente. Não existindo nenhum dispositivo legal que afirme o oposto, o “direito de não saber” no ordenamento jurídico brasileiro, contudo há algumas disposições no Código de Ética Médica que dão margem para o exercício desse direito. O Código de Ética Médica brasileiro (11) veda ao médico no artigo 24.º “Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar, bem como exercer sua autoridade para limitá-lo”. Assim como proíbe o médico no artigo 31.º de “Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de morte”, complementando o artigo 34.º em que preconiza que é vedado ao médico “deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta ao mesmo possa provocar-lhe dano, devendo, nesse caso, a comunicação ser feita ao seu responsável legal”. Outras disposições permitem o enquadramento do “direito de não saber “ como a Declaração de Princípios Éticos Fundamentais da CONFEMEL em que estabelece que "É direito do paciente decidir livremente a respeito da execução de práticas diagnósticas e terapêuticas". É de se referir que, no Brasil não há regulamentação quanto a atuação dos geneticistas, médicos e laboratórios no que refere os testes genéticos com fins de diagnósticos, havendo apenas recomendações da Associação Médica Brasileira e uma Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) sobre pesquisas genéticas, que não inclui o uso dos testes na clínica médica (12).

O “direito de não saber” no ordenamento jurídico português Em semelhança ao disposto na Constituição Federal do Brasil, a Constituição portuguesa em seu artigo 60.º deixa explícito que "os consumidores têm direito à informação". Entretanto diferente do Brasil, Portugal tem em seu ordenamento jurídico o reconhecimento do “direito à não saber”, isso porque, ratificou a Convenção Sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, a qual passou a vigorar no ordenamento jurídico

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nacional em 1 de Dezembro de 2001. O artigo 10.º, n.º2 preconiza o direito de ter conhecimento sobre a sua própria informação de saúde, sendo facultado renunciar ao direito de ser informado. Atenta-se que no n.º3 deste mesmo dispositivo da Convenção explícita a possibilidade de restrições a esses direitos, que devem ser preconizados por posterior lei. No Código Deontológico português (13) o dever do médico de informar no artigo 20.º que alude à necessidade do consentimento do doente, estando no n.º1 a indicação de que “O consentimento do doente só é válido se este, no momento em que o dá, tiver capacidade de decidir livremente, se estiver na posse da informação relevante e se for dado na ausência de coações físicas ou morais”. Assim a informação sobre o estado de saúde torna-se imprescindível para a concretização do consentimento. Contudo, acrescentou em seu artigo 25.º que dispõem sobre a “Informação de diagnóstico e prognóstico”, salvaguarda no n.º3 que “A informação não pode ser imposta ao doente, pelo que não deve ser prestada se este não a desejar”, ficando manifesto o reconhecimento do “direito de não saber” pelos médicos, mesmo sendo aparentemente contrário ao dispositivo sobre consentimento. Diferente de outros países que tratam sobre esse direito, Portugal não preconiza esse direito nem no Código Civil, como ocorre na Lituânia (14), nem mesmo em diplomas legais próprios relativos à saúde como o Act on Health Care da Eslovaquia (15), o Health Care Act of 1966 da República Checa (16), entre outros. Restringindo-se a alusão feita no Código Deontológico Médico, assim como ocorre na Grécia (17). Nem mesmo no campo dos testes genéticos Portugal aborda sobre esse direito, como se verifica no texto da Lei n.º 12/2005 de 26 de Janeiro de 2005 que trata da informação genética pessoal e da informação sobre a saúde, em que não há nenhuma referência sobre a opção do paciente ficar sem ter conhecimento dos resultados. Com isso verifica-se que apesar da ausência de uma legislação específica em Portugal, que regulamente o “direito de não saber”, esse direito é preconizado legalmente contudo a insciência desse direito obsta o seu exercício. Breves conclusões Trata-se de um direito pertencente ao paciente, que conhecendo as suas debilidades, opta por manter-se na ignorância quanto às informações relativas ao seu estado de saúde, podendo ser exercido em um primeiro momento em que não se tem nenhuma noção da 912

existência de doenças – ao submeter a um teste genético com fins de pesquisa para um laboratório – ou mesmo, já ciente de uma condição de saúde débil, opta por mesmo que continue os tratamentos, não ter informações referentes ao prognóstico seguinte – caso dos pacientes em estado de saúde grave. Atenta-se que o “direito de não saber” não pode ser presumido, assim como não é um direito absoluto. Em razão do conhecimento do estado de saúde ser imprescindível para a sua saúde, ou para a saúde de terceiros, bem como algumas legislações citadas que definem essas situações como limitadoras desse direito. O “direito de não saber” deve então ser previamente expressado, e em semelhança ao consentimento deve ser revogável a qualquer tempo, estando limitado por interesse de terceiros em casos muito específicos. É de referir que o “direito de não saber” encontrou no campo dos testes genéticos maior atenção, e discussão sobre o seu conteúdo, mas à curtos passos vão sendo introduzido em outras situações, como nos casos dos pacientes terminais, ainda sendo muito abstrato a sua aplicação em todas as situações, sendo difícil aceitar que se torne um instrumento geral, assim como o consentimento informado. Nos casos de testes genéticos, Andorno (9) refere a necessidade de “to make a substantial effort in this area to ensure an adequate balance between the respect for individuals’ rights

and the benefits of using genetic information for the common good of society. ” Um direito que traz consigo algumas contradições, como a suposta divergência com o dever do médico de informar, que impede o esclarecimento do paciente sobre o seu estado de saúde, e, para alguns autores, é um impeditivo a autonomia do paciente. Havendo repercussão na vida de familiares, visto que, no caso dos testes genéticos, o conhecimento de marcadores, leva aos seus familiares terem conhecimento das probabilidades de também possuírem essas mutações, o que pode causar alguma afetação principalmente a nível emocional. Ao mesmo tempo em que o não ser informado, e não repassar essas informações pode vir a privar a si e aos seus familiares de recorrerem a tratamentos preventivos ou terapêuticos necessários, o que pode acabar por colocar em risco a vida de ambos. Barbosa (18) acredita que na maior parte das situações o acesso a informação acaba por ser mais benéfico, pois permite que o paciente atente a sua saúde, podendo efetivar cuidados que evitem o agravamento do quadro de saúde do paciente.

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Mas, talvez a maior dificuldade para a sua compreensão esteja na possibilidade de autodeterminar não saber, se para isso é preciso ter ao menos a noção da existência de um risco. Sendo um direito mais tangível no caso de doentes terminais que já possuem algum conhecimento do seu estado de saúde, mas que não querem informações relativas ao prognóstico. Para além do seu reconhecimento no âmbito da saúde, é preciso ultrapassar as barreiras da sua concretização formal. Isso porque não há nenhuma lei que especifique como é que o paciente pode exercer o seu “direito de não saber”. Se assim como o consentimento informado ele deve ser expresso antes de cada intervenção – o que como já referido é difícil aceitar uma decisão sem ter conhecimento quanto ao seu risco – ou se poderá informar antes mesmo de ser submetido a qualquer avaliação médica, como ocorre com a inscrição na base de doadores de órgãos ou como as Diretivas Antecipadas de Vontade. Nesta senda, autores como Andorno (9) defendem a criação de um sistema parecido com o de doação de órgão, um “registo público”, em que estaria calcada a opção de saber ou não, mas a ausência de registo não significaria o interesse na sua constituição genética. Contudo este registo estaria restringido ao campo da testagem genética, visto que cada situação demanda um tratamento específico por parte do médico assim como do paciente consigo mesmo, não sendo aceitável uma resposta genérica antecipada para tudo de não ser informado. Cabendo ao paciente avaliar o melhor para a sua saúde física e psíquica. Cabendo aos médicos e pacientes encontrarem um equilíbrio, que tenha como escopo a defesa dos direitos e interesses do paciente. Por fim, defendemos aqui o “direito de não saber” como expressão do direito de autodeterminar do paciente, cabendo ao médico informar o paciente da possibilidade de exercer o “direito de não saber” antes mesmo de transmitir qualquer informação referente ao estado de saúde, sem induzir o paciente a querer ter conhecimento, pois somente ele tem consciência do potencial abalo que pode vir a ter diante de determinadas notícias, diminuído sua qualidade de vida, e afetando ainda mais o seu estado de saúde. Devendo o médico respeitar a sua decisão não só em respeito a sua autonomia, como pela privacidade (acesso à própria pessoa, à sua intimidade, anonimato, sigilo, afastamento ou solidão) e confidencialidade (resguardo das informações prestadas) dos dados médicos, incorrendo em responsabilidade civil nos casos de violação de um desses direitos do paciente.

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Referências 1. Nijsingh, Niels. Consent to epistemic interventions: a contribution to the debate on the right (not) to know. Med Health Care and Philos, 2016; 16(1):103-110. 2. Rivard, Laura. Case study in the right not to know. Scitable by nature education, 2013. Disponível em: http://www.nature.com/scitable/forums/geneticsgeneration/case-study-in-the-right-not-to-108239021 3. Chadwick, Ruth F.; Levitt, Mairi & Schckle, Darren. The right to know and the right not to know: genetic privacy and responsibility. 2.ed. Cambridge: University Press; 2014. Disponível em: https://books.google.pt/books?hl=ptPT&lr=&id=kcyKBAAAQBAJ&oi=fnd&pg=PA1&dq=the+right+not+to+know&ots=TC5 CGEaPp0&sig=ndMoVMC5DRI455Kv1JdaHY1jFpA&redir_esc=y#v=onepage&q=the %20right%20not%20to%20know&f=false 4. Strasser, M. Mill and the right to remain uninformed. J Med Philos, 1986; 11(3):265284. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/3540171 5. Declaração de Lisboa sobre os direitos do paciente. Adotada pela 34.ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, Portugal, setembro/outubro de 1981 e emendada pela 47.ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em Bali, Indonésia, setembro de 1995). Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/codetica/medica/14lisboa.html 6. Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina: Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina de 4 de abril de 1997, Decreto do Presidente da República n.º1/2001 de 3 de janeiro. Diário da Republica: I série-A, n.º2 (2001). Disponível em: http://www.cnpma.org.pt/Docs/Legislacao_DecretoPR_1_2001.pdf 7. Werthein, Jorge et al. Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos: Da teoria a prática. Brasília: Edições Unesco. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001229/122990por.pdf 8. World Health Organization, Human Genetics Programme. Proposed International Guidelines on Ethical issues in Medical Genetics and Genetic Services; 1988. Disponível em: http://www.who.int/genomics/publications/en/ethicalguidelines1998.pdf 9. Andorno, Roberto. The right not to know: an autonomy based approach. J Med Ethics, 2004; 30:435-439. Disponível em: http://jme.bmj.com/content/30/5/435.full 10. European Charter of Patients. Cittadinanzattiva-Active Citizenship Network group. Rome, 2002. Disponível em: 915

http://ec.europa.eu/health/ph_overview/co_operation/mobility/docs/health_services_c o108_en.pdf 11. Código de Ética Médica. Resolução do Conselho Federal de Medicina n.º1.931 de 17 de setembro de 2009. 12. Moutinho, Sofia. Informar ou não informar, eis a questão. Instituto Ciência Hoje, 2013. Disponível em: http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2013/05/informar-ou-naoinformar-eis-a-questao 13. Regulamento de Deontologia Médica. Regulamento n.º 707/2016 da Ordem dos Médicos de Portugal. Diário da República, 2.ª série — N.º 139 — 21 de julho de 2016. 14. Nys, Herman et al. Patient Rights in the EU, Lithuania. European Ethical – Legal Papers n.º 12. EuroGentest. Disponível em: http://www.eurogentest.org/fileadmin/templates/eugt/pdf/lithuania.pdf 15. Defloor, Sarah et al. Patient Rights in the EU. Slovakia. European Ethical – Legal Papers n.º 14. EuroGentest. Disponível em: http://www.eurogentest.org/fileadmin/templates/eugt/pdf/slovakia.pdf 16. Nys, Herman et al. Patient Rights in the EU. Czech Republic, European Ethical – Legal Papers n.º 1. EuroGentest. Disponível em: http://www.eurogentest.org/fileadmin/templates/eugt/pdf/unit4/Czech_republic_gehe el.pdf 17. Goffin, Tom et al. Patient Rights in the EU, Greece. European Ethical – Legal Papers n.º6. EuroGentest. Disponível em: http://www.eurogentest.org/fileadmin/templates/eugt/pdf/greece.pdf 18. Barbosa, José Luiz. O direito de não saber e a ética médica. OABRJ Digital, 2012. Disponível em: http://www.oab-rj.org.br/artigo/2823-o-direito-de-nao-saber-e-a-eticamedica---jose-luiz-barbosa

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O Direito da Medicina: origem e persistência dos mistérios João Vaz Rodrigues1

RESUMO: O Direito e a Medicina possuem uma linha coerente de cumplicidade explicativa ao longo de seis milénios. A partir das análises dos primeiros textos detecta-se uma persistência gnoseológica que desagua na autonomia disciplinar do Direito da Saúde e na afirmação dos direitos dos pacientes e dos profissionais de saúde. É o mistério do devir. Palavras-chave: História. Direito da Medicina. Direito e Medicina: cumplicidade histórica. Mistérios & explicações. Onde situar o início da matéria disciplinar do Direito da Medicina? Para nascer, crescer, viver e morrer exigem-se cuidados e entreajuda. É o que mostra a sociabilidade no trilho da humanidade. A entreajuda é semente de organização, e esta impõe a eficácia das regras de conduta. A prestação de cuidados constitui uma primeva, natural e benfazeja panaceia para as insuficiências fisiológicas e psíquicas, afinal: raiz da medicina, mas não só. A incompletude humana ilustra a sua própria ontologia. Como diz SAVATER, trata-se da nossa «neotenia»: «Tiraram-nos do forno evolutivo muito cedo, estamos a meia cozedura. Envelhecemos sem nunca perder totalmente o nosso ar de simples esboço, de apontamento inacabado, (…) Embora mal dotados (…) estamos providos do instrumento mais apto para improvisar e inventar perante as urgências do real. O cérebro é o órgão específico de acção. » (1) É evidente que a intenção médica é coeva dos alvores civilizacionais da humanidade. Aponto o fim do período neolítico (2) e procuro indícios materiais do exercício de cuidados cirúrgicos; com a escrita, a regulação (3) decorrente de tropeçar em registos (4) que descendem do interesse em fixar o direito consuetudinário nas tábuas legais datadas em torno de três mil anos a.C. (5). Estes primevos textos legais revelam preocupações de organização, protecção, estatuto familiar, sucessão, propriedade, obrigações, superação de litígios, penalidades. A administração em geral, que a sedentarização acarretou por força. Mercê destes condimentos estruturais e multiplicação documental seguinte, estão em torno de 3500 anos a.C. — culturas (6) suméria e sumita da Mesopotâmia—, as 1

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primeiras manifestações físicas da construção de uma História do Direito (7) (plataforma para as expansões ulteriores), que dará azo às sucessivas fases civilizacionais em relação às quais, mais de cinco mil anos após, permanecem influências atávicas no Mundo inteiro nos mesmos temas: família, contratos, etc. De perto, SANMARTIN: Na Mesopotâmia, Roma e no Egipto, a Ordem é obsessão; mas note-se: ali, a Ordem vai além da esfera moral para constituir-se em categoria ontológica; o ser posiciona-se frente ao que não é: o caos. Desde o fim do IV milénio que a prioridade na Mesopotâmia é dar Ordem ao dia-adia, registando-o em elenco infindo de tábuas. «Incluso la ruina económica, la descalificación social, el dolor, la enfermedad y la muerte a destiempo —máximas expresiones de lo que nosotros llamaríamos desorden — tienen en la teoría babilónica un lugar para ser y una razón de ser. No son desordenes ontológicas, sino — en una expresión de coherencia metafísica — manifestaciones exquisitas del orden: son síntomas de una rotura puramente episódica del orden» (8) São os esforços contrários de interesses que produzem densidades específicas (bens sociais) que reclamam protecções. A junção das duas realidades constrói o Direito. Terá sido a necessidade de certeza que levou Hammurabi (1792-1750 a.C.) a sofisticar a normatividade existente (consuetudinária) e, à luz da sua idiossincrasia, a consagrar numa Estela um código. Este, além das controvérsias sobre se configura um corpo normativo ou um elenco de súmulas jurisprudenciais, parece reunir consenso sobre importância e qualidade; foi fonte de inúmeros documentos de época (tábuas de argila) e acabou disseminado pelos Impérios que se seguiram. Continha o propósito de Hammurabi —«Rei da Equidade»: voz filial autorizada do Deus Marduk—, de proteger o oprimido a quem exorta leitura e análise dos ditames de esclarecimento e solução dos litígios, para que o próprio pleiteante/interessado entenda a sentença (9). A preocupação enunciada vai contra os desequilíbrios. Seja para o Direito, seja para a Medicina, os terrenos estão ainda pejados de tutelas divinas, de inspiração metafísica, que seguem até à política. Desde onde a memória auxilia o raciocínio, confortando o que parece notório: as roturas, quando não se devem às negligências humanas — ou à sua maldade — ficam entaladas entre as forças de deuses e demónios, protectores e inimigos. A influência mística em que assentou a construção do Direito foi resultando da fronteira traçada pela evolução dos conhecimentos, e do contínuo redesenho das necessidades, escolha e hierarquização dos bens sociais: «A sociedade — e é em sociedade que vivemos desde tempos que se

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perdem no tempo —, ou quem nela tinha o poder de decidir e estabelecer, ditou desde os primórdios princípios e regras variáveis, sem dúvida, e em função de diversos factores, mas sempre tidos como condições de existência da própria ideia de comunidade e da sua subsistência enquanto tal» (10). Destaco que as primeiras manifestações jurídicas da normatividade babilónica sobre os danos da actividade médica evoluíram do regime da retaliação pura. Fora o caso único em que o médico perdia a mão (quando na actuação a perdia também), os demais implicavam sequelas pecuniárias. Um original pródromo pois a doutrina situa mais de um milénio após — Lei das XII Tábuas (450 a.C.) —, o processo de diluição da vindicta privada do ofendido (ou da família) sobre o agressor, permitindo as significativas alterações ulteriores. Ensina VERA-CRUZ PINTO: «a aplicação de pena pecuniária para os crimes, considerados menos graves constituiu uma das traves mestras de desenvolvimento de um direito penal privado, assente no preço do prejuízo causado pelo delito». E, quanto ao direito privado, afirma: «a mais importante norma de direito privado, positivada para o futuro desenvolvimento do ius Romanum foi a disciplina jurídica da obrigação, desmaterializando o vínculo que ligava o credor ao devedor. Assim, a obligatio deixa de ser tratada como uma ligação material efectiva, mesmo carnal, entre as partes, passando a ser um vínculo ideal, fictício, entre credor e devedor, estruturado em torno de um sujeito que está obrigado a um dare, prestare ou facere, face a outro sujeito, conectando assim os dois actores da relação subjacente» (11) É no Direito romano que se cunha o abandono de um conceito moral de culpa dando azo a «um conceito de culpa individual» (12). O mesmo é dizer que o Direito —Penal— cinde nesta esquina o seu percurso mágico conjunto com a medicina no que concerne ao apuramento dos desvios coercíveis. Afirma FIGUEIREDO DIAS: «não mais serão os deuses e o destino o fundamento da responsabilidade, mas o homem e a sua má conduta, fruto de uma má decisão prosseguida com vontade consciente» (13) Visitar reminiscências, mesmo tópicas, parece essencial, pois por aqui projecta-se o futuro. É com esses factos em mão, e a uso, que pode ser levado a eito uma inteligibilidade com consequências favoráveis. Sem esta representação temporal (alargada e por força imprecisa), desaparece o elo fulcral de explicação do sentido com que se foram afirmando os valores, e, munido de tão grandes distâncias —cerca de seis milénios — a

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imprevisibilidade própria do futuro (ingénita às tecnociências) queda aplacada como fonte de angústias (14). Retomo o fio.

Explicação de um Sacerdócio: A estupefacção do Homem é inesgotável. Tudo o que não revela explicação inteligível propende a ser rapidamente despachado para o campo místico de uma suspensão transcendental. É de aceitar que até à evidência científica, o ser humano, ao sentir-se zargo para a compreensão das causas no seu longo caminho, se abandone ao instinto, à magia ou ao mero empirismo (15). Os fenómenos são desejavelmente domesticados mercê dos conhecimentos científicos disponíveis em cada época. Eis a gema da medicina científica: a ponte da perseverança entre o possível e o desejado na epopeia humana. A arte da medicina terá sempre aspirado ao domínio da vida, seja para a prolongar, seja para moldar o corpo humano de sorte a transformá-lo no que de melhor a mecânica fisiológica permita. E se pré-socráticos, como Alcméon, pugnavam do ponto de vista médico pela procura de equilíbrio (16), compreende-se o aviso de Aristóteles ao seu discípulo, Alexandre o Magno: organiza e guarda o corpo, o mesmo é dizer: a dietética, também prescrita por Hipócrates «não para curar, mas permitir que a natureza» o faça (17). Tal como a inteligência ordena o depósito de alimentos em época de fartura para prevenir a escassez, também a prudência manda preservar o corpo, consoante a melhor força de cada idade. Será uma constante ao longo dos séculos, a ponto de presidir até a sucessivas vagas de modas e, eventualmente, poder acabar por transformar-se em dever jurídico de primeira água (18), tão mais viabilizado quanto a escassez de recursos não acabrunhe o esbanjamento da arte. Daqui resultam reflexões sobre intervenções cujas razões terapêuticas não são facilmente detectáveis embora relacionáveis com a procura do estado físico-psíquico prévio (retardar o fenecimento; favorecer o funcionamento fisiológico; aumentar a auto-estima, etc.). Esta realidade, com laivos pós-modernos, assume progressiva importância, seja no âmbito de uma visão da era do fútil seja de bem-estar; com abordagens cuja pertinência se avoluma (19). Inserido o excurso, acrescento uma reflexão já em terrenos de fronteira: a reinvenção do corpo humano integrado em estruturas alargadas de produção ex-machina (20). E, pelo meio, a medicina do trabalho e o primado da personalidade (21). Vale a lição de Costa Andrade que, em análise

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comparativa, mostra com optimismo os contornos de uma abertura de janela em sistema, invocando um sucessivo actualismo (Uwe Schimank: 22), que recordo precedentemente em Orlando de Carvalho, no reconhecimento do poder jurisgénico do indivíduo (pessoa: 23). Os aspectos mágicos não deixaram de fazer curso a par das actuações que pareciam dar bons resultados. Será por esta última razão que a qualificação científica do exercício da arte se associa aos tempos primevos, tão-logo se assume, com a filosofia, com o interesse e estudo comuns sobre os princípios da ciência da natureza (24).

Afirmação da medicina e encontro com a ética (25) Eis um confronto muito interessante com um marco comum à Medicina e ao Direito: o séc. V a.C. e o Corpo Hipocrático. Eis a já apelidada Declaração de Independência da Medicina (26). Esteve Hipócrates convencido ser: «apenas através da medicina que chegaremos a alguns conhecimentos positivos sobre a natureza humana, mas com a condição de abranger a própria medicina em sua verdadeira generalidade. Do contrário, parece-me que estaremos bem longe de tais conhecimentos, quero dizer, de saber o que é o homem, por que razões subsiste e tudo o mais» (27) Pugnando pela actualidade da acção médica enquanto força e fragilidade, supõe-selhe um horizonte humano (de coisas humanas) que não apenas da natureza, e, naquele, limites em que a confluência afasta definitivamente o que seja do reino do acaso ou do irracional. O confronto — melhor será assumir como complemento — situa-se outrossim entre a álea e o ensejo, ou, recorrendo às autoridades, entre a tyché e a técnhé (28). A medicina visa todos os carentes, mas nem a todos chega, nem a todos cura, e para alguns a solução ocorre por mero acaso ou fortuna. É o domínio da tyché. O que sucede é que uma má prática, um mau exercício da arte — da técnhé (29) — não redunda em solução; persiste infausta. Técnhé tem um significado denso, complexo; algo entre o movimento e a técnica, resultante de uma prática a que não é estranho o engenho — sem repudiar a ciência: epistême —, acabando por se explicar na expressão simples, mas feliz, de saberfazer. Um saber-fazer a que se associa a ciência do cálculo. Partindo, com o rigor possível, da observação clínica — oklinomai: estar à cabeceira do doente — o médico processa a interpretação dos sintomas à luz dos precedentes, do raciocínio, mercê de observações metódicas, tudo registando, para comparar e iluminar a memória futura (30). E como assim sucede, torna-se imperioso — igualmente racional — emprestar espessura aos

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comportamentos a que deve ater-se, i.e., a um reduto ético, a atitudes e a valores próprios da actividade: como fazer, o que esperar, o que dizer, pedir, inquirir, etc. O compromisso do médico decorre explicado pelo que antecede: deixar o feitiço como fonte e destino da medicina e procurar-lhe causa, explicação e actuação, tudo adequado tendencialmente a uma solução esperada. Como mostra Silvério Marques, a medicina passa a «constituir um saber escolar e escolarizado — um studium generale — do ser humano», tanto mais importante e digno quanto o facto de se tratar de conhecimento vizinho de paroxismos críticos: sofrimento, crise, incapacidades, morte, etc. Fica inteligível que o pacto que gera transcende forçosamente os intervenientes: «uma fala solene, um rito iniciático, marca uma singularidade da tradição médica hipocrática: a sujeição da prática à palavra dada: um juramento foi o umbigo simbólico que ligou os valores formadores da técnhé iatriché durante 2500 anos.» (31) Eis a protecção de um interesse que, sendo individual no paciente, redunda em juramento corporativo perante a comunidade. Esta abstracção e esta generalidade compõem a ética. São ex.º os princípios de fazer o bem e arredar a prática do mal (beneficência e não maleficência) que, a par do segredo, moldam uma isonomia perante uma incerteza individualizada. Dicotomicamente: a doença a combater e a afecção específica no afectado (32). Jus a Hipócrates: «vou definir o que é, quanto a mim, a medicina. É libertar completamente os doentes dos seus sofrimentos ou amortecer a violência das doenças, e não tratar dos doentes que se encontram vencidos pelas doenças, sabendo que a medicina pode tudo isso» (33) Esta acentuação na doença por objectivação da afecção mais ampla na saúde, enquanto sublimação do paciente que pretende o seu estado prévio, é, também para Gadamer, o objectivo por excelência do tratamento médico, se bem que a arte vise igualmente cuidar a convalescença e a prevenção (34). Já a última frase permite raciocinar com segurança em termos individuais: aquele que se deseja vencido pela sua doença, senão convencido do contrário, possui já o poder de facto de ser deixado aos ditames da sua liberdade opcional. Outra problematização. Por ora, cabe manter uma coerência cronológica, e, neste sentido, o objectivo passa a ser o de devolver ao enfermo o poder sobre o próprio corpo e a saúde da alma (35) por força dos exercícios impenetráveis que rondam ainda as revelações divinas ou um profundo — mas esotérico — conhecimento do corpo, algo que o homem co¬mum toma por fantástico, exista ou não empírico

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racionalismo misturado no processo. Condimentos, afinal, adequados para conferir religiosidade à própria medicina e tomar por sacerdote o sábio — ou o curandeiro (36) — que domina essas intervenções (37). E assim prosseguiram os exercícios entregues ao destino e ao estado de desenvolvimento científico em cada época. Existem ainda hoje milhões de pessoas para quem a medicina não passa de um mistério insondá¬vel do destino.

Referências: 1. F. SAVATER, A Coragem de Escolher, Dom Quixote, Lisboa, 2004, p. 21. 2. A escolha, pese a imprecisão, decorre de tratar-se de um arco largo que, grosso modo, se inicia em torno do X milénio a.C. (coincide com a sedentarização do homem, progressiva aculturação e domínio das ciências: agricultura, pastorícia, cerâmica, tecelagem, aplicações do fogo, urbanização, etc. até ao impulso da Era dos metais (Idade do Bronze). Esta, apontada ao IV milénio, aproxima-se da Era da escrita: consensual referência da sucessão entre pré-história e história. Seguem-se as primeiras cidades-estados com organização político-administrativa. Na China, existem analogias (1800 a.C. ou anteriores a 2000 a.C.: Dinastia Xia). Aqui, a escrita em papel justifica a falta de referências para afirmar a civilização mais antiga, v. Grande História Universal, II, O Neolítico; A Era dos Metais, AA.VV.: HERRERA; BRUNET; DELIBES DE CASTRO; ROBANILLO; QUEROL; GÓMEZ; Coord.: TRINDADE LOPES, Ediclube, 2006, pp. 5 ss., 75 ss; Atlas Histórico: da Pré-História aos Nossos Dias, VIDAL-NAQUET; BERTIN, (Hachette, Paris, 1987), Edicultura, 1990, pp. 7, 20 s., e 24-41; BLUNDEN; ELVIN, China: Gigante Milenário, Col. Grandes Culturas e Civilizações, 1992, pp. 50-58. Existe a lenda do Imperador (Qin) Shihuangdi (213 a.C.), que teria aversão à História, ordenando a destruição de todos os livros. Convencido do seu domínio do universo, pretendeu reescrever a História, http://www.britishmuseum.org/ explore/themes/leaders_and_rulers/qin_shihuangdi.aspx (pp.1-4). O engenho da guerra constitui premissa intermédia notória. 3. A. TAVARES DE SOUSA, Curso de História da Medicina, FCG, pp. 15 e ss., faz remontar ao neolítico (tardio) as evidências europeias (também no Peru) de intervenções cirúrgicas: as trepanações. Segundo a NE LAROUSSE, Vol. 22.º, p. 6778, trata-se de uma abertura feita em um osso com um trépano, i.e., um instrumento metálico cortante para a inserção no osso e fissuração) e libertação de «espíritos malignos». As trepanações parecem ter sido comuns, com intenção terapêutica deliberada, HYPOCRATTES, Works: On Injuries to the Head, The Perfect Library, 1849, Amazon, loc. 4067–4296, §§ 20/21, loc. 4280. R. SABBATINI, Fazendo Buracos no Crânio: Psicocirurgia de antigamente? in www.cerebromente.org.br/no2/historia/trepan_p.htm. indica ser prática comum, mas fútil, prosseguida até ao séc. XVIII. Com referência à 1.ª metade do III milénio a.C., na Mesopotâmia (Acadiana), existem ecos documentais sobre esta arte (mágica) exercida por médicos (asû), J. BOTTÉRO, A Magia e a Medicina Reinam na

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Babilónia, in AA.VV., As Doenças têm História (org. J. LeGoff), Lisboa, 1985, pp. 1136. A menção de instrumentos consta do Cód. Hammurabi, §§ 215.º a 217.º: «Se um médico trata alguém de uma chaga grave com o punção de bronze e o cura, ou se elle abre com o punção de bronze a belida — mancha branca que se forma na córnea do olho e turva a vista, GDLP: t, II; p. 308— de alguém e salva seu olho, ele receberá 10 sicles de prata.»; reduzindo-se nos 4§ seguintes a indemnização consoante o estatuto social do visado, até ao escravo, para 5 e 2 sicles, respectivamente. Usei a tradução portuguesa de E. ALVES DE SÁ, Cód. das Leis (Direito Privado) de Hammurabi: Rei da Babilónia, Lisboa, 1903, p. 51 (Liv. Vicente Rodrigues Monteiro: Biblioteca Nacional). Em outra tradução, alude-se prudentemente a uma intervenção oftalmológica menos sofisticada para a época; assim mantém a expressão acádica e escreve: «a abertura do nakkaptum com um escapelo de bronze». BOUZON, (trad. alemã: W. von Soden e ulterior versão inglesa), opta pela probabilidade de a expressão designar «o arco acima da sobrancelha»: ID, o Cód. Hammurabi, Ed. Vozes, Petrópolis, (4.ª ed.) 1987, p. 188, 2.º § e nota 762 aos §§ 215.º a 217.º. 4. Lara PEINADO não esmiuça textos mais antigos de Shutuppak (fins do IV milénio a.C.), dando-os decorrentes do quotidiano jurídico-económico que veio a desaguar no Direito vigente na Mesopotâmia, tal como no Egipto, Síria, Anatólia, Elam, Israel, ID., Cód. Hammurabi, Tecnos, Madrid, 1992, Estudo Preliminar, p. XI. Indica este A., por entre a infinidade de tábuas (datadas à III Dinastia de Ur: 2111 a.C. em diante) que nos confrontam com realidades jurídicas (compra e venda, repúdios, ruptura de noivados, responsabilidades, indemnizações, etc.), as ditilhas, i.e., notícias escritas sobre resolução de litígios concretos ou «assuntos jurídicos ultimados». Estas sentenças revelam, por um lado, enorme actividade judicial em cada uma das cidades-estado, e, por outro, a vontade em uniformizar os valores normativos vigentes. Arestos com laivos de actualidade: «Los ditilla, en su brevedad expositiva y perfecto tecnicismo, constam de cuatro apartados: exposición del assunto, considerandos, certificados del tribunal y fecha»; ID., ibid., XXII. Esta jurisprudência, fonte de Direito, indicia antecedentes, i.e, costumes a registar para uso futuro, em vista de certeza e segurança. 5. Os primeiros registos escritos com carácter jurídico de que há notícia possuem equivalentes em colecções de textos médicos, e, segundo BOUZON: Lei, Ciência e Ideologia na Composição dos Cód. Legais Cuneiformes, pp-1-27, in www.fl.ul.pt, integram o conjunto da «literatura científica da escola paleobabilónica», a partir do III milénio a.C., com relevo, as Leis de Ur-Namma (ou Nammu), Rei da III dinastia de Ur (2111/2-1094 a.C.) que terá feito brilhar as leis justas de Utu e fez reinar as decisões de justiça —«entre estas pocas leyes pueden deducirse determinadas circunstancias socio-económicas en los inícios de la III Dinastia de Ur, entre las que cabe señalar la práctica ususal de brujéria (que hubo de ser cortada por ley» (sublinhado meu); o apelidado Cód. Lipit-Istar (sumério), tábuas datadas entre 1934–1924 a.C.); as Leis do Reino de Esnunna, datadas entre 1815-1787 a.C. (arcadiano), e, pouco após, o Cód. Hammurabi, estela com datação estimada a 1753 a.C. (arcadiano). Sem esgotar, documentação coeva permite doutrina consensual sobre o carácter de juridicidade do repositório consuetudinário e da normatividade dos precedentes jurisprudenciais, a influenciar as sentenças reais sobre casuística, relatada nos parágrafos das Tábuas/Cód.; Encontros Assiriológicos Internacionais, dedicado o 59.º ao tema: Law and (Dis)Order of the 924

Ancient NearEast, Ghent, 15 a 19/07/2013, www.rai59.ugent.be. MOLINA adverte que aos aludidos 4 Cód. se podem acrescentar outros 3: as Leis Assírias, as Leis Neobabilónicas (língua acadiana), e as Leis Hititas (língua hitita): os sete documentos apresentam suficientes aspectos comuns para se agruparem num género literário (no qual «haveria» de se incluírem textos Bíblicos: Êxodo: 21.222.6; Deuterónomo: 21.5-25.11; e, por fim, as XII Tábuas Romanas, M. MOLINA, La ley más antigua. Textos legales sumerios. Trotta, Madrid, 2000. Sobre o Cód. Hammurabi: a estela mostra 282 §§ com ditames de conduta sobre obrigações e penas. Entre os §§, oito (215 a 223 §§) foram dedicados à medicina, cabendo ao § 218 a pena de perda da mão para o médico cujo desempenho desastroso provocasse a morte (de um awilum: classe elevada. Em sentido similar, ponderadas as traduções, PEINADO, Cód., cit., anexo: Cód., p. 35. 6. A expressão civilização suméria e sumita não é consensual por ausência de fontes que permitam avançar além das virtudes da escrita e da organização; neste sentido SANMARTIN alerta «ser mais sensato, em termos científicos, falar de dados transmitidos em língua suméria e em língua sumita, ou em ambas», sem cuidar de preocupações sobre parâmetros étnicos e culturais infirmes, SANMARTIN, Cód. legales de tradición babilónica, Trotta, Barcelona, 1999, pp. 20 s. 7. Este sentido primevo apoia-se em vários estudos sobre a matéria com indicação comum dos desenvolvimentos das futuras cidades-estado na Mesopotâmia, a partir de Uruk, Ur, Eridu, Umma, Girsu, Isin e Nippur, Lagas, (IV milénio). Partilha de organização político-administrativa; uso sumério da escrita; proliferação dos modelos; o estado de guerra de que resulta a edificação dos primeiros impérios, como será o da dinastia de Acad (2335-2154), e dos que se seguem, refundindo. PEINADO, Cód. cit., Estudio Preliminar, p. XIV; e também MOLINA, La ley, cit., pp. 10 e ss.; e BOUZON, Uma Coleção de Direito Babilônico Pré-Hammurabiano: Leis do reino de Esnunna, Vozes, Petrópolis, 2001, pp 36 ss. 8. SANMARTIN, Cód. legales cit., pp. 37 s. 9. Parafraseado do Epílogo da Estela de Hammurabi; inspiração com estribo nas diferenças das versões compulsadas; assim, BOUZON, Cód., cit, pp. 222 ss.; PEINADO, Cód., cit., pp. 42 e ss; SANMARTIN, Cód., cit., pp. 84 e 149 ss. 10. N. SALTER CID, Comunhão de vida à margem do casamento: entre o facto e o Direito, Almedina, Coimbra, 2005, pp. 30 s. 11. E. VERA-CRUZ PINTO, Introdução, in F. CARRILHO: A Lei das XII Tábuas, Almedina, 2008, pp. 16 e ss. Sobre a Lei das XII Tábuas ou Lex Duodecim Tabulorum, elucidativo sobre a influência na vida prática jurídica do Império Romano, como primeira lei escrita, ID., ibid., pp. 5-22. 12. Sigo de perto H. MONIZ, Agravação pelo Resultado? Contributo para uma autonomização dogmática do crime agravado pelo resultado», Coimbra, 2009, pp. 18 ss.. 13. J. FIGUEIREDO DIAS, Responsabilidade Preterintencionais, Coimbra, 1961, p. 6.

pelo

Resultado

e

Crimes

14. G. HOTTOIS, O Paradigma Bioético: Uma ética para a tecnociência, Lisboa,1992, pp. 57-68.

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15. Sigo A. TAVARES DE SOUSA, Curso, cit., pp. 20 ss., com diferente hierarquia aos tipos de medicina pré-científica. Tomo o instinto como mera reacção (lavar, aquecer, enxaguar, etc.); existem diferenças entre o mago e o sacerdote: pretende este a protecção divina, de que se assume intermediário, ao passo que aquele se impõe, querendo substituir a divindade. Convenho que o empirismo redunda em repetição pura de procedimentos sem análise de causa. Por fim, tenho da mesma sorte a convicção de que ainda nos dias de hoje — com infelicidade — muitos são os (des)iludidos que batem ao ferrolho de «bruxos, astrólogos, nigromantes, quiromantes, radiestesistas e quejandos». 16. G.S. KIRK e J.E. RAVEN, Os Filósofos Pré-Socráticos, FCG, Lisboa, 1979, pp. 235239, n. 286. 17. C. SÁNCHEZ TÉLLEZ, Códice Zabálburu de Medecina Medieval, Nuevo Siglo, Alcalá, 1997: Sobre el régimen, pp. 32-36. Transcreve as prescrições que incidem sobre a prática de exercício, sobre a higiene, a alimentação, o vestuário, chegando aos odores e recomendações sobre boa disposição, actividade sexual, etc. Todavia, investigou M.ª C. RUEFF os inúmeros tratados que foram vencendo a barreira do tempo até nós, e que são conhecidos como Corpus hipocrático, «são todos anónimos», ID. O Segredo Médico como Garantia de Não-Discriminação. Estudo de Caso: HIV/SIDA, Coimbra, 2009, pp. 37-64. Não obstante, refiro-me a Hipócrates no que lhe é atribuído. 18. Ex.º: o combate ao tabagismo. 19. G. LIPOVETSKY, A Era do Vazio: Ensaios sobre o Individualismo Contemporâneo, (pref. M.M.ª Carrilho), Ed. 70, Lisboa, 2013, p. 55: «o corpo deve ser cuidado, amado, exibido; já nada tem a ver com a máquina. A sedução alarga o ser-sujeito atribuindo ao corpo outrora oculto uma dignidade e uma integridade novas: nudismo, seios nus, são os sintomas espectaculares desta mutação através da qual o corpo se torna pessoa a respeitar». 20. S. UTLLEY, Technology and the Welfare State: The development of health care in Britain and America, Unwin Hyman, Londres, 1991, pp. 28 ss, no âmbito do que as descobertas tecnológicas no campo de saúde implicam em matéria política, para a teleologia dos Estados Sociais. Leitura nada inocente para as cautelas face a neoTaylorismos. Sobra interrogação da valia sócio económica, ponderada a «reparação» físico-psíquica do ser humano que é trabalhador contributivo; mas deixando de o ser? Y. N. HARARI, Homo Deus, Elsinore, 2016. 21. P. QUINTAS, Os Direitos de Personalidade Consagrados no CT na Perspectiva Exclusiva do Trabalhador Subordinado — Direitos (Des)Figurados, Almedina, 2013, pp. 295-309. 22. U. SCHIMANK apud COSTA ANDRADE, Consentimento e Acordo em Direito Penal, Coimbra, 1991, pp. 107 e s., n. 206: «A autora procura, desde logo, contrariar as representações dominantes, correspondentes às primeiras reflexões motivadas pelo advento da modernidade e que apontam invariavelmente para a dissolução da individualidade pessoal no contexto da sociedade moderna. Este é, com efeito, o sentido em que converge toda uma plétora de expressões: desde as clássicas ideias de alienação e anomia, ao medo da liberdade (FROMM), theloneley crowd (RIESMAN) o fim do indivíduo (HORKHEIMAR), the homeless mind

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(BERGER/KELLNER). Ora, sustenta, os factos não condizem com esta atitude nem com a «teoria» que a suporta. O que se passa é apenas que cada formação social traz consigo as suas formas de identidade. Se, p/ ex.º, na Idade Média prevalecia uma «identidade material-teológica», a moderna sociedade, funcionalmente diferenciada, faz emergir uma identidade caracterizada pelo subjectivismo reflexivo.» e prossegue: «A forma de identidade da Idade Média estava estruturada segundo referências exteriores (remdreferentiell strukturiert). A reflexão biográfica nunca colocava a pessoa sobre um terreno de um nada sem suportes: para todos os problemas de condução individual da vida encontrava-se sempre uma resposta clara na palavra de Deus, interpretada pela Igreja» (p. 449). Não é menos estabilizada nem menos consistente a identidade mediatizada pela sociedade moderna: «uma construção autoreferente de identidade (p. 462 sobre o tema LUHMANN, Soziale Welt, 1985, p. 402 e segs.)». Verdade. Mas tb. é verdade que as palavras mediatizadas funcionam hodiernamente em feixe que perpassa as múltiplas perplexidades das comunidades, deixando de serem respostas que habilitam o mecanismo invocado de uma referencial análogo ao da palavra medieval da religião que sossegava inquietudes até às fronteiras da guerra com as demais comunidades religiosas de influência. As várias respostas possíveis problematizam, relativizam e interpenetram-se. Acresce portanto um problema à solução proposta do problema. 23. A feliz expressão poder jurisgénico pessoal retém um valioso conceito que urge não olvidar. Abarca a esfera dos poderes individuais; impõe reconhecimento ao poder público por ser inata ao ser humano. O reconhecimento do poder e respectivo reflexo, e protecção jurídica, decorre da impossibilidade de cindir o indivíduo da sua esfera específica sem o reificar. Eis a (in)tolerabilidade que estrutura, viabiliza e explica a organização dos interesses todos. O. CARVALHO, Teoria Geral da Relação Jurídica, p. 93. 24. ARISTÓTELES, Parva Naturalia, apud TAVARES DE SOUSA, Curso, cit., p. 38, cita: «Pode dizer-se que a maior parte dos filósofos da natureza e aqueles médicos que têm um interesse científico na sua arte têm isto de comum: os primeiros terminam estudando a Medicina e os outros baseiam as teorias médicas sobre os princípios da ciência da natureza». 25. É feliz a imagem de sintonia da cura como escopo simultaneamente jurídico e médico, avançada por J. FARIA COSTA, Em redor da Noção de Acto Médico, in As Novas Questões em Torno da vida e da Morte, Coimbra, pp. 380 s.: «o acto médico e o acto jurídico têm igual estrutura onto-antropológica.». 26. Expressão de E. ACKERNECHT, The History of Psychosomatic Medicine pp. 17-24, apud J. CRUZ REIS, O Sorriso Hipocrático: A integração biopsicossocial dos processos de saúde e doença, Vega, Lisboa, 1988, pp. 26 ss., onde afirma que esta «afastou-se do misticismo e do endeusamento e baseou-se na observação objectiva e no raciocínio dedutivo.». Menos efusivo, TAVARES DE SOUSA, Curso, cit., pp. 56 ss., que lhe atribui a louvável individualização da medicina face à filosofia (à ciência) propriamente dita (também pela singela razão de que a filosofia — epistême — redunda em certezas, ao passo que na medicina a repetição de procedimentos não dá os mesmos resultados), centrando-se antes no homem e na prática de uma atitude de observação com estrutura empírica, onde a apreensão do conjunto de factores que hão-de constituir causa viabilizam prognósticos. Na sequência extraio aceitação da necessária relação inquisitiva com o paciente, mas não mais do que 927

isso. Lain ENTRALGO para a relação hipocrática entre médico e paciente (La Curación por la Palabra en la Antiguedad Classica, Antrophos, Barcelona, 1987, pp. 175ss), aceita o interrogatório e a prescrição de conselhos ao doente, acata a palavra enquanto mecanismo de prestígio, mas afasta o efeito persuasivo do discurso retórico da metodologia hipocrática. Mesmo sentido, P. TUNHAS. Igual, ENTRALGO, Hipócrates e o Pensamento da Passagem, in AA.VV., Hipócrates e Arte cit. Colibri, 1999, pp. 11-61. Em sentido contrário, M.ªJ. VAZ PINTO, A Arte da Medicina como Cura da Doença e Recuperação da Saúde, in AA.VV., Hipócrates e a Arte,cit., onde afirma: «Curiosamente, a reputação do médico dependia em grande parte dos discursos feitos à cabeceira do doente, tendo ocasião de exibir, para lá dos seus conhecimentos científicos, os seus dotes retóricos» (ID., ibid., p. 128, n. 19). 27. HIPÓCRATES, Grandeza e miséria dos sistemas da medicina, § 8.º, in Conhecer, Cuidar Amar: O Juramento e Outros Textos (J. SALEM), Landy, 2002, pp. 36 s. 28. M.ª C. SOARES, O ‘Triângulo Hipocrático’ Notas sobre o Estatuto da Medicina, in AA.VV., Hipócrates e Arte cit. pp. 63-89. 29. Sobre as gradações que a expressão técnhe assume na sua apologia da arte de curar, HG GADAMER, O Mistério da Saúde, o mistério da Saúde e a Arte da Medicina, Ed. 70, Lisboa, 1997, pp. 39-49, referindo-se igualmente ao equilíbrio em Hipócrates e, magistralmente, à arte persuasiva da retórica em Platão para o exercício da medicina. 30. HIPÓCRATES, Conhecer, cit., Cap. V, pp. 125-158; HYPOCRATTES, Work cit, loc. 5769–6048. 31. M.S. MARQUES, O Umbigo Simbólico — notas partidas do Juramento Hipocrático; AA.VV., Hipócrates e a Arte cit. pp. 91 s. 32. Pois este balanço, este equilíbrio, foi panaceia não apenas para afrontar as atopias da uma individualização das doenças na individualidade dos doentes, mas tb. em termos filosóficos, ponderando os médicos como enciclopédicos. M.S. MARQUES, A Medicina Enquanto Ciência do Indivíduo, FMUL, 2002. A universalidade da doença recebe uma humilde convicção sobre a conveniência de um inventário, de uma confrontação com precedentes, para evitar o erro até onde seja possível. ID ibid., p.136. 33. Apud M.ªJ VAZ PINTO, A Arte Médica como cura da doença e recuperação da saúde, AA.VV, Hipócrates a Arte cit., pp. 123 ss. Citação de Hipócrates, Sobre a Arte, III, 2. A A. cruzou várias obras de AA., a saber: J. JOUANNA, Hippocrate, Tomo V, 1.ª parte — Des Vents — De l’Art, Paris, Les Belles Lettres,1988; M.ªD. LARA NAVA, Sobre Ciência Médica, in Tratados Hipócraticos I, Gretos, Madrid, 1983; W.H.S. JONES, The Art, in Hippocrates II, Cambridge/Massachusetts, Harvard Press, Londres, 1981; M.ªÁ. HERMOSÍN, Sobre el Arte, Alianza, Madrid, 1996. 34. HG GADAMER, O Mistério da Saúde, in O Cuidado cit. pp. 101-111. 35. M.S. MARQUES, O Espelho declinado: Natureza e Legitimação do Acto Médico, Colibri, 1999, pp. 56 e ss.; P. ARIÈS, O Homem perante a morte, I, cit., p. 22. Este A. associa para o período medieval a aceitação da inevitabilidade da morte como uma relação de domínio. Neste sentido, físico, curandeiro ou bruxo ombreiam na 928

«Unção do Graal», dando efeito deliberado à causa com que se confrontam. É o sentido que dou. 36. As pessoas «de virtude» permanecem par e passo com a medicina encartada que luta o charlatanismo. Reclamando alvará: entre outros, SANMARTIN, Códigos cit., p. 38. Para Portugal, I. GONÇALVES, Imagens do Mundo Medieval, Horizonte, 1988, pp. 9 ss. Este investigador detectou nos Arquivos da Torre do Tombo: Chancelaria de D. Afonso IV, livro 4, fls. 24 v.º) a carta de El-Rei. de 22/02/1338, em que deu alforria ao exercício das profissões de físico e de cirurgião a Mestre Domingues, de Viseu. Em homenagem ao inédito de I. Gonçalves: — «Sabede que eu pera arredar dano das Jentes das mhas terras veendo e conssirrando como muytos se faziam físicos e meestres e Celorgiãaes e botecairos e obrauam destes offiçios em nas dictas mhas terras nom auendo ele sçiençias nem sabedorias para obrar delas. E pera esquiuar os danos, que de taaes mestres poderiam aas gentes das mhas terras recreçer. Per esta razom mandey na mha cidade de lixboa fazer Eyxaminaçom a todos aqueles que em essa Cidade obrauam destes offiçios a qual eysaminaçom mandey fazer a mestre affonso e a mestre Gonçalo, meus físicos que eu mandey que fossem eysaminadores de todos aqueles que nos meus Reynos destes offizios quisessem obrar» (sic), ID, pp. 11 e 24, n. 6. Tb. G. SOUSA, História da Medicina Portuguesa durante a Expansão, Temas e Debates, 2013, pp. 16 ss. 37. Guilherme de OLIVEIRA, O fim da «arte silenciosa» cit.; M.M. PEREIRA, História da Medicina Contemporânea cit., I e II vols. Para os sécs. XVIII e XIX, em Portugal, J. CRESPO cita um anónimo: «Sustos da Vida nos perigos da cura, Lisboa, 1758: Ninguém póde duvidar ser a Medicina huma arte Divina, e para credi¬to da sua excellencia basta ser exercitada Christo [sic] (…) e Deos pela boca do Espírito Santo nos manda honrar muito os bons, e verdadeiros professores desta sciencia», ID., A História do Corpo, cit.,pp. 91 ss. M. LINDEMANN, Medicina e Sociedade no Início da Europa Moderna, Replicação, 2002, pp. 206 ss.

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Segredo Médico e o Processo Clínico do Paciente Margarida Vieira Veiga1 RESUMO: “Não existe medicina sem confiança, tal como não existe confiança sem confidências, nem confidências sem segredo”2. O Processo Clínico, enquanto peça fundamental no mundo da medicina, é constituído por dados pessoais, respeitantes a um indivíduo. Quando um utente dá entrada numa instituição de saúde, irá revelar dados sobre a sua vida íntima de forma a conseguir um diagnóstico adequado e o respetivo tratamento. Assim, importa que este se depare com um dever, por parte do médico, de sigilo profissional, para que a relação que ali se estabelece seja de confiança. Um processo clínico eletrónico levanta questões quanto à garantia de confidencialidade, integridade e segurança das informações que ali se depositam. Torna-se, portanto, relevante estudar este tema quando, no mundo atual, mais de 90% dos Hospitais de Portugal, implementaram um sistema informático de gestão de doentes. No mesmo sentido, importa averiguar as vantagens, desvantagens e o próprio funcionamento deste sistema, pois só assim poderá continuar a comunidade a confiar na equipa a que recorre quando se depara com um sintoma de possível doença; só assim, a sociedade perceberá que o seu direito à reserva da vida privada está a ser garantido pela ordem jurídica. Todavia, para lá de uma regulação, que poderá ser de excelência, a sociedade precisa de se sentir segura quanto à aplicação e cumprimento daquela. É, assim, obrigatório que o formato em que encontramos o processo, seja ele em papel ou digital, não seja violado, que garanta acima de tudo o segredo a que aquela informação, mais propriamente o titular desta, tem direito. Palavras-chave: Segredo Médico. Processo Clínico Electrónico. Processo clínico e o segredo médico Segredo vem do latim “secretu” e tem como significado aquilo que deve estar oculto, secreto, daqui resultando que os fatos que não são conhecidos por terceiros são objeto do dever de segredo. Encontramos, hoje em dia, várias profissões que estão sujeitas ao sigilo profissional. Todavia, a área da medicina é aquela a quem se reconhece este dever com um passado mais longínquo. Este dever de segredo, é tão antigo como a própria medicina, estando os dois juntos na sua génese. Tal surge logo nos Escritos Hipocráticos, precisamente com o juramento Hipocrático, datado de 300 a.C., que menciona expressamente a regra de segredo: “tudo o que possa ver ou ouvir durante o tratamento ou fora dele no que respeita

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Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. E-mail: [email protected] Tal foi escrito por Portes, L. Apud Glibert/Hottois/Marie-Hélène Parizeu, Dicionário da Bioética, Lisboa, p. 330. Apud, Pereira, André Gonçalo Dias. O Sigilo Médico: análise do direito português – nota de rodapé 9. 2

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à vida dos homens, que de forma alguma deva ser divulgado, o calarei e conservarei sempre como segredo3”. Após quase 2500 anos depois de Hipócrates, a obrigação do médico guardar segredo mantém-se como uma necessidade e um tema sempre atual. Como já pudemos constatar, da vida privada de cada ser humano fazem parte as informações de saúde. Todavia, do segredo médico, ou melhor do dever que recai sobre o médico, constam não só as informações relativas à saúde, como, também, quaisquer informações direta ou indiretamente ligadas à saúde que tenham sido recolhidas por aquele profissional4 no exercício da sua profissão5. Quando falamos em segredo temos de verificar que nos encontramos perante informações, de um terceiro, que são conhecidas por um conjunto circunscrito de pessoas, que haja um verdadeiro interesse em que continuem sob reserva e que seja legítimo, razoável ou justificado o interesse o manter em tal estado. Quando nos referimos a informações de terceiro obtidas no exercício da profissão, não podemos querer ficar tãosomente por informações de saúde, pois existe um verdadeiro momento de confissão, dos inúmeros acontecimentos da vida, por parte dos pacientes, aos profissionais 6 que encontram quando procuram ajuda. O médico na sua ação profissional terá de obter por parte do seu paciente todas as informações necessárias para que possa intervir conveniente e competentemente e, para que haja tal abertura por parte de quem procura ajuda médica, terá de se garantir por parte daquele um verdadeiro sigilo profissional, garantir-se que aquele cumprirá o seu dever, que surge do juramento que efetua aquando do início do desempenho das suas funções 7. Há a obrigatoriedade

de

assegurar

que

todas

as

informações obtidas

pelo

médico

permanecerão com ele para que o paciente cumpra com a sua obrigação de não omitir nada sobre a sua vida privada8 Quando falamos no segredo médico, nunca devemos esquecer que é da garantia que a lei dá ao paciente da existência deste dever que permite que o mesmo revele todos os Barbosa, Carla. Aspetos Jurídicos do Acesso ao Processo Clínico. in Lex Medicinae – Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 7, n.º13 (Coimbra Editora) 2010 4 Lei n.º 12/2005, de 26 de Janeiro – artigo 2.º (Informação de Saúde): “Para efeitos desta lei, a informação de saúde abrange todo o tipo de informação direta ou indiretamente ligada à saúde, presente ou futura, de uma pessoa, quer se encontre com vida ou tenha falecido, e a sua história clínica e familiar. 5 Glibert Hottois/Marie-Hélène Parizeu, Dicionário de Bioética, Lisboa. 6 Quando encontramos aqui profissionais, referimo-nos não só aos médicos em si, como podemos considerar aqui enfermeiros, psicólogos, auxiliares da ação médica... 7 Juramento de Hipócrates – 1983 (disponível em https://www.ordemdosmedicos.pt/ 8 Estatuto Disciplinar dos Médicos (Aprovado pelo DL 217/94, de 20 de Agosto), artigos 6.º/2 e 7.º. 3

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dados necessários, que levará a uma atuação, por parte do médico, certeira e adequada a garantir a qualidade da prestação dos cuidados de saúde. De tudo isto cabe-nos referir que há por parte do profissional, por um lado, uma obrigação negativa, no sentido de que não deverá revelar a outrem as informações cobertas pelo seu sigilo profissional e, por outro lado, uma obrigação positiva de adotar as precauções necessárias para que os mesmos terceiros não tenham acesso aos elementos sigilosos, desde logo como exemplo o acesso à organização das instalações9 Daqui se conclui que há um dever de segredo por parte do médico, em relação às informações que obtém no exercício da sua função, sendo que há um titular do segredo (aquele a quem pertencem os factos da vida privada, numa posição ativa), e do lado oposto o médico, numa posição passiva, sendo ele quem terá de cumprir com o sigilo profissional10. De toda esta temática surge a preocupação, cada vez mais frequente, sobre o processo clínico de cada um dos utentes. A dialética entre as regras de confidencialidade e a própria relação médico-paciente tem vindo a alterar-se ao longo dos tempos, deixando de ser uma mera relação estabelecida no consultório do próprio médico, passando, atualmente, a ser feita em conjunto com uma vasta equipa de profissionais. Perante tal, tem surgido a necessidade de se garantir que a informação circula de forma fácil, garantindo a segurança dos dados e, como tal surgiu a ideia de se implementar um processo clínico eletrônico. Um processo clínico vem constituído por um conjunto de dados clínicos relativos a um paciente. Em primeiro os dados são recolhidos para que seja possível a observação do médico traduzido em informação que suportará o diagnóstico ou hipóteses de diagnósticos. Depois, com base nos diagnósticos, e conhecimentos médicos, serão traçados os cuidados de saúde ou de ação terapêutica. Com as diversas áreas de registo da informação que integram o processo clínico é previsível que possa ser proveniente de diversas fontes – desde a avaliação inicial até aos exames complementares de diagnóstico. Este processo clínico esteve presente, até há muito, em formato papel. Tal implicava a introdução manual de dados sendo que a estruturação da informação vai depender de quem a introduz. O armazenamento dos mesmos poderá levar a complicações uma vez 9

Como já fora referido, tal ideia é também prevista pela Lei n.º 67/98 de 26 de Outubro. Andrade, Manuel Costa. Direito Penal Médico. Coimbra Editora (Coimbra) 2004

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que os dados de saúde de um mesmo utente poderão estar dispersos por vários locais. A logística de preparação do processo para estar disponível no local da prestação de cuidados poderá levar demasiado tempo, pelo que o processo clínico em formato de papel dificulta o acesso ao mesmo, podendo levar a perdas de informação, inconsistência da localização da mesma, falta de estruturação dos registos, bem como a ilegibilidade de tais notas. Em suporte eletrônico, por sua vez, facilita-se a gestão de informação, no que respeita ao armazenamento, pesquisa, consulta, legibilidade; promove o trabalho colaborativo, isto é, partilha de informação, interação entre especialistas, disponibilização de informação no local dos cuidados. Aumenta, ainda, a eficácia no que respeita a disponibilidade da informação onde e quando necessária. Do mesmo fará parte uma informação estruturada como sendo os resultados dos exames, alertas, entre outras, assim como uma informação não estruturada que será a parte que irá dar liberdade ao profissional de saúde de colocar as suas próprias anotações, digitalizar elementos que se encontram em formato papel. Contudo, mesmo podendo considerar que um formato eletrônico do processo traria vantagens no que respeita ao referido anteriormente, podemos garantir a segurança dos dados, isto é, será que o programa informático garante a segurança dos direitos do utente, desde logo a sua privacidade? A segurança implica confidencialidade, integridade e disponibilidade da informação11. Desde logo, confidencialidade prevenindo-se o acesso à informação por terceiros não autorizados, integridade no sentido de se garantir que a informação confidencial se mantém, não é alterada sem autorização e, disponibilidade sendo que com tal se pretende que a informação sempre que necessária esteja disponível no local certo. Logo, as principais ameaças à segurança serão: as situações em que o sistema possa permitir o acesso por terceiros, através de violação do mesmo por descoberta de password e login, por exemplo; quando haja um erro de software e tal resulte na eliminação de registos efetuados naquele dia, por exemplo; ou, ainda, recursos insuficientes para o manuseamento do software. Todavia, embora tudo isto seja uma possível realidade, a verdade é que a segurança não é garantida de forma mais eficaz pelo fato de a informação se encontrar em formato 11

in Segurança em sistemas de informação da saúde. Trabalho realizado por Serviço de Bioestatística e Informática Médica, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

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papel, pois os processos poderão ser acedidos igualmente por terceiros, e talvez de forma mais facilitada. Perante o exposto, não nos parece fácil afastar a informatização do processo clínico somente com base na falta de segurança que o mesmo poderá implicar, pois julga-se que a segurança dos dados será garantida quando da formação de cada um prevalece o dever de confidencialidade, garantindo cada um cumprir todas as normas necessárias para se cumprir o direito que assiste ao utente. Podemos dizer, que está mais suscetível um programa ser violado e acedido por terceiros, devido aos problemas informáticos que por vezes ouvimos falar. No entanto, não é menos verdade que o formato papel não vem, por si só, garantir que nenhum terceiro, estranho às equipas de profissionais, aceda ao mesmo. A avaliação dos sistemas informáticos deverá ser feita com base em critérios objetivos perguntando-se se o mesmo é seguro no que toca à ótica de utilizador, por exemplo, se o mesmo se esquecer da password, terá maneira de a recuperar? Ou, é o mesmo compatível com outros programas clínicos? Para garantir a integridade, confidencialidade e disponibilidade, poderão ser tomadas medidas de segurança. Para a integridade, verificamos que, por exemplo, no que respeita ao sistema informático do serviço de bloco operatório do Hospital Pediátrico de Coimbra 12, o mesmo não permite a alteração dos dados preenchidos, uma vez encerrado o processo de introdução de informação, por parte do profissional. Tal garante a integridade de que se fala. No que respeita à confidencialidade, a mesma poderá ser garantida com o uso da criptografia, uma forma de escrita secreta por meio de sinais convencionais ou, então, através do controlo de acesso, por meio da fixação do nome de utilizador e password. Finalmente, para a disponibilidade estar garantida, podemos referir como solução os backups, feitos regularmente e armazenados em locais diferentes13.

Sociedade de informação e internet na saúde A Sociedade de Informação baseia-se nas tecnologias de informação e comunicação que envolvem o armazenamento e processamento, da informação por meios eletrônicos.

12

Testemunho de profissional de saúde do Centro Hospitalar de Coimbra, EPE. in Segurança em sistemas de informação da saúde. Trabalho realizado por Serviço de Bioestatística e Informática Médica, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 13

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Em Portugal, surgiu o livro verde da sociedade de informação, em 1997, com o fim de abordar a temática de uma sociedade de informação (o que é, onde se aplica, como se deve regular). Nele vem referido o conceito de telemedicina, (já bem mais antigo e implementado

no mundo

em

geral) que

associa

tecnologia

informática

e de

telecomunicações, para facilitar a prática da medicina, permitindo-se estabelecer um ambiente de trabalho em equipa, onde a troca de informação é essencial. Mesmo geograficamente afastadas, através da telemedicina, a troca de informação é possível entre instituições de saúde e tal torna-se importante no apoio ao diagnóstico, prognóstico e seguimentos dos doentes. Isto vem, essencialmente, fomentar uma constante troca de informações, que incluem exames já realizados, acerca de um doente. Todavia, para que a telemedicina funcione, são usados os meios informáticos, as tecnologias da comunicação e informação, que têm como base a Internet. O uso da Internet é hoje muito frequente por parte de todos os cidadãos, sendo por isso um direito de todos o uso seguro da mesma. Quando usamos a Internet, temos subjacente um direito de liberdade de expressão. Esta liberdade compreende a possibilidade de emitir uma opinião livremente, bem como transmitir ou receber informações, ideias, sem que possa haver ingerência de entidades públicas. Esta liberdade implica deveres e responsabilidades, providências necessárias para a segurança nacional, proteção da saúde, segurança pública, para que se impeça a divulgação de informações confidenciais. A internet despoletou a origem de duas correntes acerca da presença do Direito no seu uso. Por um lado, surgiu a opinião de que a ordem jurídica não se deveria imiscuir nos assuntos da internet, devendo, por isso, esta ser um espaço onde a livre circulação reinava, sem quaisquer limitações impostas pela ordem jurídica. Porém, surgiu por parte de autores defensores do Direito, a ideia de que o uso da mesma deveria estar sujeito às regras fixadas para regular qualquer meio onde a exploração e circulação de dados fosse feita14. As bases de dados criadas num ciberespaço deverão garantir a proteção dos dados que a integram, havendo, assim, a exigência do uso de códigos de proteção para as mesmas. Assim, compete às autoridades nacionais e aos órgãos jurisdicionais nacionais assegurar o justo equilíbrio entre os direitos e interesses em causa. A diretiva 95/46/CE 14

Ascensão, J. Oliveira. Propriedade Intelectual e Internet. Texto correspondente à Conferência pronunciada na II Ciberética, Florianópolis, 14.11.03.

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vem harmonizar as legislações nacionais, não pretendendo somente a proteção de dados pessoais, mas também assegurar a livre circulação desses dados. Está livre circulação é essencial ao desenvolvimento da União Europeia e por isso não deverá ser restringida a todo o custo, devendo zelar-se por um equilíbrio entre a proteção dos dados pessoais e a sua circulação. Quando nos referimos ao desenvolvimento tecnológico na saúde, verificamos que o uso da internet está subjacente ao mesmo15. Não haveria um processo clínico eletrônico sem uma base de dados consagrada com o uso da internet, nem telemedicina sem o uso desta, pois só a mesma permite a circulação dos dados. Para os utilizadores da internet, esta não é segura, pois tudo o que nela se faz parece deixar rasto. Como tal, precisamos de garantias sobre a correta utilização, acesso e segurança dos nossos dados neste ciberespaço, acedido por tantos e de forma, por vezes, abusiva; exige-se, assim, que se tire todo o partido das oportunidades que dela advêm e se minimizem as ameaças que dela possam resultar. Neste contexto, o livro verde da sociedade de informação em Portugal, exige que o enquadramento legal preveja que o planeamento dos sistemas de suporte de documentos eletrônicos, operações diárias, a implantação e carregamento de informações seja completamente definida e fiscalizada por entidades independentes. Prevê-se, ainda, que é conveniente que se reveja a necessidade de compatibilizar a liberdade de acesso às redes e à livre expressão, com a igual necessidade de se combater violações dos direitos humanos. Desde logo, verificamos, como já dito anteriormente, que os dados de saúde ficam registados numa base de dados, consagrada especificamente para uso em instituições de saúde, com o fim de facilitar o conhecimento, armazenamento e transmissão de informações necessárias à prestação de cuidados. Todavia, esta não será uma base de dados de tratamento diferente de tantas outras. Tal implica que o seu titular terá direito a manter-se informado sobre esses dados, bem como sobre o tratamento que recaia sobre os mesmos. O direito a ser esquecido na internet foi reconhecido já pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Na verdade, assiste ao titular dos dados o direito de os ver eliminados, bloqueados, para evitar o acesso de terceiros a essas informações. 15

Tal verifica-se quando associado ao Sistema de Gestão para Doentes, temos a plataforma WebGDH, que funciona através do uso da Internet

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Quando falamos num processo clínico eletrônico, verificamos a entrega de dados de saúde, especialmente sensíveis, ao ciberespaço, sendo que o acesso aos mesmos poderá ser uma realidade, como já referido anteriormente e, como tal deverá sempre ser assegurado ao cidadão a quem pertencem o direito a vê-los protegidos e até mesmo eliminados, quando assim o entenderem, tal como acontece com tantos outros dados que circulam e preenchem base de dados. A par do que sucede no mundo das telecomunicações, onde a base de dados com informações relativas ao contato telefónico, ou de e-mail, não deverá ser usada para fins que não aqueles que o seu titular autorize, deverá acontecer igualmente no mundo do processo clínico, pois nenhum daqueles dados, somente por estar acessível de forma mais rápida e eficaz a um terceiro, deverá ser usado sem o consentimento livre, específico, informado e expresso do paciente. Seguindo nesta abordagem, podemos olhar um pouco à jurisprudência europeia e verificar o que é ainda dito relativamente ao direito ao esquecimento e ao anonimato. O Acórdão Z. c. Finlândia, de 25 de Fevreiro de 1997, retrata a condenação de um indivíduo seropositivo por crime de homicídio não premeditado, após a prática de vários crimes sexuais. O Tribunal Nacional vem garantir a confidencialidade deste acórdão pelo prazo de 10 anos, apresentando, assim, a ex-mulher de tal indivíduo, para o Tribunal de Recurso, um pedido de prolongamento deste prazo de confidencialidade, uma vez que estavam em causa dados de saúde relativos a si. Contudo, esta instância desconsiderou tal pedido. Uma vez formulado também perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, este último vem considerar que tal prazo violaria o artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, uma vez que, por se tratarem de dados relativos à saúde, a sua confidencialidade e reserva devem estar sempre garantidas. O direito da Internet, bem como tudo o que se reporta à sociedade de informação, deverá ser tido em conta sempre que falamos no processo clínico eletrónico, pois, acima de tudo, por detrás deste encontra-se a tecnologia da informação e comunicação. E, se este direito e esta sociedade, em diferentes ramos, como já referimos, a título de exemplo, o ramo das telecomunicações, têm regras e limites tão bem defendidos, muito mais terá de ser feito quando falamos de dados da saúde, sensíveis e respeitantes a um titular que saberá, e terá o direito de saber, o que quer ou não que seja conhecido por outrem que não o médico que o segue e lhe presta cuidados.

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Referências 1. Pereira, André Gonçalo Dias. O Sigilo Médico: análise do Direito Português. 2. Lex Mediciane, Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Ano 7, n.º 13 (Coimbra Editora). 2010: Barbosa, Carla. Aspectos Jurídicos do Acesso ao Processo Clínico Electrónico. 3. Estatuto Disciplinar dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei 217/94 de 20/8. 4. Andrade, Manuel Costa. Direito Penal Médico. (Coimbra Editora) Coimbra, 2004. 5. Segurança em sistemas de informação da saúde. Trabalho realizado por Serviço de Bioestatística e Informática Médica, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. 6. Ascenção, J. Oliveira. Propriedade Intelectual e pronunciada na II Ciberética, Florianópolis, 14.11.03.

Internet.

Conferência

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Conhecimento dos usuários acerca dos seus direitos nos Sistema Único de Saúde do Distrito Federal- Ceilândia 2011

Joseane Souza Ribeiro Introdução O direito à saúde é resultado de uma luta da população no início dos anos 80, que resultou na criação do Sistema Único de Saúde (SUS), como um projeto de Previdência Social e de operacionalização de uma política de saúde com foco no bem-estar da comunidade. Contextualizando, a questão do direito à saúde, desde 1948, a saúde foi reconhecida internacionalmente pela Organização das Ações Unidas (ONU) como sendo um direito de todos. No Brasil, ela só foi vista como um direito a partir da Constituição de 1988, que abriu perspectivas de apoio às ações de domínio social, quando estabelece a saúde como um direito de todos e dever do Estado. Bem como, criou instrumentos que possibilitam ao cidadão buscarem junto ao junto ao Estado seus direitos à saúde, o que deve proporcionar a sociedade uma melhor qualidade de vida (1). Embora o direito à saúde seja garantido pela Constituição Federal, o cotidiano das práticas de saúde revela um contraste existente entre as conquistas estabelecidas por lei e a realidade da assistência à saúde prestada ao cidadão no país. Os principais fatores enfrentados pelo sistema de saúde seriam a desigualdade social, a falta de informação e a falta de humanização das ações de saúde (2). Este trabalho surgiu da necessidade de conhecer algumas informações acerca do direito à saúde, a formas de fazer valer esses direitos e o conhecimento sobre controle social no Sistema Único de Saúde do Distrito Federal.

Material e método Trata-se de uma pesquisa qualitativa utilizando a análise de conteúdo, onde será realizado um trabalho de campo em torno do conceito de “Direito à saúde”, com vistas a apreender a construção do conceito de saúde e as formas de conquistá-la na esfera pública. O cenário do estudo é o Centro de Saúde n° 4 localizado na cidade de CeilândiaDistrito Federal. 939

A coleta de dados foi através de entrevistas baseada em roteiros semiestruturados, ou seja, as questões foram previamente formuladas e os participantes puderam falar livremente sobre o tema direito à saúde (3). Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento do usuário. O instrumento da pesquisa constou das seguintes perguntas relacionadas ao direito à saúde: Conceito de SUS; Leis do SUS; Conhecimento sobre a frase “a saúde é um direito de todos e dever do Estado”; O que fazem para exigir o direito à saúde; Locais que devem ser buscados quando o direito não for atendido; O que é conselho de saúde e quem o representa.

Resultados e discussão Foram entrevistados 10 usuários que frequentavam o Centro de Saúde n°4 de Ceilândia (CSC4) no Distrito Federal. As entrevistas foram transcritas e realizado a interpretação dos dados e a discussão. A seguir serão discutidos os seis temas abordados na entrevista.

Conceito de Sistema Único de Saúde no discurso dos usuários Nos discursos dos entrevistados 1 e 7 eles entendiam que o SUS era um plano de saúde, onde as pessoas que possuíam o “Cartão do SUS” tinham acesso ao sistema público de saúde. “.... É um plano de saúde...” (C.A.S). “... SUS é um cartão...” (T.M.B.R). Cabe assinalar que todo cidadão têm direito à saúde, independente, de possuir o cadastro ou não do SUS. De acordo com a Lei 8.080/90 (4) o SUS é um conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público. A iniciativa privada poderá participar do Sistema Único de Saúde (SUS), em caráter complementar. Conhecer o que pensam os usuários por SUS é fundamental para compreender o que se encontra no imaginário das pessoas, qual o significado de acesso, de direitos, deveres e responsabilidades do sistema (5). O SUS “é o plano de saúde de todos os brasileiros”, pois, o mesmo foi criado há mais de 20 anos para ser o sistema de saúde dos 190 milhões de brasileiros, sem nenhum tipo de discriminação (6).

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Cabe assinalar que o SUS não se resume a consultas, exames e internações, o sistema vai além disso, que são os atendimentos de média e alta complexidade, como o atendimento aos doentes de aids e os transplantes (7). O Cartão Nacional de Saúde é um instrumento que possibilita a vinculação dos procedimentos executados no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) ao usuário, ao profissional que os realizou e também à unidade de saúde onde foram realizados tais procedimentos. Para tanto, é necessário a construção de cadastros dos usuários, bem como de profissionais de saúde e de unidades de saúde. A partir desses cadastros, os usuários do SUS e os profissionais de saúde recebem um número nacional de identificação (8). Os usuários 3, 4 e 10 conceituam SUS como um órgão ou entidade do governo que gerencia a saúde no Brasil com o objetivo de ajudar na saúde da população. “... Sistema que gerencia a saúde no Brasil...” (V.S.C.). “... Sistema de saúde do governo...” (E.A.V.). “... É uma entidade que ajuda na saúde da população...” (W.G.S.). O SUS é um sistema porque é formado por várias instituições dos três níveis de governo (União, estados e municípios) e pelo setor privado, com o qual são feitos contratos e convênios para a realização de serviços e ações, numa mesma estrutura. Assim, o serviço privado (um hospital, por exemplo), quando é contratado pelo SUS, deve atuar como se fosse público. O SUS é único, porque tem a mesma filosofia de atuação em todo o território nacional e é organizado de acordo com uma mesma lógica (7). Os usuários 5, 8 e 9 relacionaram o SUS como seu próprio funcionamento, identificando o mesmo como algo que produz tratamento, atende a população doente e objetiva alcançar quem precisa de atendimento de saúde. “... É para quando precisar do hospital...” (B.A.R.S). “... É pra atender a população doente... Ainda não me serviu...” (M.H.B.C.).“... É um tratamento de saúde...” (F.J.N.) A utilização dos serviços prestados pelo SUS deverá garantir através de políticas as ações de promoção, proteção e recuperação da saúde que possibilitem, também, a participação popular nas decisões e na implementação das ações (5). Após 20 anos de criação do SUS é possível perceber que ainda existem usuários que desconhecem o conceito de SUS e o seu funcionamento, este fato é perceptível nos discursos dos entrevistados 2 e 6. “...SUS? Dá uma dica pra mim aí, por favor...” (T.M.S) “...O que é SUS? O negócio agora pegou... Não sei...” (L.A.M)

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As leis do sus nos discursos dos usuários Nos discursos dos usuários foi possível perceber que alguns desconhecem a legislação do SUS e os outros têm pouco conhecimento acerca do tema.

“...Não...”

(C.A.S.; V.S. C; E.A. V; B.A.R. S; L.A. M; T.M.B. R; F.J.N.). “...Sim. Não lembro quais...” (T.M. S; M.H.B.C; W.G. S) Foi observado que existem usuários que não tiveram acesso à informação necessária sobre as leis que regem o SUS. O Movimento de Reforma Sanitária surgiu nos centros urbanos maiores, e desta forma pouco se socializou nas regiões mais distantes do país, principalmente, na esfera da municipalidade, mas institucionalizou-se sem conseguir consolidar-se (9). As leis são instrumentos de luta e por isso não são só dispositivos formais, mas, cabe a sociedade dominá-las para ampliar a luta na "batalha da saúde” (10). Conhecer as leis que regem o SUS é importante para buscar as formas de fazer valer o direito do cidadão no dia a dia e toda vez que não forem respeitados tais direitos. Ao reivindicar o cumprimento da lei, o usuário do serviço busca resolver o seu problema pessoal, e também contribui para a melhoria dos serviços e ações de saúde para toda a comunidade (7). Nossa cultura política caracterizada pelo paternalismo, meritocracia e casuísmo, perde-se na organização do Sistema Único de Saúde, cujos princípios vão desde a descentralização, igualdade de acesso, universalidade até a gestão participativa. Entretanto, estes aspectos ainda não foram sentidos igualmente pela população, principalmente pelas camadas populares que só tem a possibilidade de realizar seu direito à saúde nos serviços do sistema público (9). As leis, a princípio, amparam a participação da população nas políticas de saúde e são, a princípio, defensoras dos direitos sociais dos sujeitos. Todavia, temos um novo problema, que é o de fazer com que as leis deixem de ser apenas instrumentos formais de luta, passando à aplicação de fato das mesmas. Esta conjuntura supõe uma nova instrumentação das lutas democráticas e populares, no sentido de se prepararem para a aplicação da lei e a busca da divulgação para o desenvolvimento da cidadania (10).

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Conhecimento e opinião sobre a frase: “saúde é um direito de todos e dever do Estado” Nos discursos dos usuários foi observado que através da sua convivência com os serviços de saúde e suas relações os entrevistados incorporaram os preceitos legais de cidadania, ou seja, eles sabem que a saúde é um direito, porém dizem não encontrarem estes direitos em suas realidades. “...É um dever do Estado... A saúde é pra todos...”(B.A.R.S). “...É um direito, mas nem todas as pessoas usufruem...” (L.A.M) “...A saúde em primeiro lugar...” (F.J.N). “...A saúde é um bem de todos e o Estado deve prestar essa contribuição...” (W.G.S). Embora não haja a menção direta à Constituição Federal como órgão legitimador, na conformação jurídico-administrativa de nosso país, esse direito surge como Lei a ser cumprida, cujo grande beneficiário é o próprio usuário, muitas vezes ainda não esclarecido desta condição (11). Essa concepção elaborada resulta em representações que ganham uma conotação de direito social, muito ligada ainda à oferta de serviços de saúde, mas já adquirindo contorno que vão além deste sentido único, interligando-se a dignidade humana, legitimando-se como estrutura de um estado democrático de direito (11). Nos discursos a seguir foi possível realizar um contrassenso entre o direito legalmente garantido e o cumprimento desse direito. “...É um direito, mas não é como deveria ser...” (C.A.S). “...Falta estrutura no sistema... O Estado deve oferecer saúde diferente da atual...” (V.S. C) “...Essa frase é pouco usada...” (E.A. V). “...A saúde não esta lá essas coisas...” (T.M.B.R). “...A lei existe, mas não é cumprida...” (M.H.B.C). O direito à saúde surge de forma controversa, pois ao mesmo tempo em que é um direito de todos, acaba prevalecendo o olhar pessimista do não cumprimento desse direito. Isto fica claro, por exemplo, no discurso do entrevistado 1 –“É um direito, mas não é como deveria ser”. A consolidação do SUS, como um sistema de atenção e cuidados em saúde, não é suficiente para a efetivação do direito da população à saúde. São claras as evidências que apontam para os limites da atuação de um sistema de assistência pública para a comunidade. A conquista da saúde precisa estar articulada à ação sistemática e intersetorial do Estado sobre os determinantes sociais de saúde, ou seja, o conjunto dos

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fatores de ordem econômico-social e cultural que exercem influência direta ou indireta sobre as condições de saúde da população (1). Cabe assinalar no discurso do entrevistado 2 que o mesmo já ouviu falar de direito à saúde, porém não consegue argumentar/explicar a frase proposta. Isso pode estar relacionado à desinformação do usuário ou pela inexistência na prática pelo teor da frase referida “... Sim. Não sei explicar...” (T.M.S). A maioria dos discursos vistos de uma forma geral mostrou que os sujeitos afirmaram que ter direito à saúde não foi o suficiente para que os mesmos tivessem acesso aos serviços de saúde e que de fato isso ocorresse de forma resolutiva. Há também uma mistura de insatisfação do usuário, inoperância do sistema de saúde e a dificuldade de acesso a estes serviços. Não basta garantir o acesso e/ou o direito ao sistema público de saúde. É preciso criar uma consciência política nos usuários para que não se tornem meros receptores ou interlocutores das propostas governamentais. É preciso que todos os atores sociais estejam engajados e comprometidos, por meio de seus direitos e deveres, na luta pela transformação da sociedade (5).

O que o usuário faz para exigir o direito à saúde. Nos discursos dos entrevistados 2, 4, 5 e 7 houve um desconhecimento aparente quanto à atitude a tomar para melhorar a situação do setor saúde. Assim, acabam optando por não reclamar ou desistirem de exigir seus direitos por impaciência com a demora do retorno ou procurando outros serviços para atender suas necessidades, por exemplo, os hospitais particulares. “...Nada...” (T.M. S). “...Não corro atrás... Sou impaciente...” (E.A.V.). “...Tenho que reclamar...” (B.A.R.S). “...Faço tudo particular...”(T.M.B.R). O direito social de ter garantida a condição de saúde de uma população supõe o próprio movimento dessa população em conseguir o reconhecimento e a efetivação desse direito. Esta afirmação contém, em si, uma perversidade, uma vez que exige do sujeito/usuário e, portanto detentor da necessidade, um duplo ônus, um deles o de possuir a necessidade, e o outro de gastar um sobre-esforço em criar a solução para atendê-la (10). A percepção da não existência do direito à saúde, ou de sua existência, o não cumprimento da legislação pelas instancias gestoras competentes, conduzem a situações distintas no comportamento da comunidade frente ao desafio de garantir a saúde no SUS.

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Uma delas abarca a passividade nas ações comunitárias quer pelo sentimento de satisfação com relação ao sistema de saúde local, quer por um sentimento de insatisfação, mágoa e raiva, mas sustentado por não saberem que atitudes deverão tomar, talvez por desânimo característico em grupos marginalizados. Surge ainda em alguns, um sentimento de inquietação que os leva a uma busca organizada pelas melhorias necessárias que lhes garantam esse direito (11). Os usuários 1, 3, 6 e 10 acreditam que a presença constante na unidade de saúde ou em hospitais, obrigatoriamente, lhes devolveria a saúde perdida através do direito não cumprido, sendo atendido ou não no serviço. Sendo assim, frequentando os serviços de saúde o seu direito estaria sendo exigido. Veja os discursos a seguir: “...Vou para a fila dos hospitais públicos...” (C.A.S). “...Procuro o posto de saúde...” (V.S.C). “...Vindo ao médico...” (L.A.M). “...Quando vou me consultar tenho direito...” (W.G.S). O "usuário/consumidor" é, ao mesmo tempo, um sujeito/democrático virtual na construção da política de saúde, e não um carente a ser atendido por uma instituição transformada em "ofertante de serviços", negadora, em sua prática, dos direitos dos cidadãos (10). Os usuários 8 e 9 referiram em seus discursos dois locais que podem ser buscados para exigirem que a lei seja cumprida: “...Procuro a ouvidoria...” (M.H.B.C). “...Procurar o Ministério da Saúde...” (F.J.N). Vários hospitais, serviços e órgãos públicos de saúde mantém ouvidoria, cuja função é a de ouvir os usuários, apurando as denúncias e apresentando soluções em relação ao problema levantado. A ouvidoria recebe e analisa as reclamações e as sugestões dos usuários, encaminhando o problema aos setores competentes. Acompanha também as providências adotadas, cobra soluções e mantém o usuário informado (7). O Ministério da Saúde mantém o Disque Saúde que funciona 24 horas, com ligação gratuita ao usuário do SUS. Além de orientações sobre prevenção e tratamento de doenças, é possível obter informações sobre telefones 0800 municipais, sobre onde fazer denúncias relacionadas a medicamentos falsos e reclamações sobre serviços prestados na rede pública (7).

Locais que devem ser buscados para fazer valer o seu direito à saúde. Nos discursos dos entrevistados 1, 4, 5 e 10 os usuários do SUS têm desconhecimento e desinformação relacionada às formas e locais de exigir o direito à 945

saúde: “...Não sei...” (C.A.S). “...Não sei...” (E.A.V). “...Não sei...”(L.A.M). “...O INSS... Procuro o Hospital?...” (W.G.S). Se os usuários do SUS não conhecem esses meios de participação para exigirem seus direitos à saúde, como então exigi-los? A informação é de fundamental importância para que o usuário do SUS conheça de fato estes locais, e a forma de fazer valer seus direitos. Os principais órgãos para a solução das situações indesejadas que o cidadão possa procurar são os Conselhos de Saúde; a Ouvidoria; o Ministério Público; o PROCON; o Poder Judiciário: Mandado de injunção, habeas corpus e habeas data (7). Se os usuários não têm conhecimento sobre a legislação para buscar seus direitos, por exemplo, é porque historicamente não tiveram acesso e também esse tema não foi socializado. Parece que existem obstáculos que inviabilizam este conhecimento da sociedade quanto aos seus direitos e, quando são demonstrados, alguns valores envolvem - prestações de contas - situavam-se no terreno do desconhecido e do inatingível, com uma linguagem específica dessa área do conhecimento. Observou-se também que esse saber não é de total domínio da maioria das áreas técnicas e dos profissionais de saúde em nível geral, muito menos da sociedade como um todo (9). A comunicação e a informação são entendidas como variáveis que podem interferir nas relações sociais e contribuir para viabilizar os esforços de uma política pública para a saúde, na perspectiva da participação popular. Nesse contexto, a comunicação e a informação são respostas funcionais aos problemas de implementação e funcionamento do sistema de saúde, perspectiva esta que irá incidir também nas variáveis da participação popular (13). Os entrevistados 2, 3, 5 e 7 citaram como locais os próprios serviços de saúde, ou seja, as chefias, a direção e os secretários de saúde. Esses discursos podem ser justificados pela 46 proximidade destes locais com os usuários, facilitando a comunicação e resolutividade dos seus problemas junto a unidade de saúde. “...Postos de saúde e Hospitais...” (T.M.S). “...Defensoria Pública, secretaria de saúde...” (V.S.C). “...Procuro as secretarias-secretário de saúde...”( B.A.R.S) “...Vou à direção...” (T.M.B.R). “...Procurar o Ministério da Saúde...” (F.J.N). No caso de reclamações sobre a falta e o despreparo de profissionais, o mau atendimento, o descumprimento de horários, as filas de espera, a demora, a

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desorganização do serviço, a falta de aparelhos, os equipamentos, os medicamentos e os insumos podem ser procurados o diretor do setor, o chefe do serviço e o Secretário de Saúde (7). Ainda no discurso do entrevistado 3 foi citado também a Defensoria Pública. Neste caso, o usuário moverá uma ação judiciária contra o serviço ou o próprio Estado (9).

Conhecimento sobre conselho de saúde e quem os representa Foram destacados pelos usuários o desinteresse ou o desconhecimento da existência de processos de participação comunitária. A seguir exemplos das falas desses usuários acerca desse assunto: “...Não. Não sei quem me representa...” (C.A.S; T.M.S; V.S.C; E.A.V; B.A.R.S; L.A.M; T.M.B.R; M.H.B.C; Neste contexto, o que se vislumbra é se os usuários não sabem o que é um Conselho de Saúde, desconhecem sua função e, provavelmente, não sabem quem os representa. Assim a participação da comunidade nas decisões sobre a saúde individual e do conjunto da comunidade encontra-se prejudicada, já que suas reclamações e sugestões não estão sendo levadas em consideração pelo Conselho de Saúde local. Segundo a legislação em vigor, as decisões emanadas desses órgãos devem tratar da formulação de estratégias e do controle da execução das políticas de saúde propostas, com pleno acesso desse Conselho aos aspectos econômico-financeiros voltados para o setor. Também é possível propor critérios para a programação, a execução, o acompanhamento, a avaliação e, também, a elaboração e a aprovação do plano de saúde, bem como o estabelecimento de estratégias para a sua execução (11). A informação é um elemento fundamental para a gestão e o controle social do SUS, daí a importância da comunidade se envolver no conhecimento da legislação e nos fóruns de discussão acerca desse problema (14). A tomada da responsabilidade de organizar e dirigir sua vida em sociedade revela-se no artigo que inaugura a Constituição: é ao povo que pertence todo o poder. É ele quem deve exercitá-lo. Para tanto, pode ou eleger representantes ou agir em nome próprio (10). Neste sentido, a sociedade deve manter uma relação mais constante entre os integrantes dos conselhos de saúde e de seus representados com o objetivo de aumentar a representatividade e a resolutividade dos problemas do setor saúde (11). O usuário 9 define conselho como uma “coisa” que vem do Ministério da Saúde, não sabendo sua

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função e quem o representa. - É uma coisa quem vem do Ministério da Saúde. Não sei quem me representa (F.J.N). O usuário 10 define conselho de saúde da seguinte forma: É um grupo que faz reuniões para discutir sobre o bem estar da população... Não sei quem representa (W.G.S). A Lei nº 8.142/1990 (15) explicita a composição dos Conselhos de Saúde e, garante a representação dos seguintes segmentos dentro do Conselho, entre eles o governo, os prestadores de serviços, os profissionais de saúde (50%) e os usuários (50%). O controle e a participação social são entendidos como um espaço de representação da sociedade, onde se articulam diferentes sujeitos, com seus diversos olhares, e incluem: movimentos populares, entidades de classe, sindicatos, governo, entidades jurídicas, prestadores de serviços, entre outros, e, uma população com suas necessidades e interesses (14). Sendo assim, os Conselhos de Saúde podem ser um dos instrumentos privilegiados para fazer valer os seus direitos, rompendo com as tradicionais formas de gestão, e, possibilitando a ampliação dos espaços de decisões/ações do poder público. Bem como, este fórum permite impulsionar a constituição de esferas públicas democráticas, potenciais capacitadores dos sujeitos sociais para processos participativos mais amplos e de interlocução ético-política com o Estado (9).

Conclusão Quando questionados sobre o conceito de Sistema Único de Saúde, os usuários associaram esse significado ao próprio funcionamento do sistema público de saúde e como o sistema de saúde do governo, indicando que alguns princípios do SUS são percebidos no cotidiano quando utilizam os serviços de saúde. Foi possível analisar que apesar do SUS ter sido criado há mais de duas décadas, ainda existem usuários que desconhecem essa conceituação e o seu funcionamento. Em relação às leis do SUS prevaleceu o desconhecimento sobre tais legislações, levando-nos a concluir que a busca das formas de reivindicar o cumprimento da lei pelo usuário do serviço encontra-se prejudicada, já que os mesmos não conhecem estes fundamentos e, portanto os seus direitos. Esta situação leva o cidadão à fragilidade, uma vez que, deixa de contribuir para a melhoria dos serviços e ações de saúde para toda a comunidade.

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Os usuários, de fato, não são obrigados a conhecer a totalidade das leis, porém um conhecimento maior mesmo que parcial faria a diferença, enquanto empoderamento do sujeito. Conhecer seus direitos, conhecer as formas de reivindica-lo e fazer com que os direitos saiam da teoria, é um dos ideários e pilares do SUS. A percepção da saúde como direito de todos e dever do Estado foi clara nos discursos da maioria dos entrevistados. Porém, os usuários enxergam esse direito de forma paradoxal do que eles vivenciam no cotidiano dos serviços de saúde, pois ao mesmo tempo em que é um direito de todos na teoria, na prática eles não acreditam nestes benefícios. Por conseguinte, há uma insatisfação e a sensação de impotência na resolução dos seus problemas, caracterizando negativamente o Sistema Único de Saúde. Para exigirem que o direito seja cumprido, alguns dos usuários citaram o próprio serviço de saúde, acreditando que a sua presença constante nestes serviços já era uma forma de fazer valer o seu direito. Outros demonstraram indiferença ao funcionamento do Sistema Único de Saúde, não tomando nenhuma atitude relacionada à reivindicação. A minoria dos entrevistados citou dois locais os quais podem ser acionados caso seus direitos a saúde não sejam atendidos, são eles: a Ouvidoria e o Ministério da Saúde. Em relação ao Conselho de Saúde e seus representantes a maioria dos entrevistados desconheciam a existência deste fórum, a forma de funcionamento e aqueles que os representam. Assim, foi observada a falta informação, de incentivo a participação social no SUS e o conhecimento sobre o funcionamento e acessibilidade a esta instância, uma vez que, a mesma foi criada com o objetivo de fazer valer os direitos à saúde e de forma igualitária. Neste sentido, a população tem direito de participar na formulação de estratégias e do controle da execução das políticas de saúde, sendo o Conselho de Saúde um desses fóruns. As representações dos usuários desta pesquisa evidenciam que existem pessoas que desconhecem as leis orgânicas do SUS que lhes garantem direito universal à saúde, havendo duas situações: o direito na teoria e o direito que eles vivenciam no cotidiano dos serviços de saúde. Assim, recomenda-se que o governo invista na divulgação do direito à saúde e a sua legislação, as formas de exigi-lo na esfera pública e as instâncias de participação da comunidade na gestão do SUS. Esta divulgação pode ser feita através de banners, cartazes ou até mesmo através do profissional de saúde atuando como informante para os usuários dos serviços de saúde.

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Referências 1. BRASIL, Ministério da Saúde. Caminhos do direito em saúde no Brasil, 2007. Disponível em: Acesso em: 27 abril. 2009. 2. TRAVERSO-YEPEZ, Martha and MORAIS, Normanda Araújo de. Reivindicando a subjetividade dos usuários da Rede Básica de Saúde: para uma humanização do atendimento. Cad. Saúde Pública [online]. 2004, v. 20, n. 1, pp. 80-88. ISSN 0102311X. 3. SAMPIERI, R.H. COLLADO, C.F. LUCIO, P.B.O processo de pesquisa e os enfoques quantitativos e qualitativos rumo a um modelo integral.In:Metodologia de pesquisa.São Paulo:McGraw-Hill,2006. 4. BRASIL. Lei n° 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível Acesso em: 06 jun 2011.

em:

5. BACKES, Dirce Stein et al. O que os usuários pensam e falam do Sistema Único de Saúde? Uma análise dos significados à luz da carta dos direitos dos usuários. Ciênc. saúde coletiva [online]. 2009, vol.14, n.3, pp. 903-910. ISSN 1413-8123. 6. BRASIL. Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. O SUS pode ser seu melhor plano de saúde / Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. – 2. ed., 3ª reimpr. – Brasília: IDEC, 2003 7. BRASIL. CONSELHO NACIONAL DE SECRETÁRIOS DE SAÚDE. Legislação do SUS. Brasília: CONASS, 2003. Disponível em: Acesso em: 21 out 2011. 8. BRASIL. Ministério da Saúde. Participação e Controle Social. Disponível em: Acesso em: 18 jun 2011 9. KRUGER, T.R. O desconhecimento da reforma sanitária e da legislação do SUS na prática do conselho de saúde. Planejamento Políticas Públicas. Dez, 2000. 10. SPOSATI, Aldaíza and LOBO, Elza. Controle social e políticas de saúde"Controle Social e Políticas de Saúde". Cad. Saúde Pública [online]. 1992, vol.8, n.4, pp. 366378. ISSN 0102-311X 11. SILVA, Marcos Alex Mendes da. O direito à saúde: representações de usuários de uma unidade básica de saúde. Juiz de Fora: 2008. 106 p. Universidade Federal de Juiz de Fora; Faculdade de Medicina-Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública.

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12. OLIVEIRA, Valdir de Castro. Comunicação, informação e participação popular nos Conselhos de Saúde. Saude soc. [online]. 2004, vol.13, n.2, pp. 56-69. ISSN 01041290. 13. ASSIS, Marluce Maria Araújo y VILLA, Tereza Cristina Scatena. O controle social e a democratização da informação: um processo em construção. Rev. Latino-Am. Enfermagem [online]. 2003, vol. 11, no. 3, pp. 376-382. ISSN 0104-1169. 14. BRASIL. Lei n° 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Disponível em: Acesso em 03 jun 2011

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O desafio das políticas públicas brasileiras na garantia do direito à saúde da pessoa com deficiência Lays Hevércia Silveira de Farias1 Graciele Silva Santos2

RESUMO: Introdução: As legislações brasileiras garantem o direito à saúde das pessoas com deficiência. A Política Nacional de Atenção à Pessoa com Deficiência representa um marco no desenvolvimento de políticas públicas, porém essas precisam ser avaliadas e difundidas. Objetivo: identificar as políticas públicas brasileiras para pessoas com deficiência, com o intuito de favorecer o conhecimento sobre os direitos desses usuários no Sistema Único de Saúde. Métodos: Revisão integrativa da legislação e de artigos científicos sobre as políticas públicas e os direitos das pessoas com deficiência. Realizouse um levantamento bibliográfico nas bases de dados Scielo, BVS, Pubmed/Medline e do Portal Legislação. Resultados e discussão: Observou-se nas legislações componentes que asseguram o direito à saúde, estabelece as redes de Atenção à saúde, participação social, financiamento dos serviços de saúde e elaboração de programas e políticas de saúde. Conclusões: A legislação brasileira e a literatura científica apresentam um arsenal de elementos que compõe o direito à saúde de pessoas com deficiência, entretanto, na prática observa-se lacunas no cumprimento das políticas públicas. Palavras-chave: Pessoas com Deficiência; Defesa das Pessoas com Deficiência; Política de Saúde; Participação Cidadã. Introdução Segundo a OMS, através da Classificação Internacional de funcionalidade e incapacidade em saúde-CIF, a deficiência é resultado da interação dinâmica entre os problemas de saúde e fatores contextuais, pessoais e ambientais que impedem sua participação plena e eficaz na sociedade¹. No contexto global, a elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, realizada em 2006, reforçou os direitos de cidadania das pessoas com deficiência, incluindo aspectos relacionados à saúde². No entanto, é perceptível um distanciamento entre as necessidades de saúde e as políticas implementadas. Esse aspecto tem sido ampliado nas políticas públicas brasileiras, porém representa um desafio nos campos da prevenção e promoção da saúde. É fundamental o investimento em ações que promovam a universalidade e aumentem a cobertura com o intuito de ampliar a qualidade da atenção³. 1 2

Universidade Federal de Sergipe Universidade Federal de Sergipe

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A Política Nacional de Atenção à Pessoa com Deficiência instituída no ano de 2002 é o marco discutido nessa pesquisa. A incorporação de legislações, pesquisas e políticas públicas, após a instituição dessa política, nos permite verificar avanços importantes no contexto da garantia dos direitos à saúde para pessoas com deficiência. Essa pesquisa objetivou identificar as políticas públicas brasileiras para pessoas com deficiência, com o intuito de favorecer o conhecimento sobre os direitos desses usuários no Sistema Único de Saúde.

Metodologia Trata-se de uma revisão integrativa da literatura científica e da legislação brasileira sobre os direitos à saúde das pessoas com deficiência. A pesquisa foi realizada de junho a agosto de 2017, por meio da consulta às bases de dados digitais Medline/Pubmed, Biblioteca Virtual de Saúde e Scielo dos artigos científicos. A busca da legislação foi realizada no Portal da Legislação. Os critérios de inclusão foram: artigos e legislações de 2002 a 2017, visto que, considera a literatura produzida após a instituição da Política de Atenção Integral à Pessoa com Deficiência; idiomas em inglês e português; resumo disponível nas bases de dados citadas anteriormente. Os documentos excluídos obedeceram aos seguintes critérios: artigos científicos e legislações sem relação com a temática de saúde; políticas e programas instituídos em outros países. Os descritores empregados foram obtidos através do Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) ou do Medical Subject Readings (MESH). Em português (Pessoas com Deficicência, Defesa das Pessoas com Deficiência, Política de Saúde; Participação Cidadã); inglês (Disabled Persons, Handicapped Advocacy, Health Policy, Citizen Participation). Inicialmente, foram encontradas 181 publicações referente ao tema nas bases de dados Medline/Pubmed, BVS e Scielo. Na sequência, foram analisadas quanto ao título e resumo e, posteriormente excluídas algumas publicações. As legislações encontradas no Portal de Legislações totalizaram 29, foram lidas a sua estrutura preliminar, o tipo de normativa, a data de promulgação, objeto e âmbito de aplicação. Após a leitura na íntegra restaram 9 artigos e 14 legislações que subsidiaram a elaboração da revisão sistemática.

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As categorias que emergiram foram as seguintes: políticas de saúde; tecnologias assistivas; rede de cuidados e organização dos serviços. Resultados e discussão A literatura científica e a legislação foram agrupadas em quatro categorias, nas quais discutiu-se aspectos inerentes aos direitos à saúde das pessoas com deficiência. Quadro 1: Legislações federais, do período de 2002 a 2017 sobre políticas públicas de saúde para pessoas com deficiência no Brasil LEGISLAÇÕES Decreto nº 186/2008

Portaria nº 1.032/2010

Decreto nº 7.612/2011 Portaria nº 793/2012

Portaria nº 835/2012

Lei nº 12.715/2012

Portaria n° 1.272/2013

Portaria n° 1.303/2013

Decreto nº 7.988/2013

Lei nº 13.146/2015 Decreto nº 8.725/2016 Portaria n° 480/2016 Portaria n° 479/2016

DESCRIÇÃO GERAL Aprova o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Inclui procedimento odontológico na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses e Próteses e Materiais Especiais do Sistema Único de Saúde - SUS, para atendimento às pessoas com necessidades especiais. Institui o Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência - Plano Viver sem Limite. Institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Institui incentivos financeiros de investimento e de custeio para o Componente Atenção Especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Institui o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência Inclui Procedimentos de Cadeiras de Rodas e Adaptação Postural em Cadeira de Rodas na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais (OPM) do Sistema Único de Saúde. Estabelece os requisitos mínimos de ambientes para os componentes da Atenção Especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e dá outras providências. Regulamenta os arts. 1º a 13 da Lei nº 12.715, de 17 de setembro de 2012, que dispõem sobre o Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica - PRONON e o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência - PRONAS/PCD. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) Institui a Rede Intersetorial de Reabilitação Integral e dá outras providências Institui o Grupo de Trabalho para a qualificação da concessão de Cadeiras de Rodas no âmbito do SUS. Institui Câmara Técnica de assessoramento e apoio às ações da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência

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Decreto nº 8.954/2017

no âmbito do SUS Institui o Comitê do Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência e dá outras providências.

Quadro 2: Categorização de artigos científicos referentes aos direitos e às políticas públicas no Brasil para pessoas com deficiências, no período de 2002 a 2017. Título

Autor/Ano

Objetivos/Métodos

Trata-se de um estudo transversal (cross-sectional study), com Perfil das pessoas abordagem quantitaiva cujo objetivo com deficiência foi descrever o perfil epidemiológico física e Políticas Nogueira et al., das pessoas com deficiência Públicas: a 2016 residentes no município de distância entre Florianópolis/SC e analisá-los frente intenções e gestos às políticas públicas voltadas a esta população. Evidência nível 4 Saúde da pessoa que vive no campo: o que dizem os trabalhadores da Atenção Básica

Ursine BL; Pereira EL; Carneiro FF, 2017

Deficiência como restrição de participação social: Santos W, desafios para 2016 avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão

Estrutura interna de Unidades de Saúde da Família: acesso para pessoas com deficiência

Pessoas com deficiência: pesquisa sobre sexualidade e vulnerabilidade

Martins KP et al., 2016

Paula et al., 2009

Pesquisa qualitativa, que objetivou analisar as percepções dos trabalhadores da Estratégia de Saúde da Família sobre a saúde da pessoa com deficiência que vive no campo. Evidência nível 6

Análise documental do marco legal das políticas públicas voltadas para pessoas com deficiência no Brasil. Evidência nível 5

Trata-se de uma pesquisa descritiva, exploratória, de base populacional. Este estudo teve como objetivo avaliar a estrutura interna de Unidades de Saúde da Família em relação ao acesso de pessoas com deficiência física e/ou sensorial. Evidência nível 6 Pesquisa- ação de abordagem qualitativa com objetivo de identificar condições de vulnerabilidade ao HIV/aids em pessoas com deficiência visual, auditiva e física, maiores de 18 anos e residentes no Município de São Paulo. Evidência nível 6

Resultados O estudo identificou que a procura pelos serviços de saúde se concentram nos níveis de maior complexidade, com praticamente metade das pessoas com deficiência buscando serviços de reabilitação, fisioterapia e hospitalares. Apesar da garantia ao acesso universal preconizado pela ESF. A deficiência não é uma questão que faça parte das questões cotidianas dos profissionais desse estudo e vista como um infortúnio. E percebe-se associação da deficiência com pacientes acamados A deficiência passa a ser caracterizada como uma restrição à participação social das pessoas através da avaliação da CIF. A mudança do modelo biomédico com objetivo de desmedicalizar a deficiência permite considerar as barreiras sociais enfrentadas pelas pessoas com deficiência. A ausência de rampas e a falta de corrimãos foi identificado como um problema, pois os pacientes com deficiência física ou sensorial não tem condições de adentrar a ESF. Além disso as localidades dos serviços são inadequadas. A representação errônea da sexualidade das PCD, e não inclusão nos programas de saúde sexual contribui para o aumento da vulnerabilidade frente a situações relacionadas a Aids/ HIV.

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Deficiência, políticas públicas e bioética: Bernardes percepção dos LCG; Araújo gestores públicos TCCF, 2011 e conselheiros de direitos

Estudo descritivo, exploratório sobre a percepção de conselheiros e gestores acerca da deficiência das políticas públicas com base no debate bioético e na legislação. Evidência nível 6

Mapeamento da acessibilidade do portador de limitação física a serviços básicos de saúde

As ruas e avenidas, adjacentes aos estabelecimentos de saúde Estudo exploratório, descritivo com avaliados apresentavam barreiras objetivo de mapear as barreiras como: buracos e desnivelamentos arquitetônicas de acesso aos que dificultava o acesso as serviços de saúde. A pesquisa foi unidades pelas pessoas com realizada em 12 unidades em limitações físicas, além disso, a município de médio porte. Evidência maioria não havia sinalização de nível 6 transito, e vagas de estacionamento exclusivas.

Vasconcelos LR, 2006

Pessoas com deficiência e Bernardes políticas de saúde LCG et al., no Brasil: reflexões 2008 bioéticas

Artigo de opinião que propõe reflexões acerca dos recursos destinados a assistência à saúde de pessoas com deficiência. Evidência nível 7

Os conselheiros acreditam que os recursos devem ser utilizados para proteção de grupos vulneráveis, ao contrário, do que pensam os gestores, de que se deve priorizar a maior quantidade de pessoas.

Cabe ao Estado garantir a proteção as Pessoas com Deficiência, por meio de políticas públicas que busquem atenuar, reduzir e se possível eliminar incapacidades

Direito à saúde A convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiências é um marco para a efetividade da garantia plena e equitativa de direitos fundamentais. No que concerne à saúde o Estado deve garantir o acesso aos serviços de saúde pelas pessoas com deficiência. Assim, como garante a Lei 13.146/2015, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, que menciona a importância das condições de acesso a tratamentos na garantia do direito à vida e à saúde4. O Decreto nº 8.954/2017 também representa um avanço, pois propõe grandes conquistas com implementação do Comitê de Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência. Esse cadastro, além de permitir compreender o perfil dessas pessoas tem o objetivo de promover o conhecimento sobre as principais barreiras que impedem a efetividade do exercício pleno dos seus direitos5.

Políticas públicas A necessidade de estudos que avaliem as políticas públicas para a pessoa com deficiência é algo importante para os avanços na saúde pública. No entanto, poucos são os estudos que ressaltam essa temática6.

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A bioética nesse contexto das políticas públicas é um elemento importante na luta pelos direitos das pessoas com deficiência. A consonância desses conceitos é importante para a efetivação de políticas públicas mais eficazes e justas3. Organização dos serviços de saúde Os profissionais de saúde da Atenção Básica enfrentam dificuldades em relação as situações que envolvem pessoas com deficiência. A atuação intersetorial representa um desafio. Na zona rural, esses problemas se tornam ainda mais evidentes, principalmente relacionados ao acesso nos serviços de saúde das pessoas com deficiência que residem no campo6,7. Na organização dos serviços encontram-se os centros de reabilitação que compõe a Atenção Especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do SUS, os quais são estabelecidos pela portaria nº1303/20138.

Redes de cuidados9 A rede de cuidados é uma estratégia articulada dos serviços de saúde com intuito de garantir o princípio de integralidade. Portanto, com vista a assegurar tais benefícios instituise a Rede de Cuidados a Pessoa com Deficiência através da Portaria nº793/2012. Essa portaria prevê a ampliação e articulação dos serviços de reabilitação para oferecer atendimento efetivo as pessoas com deficiência.9 Posteriormente, foi necessário estabelecer normativas quanto ao financiamento dessa rede, o qual ocorreu pela portaria nº 835/2012 10. Em 2016 foi instituída a Rede intersetorial de Reabilitação Integral pelo decreto 8.725, o qual propõe integrar serviços e ações de atenção, assistência à saúde, reabilitação profissional e a reinserção social11. As redes de cuidado para a pessoa com deficiência no SUS conta com uma comissão técnica de assessoramento e apoio, estabelecida pela portaria n° 479/ 2016, que visa ampliar e qualificar o debate acerca de ações e serviços12.

Tecnologias Assistivas No que se refere a produtos e recursos de tecnologia assistiva foi instituída a portaria nº 1272/2013 que inclui na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais (OPM) do SUS os procedimentos de Cadeiras de Rodas e Adaptação

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Postural em Cadeira de Rodas13. A essa tabela foi incorporado também o procedimento odontológico através da portaria nº 1.032/201014. A criação do Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência – PRONAS/PCD através do Decreto 7.988/2013 auxiliou na captação de recursos com o intuito de estimular a prevenção e reabilitação da pessoa com deficiência15. O Direito ao acesso a esses produtos, recursos, estratégias, prática e processos, métodos e serviços de tecnologia assistida, é também garantido pelo Estatuto da pessoa com deficiência (lei n°13.146/2015)4.

Conclusão Essa pesquisa evidenciou uma vasta composição de legislações que asseguram os princípios estabelecidos pela Política Nacional de Atenção à Saúde da Pessoa com Deficiência. No entanto, observa-se a fragilidade na literatura em avaliar a implementação de políticas e programas. Apesar dos direitos garantidos através das políticas públicas percebe-se um distanciamento entre essas e as reais necessidades das pessoas com deficiência. Esse estudo contribuiu para a ampliar a visão sobre componentes essenciais que interferem na qualidade de vida das pessoas com deficiência tais como acessibilidade, políticas e programas de saúde e participação social.

Referências 1. OMS: Organização Mundial da Saúde. Organização Panamericana de Saúde. Classificação Interacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). São Paulo: EdUSP, 2003. 2. Dhanda, A. Construindo um novo léxico dos direitos humanos: Convenção sobre os direitos das Pessoas com Deficiências. Sur, Rev int.direitos human. 2008; 8 (Suppl 5): 42-59. 3. Bernardes LCG, Araújo TCCF. Deficiência, políticas públicas e bioética: percepção de gestores públicos e conselheiros de direitos. Ciênc. saúde coletiva. 2012 ; 17( Suppl 9 ): 2435-2445. 4. Brasil. Lei nº. 13.146, de 5 de julho de 2015. Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União.

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5. Brasil. Decreto nº 8.954, de 10 de janeiro de 2017. Institui o Comitê do Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência e da Avaliação Unificada da Deficiência e dá outras providências. Diário Oficial da União. 6. Martins KP, Costa TFM, Thayris M et al. Internal structure of Family Health Units: access for people with disabilities. Ciênc. saúde coletiva. 2016; 21(Suppl 10 ): 31533160. 7. Ursine BL, Pereira EL, Carneiro FF. Saúde da pessoa com deficiência que vive no campo: o que dizem os trabalhadores da Atenção Básica?. Interface (Botucatu). 2017. 8. Ministério da Saúde. Brasil. Portaria nº 1.303 de 28 de junho de 2013. Estabelece os requisitos mínimos de ambientes para os componentes da Atenção Especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e dá outras providências. Diário Oficial da União. 9. Ministério da Saúde. Brasil. Portaria nº 793 de 24 de abril de 2012. Institui a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 10. Ministério da Saúde. Brasil. Portaria nº 835 de 25 de abril de 2012. Institui incentivos financeiros de investimento e de custeio para o Componente Atenção Especializada da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 11. Brasil. Decreto nº 8.725, de 27 de abril de 2016. Institui a Rede Intersetorial de Reabilitação Integral e dá outras providências. Diário Oficial da União. 12. Ministério da Saúde. Brasil. Portaria nº 479, de 18 de maio de 2016. Institui Câmara Técnica de assessoramento e apoio às ações da Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência no âmbito do SUS. Diário Oficial da União. 13. Ministério da Saúde. Brasil. Portaria nº 1.272 de 25 de junho de 2013. Inclui Procedimentos de Cadeiras de Rodas e Adaptação Postural em Cadeira de Rodas na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses, Próteses e Materiais Especiais (OPM) do Sistema Único de Saúde. Diário Oficial da União. 14. Ministério da Saúde. Brasil. Portaria nº 1.032 de 5 de maio de 2010. Inclui procedimento odontológico na Tabela de Procedimentos, Medicamentos, Órteses e Próteses e Materiais Especiais do Sistema Único de Saúde - SUS, para atendimento às pessoas com necessidades especiais. Diário Oficial da União. 15. Brasil. Decreto nº 7.988, de 17 de setembro de 2012. Regulamenta os arts. 1º a 13 da Lei nº 12.715, de 17 de setembro de 2012, que dispõem sobre o Programa Nacional de Apoio à Atenção Oncológica - PRONON e o Programa Nacional de Apoio à Atenção da Saúde da Pessoa com Deficiência - PRONAS/PCD. Diário Oficial da União.

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A responsabilidade civil nos contratos de plano de saúde Marco Antonio Barbosa de Freitas1

RESUMO: Objetivo: Apresentar um estudo crítico da Responsabilidade Civil nos Contratos de Plano de Saúde, destacando os direitos dos pacientes e a judicialização dos conflitos decorrentes dessa relação contratual. Metodologia: Livros jurídicos, periódicos especializados que contenham artigos, monografias e dissertações, além de acórdãos e súmulas publicados na rede mundial de computadores. Resultados: A explosão de judicialização nos anos de 2010, bem como a ampliação da responsabilidade civil nos contratos de plano de saúde diante das Resoluções Normativas da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Discussão: A sobrecarga que uma dupla intervenção judicial acarreta em contratos dessa espécie. Conclusão: A desmedida jurisdicionalização dos conflitos que envolvem os contratos de assistência privada de saúde poderia ser apequenada se o objeto negocial e a lei, apesar de exigir sacrifícios, fossem cumpridas. Palavras-chave: Responsabilidade Civil - Plano de Saúde - Judicialização - Código de Defesa do Consumidor

Introdução Reconhecida expressamente como um direito fundamental na Constituição Federal de 1988, a saúde apresenta contornos jurídicos a serem desvelados com o escopo de se refletir sobre as relações oriundas desse direito, mormente as decorrentes de contrato de assistência privada à saúde, objeto de crescente judicialização. Nessa esteira, o presente artigo propõe uma visão analítica acerca da amplitude da responsabilidade civil das operadoras dos planos de saúde, e a consequente sustentabilidade do mercado frente ao impacto econômico, que decorre da dupla intervenção estatal advinda, inicialmente, das resoluções normativas da agência nacional de saúde, e, num segundo momento, dos julgamentos e entendimentos jurisprudenciais proferidos em milhares de ações judiciais relativas ao tema. Com efeito, é natural que nossa vivência, em que preponderantemente ocupamos a condição de consumidores dessa espécie de serviço, nos ponha numa posição em que fiquemos subjetivamente vinculados a um olhar bélico em relação às empresas contratadas para esse fim, já que não raro o litígio emerge justamente da fricção que há entre os limites de ação de contratante e contratada. 1

Universidade Santa Cecília – Santos/SP – Brasil. E-mail: [email protected]

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Por outro lado, é inegável que a grande maioria da população utiliza a assistência privada à saúde em razão do latente sucateamento do seu sistema público, situação ainda mais

evidente

em

momentos

de

crise

econômica

que,

recentemente,

temos

experimentado. Nesse passo, impende consignar que esse cenário caótico da saúde pública no Brasil propiciou a crescente demanda pelos planos privados de serviços nessa área, que passou a ganhar corpo no início dos anos 90, ensejando a indispensável regulamentação do setor, só iniciada concretamente, entretanto, cerca de uma década depois. A ideia, portanto, é a de que, ao menos durante esta reflexão, procuremos encontrar a sintonia fina que resulte em delicado equilíbrio entre dois indesejados extremos: os exageros inicialmente praticados, de um lado, pelas empresas que prestam serviços na área da saúde, e de outro, mais recentemente, pelos consumidores, acolhidos com perigosa – e às vezes indiscriminadas – constância pelo Poder Judiciário. Destarte, neste artigo, de forma singela, abordar-se-á a responsabilidade civil das operadoras dos contratos de plano de saúde no tocante à amplitude da cobertura dos serviços que põe à disposição de seus clientes, em cotejo com a interferência estatal regulatória e judicatória.

Metodologia Para o desenvolvimento da pesquisa foram utilizados estudos jurídicos, doutrinários, a legislação nacional pertinente e a jurisprudência. O material foi obtido por meio de livros jurídicos, periódicos especializados, além de acórdãos e súmulas publicados na rede mundial de computadores. Outrossim, o estudo realizado utilizou dados coletados principalmente junto aos sítios da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS e do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, com o fito de detectar o previsível aumento das demandas judiciais na área dos contratos de prestação de serviços de saúde suplementar.

Resultados Durante muitos anos, a assistência privada à saúde permaneceu sem norma reguladora, até mesmo em razão das características dos usuários e prestadores de serviço, tornando-se despicienda a intervenção do Estado nessa relação jurídica.

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Porém, a partir da década de 60, com a expansão da urbanização – leia-se: a migração e o clássico movimento rural/urbano -, as cooperativas médicas e seguradoras passaram a ter crescente interesse pela prestação dos seus serviços, conforme explica Januário Montone (1): As empresas de medicina de grupo e as cooperativas formavam a base inicial do setor, que cresceu a partir da urbanização acelerado dos anos 60, deteriorando ainda mais a já precária assistência pública de saúde, então vinculada ao mercado de trabalho. A chegada de multinacionais e, depois, o crescimento econômico dos anos 70 marcaram a expansão do setor, uma vez que o atendimento diferenciado na saúde passou a integrar todas as pautas sindicais do Brasil.

O final da década de 80, por sua vez, marcou o início do aumento exponencial de operadoras de planos de saúde e, consequentemente, a busca cada vez maior por esse tipo serviço, especialmente frente ao crescente sucateamento da saúde pública no país. Todavia, somente nos anos 90, quando os contratos de planos de saúde se tornaram bastante usuais, a flagrante inexistência de qualquer controle governamental que os regulasse produziu contratos de adesão lacônicos, que rotineiramente não permitiam enxergar o alcance dos direitos do contratante, previsivelmente enevoados pelos convenientemente estreitos limites das obrigações da empresa contratada. Por consectário lógico, o número de reclamações e a notória insatisfação pelo serviço prestado pelas operadoras de plano de saúde cresceu vertiginosamente, desaguando esse cenário no Poder Judiciário, que ainda sem ter em mãos a Lei 9.656/98, se valia – como de resto se vale, até os dias que correm – apenas do Código Consumerista, no afã de resgatar alguma proporcionalidade entre as obrigações dos celebrantes, eis que àquela altura desmedidamente as empresas ostentavam nítida vantagem contratual. E isso se dava em razão da constante necessidade de se admitir como iníquos ou abusivos por vezes contratos quase inteiros, acintosa e – porque não dizer – intencionalmente silentes quanto a especificidade de exames e de procedimentos a que estariam obrigados a custear, justamente para não serem compelidos a prestar o serviço reclamado. Essa nebulosidade, propiciada pela má ou oportunamente enxuta redação das cláusulas contratuais, à época exigia a necessidade de o Poder Judiciário, prima facie, intervir ostensivamente nessas relações de direito privado, de molde a ajustar fielmente a

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balança, desequilibrada por não existir prévia atuação do Estado que se dispusesse a exercer preventivamente esse papel. Diz-se, então, que aqueles eram tempos em que a relação contratual favorecia extremamente as empresas prestadoras de serviços da área da saúde, que só se viam compelidas a alterar sua atitude recalcitrante, quando instadas por ordem judicial. Paulatinamente, a situação passou a se alterar, primeiro com a edição da Lei 9.656/98 – com a atuação conjunta dos Ministérios da Fazenda e Saúde, via Secretaria de Assistência à Saúde, e do Departamento da Saúde Suplementar e da Superintendência de Seguros Privados (SUSEP) –, e por fim com a criação da aludida Agência Nacional de Saúde Complementar (ANS) pela Lei nº 9.961/00, como instância reguladora de setor da economia, até então, sem padrão mínimo de controle e funcionamento. Por pertinente – e aí já estávamos na virada do século –, cumpre esclarecer que, por meio de resoluções normativas editadas pela ANS, se passou a imputar às operadoras de planos de saúde o ônus de garantir cobertura mínima aos seus usuários, acarretando indiscutível impacto econômico para as empresas, ao redimensionar o peso que cada um dos celebrantes passou a ocupar na relação contratual. Com efeito, a partir dessa crescente atuação da ANS, ao constantemente acrescentar, de forma compulsória, mais e mais serviços e coberturas aos contratos celebrados entre pessoas particulares, passou-se a observar maior cautela por parte das empresas, que então se viram compelidas a apresentar contratos mais detalhados e mais bem redigidos. Diante desse forçoso processo de maturidade que se assistiu das empresas prestadoras de serviços privados na área da saúde, em especial nos últimos anos – mormente compelidas pela imposição de obrigações advindas dessa intervenção estatal extrajudicial –, imaginava-se que amainasse a judicialização da saúde – já então em acelerada marcha. Todavia, não é o que se tem assistido desde então. A pedagogia que a ANS tentou implementar depois de seguidas sinalizações às empresas – consubstanciadas pelo teor dessas suas resoluções normativas –, no sentido de que, doravante, pouco importaria a iniquidade das cláusulas redigidas em contratos com seus clientes, tem sido intensamente inobservada pelo Poder Judiciário.

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Isto porque, em reiteradas decisões judiciais monocráticas e até em posicionamentos jurisprudenciais já consolidados, o Poder Judiciário, ignorando a tentativa até aqui exitosa da ANS em corrigir os excessos praticados pelas empresas que atuam nessa área, têm deliberadamente atuado como instrumento que funciona como nova e pesada intervenção estatal. Embora não se olvide os calorosos aplausos dos quais não raramente o juiz possa ser destinatário quando defere liminar garantindo direitos que muita vez o consumidor não tem – debaixo da capciosa ideia de que a saúde sempre deve estar em primeiro lugar –, há de haver alguma preocupação em não desequilibrar danosamente relações que, na sua essência, são de direito privado. Nessa toada, imperiosa a manutenção do equilíbrio sustentável das relações contratuais advindas da assistência privada à saúde, consoante esclarece Bernard Franke Dahinten (2) em sua dissertação de Mestrado apresentada em 2.014 perante a PUC/RS: Os julgadores recusam-se a se conscientizar de que, em se tratando de um sistema securitário, ressalvados entendimentos doutrinários diversos e admitindo-se o mutualismo também como sistema operacional nos seguros empresariais, as coberturas e indenizações eventualmente alcançadas aos segurados/usuários provêm dos fundos criados pelos próprios consumidores, isto é, não são ilimitados. Daí a necessidade de, para haver um equilíbrio sustentável destas poupanças, serem respeitados os contratos, que não apenas são redigidos, reprisa-se, com base nas normas técnicas oriundas da ANS, como também são calculados (os prêmios, mensalidades) com base em minuciosos e complexos cálculos atuariais.

É indubitável que, para o julgador, soa muito mais gratificante e até mais aprazível à alma, autorizar, às expensas da empresa contratada, prestação de serviço não coberto, quer pelo contrato, quer pela ANS; contudo, pensamos que, ao agir assim, como se qualquer limitação sempre trouxesse prejuízo injusto ao consumidor, o juiz estará cambiando a toga pela capa do justiceiro social que ele definitivamente não é. Consoante já se disse acima, essa conduta judicial, porque repetida, termina por desperdiçar a pedagogia que está ao alcance do Poder Judiciário, pois, a contrario sensu, sinaliza ao jurisdicionado que o contrato, como regra, não deve ser cumprido, e que tudo, absolutamente tudo, pode ser buscado na área da saúde. Surgiu, então, sobretudo na última década, o que se convencionou denominar de indústria das liminares na área da saúde.

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Se por um lado registramos que é absolutamente aceitável que, eventualmente, o Poder Judiciário intervenha para ajustar relação contratual que efetivamente reclame amparo não abarcado, quer pela avença, quer pela ANS, em casos excepcionais em que o consumidor corre sério risco de morte, de outro tanto ponderamos que tal exceção se tornou regra, propiciando à sociedade indicativo de que a judicialização da saúde vale a pena e o risco, porque raríssima é a derrota do consumidor. De fato, conforme esclarece Henrique Freire de Oliveira Souza (3): Independente das posições adotadas pela ANS ou pelo Poder Judiciário e, se corretas ou não, o fato é que esse posicionamento de concessão do mais (do novo ou do não previsto em contrato) sem revisão do preço, embora claramente mais favorável ao consumidor individual, tem o poder de aumentar o risco da OPS, causando-lhes desequilíbrio e, dependendo do porte e da situação econômico-financeira da OPS, essas decisões teriam, mesmo, um efeito extremamente negativo para a coletividade de consumidores e para a sociedade em geral.

Dispensada a oportunidade de mostrar o contrário, o Poder Judiciário, em mensagem subliminar dirigida ao consumidor, tem abraçado de bom grado a descontrolada – e por ele indiretamente estimulada – judicialização na área da saúde.

Discussão Notória a judicialização da saúde no país, o boom das ações judiciais é questão de recorrente debate no meio jurídico, além de objeto de pesquisa, com o fito de compreender os meandros da tormentosa quaestio iuris. Com efeito, em que pese os instrumentos disponibilizados pela ANS para garantir melhor atendimento e maior qualidade do serviço, a tutela jurisdicional tem representado, muitas vezes, um meio de se obter serviço não abrangido pela regulamentação e nem mesmo pelo contrato entabulado entre as partes, comumente pondo de lado qualquer preocupação com as sequelas que certamente ecoarão no equilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado. Embora se esteja enfocando nítida relação de consumo, não se pode, com a devida vênia, enxergar a torto e a direito, como abusivas, todas as cláusulas limitativas de direitos dos beneficiários de contrato de plano de saúde. Ao se decidir sem a observância estrita às leis e princípios que regem os contratos, com o intuito de proteger de maneira desmedida uma das partes, estar-se-á inserindo os

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custos dessas decisões no índice de reajuste na ANS; em outras palavras, os demais consumidores daquele plano de saúde pagarão pelo custo que as seguidas decisões judiciais flagrantemente pró-consumidor acarretarão. Com efeito, a excessiva intervenção estatal pelo Poder Judiciário impõe ao julgador a necessidade de se observar que o dirigismo contratual deve se dar de maneira ponderada, serena, sob pena de causar o desequilíbrio das relações contratuais, conforme ensina Fernando Scaff (4): Tal risco impõe uma permanente atenção do legislador e do aplicador da lei, que deverão calibrar adequadamente a intensidade do dirigismo contratual suportável nesses casos, afastando as tentações paternalistas e compreendendo esse controle como uma efetiva e real exceção ao princípio da livre iniciativa e da liberdade de contratar, regra que vige, também, no âmbito dos contratos de adesão e, em especial, naqueles vinculados ao direito à saúde.

A repercussão econômica no contrato, como se disse acima, atingirá a todos os usuários, ocasionando eventual injustiça que afronta o sistema capitalista, no qual (ainda) vivemos: se pagando valores muitas vezes módicos o beneficiário vier a ganhar o mesmo direito daquele outro que se esfalfa para pagar mensalidade mais elevada, qual o estímulo deste para realizar maior esforço e dispêndio em seu orçamento pessoal? Não há resposta razoável para tal indagação, que não arroste a atual postura encampada pelo Poder Judiciário. Afora isso, é justo pensar que aquele que paga mais tem, por exemplo, direito a um número mais variado e qualificado de exames e procedimentos do que aquele que pagou menos. Leciona José Reinaldo de Lima Lopes apud Felipe Carnelossi Furlaneto (5) a esse respeito que: Uma empresa que ofereça planos de saúde é uma organização que constitui um fundo comum, cuja distribuição se faz por meio de contratos individualizados ou por meio de grupos constituídos (...) uma administradora de planos de saúde em primeiro lugar deve ser percebida como uma intermediária e uma gestora. Trata-se de gerir recursos captados do público em geral. Ao lado do aspecto financeiro que a atividade adquire, sua função é nitidamente distributiva, ou seja, alocar a cada segurado ou participante do plano, segundo as cláusulas de adesão ao fundo, parte suficiente da receita capaz de cobrir os riscos contratados. Isto dá ao seguro o caráter de mutualidade (...). A mutualidade, neste sentido de 'solidariedade' em fundo comum, é também destacada por Pedro Alvim: 'O mutualismo constitui, portanto, a base do seguro' (...). Os segurados, diz ele, 'reúnem-se em torno do segurador para formar o fundo comum, de modo que ninguém perde mais do que o prêmio pago, isto é, a sua contribuição para o fundo'. Vê-se,

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portanto, que uma empresa de saúde e uma seguradora têm que constituir um fundo comum com recursos alheios.

Ora, se o consumidor de plano de saúde almeja cobertura irrestrita, deve efetuar o pagamento da quantia correspondente à sua pretensão, vez que as operadoras de planos privados de assistência à saúde – repetimos à exaustão –, não podem ser responsabilizadas pela falência do sistema público de saúde. Conclusões Não há perfeita e concreta intersecção entre os artigos 196 e 197, da Constituição Federal – que erige um sistema misto da prestação do direito à saúde no Brasil – e a Lei nº 9.656/98, gerando hiato que confunde e invariavelmente deixa órfão o consumidor dessa espécie de serviços. Há de se registrar, ainda, que o Poder Judiciário brasileiro, no afã de prestigiar a justiça social ao caso concreto, tem delineado postura em que deixa de observar, não por poucas vezes, a lei, o contrato e as normas exaradas pela ANS – que tem por mister justamente dar guarida ao consumidor, corrigindo pontuais abusos –, não atentando para as repercussões coletivas de suas decisões. Atuando com essa ênfase, o Poder Judiciário onera em demasia essa relação privada – representando, como se disse, uma segunda intervenção estatal havida nesse contrato – , emitindo constantes sinais de que está muito mais preocupado em colocar-se à disposição do consumidor, do que em buscar inarredável equilíbrio que sempre deve haver entre direitos e deveres de contratante e contratado, ainda que na delicada área da saúde. É que, inegavelmente, ao supor que se está estabelecendo o equilíbrio de uma única relação jurídica – permitindo a cobertura de procedimento excluído de rol taxativo, por exemplo – estar-se-á, em verdade, gerando desequilíbrio para os demais consumidores associados àquele outro isoladamente beneficiado com a decisão judicial. Tal proceder afeta os demais consumidores vinculados àquela operadora de saúde, pois suportarão o reflexo dessa decisão, emergindo ciclo vicioso que certamente ocasionará um reajuste anual de preços em índice muito acima do desejado, resultado que, por derradeiro, dificultará ainda mais o acesso da população de baixa renda aos serviços de saúde suplementar disponibilizados pelas empresas privadas. Obviamente que aqui não se nega que há abusos praticados pelas operadoras de saúde, mas entendemos que não pode o magistrado, a seu alvitre, propiciar distribuição de

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riquezas na contramão da lei e dos princípios, sob o pretexto de fazer justiça social, patrocinando ativismo de perigosa consequência à determinada coletividade, em especial no aspecto econômico. Destarte, a desmedida judicialização dos conflitos que envolvem os contratos de assistência privada de saúde poderia ser paulatinamente reduzida se o objeto negocial e a lei, apesar de exigir sacrifícios circunstancialmente individuais, fossem analisados em prol da sociedade, permitindo-se ao Poder Judiciário não prescindir da pedagogia de intervir somente em casos excepcionais, em que, ou houvesse efetivo e comprovado risco de morte do consumidor, ou flagrante afronta à lei, ao contrato, ou ainda às normas reguladoras da ANS.

Referências

1. 1 MONTONE, Januário. Planos de Saúde: passado e futuro. Rio de Janeiro: Medbook, 2009. 2. 2 DAHINTEN, Bernard Franke. O Direito Fundamental do Consumidor em Contratos de Plano de Saúde: a busca de um ponto de equilíbrio entre os interesses dos consumidores e das operadoras. Dissertação (Mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 3. 3 SOUZA, Henrique Freire de Oliveira. Aspectos Jurídicos da Incorporação da Tecnologia em Saúde. In: CARNEIRO, Luiz Augusto Ferreira (Org. e Coord.). Planos de Saúde: aspectos jurídicos e econômicos. Rio de Janeiro: Forense, 2012 4. 4 SCAFF, Fernando Campos. Direito à Saúde no Âmbito Privado: contratos de adesão, planos de saúde e seguro-saúde. São Paulo, 2010. 5. 5 FURLANETO, Felippe Carnelossi . Direito à Saúde e a iniciativa privada: o dever estatal e a limitação dos contratos de planos de saúde - Revista de Direito Privado | vol. 42/2010 | p. 185 - 243 | Abr - Jun / 2010 - Doutrinas Essenciais de Direitos Humanos | vol. 3 | p. 397 - 452 | Ago / 2011 - DTR\2010\398.

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As diretivas antecipadas do paciente e sua compatibilidade com o ordenamento jurídico brasileiro

Ana Carolina da Costa de Mesquita1

RESUMO: O presente trabalho pretende analisar a compatibilidade no ordenamento jurídico brasileiro das diretivas antecipadas do paciente que possibilita que o mesmo deixe expressa a sua vontade em se submeter ou não a tratamentos médicos, e que se encontra instituído no país apenas por resoluções do Conselho Federal de Medicina, a partir de um estudo a respeito dos institutos que o fundamentam, quais sejam, a dignidade da pessoa humana e a autonomia da vontade do paciente, por meio de um levantamento bibliográfico, utilizando-se em especial as normas legais vigentes, possibilitando a discussão apresentada levar à conclusão de que o documento encontra respaldo no ordenamento jurídico nacional vigente. Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Autonomia da vontade. Diretivas antecipadas. Ordenamento Jurídico Brasileiro Introdução A biotecnologia e a medicina proporcionaram uma melhor expectativa de vida para o homem por meio dos métodos diagnósticos, propedêuticos e terapêuticos na cura de doenças e possibilitaram o prolongamento da vida por intermédio de meios artificiais, retardando o momento da morte, dando a ciência médica um forte caráter paliativo (1). A permanência da vida passou sempre a ser a finalidade, não importando a situação em que se encontrava o paciente (se em situações de sofrimento ou não), o que ocasionou no levantamento de questões que fizeram com que a sociedade refletisse não apenas sobre a vida, mas também sobre seu fim e em quais condições isso ocorreria. Corolário a isto, a relação médico-paciente passou a ter uma nova conotação, consubstanciada na autonomia da vontade e na dignidade humana, logo, o diálogo, a cognição crítica e a escolha passaram a ser essenciais nesta relação. O paciente passou a ter o conhecimento de sua situação e a opinar qual passo seguinte tomar, encerrando o dever do médico de cuidar do paciente quando ele não quiser o tratamento a lhe ser ministrado (2).

1 Universidade Federal do Ceará - Programa de Pós-Graduação em Direito. E-mail do autor assistente/principal: [email protected]

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O consentimento informado passa a ser ampliado e aplicado em qualquer intervenção biomédica humana, e não apenas nas ocasiões de pesquisas, sendo considerado como um direito humano, inerente aos direitos do paciente e da personalidade. Pacientes acometidos por doença terminal ou por condição irreversível de óbito passam a determinar se aceitam ou recursam o tratamento que lhe seria ou será aplicado. Assim, na segunda metade do Século XX, surge nos Estados Unidos, o primeiro documento de diretivas antecipadas da vontade, em que um cidadão deixa expresso, que não lhe seja ministrado qualquer tratamento caso não pudesse falar por si. A partir deste momento, começam os processos de legislação dos chamados Living Will, ou em sua tradução literal Testamento Vital, em vários países (3). Seguindo as novas evoluções da relação médico-paciente, o Código de Ética Médica brasileiro (4) e a Resolução nº 1995/2012-CFM (5) destacam essa premissa da vontade do paciente expressa, determinando que no caso de pacientes com doenças incuráveis ou terminais, o médico lhe ofereça os cuidados paliativos, levando em consideração as diretivas antecipadas deste em ter esses cuidados ou não. Todavia, apesar do Código de Ética Médica vislumbrar a existência das diretivas antecipadas e sua formalização, é preciso averiguar se estas possuem compatibilidade com o ordenamento brasileiro, para que de fato possam ter a segurança jurídica em resguardar a vontade do paciente e a não responsabilização do médico em seguir as diretivas antecipadas de vontade do paciente.

Metodologia Realizou-se pesquisa por meio de método dedutivo, com ênfase nas produções teóricas. Devido à natureza da temática, realizou-se a interdisciplinaridade, para um estudo aprofundado, considerando e selecionando apenas os textos e regras jurídicas específicas ao tema. O tipo de pesquisa foi bibliográfica, utilizando-se livros e artigos nacionais e estrangeiros nas bases de dados Scielo, SpringerLink, Google acadêmico, Periódicos da Capes, acervo da Universidade de Fortaleza, acervo da autora, e legislações nos sítios oficiais do Planalto e do Conselho Federal de Medicina. Utilizaram-se os descritivos: diretivas antecipadas, bioética, biodireito, ortotanásia, eutanásia, dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais, direitos de personalidade,

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autonomia da vontade do paciente, relação médico-paciente. Por tratar-se de tema inédito, optou-se pela não delimitação temporal.

Resultado e discussões Na conjectura atual, as patologias ou condições que outrora afligiram a sociedade e que eram verdadeiros controladores e determinantes naturais da expectativa de vida humana, já não são mais preocupação na sociedade (6), pois, por intermédio dos avanços na propedêutica clínica, nos prognósticos, nos diagnósticos e na terapêutica em razão da evolução da tecnologia e das ciências médicas e biológicas, o ser humano possui melhores condições de saúde e uma longínqua expectativa de vida (7). Os avanços biotecnológicos modificam substancialmente a vida do ser humano, permitindo o prolongamento da vida com a utilização de recursos tecnológicos e artificiais, como a manutenção da vida de pacientes em estágio vegetativo com o auxílio de aparelhos e medicamentos mais avançados (8), todavia, acabam por resultar em discussões na seara ética e, por consequência, jurídica. Questionamentos éticas e valorativas acerca desses avanços surgem, calcados em impasses jurídicos sobre o alcance dos direitos fundamentais, bem como do conceito de dignidade da pessoa humana. Ante a complexidade do ser humano, é impossível delimitar as questões de compreensão humana apenas a uma unidade e à um único campo ontológico, reducionista, repercutindo essa complexidade na compreensão e necessidade de alteração do meio jurídico (9). A enfermidade e seus reflexos transpõem as condições fisiológicas, sendo muito mais do que uma reação corporal aos sintomas patológicos e assim, submeter pacientes terminais a tratamentos que prolonguem a vida podem ser indubitavelmente dolorosos e representar violação a sua dignidade humana, perdendo a vida o sentido para o enfermo (10). As bases para a formulação do que atualmente se entende por Dignidade da Pessoa Humana remonta a Grécia Antiga com a desconsideração da imagem divina de rei e com a criação da polis, refletindo no surgimento de uma nova maneira de pensamento do cotidiano, oposto à mítica, e baseado na razão, na ideia de que o homem possui validade universal (11). A partir desse momento, a esfera ontológica sobre o papel que o ser

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humano possui no mundo, e principalmente, a noção de sua própria existência, passa por diversas evoluções (12). No âmbito dos pensamentos jusnaturalistas nos séculos XVII e XVIII, tem-se um processo de racionalização da concepção de dignidade da pessoa humana. Immanuel Kant (13) formula que o homem e todo ser racional existe como fim em si mesmo e não como meio para uso arbitrário daquela ou desta vontade, pois há um princípio prático supremo e imperativo categórico que respeita à vontade humana, havendo um princípio objetivo da vontade de lei prática universal, tendo como fundamento a natureza racional que existe com fim em si. Por esta acepção o homem, por ser dotado de vontade, não poderia ser usado como instrumento ou meio, por conta do valor absoluto que possui. Como explica Dworkin (14), na evolução da teoria de Kant, no que diz respeito à dignidade, a autonomia seria sua condição essencial. Tendo como premissa essa percepção da dignidade humana e após a Segunda Grande Guerra Mundial, foi possível a concretização dos diretos do homem e a ideia de que estes existem antes mesmo da formulação do Estado (15), tornando tais direitos essenciais para a proteção da liberdade e autonomia do indivíduo, no Estado e nas próprias relações privadas. Passam a ter uma proteção máxima na Constituição para a manutenção dos pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana (16). Autonomia da vontade e dignidade humana são atualmente os principais vetores da relação médico-paciente, que outrora se caracterizava como essencialmente paternalista. Isto porque, uma vez reconhecido seus direitos fundamentais como pessoa humana, temse o respeito da autonomia de sua vontade, devendo o paciente a partir de um consentimento livre e informado, posicionar-se acerca de seu tratamento (17). A concepção de “vida boa” passa a ser uma questão de apreciação nessa relação (18). Assim, questões acerca da manutenção da vida ainda que em condições sofríveis, ou até que ponto o direito à vida é inviolável, ou se o prolongamento da vida a todo custo, independente da vontade do enfermo, pode ocorrer, passam a serem postos em pauta na relação médico-paciente, tornando-se o consentimento livre e esclarecido base desta relação.

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O Consentimento livre e esclarecido diz respeito a vontade do paciente e seu poder de autodeterminação, e é visto como princípio na bioética, enquanto que na área jurídica reconhece-se como autonomia da vontade ou autonomia privada em que se consubstancia no espaço que é concedido ao ser humano para exercer a sua atividade jurídica, tornandose os particulares, legisladores de seus próprios interesses (19). Nesta perspectiva, tendo-se por base que cada paciente detém sua autonomia, é que se parte da premissa de que cada paciente tem o direito de exercê-la no caso dos cuidados médicos que almeja ter. Cada paciente tem o direito de consentir ou não com os tratamentos que lhe são propostos, tornando-se invalido tal consentimento se não houver discernimento para exercer sua autonomia (20). As medidas paliativas para a manutenção da vida e a forma como se deu a sua influência no campo ético e jurídico, resultam no surgimento do documento de diretivas antecipadas, consubstanciada na própria acepção e evolução do conceito da dignidade humana. Fundamentam-se as diretivas antecipadas, no princípio da autonomia da vontade e no respeito às pessoas, proporcionando melhoria na relação médico-paciente, trazendo solução ao percalço de quem decidirá acerca do que deve ser feito quando assim o paciente não o puder fazer, que em muitas ocasiões é vivenciado por familiares que possuem a difícil e árdua missão em decidir pelo paciente, como expõe Marmelstein (21): Parece-me que a decisão de como e quando morrer é uma das “mais íntima escolhas pessoais que uma pessoa pode fazer na via’, uma escolha que é o centro da dignidade e autonomia pessoais. (...) fere a constituição não permitir que alguém, diante de uma pressão psicológica e de um desgosto de viver tão grande, opte por abreviar o seu sofrimento. (...) no caso de uma pessoa que já perdeu a vontade de viver e mais considera que a sua vida seja digna de ser vivida, a balança está tão equilibrada que o melhor é que a escolha recaia sobre o próprio indivíduo e não no Estado”.

A possibilidade de o paciente deixar expressa a sua vontade, proporciona, sem dúvidas, a concretização efetiva da dignidade da pessoa humana, uma vez que a partir do momento que o indivíduo passa a deixar por expressado os seus desejos em fase terminal, a obrigatoriedade de respeitar esse desejo e pô-lo em prática, passa a ser efetiva e obrigatória, não pondo em dúvidas ou questionamentos sobre a validade dessa vontade, ainda quando não o puder fazê-lo.

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No Brasil, a Dignidade da Pessoa Humana encontra-se descrita na Constituição Federal de 88 (22) em seu art. 1º como fundamento da República Federativa, configurando-se, assim, como formador do próprio Estado brasileiro, consubstanciada na liberdade e na autonomia de seus indivíduos. Já a autonomia da vontade ou vontade privada que diz respeito a manifestação da vontade de cada um, sem uma necessária análise de questão das razões e do conteúdo da consciência interna do indivíduo, além de respaldada pela Constituição na concepção da dignidade da pessoa humana, encontra-se garantida nos direitos fundamentais elencados no art. 5º, inciso III, ao se versar que ninguém será submetido a tortura ou a tratamento desumano ou degradante. Além do respaldo constitucional da própria dignidade humana, a autonomia constituise como um direito da personalidade por ser corolário a liberdade individual, encontrando proteção no Direito Civil, no artigo 15 do Código Civil (23), ao tratar sobre a inviolabilidade do corpo humano, ao determinar que ninguém será submetido a intervenção cirúrgica ou a tratamento, com risco de vida. Além das normas acima, constitui-se a autonomia como um direito do paciente, estabelecido pela Lei nº 8080/90 (24), em seu art. 7, III, que reconhece o direito a autonomia do paciente, ao estabelecer a “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral”. Observa-se, portanto, que a legislação brasileira refuta a obstinação terapêutica, quando há impossibilidade de cura e reversão do quadro patológico do paciente, possibilitando a escolha do paciente quanto à submissão ou não a tratamentos, valorizando sua vontade e respeitando sua dignidade, sem delimitação. Verifica-se, portanto, que o documento de diretivas antecipadas que surge como meio para que essa evolução na relação médico-paciente não retroaja e que concerne em um documento de autoproteção para que o paciente tenha a sua vontade respeitada, ainda que não seja capaz de expressá-la em qualquer momento de sua existência, é um verdadeiro concretizador da dignidade humana e da autonomia do paciente humana, encontrando-se compatível com o ordenamento juridico brasileiro.

Conclusão O reconhecimento da diginidade da pessoa humana na legislação brasileira possui valor máximo ao encontrar-se inserido na Constituição Federal como fundamento da

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Républica Federativa do Brasil. Na mesma situação encontra-se a autonomia da vontade, consubstanciada nesta dignidade, pois, respeitar a vontade expressa do paciente, representa tratar as pessoas como um fim em si mesma, e não como meio, encontrando essa premissa no ordenamento jurídico brasileiro proteção inclusive por ser um direito de personalidade e do paciente. O indivíduo, dotado de racionalidade, tem como sua principal característica a liberdade e a autonomia. A aplicabilidade e efeitos destes, se extendem além dos seus limites, pois todo o direito possui como objetivo a Dignidade Humana (25), portanto, o documento de diretrizes antecipadas, corolário da autonomia da vontade do paciente, encontra respaldo e compatibilidade no ordenamento jurídico brasileiro.

Referências

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8. KÓVACS, Maria Júlia. Bioética nas questões da vida e da morte. Psicol. USP vol.14 no.2 São Paulo 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/sci elo.php?s cript=sci_arttext&pid=S0103-65642003000200008. Acesso em 30 ago 2016. 9. MADERS, Angelita Maria. O direito frente à incerteza: um olhar sobre os avanços biotecnológicos à luz do Biodireito e a teoria da complexidade de Edgar Morin. Prisma Jurídico, v. 9, n. 1, jan/jun. 2010, pp. 105-122. Disponível em: < http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=93416940006>. Acesso em: 12 ago. 2016. 10. ALVES, Paulo César. A experiência da enfermidade considerações teóricas. Cad. Saúde Pública, v.9, n.2, jul/set 1993. Disponível em: . Acesso em: 22 ago. 2016 11. MARTINS, Flademir Jeronimo Belinati. Dignidade da pessoa humana: princípio constitucional fundamental. Curitiba: Juruá, 2003, p. 21-22 12. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p.32 13. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad.: Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2005, p. 68, 69 14. DWORKIN, Ronald. A raposa e o porco-espinho: Justiça e valor. Trad.: Marcelo Brandão Cipolla – São Paulo: Editora WMF Martins Fones, 2014, p. 32. 15. MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.23. 16. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 31. Ed. – São Paulo: Malheiros, 2016, p. 574-575 17. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 4. 18. SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Manual do biodireito. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p.80. 19. AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 83. 20. WELIE, Jos V. M. Living wills and substituted judgments: a critical analysis. Medicine, Health Care and Philosophy, 2001, v. 4, n. 2, p. 169. Disponível em: . Acesso em: 04 set 2016. 21. MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014, pag. 434-435 22. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 05 de outubro de 1988. Disponível em: . Acesso em: 3 set 2016 23. 23 ___, Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. http://www.planalto. gov.br/ccivil_ 03/LEIS/2002/L10406.htm

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24. ___, Lei nº 8080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L8080.htm 25. ECHTERHOFF, Gisele. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e a Biotecnologia. In: MEIRELLES, Jussara Maria Leal de (Org.). Biodireito em Discussão. Curitiba: Juriá, 2008.

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A Judicialização da Saúde Suplementar no Brasil Tércio Neves Almeida1 Rosemar Cardoso Fernandes2 Marcelo Vallejo Marsaioli3

RESUMO: Os conflitos entre consumidores e operadoras de planos de saúde cada vez mais vão parar nos tribunais. O principal motivo é a exclusão de coberturas de atendimento, seguidos por problemas de manutenção de aposentados, contratos coletivos e reajustes abusivos. O Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso são invocados em meio a um complexo arcabouço normativo específico para o setor. Investigação por método de análise de julgados recentes permite observar que as operadoras de saúde são promotoras do excesso de judicialização, de certo modo pela intransigência em cumprir com suas obrigações e também por litigar de maneira ostensiva, inflexíveis a conciliação. Importante que o Judiciário esteja sensível às demandas, bem como os operadores de direito na tentativa de apaziguar conflitos e evitar ações inócuas. Palavras chaves: Operadoras de saúde, judicialização, abusos, consumidores.

Introdução A saúde suplementar objeto de nosso estudo passou a conviver com o sistema público, consolidado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), nascido a partir da Constituição Federal de 1988. Com o SUS, a saúde foi legitimada como um direito da cidadania, assumindo status de bem público. O sistema de saúde brasileiro seguiu a trajetória de outros países latino-americanos, entre os quais México, Chile, Argentina e Uruguai, desenvolvendo-se a partir da previdência social. Hoje, o setor brasileiro de planos e seguros de saúde é um dos maiores sistemas privados de saúde do mundo, especialmente quando se considera a proporção em relação à saúde pública. A manutenção e a sustentabilidade das empresas que atuam no mercado da saúde suplementar são de interesse de todos, do Estado e da população. Somadas as premissas acima trabalhadas, pode-se concluir, com segurança, que a harmonização dos interesses das partes envolvidas nestas relações, além de constituir princípio legal, é algo a ser buscado com vista a garantir a própria solvência e a continuidade de tais operações e, 1

Mestrando em Direito da Saúde (UNISANTA). Pós-graduado em Relações Internacionais pelo Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP (NUPRI). Engenheiro. Advogado. E-mai: - [email protected] 2 Mestranda em Direito da Saúde (UNISANTA). Advogada. E-mail: [email protected] 3 Mestrando em Direito da Saúde (UNISANTA). Advogado. E-mail: [email protected]

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mediatamente, garantir o acesso à saúde para uma grande e crescente parcela da população. Vislumbrar a proteção do consumidor, não individualmente considerado, mas a partir de uma ótica coletiva, é o que, a partir dos pontos acima desenvolvidos, se pode concluir como sendo o melhor caminho a ser adotado pelas decisões judiciais. Dessa forma, ressalvadas situações excepcionais, se estará diante de uma proteção mais coerente, lúcida e efetiva dos consumidores (não poucos e isolados, mas dimensionados em sua coletividade), em consonância com o ordenamento (inclusive a legislação consumerista) e com vista à sustentabilidade longínqua desse sistema (e dos serviços de saúde) que é, por todos, tão necessária.

Conceito Conforme a Lei 9.656/98, operadora de plano de assistência à saúde é a pessoa jurídica constituída sob a modalidade de sociedade civil ou comercial, cooperativa, ou entidade de autogestão, que opere produto, serviço ou contrato de prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor. O contrato de seguro-saúde é um contrato em que o risco assumido pela seguradora consiste, basicamente, na prestação de assistência médico-hospitalar por meio de entidades "conveniadas", obrigação de custeio dos tratamentos médicos do segurado ou reembolso dos custos pagos pelo segurado. Envolver a transferência de riscos futuros à saúde do segurado e seus dependentes, mediante pagamento de prêmio mensal. Planos de saúde oferecem aos beneficiários o serviço de assistência médica prestado por profissionais e estabelecimentos credenciados, enquanto que seguro de saúde proporciona aos associados a livre escolha de profissionais, hospitais e laboratórios. Esse é, talvez, o elemento que atraia o consumidor a esse tipo de assistência.

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A livre escolha e o dilema consumerista: A evolução legislativa possibilitou a equiparação dos seguros aos planos de saúde, e a matéria passou a ser regulada pelo Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), além de respeitar as regras do CDC deve respeitar também os dispositivos do Código Civil e da Lei dos Planos de Saúde, previsto na Lei 9.656/98. O contrato estabelecido entre o consumidor e a operadora do seguro de saúde é o que se denomina “contrato de adesão”, no qual o cliente apenas adere ao que lhe é imposto, anuindo com as cláusulas propostas pela outra parte. Nota-se que há uma redução do Princípio da Autonomia da Vontade e a mais ampla relativização do princípio do pacta sunt servanda toma lugar tendo o Poder Judiciário como palco principal. Esses contratos possuem também a característica de vigorarem por tempo indeterminado e de forma contínua. Sendo contrato de adesão, assim como as demais espécies contratuais previstas no Código Civil Brasileiro, deve, portanto, obedecer aos princípios da boa-fé, probidade e função social dos contratos, além de proteger o aderente, conforme disposto nos artigos 424 e 423 do Código Civil. Apesar de não ser a responsável direta pela prestação dos serviços, a operadora mantém relação com unidades de saúde, clínicas, laboratórios e profissionais de saúde com o único objetivo de disponibilizar os serviços destes sujeitos aos seus beneficiários e respectivos dependentes. Lícito concluir, portanto, que a operadora é quem controla, efetivamente, o processo de colocação dos serviços aos consumidores. O indiscutível caráter consumerista da relação em debate atrai para si a inevitável solidariedade da cadeia de consumo quando se trata de responsabilidade dos prestadores da rede gerida pela seguradora, circunstância que se mostra determinante para se estabelecer a responsabilidade civil destas entidades nos casos de má-prestação dos serviços pela rede credenciada e, um dos fatores preponderantes para a judicialização da saúde suplementar. Neste diapasão, jurisprudência pacificada no S.T.J. admitindo que: “A operadora do plano de saúde responde perante o consumidor pela falha na prestação dos serviços médicos e hospitalares próprios ou credenciados”.

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Armadilhas veladas que lesam consumidores: 

Planos coletivos que se constituem em contratos empresariais para pequenos grupos são subterfúgio encontrado pelas operadoras de saúde para se eximirem da fiscalização regular da ANS;



Reajustes anuais ostensivos, superiores a variação dos custos médico-hospitalares;



Reajustes por sinistralidade – trata-se da correlação dos valores somados dos prêmios pagos pelos beneficiários e valores gastos com coberturas. Em geral as empresas alegam que tal proporção deve estar entre 70 e 75% dos prêmios somados. O equilíbrio contratual alegado para se aumentar o valor do prêmio nunca é empregado em favor do segurado quando há diminuição da sinistralidade;



Reajustes por faixa etária ilegais. Brecha para expurgar da carteira consumidores que não são mais rentáveis às empresas de saúde. Com o advento da Lei 10.741 e a súmula 91 TJSP – as operadoras antecipam os reajustes de seriam aplicados após os 60 anos para os 56 e 59 anos;



Beneficiários chegam na velhice duplamente vulneráveis, muitas vezes sem conseguir efetuar os pagamentos no período da vida que mais necessitam da assistência dos serviços de saúde;



As operadoras e seguradoras têm deixado de informar os consumidores sobre a exclusão de médicos e hospitais, tampouco os têm substituído à altura. Costumam usar o nome de grandes hospitais para atrair clientela, mas restringem o atendimento a determinados procedimentos programados.

Coberturas usualmente negadas pelos planos – mas que podem ser obtidas por medidas judiciais: 

Cirurgia Bariátrica;



Retirada de excesso de pele – tratamento de obesidade;



Radioterapia IMRT;



PET Scan;



Exclusão de Próteses e Órteses;



Home care; 981



Tratamentos quimioterápicos.

A judicialização em números: 

No Brasil, mais de 48 milhões de beneficiários têm planos de saúde médicohospitalares e mais de 20 milhões são clientes de planos odontológicos. Com 1.183 operadoras e 55.435 planos de assistência médica, a Saúde Suplementar realizou, em 2013, mais de 1 bilhão de procedimentos como consultas, internações, exames, terapias etc;



Decisões judiciais de primeira instância envolvendo planos de saúde no estado de São Paulo tiveram uma crescente de 631% nos últimos 6 anos;



Foram julgadas 2.602 ações em 2011, número que subiu para 19.025 em 2016 (Pesquisa coordenada pelo Prof. Mario Scheffer da Faculdade de Medicina da USP);



Em todo o período, foram mais de 77 mil ações julgadas na primeira instância;



As decisões de segunda instância também tiveram uma crescente, passando de 4.823 em 2011 para 11.377 em 2016, o que representa alta de 136% no período. Nos seis anos, foram mais de 58 mil ações em segunda instância;



Observa-se que 92.4% das ações contra planos de saúde, favorecem o paciente. Em 88% dos casos, a demanda foi atendida na integra.

As operadoras alegam que na maioria dos casos são rés por cumprirem o que esta em contrato, mas muitas vezes entendimentos jurisprudenciais fazem com que as ações sejam julgadas de forma contraria ao que o plano de saúde colocou em pratica e gerou a ação. Com base nestas pesquisas, conclui-se que hoje o poder judiciário tem sido a recurso mais utilizado para tais conflitos. Uma pesquisa feita pelo site Exame mostra os temas mais judicializados e também os tratamentos mais negados pelos planos:

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o http://exame.abril.com.br/seu-dinheiro/acoes-envolvendo-planos-de-saudecrescem-631-em-sp/ o http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1730544-paciente-ganha-9em-cada-10-acoes-contra-plano-de-saude.shtml o http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/01/1730544-paciente-ganha-9em-cada-10-acoes-contra-plano-de-saude.shtml

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Jurisprudências recentes e relevantes: PLANO DE SAÚDE. OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Autora portadora de hérnia discal cervical. Necessidade de realização de procedimento cirúrgico. Negativa da operadora. Sentença de procedência. Conduta abusiva. Relativização do princípio do 'pacta sunt servanda', diante dos princípios da boa-fé objetiva e da função social dos contratos. Necessidade da cirurgia devidamente comprovada por relatório médico. Cobertura que se impõe. Inteligência da Súmula nº 102 deste E. Tribunal. DANO MORAL. Nem toda negativa de cobertura contratual por plano de saúde tem o condão de causar dano extrapatrimonial indenizável. Não ocorrência de grave ofensa a direito da personalidade. Não demonstração de prejuízo à saúde. Mero dissabor do cotidiano, nas circunstâncias. Sucumbência da operadora do plano de saúde. Pleito indenizatório suplementar à pretensão principal. Sentença mantida. RECURSOS DESPROVIDOS. (TJSP; Apelação 004813830.2012.8.26.0114; Relator (a): Paulo Alcides; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 28/09/2017; Data de Registro: 29/09/2017) (grifo nosso). PLANO DE SAÚDE – Cerceamento de defesa inexistente – Necessidade de substituição de válvula coronária - Negativa de cobertura sob alegação de ausência de previsão no rol da ANS - Não excluindo o plano de saúde a doença, não podem ser excluídos os procedimentos, exames, materiais e medicamentos necessários ao tratamento – Precedentes do STJ e aplicação da Súmula n. 102 do TJSP - Recurso desprovido. (TJSP; Apelação 1013889-65.2014.8.26.0114; Relator (a): Alcides Leopoldo e Silva Júnior; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Campinas 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2017; Data de Registro: 29/09/2017) (grifo nosso). PLANO DE SAÚDE. Pleito de custeio, pela operadora de saúde, ou subsidiariamente pela municipalidade, de equipamento "CPAP" prescrito por médico credenciado ao plano de saúde, cumulado com dano moral. Procedência parcial da ação com determinação de fornecimento do aparelho pelo plano de saúde, ante a obrigação contratual, excluída a responsabilidade da m=Municipalidade quanto ao fornecimento por ter entendido o Juízo que esta era subsidiária. Inconformismo do plano de saúde. Alegação da apelante que inexiste cobertura contratual para o aparelho. Acolhimento. Hipótese de equipamento prescrito para tratamento da autora, de uso domiciliar, sem necessidade de intervenção médica. Obrigatoriedade da operadora de disponibilização deste somente quando houver internação hospitalar ou utilização em ambulatório. Precedentes deste E. Tribunal de Justiça. Inversão do ônus sucumbencial. RECURSO PROVIDO. (TJSP; Apelação 0001274-70.2015.8.26.0358; Relator (a): Ana Maria Baldy; Órgão Julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; Foro de Mirassol - 3ª Vara; Data do Julgamento: 28/09/2017; Data de Registro: 29/09/2017) (grifo nosso). PLANO DE SAÚDE – Prótese – Amputação de ambos os membros inferiores - Exclusão contratual à próteses não ligadas ao ato cirúrgico – Inteligência do art. 10, VII, da Lei 9.656/98 – Vínculação das próteses implantadas no autor ao ato cirúrgico, que lhe é indispensável, que não se afasta pela necessidade de se aguardar a cicatrização do coto, bem como da realização de tratamento de pré-protetização – Abusividade da cláusula

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de exclusão de cobertura – Ressarcimento devido - Recurso provido. (TJSP; Apelação 1066791-66.2016.8.26.0100; Relator (a): Alcides Leopoldo e Silva Júnior; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2017; Data de Registro: 29/09/2017) (grifo nosso).

Responsabilidade por assistência negada e danos morais: Há inúmeros casos em que os seguros de saúde negam a prestação de serviços, com base na pré-existência de doenças ou lesões, além de não cumprir as carências determinadas. Entretanto, a operadora apenas poderá deixar de prestar assistência, se os devidos requisitos que justifiquem os mesmos sejam cumpridos.

Neste sentido o Superior Tribunal de Justiça: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. SEGURO DE VIDA. DOENÇA PREEXISTENTE. NÃO COMPROVAÇÃO DE MÁ-FÉ. REEXAME DE PROVAS. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO IMPROVIDO. (AgInt no AREsp 826.988/MT, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 17/05/2016, DJe 03/06/2016.).

Dano moral em ações contra saúde suplementar: PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECURSO MANEJADO SOB A ÉGIDE DO NCPC. PLANO DE SAÚDE. TRATAMENTO. OBESIDADE MÓRBIDA. CIRURGIA BARIÁTRICA. COBERTURA. NEGATIVA. DANO MORAL IN RE IPSA. CABIMENTO. QUANTUM DA INDENIZAÇÃO. MINORAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. VALOR DE ACORDO COM OS PARÂMETROS ESTABELECIDOS NO STJ. REVISÃO. SÚMULA Nº 7 DO STJ. RECURSO MANIFESTAMENTE INADMISSÍVEL. INCIDÊNCIA DA MULTA DO ART. 1.021, § 4º, DO NCPC. AGRAVO NÃO PROVIDO. [...]( AgInt no AgInt no REsp 1622150-PR, Rel.Min. Moura Ribeiro, 3.ª Turma , DJe 18/08/2017.

Conclusão A judicialização não representa ameaça às empresas de plano e seguro de saúde. Trata-se de instrumento que tem sido estimulado por suas próprias práticas de abusos frente aos consumidores. Além do que, operadoras costumam ostensivamente apresentar recursos, muitos dos quais meramente protelatórios.

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Um dos caminhos para se enfrentar essa problemática é uma regulamentação mais eficaz, de modo que as agências reguladoras atuem como protagonistas na implementação de políticas de saúde mais eficazes. A higidez econômica das operadoras não deve ser discutida em decisões judiciais. Operadores do direito precisam ser sensíveis as demandas de maneira a apaziguar os conflitos e minimizar ações inócuas. Por sua vez, a celebração do contrato deve ser equalizada pelo judiciário de maneira que cláusulas obscuras sempre devem ser interpretadas em favor do consumidor.

Referências 1.

Vilhena Silva, R. “Coletânea de artigos: direito à saúde e temas” atuais / editora Renata. -- São Paulo: Edições Vilhena Silva Advogados, 2012).

2.

Carneiro, L. A. F. “Prêmio IESS de produção científica em saúde suplementar 2011 a 2015” ;– São Paulo: Midiograf, 2016.

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A responsabilidade por exames falso positivo de HIV (CIDA)

Alvaro Duarte1 José Vital Pessoa Madruga2 Winnicius Pereira Goes3

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar os resultados falso positivo de exame de HIV (cida) produzidos pelo Sistema Único de Saúde - SUS, sobre a possibilidade e responsabilidade da administração Pública em indenizar os pacientes que sofrerem com esses exames falsos. Palavras-chaves: Responsabilidade. Exame. Falso positivo. Introdução No Brasil, a responsabilidade objetiva da administração pública é regra geral do risco administrativo. O art. 37, parágrafo sexto, da CF88: “As pessoa jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. A regra da Constituição é ampla, abrangendo as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos (empresas estatais e delegatários de serviços públicos). A posição atual do STF é que as empresas prestadoras de serviços públicos respondem de maneira objetiva por danos causados a usuários e não-usuários dos serviços. [1]

Metodologia O objetivo geral do presente artigo é compreender que apesar das possibilidades de exame falso positivo de HIV, isso não exime o poder público da possibilidade de indenização.

1

Universidade Federal da Paraíba.E-mail: [email protected] Universidade Federal da Paraíba.E-mail: [email protected] 3 Universidade de Coimbra. [email protected] 2

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Como objetivos específicos, busca-se: a) examinar a jurisprudência correlata; b) problematizar a questão no debate sobre possibilidade de exame falso positivo e direito a indenização. Nesse contexto, este artigo tem como objeto de estudo a análise da normativa nacional e da jurisprudência produzida nos tribunais pátrios sobre o direito a indenização por responsabilidade objetiva da Administração Pública, no caso de exame falso positivo de HIV. Para a realização da presente investigação foi necessário aplicar o método dogmático, como a hermenêutica que os textos normativos recomendam, mas, também, o aporte à doutrina e à transversalidade foi necessário, desde que se trata de tema interdisciplinar de elevado teor político e sociológico, tudo alinhado por uma tradição de pensamento racionalista do direito a saúde e fundamentada na hermenêutica internacional dos direitos humanos da Organização Mundial de Saúde.

Discussão A teoria da irresponsabilidade do Estado era o Direito Português, mas com a Constituição de 1822, a posição foi mudada e passou-se a estabelecer a responsabilidade dos servidores do governo pelos danos ilícitos cometidos no exercício das suas funções. Essa nova teoria passou a ser acolhida no Código Civil de 1867, tendo um título dedicado à responsabilidade por perdas e danos causados por servidores governamental no exercício das funções. [2] A irresponsabilidade do Estado era a regra, aplicando, ainda, a irresponsablididade do servidor estatal pelos prejuizos que causassem no desempenho das obrigações que por lei lhes incumbiam, salvo se excedessem ou não cumprissem as disposições da mesma lei, De acordo com as disposições do código civil de 1867. [3] Apenas em 1939 com o Decreto n.º 19.126, que alterou o disposto no artigo 2.399 do Código Civil, é que surgiu pela primeira vez a responsabilidade civil do Estado de forma solidária com seus servidores, passando a admitir a responsabilidade civil da Administração por atos ilícitos culposos praticados pelos seus órgãos ou servidor nos exercício de suas funções. Como evolução, o Código administrativo de 1936/1946 trouxe referência as hipóteses de responsabilidade das autarquias locais pelos atos praticados com ofensa ao direito

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pelos seus órgãos e servidores, dentro do âmbito de suas atribuições e competência, com observância das formalidades essenciais e para a realização dos fins que a lei exigir. Com o código civil de 1966, o regime da responsabilidade do Estado e de outras pessoas coletivas públicas foi consagrado, nos casos de danos causados a terceiro por atos dos seus órgãos, servidores ou representantes no exercício de atividades de gestão privada, o que alterou o panorama do direito positivo então vigente em matéria de responsabilidade da Administração. Contudo, o Código Civil não regulou toda a matéria de responsabilidade por danos causados pelos seus órgãos, agentes e servidores no exercício de atividades de gestão privada, criando assim a ausência de regulação legislativa no tocante à responsabilidade por danos causados por atividades diferentes de gestão privada, essa situação foi alterada pelo decreto lei n.º 48.051 de 21 de novembro de 1967. [4] Assim, a lacuna deixada pelo código civil de 1966 foi resolvida, e passou-se a estabelecer que o regime geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais pessoas coletivas de direito público no domínio dos atos de gestão pública, vindo regular não apenas a responsabilidade administrativa e demais pessoas coletivas de direito público, pela prática de atos ilícitos culposos, e a chamada responsabilidade estatal por fatos casuais e por atos contrários a lei. [5] Esse decreto também alterou, alguns artigos do código administrativo, os quais se referia sobre a responsabilidade das autarquias locais. Em 31 de dezembro de 2007 foi aprovado em anexo o Decreto-Lei n.º 67/2007 trazendo o Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, com alteração pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho. [6] O Direito Brasileiro sempre adotou a teoria da responsabilidade do Estado, uma vez que seus doutrinadores e tribunais sempre rejeitaram legalmente a teoria da irresponsabilidade. A primeira Constituição da República Federativa do Brasil de 1824 não trouxe em explicitamente em seu texto dispositivos sobre a responsabilidade do Estado, muito menos a Constituição da República de 1891. Tais Constituições traziam somente a responsabilidade do servidor, em decorrência de abuso ou omissão por eles praticada. No Brasil Imperial existiam leis ordinárias, que previam a responsabilidade do Estado, acolhida pela jurisprudência como solidária com atos dos servidores nos casos de dano

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causado por estrada de ferro, por colocação de linhas telegráficas, pelos serviços de correios. [7] Com o Código Civil de 1916 o direito brasileiro passa a tratar expressamente da responsabilidade, em seu artigo 15, que previa, a teoria subjetiva, ou teoria da culpa, haja vista a necessidade de se averiguar a culpa na conduta do servidor do estado. Mas existiam autores, nos quais acreditavam trata-se à iminência da responsabilidade objetiva do Estado. Posteriormente, as Constituições da República de 1934 e a de 1937 passaram a trazer a ideia de responsabilidade solidária entre o Estado e servidor. Porém, apenas na Constituição de 1946 é que se passou a adotar a teoria da responsabilidade objetiva. Esta também acolhida pela Constituição da República de 1967, no seu artigo 105, modificando apenas o fato de que caberia ação regressiva nos casos de culpa ou dolo. O que permaneceu intocável, após a Emenda Constitucional de 1969, oriunda da ditadura militar. Com a o fim da ditadura e a volta da democracia pela Constituição Cidadã de 1988, continuou a Responsabilidade objetiva do Estado, artigo 37, § 6º: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". O novo Código Civil de 2002, alterou o sistema do artigo 15 do antigo Código Civil de 1916, e passou a estabelecer em seu artigo 43 o tema em estrita consonância com a vigente Constituição da nova República. [8] O Código Civil no artigo 43: “as pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo”. Conforme o magistério de Maria Helena Diniz, dinheiro na indenização do dano extrapatrimonial não é um correspondente monetário, quantitativa ou qualitativa, de bens atingidos pelo dano: Não repara a dor, a mágoa, o sofrimento ou a angústia, mas apenas aqueles danos que resultarem da privação de um bem sobre o qual o lesado teria interesse reconhecido juridicamente. O lesado pode pleitear uma indenização pecuniária em razão de dano moral, sem pelir um preço para sua dor, mas um lenitivo que atenue, em parte, as consequências do prejuízo sofrido, melhorando seu futuro, superando o déficit acarretado pelo dano. Não se pergunta: quanto vale a dor dos pais que perderam o filho.

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Quanto valem os desgostos sofridos pela pessoa injustamente caluniada., porque não se pode avaliar economicamente valores dessa natureza. Todavia, nada obsta a que se dê reparação pecuniária a quem foi lesado nessa zona de valores, a fim de que ele possa atenuar alguns prejuízos irreparáveis que sofreu.[9]

Segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona[10] para encontrarmos uma formula de “equivalencia” entre a dor sofrida e a indenização perspectiva, deveríamos trocar, como faz ZULMIRA PIRES DE LIMA, o verbo “dor” por “conjunto de sensações dolorosas” e o verbo “dinheiro” por “conjunto de sensações agradáveis que ele pode proporcionar”, de tal forma que nos lembrássemos que o valor monetário apenas interessa ao homem na medida em que lhe traz bens que possam gerar prazer. “Quando avaliamos um dano moral em dinheiro, fazemo-lo porque é o dinheiro o intermediário de todas as trocas; mas, no fundo, não há senão uma equivalência entre a dor que se recebeu com o dano e o prazer que o dinheiro pode nos proporcionar”.[11] Sobre a quantificação dos danos morais, o julgador deve ter em mente é o que o valor da condenação deve ser, ainda que a jurisprudência busque parâmetros para se fixar tal quantum debeatur.[12]

Resultados O STJ, em julgado recente, decidiu ser devida a indenização por danos morais, pela responsabilidade objetiva da administração, nos casos de falso positivo de HIV, in verbis: Ementa: ADMINISTRATIVO. PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC . OMISSÃO. NÃO OCORRÊNCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. PRODUÇÃO DE PROVA. INDEFERIMENTO FUNDAMENTADO. RESULTADO ERRÔNEO EM EXAME DE HIV (FALSO POSITIVO) DE PACIENTE GESTANTE. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS CONFIGURADOS. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ.(...). 4. Agravo regimental a que se nega provimento. STJ - AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL AgRg no AREsp 648312 PE 2015/0002269-6 (STJ) Data de publicação: 12/05/2015

Ressalta-se que, na literatura médica, são vários os casos de suicídios após as pessoas receberem exames positivos de HIV. No caso de pessoas que recebem um exame falso positivo, elas podem passar meses de perturbação moral intensa e privação

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de qualquer contato social, com danos psicológicos severos e indescritíveis, até que exames mais aprofundados possam comprovar o falso positivo. Como dito, o STJ, em diversos julgados, tem reconhecido a responsabilidade objetiva da administração, nos casos de falso positivo de HIV. Vejamos abaixo uma dessas decisões, em que o Estado do Amazonas foi condenado ao pagamento de R$ 80 (oitenta) mil reais em favor do autor:

Ementa: AGRAVOS REGIMENTAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. HIV. FALSO POSITIVO. INÍCIO DO TRATAMENTO. GRAVIDEZ. DANOS MORAIS. AGRAVO REGIMENTAL. INTEMPESTIVIDADE. AUSÊNCIA DE OBSTÁCULO PROCESSUAL. REDUÇÃO DO VALOR FIXADO. IMPOSSIBILIDADE. (...)4. Agravo regimental das autoras não conhecido e do Estado do Amazonas não provido. STJ - AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL AgRg nos EDcl nos EDcl no REsp 1341823 AM 2012/0169344-7 (STJ) Data de publicação: 02/10/2013

O TRF2 decidiu que a possibilidade de falha no exame não exclui a responsabilidade objetiva da administração, in verbis: Ementa: ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. HOSPITAL FEDERAL. ERRO DE DIAGNÓSTICO. EXAME DE HIV FALSOPOSITIVO. DANO MORAL CARACTERIZADO. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO EM MONTANTE RAZOÁVEL E PROPORCIONAL. PRECEDENTES. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS MINORADOS. FAZENDA PÚBLICA. APLICAÇÃO DO § 4º DO ART. 20 DO CPC . REMESSA NECESSÁRIA E APELAÇÃO DA UNIÃO PARCIAMENTE PROVIDAS. 1. (...) (TRF4, 4ª Turma, AC 200672040021011, Rel. Des. Fed. Marga Inge Barth Tessler, D.E. 19.11.2010) 7. Remessa Necessária e Apelação parcialmente proidas. TRF-2 - APELAÇÃO CIVEL AC 199751011027778 RJ 1997.51.01.102777-8 (TRF-2) Data de publicação: 14/08/2012

Na hipótese desse caso concreto, não há a presença de qualquer excludente de responsabilidade, como caso fortuito ou força maior, fatos da natureza e eventos. O TRF1 também julgou procedente indenização de danos morais, em R$ 24 mil reais, por dois resultados falto positivo, por parte do Hospital Universitário da UFMT:

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Ementa: DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. HOSPITAL UNIVERSITÁRIO. ERRO DE DIAGNÓSTICO. EXAME DE HIV FALSOPOSITIVO. MULHER GRÁVIDA. INDENIZAÇÃO DEVIDA. CONDENAÇÃO EM MONTANTE RAZOÁVEL E PROPORCIONAL. (...) 7. Apelo da Universidade Federal de Mato Grosso e remessa oficial improvidos. TRF-1 - APELAÇÃO CIVEL AC 6117 MT 1999.36.00.006117-3 (TRF-1) Data de publicação: 21/02/2008

Acresça-se ainda o fato de que, conforme entendimento do STF, a ação administrativa ou conduta comissiva que deve ser indenizada não necessariamente surge de ato ilícito, podendo ser de ato licito que cause dano anormal (mais grave que um simples aborrecimento) e especifico[13]. Pela jurisprudência colacionada, dois resultados falso positivo para HIV tem uma probabilidade muito remota de acontecer.

Conclusões O exame falso positivo traz angustia aos pacientes, fazendo-os acreditar que são portadores de HIV(cida), esse tipo de angustia para indenização não pode ser calculada, sendo difícil descrever o que o paciente sentia em todos esses dias ou meses temendo o aparecimento dos sintomas da soroconversão, pensando na gravidade da doença em questão que, como se sabe, além do risco de vida constante, causa efeitos colaterais diversos e problemas sérios em todo o organismo (nos sistemas gástrico e imunológico, nos rins, fígado, ossos, no metabolismo, diabetes.etc), além de depressão e outras doenças psicológicas. Portanto, o tanto o poder público quanto a iniciativa privada devem indenizar os pacientes que receberem exames de análises laboratoriais com resultado falso positivo.

Referências 1. RE 591874.MS, Repercussão geral, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. em 26.08.2009. 2. CORDEIRO. A. M. "Responsabilidade Civil do Estado". O Direito. Coimbra. Ano 142 nº 4(2010). p. 623-658. 3. QUADROS, F. de; MESQUITA. M. J. R. de; RODRIGUES, L. B.; GARCIA, A. D; SILVA. J. L. M. da. Responsabilidade civil extracontratual da administração pública, 2ª ed, Almedina: Coimbra: 2004.

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4. Idem, p. 63. 5. Ibidem, p. 56. 6. COUPER. J. A responsabilidade do estado e outros entes públicos. Disponivel em: www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jc_MA_5351.doc. acesso em 1 de julho de 2017. 7. DI PIETRO, M. S. Z. Direito administrativo. 19. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p.645. 8. CARVALHO FILHO, J. dos S. Manual de direito administrativo. 20. ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2012, p. 548. 9. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2002. V. 3. p. 71 10. GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil, volume 3: responsabilidade civil. 14 ed. ver. E atual. De acordo com o novo CPC. São Paulo: Saraiva, 2016. p . 127. 11. LIMA, Zulmira Pires de. Algumas considerações sobre a responsabilidade civil por danos morais. Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra: Universidade de Coimbra, 1940, segundo suplemento, v. 15. p. 250. 12. O STJ tem adotado o “sistema bifasico” de reparação de danos morais (STJ, 3 Turma, Recurso Especial n. 959.780-ES. 2007-0055491-9, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino) 13. RE 456.302-AgR, Rel. Min. Sepulveda Pertence, julgamento em 6.2.2007, Primeira Turma, DJ de 16-3-2007.

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Direito à saúde na perspectiva de usuários encaminhados para a atenção secundária e terciária em saúde André Luis Alves de Quevedo1 Eloá Rossoni2

RESUMO: Objetivo: Analisar as percepções sobre o direito à saúde dos usuários de uma Unidade Saúde da Família (USF) encaminhados para atendimento na Atenção Secundária e Terciária em Saúde. Metodologia: Estudo com dados qualitativos realizado em uma USF de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, com uma amostra intencional de oito usuários, um de cada microárea, com o maior tempo de espera para atendimento na atenção secundária. As entrevistas foram realizadas entre os meses de julho a outubro de 2012. Para análise do material empírico, produzido após transcrição das entrevistas, foi realizado o recorte das falas que tratavam sobre o tema de direito à saúde. Posteriormente, as falas foram agrupadas em uma matriz lógica de análise dos dados qualitativos. Para a sistematização final utilizou-se a análise temática. Resultados e discussão: Os usuários entrevistados aguardaram um longo tempo para atendimento na Atenção Secundária à Saúde (mais de quatro anos) e consideram que esse tempo gerou uma lesão no seu direito à saúde. Conclusão: Para a real efetivação do direito à saúde, o Sistema Único de Saúde precisa avançar na regulação dos tempos de espera para a Atenção Secundária em Saúde, articuladas dentro das Redes de Atenção à Saúde. E, nesse sentido, a realização de novos estudos com os usuários podem ajudar a desvelar os entraves e as potencialidades para que esses fins sejam alcançados. Palavras-chave: Direito à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Assistência Integral à Saúde.

Introdução O direito à saúde, enquanto direito social de segunda geração, foi positivado na Constituição Federativa Brasileira de 1988, especificamente no artigo 6o e artigos 196 a 200 (1), após um período de quase duas décadas de ditadura militar. Essa conquista da saúde como um direito da seguridade social, com cobertura universal para todo o cidadão, no território brasileiro, foi concretizada a partir da Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990 que instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) (2). No entanto, a efetivação e o entendimento dos direitos dos usuários é uma construção histórica e social, haja vista que anterior à década de 90 apenas aqueles cidadãos urbanos que possuíam vínculo trabalhista formal tinham algum tipo de 1 Assessoria Técnica e de Planejamento, Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul (ASSTEPLAN/SES/RS). 2 Faculdade de Odontologia, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

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atendimento à saúde ou os que podiam pagar diretamente; os demais eram atendidos em instituições filantrópicas ou de caridade e/ou utilizavam-se de práticas de cuidados tradicionais (3). Dentre as normativas do SUS, que objetivam garantir o direito do cidadão, pode-se citar a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde. Esse documento avança no sentido de trazer direitos para os usuários e deveres para os gestores e trabalhadores, afirmando em seis princípios os direitos do cidadão, a saber: acesso ordenado e organizado aos sistemas de saúde; tratamento adequado e efetivo para seu problema; atendimento humanizado, acolhedor e livre de qualquer discriminação; atendimento que respeite a sua pessoa, seus valores e seus direitos; a responsabilidade para que seu tratamento aconteça da forma adequada; e, comprometimento dos gestores da saúde para que os princípios anteriores sejam cumpridos (4). Para impactar na situação de saúde e visando a garantia do acesso dos usuários, a política pública de saúde brasileira buscou sair paulatinamente de um sistema fragmentado para um sistema articulado em redes (5), almejando a integralidade da atenção e a organização dos serviços públicos. Dessa forma, é preciso entender se os usuários compreendem a organização do sistema de saúde e de que forma seu direito à saúde é efetivado (ou não) no modelo de saúde instituído. Nesse sentido, o objetivo desse artigo foi analisar as percepções sobre o direito à saúde dos usuários de uma Unidade Saúde da Família (USF) encaminhados para atendimento na Atenção Secundária e Terciária em Saúde.

Metodologia Trata-se de uma pesquisa com dados qualitativos, do tipo exploratória e descritiva, realizada em uma USF de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, Brasil, entre os meses de julho a outubro de 2012. A população acompanhada pela USF na época do estudo era de aproximadamente 7.500 indivíduos. Fundada no ano de 2002, essa USF era composta de duas Equipes de Saúde da Família (eSF) e abrangia oito microáreas de saúde. Primeiramente, foi realizado um estudo quantitativo, transversal, retrospectivo, descritivo, baseado em dados secundários, para o período de 2002 a 2011, em que foram

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analisados dados de quatro livros e uma planilha de registros das referências dos encaminhamentos realizados na USF à Atenção Secundária e Terciária em Saúde (ASTS). Após a sistematização dos dados quantitativos foi identificado um usuário com maior tempo de espera para o atendimento na ASTS, por microárea de saúde, para a realização de uma entrevista semiestruturada. Desta forma, buscou-se analisar como o direito à saúde, expresso no acesso e na integralidade, se apresentou no processo estudado. Nesse trabalho, a Atenção Secundária e Terciária em Saúde teve um recorte definido como os serviços e equipamentos para os quais os encaminhamentos da Unidade Saúde da Família analisada foram referenciados. Para análise do material empírico, produzido após transcrição das entrevistas, foi realizado o recorte das falas que tratavam sobre o tema de direito à saúde. Posteriormente, as falas foram sistematizadas em uma matriz lógica de análise dos dados qualitativos e agrupadas em categorias por meio da análise temática (6). Os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e são identificados ao longo do texto pela letra inicial U (de usuário) e por numerais arábicos, conforme a microárea de saúde, preservando assim sua identidade. Este artigo é parte da pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética e Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, com o parecer de número 001.053018.11.7, intitulada "Direito à saúde, acesso e integralidade: análise de uma Unidade Saúde da Família". Resultados Inicialmente apresenta-se a caracterização dos usuários participantes da pesquisa, a qual pode ser observada no quadro 1. Quadro 1. Caracterização dos usuários com maior tempo de espera para atendimento na Atenção Secundária em Saúde de uma Unidade Saúde da Família (2002-2011), Porto Alegre/Rio Grande do Sul, Brasil, 2012. Usuário Especialidade/Exames Tempo de (U) Complementares espera (anos) 1 Cirurgia Vascular 5,2 2 Medicina Interna 5,2 3 Otorrinolaringologia 5,1 4 Oftalmologia 5,3 5 Cirurgia Bariátrica 5,4 6 Ortopedia 5,1 7 Densitometria Óssea 4,2 8

Ortopedia

5,3

Idade (anos) 52 54 77 51 56 51 65

Sexo

Ocupação

F F F F F F F

50

M

Cuidadora Do lar Aposentada Podóloga Artesã Aposentada Vendedora (Autônoma) Segurança

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Fonte: Dados da pesquisa, 2012.

Conforme o quadro 1, os oito entrevistados com maior tempo de espera por microárea de saúde estavam aguardando a mais de 4 anos para atendimento na Atenção Secundária e Terciária em Saúde. Nesse sentido, foi questionado aos participantes do estudo se estes sabiam se tinham direito à consulta na Atenção Secundária e Terciária em Saúde. A sistematização e síntese das falas podem ser observadas abaixo. Saber eu sei, mas a demora está muito grande. (U2). O direito tem, mas tem que esperar (U4). [...] eu sei que tenho direito, sim. Com especialista sim. Até porque eu sou Conselheira da Estratégia Saúde da Família e a gente trabalha muito com isso. Estou também tentando esclarecer para os moradores da minha região. Mas, já era sabido quando foi pedido que era uma espera muito longa, né. (U5). Eu sei, é nosso direito, é meu direito, até como especial, né. Teria que ter um atendimento mais especial, não um atendimento comum, mas infelizmente o SUS não fornece, não tem. (U6).

Três usuárias (U2, U4, U5) entendiam que tinham o direito à saúde, mas percebiam que havia um (grande) interstício entre o atendimento pelos profissionais da Saúde da Família e o atendimento na Atenção Secundária e Terciária em Saúde. Uma delas (U5) refere ser Conselheira Local de Saúde e que no exercício de suas atividades tem trabalhado o empoderamento da comunidade para a compreensão do seu direito à saúde. Outra usuária (U6) traz também para a discussão a questão da equidade, a qual deve ser contemplada considerando os princípios doutrinários do Sistema Único de Saúde. Não tenho condições, estou aguardando pelo SUS, estou na espera, estou aguardando aqui. Porque é uma coisa que é cara. Já que eu tenho direito eu vou ficar por aqui mesmo, vou esperar aqui (U2).

No recorte da fala da usuária (U2), percebe-se que esta tem a clara definição do atendimento à saúde na Rede de Atenção à Saúde como um direito legítimo. No entanto, permanece aguardando um tempo demasiado para atendimento na ASTS devido ao fato de não ter recursos financeiros e depender exclusivamente do SUS. Por fim, foi perguntado aos participantes do estudo se esses tinham a percepção que seu direito à saúde foi lesado devido ao tempo de espera para atendimento na Rede de Atenção à Saúde. As respostas podem ser observadas em sequência.

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Eu acho que sim. Porque é uma espera de cinco anos (U2). Foi lesado, porque durante todo esse tempo eu usei um óculos que não era para meu [grau], não me corrigia a visão, e consequentemente piorou minha visão. Eu acho que fui lesada, se eu tivesse sido atendida mais rápido teria logo mandado fazer os óculos específicos para mim (U4). Olha, lesado totalmente, eu não considero lesado, pelo que eu vejo, sabe. Porque tipo assim, o Hospital Pronto Socorro aqui de Porto Alegre, outros prontos socorros, tu chega ali, tu é atendido. Então quer dizer que a gente não é lesado, o problema é a burocracia até chegar a um especialista (U6).

A espera prolongada para atendimento na Atenção Secundária e Terciária em Saúde aparece como uma lesão ao direito à saúde na fala dos sujeitos entrevistados. Por mais que estes considerem o valor do atendimento de urgência em outros pontos de acesso da Rede de Atenção à Saúde, os encaminhamentos eletivos precisam cumprir seu papel para a concretização do direito à saúde dos usuários. De forma geral, analisando todos os 8.510 registros válidos de encaminhamentos da USF estudada para a ASTS, no período analisado (2002-2011), obteve-se que, 38,3% dos usuários esperaram cerca de 30 dias pelo atendimento e, em até 6 meses, 84,9% desses tiveram seu encaminhamento atendido, variando entre as especialidades. Dos oito usuários entrevistados, no momento da coleta das entrevistas, três continuavam em acompanhamento na ASTS, três tiveram sua necessidade em saúde resolvida e dois retornaram para a fila de espera da USF.

Discussão Percebe-se pelas falas dos usuários entrevistados que estes tem um entendimento do seu direito à saúde, não apenas como um favor - o que historicamente foi sendo desconstruído na política pública de saúde brasileira (7). No entanto, ainda reivindicam seu direito à saúde apenas da perspectiva do acesso à serviços de saúde, o que também foi verificado em outros estudos (8), (9). Considerando a Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde (4), parcialmente dois princípios estariam sendo cumpridos se considerarmos a dimensão do acesso. Assim, ainda há desafios a serem enfrentados e um caminho a ser percorrido para a efetiva concretização do direito à saúde dos usuários. Um estudo de revisão crítica da literatura traz a reflexão, a partir dos resultados encontrados, que a Estratégia Saúde da Família busca assegurar o efetivo cumprimento

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do direito à saúde, voltando-se para o indivíduo de forma integral, através de atitudes fundamentadas na justiça e igualdade, respaldadas pela Constituição e por movimentos de luta pela equidade (10). Confluindo a essa ideia, em tempos de ataques neoliberais, o Sistema Único de Saúde para se efetivar como uma política pública e universal de saúde precisa atingir toda a população; não podendo caracterizar-se apenas como uma política para a população que não pode pagar por serviços privados de saúde (11). Outro aspecto para a efetivação do direito à saúde, contemplando o acesso à Atenção Secundária e Terciária em Saúde, é a organização de períodos máximos de tempo de espera. No Sistema Público de Saúde espanhol, foi realizado um estudo sobre listas de espera para atendimento na atenção especializada. Em quatro das dezessete Comunidades Autônomas (Andaluzia, País Basco, Madri, Serviço Catalão de Saúde), o tempo de espera variou de 30 até 180 dias (12). Conforme os autores, nesse país há um processo de controle das listas de espera, através de protocolos clínicos, negociação com os prestadores da atenção especializada e hospitalar, pensando no acesso do cidadão ao sistema de saúde público e na qualidade da atenção à saúde. Nesse sentido, reflete-se que é importante analisar experiências e ter parâmetros como os do sistema de saúde espanhol para o controle das listas de espera, buscando a melhoria da qualidade da atenção do sistema público de saúde brasileiro; bem como a efetivação do direito à saúde. Este trabalho não pretendeu esgotar a complexidade que é a discussão do direito à saúde, especialmente em sistemas de saúde universais. Trata-se, apenas, da percepção de alguns usuários os quais permaneceram por um longo período em lista de espera por um atendimento na Atenção Secundária e Terciária em Saúde. Considerando que, os usuários entrevistados aguardaram um extenso tempo para atendimento na ASTS, isso pode ter contribuído para uma visão mais crítica do sistema de saúde. E, essa foi uma das intencionalidades a ser explorada na pesquisa, no sentido de se buscar atingir algumas das potencialidades e dificuldades da articulação da Rede de Atenção à Saúde, do cuidado longitudinal e integral e da efetivação do direito à saúde.

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Considerações Finais Para que o Sistema Único de Saúde possa realmente avançar enquanto sistema universal, equânime e articulado em rede é preciso que mais pesquisas sobre o direito à saúde sejam realizadas com os usuários do sistema. Pesquisas que busquem não somente analisar as percepções dos usuários, mas também construir um potencial crítico e reflexivo dos usuários, trabalhadores e gestores sobre as práticas desenvolvidas.

Referências 1. Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Constituição Da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília; 1988. Disponível em: . Acesso em 07 de out. de 2017. 2. Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília; 1990. Disponível em: . Acesso em 13 de out. de 2017. 3. Menicucci TMG. História da reforma sanitária brasileira e do Sistema Único de Saúde: mudanças, continuidades e a agenda atual. História, Ciências, Saúde. 2014;21(1):77-92. 4. Brasil. Ministério da Saúde. Carta dos direitos dos usuários da saúde. Ministério da Saúde. 2.ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2007. Disponível em: . Acesso em 05 de out. de 2017. 5. Mendes EV. As redes de atenção à saúde. Ciência & Saúde Coletiva. 2010;15(5):2297-2305. 6. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009. 281p. 7. Asensi FD. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na saúde. Physis. 2010;20(1):33-55. 8. Backes DS et al. O que os usuários pensam e falam do Sistema Único de Saúde? Uma análise dos significados à luz da carta dos direitos dos usuários. Ciência & Saúde Coletiva. 2009;14(3):903-910. 9. Machado FRS. O direito à saúde na interface entre sociedade civil e Estado. Trabalho, Educação e Saúde. 2009;7(2):355-371.

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Direitos dos pacientes oncológicos: a informação adequada e transparente como instrumento essencial ao bem-estar e a preservação de direitos Rodrigo Trisoglino Nazareth1 Paulo Lascani Yered Marcelo Lamy

RESUMO: O presente estudo possui o objetivo exploratório e correlacional, visa apontar a relação entre as seguintes variáveis, concebidas também como direitos: informação recebida pelo paciente, autonomia vivenciada pelo paciente. Seguiu metodologia qualitativa, pelo qual pode selecionar paradigmas normativos, políticos e doutrinários que desvelam a relação. No material encontrado, desvela-se frágil a explicitação dos fundamentos teóricos dessas variáveis. De qualquer forma, a investigação confirmou a seguinte percepção: Quanto mais adequada e transparente é a informação, maior é a possibilidade de o paciente oncológico vivenciar o bem-estar subjetivo possível, organizar, preservar e dispor de seus direitos. Somente o domínio cognitivo proporciona uma tomada de decisões adequada em questões jurídicas existenciais, financeiras e de legado. Palavras-chave: pacientes oncológicos; informação; transparência; autonomia; preservação de direitos. Introdução Diagnosticado no início de maio do corrente ano com um câncer de pâncreas em estado avançado – com a metástase atingindo o fígado –, o jornalista e apresentador de TV Marcelo Rezende, de 65 anos, logo iniciou o procedimento recomendado para esse caso: o agressivo tratamento com medicamentos quimioterápicos. Em 13 de junho, porém, Rezende anunciou que abandonara a quimioterapia após a primeira sessão, contrariando seus médicos, para tentar um tratamento alternativo com base em uma dieta. (1) Após três meses sobreveio o falecimento e a repercussão nacional do caso levantou o debate sobre os riscos de trocar a quimioterapia por tratamentos que não contam com evidências científicas suficientes, como dietas, exercícios, suplementos, vitaminas, massagens, ervas, acupuntura e meditação. Ao mesmo tempo, renovou-se o questionamento sobre a amplitude do direito do paciente à informação e à transparência, sobre a possibilidade de não se submeter a tratamentos tradicionais, escolhendo tratamentos alternativos.

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Universidade Santa Cecília. E-mail: [email protected]

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A informação e transparência no prognóstico médico são direitos que tornam o paciente ativo e corresponsável do cuidado. A adesão, amparada na confiança que o paciente oncológico deposita nos participantes no seu cuidado, incluindo o profissional médico, e o atendimento humanizado aumentam a probabilidade de administrar bem os resultados (sejam quais forem), reduz os pontos cegos e, consequentemente, as barreiras de direitos. O paciente acometido de neoplasia maligna, assim como o deficiente físico, possui direitos específicos, como levantamento do FGTS e isenções tributarias, dentre outros. Contudo, verificamos que é através do direito à informação e à transparência do programa, seja ele oncológico ou paliativo, que se permite ao paciente o maior bem-estar subjetivo possível. Além de aspectos emocionais, elevam-se os domínios da cognição e, por conseguinte a efetivação de outros direitos.

Metodologia Fez-se

levantamento

qualitativo

de

documentos

internacionais,

de

normas

(Legislativas, Executivas e de Conselhos Profissionais) e de políticas públicas nacionais, de artigos científicos que desvelassem o núcleo temático da investigação: a relação entre o direito à informação e o direito à autonomia do paciente. O trabalho desenvolvido pelo Grupo Técnico de Oncologia (Oncorede) da ANS, destinado a discutir a atenção integral em oncologia na saúde suplementar, serviu de guia orientativo da investigação.

Resultados Do ponto de vista normativo nacional, pareceu-nos o Código de Ética Médica (Res. CFM 1931/2009) ser o documento mais relevante. Essa normativa, preocupada com o direito à informação, estabelece que é vedado ao médico: Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento (art. 34); exagerar a gravidade do diagnóstico ou do prognóstico (art. 35); opor-se à realização de junta médica ou segunda opinião solicitada pelo paciente ou por seu representante legal (art. 39). No que diz respeito à autonomia, estabelece ser vedado ao médico: Deixar de obter consentimento do paciente após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado (art.

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22); Deixar de garantir ao paciente o exercício do direito de decidir livremente sobre sua pessoa ou seu bem-estar (art. 24); Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas (art. 31). Além disso, a Resolução CFM nº 1.995/2012, estabelece uma nova forma de respeitar a autonomia do paciente: o médico – nas decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades – tem de levar em conta as diretivas antecipadas de vontade do paciente (art. 2º). Nos casos de doença incurável e terminal, o Código de Ética estabelece que o médico deve oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis, mas não deve empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas (distanásia), levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal (art. 41, parágrafo único). Do ponto de vista internacional, pareceu-nos que a Declaração de Lisboa sobre os direitos do paciente (adotada pela Associação Médica Mundial em Lisboa, Portugal, em 1981) estabelece de maneira exemplar a amplitude da informação e da autonomia. Quanto à informação, estatui que o paciente tem o direito de ser informado integralmente sobre o estado de sua saúde, que a informação deve ser dada de maneira apropriada a sua cultura, de forma que o paciente possa entender (item 7). Quanto à autonomia, estatui que o paciente tem o direito à tomar livremente suas decisões, cabendo ao médico informar o paciente das consequências de suas decisões (item 3). Correlacionando os dois direitos, diz que o paciente tem o direito à informação necessária (para entender o propósito de qualquer tratamento, quais as implicações dos resultados encontrados e quais seriam as implicações de eventual suspensão do tratamento), para assim tomar suas próprias decisões (item 3). Do ponto de vista das políticas públicas nacionais, o referencial é a Portaria nº 1.820/2009 (editada pelo Ministério da Saúde) que aponta no que diz respeito ao direito à informação, a necessidade do paciente receber informações sobre o seu estado de saúde, de maneira clara, objetiva, respeitosa e compreensível (art. 3º, par. único, II), assegurando-lhe “a informação a respeito de diferentes possibilidades terapêuticas de acordo com sua condição clínica, baseado nas evidências científicas e a relação custobenefício das alternativas de tratamento” (artigo 4º, par. único, IX), bem como “a liberdade, em qualquer fase do tratamento, de procurar segunda opinião ou parecer de outro

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profissional ou serviço sobre seu estado de saúde ou sobre procedimentos recomendados” (artigo 5º, IX). Reconhece, por outro lado, em relação ao direito à autonomia, a necessidade de assegurar o direito ao “consentimento livre, voluntário e esclarecido, a quaisquer procedimentos diagnósticos, preventivos ou terapêuticos, salvo nos casos que acarretem risco à saúde pública” (art. 5º, V).

Discussão Ninguém (nenhuma pessoa) tem toda a informação sobre tudo o que pode ocorrer no campo da saúde. O acesso à informação não costuma ser um problema, porém nem sempre a qualidade da informação nem suas bases ficam claras. Para os leigos, é dificultoso saber o que merece crédito. A comunicação profissional/equipe-paciente pode ser definida como o ponto de ancoragem de todo o processo de cuidado em saúde. Diferentes áreas do conhecimento (incluindo as ciências da saúde) têm se debruçado sobre este elemento da prática clínica na busca por conhecer os principais fatores que interferem na construção de uma comunicação eficaz e, consequentemente, na boa relação médico paciente. (2) Na relação jurídica entre médico e paciente é princípio básico norteador aquele instituído pelo art. 4.º, caput, do CDC, o da Transparência. A ideia central é possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor. Transparência significa informação clara e correta sobre o produto ou serviço prestado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual, isto é, na fase negocial dos contratos de consumo. (3) O caso citado na introdução abre o campo para a discussão: os direitos a informação e transparência relacionam-se com outros direitos do paciente oncológico? Qual a importância dessa comunicação eficaz? Saber que poderá morrer (ou tempo estimado) e assim poupar-se possui reflexo no ordenamento jurídico? Esse conhecimento traduz-se em uma forma de bem-estar subjetivo? Eleva os domínios da cognição e, por conseguinte, a capacidade de exercer direitos? Hipócrates conceituava morte enquanto algo imutável (ananké). Essa noção influenciou na criação de postulados que regem a atividade médica (e, igualmente, outras profissões da saúde), tais como o célebre primum non nocere (não causar dano), isto é,

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beneficiar o paciente ou, no mínimo, não o prejudicar. Isso nos ensina que não se deve mais atuar em direção à cura, quando a doença se mostrar fatal (4). Aparecendo, nesse momento, o cuidado paliativo. Amparado em saber técnico, o profissional da saúde tem de estar apto a fazer juízos diagnósticos, prognósticos e terapêuticos sobre os problemas de saúde que se depara. Todos esses juízos, no entanto, não se projetam simplesmente sobre doenças, mas sobre uma ou mais pessoas, o paciente e seu entorno familiar. O respeito à dignidade da pessoa humana, na versão defendida por Kant (5) – de que o homem tem de ser tratado como pessoa e não como coisa –, exige que o profissional da saúde volte seus olhos e interaja com pessoas acometidas por doenças e não apenas com as doenças. Disso resultam os deveres traduzidos pelo princípio da beneficência (cuidados de saúde tem de trazer benefícios, não são meras experiências), complementado pela diretriz que sobrevaloriza os cuidados paliativos, e pelo princípio da humanização. A dignidade, na versão defendida por Pico della Mirandola (6)– de que o homem tem de ser respeitado em seu âmbito de liberdade –, exige que os profissionais da saúde respeitem a autonomia dos pacientes. Disso resulta os deveres de informar adequadamente aos pacientes ou aos familiares (quando os primeiros estiverem impedidos) para que eles, de forma livre, consciente e esclarecida – amparados em seus valores – tomem, com autonomia, as decisões necessárias: terapêuticas, existenciais e patrimoniais. Sob esse último ângulo, o direito moderno superou o paternalismo clínico herdado de Hipócrates e estabeleceu o primado da autonomia do paciente (5). O que resultou, em 2005, no reconhecimento universal do paradigma do “consentimento informado”, nos termos dos artigos 6º e 7º da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (7). Diante de doença grave e incurável em fase terminal, o CFM (Res. Nº 1.805/2006) entende que é lícito – depois de esclarecer as modalidades terapêuticas possíveis e que o paciente possa exercer seu direito de solicitar uma segunda opinião, respeitada a vontade do paciente – limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que simplesmente prolonguem a vida do paciente (distanásia), garantindo-lhe, de qualquer forma, os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de

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uma assistência integral (conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar). O Código de Ética Médica (Res. CFM nº 1931/2009), do mesmo modo, torna lícito, em caso de doença incurável e terminal, não oferecer ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis (ortotanásia) ou obstinadas (distanásia). Vedando-se procedimentos para abreviar a vida (eutanásia). A racionalização, a mecanização e a burocratização excessiva atuam como “desumanizantes”. O paciente deixa de ser uma pessoa para ser um caso interessante (uma úlcera, uma estenose mitral etc.) ou um número. Com frequência a enfermagem planeja e distribui tarefas em função do número de banhos de leito, curativos, inalações etc. O paciente individualizado, com seus problemas, temores e necessidades, não é sempre levado em conta. (8) Entretanto, a partir do momento que o bem-estar subjetivo se eleva, o elemento da vontade ganha peso. O bem-estar subjetivo articula duas perspectivas em psicologia: uma que se assenta nas teorias sobre estados emocionais, emoções, afetos e sentimentos (afetos positivos e afetos negativos) e outra que se sustenta nos domínios da cognição e se operacionaliza por avaliações de satisfação (com a vida em geral, com aspectos específicos da vida como o trabalho). (9) Conforme pesquisa realizada este ano pelo Grupo Técnico de Oncologia (Oncorede) da ANS, destinado a discutir a atenção integral em Oncologia na saúde suplementar, observou-se dentre as principais vontades dos pacientes (10): Controle da dor e de outros sintomas, redução do sofrimento; Estar com a família e os amigos maior parte do tempo e fortalecer os laços com as pessoas amadas; Ter um médico em quem possa confiar, que o escute e que esteja confortável para falar sobre a morte; Estar em paz com Deus; Comunicação honesta e confiável; Que suas vontades sejam ouvidas e respeitadas. Referido estudo revelou ainda que a importância de prognosticar e comunicar adequadamente o prognóstico permite que os pacientes e familiares identifiquem suas prioridades com base na expectativa de vida, que tomem decisões informadas sobre os cuidados, que participem de assuntos jurídicos e financeiros, que se concentrem no encerramento de vida, no passamento e em questões de legado. Perceba que o pleno exercício o direito à informação e a transparência (arts. 4º, caput, 6°, III, 8°, caput, 31, 37, §3°, 46 e 54, §§ 3° e 4° do CDC) asseguram ao consumidor não só a plena ciência da exata extensão das obrigações assumidas perante o fornecedor,

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como servem de elo ao surgimento de direitos mais amplos, como o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), à liberdade e à propriedade (art. 5º, caput, da CF), à herança (art.5 º, XXX da CF), à imagem (art. 5º, X, da CF) e a família (art. 226 da CF). Além desses direitos mais amplos, outros mais específicos se destacam: Liberação do FGTS (art. 20, XI, da Lei 8.036/90); Liberação do PIS;PASEP (art. 10 do Decreto 78.276/76); Isenção de IP, ICMS e IPVA de veículos (IN SRF 607/06 e Lei 6.606/89); Dispensa do rodizio de automóveis (Lei Municipal de São Paulo 12.49097 e Decreto 37.085/97); Quitação do imóvel pelo Sistema Financeiro de Habitação; Isenção de Imposto de Renda na Aposentadoria (IN SRF 15 de 06/02/01); Aposentadoria por Invalidez com assistência permanente (Lei 8213;90 e Decreto 3.048;99); Amparo Assistencial ao Idoso e ao Deficiente (LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social – Lei 8.742/93); Transporte Coletivo Gratuito (Lei Municipal de São Paulo 11.250;92 e Decreto 34.753;92); Passe Livre Internacional (Lei 8.899/94); Cirurgia de Reconstrução Mamaria (Lei 10.223/01). Todos estes direitos de nada valeriam sem o já referenciado bem-estar subjetivo e o próprio domínio da cognição. A distanásia retira do paciente a sua dignidade na medida em que a dor e o sofrimento atacam a inteligência emocional. LIMONGI (11) traduzindo a vontade como princípio de Direito segundo Hobbes enaltece: E o raciocínio jurídico de Hobbes é: todo homem tem direito a fazer qualquer coisa que possa ser compreendida como um bem para ele mesmo, ou, se quisermos, que possa ser pensada como de algum modo contribuindo para sua conservação ou para o progresso de seu desejo, seja ele qual for. Eis como se pode compreender a relação entre a indeterminação do direito natural e a noção de auto conservação: tendo em vista a auto conservação, nos diz Hobbes, todo homem pode ou tem por natureza o direito de “fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim” (L, XIV, p. 189).

A informação é poder, e, no caso dos pacientes oncológicos, vital à atividade humana. O prognóstico comunicado com transparência e didática por parte do médico a respeito de condutas, intervenções e riscos não se presta apenas ao consentimento do paciente, mas como fator de organização e alicerce da vontade do paciente, desencadeador de suas decisões e de direitos. Sem isto, o paciente perde o seu eixo, o controle dos direitos de existência, do seu patrimônio e a auto conservação dos direitos da sua pessoa e familiares.

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Conclusões Direitos básicos como o direito à informação adequada e o direito à autonomia do paciente, se respeitados, tornam-se elos e alicerces para o exercício de garantias constitucionais maiores como dignidade da pessoa humana. Ainda que a notícia quanto a impossibilidade da recuperação ou quanto ao sofrimento que se avizinha não seja agradável, deve ser transparente e didática, já que o paciente plenamente consciente pode assim preservar um mínimo de bem-estar subjetivo. Somente o conhecimento pode permitir ações relevantes para o paciente. Quanto mais adequada e transparente é a informação, maior é a possibilidade de o paciente oncológico vivenciar o bem-estar subjetivo possível, organizar, preservar e dispor de seus direitos. Somente o domínio cognitivo proporciona uma tomada de decisões adequada em questões jurídicas existenciais, financeiras e de legado, preservando os direitos que se extinguirão apenas com a morte e não antes, com um tratamento conduzido às cegas.

Referências 1. Castro F. Morte de jornalista que largou quimio levanta debate sobre terapia alternativa O Estado de São Paulo; 18.09.2017. Disponível em: http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,morte-de-jornalista-que-largou-quimiolevanta-debate-sobre-terapia-alternativa,70002005332. Acesso em 12.10.2017 – 16:01h 2. Malik. AM., Oliveira MR. As escolhas são do paciente? Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/stories/Plano_de_saude_e_Operadoras/Area_do_con sumidor/sua_saude/projeto_sua_saude_as_escolhas_sao_do_paciente.pdf. Acesso em 12.10.2017 – 16:33h 3. Marques, CL. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. O novo regime das relações contratuais. 4.ª ed. rev. atual. e amp. São Paulo: RT, 2002. P. 594-595 4. Zaidhaft, S. Morte e formação médica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990. 5. Pico della Mirandola G. Discurso sobre a dignidade do homem. Trad. Maria de Lurdes Sirgado Ganho. Lisboa: Edições 70,2001. 6. Kant I. A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. Bauru, SP: EDIPRO, 2003. 7. Pereira AGD. Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica. Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-Civilísticas (Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), 2012. Disponível em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/31524/1/Direitos%20dos%20pacientes %20e%20responsabilidade%20m%C3%A9dica.pdf Acesso em 12/10/2017.

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8. Feldmann MA, et al. Aspectos de humanização do serviço de enfermagem no hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo. Rev. Bras. Enfermagem 1973 outubro/dezembro; 26(6):515-26 9. Siqueira MMM. Bases Teóricas de Bem-Estar Subjetivo, Bem-Estar Psicológico e Bem-Estar no Trabalho. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ptp/v24n2/09. Acesso em 13.10.2017 – 11:27h. 10. Hunes G. Cuidados paliativos na atenção oncológica. http://www.ans.gov.br/images/stories/Particitacao_da_sociedade/2016_gt_oncologia/ gt_oncorede_reuniao7_apresentacao_germana_hunes.pdf. Acesso em: 09.10.2017 – 17h10h 11. Limongi MI. A Vontade como Princípio do Direito em Hobbes. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, [S.l.], v. 12, n. 1-2, p. 16, may 2017. Disponível em: https://www.cle.unicamp.br/eprints/index.php/cadernos/article/view/690. Acesso em: 09.10. 2017 – 15:12h

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Evolução histórica nas políticas de saúde da mulher e da criança a nível nacional Jessica Galvan1 Natália Galvão Camila Zanesco

RESUMO: A busca atual por melhorias no que tange à saúde da mulher e da criança têm suas raízes na luta histórica pela garantia dos direitos a esta parcela da população, através do traçado evolutivo das políticas de saúde. Objetivos: estabelecer o desenvolvimento cronológico da saúde da mulher e da criança no cenário brasileiro desde sua origem até o presente século. Metodologia: O levantamento bibliográfico foi realizado através da busca nas bases de dados através dos descritores: saúde da mulher; saúde da criança e políticas públicas. Resultados: A evolução histórica das políticas de saúde da mulher e da criança possibilitou a construção do arcabouço jurídico que é atualmente vigente no País. A discussão sobre o tema permitiu que ao longo do tempo novas diretrizes fossem estabelecidas e assim houvesse o melhoramento das políticas públicas de saúde, e que ainda necessitam de melhorias. Conclusão: A transição das políticas de saúde da mulher e da criança foi permitida através de inúmeros esforços, tendo na participação social uma ferramenta de grande valia para a conquista da democratização dos direitos à esta parcela da população. Desta forma, o esforço conjunto do poder público aliado ao da população possibilita que haja a manutenção da integralidade nas esferas que tangem à saúde pública. Palavras-chave: Saúde da mulher; Saúde da criança; Políticas públicas; Evolução histórica. Introdução Historicamente a saúde das mulheres e das crianças nunca foi de grande importância para os governantes. A criança era vista como um pequeno adulto, onde esta não era de grande valia, visto que sua expectativa média de vida na época era de 14 anos. As crianças eram consideradas adultas a partir dos 7 anos de idade e já poderiam realizar trabalhos idênticos aos dos adultos.1 Nos séculos correspondentes à Idade Média, as crianças com algum problema de saúde eram abandonadas por seus pais, pois não existiam tratamentos médicos para os mais pobres na época, devido a isso os índices de infanticídios eram altos. Após algum tempo a Igreja começa um trabalho filantrópico que atendia e cuidava dos enfermos.2

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Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. E-mail: [email protected]

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Nesse período as mulheres recebiam apenas tratamentos relacionados à gestação, e no parto eram assistidas por parteiras inexperientes em locais com péssimas condições de higiene, o que favorecia os altos índices de mortalidade maternoinfantil da época.1 As questões envoltas a saúde da mulher emergiram nos anos iniciais do século XX, porém naquela época as únicas preocupações das propostas condiziam a gestação e ao parto; e assim continuaram por vários anos, a importância da mulher tinha ligação exclusiva com a reprodução, cuidado e responsabilidade pela casa.3 Diante dessa perspectiva histórica, o presente trabalho tem o objetivo de estabelecer o desenvolvimento cronológico da saúde da mulher e da criança no cenário brasileiro desde sua origem até o presente século.

Metodologia Foi realizado um levantamento bibliográfico, utilizando plataformas de buscas como o SciElo, foram utilizados os seguintes termos para as buscas: saúde da mulher, saúde da criança e políticas públicas. A busca levou aos materiais que foram utilizados para a composição teórica do estudo.

Saúde da mulher Em meados da década de 50, no Brasil as ações de saúde eram influenciadas pelos Estados de Bem-Estar (Welfare States), modelo europeu que priorizava grupos vulneráveis, voltado no país para tornar as mulheres melhores mães. Considerando os anos 70 os planejamentos contemplavam a equidade, nesse período ocorreram a Conferência do Ano Internacional da Mulher (1975) e Plano da Década da Mulher (1976 – 1985), em busca da autonomia política e econômica da mulher. Com influência de grupos nacionais e internacionais foi lançado em 1975 o programa materno-infantil, o qual abrangia questões gerais em torno de proteção e assistência materno-infantil envolvendo o período pré-concepcional, pré-natal, parto e puerpério, o qual perdeu força rapidamente devido principalmente as suas características fragmentadas e verticais.2 Na década de 80 a influência dos movimentos feministas (movimento das mulheres) conseguem adicionar questões além do ciclo gravídico puerperal ao cuidado na saúde da mulher, e em 1984 surge o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM). O PAISM contemplava ações educativas, preventivas, de diagnóstico, tratamento e

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recuperação, englobando a assistência à mulher em clínica ginecológica, no pré-natal, parto e puerpério, no climatério, em planejamento familiar, DST, câncer de colo de útero e de mama, além de outras.4 Com o passar dos anos no início do século XXI (2003), foram apontadas brechas descobertas, necessitando de planejamentos e ações que envolvessem mulheres rurais, com deficiência, negras, indígenas, presidiárias, lésbicas, além de instigar a participação do público nas discussões e atividades sobre saúde da mulher e meio ambiente.5 Eis que em 28 de maio de 2004, o Ministério da Saúde propõe diretrizes para a humanização e a qualidade do atendimento; A partir de dados epidemiológicos e lutas de diversas organizações e segmentos sociais, são apresentados os princípios e diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher.3

Saúde da criança A criança inserida no contexto da sociedade ocupou diferentes papéis de acordo com a época vivenciada. No Brasil no período colonial a criança era tratada como um adulto, sendo considerada como instrumento para a família e submetida aos serviços que requeriam força e ao poder paterno; As condições sanitárias e socias as quais eram submetidas tendiam ao adoecimento das crianças.2 A saúde da criança só começou a ter maior enfoque na década de 20, quando dependente do trabalhador recebia atendimento médico, visando diminuir as faltas ao serviço devido ao adoecimento dos filhos. Entre as décadas de 30 e 40 iniciaram programas de proteção à maternidade, à criança e ao adolescente submetidos ao Departamento de Nacional da Criança (DNCr), sendo estas ações de caráter curativo e individualizado, procurando diminuir o absenteísmo das mães no trabalho.1 Durante um longo período o Ministério da Educação e Ministério da Saúde (MS), realizavam ações e estratégias para a saúde da criança de forma interligados, em 1953 ocorreu a separação dos dois ministérios, e o MS passou a desenvolver as atividades do DNCr. Em 1973 houve a criação da Coordenação de Proteção Materno-Infantil, responsável pelo planejamento, organização, controle e fiscalização das ações de proteção à maternidade, à criança e ao adolescente. Nesse período a Mortalidade Infantil encontrava-se em alta, decorrente da assistência pontual as doenças agudas, evidenciando a falha nas ações existentes.1,5

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Na década de 1970 foi implantado o Programa Nacional de Saúde Materno-Infantil, com o objetivo de redução da morbimortalidade infantil e materna, aplicando ações de caráter preventivo. Tendo em vista a necessidade do acompanhamento do processo de crescimento e desenvolvimento da criança, o MS na década de 1980, elaborou o Programa de Assistência Integral a Saúde da Mulher e da Criança (PAISMC) que estabeleceu cinco ações básicas para o atendimento ás crianças: aleitamento materno, estratégias para controle de afecções respiratórias agudas, imunização básica, controle de doenças diarréicas e acompanhamento profissional do crescimento e desenvolvimento infantil.5 Procurando desvincular a saúde da criança com a materna, em 1984 foi implantado o Programa de Assistência Integral a Saúde da Criança (PAISC), com estratégias para enfrentamento às adversidades de saúde da população infantil. Após, em 1990, foi aprovado a Lei n° 8.069 que discorre sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).1,5 Em 1991 foi instituído o Programa de Assistência à Saúde Perinatal, esta estratégia reorganizou o atendimento, promovendo melhorias aassistência. Com o intuito de garantir o direito da criança à assistência humanizada e com o objetivo de incentivar, promover e apoiar o aleitamento materno, em 1995, o MS lançou a Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC).1 Levando em consideração o alto número de nascimentos e óbitos de crianças com baixo peso e prematuras, o MS lançou em 2000 a Norma de Atenção Humanizada ao Recém-Nascido de Baixo Peso- Método Canguru e também o Programa Nacional de Humanização do Pré-Natal e Nascimento. No ano de 2004 o MS lança a Agenda de Compromissos para a Saúde Integral da Criança e Redução da Mortalidade Infantil, onde propôs linhas de cuidados permitindo a construção da assistência integral à criança.1 A Rede Amamenta Brasil foi adotada no ano de 2008, como estratégia para a promoção, proteção e apoio ao aleitamento materno. E por fim em 2011 é implantada pelo MS a Rede Cegonha, que é uma rede cuidados que garante assistência de qualidade as mulheres em todo seu ciclo reprodutivo, bem como garantir às crianças cuidado integral no nascimento, crescimento e desenvolvimento.1

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Lei Maria da Penha A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006) é uma conquista marcante dos movimentos feministas, visa aerradicação, prevenção e punição da violência contra a mulher. Na lei a violência doméstica é claramente apontada como uma forma de violação dos direitos humanos; sendo que altera o Código Penal, possibilitando que os agressores sejam presos em flagrante, ou tenham sua prisão preventiva decretada, em situações que de riscoa integridade física feminina. Adiante abrange medidas de proteção para a mulher que corre risco de vida, um exemplo é o afastamento do agressor do domicílio, ea proibição da aproximação física da mulher agredida e dos filhos.6

Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA Na atualidade a realidade das crianças e adolescentes brasileiras mudou, possuindo como respaldo de proteção uma série de regras e leis estabelecidas pela nossa legislação. Foram anos de discussões onde se concluiu de que a infância e a adolescência devem ser protegidas por toda a sociedade das diferentes formas de violência, além de responsabilizar a todos por garantir o desenvolvimento integral desses indivíduos.7 O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 é considerado um marco na proteção da infância e tem como base a doutrina de proteção integral, reforçando a ideia de “prioridade absoluta” da Constituição.8 A partir do ECA são abordadas questões como: os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes; as sanções, quando há o cometimento de ato infracional; quais órgãos devem prestar assistência; e a tipificação de crimes contra criança. Essa proteção integral definida em referida lei, é uma tarefa que só pode ser realizada por um time articulado de ações, instituições, políticas e recursos que busquem com absoluta prioridade a garantia dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à liberdade, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.9

Iniciativa hospital amigo da criança – IHAC São certificadas instituições públicas e privadas desde 1992 através do ministério da saúde e o Fundo das nações Unidas para a infância (UNICEF), a partir do cumprimento dos dez passos para o sucesso do aleitamento materno.

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A IHAC é uma ação que visa estimular a pratica do aleitamento materno, bem como sua frequência e duração, e nos últimos anos tem contribuído significativamente para melhoria da saúde e redução de mortalidade das crianças brasileiras, é responsável pela redução de 13% das mortes evitáveis em crianças menores de 5 anos no mundo, e tem ligação direta com a redução futura de doenças crônicas, além de consistir em fator de proteção para a mãe (contra o câncer de mama, de ovário e diabete tipo II); bem como promover a saúde física e mental da criança e da mãe, estreitando o vínculo entre eles.10 Considerando os profissionais e gestores atuantes, já se têm evidências de que os cursos realizados em prol da IHAC contribuem para a mudança das práticas hospitalares e melhoram o conhecimento em relação ao aleitamento materno, motivação.10

Conclusões Acompanhamos uma transição nas políticas de atenção a estes dois públicos, onde houve um melhoramento significativo, com ampliação da abrangência e redução de mortalidade, evidenciando a necessidade e possibilidade de melhora e de transformaçãoda realidade atual. Um dos maiores desafios em relação a estratégias com abordagem na área da saúde diz respeito à participação social, a partir da efetivação da mesma, onde as reais necessidades são mais facilmente identificadas e as ações planejadas a partir da realidade local. A busca pela democratização do sistema de atenção à saúde da mulher e da criança exige que haja um esforço conjunto sustentado pelo poder público em parceria com a população, onde sejam concentrados os objetivos de tal forma que garantam a assistência adequada a esta parcela da população e desta maneira propiciem que os avanços nesta temática continuem seguindo um curso ascendente.

Referências

1. ARAÚJO, J.P.; ET AL. História da saúde da criança: conquistas, políticas e perspectivas. RevBrasEnferm, v.67, n.6, p.1000-7, Nov-dez 2014. 2. WIECZORKIEVICZ, A.M.; MILANI, M.L. Um breve histórico das políticas públicas sociais brasileiras e seus programas, direcionados à saúde da criança. Saúde Meio Ambient. v. 2, n. 2, p. 107-116, dez. 2013.

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3. GARCIA, P. T., et al. Saúde da mulher. Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2013. 33p UNASUS. 4. BRASIL. Ministério da Saúde. Assistência integral à saúde da mulher: bases da ação programática. Brasília: Ministério da Saúde, 1984. 5. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno. Gestões e gestores de políticas públicas de atenção à saúde da criança: 70 anos de história / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno. – Brasília : Ministério da Saúde, 2011. 80 p.: il. – (Série I. História da Saúde). 6. BRASIL. Ministério da Justiça e Cidadania. Lei Maria da Penha- 10 anos. Disponível em: Acessado em: 07/07/2017. 7. EDUARDO, L. de P.; EGRY, E. Y. Estatuto da Criança e do Adolescente: a visão dos trabalhadores sobre a sua prática. RevEscEnfer USP, vol. 44, n1, p.18-24, 2010. 8. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Estatuto da Criança e do Adolescente. 12 ed. Brasília, 2014. 9. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Falando sério sobre a escuta de crianças e adolescentes envolvidos em situação de violência e a rede de proteção. 1º edição. Brasília: 2009. 10. BRASIL. Ministério da Saúde. Iniciativa hospital amigo da criança. Área Técnica de Saúde da Criança e Aleitamento Materno. Departamento de Ações Programáticas. Estratégicas Secretaria de Atenção à Saúde, Brasília, janeiro de 2011.

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Eixo 9 – Aborto, eutanásia, reprodução assistida, cuidados paliativos

Brasil, Portugal e a Reprodução Humana: de um obstáculo natural intransponível a uma “felicidade” garantida juridicamente. Andressa Julyany Pasqualini Prado1

RESUMO: O presente trabalho pretende demonstrar, em linhas gerais, como a infertilidade interfere na vida conjugal de forma tal que, associada aos Direitos Reprodutivos, a vontade em se reproduzir passa a receber a tutela jurisdicional. Esta visão contemporânea, somada aos avanços da Medicina, possibilitou falar em Reprodução Medicamente Assistida, surgindo, então, a necessidade de regulamentação das novas exigências sociais, agora voltadas à bioética. Para tornar este estudo possível foram analisadas diversas doutrinas, bem como revistas jurídicas e a própria legislação de ambos os países, viabilizando concluir que, enquanto Portugal conta com uma lei específica desde 2006, revista e atualizada ao longo dos anos conforme as demandas da coletividade, no Brasil, até a presente data, a criação de uma lei específica resta prejudicada em razão das inúmeras discussões e do grande dissenso, gerando um descompasso entre as evoluções no campo da ciência e os progressos jurídicos. Palavras-chave: Direito Comparado. Bioética. Infertilidade. Direitos Reprodutivos. Reprodução Humana Assistida /PMA.

Introdução Encontramo-nos em um mundo super globalizado, onde as evoluções das técnicas médicas se somam às crescentes necessidades da sociedade, nem sempre resultando em algo fácil ou simples de legislar (o que me faz questionar, algumas das vezes, se progresso é sempre sinônimo de evolução). No decorrer do tempo, os seres humanos acabam se deparando com grandes questões relacionadas à bioética, frutos exatamente de progressos científicos. Por exemplo, ainda hoje se discute sobre o direito de morrer versus a dignidade humana, sobre pesquisas acerca do DNA, manipulações genéticas, experimentos com seres humanos, aborto, drogas ilícitas para uso medicinal (1)... Uma infinidade de “problemas” éticos que

1 Centro de Direito Biomédico [email protected]



Faculdade

de

Direito

da

Universidade

de

Coimbra.

E-mail:

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nem sempre chegam a uma conclusão, geralmente por motivos sociais ou por imaturidade do próprio ordenamento. Dentre estes pontos de conflito há a problemática da infertilidade que, desde a antiguidade assola a vida conjugal e impede a continuidade de determinadas famílias. Ademais, por ser um tema extremamente delicado, que adentra a vida pessoal de muitos, gera, no mundo todo, discordância quanto uma possível regulamentação e quais os parâmetros para tanto.

A infertilidade e a reprodução humana Assim, a Reprodução Humana Assistida nasce como tábua de salvação para casais com problemas em se reproduzirem naturalmente. Segundo dados do Ministério da Saúde Português, atualmente a infertilidade é considerada um problema médico-social e representa a frustração em se reproduzir de 5% a 15% dos casais em idade fértil (2). Este número é confirmado por médicos brasileiros que dizem ainda que, desse percentual, 30% são por problemas femininos, outros 30% resultam de problemas masculinos, mais 30% ocorrem por fatores relacionados a ambos e, por fim, 10% são por motivos não identificados (3). Percebe-se, portanto, que, se antes a infertilidade era vista como um obstáculo intransponível entre o mesmo casal, desde o ano de 1978 com o nascimento do primeiro bebê de proveta do mundo, tornou-se um sofrimento com uma concreta e possível solução (4). Desta forma, reproduzir-se passa de um mero desejo de ter filhos para configurar parte integrante dos Direitos Reprodutivos do ser humano e, portanto, passível da tutela jurisdicional (5). Sobre este acesso às técnicas de reprodução assista - TRA como partes integrantes dos Direitos Reprodutivos, importante dizer que estes asseguram tanto o direito à reprodução quanto o direito a não reprodução, pois ter filhos é mais que um desejo, é uma livre escolha (6). Neste cenário, é completamente possível se dizer que, se a decisão por não ter filhos se estabelece a partir da liberdade de escolha associada à anticoncepção (seja por abstinência, cirurgias, meios químicos ou mesmo meios físicos), decidir por se reproduzir, da mesma maneira, configura-se como uma pretensão assegurada juridicamente (7).

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Linear histórico: Portugal X Brasil Sobre o assunto o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), em 1993, fez o Parecer 3/CNE/93 (8), trazendo as alterações legais ocorridas em Portugal como a razão de ser, bem como de aceitação das técnicas de reprodução humana. Nesta visão, com a autorização para o divórcio, em 1975, a sociedade teria condições de aceitar mais facilmente o fato de crianças serem criadas por apenas um dos pais ou até mesmo por responsáveis não biológicos (9). Porém, até que Portugal conseguisse normatizar efetivamente a questão da Reprodução Humana, fosse por encontrar fortes barreiras éticas, fosse por falta de consenso parlamentar e social, muitos debates ocorreram e muitos projetos de lei e decretos foram criados, mas, em seguida, vetados (10). Por fim, após um longo período, nasceu a Lei 32/2006, que podemos dizer ser inovadora especialmente na dimensão criminal, tipificando novos crimes com penas de prisão, de multa, penas acessórias e até mesmo sanções contra-ordenacionais (para delitos menos gravosos) (11). Outro ponto interessante é também bem sutil. O texto da Lei fala em dignidade humana diferentemente de outras que falam em dignidade da pessoa humana. Ao não mencionar a palavra “pessoa” pode-se dizer que a terminologia leva em consideração o estatuto jurídico do embrião (12). Composta por 48 artigos, a lei possui outras questões, para além destas, que são relevantes, porém, chama ainda mais a atenção a questão dos requisitos até então elencados para se tornar beneficiário. Este foi o principal motivo para levar a Lei nᵒ 32/2006 a 3 alterações ao longo de 10 anos. As atualizações da Lei ao longo de 2016, Lei nº 17/2016 e Lei nº 25/2016, foram as mais socialmente importantes, pois deram direitos a mulheres solteiras e dissertaram sobre a homossexualidade. A primeira, Lei nº 17/2016, determinou que casais heterossexuais, casais de mulheres ou mesmo mulheres solteiras pudessem utilizar dos métodos; A segunda permitiu a aplicação da Lei em situações de gestação de substituição previstas no artigo 8º

1021

e proibiu a discriminação com bases no patrimônio genético (13). Ou seja, ampliou-se o rol de beneficiários, conforme desejo social. Já a situação brasileira se mostra parecida com o início do percurso vivido por Portugal, ou seja, muita discussão e pouca ação. Ademais há alguns Projetos de Lei – PL que tentam normatizar especificamente a questão, mas que não saem do papel e uma variedade de leis esparsas que tratam com superficialidade o tema (14). Além dos inúmeros Projetos de Lei, o ordenamento brasileiro conta, ainda, com normas esparsas, como o artigo 226, §7ᵒ, da Constituição Federal, sobre planejamento familiar. Este é um direito universal fundamentado na regulação da fecundidade pelo Estado através de ações preventivas e educativas, objetivando-se, assim, garantir direitos igualitários na formação, aumento e, quando for o caso, limitação da prole por qualquer pessoa do casal ou por ambos (15). Não obstante, temos o artigo 1597, III, do Código Civil, que entende como filho concebido na constância do casamento aquele que for fruto de fecundação artificial homóloga, ainda que falecido o marido, ou, na hipótese de inseminação heteróloga, devendo haver, a seu turno, autorização prévia do falecido (art.1597, V); em seguida vem o artigo 1799, I, do mesmo Diploma, asseverando que podem suceder por testamento a prole eventual das pessoas que forem indicadas naquele documento, desde que estas estejam vivas quando da abertura da sucessão (16). Entretanto, por serem dispositivos superficiais, que pouco adentram o assunto, o Conselho da Justiça Federal tenta, por sua vez, preencher as lacunas existentes através de seus enunciados abaixo elencados. O Enunciado nᵒ 106 e nº 257, que se referem ao artigo 1597, III, do Código Civil, tentam minimizar e dar contornos mais firmes à Reprodução Humana, esclarecendo questões relativas à reprodução post mortem (17). O Enunciado nᵒ 40 trata do registro civil de crianças frutos de técnicas de reprodução medicamente assistida, afirmando, ainda, a possibilidade de se incluir pessoas do mesmo sexo como pais. Por fim, o Enunciado nᵒ 41, que tenta contornar uma desigualdade criada pela Resolução 2013/2013 do Conselho Federal de Medicina – CFM com relação às mulheres com mais de 50 anos e as técnicas de reprodução assistida. O Enunciado moderniza a

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questão afirmando que estabelecer um máximo etário para mulheres significa afrontar o direito constitucional à liberdade do planejamento familiar (18). Finalmente, têm-se as Resoluções do CFM, que oferecem um bom norte e uma boa base. As primeiras foram a Resolução 1358/92 – CFM e a Resolução 1958/92 (19). Após, veio a Resolução 1957/10 que revogou seu antecedente (20). A mais recente é a Resolução nº 2121/2015 (21), que revogou a até então vigente, Resolução 2013/2013 – CFM. Aquela dispõe não apenas sobre as técnicas de reprodução humana, como também determina o aperfeiçoamento das suas práticas e, em especial, a observância dos princípios básicos da bioética como forma de se obter maior efetividade e maior segurança. O grande problema permanece sendo a reprodução assistida post mortem, pois, nesta hipótese, deve-se recorrer ao judiciário para conseguir resolver a situação. Assim, é claro haver um aumento da judicialização nesta seara esperando-se que o Judiciário passe a preencher, a sua maneira, as lacunas existentes (22). Entretanto, isso acaba levando à insegurança jurídica e a decisões desformes, motivo pelo qual uma regulamentação específica para o caso se faz urgente.

Conclusão Pelo brevemente exposto, percebe-se que a Reprodução Humana é tema sensível e de grandes repercussões e, exatamente por isso, há um grande lapso temporal entre a produção de um Projeto de Lei e sua efetiva aprovação. Enquanto há algum tempo a infertilidade causava transtornos na vida conjugal, hoje, com os avanços da medicina, é possível dizer que a felicidade de se poder concretizar o desejo da procriação é garantida juridicamente, ainda que se verifique certo descompasso entre a evolução de um campo e o progresso de outro, qual seja a ciência e o direito, respectivamente. No caso português, demoraram-se décadas desde o nascimento do seu primeiro bebê de proveta e a aprovação da Lei 32/2006. Ainda assim, mesmo após anos de debates, a lei nasceu antiquada em relação ao cenário social e precisou ser diversas vezes atualizada. Já no Brasil, nota-se que, embora não haja uma lei específica para o caso, o ordenamento tende a permitir a Reprodução Humana. O problema se encontra no fato de

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precisar recorrer ao judiciário em alguns casos, como o post mortem, exatamente por não estar regulamentado. É tanta ausência de formalidade que o resultado é, especialmente, a insegurança jurídica e o aumento da judicialização da saúde.

Referências 1. RAPOSO, Vera Lúcia. Direitos Reprodutivos, Lex Medicinae, n.º 3, 2005. 2. MINISTÉRIO DA SAÚDE (PORTUGUÊS). Despacho nº 14788/2008. 3. CAMBIAGHI, Arnaldo Schizzi. Ser ou não ser fértil/infértil? - eis as questões e as respostas. 2ᵃ ed. São Paulo: LaVidapress, 2011. 4. WIKIPÉDIA. Bebé-proveta. .

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5. RAPOSO, Vera Lúcia. Direitos Reprodutivos, Lex Medicinae, n.º 3, 2005. 6. RAPOSO, Vera Lúcia. Direitos Reprodutivos, Lex Medicinae, n.º 3, 2005. 7. RAPOSO, Vera Lúcia. Direitos Reprodutivos, Lex Medicinae, n.º 3, 2005. 8. CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA. Relatório – Parecer Sobre Reprodução Medicamente Assistida (3/CNE/93). 9. CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA. Relatório – Parecer Sobre Reprodução Medicamente Assistida (3/CNE/93). 10. RAPOSO, Vera Lúcia. PEREIRA, André Dias. Primeiras Notas Sobre a Lei Portuguesa de Procriação Medicamente Assistida (Lei nᵒ 32/2006, de 26 de julho). Lex Medicinae, ano 3, n.º 6, 2006. 11. RAPOSO, Vera Lúcia. PEREIRA, André Dias. Primeiras Notas Sobre a Lei Portuguesa de Procriação Medicamente Assistida (Lei nᵒ 32/2006, de 26 de julho). Lex Medicinae, ano 3, n.º 6, 2006. 12. RAPOSO, Vera Lúcia. PEREIRA, André Dias. Primeiras Notas Sobre a Lei Portuguesa de Procriação Medicamente Assistida (Lei nᵒ 32/2006, de 26 de julho). Lex Medicinae, ano 3, n.º 6, 2006. 13. PGDL – Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa. Disponível .

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14. CRUZ, Ivelise Fonseca da. Efeitos da Reprodução Humana Assistida. São Paulo: SRS Editora, 2008. 15. BRASIL. Lei nº 9.263, de 12 de janeiro de .

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16. BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm >. 1024

17. DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Direito Médico. 3ᵃ ed. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2014. 18. DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Direito Médico. 3ᵃ ed. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2014. 19. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Artigo sobre a Resolução nᵒ 2121/2015. Disponível em: . 20. RAPOSO, Vera Lúcia. DANTAS, Eduardo. Aspectos Jurídicos da Reprodução PostMortem, em Perspectiva Comparada Brasil-Portugal. Lex Medicinae, ano 7, n.º 14, 2010. 21. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2121/2015. Disponível em: < www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2015/2121_2015.pdf >. 22. DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Direito Médico. 3ᵃ ed. Rio de Janeiro: GZ Ed., 2014.

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A Bioética, a produção e a omissão legislativa na 54ª e 55ª Legislaturas Swedenberger Barbosa1 Ivan Pricken de Bem2

RESUMO: Objetivo: O presente trabalho analisou as proposições legislativas sanitárias que iniciaram a tramitação entre os anos de 2011 e 2016, período correspondente a 54ª e a metade da 55ª Legislatura, a fim de evidenciar o posicionamento do Congresso Nacional frente as questões bioéticas. Metodologia: Os dados deste estudo foram obtidos por meio da análise de dados secundários disponíveis na base de dados do Observatório de Saúde no Legislativo. Resultados: Foram encontrados 44 projetos de lei que abordaram diversos assuntos do campo de estudo da bioética desde o aborto até células-tronco. Discussão: Percebe-se neste campo, que há uma grande omissão legislativa frente a essas questões que acabam sendo objeto de intensa atividade judicial. Conclusão: Para o avanço destas discussões no legislativo brasileiro, é essencial a estruturação e aprovação do Conselho Nacional de Bioética afim de garantir tranquilidade e dignidade humana aos cidadãos Palavras-chave: Bioética, Análise Legislativa, Poder Legislativo, Legislação como Assunto Introdução A Constituição Federal de 1988 garantiu, em seu texto, o direito fundamental à saúde a todos os brasileiros e estrangeiros regulares no país (1). Ao institucionalizar o Sistema Único de Saúde, a Carta Magna representou um marco para o campo da saúde brasileira ao universalizar o acesso a toda a população. Desde a edição da Constituição Cidadã, o Poder Público deve dispor sobre a regulamentação, a fiscalização e o controle das ações e dos serviços públicos de saúde, nos termos da lei. E assim, uma série de instrumentos normativos vêm sistematizando a estrutura e as práticas institucionais do sistema de saúde. Esse arcabouço normativo inclui amplos instrumentos jurídicos (emendas constitucionais, leis ordinárias, medidas provisórias, decretos e portarias) instituindo direitos, deveres e regras organizacionais e operacionais, no âmbito do sistema de prestação de serviços de saúde. O Poder Legislativo Federal, representado pelo Congresso Nacional, embora detentor do monopólio típico da produção legal no Brasil, deixa de legislar em importantes temas da saúde, principalmente naqueles assuntos que abarcam a ética e a moral da sociedade

1 2

Fundação Oswaldo Cruz- Brasília. E-mail: [email protected] Fundação Oswaldo Cruz- Brasília. E-mail: [email protected]

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brasileira. Volnei Garrafa, ao abordar este assunto (2), salienta que “a ética não é prioridade na Câmara dos Deputados. Temas que envolvem questões morais são muitas vezes evitadas por parlamentares que temem perder eleitores” e esta afirmação ganha ainda mais importância quando se constata que, a atual composição do Congresso Nacional (55ª Legislatura), se apresenta como a mais conservadora desde 1964 (3). Devido a omissão legislativa para esses assuntos, cabe destacar que a questão da bioética tem sido objeto de uma intensa atividade judicial, que amparada pelos parâmetros constitucionais e pela atual configuração legal, tem interpretado e se posicionado a respeito de temas como o aborto, a eutanásia ou o uso de células tronco-embrionárias de embriões humanos em pesquisas. Diante deste contexto, este trabalho analisou as proposições legislativas sanitárias que iniciaram a tramitação entre os anos de 2011 e 2016, período correspondente a 54ª e a metade da 55ª Legislatura, a fim de evidenciar o posicionamento do Congresso Nacional frente as questões bioéticas.

Metodologia O presente estudo possui cunho qualitativo-quantitativo de caráter descritivoexploratório a fim de compreender como se comporta a produção e execução das atividades legislativas no campo da bioética durante a 54ª e 55º legislatura (2011-2016). Gil (4) salienta que a pesquisa exploratória é desenvolvida no sentido de proporcionar uma visão geral acerca de determinado fato. Diante a pequena quantidade de pesquisas sobre o assunto, surge a necessidade de se reunir novos conhecimentos acerca do fenômeno da produção legislativa em saúde no Brasil. Os dados e subsídios para esta pesquisa foram obtidos por meio da análise de dados secundários disponíveis na base de dados do Observatório de Saúde no Legislativo (OSL). Os dados extraídos das bases do OSL são categorizados em 37 descritores referentes à saúde que classificam a natureza das propostas produzidas pelo Congresso Nacional. Para esta pesquisa, utilizou-se apenas a classificação de número quatro, correspondente ao campo da bioética. Foram analisados neste estudo os seguintes tipos de proposições legislativas: Projetos de Lei (PLS, PLC e PL), Propostas de Emenda à Constituição (PEC), Projetos de Lei Complementar (PLP) e Medidas Provisórias (MPV) de interesse ao campo da bioética,

1027

propostas entre janeiro de 2011 e dezembro de 2016, período correspondente à 54ª e 55ª Legislatura. Os dados foram sistematizados em matrizes no programa Microsoft Excel 2013 para posteriormente gerar análises e interpretações.

Resultados e Discussão A quantidade de projetos de lei apresentados durante o período pesquisado, toma a Bioética como objeto central de estudo, mas não esgota o tema de discussão com a totalidade de suas conexões. Embora não seja esse o objetivo do estudo, é preciso evidenciar que outras temáticas referentes a políticas públicas, em especial no campo das políticas sociais trazem no seu bojo elementos conexos com a bioética em sua dimensão de bioética global, de intervenção, de proteção e de outras categorias bioéticas que não serão objeto específico desse estudo. Essas

considerações

são

importantes

para

que

se

possa

dimensionar

adequadamente o estudo e sua resposta quantitativa. Ou seja, num primeiro olhar (tabela 1), poder-se-ia concluir, em virtude do volume de proposições, que os temas complexos e contemporâneos que envolvem a Bioética estariam bastante harmonizados com os conceitos morais e éticos da sociedade e que os poderes da República estão cumprindo adequadamente e de forma compartilhada e sem tensões, suas obrigações constitucionais. Isto justificaria um número relativamente pequeno de matérias para análise no Congresso Nacional e mais especificamente na Câmara dos Deputados, mas como se verá adiante, há outros fatores envolvidos.

Tabela 1- Projetos de Lei sobre Bioética (2011-2016) Aborto Transplante DNA Reprodução assistida Direitos do Paciente Pesquisa com Seres Humanos Células-tronco Outros Total

10 8 7 6 4 3 2 4 44

1028

Fonte: elaborado pelos autores a partir de dados do Observatório da Saúde no Legislativo

Para que se possa expor adequadamente a temática em discussão e estabelecer relações entre as propostas legislativas apresentadas com fatos que permeiam a temática da bioética em sua complexidade cotidiana, torna-se necessário: 1. Conhecer iniciativas do poder executivo frente aos temas bioéticos; 2. Exemplificar o papel do Poder Judiciário em decisões bioéticas; 3. Analisar o comportamento do Poder Legislativo frente aos projetos apresentados e aos demais poderes da República. O Brasil foi um dos 191 países que aprovaram a Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos (DUBDH) da UNESCO em 2005. Com uma participação decisiva na construção da Declaração, os representantes brasileiros contribuíram para ampliar a dimensão da bioética e consolidar uma nova visão epistemológica e aplicada da bioética. O resultado foi a inclusão na agenda bioética de pautas da sociedade e suas relações com os Direitos Humanos, como as questões sanitárias (acesso a saúde e novos medicamentos, por exemplo); questões sociais (pobreza, exclusão, vulnerabilidade) e questões ambientais (qualidade da água, respeito à biodiversidade). Superou-se dessa forma a agenda bioética biotecnológica e biomédica, exclusivamente. Com a aprovação do governo brasileiro, estudos foram realizados para que a implementação da DUBDH ocorresse em sintonia com as diretrizes e políticas governamentais, que deveriam adotar uma leitura bioética das políticas em curso. Dessa forma foi feito um cotejamento entre alguns órgãos do governo e as diretrizes e itens que compunham a Declaração (5). Os Ministérios da Saúde, Ciência e Tecnologia e a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República foram os ambientes escolhidos para esse estudo e seus resultados submetidos aos respectivos órgãos ministeriais (6).

Esta lacuna, passados sete anos do estudo, continua sendo um dos

obstáculos para que o Poder Executivo se insira mais fortemente nas pautas bioéticas de sua responsabilidade. Em relação ao Poder Judiciário, Vilardo (7), seleciona acórdãos em importante pesquisa sob o título: Decisões judiciais no campo da biotecnociência: a bioética como fonte de legitimação,

referentes a: 1) autorização de interrupção de gestação de

1029

feto anancéfalo; 2) pedido para imposição de procedimento médico de transfusão de sangue a pacienta Testemunha de Jeová que o recusa por crença religiosa; e 3) pedido para mudança de nome e de sexo de transexual com ou sem cirurgia de transgenitalização. Foram analisadas 84 decisões judidicias, proferidas mediante a aplicação dos Princípios da Bioética (7) em três Tribunais de Justiça (RJ, SP, RS). O propósito da autora (7) com a pesquisa documental foi obter “a compreensão dos conceitos do direito à vida, à liberdade, à privacidade e à saúde, em especial sob os aspectos bioéticos, que permitem sua harmonização com os usos sociais do direito em benefício dos indivíduos, respeitando os direitos da sociedade. ” Dentre suas conclusões, a pesquisadora afirma (7): “As hipóteses defendidas e confirmadas pela análise de dados coletados , indicam que o juiz, ao utilizar os quatro Princípios da Teoria Principialista , conta com metodologia coerente e segura para a decisão judicial em casos de bioética clínica, proferindo decisão de caráter liberal com a garantia dos direitos fundamentais do requerente, sem descuidar da repercussão social do que for decidido [...] Ao analisar o caso concreto e aplicar o caminho metodológico dos quatro Princípios--respeito a autonomia, nãomaleficência, beneficência e Justiça- o julgador realiza a análise de todas as circunstâncias dos fatos. (...) A justificativa a ser apresentada no julgamento de casos da bioética clínica, certamente transcende a lei, pois se previstas legalmente, os direitos previstos seriam concedidos imediatamente (grifo nosso) .

Ao defender as assertivas do poder judiciário, ainda assim, a autora constata (7): “Embora as leis sobre os temas polêmicos ainda não estejam claras o suficiente, há evidente avanço na interpretação das leis vigentes, com base na estrutura dos Princípios. Certo que é preciso avançar nos pensamentos e ideais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

Quanto ao Poder Legislativo, é plenamente justificável e se coaduna com o papel do legislador a apresentação de

diferentes proposições para serem transformadas em lei.

Afinal, continuam em aberto regras de conduta da sociedade, que, podem ser transformadas em códigos morais, mediante legislação infraconstitucional. Os projetos de lei apresentados são expressões legítimas de domínio público, e, portanto, sujeitos ao debate das ideias, no ambiente legislador e com a sociedade em geral. Ressalte-se que ao analisá-los, chama a atenção

que ali estão

presentes alguns

projetos em função de não haverem sido tratados no âmbito do poder executivo.

1030

Por vezes, a omissão, demora ou insuficiência das regras e definições que regulam a sociedade, conduzem de forma antecipada e questionável as pautas e decisões que são de competência dos outros dois poderes ao exclusivo posicionamento do poder judiciário. Em muitas ocasiões tratam-se de procedimentos para a gestão dos problemas, cuja competência é do poder executivo ou de interpretação legal quando da ausência de legislação temática, o que pode gerar conflitos entre os poderes. Na sequencia serão apresentados relatos de divergências e conflitos entre os poderes e por vezes, no interior deles. No caso da interrupção da gravidez, hoje no Brasil, escorada em legislação penal (código penal, arts 124 a 128) e em legislações recentes (como a lei 12.845/2013, que “dispõe sobre o atendimento obrigatório e integral às vítimas de violência sexual”), os projetos de lei apresentados e relacionados nesta pesquisa, são opostos e, portanto, excludentes. De um lado propõe-se

sua revogação completa (PL 6033/2013, de autoria

do Ex dep. Eduardo Cunha e PL 6055, do dep. Pastor Eurico) e de outro é apresentada a proposta de incluir nos programas sociais e financeiros do governo, programa específico de apoio à mulher e a adolescente, no caso de gravidez oriunda de estupro e nos casos de comprovada má formação do feto. Relevante destacar que no período das legislaturas a que se refere o presente estudo (54ª e 55ª), há apenas uma proposição legislativa (PL 7977/ 2014, do dep. Jovair Arantes, que “destina recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e TecnológicoFNDCT para apoiar pesquisas científicas, inclusive com células-tronco, visando a cura de doenças neurodegenerativas. Considerando que o Brasil é um dos países que destina um menor volume de recursos para a Ciência, Tecnologia e Inovação, a ausência de proposições nessa área é sem dúvida um dado preocupante, afinal, a 2ª Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia em Saúde (CNCTIS) realizada em 2004, aprovou uma Política que resultou numa Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde , com 24 sub agendas, entre elas a pesquisa clínica e as questões bioéticas. No caso das Pesquisas com Seres Humanos, especialmente a Pesquisa Clinica, o PLS 200/2015 de autoria conjunta dos senadores Ana Amélia /RS, Walter Pinheiro/BA e Waldemir Moka/MS, introduzem mudanças substantivas na legislação atual brasileira e nos seus fóruns decisórios. No campo

administrativo, questiona o Sistema CEP/CONEP

(Comissão Nacional de Pesquisas em Seres Humanos), órgão central e regulador das

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pesquisas clinicas no país, da esfera do Controle Social do SUS (Conselho Nacional de Saúde, Resolução 466/2012), para uma Agência reguladora (ANVISA). Do ponto de vista da justificativa política, isto visa ”facilitar e agilizar” as pesquisas. Tais argumentos foram devidamente contestados em parecer do Conselho Nacional de Saúde (8), cujo teor transcreve-se parcialmente: “O PL, além de tentar extinguir o atual sistema de análise ética, coloca em risco os direitos dos participantes de pesquisa conquistados nas últimas duas décadas, ao longo da história do Sistema CEP/CONEP e do Conselho Nacional de Saúde. Também retira dos brasileiros o controle social das pesquisas que acontecem no país. Trata-se de retrocesso sem precedentes que, em última análise, prejudica a sociedade brasileira [...] aprovação do PL nº 200/2015 será um retrocesso no processo de análise ética em pesquisa no país. Quem perde: a sociedade, que deixa de ter o controle social da pesquisa no Brasil; os pesquisadores, que passam a ser obrigatoriamente corresponsáveis pela indenização de danos decorrentes da pesquisa; e, sobretudo, os participantes da pesquisa, cujos direitos serão diminuídos drasticamente, além de ficarem à mercê de experimentos sem uma adequada análise ética.”

Aprovado no Senado em 15/02/2017, o PLS 200/2015 encontra-se atualmente na Câmara dos Deputados sob o nº 7082/2017, tendo como relator o dep. Afonso Mota/RS. Na pauta bioética dentro do Congresso Nacional, outros temas como a Reprodução Assistida, Transplantes, DNA, Direitos dos Paciente, têm sido objeto de preocupação dos parlamentares. Necessário se faz, realizar um cotejamento das pautas que dependem dos diferentes poderes, para que se evite ao máximo decisões por conveniências políticas, em geral relacionadas a interesses comerciais, que presidam a solução de problemas emergentes e persistentes, que integram a Bioética de Intervenção, sem a devida participação da sociedade. A insegurança e divergência entre os poderes da República para decisões e encaminhamentos de temas bioéticos complexos ocorrem cotidianamente no país. O exemplo citado a seguir ilustra esta afirmação. Em novembro de 2016, a 1ª Turma do STF decidiu, em um processo-HABEAS CORPUS 124.306-RJ (9) em que cinco pessoas foram presas em uma clínica de aborto em Duque de Caxias/RJ, o aborto até o terceiro mês de gravidez não é crime. Em 7 de março de 2017, o PSOL protocolou uma ação no STF na qual pede a descriminalização do aborto por parte das gestantes que tenham até três meses de gravidez e argumenta que impedir a interrupção das gestações viola princípios fundamentais das mulheres. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental

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(ADPF), o PSOL pede que seja concedida uma liminar para suspender prisões em flagrante, inquéritos policiais e andamento de processos ou efeitos de decisões judiciais que pretendam aplicar ou tenham aplicado os artigos do Código Penal a casos de interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez. Solicita ainda que o STF reconheça o direito constitucional das mulheres de interromper a gestação e dos profissionais de saúde de realizar o procedimento. Na sequência a ministra do STF Rosa Weber, solicitou manifestação sobre o tema ao Governo Federal, à CD e Senado. Do governo, através da AGU, a ministra recebeu o seguinte posicionamento (10) (11): “Quando se discutem temas essenciais ao funcionamento de um regime democrático, como o dos direitos fundamentais no caso dos autos, o direito à vida-, tem-se que esses temas não podem ser subtraídos do Poder competente que representa toda a sociedade, qual seja, o Poder Legislativo”. Também afirma o Parecer da AGU” está posto um desacordo moral razoável, porque não há consenso entre as concepções morais, filosóficas e, até, religiosas dos indivíduos, da sociedade ao tratar do tema em debate.” Por sua vez, a Câmara dos Deputados, através de seu presidente Rodrigo Maia, além de se pronunciar fortemente contra a decisão do STF, e em sua em sua manifestação àquela Corte ( ofício n.330/SGM/P2017, de 20 de abril de 2017) ,afirma que mudanças na legislação do aborto deveriam passar pelo crivo do legislativo. A reação do Presidente da Câmara à consulta realizada, desnuda uma situação peculiar: Aquele poder se omite na necessária e urgente aprovação de leis que possam estabelecer mais luz aos controversos temas bioéticos, ao tempo em que reage aos demais poderes, em especial ao Poder Judiciário pela sua “intromissão” na sua esfera de poder. Por sua vez, o Poder Judiciário, ao ser provocado a se pronunciar e não tendo lei ofertada pelo Legislativo, opta por uma interpretação liberal ou conservadora do julgador, utilizando-se de seu próprio código moral e de referências legais que emolduram os temas, como o previsto nos Código Civil, Penal entre outros.

Uma Saída Legislativa para o avanço das discussões dos assuntos bioéticos no Brasil Em sintonia com a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, aprovada por unanimidade dos 191 países componentes da

UNESCO, o governo

brasileiro apresentou um Projeto de Lei ao Congresso Nacional (PL6032/2005), que trata 1033

da criação do Conselho Nacional de Bioética, como órgão colegiado de assessoramento ao presidente da República sobre questões éticas decorrentes da prática em saúde de avanços científicos e tecnológicos no campo da biologia, da medicina e da saúde, e das situações que ponham em risco a vida humana e o equilíbrio do meio ambiente. Baseado em experiências de diversos países, como EUA, França, Portugal, Itália e Canadá, que têm suas comissões nacionais instituídos por lei e criados como órgãos de estado. Em sua Exposição de Motivos ao Presidente da República (EM 00053/MS, de 25/07/2005), propondo a criação do Conselho, o Ministro da Saúde explica que: “Em linhas gerais, o Conselho consiste em uma instância de referência para análise e discussão de temas da Bioética. Apesar de não ter função normativa nem formuladora de políticas, tem como atribuição atuar como balizador moral ao dar visibilidade e enunciar corretamente questões de difícil compreensão tanto para a sociedade como para os governantes e o país, revelando toda a complexidade de seus efeitos e implicações”.

E defende a composição que deve ter o Conselho: “A composição do Conselho busca a criação de um ambiente favorável ao diálogo, no qual haja uma permanente situação em que diferentes setores reúnam-se em torno de um tema relevante de Bioética, de modo a resolver dilemas atuais ou prevenir danos futuros. Para que isso ocorra, o conselho deve ter uma composição que observe a multidisciplinaridade, a diversidade de gênero e de etnia. Na busca de garantia do equilíbrio entre as diversas áreas do conhecimento, considerando-se como foco o desenvolvimento científico e tecnológico, os assentos foram divididos entre os saberes.” Em seu artigo 2º , o PL 6032/2005 trata das competências do Conselho. São especialmente importantes pela discussão até aqui realizada os seu incisos II, III e IV , a saber:

“II-emitir pareceres sobre implicações morais e éticas de questões emergentes e persistentes que tenham ou possam vir a ter impacto na vida humana, na qualidade de vida, no meio ambiente e na pluralidade étnica, religiosa e cultural; III-emitir parecer sobre questões morais e éticas específicas suscitadas pelo desenvolvimento da ciência e tecnologia; IV-emitir pareceres, relatórios e elaborar estudos sobre temas que lhe forem submetidos. ” Importante registrar que em seu art 5º, estão expressamente nominadas as autoridades as quais o CNBioética deveria responder as consultas formulada, além do

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Presidente da República; o Presidente da Câmara dos Deputados; o Presidente do Senado Federal; o Presidente do Supremo Tribunal Federal; O Procurador Geral da República; e o Advogado Geral da União. Além disso, também o artigo trata da forma em que o CNBioética pode ser acionado por cidadãos e entidades da sociedade civil ampliando assim o debate de idéias em torno de discussões tão importantes para a saúde pública.

Considerações Finais Os elementos selecionados por este estudo, tornam imperioso o estabelecimento de um ambiente moderador e qualificado para subsidiar o posicionamento equilibrado dos diferentes poderes da República nas temáticas bioéticas complexas e cotidianas. hipertrofia do poder judiciário em sua participação nessas pautas, ocorrem no

A

vácuo

deixado pelos demais poderes, em especial o Legislativo. Dessa forma, propõe-se a retomada da discussão, com a devida e urgente aprovação legislativa do Conselho Nacional de Bioética. Como já aqui demonstrado, a urgência, pertinência e atualidade do Brasil constituir um colegiado como previsto no Projeto de lei, contribuirá parmediações e discussões mais consistentes, plural e que expressem as moralidades e a ética da sociedade brasileira e suas diversidades. Certamente o Conselho proposto reforçará o Estado brasileiro, inclusive diminuindo distâncias entre os poderes e garantindo mais tranquilidade e dignidade humana aos seus cidadãos.

Referências

1. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil, 8 de outubro de 1988.Brasília: Senado Federal, 2008. 2. Núcleo de Estudos sobre Bioética e Diplomacia em Saúde. Criação do Conselho Nacional de Bioética aguarda aprovação no Congresso há sete anos. Brasília, 2013. Disponível em: http://bioeticaediplomacia.org/en/criacao-do-conselho-nacional-debioetica-aguarda-aprovacao-no-congresso-ha-sete-anos/ [Acesso em 20.set.2017] 3. Valor Economico. Nova composição do Congresso é a mais conservadora desde 1964. São Paulo, 2015. Disponível em:

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http://www.valor.com.br/politica/3843910/nova-composicao-do-congresso-e-maisconservadora-desde-1964 [Acesso em: 20.set.2017] 4. Gil, A. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. 175p. 5. UNESCO, Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Tradução: Cátedra Unesco de Bioética da UNB. Disponível em : www.bioetica.catedraUNESCO.unb.br 6. 6-Barbosa, S.N. A Bioética no Estado Brasileiro: situação atual e perspectivas futuras. Editora Unb, 2010 7. 7-Vilardo, Maria Aglaé Tedesco. Decisões judiciais no campo da biotecnologia: a bioética como fonte de legitimação. Tese doutorado UERJ, IMS, 2014 8. 8- CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE/CONEP, PLS 200/2015. Disponivel conselho.saude.gov[Acesso em : 08.out2017]

em

9. 9- HABEAS CORPUS 124.306 RIO DE JANEIRO. Noticias STF.stf.jus.br, 29.nov2016 10. 10- AGU defende que debate sobre aborto deve ser no legislativo. Jornal O Globo. https:oglobo.oglobo.com > Sociedade. 10 de abr de 2017 11. 11-Governo diz ao STF que cabe ao legislativo discutir aborto. Associação dos Advogados de S.Paulo. www.aassp.org.br. Clipping eletrônico. Noticias do dia , terça feira ,11 de abril de 2017

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Narrativa feminina sobre o aborto: estratégias do cuidar de si em contexto popular Deusy Elly Vieira de Almeida1 Sílvia Maria Ferreira Guimarães Jéssica de Souza Lopes de França

RESUMO: Esse artigo aborda a prática de aborto em contexto popular. Foi utilizado o método biográfico, o qual problematiza a relação entre o indivíduo e o contexto social e histórico em que está inserido. O objetivo não é apresentar dados representativos sobre mulheres que abortam, mas por meio de um relato biográfico obter as interpretações que a entrevistada faz sobre a sua própria experiência como explicação para um comportamento social, o qual é conflituoso e contraditório. Conclui–se que a prática do aborto é usado como uma forma de cuidado e deveriam realizá-la de maneira menos arriscada para as vidas dessas mulheres e sem a imposição social que cria pecadoras e criminosas, como ficam sendo apontadas pela sociedade. Palavras-chave: Aborto Induzido, Saúde da Mulher, Saúde Pública.

Introdução Este trabalho discutiu a história de vida de uma mulher que utilizou da prática abortiva como uma estratégia de cuidado em um contexto de violência. Baseado na narrativa de Helena sobre a história de sua vida, discute a experiência singular de determinada mulher, cidadã brasileira, sobre os processos e contextos que a levaram a fazer o aborto. Estudos (1) apontam para o fato de o aborto ser um problema de saúde pública, ignorado pelo multifacetado Estado brasileiro, o qual não se preocupa em lidar com um evento tão expressivo e com grandes repercussões para a saúde da mulher. O artigo de Diniz e Medeiros (2) referente aos resultados alcançados na Pesquisa Nacional sobre o Aborto revelou que, ao longo da vida reprodutiva, uma em cada cinco mulheres já fez um aborto. Segundo Anjos et. al. (3), no Brasil, foram implementadas políticas públicas que tratam da saúde reprodutiva e sexual da mulher, o que foi um avanço. No entanto, essas políticas acabaram acontecendo em contextos moralizadores que restringem a autonomia da mulher em decisões referentes ao seu cuidado. Além disso, marcadores sociais da diferença como gênero, cor da pele, ocupação dentre outros, os quais estigmatizam pessoas e grupos sociais, revelam que, no contexto da saúde, a pertença social apresenta 1

Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

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um peso determinante no acesso a políticas e serviços de saúde (4). De acordo com Giffin e Costa (5) abortar em condições desfavoráveis, especialmente para mulheres pobres, negras e com baixo grau de escolaridade, é uma violação dos direitos humanos. Configura-se em uma injustiça social que insere essas mulheres em contexto de desigualdade em saúde. Em tais condições de desigualdade social ampliam-se as dificuldades de acesso à informação e tecnologias em saúde. Além disso, o aborto realizado de maneira insegura e na ilegalidade, como acontece no Brasil, eleva a morbimortalidade da mulher. No Brasil, a violência é outra realidade onde as mulheres se encontram, especialmente, a violência de gênero, isto é, agressões dirigidas às mulheres pelo fato de serem mulheres (6). Segundo Gomes (7), vários estudos apontam que, ao longo do ciclo de vida da mulher, da infância à velhice, há mecanismos sutis de controle e colonização do corpo e da vida feminina além da violência explícita. Esses mecanismos e demais atos de violência pretendem manter a hierarquia de gênero e o controle do masculino e do patriarcado. Há uma ordem simbólica coletiva que perpetua esse cenário de dominação e violência. Helena está imersa nessa ordem simbólica, da sua infância a sua vida adulta. Mesmo assim, há momentos em que ela subverte tal situação criando estratégias de cuidar de si. Nos termos de Foucault (8), o ato de cuidar de si configura-se como micro-resistências que são efetivadas quando pessoas estigmatizadas, que vivenciam na sua vida cotidiana ações que pretendem dominar, regular e higienizar suas condutas, corpos e subjetividades, passam a assumir o cuidado de si, subvertendo as ações que lhe são impostas.

Contornos metodológicos Este trabalho está baseado na história de vida de uma mulher que tem, hoje, 45 anos, denominada neste artigo de Helena, nome fictício usado para preservá-la. Moradora da cidade de Taguatinga, Distrito Federal. O relato de sua história de vida aconteceu sendo orientado pela discussão do aborto que vivenciou. Desse modo, foi possível observar sua narrativa sendo construída por momentos que faziam sentido ao evento do aborto. Portanto, foi feito o uso do método biográfico, o qual problematiza a relação entre o indivíduo e o contexto social e histórico em que está inserido. Segue a abordagem de Goldenberg (9) sobre esse método, que afirma ser cada vida singular e, ao mesmo tempo, a expressão da história pessoal e social. Assim, a história de vida é representativa de seu

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tempo, seu lugar, seu grupo social e apresenta os condicionantes dos contextos estruturais. O objetivo deste trabalho não é apresentar dados representativos sobre mulheres que abortam, mas por meio de um relato biográfico ter as interpretações que Helena faz sobre a sua própria experiência como explicação para um comportamento social, o qual é conflituoso e contraditório. Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa que pretende analisar, por meio de uma biografia, como essa mulher representa o seu mundo e vivencia contextos sociais e econômicos estruturantes (10). Trilhando e compreendendo a vida de Helena Helena se define como parda, teve três filhos, duas mulheres e um homem, e fez um aborto, é empregada doméstica, vive de aluguel na cidade de Taguatinga, localizada no Distrito Federal. Família para ela é promessa de Deus na vida, ter filhos e marido significa ter companhia. Os filhos, também, significam cuidado na velhice. Ter filhos é entendido no plural, não se trata de ter um único filho, mas um número significativo que a insira em um contexto de conforto emocional e econômico. Corossacz (11) encontrou concepções distintas sobre ter filhos e a reprodução entre a classe de médicos/médicas e as mulheres de camadas populares, nos anos 2000. A intenção da autora com essa pesquisa era compreender a lógica que reveste ideias como reprodução e sexualidade, ela percebeu que a noção de planejamento familiar da classe média e alta não é a mesma usada por pessoas de classe popular. De acordo com ela ter marido está relacionado à companhia e ao amor, mas que são relativizados quando o mesmo começa a ser fonte de angustia, desentendimento e, assim, o fim do casamento é alternativa usada. Foi isso que Helena fez com seu primeiro marido, quando realizou o aborto. A situação de violência que se encontrava levou-a a fazer um aborto e a se separar. Por conseguinte, nesses contextos de bairros pobres, urbanos são evidentes a centralidade da mãe na família e a instabilidade conjugal. A independência da mãe a torna a chefe da família enquanto o homem circula. Nos termos de Souza e Ros (13) as mulheres mantêm o marido em casa quando ele ajuda no sustento da casa e das crianças. Independentemente de ter ou não um companheiro, caso necessitem, elas acionam suas redes de relações quando passam necessidade. A garantia e investimento dessas mulheres acontecem com os filhos, pois, quando esses crescem, elas ficam independentes dos maridos e dependentes dos filhos. Helena, era muito afgredida pelo o pai e aos 12 anos, começou a estudar a noite para trabalhar durante todo o dia para tentar evitar um pouco dessa violência doméstica. Um

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pouco do dinheiro que recebia dava para mãe e o outro comprava material escolar e sandália para usar. Morou em Figueirópolis até os 15 anos e depois fugiu de casa e veio para Brasília. A fuga se deu porque seu pai era “muito ignorante” e batia nos filhos amarrados. A irmã de uma amiga que morava em Brasília, no Distrito Federal, a chamou para vir morar com ela. As duas tinham planos de “trabalhar em casa de família”. Fugiu sem documento, com a roupa do corpo e levou somente uma muda de roupa dentro de uma sacola. Marca, essa primeira etapa da vida de Helena, a situação de violência paterna e a lógica de trabalho que não mais a insere em processos de socialização e aprendizado com a mãe, o que permitia vivenciar ofícios ao lado de sua mãe. Ao chegar em Brasília, foi morar na casa da irmã da amiga, em Taguatinga, e, em seguida, foi “trabalhar em casa de família”, em um bairro nobre de Brasília, o Lago Sul. Ao longo desse período, Helena trabalhara em tais condições precárias, sem direitos trabalhistas e sujeita as regras dos patrões. Iniciou o ciclo menstrual aos 14 anos, quando a vizinha de, aproximadamente, 32 anos explicou como era o processo. Essa rede de solidariedade feminina é a principal fonte de apoio de Helena com relação a várias questões da sua vida, saúde sexual, reprodutiva, questões trabalhistas etc. Ouviu falar de aborto pela primeira vez depois que chegou à Brasília. Isso aconteceu quando tinha entre 17 e 18 anos de idade em ambiente escolar. Ouviu relato das amigas que fizeram vários abortos. Na escola, não havia qualquer tipo de discussão sobre educação sexual, prevenção à gravidez ou doenças sexualmente transmissíveis. Entendia que atraso da “regra”, na menstruação, era causa de “abortamento”, ou seja, todo atraso requeria tomar remédio para “fazer a menstruação descer”. No entanto, havia um tempo para isso ser definido como “abortar” ou “fazer a regra descer”. Quando a barriga já está aparecendo e começam os sintomas da gravidez, a partir de dois meses de atraso da menstruação, e a pessoa toma um remédio, está sendo feito um aborto. Se uma pessoa for tomar um chá para descer a regra, após cinco ou dez dias de atraso, trata-se de um procedimento relativo à menstruação, ainda não se trata de gravidez. Motta (14) encontrou em Florianópolis um jogo determinando o que é aborto ou “fazer descer a regra” a depender de redes morais diversas e das pessoas que são acusadas de abortar, a temporalidade tem pouca importância. Helena transita por essa diferenciação de “fazer a regra descer” e “fazer um aborto”. Para ela, que vivenciou um aborto, define tal situação a partir da perspectiva de ter a certeza de que estava grávida e de estar fazendo um aborto, ela não se utiliza de uma regra moral que poderia afirmar que

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ela “fez a regra descer” e não o aborto. No discurso de Helena, a situação do aborto foi clara na entrevista. No entanto, cabe enfatizar que ela nunca comentou com ninguém sobre isso, nem mesmo com os seus filhos. Ter vivenciado o procedimento do aborto, fez Helena experimentar um sentimento de culpa, de silenciamento e vergonha, pois socialmente, especialmente em contextos religiosos, moralizantes de condutas, trata-se de uma prática onde a mulher é culpabilizada e criminalizada. Helena não escapou desses sentimentos. O primeiro relacionamento, o qual manteve relação sexual, acontecera aos 16 anos. Usara anticoncepcional para prevenir a gravidez, aprendeu com o namorado, que o comprava na farmácia e dava para que ela tomasse. Não havia preocupação em se prevenir de qualquer doença sexualmente transmissível, mas somente em evitar gravidez. O primeiro marido o conheceu aos 19 anos em um ônibus, ele era cobrador do mesmo. Casou-se nesse tempo, o que significou ir morar junto, queria ter sua própria casa, estava cansada de viver na casa das famílias onde trabalhava e morava. Foram viver na cidade de Ceilândia quando Helena ficou sem trabalhar, não por uma decisão sua, mas por imposição do companheiro. No início, era um relacionamento bom, “tirando o ciúme doentio” do parceiro que não a deixava sair na rua, trabalhar ou estudar. Mas, essa situação que parecia de normalidade para Helena, tornou-se insustentável quando engravidou. No início, Helena tomava anticoncepcional para evitar a gravidez. Quando decidiram ter o primeiro filho, Helena suspendeu o uso do remédio. Após 8 meses, conseguiu engravidar. Teve o primeiro filho aos 22 anos. Ela continuava sem trabalhar, ficava em casa, cuidando da filha. Depois de casada, descobriu que o marido era usuário de drogas. Depois do nascimento da criança e com o vício das drogas, o marido ficou mais violento e piorou o relacionamento. Quando sua filha tinha dois meses, Helena levou um tapa na cara do seu companheiro que a fez desmaiar, a criança teve que ser acolhida pela vizinha. Mais uma vez, essa rede feminina de apoio é acionada como fonte de cuidado. O comportamento agressivo estava cada vez mais evidente. Helena passou a tomar anticoncepcional injetável escondido do marido, pois ele não queria que ela evitasse a gravidez e ameaçava lhe bater se ela o fizesse. No início, o casamento foi uma estratégia de modificar a situação que se encontrava, vivendo e trabalhando na casa de família, ela queria ter sua casa e sua família. No entanto, a violência do marido passou a ser insustentável e Helena passou a criar estratégias para lidar com a situação, evitar a gravidez foi uma dessas. Inserida nesse contexto de violência, insustentável, cedendo a

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esse controle, Helena ficou um tempo sem tomar medicamento e engravidou do segundo filho. Descobriu a gravidez depois de dois meses com o atraso da menstruação e o começo de enjôo. Não contou para o companheiro. Conversou com uma amiga que já havia realizado um procedimento abortivo. Essa lhe ensinou como fazer, assim, ela optou por realizar o aborto. Utilizou buchinha paulista, conhecida cientificamente como Luffa operculata. Explicou que a buchinha por “parecer com uma bucha vegetal bem pequena”, deve ser partida em quatro partes e todo dia a noite, deve-se fazer o chá de uma parte e tomá-lo. Havia outras opções para o aborto como usar ervas como arruda queimada com pinga ou cominho queimado com pinga. A decisão por fazer o aborto veio da vida conturbada e violenta que tinha com o companheiro e, também, do medo de ter uma nova criança que ficaria aos cuidados somente dela, sem a participação do companheiro somada à violência do mesmo, assim, decidiu abortar. Contou somente para a amiga que indicou o método abortivo. Helena passou a tomar o chá antes de o companheiro chegar em casa e o escondia. Aos poucos, Helena foi sentindo um mal estar, enjôo, ânsia de vômito, enquanto não vomitava não melhorava. Helena explicou que o medicamento causa aborto em animal e pode levar a morte, algumas pessoas tomam uma única dose, mas ela optou por tomar em quatro partes por medo. Não foi uma decisão fácil, mas, naquele momento e circunstância, foi a única alternativa que encontrou. No terceiro dia, começou a sangrar e foi para o hospital, onde o médico explicou que ela estava com início de aborto. O médico questionou se havia sido induzido ou espontâneo, ela relatou que teria sido espontâneo. Atenderam-na rápido, fizeram um curetagem, uma raspagem uterina. Aplicaram-lhe uma anestesia, fazendo-a adormecer e, quando acordou, já havia passado pelo procedimento. Os médicos vieram conversar com ela sobre o processo que tinha acontecido, mas sem explicar detalhes. Não falaram de planejamento familiar, somente perguntaram novamente se o aborto tinha sido espontâneo ou provocado, e ela reiterou que foi espontâneo. Ficou um dia e uma noite no hospital, recebendo soro e teve alta. Helena separou do marido três anos após esse evento. Desde então, Helena deu continuidade a sua vida criando sua filha sozinha e sem contato com seu ex-marido. Sobre o aborto, após 20 anos, Helena afirma que ainda sente um peso na consciência enorme por ter tirado uma vida, mas não houve escolha naquele momento. Quando as pessoas perguntam, prefere não contar, pois não se sente a vontade. Quando alguém conversa ou pergunta sobre procedimentos para abortar, ela prefere não se manifestar sobre como

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fazer o procedimento, pois não concorda com a opção de aborto e acredita que seja um pecado. Ao que parece, esse aspecto moral se amplia diante da percepção que Helena tem sobre o significado de ter filhos, que é cuidado, respeito e amor na velhice. No entanto, ao mesmo tempo em que há uma questão moral, imputada pela sociedade e comunidade religiosa que culpa Helena e a faz se sentir dessa maneira, ela está ciente que foi o mais adequado para ela naquele momento, não havia alternativa, diante do contexto de violência, privação e controle do marido sobre sua vida. Em vários momentos da vida de Helena, a principal estratégia de cuidado utilizada foi acionar a rede de apoio feminina para subverter a situação extrema que se encontrava. É possível perceber essa rede como uma configuração criada em contexto popular de atenção ao cuidado onde essas mulheres, amigas, vizinhas e familiares, se colocam acima de estigmas e imposições religiosas e criam estratégias de cuidado, terapêuticas e tecnologias que permitem a elas cuidarem de si. Plantas, rezas, alimentos, convivialidade e muita prosa fazem parte desde arsenal de cuidado. Helena não pensou em fazer o procedimento no hospital ou em qualquer outro serviço de saúde, pois sabia que era crime. Assim, utilizou do método que achava mais fácil, barato e que ela tinha acesso. Evitou contar para as pessoas, pois sabia que era visto como um pecado muito grande e não queria ser julgada. Pensava em não ter mais filhos. Depois da separação decidiu criar a filha sozinha, pois ele não tinha condições de criar a filha e ela não o aceitava mais. Não tinha mais o plano de ter uma família, um companheiro e mais filhos. O sonho acabou. No entanto, dois anos depois, Helena se juntou com um novo parceiro que havia conhecido em uma saída a noite por intermédio de uma amiga. Continuava a tomar anticoncepcional, pois tinha muito medo de passar por tudo novamente e não tinha mais o sonho de ter uma família. No entanto, após algum tempo de convivência, decidiu realizar o desejo do companheiro de ter uma criança, pois ele não tinha nenhum filho. Depois do nascimento da segunda filha, Helena começou a ter um casamento conturbado, havendo situações de agressões verbais e físicas novamente. Eles terminaram o relacionamento, no entanto, mesmo separados, eles continuavam a se encontrar casualmente. Nesses encontros, Helena engravidou do terceiro filho. A criança foi rejeitada pelo pai, o qual quis que Helena fizesse uso do medicamento cytotec para abortar, mas ela não quis repetir o que havia vivido, teve medo de morrer e decidiu assumir sozinha a maternidade. Sem condições para criar o filho mais novo, Helena teve a proposta de adoção por um casal de médicos pediatras indicado por uma assistente social

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do hospital do Paranoá que trabalhava com adoção de crianças. Após alguns encontros com a assistente e a necessidade de ter certeza, Helena deu seu filho com 8 meses. No entanto, após 2 meses, Helena recebeu a ligação dos pais adotivos, os quais queriam devolver a criança pois haviam encontrado uma criança filha de uma idosa, viúva, que queria dar o filho para adoção. Helena, então, resolveu enfrentar as dificuldades e criar o filho, pois acreditou ser um sinal a devolução do filho para ela. Conclusão Aos 45 anos, a vida de Helena segue com seus filhos e companheiro. Ter realizado o aborto é um evento que Helena prefere não mencionar. Narrando, hoje, sobre sua vida e seu passado, Helena vê o aborto como um pecado imperdoável, assim, para ela, quando você o faz, carregará um peso na consciência pelo resto da vida. Mas, ao mesmo tempo, Helena reconhece as circunstâncias que a levaram a fazer. Não lhe ter sido permitido tomar anticoncepcional, participar da decisão de ter filhos, de poder sair de casa, trabalhar, estudar, além de sofrer violência física e psicológica foram ações vividas por Helena em suas vidas conjugais. Esses fatos retratam o contexto de violência de gênero que pautou suas relações. Para evitar ou sanar essa violência, Helena procurou fazer circular seus relacionamentos e acionava a rede de cuidado feminina criada em contexto popular, pois as vizinhas cuidavam de seus filhos, de sua saúde e de sua segurança quando Helena precisava. O aborto foi outro mecanismo usado para lidar com essa situação de violência sobre seu corpo, sobre a escolha de ter ou não filhos que lhe foi retirada pelo companheiro. A prática de aborto não deve ser analisada como um serviço a ser consumido nem como um evento religioso ou um pecado imperdoável, mas deve ser analisado como uma prática de cuidado passível de ser utilizada nos serviços públicos por mulheres como Helena. Inseridas em contextos de desigualdade em saúde e violência doméstica e de gênero, ter acesso a serviços e tecnologias de saúde que permitam a essas mulheres cuidarem de si deve ser uma preocupação dos órgãos governamentais. As conseqüências do aborto de Helena estão em sua história e na de várias outras mulheres que vivem situações semelhantes. Elas acionam essa prática como uma forma de cuidado e deveriam realizá-la de maneira menos arriscada para suas vidas e sem a imposição social de serem pecadoras e/ou criminosas, como são apontadas essas mulheres.

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Referências 1. LEAL, O.F. “Levante a mão aqui quem nunca tirou criança!”: revisitando dados etnográficos sobre a disseminação de práticas abortivas em populações de baixarenda no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 17(7):1689-1697, 2012. 2. DINIZ, D. E MEDEIROS, M. 2012. Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna. Ciência e Saúde Coletiva, 15 (1): 959-966. 3. ANJOS, K. et al. 2013. Aborto e saúde pública no Brasil: reflexões sob a perspectiva dos direitos humanos. Saúde em Debate, RJ, v.37, n. 98, p. 504-515, jul/set. 4. LEANDRO, M. E. 2010. Teias da Saúde: desigualdades de saúde, saúde das desigualdades. In: BESSERMAN, H. (org.) Saúde e direitos humanos. RJ:Ministério da Saúde. Fundação Oswaldo Cruz, Grupo Direitos Humanos e Saúde, Ano 7, n. 7. 5. GIFFIN, K., and COSTA, SH., orgs. Questões da saúde reprodutiva [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1999. 468 p. ISBN 85-85676-61-2. Available from SciELO Books 6. SCHRAIBER, L.B. e D’OLIVEIRA, A. F. Violência contra mulheres: interfaces com a saúde. Interface – Comunicação, Saúde, Educação, 3(5): 11-26, 1999. 7. GOMES, R. A mulher em situações de violência sob a ótica da saúde. In: MINAYO, M.C. & SOUZA, E.R. (org.). Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. RJ: Ed. FIOCRUZ, 2003. 8. FOUCAULT, M. 2012. Ditos e Escritos, volume 5 - Ética, Sexualidade e Política. 9. GOLDENBERG, M. 2011. A Arte de Pesquisar: como fazer pesquisa qualitativa em Ciências Sociais. RJ: Ed. Record. 10. Melleiro, M.M. e Gualda, D.M.R. O método biográfico interpretativo na compreensão de experiências e expressões de gestantes usuárias de um serviço de saúde*. Rev. esc. enferm. USP vol.37 no.4 São Paulo Dec. 2003 11. COROSSACZ, V. R. “Dois mundos confrontados: as histórias reprodutivas dos médicos e das pacientes”. In: O corpo da nação: classificação racial e gestão social da reprodução em hospitais da rede pública do Rio de Janeiro. RJ: Ed. UFRJ.2009 12. SOUZA, P.A. e ROS, M.A.D. Os motivos que mantêm as mulheres vítimas de violência no relacionamento violento. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, n. 40, p. 509-527, Outubro de 2006 13. MOTTA, F.M. Sonoro Silêncio: Por uma história etnográfica do aborto. Estudos Feministas. Florianópolis, 16(2): 440, maio-agosto/2008. Universidade do Estado de Santa Catarina.

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Aspectos atuais da reprodução humana assistida post mortem no Brasil. Otacílio Benício da Paixão Júnior1 Ruth Carneiro Gomes2 Washington Carneiro da Paixão3

RESUMO: Objetivo - A presente pesquisa teve como objetivo estudar o polêmico tema da inseminação artificial post mortem. Metodologia - Trata-se de uma pesquisa bibliográfica. Realizada por meio de levantamento de material bibliográfico, livros e artigos científicos. Resultados e discussão - A doutrina brasileira atualmente divide-se em duas correntes com relação à referida temática: àqueles que defendem a ser plenamente possível a prática da inseminação artificial post mortem e a outra corrente que entende não ser possível tal prática. Conclusão - Portanto, os avanços tecnológicos na área da reprodução humana assistida, trazem novos paradigmas para o estudo do direito, visto que tal prática afeta e transforma as relações de família, irradiando efeitos jurídicos tanto para o direito de família, como para o direito sucessório. Palavras-chave: Legislação, Fertilização, Reprodução Assistida, Post mortem. Introdução Post mortem é uma expressão latina que significa “depois da morte”, assim, a inseminação post mortem é aquela realizada depois da morte de um dos doadores de material genético (1). Com a criação dos bancos de sêmen e a facilidade de se congelar o esperma para ser usado no futuro, viu-se a possibilidade de realização da inseminação depois da morte de um dos genitores (1). A escolha da temática sobre reprodução humana assistida post mortem surgiu pelo fato de ser um meio de procriação ainda muito novo na sociedade brasileira. Apesar das técnicas terem evoluído muito nos últimos anos, os brasileiros são relutantes à procriação artificial. Há pouco tempo, a reprodução humana era vista como criações da ficção científica (1). Quando poderia imaginar, que pessoas estéreis pudessem gerar um filho seu, ou até com herança genética de outra pessoa? Pois bem. A tecnologia evoluiu e hoje as pessoas que querem ter filhos têm três opções: meio natural, a adoção ou a reprodução artificial (1). 1 Graduado em Biomedicina, UNIESP. Biomédico na Prefeitura Municipal de Mari, Paraíba. Mestre em Biologia Celular e Molecular pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: [email protected] 2 Graduanda em Medicina Veterinária, Universidade Federal da Paraíba 3 Graduando em Farmácia, UNINASSAU

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Como se pôde verificar, essa questão ainda é muito nova na mente da sociedade brasileira, e muito distante da realidade. Porém, este não é um motivo para o ordenamento jurídico brasileiro ficar à margem disso. Cada dia que passa, mais pessoas procuram estes mecanismos para realizar o sonho da maternidade e, sem regulamentação, o sonho pode tornar-se pesadelo. Mas a doutrina está presente para ajudar a todos a resolver os possíveis problemas quanto às técnicas de reprodução. Por fim, foram analisados os reflexos da prática da inseminação artificial homóloga post mortem, abordando ainda a normatização brasileira a respeito desta tecnologia e sua relação com os princípios constitucionais. Aqui, cabe esclarecer, não se pretender estabelecer um posicionamento em favor ou desfavor da prática, visto que, para haver um posicionamento a ser defendido, torna-se necessário o aprofundamento do estudo.

Objetivo A presente pesquisa teve como objetivo estudar o polêmico tema da inseminação artificial post mortem. Trata-se de um assunto que vêm causando grande repercussão na sociedade e na mídia nacional, com o propósito de se esclarecer mais sobre a temática.

Metodologia Trata-se de uma pesquisa bibliográfica. Realizada por meio de levantamento de material bibliográfico, livros, artigos científicos e análises dos mesmos, com o intuito de melhor aprofundamento na temática proposta, no período de agosto de 2017 a outubro de 2017. Finalmente foram sistematizados na forma de redação, os resultados e conclusões da pesquisa.

Resultados e discussão A fertilização artificial post mortem torna-se possível em razão das modernas técnicas de criopreservação do material genético do marido ou do companheiro, possibilitando a sua esposa ou companheira, mesmo após o seu falecimento, inseminar seu sêmen, vindo a gerar um filho de pai pré-moriente (2).

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Tal situação era inimaginável na metade do século passado, tornando-se possível atualmente graças à fantástica evolução da medicina, mais especificamente da engenharia genética (3). Todavia, tal hipótese é alvo de constantes embates doutrinários acerca de sua aplicação, bem como de seus reflexos, tanto no direito de família, como no direito sucessório. A questão que se coloca é: a previsão legal do art. 1.597, III, do Código Civil teria fundamento de validade constitucional? (4). A doutrina divide-se em duas correntes com relação à referida temática: àqueles que defendem a aplicação do inciso III, do art. 1.597, do Código Civil, entendendo ser plenamente possível a prática da inseminação artificial homóloga post mortem e a outra corrente que entende não ser possível tal prática (4). Com relação à primeira corrente, os doutrinadores defendem a aplicação do dispositivo legal fundamentando-se no princípio da autonomia da vontade, no princípio do planejamento familiar e na igualdade entre os filhos (3). Neste sentido, o professor Carlos Cavalcanti de Albuquerque Filho esclarece que “o planejamento familiar, sem dúvida, dá-se quando vivos os partícipes, mas seus efeitos podem se produzir para após a morte” (5). Corroborando com o mesmo entendimento, Douglas Phillips Freitas ensina que (6): A nossa Carta Magna em seu art. 226, §7º, defende a livre decisão do casal quanto ao planejamento familiar, vedando qualquer minoração deste direito, por quem quer que seja, e, se houver, estará atacando os princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. A vontade do doador (cônjuge ou companheiro) na reprodução assistida sempre será expressa por força da Resolução 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina, sem que, necessariamente, haja o doador realizado um testamento, por isto, é importante prever uma solução para o caso concreto de haver material genético para reprodução assistida sem testamento indicando a prole futura. ... havendo clara vontade do casal em gerar o fruto deste amor não pode haver restrição sucessória alguma, quando no viés parental a lei tutela esta prática biotecnológica.

No que concerne à possibilidade de criopreservação do material genético, estabelece a necessidade dos cônjuges ou companheiros, no momento da criopreservação, expressarem por escrito sua vontade quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, “em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um ou de ambos” (4). 1048

No que tange ao sêmen criopreservado do marido ou companheiro falecido, defendese o entendimento de que a mulher apenas poderá proceder a fertilização quando houver consentimento expresso do marido, autorizando a referida prática (4). Sem a autorização expressa do marido, tal prática deveria ser vedada, visto que, como bem ensina Silmara Juny Chinelato, “não se pode presumir que alguém queira ser pai depois de morto, devendo o sêmen ser destruído se não houver manifestação expressa de vontade quanto à inseminação post mortem” (7). Todavia, se tal prática viesse a se concretizar, então deveria se considerar o sêmen do marido falecido como material proveniente de doador anônimo, não apresentando qualquer reflexo no direito de família ou no direito sucessório (3). Já com relação à segunda corrente, ilustres doutrinadores brasileiros rebatem a possibilidade da inseminação artificial após a morte do genitor. O jurista Guilherme Calmon Nogueira da Gama, defende tal posicionamento alegando a falta de validade constitucional da referida prática, por afrontar aos princípios da paternidade responsável, dignidade humana, melhor interesse da criança e igualdade dos filhos (8). Coloca que o princípio da paternidade responsável não poderia ser exercido face o falecimento de um dos pais, não sendo possível o exercício do projeto parental apenas por ato unilateral da mãe (8). Neste mesmo sentido vem o princípio da igualdade dos filhos, visto que o nascido por inseminação artificial post mortem jamais terá a possibilidade de convivência paterna (8). Em sua obra, A nova filiação: o biodireito e as relações parentais, o referido autor, apresenta o mesmo entendimento, colocando que (8): “... ao menos no estágio atual da matéria no direito brasileiro, não há como se admitir, mesmo com vontade expressa deixada em vida pelo falecido, o acesso da ex-esposa ou ex-companheira às técnicas de reprodução assistida homóloga, diante do princípio da igualdade em direitos entre os filhos”

O ilustre professor Eduardo Oliveira Leite, também desposa do entendimento de não ser possível deferir pedido para a prática da inseminação artificial após o falecimento do genitor. Ensina o afamado jurista que (9):

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A resposta negativa a um pedido desta natureza se impõe. E isto, por diversas razões. Inicialmente, vale lembrar que tal pedido sai do plano ético reconhecido à inseminação homóloga; ou seja, se não há mais casal solicitando um filho, nada mais há que justifique a inseminação. Num segundo momento, tal solicitação provoca perturbações psicológicas em relação à criança e em relação à mãe. Nada impede que nos questionemos se esta criança desejada pela mãe viúva não o é, antes de tudo, para preencher o vazio deixado pelo marido. Além disso, a viuvez e a sensação de solidão vividas pela mulher podem hipotecar pesadamente o desenvolvimento psico-afetivo da criança. Logo, a inseminação “postmortem” constitui uma prática fortemente desaconselhável.

Contudo, os debates são travados em face do vazio legislativo existente, visto que o ordenamento jurídico brasileiro não disciplina, tampouco veda tal prática. “No Brasil, não temos legislação proibitiva da inseminação post mortem, como acontece na Alemanha e na Suécia, tampouco existe lei admitindo tal prática” (5). Todavia, apesar da omissão legislativa existente, frente à existência de um sujeito concebido através da técnica referenciada, é necessário analisar quais seriam os efeitos jurídicos decorrentes de tal ato (3). Tais efeitos refletem-se no âmbito do direito de família e sucessório, sendo conferida as mais diversas interpretações pela doutrina (3), (10).

Conclusões Portanto, os avanços tecnológicos na área da medicina, mais especificamente no que se refere à reprodução humana assistida post mortem, trazem novos paradigmas para o estudo do direito, visto que tal prática afeta e transforma as relações de família, irradiando efeitos jurídicos tanto para o direito de família, como para o direito sucessório. No que concerne a possibilidade ou não da realização da referida técnica a doutrina se divide, apresentando posições divergentes sobre o tema. No presente estudo não se pretendeu assumir uma posição contrária ou favorável acerca da possibilidade ou não da realização da reprodução humana assistida post mortem. Mas, procurou-se traçar os posicionamentos atuais adotados pela doutrina sobre a questão.

Referências

- 1 Santos, NB; Nunes, LNBT. Os reflexos jurídicos da reprodução humana assistida heteróloga e post mortem. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos: Divisão Jurídica,

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Bauru, SP, v. 41, n. 48, p. 253-278, . Acesso em ago 2017.

jul./dez.

2007.

Disponível

em:

- 2 Queiroz, JF. A disponibilidade do material genético – sêmen – após a morte do seu titular. Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, p. 279, 2004. - 3 Camargo Fischer, KF. Inseminação artificial post mortem e seus reflexos no direito de família e no direito sucessório. Disponível em: . Acesso em set 2017. - 4 Levy, LAC. Inseminação artificial post mortem e a reflexão constitucional. Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 86, mar 2011. Disponível em: . Acesso em set 2017. - 5 Albuquerque Filho, CC. Fecundação artificial post mortem e o direito sucessório. Família e dignidade humana, Anais do V Congresso Brasileiro de Direito de Família. São Paulo: IOB Thompson, p. 177, 2006. - 6 Freitas, DP. Reprodução assistida após a morte e o direito de herança. Disponível em: . Acesso em set 2017. - 7 Chinelato, SJ. Comentários ao Código Civil: parte especial: do direito de família (arts. 1.591 a 1.710). vol. 18. São Paulo: Saraiva, 2004. - 8 Gama, GCN. A nova filiação: o biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 733. - 9 Leite, EO. Procriações artificiais e o direito: aspectos médicos, religiosos, psicológicos, éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 155,1995, - 10 Torres Filho, S. Reprodução Humana Assistida: abordagem jurídica do instituto e responsabilidade médica. João Pessoa, Paraíba: Ensine Editora, 2010. -

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Cuidados Paliativos no Âmbito do SUS Angela Pinto dos Santos1

RESUMO: Os cuidados paliativos são uma necessidade urgente e humanitária de natureza global para as pessoas com câncer ou doenças ameaçadoras da vida. Recomenda-se que devam ser ofertados a partir do diagnóstico, associados ou não à terapia curativa, priorizando o manejo dos sintomas físicos, psíquicos, sócio familiares e o apoio espiritual. Para tal, deve ser adaptado às necessidades dos pacientes e suas famílias, acompanhando a progressão da doença até sua eventual fase final. E pode continuar após a morte do paciente através do apoio às famílias em seu processo de luto. A proposta de construir uma politica de cuidados paliativos no âmbito do SUS deve ter uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alívio do sofrimento. Versando na identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psíquica, social e espiritual. Os cuidados paliativos ocorrem em diversos níveis de atenção, sendo imprescindível a articulação entre os diversos serviços e as ações realizadas de forma que, independentemente do local onde sejam prestados, estejam voltados ao alcance de um objetivo comum, a melhoria da qualidade de vida e a manutenção da dignidade dos cidadãos brasileiros ao longo do processo de finitude. É necessário que haja articulação da atenção básica com os serviços domiciliares, ambulatoriais especializados e hospitalares, favorecendo o diagnóstico rápido das necessidades dos pacientes e a oferta de tratamento adequado. Palavras-chave: Cuidados paliativos, Sistema Único de Saúde, Serviços de Saúde.

Introdução O Brasil vive um processo de envelhecimento populacional. Este processo acompanhado do avanço tecnológico da segunda metade do século XX no campo da medicina e da saúde modificou a pirâmide etária e aumentou a prevalência de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) em nossa sociedade. Um reflexo deste fenômeno é observado nas causas de morte. No Brasil em 2013, as DCNT foram à causa de aproximadamente 72,6% das mortes (SIM 2015) (1). Fenômeno semelhante ocorre no resto do mundo, onde, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde (2), 63% dos óbitos do mundo em 2008 foram decorrentes de DCNT. Esta mudança epidemiológica traz consigo um novo desafio para os gestores e para os profissionais de saúde. Esse desafio decorre do forte impacto negativo das DCNT na 1

Ministério da Saúde. E-mail: [email protected] / [email protected]

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morbimortalidade e na qualidade de vida dos indivíduos afetados, associados ao aumento dos custos com saúde para pacientes, famílias, comunidades e sociedade em geral. O desafio de cuidado de saúde que geram situações de pior qualidade de vida percebida pelos pacientes e seus familiares, atrelados a altos custos e uso de recursos é especialmente problemático nas fases avançadas e finais de evolução das DCNT. Além dos mais frequentes períodos de crises de agudização enfrentados por estes indivíduos, há o enorme desafio de como evitar, na fase final de evolução destas doenças, a Distanásia, a Mistanásia ou a própria eutanásia. Esta realidade reverbera no cotidiano do SUS, com pacientes que não se beneficiariam de tratamentos para modificar a doença de base lotando os serviços de saúde. Mesmo sem possibilidade de cura e em fase final de evolução de doenças, tais pacientes podem receber assistência focada na doença e por vezes, com profissionais de saúde buscando obstinadamente tratamentos curativos, com métodos invasivos e uso de alta tecnologia, sem considerar o impacto na qualidade e nos valores de vida dos pacientes. Tais abordagens nem sempre permitem que o paciente compreenda completamente seu quadro clínico, em internações prolongadas e sofridas, permeadas por expectativas excessivamente otimistas e por vezes obstinadas de cura, que acarretam em tratamentos cada vez mais onerosos do ponto de vista físico, emocional, social ou financeiro. Mais ainda, os sobreviventes de condições assim, frequentemente desenvolvem distúrbios psíquicos como depressão ou síndrome de stress pós-trauma, além de conviverem com quadros de desconforto, dor de difícil controle e dependência funcional. Configura-se assim um contexto caracterizado pelo aumento do gasto em saúde com pouca efetividade para as necessidades da pessoa com doenças em fase avançada ou final de evolução. Estes cenários cada vez mais complexos envolvendo indivíduos enfrentando doenças que ameacem a vida e seus sofrimentos relacionados tornaram também mais complexos os conhecimentos, habilidades e competências que profissionais de saúde necessitam para lidar com estas situações. Hoje, o controle de sintomas é uma área que demanda crescente conhecimento (3). Também a comunicação, que para ser realizada de forma honesta e empática seguindo conceito de “verdade progressiva e suportável”, exige mais conhecimento e treinamento dos profissionais de saúde (4). E também os dilemas éticos das profissões da saúde, antes claras dicotomias entre o curável e o incurável, entre o que

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tem tratamento e o que não tem tratamento, entre a morte e a vida, deram lugar a discussões sobre a proporcionalidade das intervenções; a qualidade de vida durante e após o tratamento; a autonomia e a participação do paciente nas decisões e às questões de justiça distributiva e alocação de recursos em saúde. E em todos estes domínios, hoje temos cada vez mais evidencias de competências que podem fazer a diferença. Em uma publicação recente, que é considerada o melhor grau de evidência em Medicina (meta-análise). Kavalieratos et al, no JAMA 2016 (5) , analisaram os resultados dos melhores 43 estudos randomizados e controlados de Cuidados Paliativos. O resultado desta meta-análise demonstra que o Cuidado Paliativo especializado melhora de forma significativa a qualidade de vida, o controle de sintomas, além de reduzir o uso de recursos de saúde. Estes desafios são globais e foram entendidos pela Organização Mundial da Saúde como oportunidade urgente de melhoria. Em 2014, foi publicada como recomendação da 67º Assembleia da Organização Mundial de Saúde, uma exortação da OMS aos seus estados membros para que desenvolvam, fortaleça e implemente políticas de cuidados paliativos baseadas em evidências para apoiar o fortalecimento integral dos sistemas de saúde, em todos os seus níveis. Segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), revista em 2002 e reafirmada em 2014, Cuidados Paliativos são “uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alívio do sofrimento. Requer identificação precoce, avaliação e tratamento impecável da dor e outros problemas de natureza física, psíquica, social e espiritual”. A OMS defende que os cuidados paliativos são uma necessidade urgente e humanitária de natureza global para as pessoas com câncer ou doenças ameaçadoras da vida. Recomenda-se que devam ser ofertados a partir do diagnóstico, associados ou não à terapia curativa, priorizando o manejo dos sintomas físicos, psíquicos, sócio familiares e o apoio espiritual. Para tal, deve ser adaptado às necessidades dos pacientes e suas famílias, acompanhando a progressão da doença até sua eventual fase final. E pode continuar após a morte do paciente através do apoio às famílias em seu processo de luto. Para alcançar maior eficácia, estes serviços devem ser integrados ao sistema de saúde do país em todos os níveis de atenção, especialmente nos serviços de atenção

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básica e domiciliares, como também devem ser adaptados à realidade cultural, social, econômica e ambiental de cada região. Faz-se necessário ainda que se mantenham estrategicamente vinculados aos serviços de prevenção, detecção precoce e tratamento do câncer nas diferentes fases da vida. Favorecer uma morte digna, com o mínimo estresse possível, no local de escolha do paciente; e na incapacidade deste fica a cargo de sua família. Especialmente para crianças e adolescentes, cabe aos pais ou familiares compartilhar com a equipe a decisão a respeito de como, onde e por quem serão ofertados os cuidados no final de vida. Devem ser esclarecidas todas as dúvidas com relação ao processo de evolução para o óbito decorrente da evolução natural da doença e/ou complicações que limitam a vida, respeitando a decisão dos pais em permanecer com o(a) filho(a) no domicílio e proporcionando cuidado multiprofissional adequado para alívio dos sintomas que determinem sofrimento. A oferta de cuidados paliativos focados na pessoa, e não na doença, planejada de forma conjunta desde o diagnóstico, surgem como alternativa de modo a melhorar a qualidade de vida dos usuários e sua capacidade de lidar com a situação de maneira eficaz (OMS, 2002). Quando a prática da atenção paliativa focada nas necessidades do cuidado com o paciente é ofertada desde o diagnóstico de uma doença grave, pode-se investir para melhorar sua qualidade de vida e sua capacidade de lidar com a situação de maneira mais adaptativa (OMS, 2002). Um ponto importante é o fato do paciente se encontrar em condição de final de vida não significar que “não haja mais nada para fazer”. Ao invés disto, entende-se que nestas situações o foco do cuidado ofertado preciso ser alterado. Nesse contexto de terminalidade deve-se primar pelo controle dos sintomas e pelo investimento em cuidados que tragam bem-estar, qualidade de vida e dignidade para o paciente e sua família nesta fase da vida. A ênfase do cuidado passa a ser o controle dos sintomas e a promoção de qualidade de vida, através de uma abordagem multidisciplinar, que inclui as dimensões físicas, psíquicas, sociais e espirituais do ser humano, respeitando as características individuais de cada paciente. É uma mudança de um paradigma de cura por um paradigma de cuidado. Mais ainda, esta mudança pode ocorrer de forma gradual ao longo do curso da doença, incorporando os valores de vida do paciente no processo de tomada de decisão. O cuidado deixa de ser

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centrado na doença e passa a ser centrado no paciente. Esta mudança de paradigma reforça a necessidade de fornecer suporte aos cuidadores e/ou familiares referentes a orientações sobre o cuidado com o paciente e o seu próprio cuidado. Para tal, recomenda-se que os cuidados paliativos sejam integrados ao plano terapêutico singular desde o diagnóstico, o qual deverá ser construído de forma conjunta com o paciente e, se possível, incluindo seus familiares e cuidadores, os quais são peças fundamentais durante o processo e também necessitam de atenção especial para lidarem com a deterioração e possibilidade de perda de um ente querido. Esta visão moderna de Cuidados Paliativos enfatiza que Cuidado Paliativo não é um diagnóstico, não é uma fase da vida, tampouco é sinônimo de cuidado de fim de vida. Essencialmente Cuidado Paliativo é uma abordagem profissional que desenvolve competências para cuidar de sofrimento. Entende-se que o maior desafio do Cuidado Paliativo no século XXI seja como disseminar esta abordagem dentro do sistema de saúde. Mesmo em países onde o Cuidado Paliativo já está estruturado há mais tempo, a demanda de pacientes com necessidades da abordagem de cuidado paliativo é muito superior à oferta de profissionais especializados em Cuidado Paliativo. Assim, o papel dos profissionais especializados nesta abordagem precisa ser analisado dentro do contexto da demanda do sistema de saúde como um todo. Os cuidados paliativos ocorrem em diversos níveis de atenção, sendo imprescindível a articulação entre os diversos serviços e as ações realizadas de forma que, independentemente do local onde sejam prestados, estejam voltados ao alcance de um objetivo comum, a melhoria da qualidade de vida e a manutenção da dignidade dos cidadãos brasileiros ao longo do processo de finitude. É necessário que haja articulação da atenção básica com os serviços domiciliares, ambulatoriais especializados e hospitalares, favorecendo o diagnóstico rápido das necessidades dos pacientes e a oferta de tratamento adequado. Deve-se garantir o cuidado paliativo continuado e integrado para o usuário, o que pode contribuir também para mudar as concepções da comunidade sobre o que são cuidados paliativos, atualmente estigmatizado negativamente por ser percebido como resultado da desistência ou ineficiência das equipes, como também da falta de condição das unidades hospitalares públicas. Com a melhoria na assistência, os usuários poderiam ser esclarecidos adequadamente e precocemente sobre sua condição, sentir-se acolhidos e amparados em

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suas necessidades biopsicossociais e espirituais, e, assim, desenvolver uma visão positiva acerca do cuidado prestado em situações de sofrimento relacionado à doença, seja nas condições reversíveis ou mais importantes ainda, nas quais não há condição de modificar a doença de base. Quando não há uma continuidade na atenção oferecida ao paciente, a eficiência é comprometida, inclusive no âmbito familiar, e as repercussões tornam-se negativas e mais dolorosas, podendo criar situações de conflitos e insegurança. Pacientes e familiares passam a migrar entre diferentes serviços na busca de soluções, onerando as agendas de diferentes unidades públicas, podendo incluir até mesmo o endividamento financeiro para conseguir arcar com atendimentos e exames em unidades particulares das quais esperam a solução para sua condição de saúde. Podem tornar-se desconfiados em relação às equipes de saúde, o dificulta a comunicação e a formação de vínculo, fator imprescindível para a boa assistência em cuidados paliativos.

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Regime Jurídico da Procriação Medicamente Assistida em Portugal: em especial, a gestação de substituição Juliana Dias1

RESUMO: desde cedo que a intervenção legislativa nesta matéria se revelou crucial, visto ser uma área com um progresso inigualável. Defendiam, contudo, alguns autores que o legislador não deveria intervir, tendo em conta que se tratava de um ramo pouco explorado, acrescentando que o Direito não deveria interferir na ciência. Todavia, a posição dominante parecia ser mais propícia à intervenção legislativa (1). Do ponto de vista comunitário havia já uma preocupação pela regulamentação destas matérias, sendo que a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa elaborou a Recomendação nº 1046 sobre a utilização de embriões e fetos humanos para fins de diagnóstico, terapêuticos, científicos, industriais e comerciais, de 1986 que impulsionou os Estados-membros a legislarem acerca da mesma, sendo exemplo disso a Ley sobre Técnicas de Reproducción Asistida de 1988 (Espanha) (2). Apesar da lei que regula as técnicas de Procriação Medicamente Assistida (doravante, PMA) apenas ter surgido em 2006, o artigo 67º, nº 2, alínea e) da Constituição da República Portuguesa (CRP) já impunha ao Estado “regulamentar a procriação assistida, em termos que salvaguardem a dignidade da pessoa humana”. Pela leitura da norma excluímos, desde logo, as técnicas de PMA que lesem a dignidade da pessoa humana. Surge, todavia, a questão de saber se os custos das técnicas em causa deverão ser suportados – ainda que parcialmente – pelo Estado. É evidente que a alínea e) apenas se refere à regulamentação da procriação assistida, contudo podemos pensar em situações em que ter filhos só é viável através das técnicas de PMA (3), já que nestes casos pode surgir um conflito com o Direito, Liberdade e Garantia, plasmado no artigo 36º, número 1, 1ª parte da CRP, nomeadamente o direito de constituir família. A Lei nº 32/2006, de 26 de julho, comummente designada como a Lei da Procriação Medicamente Assistida, já sofreu quatro alterações: a primeira foi pela Lei n.º 59/2007, de 04 de setembro, de seguida foi a Lei n.º 17/2016, de 20 de junho, voltou a ser alvo de intervenção legislativa a 22 de agosto, pela Lei n.º 25/2016 e por último – embora que muito recente – a Lei n.º 58/2017, de 25 de julho. Ainda este ano, foi publicado o Decreto Regulamentar 6/2017, de 31 de julho que vem especificar normas contidas na Lei 32/2006, de 26 de julho. Afinal, é percetível que se trata de uma matéria volátil. Palavras-chave: Procriação Medicamente Assistida; gestação de substituição; Genética; Filiação.

Breves considerações acerca da Lei 32/2006, de 26 de julho O artigo 1º estabelece que esta lei regula as técnicas de procriação medicamente assistida, sendo que no artigo 2º estão plasmadas as técnicas admitidas (2): “a) 1

Universidade de Coimbra. E-mail: [email protected]

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Inseminação artificial; b) Fertilização in vitro; c) Injeção intracitoplasmática de espermatozoides; d) Transferência de embriões, gâmetas ou zigotos; e) Diagnóstico genético pré-implantação; f) Outras técnicas laboratoriais de manipulação gamética ou embrionária equivalentes ou subsidiárias” (4). A lei nº 25/2016, de 22 de agosto aditou o nº2 deste artigo passando a admitir os contratos de gestação de substituição. O artigo 3º da Lei 32/2006, de 26 de julho determina que as técnicas de PMA devem respeitar a dignidade humana de todas as pessoas envolvidas e acrescenta ainda no nº2 deste mesmo artigo que é proibida a discriminação com base no património genético ou ainda pelo facto do nascimento ter resultado de alguma técnica. O princípio da dignidade da pessoa humana está plasmado no artigo 1º da CRP, que constitui – juntamente com a vontade popular – a base da República. A dignidade humana apresenta-se como um princípio limite, mas também tem um valor próprio e uma dimensão normativa específicos (3). O nº 2 deste artigo proíbe a discriminação dos casos em que o nascimento se verificou por conta de técnicas de PMA, sendo este um dos argumentos dos autores que se insurgiam contra a regulação das mesmas. Todavia, era um argumento que não procedia visto que, apenas seriam criadas normas com algumas diferenças relativamente aquelas que existiam no Direito da Filiação, dado que as particularidades assim o impunham. Não significa que esta diferença assente em discriminação propriamente dita (1). O artigo 4º deste diploma, no número 1, salienta o caráter subsidiário – e não alternativo – das técnicas em questão. O número 2 apresenta os requisitos para a sua utilização: diagnóstico de infertilidade, ou para tratamento de doença grave ou do risco de transmissão de doenças de origem genética, infeciosa ou outras. Neste último caso, o legislador quis evitar o fenómeno do “bebé medicamento”, como por exemplo, nos casos em que o pai é portador da Síndroma da Imunodeficiência Adquirida (SIDA). O número 3 foi aditado pela Lei nº 17/2016, de 20 de junho, que determina que as técnicas previstas neste diploma podem ser utilizadas por todas as mulheres, independentemente do diagnóstico de infertilidade. Está em causa a liberdade e autonomia da mulher que deseja ser mãe. Este alargamento vai provocar um aumento do recurso às técnicas de PMA, o que nos leva a questionar se o Estado não deveria estabelecer prioridades no que toca ao acesso às mesmas, principalmente nos casos de recursos limitados (5). De acordo com o Parecer 90/CNECV/2016, parece ser de entender que em casos-limite de recursos

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limitados, deve prevalecer a aplicação das técnicas de PMA como tratamento de infertilidade.

Os beneficiários Nos termos do artigo 6º, em Portugal, podem recorrer às técnicas previstas nesta lei os casais de sexo diferente ou casais de mulheres – quer estejam casados/as ou vivam em condições análogas às dos cônjuges –, mulheres independentemente do estado civil e da respetiva orientação sexual. Para além disso, o beneficiário deve ter, no mínimo 18 anos de idade e não se encontrar interdito ou inabilitado por anomalia psíquica. Este artigo suscita muitas dúvidas, que o legislador não procurou resolver. Em primeiro lugar, na versão originária da Lei da PMA era exigido que os casais vivessem em união de facto há pelo menos dois anos, tal como determina a Lei 7/2001, de 11 de maio – Lei da União de Facto –, cujo artigo 1º, número 2, consagra que a união de facto é a “relação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”, tendo a Lei nº 17/2016, de 20 de junho, eliminado esse requisito uma vez que, se tal continuasse, a mulher iria recorrer igualmente a estas técnicas, mas de forma independente. A

norma

acrescenta

ainda

que

podem

ser

beneficiárias

as

“mulheres

independentemente do estado civil”. Podemos pensar nas situações em que o marido não quer ser pai e, sem que haja consentimento da sua parte, a mulher recorra a uma das técnicas de PMA. A presunção pater is est não se aplica, desde logo pelo artigo 20º da Lei 32/2006, que determina o homem que não deu o consentimento não verá a paternidade estabelecida a seu favor (se for, o número 4 deste artigo dita que pode o homem impugnála) (6). Não obstante, será aceitável um dos membros do casal cuidar de uma criança que não desejou e cuja opinião não foi levada em consideração? Deveria o legislador ter tentado harmonizar a liberdade e autonomia da mulher, no âmbito da procriação independente, com o direito de constituir – ou não querer constituir – família? Conforme o disposto no artigo 36º, número 3 da CRP este iguala os cônjuges quanto aos direitos e deveres – o artigo 1671º, número 1 do Código Civil (C.C.) tem uma redação idêntica – sendo que, o nº2 do artigo 1671º estipula que os cônjuges devem acordar sobre a orientação da vida em comum, considerando o bem da família e os interesses um do outro. Para além disto, o artigo 1883º do C.C. refere que nenhum membro do casal pode

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introduzir na casa de ambos um filho concebido na constância do casamento, que não seja filho do outro, sem o seu consentimento. Destarte, considero que seria preferível uma maior cautela por parte do legislador dada a fragilidade da matéria. Outro requisito é o de que o beneficiário tem de ser maior de dezoito anos, contudo no ordenamento jurídico português, o menor pode ser emancipado pelo casamento (artigo 132º do C.C.), o que lhe confere plena capacidade de exercício de direitos e o habilita a reger a sua pessoa e bens. Podemos pressupor que a vontade do legislador é a de que, embora o menor seja emancipado e tenha plena capacidade de exercício de direitos, tem como restrição o acesso às técnicas de PMA. O artigo 129º do C.C. determina que a incapacidade dos menores cessa por duas vias, a da maioridade ou da emancipação, todavia a parte final desta norma prevê que possam existir exceções previstas na lei, o que me leva a afirmar que uma dessas exceções são as técnicas de PMA. Certo é que a norma estipula um limite mínimo de idade para os beneficiários das técnicas de PMA, mas não um limite máximo. O Tribunal Constitucional abordou – entre outras – esta problemática no Acórdão nº 101/ 2009, cujo relator foi Carlos Fernandes Cadilha. Embora a norma o não declare expressamente, as técnicas de PMA “só poderão ser utilizadas quando tenha sido efetuado um prévio diagnóstico de infertilidade, o que tem pressuposta a ideia de que a mulher beneficiária se encontra em idade em que normalmente poderia procriar se não existisse um fator inibitório de natureza clínica que tenha afetado um dos membros do casal”.

A gestação de substituição A gestação de substituição está plasmada no artigo 8º da Lei 32/2006, de 26 de julho, fruto da terceira alteração feita a esta, pela Lei 25/2016, de 22 de agosto. Devemos ainda conciliar a Lei da PMA com o Decreto Regulamentar 6/2017, de 31 de julho. O número 1 define o que é a gestação de substituição: é a situação pela qual uma mulher suporta uma gravidez por conta de outrem, comprometendo-se a entregar a criança após o parto e a renunciar aos deveres da maternidade. O legislador preferiu a expressão “gestação de substituição” em detrimento de “maternidade de substituição” tendo em conta que a gestação de substituição vem contrariar um princípio base do Direito da Filiação, designadamente o princípio mater semper certa est. Resulta deste princípio que a

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maternidade – assim como os deveres desta – deriva, pura e simplesmente, do nascimento do filho (7), contudo nas situações de gestação de substituição, a maternidade advém de um contrato entre o casal de beneficiários e a gestante, sendo que esta última apenas participa nesta relação de forma a gerar uma criança, não se vinculando juridicamente, para efeitos de constituição da maternidade. O contrato de gestação de substituição “não perturba só a determinação da maternidade – cria dificuldades acerca de todo o estabelecimento da filiação” (8). É necessário perceber – pela leitura do artigo 39º da Lei 32/2006 – que a gestação de substituição não deixou de ser punível em Portugal, todavia é admissível a título excecional e mediante a observação de pressupostos muitos estritos (9). Estes pressupostos estão consagrados no número 2. A gestação de substituição deve ser entendida como um método excecional, devendo conter natureza gratuita (apesar de que, o valor das despesas de saúde, assim como do transporte, deve ser pago, desde que tituladas em documento próprio, como dita o número 5 deste artigo, assim como a alínea k), do número 3, do artigo 3º do Decreto Regulamentar) e apenas se verifica nos casos de “ausência de útero, lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem”, sendo que neste último caso a esclerose múltipla pode ser um exemplo. O Direito Português apenas admite a substituição altruística, pois o pagamento de uma vida iria “contra os mais básicos princípios da nossa civilização” (10). Para além destes pressupostos, o número 3 indica que se deve recorrer aos gâmetas de, pelo menos, um dos beneficiários e, em caso algum, pode a gestante ser a dadora de qualquer ovócito que será usado no procedimento em que é parte. A norma esclarece que a criança que nasce através da gestação de substituição é tida como filha dos beneficiários (artigo 8º, número 7), não obstante, sabemos que podem emergir conflitos que o legislador não logrou resolver. Pensemos no caso em que os beneficiários morrem; em que a gestante cria ligação com a criança e não quer devolvê-la; a gestante arrepende-se e quer interromper a gravidez – o artigo 142º do Código Penal Português representa uma causa de justificação específica, ou seja, os casos em que a interrupção da gravidez não é punível –, sendo o contrário também possível, em que os beneficiários se arrependem e já não querem dar seguimento ao contrato; quando o feto revela malformações, poderão os beneficiários exigir que a gestante interrompa a gravidez, tendo em conta que, segundo o artigo 140º, número 1 do Código Penal “quem, por

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qualquer meio e sem consentimento da mulher grávida, a fizer abortar é punido com pena de prisão de dois a oito anos”? Vejamos a situação do Reino Unido (11). Primeiramente, está em causa um acordo que não vincula as partes, logo não podem as partes exigir judicialmente o cumprimento do clausulado. A gestação de substituição não revoga o princípio mater semper certa est, visto que a maternidade é constituída a favor de quem deu à luz, ou seja, da gestante. Os beneficiários devem, entre as seis semanas e os seis meses após o nascimento, propor uma ação no tribunal, a “paternal order”, para que este estabeleça a filiação a seu favor, o que não será possível se a gestante se opuser. Os autores da ação devem ter, pelo menos, dezoito anos na data da propositura da ação, devem ser casados ou devem viver em união de facto (quer sejam do mesmo sexo, quer de sexo diferente), um deles deve ter doado os gâmetas e devem residir na Grã-Bretanha, nas Ilhas do Canal ou na Ilha de Man. A meu ver, não é a solução mais idónea, no entanto as partes já estão cientes dos riscos que correm, na medida em que são, ab initio, esclarecidas para o efeito. O número 10 do artigo 8º estipula que no contrato devem as partes chegar a acordo quanto aos casos em que possam surgir malformações ou doenças fetais ou até quanto a uma possível interrupção voluntária da gravidez, sendo que este contrato será autorizado pelo Conselho Nacional da Procriação Medicamente Assistida. Esta autorização deve ser “antecedida de audição da Ordem dos Médicos” (artigo 8º, número 4). Penso que este parecer irá incidir, essencialmente, sobre a situação clínica da beneficiária, isto é, se preenche os requisitos plasmados no nº2, 2ªparte. O legislador foi mais além, exigindo ainda uma declaração emitida por um psiquiatra favorável à celebração deste tipo de contrato, quer relativa aos beneficiários, quer à gestante (9), como revela o artigo 2º, número 2, alínea d) do Decreto Regulamentar 6/2017, de 31 de julho. Quanto à validade e eficácia do consentimento dos intervenientes, o número 8 remete para o artigo 14º desta lei, tornando desnecessária a norma consagrada no número 5 do artigo 14º, que alarga a aplicação deste artigo às situações previstas no artigo 8º. Desta forma, o consentimento deve ser “livre, esclarecido, de forma expressa e por escrito, perante o responsável médico” (número 1), sendo que devem ser devidamente informados acerca dos riscos e dos benefícios da utilização das técnicas de PMA (número 2 e ainda, artigo 3º, número 3, alínea e) do Decreto Regulamentar).

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O contrato-tipo deve regular os direitos da gestante, como por exemplo, a escolha do obstetra, tipo de parto, local onde este terá lugar (artigo 3º, número 3, alínea b) do Decreto Regulamentar

supramencionado),

porém

deveria

regular

também

uma

eventual

compensação nos casos de obrigatoriedade de repouso (10). Todavia, o artigo 2º, número 2 do Decreto Regulamentar admite que as partes, por acordo, incluam mais cláusulas no contrato. Em jeito de conclusão, saliento o empenho do legislador em colmatar algumas das imprecisões de que a Lei 32/2006, de 26 de julho padecia. Creio, apesar disso, que no âmbito das técnicas de PMA – em especial, da gestação de substituição – ainda há um longo caminho a percorrer, tendo sempre como “bússola” os princípios que norteiam o Direito da Filiação, em particular, o supremo interesse da criança.

Referências 1. Guilherme de Oliveira, «Legislar sobre Procriação Assistida», in Temas de Direito da Medicina, Coimbra Editora, 1999. 2. Paula Martinha da Silva e Marta Costa, A Lei da Procriação Medicamente Assistida Anotada, Coimbra Editora. 3. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição revista, Coimbra Editora, 2007. 4. Alberto Barros, “Procriação medicamente assistida”, in Direito da Saúde, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Guilherme de Oliveira, Coordenação de João Loureiro, André Dias Pereira, Carla Barbosa, Volume IV, Almedina, Coimbra, 2016. 5. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Parecer 90/CNECV/2016, disponível em http://www.cnecv.pt/. 6. Vera Lúcia Raposo, “Anatomia da responsabilidade (A responsabilidade do médico, da clínica e do dador no contexto da PMA)”, in Para Jorge Leite – Escritos Jurídicos, Coordenação de João Reis, Leal Amado, Liberal Fernandes e Regina Redinha, Volume II, 1ª Edição, Coimbra Editora, 2014. 7. Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, 1ª Edição, Almedina, 1979. 8. Guilherme de Oliveira, “O estabelecimento da filiação: mudança recente e perspectivas”, in Temas do Direito da Família, Coimbra Editora, 1999. 9. Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, Parecer 92/CNECV/2017, disponível em http://www.cnecv.pt/. 10. Vera Lúcia Raposo, De Mãe para Mãe – Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição, Coimbra Editora, 2005.

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11. Silvia Vilar González, Gestación por Substitución en España, Universitat Jaume I, Castellón de la Plana, 2017.

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O bebé Gammy e a gestação de substituição em Portugal

Fernanda Almeida1

RESUMO: O artigo equaciona o sentido e utilidade da recente admissão da gestação de substituição em Portugal, numa altura em que a comunidade internacional reclama a sua regulamentação transnacional, a fim de evitar o chamado “turismo reprodutivo” e a União Europeia apela à pura e simples proibição de tais práticas. Pretendemos verificar os pontos relevantes da alteração introduzida pela Lei n.º Lei 17/2016, de 17.6, indagando a bondade jurídica das soluções encontradas pela ponderação do que de essencial aí se consigna quanto às vulgarmente conhecidas barrigas de aluguer, concluindo por uma precipitação legislativa com importantes consequências jurídicas (ausência de regulamentação completa), mas também sociais (turismo reprodutivo). Palavras-chave: gestação de substituição; contrato; turismo reprodutivo.

Introdução As questões da parentalidade, da identidade pessoal, do livre desenvolvimento da personalidade e das inovações tecnológicas no campo da medicina reprodutiva apresentam novos desafios jurídicos que convocam um reposicionamento epistemológico e convidam a equacionar a relação entre o biológico e o social, o altruísmo e o desejo de lucro, o direito e a vontade de concretizar um projeto familiar e o simples capricho de aquisição de um serviço reprodutivo ou de a uma mercadoria que pode ser descartada. Que respostas alinhar para os problemas colocados pela gestação de substituição (GS), em tempos de modernidade líquida e de afetos voláteis? Em 2014, tornou-se internacionalmente conhecido o caso do bebé Gammy, criança dada à luz na Tailândia por mulher contratada como gestante de um casal australiano. Este bebé, portador de síndrome de Down e de patologia cardíaca, foi rejeitado pelos contratantes, dando origem a uma disputa entre as partes envolvidas e suscitando regulamentação legislativa da gestação de substituição. No nosso país, o tema ganhou acuidade com n.º Lei 17/2016, de 20.6 (regulamentada pelo Dec. n.º 6/2016, de 29.12), que introduziu a terceira alteração à Lei

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Doutoranda da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Email: [email protected]

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n.º 32/2006, de 26 de julho (Lei da procriação medicamente assistida), legalizando pela primeira a gestação de substituição.

Conceito de GS Atua como gestante de substituição a mulher que, através de acordo com terceiro ou terceiros (beneficiários, intended ou comissioning parents), se compromete a trazer à existência uma criança que entregará àqueles, que serão considerados pais, renunciando aos direitos e obrigações inerentes ao estatuto de mãe (1). Há uma dissociação entre a sexualidade e a procriação e entre as três fases do processo reprodutivo – obtenção de gâmetas, fertilização e nidação do embrião. Existindo tal dissociação, do que se trata é de uma “maternidade de substituição genética” ou “total” (2) (a gestante dá também o ovócito), ou de uma “maternidade de substituição moderna ou “parcial” (hospedeira), em que o embrião, ou um dos gâmetas, é fornecido pelos beneficiários, ou por um doador de ovócito, de esperma, ou de ambos (3). O contrato supõe, assim, uma transferência física da criança e uma modificação à regra geral da filiação.

Natureza do negócio jurídico O art.8.º/1 contém uma definição concetual do que é gestação de substituição, deixando de abrigar a expressão maternidade de substituição. O n.º 2 refere-se a negócio jurídico e os n.ºs 10 e 11, ao contrato escrito por via do qual os beneficiários obtêm a colaboração de uma mulher, gestante de uma criança que entregará aos primeiros. O contrato2 é sinalagmático e gera direitos e obrigações para ambas as partes. Quanto à natureza jurídica, não será compra e venda, pois, além de ser considerado nulo, se oneroso (n.º 12), a modalidade contratual venda tem por objeto uma coisa (art. 879.º do Código Civil) e não uma pessoa, em respeito pela dignidade humana.

2 Classificação que não merece unanimidade doutrinária. PÉREZ, Garcia, comentando Ley 14/2006, de 26.5, que, em Espanha, rege sobre a PMA, afirma não poderem ser sujeitas a contrato as coisas fora do comércio jurídico, carecendo o mesmo de objeto e sendo, por isso, inexistente, apud, FALCÃO, Marta, Maternidade de substituição: breve análise do contrato de gestação, em https://jus.com.br/artigos/45602/maternidade-de-substituicao. No nosso ordenamento, diríamos quando muito, que contrato seria nulo, por violação do disposto no art.º 280.º do Códgio Civil, ao contrariar um princípio de ordem pública.

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Também não poderá apelidar-se de aluguer do útero da gestante (art. 1022.º do mesmo Código), nem de um comodato do mesmo (art. 1129.º), posto que ambas as figuras visam a coisa. Vera Lúcia RAPOSO

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afirma que, “antes de mais, o que se contrata é a prestação

de um serviço. Aqueles que se incomodam com a classificação da gestação como um serviço devem questionar-se porque não os repugna que os demais serviços prestados com o corpo assim sejam qualificados, desde o trabalho manual ao trabalho intelectual, passando pelo desporto, pela moda ou pela pornografia, nenhuma destas práticas proibidas no nosso ordenamento jurídico”. Afigura-se-nos desadequado o recurso à figura do art. 1154.º do Código Civil, porque prestação de serviço visa proporcionar a outrem o resultado de um trabalho intelectual ou manual, o que não é o caso. O que é oferecido a outrem é uma criança. Entendemos tratar-se, não de um contrato atípico4, mas de um contrato inominado, de natureza mista, verificando-se “conjugação de elementos contratuais heterogéneos” 5, a meio caminho entre o direito das obrigações e o direito da família.

Os contraentes a) A parte contratual fornecedora do útero é a mulher gestante que não pode ser doadora de ovócito utilizado no procedimento (n.º 3), nem estar subordinada economicamente (em razão de relação laboral ou de prestação de serviços) aos beneficiários (n.º 6). A primeira condição visa evitar a relação genética entre a gestante de substituição e a futura criança. A segunda, impedir pressão psicológica ou aproveitamento de vulnerabilidade resultante da dependência económica. A disposição não fixa critérios relativos à idade da mulher que disponibiliza o útero nem estabelece restrições quanto à sua capacidade jurídica ou de fato. Porém, o art. 2.º/2 estende a aplicação do regime restante da lei da PMA à gestação de substituição e, assim, será convocável o art.º 6 do mesmo diploma, segundo o qual estas técnicas só podem ser utilizadas em benefício de quem tenha, pelo menos, 18 anos de idade (não fixa a idade 3 Maternidade de Substituição, Quando a cegonha chega por contrato, in Boletim da Ordem dos Advogados. Lisboa, N.º 88 (2012), p. 26-27. Posição diversa havia a autora defendido no seu trabalho De Mãe para Mãe – Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição, Coimbra Editora, FDUC, Centro de Direito Biomédico, 2005, p. 127. 4 Opinião sustentada por Diana Isabel SOARES PINTO, em Gestação por outrem: uma vida a todo o custo?, Dissertação do 2.º ciclo de Estudos em Direito, FDUC, 2013. Sobre a figura dos contratos atípicos e seu regime pode ver-se, VASCONCELOS, Pedro Pais, Contratos Atípicos, Almedina, 2009 5 ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6.ª Ed., Almedina, 1989, p. 280.

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máxima) e não se encontre interdito ou inabilitado por anomalia psíquica. Em situação tão relevante como é a da GS, a idade mínima deveria ser superior para garantir uma decisão livre, madura e consciente. Veja-se, por exemplo, o art. 10.º da Lei n.º 3/1984, de 24.3 (lei da educação sexual e planeamento familiar) que estabelece que A esterilização voluntária só pode ser praticada por maiores de 25 anos. Segundo a Sociedade Europeia de Reprodução e Embriologia e a Sociedade Americana para a Medicina Reprodutiva, o início do percurso gestacional deve situar-se, preferencialmente, a partir dos 21 anos e terminar aos 45, a gestante ter já, pelo menos, um filho e as gravidezes anteriores terem sido de termo e sem complicações6. A lei não fixa critérios para as incapacidades de fato, isto é, quando um dos intervenientes (a gestante ou mesmo os beneficiários da GS), apesar de não judicialmente reconhecido como interdito ou inabilitado por anomalia psíquica, sofre efetivamente de patologia psíquica que lhe retira a possibilidade de entender a dimensão do ato, o que pode não ser detetado por quem executa a prática médica. Aplicando-se subsidiariamente o direito civil relativo à incapacidade negocial, será anulável o negócio jurídico celebrado pelo incapaz de fato, nos termos do art. 149.º do Código Civil, ou o disposto acerca da incapacidade acidental (art. 150.º do Código Civil), caso se verifiquem os pressupostos do art. 257.º do Código Civil, situação que é de também sancionada com anulabilidade. Não se estabelecem outros requisitos quanto à fornecedora do útero, nomeadamente condições de saúde (o veto presidencial, com base nos pareceres da CNEV, aludia à necessidade de a gestante de substituição ser saudável), ou avaliação da situação sócioeconómica da fornecedora do útero e relações de parentesco com os beneficiários da GS. b) São beneficiários da GS os casais heterossexuais, unidos ou não pelo casamento, desde que vivam em condições análogas às dos cônjuges (art. 6.º, n.º1), não se estabelecendo idade máxima que limite a possibilidade de recurso à GS. O n.º 3 do art. 8.º exige que o material genético provenha, pelo menos, de um dos elementos beneficiários. c) A lei não exclui a mulher solteira ou casada com pessoa do mesmo sexo, situação em que a paternidade, se resultante de inseminação de gâmeta doado anonimamente, deixa de constar do registo civil, o que coloca questões de historicidade e identidade da pessoa que virá ao mundo em circunstâncias de ausência de contexto de filiação. Nestas situações, não haverá lugar à averiguação oficiosa de paternidade. 6 Vide SÖRDESTRÖM-ANTTILA, Viveca et alt.¸ Surrogacy: outcomes for surrogate mothers, children and the resulting families – a systematic review, cit. p 262.

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d) Quanto a outros beneficiários da GS, o art. 8.º não é inequívoco na sua interpretação, mas refere um requisito que afasta a possibilidade de recurso por casais homossexuais masculinos. Aludindo o n.º 2 à natureza excecional deste negócio e à sua limitação aos casos de ausência de útero, de lesão ou de doença deste órgão que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem, exclui o homem como beneficiário, seja celibatário, casado ou unido de fato com outro indivíduo do sexo masculino, o que tem que ver com a tomada de posição sobre a natureza e fins da procriação medicamente assistida como método subsidiário (e não complementar ou alternativo) de procriação (art. 4.º), em caso de doença física e não de infertilidade social7. Não questionando a solução legal do ponto de vista da discriminação em razão do sexo ou da orientação sexual, já se nos afigura discutível a teleologia da lei. Desvalorizando os custos financeiros envolvidos, já se viu alegado por membro do Conselho Nacional da PMA não suscitar pejo nenhum (…) aceitar que sejam utilizadas verbas nesta área, mesmo que, aparentemente, possam constituir uma “sobrecarga” para o erário público. (…) Numa sociedade atingida por um decréscimo preocupante da natalidade, as técnicas de PMA propiciam aos interessados os meios necessários para contribuírem, ainda que modestamente, para combater tão preocupante fenómeno8. Se constituem fundamento da alteração legislativa problemas demográficos e “mudanças culturais da abertura a modos distintos de considerar e viver as relações familiares”9 não fará sentido a referência limitativa da GS à infertilidade da mulher, mercê da ausência de útero, de doença do órgão ou, ainda, de situações clínicas que o justifiquem. Ou se trata de uma questão de saúde, ou de um problema demográfico, ou mesmo de um simples sinal dos tempos. Sendo assim, deixar de fora o homem celibatário ou o casal homossexual masculino poderá entender-se como discriminatório, desconsiderando

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A noção de infertilidade social é empregue, por exemplo, na França, a respeito da PMA, apesar de nesse país ser proibida a gestation pour autrui (art. 16.º/7 do Código Civil, introduzido pela Lei nº 94-653, de 29,7. 1994: Todo o acordo relativo à procriação ou à gestação por conta de outro será nulo. Explicando aquele conceito, Noémie MERLEAUPONTY, « Sexualité et conception assistée en Inde et en France », Journal des anthropologues [En ligne], 144-145 | 2016, mis en ligne le 15 avril 2018, consulté le 02 mai 2016. URL : http://jda.revues.org/6382, p. 102, afirma : (…) l’assistance médicale à la procréation (AMP), telle qu’elle est nommée dans les textes officiels, est organisée sur un modèle naturaliste, à consonance chrétienne (…), qui limite les processus de la physiologie, prenant pour référence les corps entiers et l’heterosexualité reprodutive (…). Dans ce cadre, l’infertilité est définie de manière médicale, à partir du diagnostic d’une pathologie (…). Les infertilités dites «sociales» concernant les couples de même sexe ou les célibats, non legitimés par la loi pour avoir droit aux services de l’AMP. 8 CARDOSO, Salvador Massano, PMA – PARA QUÊ, PARA QUEM, COM QUE CUSTOS?, [Comunicação proferida pelo Senhor Vice-Presidente do CNPMA, Prof. Doutor Salvador Massano Cardoso, na Conferência do CNECV “AS LEIS DA IVG E DA PM A – UMA APRECIAÇÃO B IOÉTICA”, decorrida a 17 d e M aio de 2011, no Porto], p. 11, em http://www.cnpma.org.pt/Docs/ComunicacaoMC%20PMA.pdf 9 Como mencionado na p. 10 do Relatório e Parecer 87/CNEV/2016

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eticamente a autonomia das pessoas, o que não será inconstitucional apenas por este ser um território de “opção política”10. Se na base da admissão destes contratos estão, também, razões práticas ligadas aos índices demográficos do país, não repugnaria admitir a GS por razões económicas (como na Rússia), ou por outros motivos, como na Ucrânia, onde a causa principal da admissão resulta do decrescimento populacional decorrente da infertilidade potenciada pela catástrofe de Chernobil11.

Requisitos objetivos a) Gratuitidade - os contratos de GS são possíveis a título excecional e gratuito (n.º 2), sendo nulos se onerosos (n.º 12), prevendo-se no parecer CNEV de 2012 deverem as motivações altruístas ser previamente avaliadas “com o apoio de equipa multidisciplinar de saúde”, embora os n.ºs 3 e 10.º do art. 8.º apenas aludam à prévia autorização e posterior supervisão dos negócios de gestação pelo CNPMA e prévia audição da Ordem os Médicos, mas sem referência expressa a antecedente avaliação das motivações da gestante de substituição. No espírito do legislador esteve a intenção de fazer ressaltar o sentido de altruísmo e de dádiva, proibindo-se os negócios jurídicos em causa de cariz oneroso (punindo-se mesmo criminalmente tal prática – art. 39.º/1 e 2). Em retas contas, ou se incentiva a maternidade intra-familiar (mães hospedeiras parentes da mãe biológica ou da beneficiária), com os problemas que se colocam no seio da família, ou laborará o legislador num certo idealismo cândido12. É que, “o dom não pode fazer esquecer outros elementos que devem ser considerados no procedimento de avaliação das decisões, do mesmo modo que a autonomia não é, por si, imunizante das soluções, nem o direito pode ser reduzido a um mero conjunto de formas, livremente manipuladas e instrumentalizadas, desconhecendo a especificidade axiológica intencional do direito (validade)”13. O intuito lucrativo é, aliás, já proibido pelo art. 21.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina. Pode ser convencionado entre as partes o pagamento à gestante da criança do valor correspondente às despesas com o acompanhamento de saúde prestado, incluindo despesas de transportes, desde que tituladas em documento próprio (n. 5). 10

LOUREIRO, João Carlos, Outro útero é possível: civilização (da técnica), corpo e procriação, cit., p. 1406 e AC. TC n.º 121/2010 e 359/2009. 11 Cfr. KUBIAK, Sylwia, Les aspects juridiques de la gestation pour autrui en droii comparé : international, européen, Pologne, France e Grande-Bretagne, U.F.R., Droit – Science –Politique, anos 2008/2209, http://www.memoireonline.com/09/09/2715/Les-aspects-juridiques-de-la-gestation-pour-autrui-en-droit-compareinternational-europeen-Polo.html. 12 GUILHERME de OLIVEIRA, Mãe há só uma… cit, p. 48. 13 LOUREIRO, João Carlos, Outro útero é possível, cit, p. 1401.

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b) Excecionalidade e motivações de saúde - o art. 8.º/2 estabelece como requisito para admissão do contrato de GS, a ausência de útero (congenitamente ou por histerectomia), de lesão ou doença deste órgão que impeça absoluta e definitivamente a gravidez. Alude a lei, ainda, a outras situações clínicas que o justifiquem. Critica-se o recurso a noções vagas e genéricas e o fato de último dos fundamentos colocar nas mãos dos médicos a decisão de um dos requisitos objetivos mais importantes que justificam a legalização de uma prática polémica. Constituem exemplos da noção em causa, a situação das mulheres que já sofreram múltiplas fertilizações in-vitro (FIV); que tenham insucessos de gravidez recorrentes; que sejam perimenopausicas; que sofram de doença cardiovascular ou que tenham hipertensão arterial; que sejam inférteis; ou que estejam sujeitas a terapias radio ou quimioactivas (…), bem como casais que já não estejam em idade fértil ou que nunca conseguiram adotar uma criança14. Em caso de conflito entre os interessados e as instituições em causa, mormente o CNPMA, quanto ao que deva entender-se por situações clínicas que o justifiquem, caberá à jurisdição administrativa explicitar tal conceito. c) Autorização prévia e supervisão pelo CNPMA e audição da OM - segundo a tradição do direito da família português, como no caso da adoção, orientada pelo interesse superior da criança, a avaliação das condições das pessoas que intervêm num contexto de alteração da filiação e as circunstâncias em que tal ocorre tem lugar previamente, em ambiente multidisciplinar, com acompanhamento e fiscalização pelo Ministério Público, seguidos da intervenção do tribunal. Na adoção é obrigatória a audição pelo juiz dos filhos do adotante, maiores de doze anos; dos ascendentes ou, na sua falta, dos irmãos maiores do progenitor falecido, se o adotando for filho do cônjuge do adotante e o seu consentimento não for necessário, salvo se estiverem privados das faculdades mentais ou se, por qualquer outra razão, houver grave dificuldade em os ouvir (art. 1984.º do Código Civil), o que expressa a preocupação legislativa na estabilidade emocional e harmonia familiar de todos os envolvidos, incluindo dos irmãos da nova criança. A intervenção multidisciplinar e judicial seria útil na GS, não apenas para garantir que todos os contraentes têm consciência dos efeitos da sua decisão, mas porque todo o processo e seus efeitos têm repercussão no bem-estar psicológico, sendo indispensável também um adequado acompanhamento jurídico15. Mesmo para fixação das responsabilidades 14 15

Segundo LEONARDO, Joana, e NODIN, Nuno, op. cit., referindo o estudo de Sweet (1998). Acompanhamento também preconizado por RAPOSO, Vera Lúcia, Quando a cegonha…, cit..

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parentais entre os progenitores, em caso de divórcio e estando estes de acordo quanto aos respetivos termos, é necessária a intervenção do Ministério (art. 1776.º - A do Código Civil). d) Validade e eficácia do consentimento das partes - o art. 14.º/1 a 4 refere-se às informações a prestar à gestante de substituição, e o n.º 6 prevê se informe a esta e aos beneficiários o significado da influência da gestante de substituição no desenvolvimento embrionário e fetal (nada se referindo quanto a tal influência posteriormente ao nascimento). À hospedeira, devem ser informados os riscos conhecidos resultantes da utilização das técnicas de PMA e suas implicações éticas, sociais e jurídicas. No que respeita ao conteúdo da informação que deve ser veiculada aos intervenientes para permitir decisões esclarecidas e informadas, não se vê como compaginar o direito à informação e ao consentimento informado com as incertezas científicas e jurídicas que o instituto em análise coloca, apesar de se reconhecer que na lei da PMA, o conteúdo da informação a prestar à gestante de substituição é alargado a todos os benefícios e riscos conhecidos das técnicas de PMA, bem como das suas implicações éticas, sociais e jurídicas. Apesar de terapêutica, a intervenção na GS não é absolutamente necessária, pois o direito a constituir família e a gerar descendência não impõem, a todo o custo, a submissão a estas práticas. São uma escolha e um projeto muito pessoais e, por isso, a informação a prestar tem de ser a mais extensa possível. Porque se trata de opção individual e livre, ainda que, eventualmente, sob pressão psicológica do problema da infertilidade, não pode afirmar-se ser exagerada uma hiperinformação - a relativa aos riscos graves, ainda que pouco prováveis ou raros, ou a consequências nefastas de colocação do paciente em estado de alerta, como sucede com os ensaios clínicos com medicamentos de uso humano (art. 5.º da Lei n.º 46/09, de 19.8 e Lei n.º 12/93, de 22 de Abril, sobre colheita e transplante de órgãos). O legislador tinha conhecimento da necessidade de serem “promovidos estudos longitudinais e registos para aquisição de evidência sobre a informação inerente às diversas facetas (não apenas técnicas) tanto da PMA como da gestação de substituição”16. E porque, tanto quanto sabemos, esse estudo não foi efetuado, coloca-se em dúvida que a informação a fornecer às partes seja a necessária e completa e possa afirmar-se ser informado o consentimento da gestante de substituição.

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Conclusão do Parecer n.º 63 do CNECV, de março de 2012.

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Por outra parte, o consentimento da gestante de substituição é revogável até ao início dos processos terapêuticos de PMA (art. 14.º/4), ao arrepio do que foram os pareceres que antecederam a alteração legal e o veto presidencial de 2016 (que aludia à revogação do consentimento até ao início do parto). A este propósito refere GUILHERME de OLIVEIRA17“ o consentimento que a mulher geradora presta antes da própria inseminação nunca poderia ser considerado aceitável num sistema como o nosso onde vigora um regime tão cuidadoso como o do artigo 1982.º, n.º 3 do C.C; na verdade segundo este artigo, a mulher que pretende ceder o seu filho para uma adopção só dá um consentimento válido quando tiver decorrido um mês após o parto” (atualmente seis semanas após o parto). De modo que propõe o autor uma aplicação analógica daquele 1982.º, n.º 3, porque, caso contrário, violar-se-iam princípios de ordem pública em direito da família (art. 280.º, n.º 1 do Código Civil), além que, a renúncia ao estatuto de mãe significa uma limitação aos direitos de personalidade da mulher que, mesmo quando válida, é sempre revogável (art. 81.º, n.º 2, do Código Civil). Um regime que não permita a revogação do consentimento prestado antecipadamente, pelo menos, na altura do parto, senão mesmo decorrido sobre este um período adequado, parecer-nos-á, por isso, violador do princípio da dignidade humana e, por isso, de difícil conformidade constitucional. e) Conteúdo obrigatório e conteúdo proibido do contrato - De acordo com o n.º 10, o contrato deve conter obrigatoriamente a referência às disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e de eventual interrupção da gravidez. Não é claro que deva estabelecer, de igual modo, as condições para recurso ao diagnóstico pré-natal. Poderão os beneficiários contratualmente obrigar a gestante a submeter-se a DPN, mormente a métodos menos invasivos de deteção de anomalias fetais, como testes sanguíneos? Será admissível dispor no sentido de terem direito a que a gestante interrompa a gravidez no caso previsto no artº 142.º, nº1, al. c) do Código Penal18 ou que a não interrompa em qualquer caso, se essa for a sua vontade? Poderão dispor acerca de situações como a de declaração de morte cerebral da gestante meses antes do nascimento da criança? Ou serão os familiares daquela (mormente os previstos no art. 3.º 17

Mãe há só uma, cit., p. 62. 18 O art. dispõe sobre os casos de interrupção voluntária da gravidez não punível, prevendo esta alínea em concreto: Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a nascer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo. O direito ao aborto, em certas circunstâncias, é considerado um direito humano pela ONU (cfr. BATES, Charlotte, Abortion and a Right to Health in International Law: L.C. v Peru, Cambridge Journal of International and Comparative Law (2)3: 640–656 (2013), p. 641-656, disponível em file:///C:/Users/mj01710/Downloads/118.pdf)

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da Lei n.º 411/98, de 30.12, na redação atual), ou terceiros (por ex. os médicos) à revelia de todos, a decidir se se interrompe ou continua uma gravidez de uma criança cujos pais são exteriores à incubadora humana? Implicando tais imposições restrições da liberdade e até à integridade física da gestante, não serão tais cláusulas nulas, de acordo com o disposto no art. 280.º do Código Civil? E sem possibilidade sequer de redução do contrato nos termos do art. 292.º do Código Civil, dada a dificuldade em demonstrar que, sem a cláusula viciada, os contraentes não teriam concluído o contrato. E em caso de incumprimento por alguma das partes do contrato a este respeito (v.g, quando se suspeite de malformações graves e a gestante se recusa a submeter-se a diagnósticos pré-natais mais invasivos ou a abortar em caso de confirmação), poderá a contraparte pôr termo ao negócio, resolvendo-o por justa causa (arts. 798.º, 799.º e 432.º do Código Civil)? Se assim for, nos termos do art. 1796.º, n.º1, será mãe quem der à luz? A resposta a estas questões afigura-se-nos negativa, não só por violação das regras do art. 281.º do Código Civil (bons costumes e ordem pública), mas também por contrária aos princípios do direito da família. No n.º 11 do normativo em análise contém-se, ainda, a chamada cláusula do estilo de vida, por via da qual se impedem os contraentes de, por mor do contrato, restringirem à gestante comportamentos ou impor-lhe normas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade no que respeita a outros deveres acessórias. Aqui se incluirão, v.g. matérias como um estilo de vida saudável e abstenção de comportamentos de risco (fumar ou abusar de substâncias estupefacientes ou de álcool).

Nulidade do contrato Não sendo válido o negócio, por qualquer motivo (n.º 12 do art. 8.º), poderá a criança nascida através de GS ser considerada filha dos beneficiários contraentes, nos termos do nº 7? Ou valerá a regra geral e independente da capacidade de fato que decorre do art. 1796.º, n.º1, do Código Civil (será mãe quem der à luz)? Neste caso, sendo a gestante casada, presumir-se-á pai o respetivo cônjuge (nos termos do n.º 2 daquele normativo e do art. 1826.º), o qual não poderá impugnar a paternidade presumida, caso tenha concordado com o projeto gestativo (art. 1839.º, n.º 3). Já o beneficiário masculino que contribuiu com o respetivo gâmeta e interveio no negócio, apenas através de ação proposta pelo Ministério Público poderá ver reconhecida a sua paternidade biológica e jurídica (arts.

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1841.º e ss.). E, sendo a nulidade declarada posteriormente ao nascimento, pode gestante reaver a criança já entregue? A resposta a estas questões parece-nos ser negativa. Caso o contrato seja nulo e a criança se encontre já a viver com os intended parents, a avaliação do que seja o melhor interesse daquela é que determinará o seu destino. Tem sido essa a solução preconizada pelo TEDH nos casos em que as crianças nascem em países terceiros onde é admitida a GS e os beneficiários procuram o seu registo perante as autoridades do país do respetivo domicílio, país este que proíbe tais práticas19. Na Alemanha, o Tribunal Federal, em 2014, aceitou uma sentença californiana que reconheceu um casal homossexual como pais legais de uma criança nascida por GS na Califórnia, porque não foi utilizado material genético da hospedeira20.

Precipitação legislativa Depois de largos anos de discussão, de consulta de inúmeras instituições e peritos, de vetos presidenciais, tratando-se de matéria sensível, urgia ter o legislador estabelecido exaustivamente as condições de acesso e execução da GS. Essa preocupação foi sendo previamente demonstrada em vários setores científicos, jurídicos e médicos, como resulta inequívoco dos pareceres que precederam a análise e discussão dos projetos de lei. O legislador foi evasivo em áreas que envolvem posições ético-filosóficas, morais, religiosas

19 Referimo-nos aos acórdãos Mennesson c. França (Proc. n.º 65192/11) e Labasse c. França (Proc.º 65941/11)19, datando as decisões de 26.6.2014, relativos à recusa das autoridades francesas em reconhecerem em França relações de parentalidade estabelecidas nos Estados Unidos entre as crianças aí nascidas em resultado de GS e os casais franceses que para ali se deslocaram para atuarem como beneficiários (recorde-se que, na França, a GS é proibida). O Tribunal de Estrasburgo, salvaguardando a margem de apreciação dos Estados em tomarem decisões quanto à gestação de substituição, entendeu que as decisões das autoridades francesas não violaram o art. 8.º da CEDH (relativo ao respeito pela privacidade e vida familiar), no que toca aos intended parents, mas já desrespeitaram tal norma de direitos humanos ao recusarem inscrever a parentalidade das crianças no registo civil quando, de facto, estas gozavam de uma posse de estado como filhas dos casais em apreço (num dos casos, a criança era filha biológica do pai). Interessante é também o acórdão Paradiso e Campanelli c. Itália (Proc. 25358/12), de 27.1.201519, por via do qual o Tribunal estendeu a noção de vida familiar e sua proteção a uma situação de ilegalidade estabelecida perante a lei italiana, identificando o interesse do casal em ficar com a criança com o interesse da criança em não se separar daquele, quando se demonstrou ter sido gerada na Rússia, contra pagamento, sem qualquer relação biológica com os beneficiários da GS, e tendo vivido com o casal durante apenas seis meses. O aresto em causa mereceu várias críticas. Assim, PUPPINCK, Gregor, Paradiso and Campanelli v Campanelli: The ECHR validates the sale of a child through surrogacy, Translation of an original article published in French, in the Revue Lamy Droit Civil, RLDC, n° 126, May 2015 p. 41-45, em file:///C:/Users/mj01710/Downloads/SSRN-id2605819.pdf e AMOROS, Esther Farnós, Bioética en Los Tribunales, La reproducción asistida ante el Tribunal Europeo de Derechos Humanos: De Evans c. Reino Unido a Parrillo c. Italia, considerando a autora fomentar-se assim o “turismo repdoutivo”, chegando a ver nesse fenómeno um caso de “desobediência civil”, in Revista de Bioética y Derecho & Perspectivas Bioéticas www.bioeticayderecho.ub.edu ‐ ISSN 1886‐5887, em http://scielo.isciii.es/pdf/bioetica/n36/bioetica_tribunal.pdf 20 LAMM, Eleonora, e RUBAJA, Nieve, Prámetros jurisprudenciales en los casos de gestación por susbtituición internacional. Los Lineamentos del Tribunal Europeo de Derechos Humanos y sus repercussiones en el contexto global, Revista de Bioética e Derecho, Perspectivas Bioéticas, 2106, 37, 156

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e jurídicas díspares, a ponto de se considerar a lei um “retrocesso social”21, porque deixa ao julgador a decisão em segmentos da vida de sensível significado ético-político, o que é inadmissível num sistema romano-germânico. A diversidade de pontos de vista foi afirmada mesmo pelo relatório – parecer 3/CNE/93 onde se reconhece que “nem tudo o que é tecnicamente possível é necessariamente desejável para a vida e para a dignidade humana22”. O que acaba de se expor é a expressão do que LEIVA, Carola entende ser o abandono da radicalização da distinção herdada pela história ocidental, desde os campos de concentração até ao poderio da técnica nos ordenamentos totalitários, entre ente e ser, com expropriação deste por aquele, homem e ser e essência e existência23. Sequer pode afirmar-se não terem existido advertências de peso quanto a esta dificuldade dialógica: vejam-se o Relatório e parecer 87/CNECV/2016, de 201624, o veto presidencial de 7.6.2016 que aludiu à Resolução do Parlamento Europeu 2015/2229 (INI), de 17.12.2015, sobre o Relatório Anual sobre os Direitos Humanos e a Democracia no Mundo (2014) e a política da União nesta matéria25.

Turismo reprodutivo ou procriativo O PE pretendeu eliminar a cross-border surrogacy decorrente das diferentes soluções jurídicas encontradas no mundo e donde resultam incertezas acerca da parentalidade da criança assim nascida, de imigração, de cidadania e de direito internacional privado. Pode mesmo defender-se ser desejável proibir a GS internacional de modo a que os beneficiários não tomem decisões com base na previsibilidade de gastos que possam ter neste ou naquele país e se diminua o risco de exploração de mulheres em países desfavorecidos. Por isso, ao contrário da adoção, a GS não reúne consenso na comunidade internacional, de tal modo que a Conferência de Haia para o Direito Internacional Privado prepara regulamentação, tendo em consideração as limitações das

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PATTO, Pedro Vaz, publicação da Federação Portuguesa pela Vida, http://www.federacaovida.com.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=379:maternidade-de-substituicao-um-retrocesso-socialpedro-vaz-patto&catid=6:noticias&Itemid=8. 22 in DOCUMENTAÇÃO, CNECV, vol. I, (1991-1993), pág. 75-103, consultável em http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1273059600_P003_PMA.pdf 23 In Hybris humanista. El concepto de precaución y los limites del hombre. Dilemata, ano 5 (2013), n. 11, p. 58 24 Relatório e Parecer sobre os Projetos de Lei n.ºs 6/XIII (1ª) PS, 29/XIII (1.ª) PAN, 36/XIII (1ª) BE e 51/XIII (1.ª) PEV em matéria de Procriação Medicamente Assistida (PMA) e 36/XIII (1ª) BE em matéria de Gestação de Substituição (GDS). P. 11 (em http://www.cnecv.pt/admin/files/data/docs/1461943756_P%20CNECV%2087_2016_PMA%20GDS.pdf) 25 Consultado em http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//NONSGML+TA+P8-TA-20150470+0+DOC+PDF+V0//PT. A resolução foi aplaudida pela European Women’s Lobby (EWL), como pode ver-se em http://www.womenlobby.org/EU-Parliament-takes-position-on-women-s-rights-and-surrogacy?lang=en.

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respostas regionais a tal problema de dimensão global. Em fevereiro de 2016, divulgou um relatório ainda não definitivo26. Todavia, o legislador nacional não estabeleceu qualquer limitação de nacionalidade dos beneficiários, o que pode tornar-nos num destino de turismo procriativo, como é a Grécia para os espanhóis. Com efeito, face ao art. 10.º/2 da Ley 14/2006, de 26. 5 (“A filiação dos filhos nascidos por gestação de substituição será determinada pelo parto”), os casais inférteis espanhóis demandam os países onde lhes é possível recorrer às barrigas de aluguer e, uma vez nascida a criança, registam-na como filha no Registo Consular respetivo. O supremo tribunal espanhol, em 2014, confirmou o cancelamento da inscrição da filiação que havia sido realizada em Los Angeles, jurisprudência mantida depois, em 201527. Se até agora os casais espanhóis recorreram, na sua maioria, aos Estados Unidos, Tailândia, México e, mais recentemente, Grécia, é natural que o turismo espanhol rume a Portugal também por razões procriativas. Em Itália, a lei n.º 40/2004 é restritiva deste tipo de práticas e, por via disso, segundo um estudo da Sociedade Europeia de Reprodução Humana e Embriologia, os casais italianos representam a maioria dos casos de reprodução de cross-border (de entre os belgas, os checos, os dinamarqueses, os espanhóis e os suíços)28. Mercê dos problemas colocados pelo turismo reprodutivo e de outras questões substantivas, o governo sueco tomou recentemente posição no sentido de desencorajar a GS, tanto altruística como comercial. Considerando ser desajustada a aura Elton John-ish happiness, entende não deverem as mulheres estar sujeitas à pressão do acordo de gestação de substituição, quando se sabe ainda pouco acerca dos efeitos que o mesmo terá sobre as próprias crianças e levantando-se como questão principal a da revogação do consentimento por parte da gestante29. Os arts. 1.º (dignidade da pessoa), 36.º (direito a constituir família) e 67.º/e) [proteção da família], da CRPort., são um enorme resguardo que acolhe todos os argumentos discursivos contra a GS. A GS introduz um conflito de direito triangular30 que envolve os 26 Acessível em https://assets.hcch.net/docs/f92c95b5-4364-4461-bb04-2382e3c0d50d.pdf 27 Maiores desenvolvimentos em VERDA Y BEAMONTE, José Ramón, Notas sobre lá gestación por substitución en el derecho español, in Acatualidade Jurídica Iberoamericana, n.º 4, fevereiro, 2016, p 349-357, http://idibe.org/wpcontent/uploads/2013/09/17._De_Verda_pp._349-357.pdf 28 Como é reportado por FRATI, Paola, et alt., Surrogate motherhood: Where Italy is now and where Europe is going. Can the genetic mother be considered the legal mother?, Journal of Forensic and Legal Medicine 30 (215), p. 4-8, artigo acessível em http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/25623186. 29 Sweden could ban surrogacy, BioEdge, bioethics news from around the world, 27.2.2016, em http://www.bioedge.org/bioethics/sweden-could-ban-surrogacy/11772 30

WILLEMS, Geoffrey, La gestation pour autrui: brève synthèse des réflexions relatives à un éventuel encadrement législatif, Annales de Droit de Louvai, vol. 74, 2014, n.º1, p. 118,

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direitos fundamentais dos pais de intenção, da hospedeira e o interesse da criança. Não é difícil constatar ser a gestante substituta uma incubadora natural instrumentalizada ao contrato de prestação de serviços, o que é violador da dignidade da pessoa humana. Embora do art. 68.º CRPort. (relativo à paternidade e à maternidade) não se retire qualquer impedimento à maternidade gestacional e separação destas, “sob pena de reduzirmos o texto constitucional, ao menos em certos domínios, a um conjunto de normas de competência, procedimento e forma, cheque em branco à cavalgada legislativa que erige o sentimento (não a “razão cordial”) em instância última de, miacoutando, descritério de decisão, não descortinamos fundamentos para esta tentativa de “aprendiz de feiticeiro” que se anuncia também entre nós, estranha mestiçagem entre Prometeu e Dionísio31” . Mesmo a legislação internacional milita contra a admissão da GS. Pense-se, por exemplo, no art. 3.º da Convenção Relativa aos direitos da criança (o interesse superior da criança preside a todas as decisões que a envolvam). Para a criança assim nascida, saber-se abandonada pela gestante desde o primeiro momento é uma violência e uma fonte de insegurança. Certo que a adoção apresenta os mesmos problemas, mas existe para remediar uma situação já existente e, manifestamente, no interesse da criança. É dever do homem lutar contra o poder instituído se não garantir a dignidade humana, não se admitindo como tolerável em nome de um relativismo cultural, toda e qualquer aplicação técnica do avanço científico à alteração das relações familiares e geracionais32 e embora o problema não seja uma inovação do nosso país porque os países anglo-saxónicos foram os pioneiros neste domínio, pelo menos aí, como refere GUILHERME de OLIVEIRA, a GS parte de um pressuposto honesto, o de reconhecer que vale mais um mercado aberto com regras pré-estabelecidas e que todos conhecem, do que propiciar a clandestinidade. Mas, logo acrescenta “essa intenção honesta não chega para tornar o sistema aceitável”, porque isso “significaria a eliminação pura e simples daquela especificidade humana que nos tem permitido dizer, ao menos nos últimos anos, que as coisas podem ser vendidas, mas os homens não”33 .

https://www.academia.edu/6801749/La_gestation_pour_autrui_br%C3%A8ve_synth%C3%A8se_des_r%C3%A9flexions_relatives_% C3%A0_un_%C3%A9ventuel_encadrement_l%C3%A9gislatif?auto=download. 31 LOUREIRO, J. cit., p. 1428. 32 Rachel, J. Elementos de Filosofia Moral. Lisboa:Gradiva, 2004 33 Cit, p. 16.

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Conclusão A alteração legislativa de 2016 veio tornar lícita no nosso país a gestação de substituição, num momento em que a nível internacional se reclama a harmonização de soluções ou mesmo a completa proibição de tais práticas. O legislador nacional não tomou em conta tal contexto global e deixou em aberto inúmeras questões relevantes de pendor ético, constitucional e procedimental, como seja o de não permitir a renúncia da gestante substituta até, pelo menos, ao momento do parto. Com tal desfasamento, potencia o aproveitamento por parte de cidadãos de países terceiros onde a GS seja proibida, podendo tornar o país num destino preferencial do chamado turismo procriativo.

Referências 1. GUILHERME de OLIVEIRA, Freire Falcão, Mãe há só uma, duas! O Contrato de gestação. Coimbra editora, 1992, p. 8-9 e RAPOSO, Vera Lúcia, De Mãe para Mãe – Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição, Coimbra Editora, FDUC, Centro de Direito Biomédico, 2005. 2. LOUREIRO, João Carlos, Outro útero é possível: civilização (da técnica), corpo e procriação, in Direto Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais, Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, org. Manuel da Costa Andrade et alt.. Coimbra Editora. 2103. ISBN: 978-972-32-2124-4. P. 1387-1430. 3. SÖRDESTRÖM-ANTTILA, Viveca et alt.¸ Surrogacy: outcomes for surrogate mothers, children and the resulting families – a systematic review, in Human Reproduction Update, Vol. 22, n.º 20, 2016, p. 261, em http://humupd.oxfordjournals.org/content/early/2015/10/09/humupd.dmv046.full.pdf+ html. 4. FALCÃO, Marta, Maternidade de substituição: breve análise do contrato de gestação.https://jus.com.br/artigos/45602/maternidade-de-substituicao. 5. RAPOSO, Vera Lúcia, Quando a cegonha chega por contrato, in Boletim da Ordem dos Advogados. Lisboa, N.º 88 (2012), p. 26-27. 6. RAPOSO, Vera Lúcia, De Mãe para Mãe – Questões legais e éticas suscitadas pela maternidade de substituição, Coimbra Editora, FDUC, Centro de Direito Biomédico, 2005. 7. PINTO, Diana Isabel Soares, em Gestação por outrem: uma vida a todo o custo? Dissertação do 2.º ciclo de Estudos em Direito, FDUC, 2013. 8. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6.ª Ed., Almedina, 1989. 9. SÖRDESTRÖM-ANTTILA, Viveca et alt.¸ Surrogacy: outcomes for surrogate mothers, children and the resulting families – a systematic review, in Human

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Reproduction Update, Vol. 22, n.º 20, 2016, p. 261, em http://humupd.oxfordjournals.org/content/early/2015/10/09/humupd.dmv046.full.pdf+ html. 10. MERLEAU-PONTY, Noémie, Sexualité et conception assistée en Inde et en France, Journal des anthropologues [em linha], 144-145 | 2016, 2.5. 2016. URL: http://jda.revues.org/6382. 11. CARDOSO, Salvador Massano, PMA – para quê, para quem, com que custos?, [Comunicação proferida pelo Senhor Vice-Presidente do CNPMA, Prof. Doutor Salvador Massano Cardoso, na Conferência do CNECV “As leis da IVG e da PMA – uma apreciação bioética”, decorrida a 17 de Maio de 2011, Porto], p. 11, em http://www.cnpma.org.pt/Docs/ComunicacaoMC%20PMA.pdf 12. LOUREIRO, João Carlos, Outro útero é possível: civilização (da técnica), corpo e procriação, in Direto Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político-Criminais, Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, org. Manuel da Costa Andrade et alt.. Coimbra Editora. 2103. ISBN: 978-972-32-2124-4. P. 1387-1430. 13. KUBIAK, Sylwia, Les aspects juridiques de la gestation pour autrui en droit comparé : international, européen, Pologne, France e Grande-Bretagne, U.F.R., Droit – Science –Politique, 2008/2209. Em http://www.memoireonline.com/09/09/2715/Lesaspects-juridiques-de-la-gestation-pour-autrui-en-droit-compare-internationaleuropeen-Polo.html. 14. LEONARDO, Joana, e NODIN, Nuno, As representações dos técnicos de saúde de uma Maternidade face à substituição gestacional e às hospedeiras gestacionais (“Barrigas de Aluguer”), em Análise Psicológica, 2005, 3 (XXII), p. 261-267 (acessível em http://www.scielo.mec.pt/pdf/aps/v23n3/v23n3a02.pdf). 15. BATES, Charlotte, Abortion and a Right to Health in International Law: L.C. v Peru, Cambridge Journal of International and Comparative Law (2)3: 640–656 (2013), p. 641-656, disponível em file:///C:/Users/mj01710/Downloads/118.pdf).0 16. PUPPINCK, Gregor, Paradiso and Campanelli v Campanelli: The ECHR validates the sale of a child through surrogacy. Translation of an original article published in French, in the Revue Lamy Droit Civil, RLDC, n° 126, May 2015 p. 41-45, em file:///C:/Users/mj01710/Downloads/SSRN-id2605819.pdf 17. LAMM, Eleonora, e RUBAJA, Nieve, Parámetros jurisprudenciales en los casos de gestación por susbtituición internacional. Los Lineamentos del Tribunal Europeo de Derechos Humanos y sus repercussiones en el contexto global, Revista de Bioética e Derecho, Perspectivas Bioéticas, 2106, 37, 156. 18. PATTO, Pedro Vaz, Maternidade de substituição. Um retrocesso social. Federação Portuguesa pela Vida: 19. ttp://www.federacaovida.com.pt/index.php?option=com_content&view=article&id=37 9:maternidade-de-substituicao-um-retrocesso-social-pedro-vazpatto&catid=6:noticias&Itemid=8 20. CAROLA, Leiva, Hybris humanista. El concepto de precaución y los limites del hombre. Dilemata, ano 5 (2013), n. 11.

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Cuidados Paliativos: O Enfermeiro como facilitador com objetivo de promover o significado do cuidar no processo da morte Verônica Cristina Vieira Barbosa1 Catiane Rios do Nascimento Claudia dos Santos Medeiros

RESUMO: O surgimento dos Cuidados Paliativos foi como uma filosofia de cuidados integrais, a pacientes em estado terminal com alívio da dor e do sofrimento. Estes cuidados oferecem a ação de uma equipe interdisciplinar, e cada profissional reconhece o limite da sua atenção que contribuirá para que o paciente, em estado de finitude, tenha uma boa morte. Objetivo: Assim, este estudo teve como objetivo compreender os significados do cuidar na visão dos enfermeiros e dos respectivos familiares, em cuidados paliativos, trazendo a possibilidade de revelar suas implicações no cotidiano do trabalho, além de perceber todo o processo da morte. Metodologia: Trata-se de um estudo de pesquisa descritivo com abordagem qualitativa, por meio de levantamento bibliográfico. Resultados e Discussão: Desta forma, observa-se que para alcançar resultados que levam ao entendimento da morte digna, é primordial que o enfermeiro empregue uma linguagem simples e explicativa, destacando a importância de uma assistência especializada ao paciente terminal. Conclusão: Esta pesquisa visa ampliar o conhecimento do significado das práticas dos cuidados paliativos tendo o Enfermeiro como ponte para melhor entendimento desse processo, e fornecer subsídios a futuros estudos que tratarão da temática. Palavras-chaves: Cuidados Paliativos. Cuidados de Enfermagem. Paciente Terminal. Morte.

Introdução O presente artigo busca a partir de pesquisa bibliográfica, explicitar de uma forma geral, como entender o significado do cuidar no momento da morte, com o enfermeiro como principal facilitador para um cuidado integral ao paciente terminal. O estudo histórico, social e

psicológico

é

indispensável para

melhor entendimento

das possíveis

manifestações emocionais que o paciente possa vir a demonstrar. Desde do surgimento da Enfermagem, o cuidado a vida é primordial da profissão, cuja sua totalidade de trabalho gira em pró da vida, realizando procedimentos voltados à cura das enfermidades e à recuperação da saúde. Contudo, nós profissionais da saúde,

1

Graduandos em Enfermagem pela Universidade Estácio de Sá. Campus Norte Shopping, Rio de Janeiro, Brasil. Email: [email protected].

1083

nos defrontamos com o salvamento de vidas e também com momentos de morte, e com a realidade dura de compreender e atender essa última etapa do ciclo vital (1). Desde 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) assumiu a filosofia dos cuidados paliativos (CP) como uma filosofia terapêutica humanizada no cuidado de pacientes sem prognóstico de cura, especialmente, quando a doença se encontra em fase terminal (1). Uma abordagem mais humana é trazida pela prática dos Cuidados Paliativos, que contém importantes conceitos e atitudes integrais no alívio da dor na situação de terminalidade, vivenciada em âmbito hospitalar e domiciliar. O relacionamento de diferentes esferas de saber, de diversas culturas e personalidades neste momento pode, muitas vezes, deixar mais complexa a vivência da possibilidade de morte para todos os envolvidos, principalmente em culturas que tentam evitar contato com ela (2). Considerando a morte como um processo natural; oferecer um cuidado que não acelere a sua morte, sem prolongar com medidas desnecessárias; proporcionar o alívio da dor e de outros sintomas, integrando os aspectos psicológicos e espirituais na estratégia do cuidado; oferecer apoio aos familiares para que suportem o período do luto: é uma das diretrizes dos Cuidados Paliativos (3). Contra uma corrente de pensamentos que tem uma visão de morte isolada em leitos e lares, os cuidados paliativos surgi como uma alternativa de cuidado em sua totalidade. Cuidados esses voltados à pacientes sem possibilidade de cura para suas doenças, com o dispositivo de equipe interdisciplinar, trazendo cuidados alternativos e integrais para os pacientes, pautados no direito dos mesmos de viver e morrer com dignidade, e sua prática deve ser guiada pelo cuidado dos profissionais com compaixão e empatia pela pessoa que está morrendo e pelos seus familiares (4). Toda ação profissional deve ser pautada na atenção e respeito aos princípios bioéticos de beneficência, não maleficência, autonomia do paciente e justiça, utilização de recursos na definição dos cuidados em saúde. O enfermeiro tem o dever de manter e respeitar a dignidade, a autonomia e capacidade de decidir do paciente, quando consciente acerca de seu futuro; algo que na prática parece não acontecer sempre. Quando constatado que já não há cura e que o paciente se encaminha para o fim da vida, não significa que não há mais o que fazer, ao contrário a partir daí surgem inúmeras

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possibilidades a serem oferecidas ao paciente e sua família, como sua autonomia, suas escolhas e desejo (5).

Metodologia Trata-se de um artigo de natureza descritiva com abordagem qualitativa, por meio de levantamento bibliográfico. Na base de dados Lilacs, Bdenf e Medline retirados da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), realizou-se cruzamento dos seguintes descritores: Cuidados Paliativos, Cuidados de Enfermagem, Paciente Terminal e Morte. Classificam a pesquisa bibliográfica da seguinte forma: quando elaborada a partir de material já publicado, constituído principalmente de livros, revistas, publicações em periódicos e artigos científicos, jornais, boletins, monografias, dissertações, teses, material cartográfico, internet, com o objetivo de colocar o pesquisador em contato direto com todo material já escrito sobre o assunto da pesquisa. Na pesquisa bibliográfica, é importante que o pesquisador verifique a veracidade dos dados obtidos, observando as possíveis incoerências ou contradições que as obras possam apresentar (6). A pesquisa descritiva tem como objetivo conhecer e interpretar a realidade sem interferir na mesma para modificá-la, mantendo seu foco na descoberta e na observação de fenômenos para, em seguida, descrevê-los, classificá-los e interpretá-los (7).

Resultados e Discussão Os resultados apontam que cuidar de pacientes terminais exige muito mais do que conhecimentos técnico-científicos, requer a compreensão a fundo de sua individualidade, a partir de um relacionamento interpessoal de valorização da pessoa humana, contribuindo consequentemente, com o processo de humanização dos cuidados paliativos. Com isso apresentamos duas categorias: Significado do cuidar para uma boa morte e Atuação do enfermeiro em cuidados para uma morte digna. Categoria 1: Significado do cuidar para uma boa morte Essa categoria tem a finalidade do cuidar em enfermagem para uma boa morte relacionado a promoção do conforto ao paciente que significa em aliviar os desconfortos físicos como a dor e a angústia respiratória, oferecendo suporte social e emocional a pessoa em processo de terminalidade e a sua família, possibilitando a presença de seu 1085

ente querido no momento da morte, assegurando a manutenção da integridade e do posicionamento corporal com medidas de higiene e de prevenção de lesões na pele, evitando os odores e o surgimento de feridas que estigmatizam e provocam o sofrimento (8). Para realizar o cuidado humanizado e estar com o doente, o enfermeiro dispões de uma ferramenta essencial, ou seja, ele próprio. Tornando-se fundamental transcender a si próprio, para ser capaz de fornecer os cuidados de enfermagem terapêuticos aos doentes, como a autoconsciência, esclarecimento dos valores, exploração dos sentimentos, senso de ética e responsabilidade (9). Podemos dizer que o cuidar, em cuidados paliativos, é uma arte, em que as relações humanas assumem um papel de destaque e permitem a preservação da qualidade de vida da pessoa mesmo numa situação complexa, proporcionam uma morte tranquila e promovem um processo de luto. Assim, a significação e a compreensão dos cuidados paliativos têm uma amplitude que transpassa a própria palavra. Categoria 2: Atuação do enfermeiro em cuidados para uma morte digna Nesta categoria configura-se como se dará o processo em aliviar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida na terminalidade. É de grande importância que o cuidado seja prestado de forma humanizada, no que se refere ao paciente terminal, o cuidar não se restringe apenas à execução de atividades técnicas, mas envolve o paciente como um todo, dotado de histórias, sentimentos e expectativas, mais do que um simples cuidado técnico, ouvir o que o paciente deseja expressar, acalmar, acolher, e valorizá-lo em todas as suas dimensões (10). A avaliação da dor é o ponto fundamental para o planejamento do cuidado, desta forma aliviar a dor consiste em uma das práticas primordiais nos cuidados paliativos, pois busca, acima de tudo, o bem-estar e o conforto do paciente. Seu manejo pode ser feito através de intervenções farmacológicas e não farmacológicas, entre outras (11). Outra avaliação importante é a preservação da autonomia desses pacientes, pois todo indivíduo tem direito da tomada de decisão sobre sua assistência, portanto o enfermeiro deve sensibilizar seus familiares com objetivo de entender seus desejos e atitudes para que não haja desrespeitos das suas decisões.

Conclusão

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Cuidados paliativos são tratamentos em evolução, e indispensável diante do grande crescimento de número de casos de doenças crônicas degenerativas no Brasil e no mundo (12). Um fator alarmante é o número de casos já em estágio avançado que chegam às unidades. Os profissionais que realizam esses cuidados vivenciam situações, que os colocam frente a frente com o momento da morte e do morrer diariamente e precisam desempenhar procedimentos mesmo quando o objetivo não é a cura. Conciliam racionalidade e sensibilidade nas interações dos profissionais de saúde com o paciente e sua família assegurando a sua dignidade. Portanto, concluímos que esse cuidado prestado pelos enfermeiros não é tão simples assim, requer um conhecimento e reconhecimento que esta filosofia de cuidado se dar, em conjunto com uma equipe multidisciplinar, necessita de uma prática e uma dedicação total a esses pacientes que se encontram fragilizados, com medo e receio do que será o amanhã para eles. Temos que estar preparados para realizarmos procedimentos técnicos aliados com os teóricos, e também ter uma escuta qualificada para que o cuidado seja entendido pelo paciente em sua convalescência, e por seus familiares, pois pelo tempo e a demanda da doença os mesmos passam a receber nossa atenção e de toda a equipe.

Referências 1. 1 ALMEIDA, C.S.L.; SALES, C.A.; MARCON, S.S. O Existir da Enfermagem Cuidando na Terminalidade da Vida: um estudo fenomenológico. São Paulo: Revista Escola Enfermagem, 2014. 2. 2 ARANTES, M.C. Comportamento da Equipe de Saúde Frente ao Paciente Terminal na UTI. São Paulo: Instituto Brasileiro de Terapia Intensiva, 2010. 3. 3 HERMES, H.R.; LAMARCA, I.C.A. Cuidados Paliativos: uma abordagem a partir das categorias profissionais de saúde. Rio de Janeiro: Departamento de Ciências Sociais, Escola Nacional de Saúde Pública, FIOCRUZ, 2013. 4. 4 FLORIANI C.A; SCHRAMM F.R. Cuidador do Idoso com Câncer Avançado: um ator vulnerado. Rio de Janeiro: Caderno Saúde Pública, 2007. 5. 5 SANTANA, J.C.B.; CAMPOS, A.C.V; BARBOSA, B.D.G.; BALDESSARI, C.E.F.; PAULA, K.F.; REZENDE, M.A.E.; DUTRA, B.S. Cuidados Paliativos aos Pacientes Terminais: percepção da equipe de enfermagem. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2009. 6. 6 PRODANOV, C.C.; FREITAS, E. C. Metodologia do Trabalho Científico: métodos e técnicas de pesquisa e do trabalho acadêmico; 2º ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2013.

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7. 7 VIEIRA, A.V. As Tipologias, Variações e Características da Pesquisa de Marketing. Curitiba: Revista FAE, 2002. 8. 8 SILVA, R.S.; PEREIRA, A.; MUSSI, F.C. Conforto para uma Boa Morte: perspectiva de uma equipe de enfermagem intensivista. Rio de Janeiro: Escola Anna Nery vol.19 nº 1, 2015. 9. 9 CHERNICHARO, I.M.; SILVA, F.D.; FERREIRA, M.A. Humanização no cuidado de enfermagem nas concepções de profissionais de enfermagem. Escola Anna Nery Revista Enfermagem, 2011. 10. 10 POTT, F.S.; STAHLHOEFER, T.; FELIX, J.V.C.; MEIER, M.J. Medidas de Conforto e Comunicação nas Ações de Cuidado de Enfermagem ao Paciente Crítico. Brasília: Revista Brasileira de Enfermagem vol. 66 nº 2, 2013. 11. 11 PESSINI, L.; BERTACHINI, L. Humanização e Cuidados Paliativos. São Paulo: Editora Loyola 3º ed.; 2004. 12. 12 SOUZA, G. História dos Cuidados Paliativos. Porto Alegre: AMGH editora Ltda., 2011.

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Eixo 11 – Direito Sanitário Comparado e Direito Sanitário Internacional

Organizações Internacionais e Medicina Tropical1 Gabriela Lacerda Assunção2

RESUMO: Esta apresentação aborda as relações de cooperação internacional no âmbito da saúde pública, em especial os planos de acção para vigilância, prevenção e combate a doenças comunicáveis em geral - pelo que não nos limitaremos às doenças tropicais, mas estas estão também aqui consideradas. Focar-nos-emos no papel da Organização Mundial de Saúde, da União Europeia e, por fim, veremos, como é que esta teia de cooperação se concretiza nos mecanismos de acção portugueses. Palavras-chave: doenças comunicáveis, cooperação internacional; OMS; UE; Portugal

Introdução O reconhecimento das vantagens da cooperação internacional, especificamente no que concerne às preocupações de saúde pública, deu-se com a realização, em 1851, em Paris, da 1ª Conferência Sanitária Internacional. A Europa ocidental suportava, desde os anos 30 e 40, do século XIX, a sua primeira pandemia de cólera, agravada por um contexto de Revolução Industrial (com intensas trocas comerciais e viagens), associado a um fenómeno de sobrepopulação, com reflexo na precarização das condições de vida e de trabalho. Desta Conferência resultaram as primeiras Regulações Sanitárias Internacionais, a matriz do actual Regulamento Sanitário Internacional, cuja versão mais recente é de 2005, e vigora desde 2007 (1). Esta mudança de paradigma – da negociação bilateral e acção governamental, para a multilateralidade e cooperação internacional – foi um sucesso e, como sabemos, ainda caracteriza, nos dias de hoje, as políticas de saúde pública, maxime com o papel central da OMS - apesar do crescente papel de outras entidades, sobretudo com políticas de acção verticais e seguindo um modelo de PPP (2). Trabalho apresentado no seminário “Medicina Tropical – direitos e desafios”, organizado pela UCCLA, ALDIS e CEIS20, em 11 de Outubro de 2017, em Lisboa. 2 Mestranda em Ciências Jurídico-Civilísticas, Menção em Direito Civil. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. E-mail: [email protected] 1

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Mas, até à fundação da OMS, esta cooperação internacional manifestou-se de forma diversa, e.g., em:  1902 criou-se Associação de Saúde Pan-Americana – ainda em funcionamento, agora como Escritório Regional da OMS para as Américas –, de vocação regional;  1903, vinte países reuniram-se, em Paris, para definirem as regras de acção perante futuras proliferações de cólera, praga e febre amarela. Surge, assim, em 1907, a primeira agência putativa de vocação global – a Organização Internacional de Higiene Pública;  1919, com a criação da Sociedade das Nações cria-se, também, a Organização de Saúde da Sociedade das Nações, que colabora com a Associação de Saúde PanAmericana e com a Organização Internacional de Higiene Pública, e ainda com outras entidades, como a Organização Internacional de Trabalho e o Comité Internacional da Cruz Vermelha. Focou-se, essencialmente, na vigilância e controlo de epidemias, contando com relatórios regulares de mais de 140 cidades mundiais, por telégrafo. O começo da II Guerra Mundial prejudica o seu trabalho e financiamento e a cooperação internacional em saúde pública fica praticamente estagnada até ao fim da Guerra (2). Em 1948, depois da criação da Organização das Nações Unidas em 1945, funda-se a Organização Mundial de Saúde, que hoje está no centro da governança mundial de saúde, sob coordenação do Conselho Económico e Social, e conta com 194 Estados-membros. No preâmbulo da sua Constituição identifica, como princípio fundador, inter alia, nas desigualdades de desenvolvimento, nos países-membros, quanto à “promoção da saúde e controlo da doença, especialmente doenças comunicáveis” um perigo comum. O seu objectivo é, conforme está definido no art. 1.º, procurar proporcionar a todas as pessoas o mais elevado nível de saúde possível e, para tal, no art. 2.º assume algumas funções de saúde pública, como por exemplo: Ser a autoridade dirigente e coordenadora em problemas de saúde internacional;



A criação e manutenção de serviços administrativos necessários, como

serviços epidemiológicos e estatísticos; 

A assunção da luta pela erradicação de epidemias, endemias e outras

doenças;

1090



Em cooperação com outras agências especializadas, estudar e elaborar

relatórios sobre técnicas administrativas e sociais, ligada à saúde pública e cuidado médico, preventivo e curativo; 

Estabelecer e rever nomenclaturas internacionais de doenças, causas de

morte e de práticas de saúde pública; 

Estandardizar procedimentos de diagnóstico.

De acordo com o art. 21.º, a Assembleia Mundial de Saúde (o órgão máximo da OMS) tem autoridade para adoptar regulamentações que respeitem, inter alia: 

- Ao estabelecimento de requisitos sanitários e de quarentena, e outros procedimentos de prevenção da disseminação internacional de doenças;



- Às nomenclaturas de doenças, causas de morte e praticas de saúde pública;



- Standards de procedimentos de diagnóstico para uso internacional;

Estas, segundo o art. 22.º, devem ser adoptadas pelos países-membros após a devida notificação, excepto quando haja alguma reserva específica. É, segundo o art. 28.º, função da mesa da Assembleia decidir sobre medidas de emergência, dentro das funções e recursos da própria OMS, para lidar com eventos que requeiram acção imediata. Pode, para tal, autorizar o Diretor-geral a tomar todas as medidas necessárias para combater epidemias; a participar na organização de acção de auxílio a vítimas de calamidades, etc. Por fim, de acordo com o art. 64.º, todos os Estados signatários devem providenciar estatísticas e relatórios epidemiológicos, conforme seja determinado pela Assembleia de Saúde. É, hoje, competência da OMS controlar a implementação do Regulamento Sanitário Internacional, um tratado internacional do qual, por sistema de opting-out, são signatários todos os Estados-membros da OMS. Este, sucessor das Regulações Sanitárias Internacionais, já conheceu quatro versões: 1969; 1973; 1981 e 2005. A versão actual [publicada em Diário da República através do Aviso n.º 12/2008, de 3 de Janeiro] pretende uma abordagem mais ampla (veja-se que a versão de 1969 se focava, sobretudo, na cólera, praga e febre amarela), procurando ser um mecanismo de prevenção, protecção, controlo e de resposta à disseminação internacional de doenças sem pôr, contudo, em causa o tráfego e comércio internacionais (art. 2.º).

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Ao abrigo deste Regulamento, os Estados signatários estão obrigados, entre outras coisas: 

Art. 4.º: a identificar uma autoridade competente para zelar pela sua aplicação – em Portugal, esta é uma função da Direcção-Geral de Saúde (DGS);



Art. 5.º: a adquirir, reforçar e manter mecanismos de vigilância, detecção; avaliação, notificação, declaração e resposta a problemas de saúde pública, quer ao nível comunitário/local, intermédio, nacional e internacional, (conforme o seu Anexo I);



Art. 6.º: notificar a OMS de qualquer ocorrência que possa constituir uma emergência de saúde pública de âmbito internacional, medidas sanitárias adoptadas até ao momento, assim como continuar a fornecer informação detalhada e exacta;



Art. 7.º: comunicar à OMS ocorrências inesperadas ou raras que possam constituir emergências de saúde pública internacionais.

[União Europeia...]

Paralelamente, a Saúde Pública é, desde o Tratado de Maastricht (1992-3), foco do Direito da União Europeia na qualidade de Direito Primário, consagrando aquele, no seu art. 129.º, a competência da Comunidade para a “prossecução de uma política comunitária da Saúde Pública”. Até aí apenas encontrava eco no direito secundário, limitando-se, e.g., a liberdade de circulação de mercadorias ou de trabalhadores por preocupações sanitárias. De acordo com o art. 4.º n.º 2, alínea k) do TFUE, os “problemas comuns de segurança em matéria de saúde pública” constituem matéria de competência partilhada entre os Estados-membros e a União Europeia, i.e., tanto os EM como a UE podem legislar nesse domínio, mas a produção legislativa dos EM é exercida num plano subsidiário, caso haja acção da UE. Segundo o art. 168.º do TFUE, que respeita especificamente à Saúde Pública, em todas as políticas e acções da União deve estar assegurado um elevado nível de protecção da saúde, devendo esta complementar as políticas nacionais dos EM. Assume como função da União a “melhoria da saúde pública e a prevenção das doenças e afeções humanas e a redução das causas de perigo para a saúde física e mental”. Tal implica “a luta contra os grandes flagelos, fomentando a

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investigação sobre as respetivas causas, formas de transmissão e prevenção, bem como a informação e a educação sanitária e a vigilância das ameaças graves para a saúde com dimensão transfronteiriça, o alerta em caso de tais ameaças e o combate contra as mesmas”.

Na acção da União Europeia destacam-se três momentos fundamentais: 

A criação de uma rede de vigilância epidemiológica de controlo das doenças transmissíveis - desde a Decisão n.º 2119/98/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 24 de Setembro de 1998, entretanto substituída pela Decisão n.º 1082/2013/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de Outubro de 2013;



A criação do Sistema de Alerta Rápido e de Resposta - na mesma Decisão de 2013;



A fundação do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças - pelo Regulamento n.º 851/2004, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de Abril de 2004.

A rede de vigilância epidemiológica opera pela comunicação permanente entre as autoridades competentes de cada EM, Comissão Europeia e CECD e é administrada e coordenada por este último. As autoridades nacionais de cada EM comunicam à rede: 

- Dados e informações comparáveis e compatíveis de vigilância epidemiológica de doenças transmissíveis;



- Informações sobre a evolução de estado epidemiológicos;



- Informações sobre fenómenos epidémicos insólitos ou novas doença transmissíveis de origem desconhecida (mesmo que de países fora da União).

A comunicação destas informações deve seguir a definição de casos de notificação de doenças transmissíveis à rede - responsabilidade da Comissão actualmente cumprida na Decisão de Execução 2012/506/UE, de 8 de agosto. O Sistema de Alerta Rápido e de Resposta deve ser utilizado para ameaças transfronteiriças graves para a saúde, que devem ser notificadas, quanto ao surgimento e evolução, pela Comissão ou autoridades nacionais competentes, caso:

1093



Sejam ameaças invulgares ou inesperadas para o local e momento específicos; ou por causar uma morbilidade ou mortalidade humanas significativas, propagando-se ou podendo propagar-se rapidamente; ou exceda a capacidade de resposta nacional;



Sejam ameaças que afectem ou possam afectar mais do que um EM;



Sejam ameaças que exijam ou possam exigir uma resposta coordenada ao nível da UE.

Qualquer comunicação deve conter o máximo de informação e detalhe possível, como o tipo e origem do agente; data e local do incidente/surto; meios de transmissão/propagação; dados toxicológicos; métodos de detecção e confirmação; riscos para a saúde pública; medidas já aplicadas ou em aplicação; etc. Havendo notificação de um alerta, far-se-á uma avaliação de riscos, pelo ECDC e, caso se justifique, por outras Agências da União (ex: Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos). Nesta análise, o ECDC deve considerar todas as informações relevantes fornecidas por outras entidades, nomeadamente a OMS. A resposta implica, necessariamente, uma acção concertada dos EM e da Comissão, coordenando-se respostas nacionais antes da sua implementação. Se, em caso de emergência, um EM tiver que actuar antes de ser feita aquela articulação, terá que a comunicar às restantes entidades imediatamente. Em circunstâncias muito graves, para as quais as respostas nacionais sejam insuficientes, poder-se-á activar o Mecanismo Comunitário de Protecção Civil. Este sistema articula-se com as obrigações do Regulamento Sanitário Internacional, estabelecendo-se que, sempre que haja uma comunicação à OMS, por parte de uma autoridade nacional, de uma possível emergência de saúde pública internacional, deve fazer-se, simultaneamente, uma notificação através do Sistema de Alerta. A articulação entre toda a rede de vigilância europeia e a aplicação do Regulamento Sanitário Internacional torna-se evidente pela análise do procedimento de declaração de situação de emergência. Nos termos do art. 12.º da Decisão de 2013, a Comissão Europeia só poderá reconhecer uma situação de emergência de saúde pública, informando de imediato o Director-geral da OMS, caso:

1094



Tratando-se de uma emergência relacionada com epidemias de gripe humana com potencial pandémico, o Director-geral da OMS tenha sido informado e não tenha decidido declarar uma situação de pandemia de gripe;



Ou, fora de casos de gripe, o Director-geral da OMS tenha conhecimento de situações de emergência e, mesmo assim, não tenha declarado uma emergência de saúde pública internacional, sendo:



A ameaça transfronteiriça um perigo a saúde pública na União;



Não estejam satisfeitas as necessidades médicas para essa ameaça, por não haver um método satisfatório de diagnóstico, prevenção ou tratamento autorizado na UE; ou, mesmo que esse método exista, a autorização de um determinado medicamento constitua uma vantagem terapêutica substancial para os afectados.

[Portugal...]

A autoridade nacional competente em Portugal é a Direcção-Geral de Saúde - um organismo central do Ministério da Saúde e, por isso, parte da Administração Estadual directa -, que zela pela aplicação do Regulamento Sanitário Internacional e representa o país na rede de vigilância europeia. Além da vigorarem na ordem jurídica interna aquelas normas internacionais e europeias, existem normas nacionais para a promoção da saúde pública. Até 2009, vigorou em Portugal a Lei n.º 2036, de 9 de Agosto de 1949 - bases da luta contra as doenças contagiosas -, manifestamente desactualizada. Foi revogada pela Lei n.º 81/2009, de 21 de Agosto, que instituiu um sistema nacional de vigilância epidemiológica – SINAVE - que recorre a entidades do sector público, privado e social para (art. 2.º) desenvolver actividades ligadas à saúde pública, aplicar medidas de prevenção, alerta, controlo e resposta face a doenças transmissíveis e outros riscos de saúde pública. Criou-se, também, o Conselho Nacional de Saúde Pública, que, entre outras funções, assegura a coerência e complementaridade entre programas, em cooperação com outros centros de vigilância europeus e internacionais. A criação do novo sistema de vigilância para saúde pública acarretou a desmaterialização do processo. Agora, em vez de recorrer aos formulários disponibilizados

1095

pela DGS a serem enviados pelo correio – como previsto ao abrigo da Lei de 1949 – deve recorrer-se à plataforma informática de suporte ao SINAVE, preenchendo os formulários electrónicos disponíveis para o efeito. A plataforma informática comporta diferentes perfis de acesso, que garantem um acesso seguro e confidencial aos dados pessoais, em consonância com as normas europeias. A plataforma de apoio ao SINAVE permite: - O registo informatizado das notificações das doenças transmissíveis de declaração obrigatória, e de outros riscos de saúde pública definidos pelo DGS; - Emite, automaticamente, alertas para as autoridades de saúde; - Produz, automaticamente, informação estatística relativa ao processo de vigilância epidemiológica - Recolhem dados para cumprimento das obrigações de vigilância epidemiológica nacional e internacional. Por Portaria do Ministro da Saúde (Portaria n.º 22/2016, de 10 de Fevereiro) aprovouse o Regulamento de Notificação Obrigatória de Doenças Transmissíveis e Outros Riscos em Saúde Pública, que sujeita a notificação obrigatória todos os profissionais de saúde que exerçam actividade no SNS, no sector privado e social e ainda em laboratórios. Cabe ao Director-geral de Saúde, por despacho, definir, os casos e as características clínicas e microbiológicas a comunicar. Feita a notificação, a plataforma de suporte ao SINAVE emite um alerta, que, por processos automatizados, é comunicado às autoridades de saúde territorialmente competentes, de âmbito local, regional ou nacional, de modo a que tomem as medidas necessárias para a prevenção e controlo para que se minimizem os riscos para a saúde pública. Estas devem fazer a averiguação epidemiológica e recolher as informações relevantes para o cumprimento do dever de comunicação internacional de doenças transmissíveis ao Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças e à Organização Mundial de Saúde. Todos os casos susceptíveis de constituírem situações de emergência de saúde pública devem ser comunicados de imediato à plataforma do SINAVE. As doenças de declaração obrigatória que não representem emergências devem ser comunicadas assim que possível, até um máximo de 24 horas após o diagnóstico – clínico ou laboratorial, o que ocorrer em primeiro lugar.

1096

A autoridade de saúde deve preencher o formulário de inquérito epidemiológico o mais cedo possível, sopesando o risco e a perigosidade do caso em questão para a saúde pública, e tendo em conta, igualmente, as orientações técnicas da DGS. Até 2009, o incumprimento era sancionado com pena de multa cuja moldura poderia variar entre 1€ e 10€. Actualmente, corresponde a uma contra-ordenação muito grave, sendo sancionando com uma coima que, para pessoas singulares, se situará numa moldura entre €100 a €10.000, e, para pessoas colectivas, entre €10.000 e €25.000.

[concluindo...] Como vimos, se cada um destes mecanismos funcionar correctamente, apesar de diferentes entidades serem responsáveis pela promoção de políticas de saúde pública – nomeadamente a prevenção, controlo e combate a doenças comunicáveis – os seus papéis não se sobrepõe, ante se complementam e fortalecem, reafirmando, uma vez mais, a importância da cooperação internacional e do multilateralismo para a realização de interesses comuns, sobretudo em problemas que não respeitam as fronteiras territoriais. Isto pode ser sintetizado na história da erradicação da varíola, só possível por, anos antes, em plena Guerra Fria, os EUA e a URSS (e respectivos aliados), terem aceitado cooperar, na plataforma da OMS, para atingir esse objectivo (3).

Referências bibliográficas

1. Organização Mundial de Saúde, Los Diez Primeros Años de la Organizacion Mundial de la Salud, 1958 2. CLINTON, Chelsea, SRIDHAR, Devi, Governing Global Health, Oxford University Press, 2017 3. HENDERSON, Donald, Smallpox eradication – a cold war victory, in World Health Forum, V. 19, 1998

1097

O Regulamento Sanitário Internacional: quadro jurídico e desafios João Casqueira Cardoso1

RESUMO: Esta comunicação sublinha os novos desafios do Direito da Saúde, na sua vertente saúde pública, nomeadamente para a implementação do Regulamento Sanitário Internacional da Organização Mundial da Saúde. Apresenta primeiro o contexto do Regulamento Sanitário Internacional, numa perspectiva histórica. A seguir aborda questões específicas, como a atenção dada ao calendário para a implementação do RSI, e ao quadro das Emergências de Saúde Pública de Importância Internacional. Por fim, algumas observações são feitas acerca dos desafios da implementação do RSI nos Estadosmembros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Palavras-chave: Regulamento Sanitário Internacional; Organização Mundial da Saúde; Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.

Contexto histórico dos Regulamentos Sanitários Internacionais O Regulamento sanitário internacional (RSI) foi publicado primeira vez em 1969. Apesar de aprovado pela grande maioria dos Estados no mundo, o primeiro RSI desenvolveu pouco uma perspectiva holística da cooperação internacional de saúde entre os Estados. O novo RSI, adoptado em 2005, tenta mudar radicalmente esta perspectiva limitada. Abre a possibilidade de uma perspectiva mais global da coordenação, e de um campo mais completo das ações. Contudo é limitado igualmente.

O Regulamento Sanitário Internacional de 1969 O primeiro RSI tem a sua origem nos regulamentos sanitários internacionais adaptados nas conferências sanitárias internacionais celebradas na segunda metade do século XIX, com início com a primeira conferência sanitária internacional que teve lugar em Paris, no dia 23 de julho de 1851). O RSI foi adoptado na vigésima-segunda Assembleia mundial da saúde e entrou em vigor 1 Janeiro de 1971. Tem sido revisto duas vezes: primeiro, na vigésima sexta Assembleia Mundial da saúde em 1973; em segundo lugar, na 34ª Assembleia Mundial da saúde, em 1981 (esta última revisão, em particular, excluiu varíola na lista das doenças notificáveis).

1

Universidade Fernando Pessoa.

1098

Todos os Estados-Membros da OMS, representando um total de 160 estados — menos dois — foram vinculados ao RSI em virtude da sua adesão à Organização mundial da saúde. Alguns Estados partes emitiram reservas, como foi o caso da Índia, que exigiu uma monitorização mais enérgica das medidas que evitam a propagação da febre amarela. O RSI de 1969 (WHO, 1983) foca quatro doenças notificáveis, ou antes, de acordo com o RSI "as doenças sujeitas ao Regulamento" (as doenças que justificam o quarentena, nomeadamente: a cólera, a peste, a febre amarela, e a varíola. Cf. art. 1, RSI de 1969). O RSI de 1969 assenta num equilíbrio delicado entre evitar a propagação das doenças epidémicas, e ao mesmo tempo assegurar uma interferência mínima com o comercio mundial. Como diz o seu artigo 23.º, aqui parafraseado, as medidas sanitárias permitidas [pelo RSI de 1969] constituem o máximo que um Estado pode exigir em relação ao tráfego internacional para a proteção do seu território contra as doenças sujeitas ao Regulamento. O RSI de 1969 não visa explicitamente populações específicas - como as minorias ou os migrantes. Contudo, define o conceito “da viagem internacional” como significando: a) no caso de um navio ou uma aeronave, uma viagem entre portos ou aeroportos situados nos territórios de mais de um Estado, ou uma viagem entre portos ou aeroportos situados nos territórios de um mesmo Estado, se o referido navio ou aeronave entra em relações com o território de qualquer outro Estado durante a sua viagem, mas apenas no que diz respeito a estas relações; b) no caso de uma pessoa, uma viagem que comporta a entrada no território de um Estado, outro que o território do Estado onde esta viagem começa (cf. art. 1.º, RSI de 1969). Sobre este aspecto, no que diz respeito às pessoas, o RSI limita os documentos de saúde que podem ser exigidos aos viajantes por razões de saúde. O RSI de 1969 relembra que nenhum documento sanitário outro que os referidas no Regulamento pode ser exigido no tráfego internacional (cf. art. 81.º, RSI de 1969). Os documentos de saúde que podem ser exigidos pelas administrações nacionais comportam apenas o Certificado Internacional de Vacinação (de acordo com um modelo fornecido no RSI, que contempla como exigência mínima, a administração de uma única dose de vacina contra a febre amarela). Os certificados da vacinação são exigidos eventualmente antes de uma partida (para obter um visto, por exemplo) (de forma complementar, o art. 30.º do RSI de 1969 prevê que a autoridade sanitária de uma zona infectada pode exigir dos viajantes à partida um certificado de vacinação válido).

1099

O novo Regulamento Sanitário Internacional de 2005 O RSI foi drasticamente revisto no início dos anos 2000. Na altura, tomou-se consciência da necessidade de ir mais longe nos mecanismos de prevenção, na preparação das estruturas, e nas respostas coordenadas internacionalmente frente às emergência em saúde pública . A revisão do RSI foi adoptado no dia 23 de Maio de 2005 pela Assembleia da OMS, e o novo RSI entrou em vigor a 15 de Junho de 2007. Vincula atualmente 194 Estados partes, e todos membros da OMS (incluí igualmente a Santa Sé, que não é um membro da OMS). Apenas um Estado permanece fora da OMS e do RSI (Liechtenstein). O objectivo e o alcance do novo RSI são largos (WHO, 2008). O seu objectivo geral é prevenir a propagação das doenças num plano internacional, proteger-se melhor contra as mesmas, e dominar e reagir com uma cação de saúde pública proporcionada e limitada aos riscos exatamente avaliados, evitando criar obstáculos inúteis ao tráfego e ao comércio internacionais (cf. Introdução, RSI, 2005). Os domínios afectados pela nova execução do RSI incluem onze matérias, cobrindo todos os tipos de doenças (e

não somente

uma

lista

restrita

de

doenças

internacionalmente identificadas, como era o caso no RSI de 1969). Isto inclui as doenças que têm origem ou fontes biológicas, químicas ou radionucleares, e que são potencialmente transmitidos por pessoas (por exemplo Síndroma Respiratória Aguda Severa [SARS], Gripe, Poliomielite, Ebola), bem como por mercadorias, alimentos, animais (riscos zoonóticos), vectores (por exemplo: Peste, Febre amarela, Febre do Nilo Ocidental), ou inclui aspetos ambientais (por exemplo: libertações radionucleares, libertação de produto químico ou qualquer outra contaminação) (WHO, 2009). É pedido aos Estados partes que comuniquem sistematicamente à OMS informações sobre a existência no seu território de quatro doenças tidas como críticas, em todas as circunstâncias. Esta lista inclui: a Varíola, a Poliomielite devida ao poliovírus selvagem, a Gripe humana provocada por novo sub-tipo, e o SRAS. O RSI de 2005 exige igualmente a avaliação no prazo de 48 horas, seguido da notificação num máximo de 24 horas à OMS de qualquer acontecimentos de saúde pública (inclui qualquer tipo de doença com origem ou fontes biológicas, químicas ou radionucleares), que constitui uma Emergência de Saúde Pública de Importância

1100

Internacional (ESPII)(mais conhecido sob o nome seu nome e abreviatura inglesa PHEIC Público Health Emergency of Internacional Concern) (cf. RSI, Anexo 2). Uma ESPII é sempre avaliada pelas autoridades nacionais, em função de um algoritmo, que exige que pelo menos dois de quatro critérios sejam reunidos. Esses quatro critérios são os seguintes: 1. Gravidade do impacto na saúde pública; 2. Situação inusitada ou inesperada; 3. Risco significativo de propagação internacional; 4. Risco significativo de restrição às viagens ou ao comércio internacionais. Complementando

este

dispositivo,

os

Estados

partes

devem

comunicar

sistematicamente notificar à OMS a existência no seu território de cinco doenças (Cólera, Peste pneumônica, Febre amarela, Febre hemorrágica viral e Febre do Nilo Ocidental), desde que preenchem os critérios do algoritmo para ESPII (por exemplo: nunca houve qualquer surto dessas doenças no país ou numa zona do país, e existe um risco significativo de propagação internacional). Em bom rigor, e para além desta lista de cinco doenças (ou tipos de doenças), inclui-se neste mecanismo de notificação sistemática ainda outras doenças (eventualmente desconhecidas) de interesse nacional ou regional. Essas obrigações obrigam os Estados partes a ter uma atitude cada vez mais atenta, devido à amplitude potencial de situações de saúde pública que devem ser escrutinada através dos critérios do algoritmo fornecido no RSI. Há, contudo, dúvidas legítimas sobre a eficácia da implementação do RSI hoje.

Desafios na implementação do Regulamento Sanitário Internacional Os Estados partes no RSI de 2005 têm agora papéis e responsabilidades acrescidas, no que diz respeito a aspectos internacionais e nacionais em saúde pública. A OMS deixa indicações bastante directivas acerca daquilo que espera, como medidas de preparação, nos vários patamares dos sistemas nacionais de saúde, num plano nacional, regional ou local (saúde primária ou comunitária). Falta saber se isso chegará.

Adaptação das estruturas nacionais em saúde pública Segundo a OMS, o núcleo da responsabilidade nacionais engloba seis assuntos escolhidos como prioritários: o

Pontos focais nacionais do RSI: designação e operacionalização;

1101

o

Deteção, emissão de relatórios, verificação e controlo de situações, bem como comunicações conexas, internas e internacionais;

o

Comunicação e colaboração com a OMS;

o

Implementação dos documentos do RSI (2005): certificado de controlo sanitário do navio; Certificado internacional de vacinação e profilaxia; Declaração Marítima de Saúde; Parte sobre a saúde da Declaração geral da aeronave;

o

Designação de pontos de entrada (portos, aeroportos e travessias terrestres) para o desenvolvimento de capacidades de saúde pública essenciais;



Identificação (e informação da OMS) de portos autorizados a emitir certificado de controlo sanitário do navio e fornecer serviços conexos.



(assuntos considerados como prioritários para a aplicação do RSI, 2005 [OMS, 2009])(nossa tradução).

Os Estados partes no RSI de 2005 devem reforçar as capacidades de vigilância e resposta para de detectar, avaliar, informar e de reportar acontecimentos de saúde pública à OMS e igualmente responder, sobre o terreno, nos diferentes níveis (primário, regional ou nacional), aos riscos e as urgências de saúde pública. A OMS fornece o apoio e a ajuda para a avaliação e a execução na vigilância e na resposta, mas os Estados devem desempenhar um papel activo, informando a OMS quanto aos organismos competentes e aos procedimentos (por exemplo pontos focais nacionais para a implementação do RSI). As normas nacionais no domínio da saúde é respeitada, mas deve alinhar-se com os objectivos do RSI de 2005 (art. 3.º, do RSI de 2005), obedecendo a três categorias dos princípios: em primeiro lugar, abordagem de pleno respeito para a dignidade, direitos humanos e liberdade fundamental da pessoa, de acordo com os princípios do direito internacional público; em segundo lugar, conformidade com a Carta das Nações Unidas e Constituição da Organização Mundial da Saúde; em terceiro lugar, aplicação universal do RSI a todas as pessoas do mundo. A execução do novo RSI tem um pendor progressivo. De acordo com o prazo previsto pela OMS, os Estados, com o apoio das estruturas regionais da OMS, devem responder às exigências do RSI tão cedo quanto possível, mas não mais tarde do que cinco anos após a sua entrada em vigor (em Junho 2007). O RSI (artigos 5.º e 13.º do RSI de 2005; art. 2.º do

1102

Anexo 1 do RSI de 2005) define uma cronologia máxima que é de dois anos para a avaliação, e de três anos para a execução, do seguinte modo: - primeiro, entre o 15 de Junho de 2007 e o 15 de Junho de 2009: este período de dois anos é consagrado à avaliação das estruturas e dos recursos nacionais existentes, que devem desenvolver planos de acção; - segundo, entre o 15 de Junho de 2009 e o 15 de Junho de 2012: este período de três anos consiste na execução destes planos de acção para assegurar que as capacidades dos pontos focais presentes e funcionando em todo país. Este prazo pode ser prolongado ligeiramente, até dois ou mesmo quatro anos, se assim justificado. Desse modo, o prazo máximo para a implementação do RSI nos Estados parte é 23 de junho de 2016. Contudo, em 2012 menos de 20% dos países tinha atingidos os objetivos do RSI; em 2014, esse número abrangia ainda apenas 64 Estados. Hoje, só um terço dos Estados partes têm a capacidade – prevista no RSI – de avaliar, detetar, e responder a uma ESPII (CDC, 2016). No fundo, embora o novo RSI favorece uma maior cooperação internacional, conserva a antiga filosofia do RSI, dando aos Estados uma margem importante na interpretação e aplicação do mesmo. É significativo (e algo inevitável) que a OMS esteja a apoiar-se nos Estados para a disseminação do conhecimento do RSI. Ora, já se comprovou em estudos passados que o RSI continua não muito bem conhecido pelos profissionais da saúde em sectores geográficos onde o número de pessoas vulneráveis é precisamente mais importante. Ofili et al. (2002), por exemplo, num estudo junto de médicos na Universidade (estadual) do Hospital de Benin City e do Hospital Central (Nigéria), verificou que o conhecimento das doenças notificáveis era, já na vigência do antigo RSI, bastante limitado. Caberá agora à comunidade académica, e não só, superar esta lacuna, em particular nos países lusófonos.

Desafios específico ao países lusófonos A Cimeira dos chefes de estado e de governo que teve lugar em Lisboa, em 17 de julho de 1996, marcou a criação da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), com a adopção de uma Declaração constitutiva e dos Estatutos da organização

1103

internacional. Os estatutos entraram efectivamente em vigor em 24 de maio de 1999, após a ratificação pelo último Estado-membro fundador. O artigo 4.º dos Estatutos indicam que: 1. São objetivos gerais da CPLP: a) A concertação político-diplomática entre os seus membros em matéria de relações internacionais, nomeadamente para o reforço da sua presença nos fora internacionais; b) A cooperação em todos os domínios, inclusive os da educação, saúde, ciência e tecnologia, defesa, oceanos e assuntos do mar, agricultura, segurança alimentar, administração pública, comunicações, justiça, segurança pública, economia, comércio, cultura, desporto e comunicação social. (…)(nosso sublinhado). O artigo 1.º dos estatutos descreve a CPLP como: "um Fórum Multilateral privilegiado para o aprofundamento da amizade mútua e cooperação entre os seus membros". Esse amplo objectivo recorda o artigo 1.º da Carta das Nações Unidas. De um modo geral, e apesar de referir a questão da saúde como um dos objetivos da organização, poucas reuniões dos órgãos da organização focaram diretamente a questão da saúde, e nunca em relação à coordenação com a OMS quanto à implementação do RSI. Importa por isso fazer um balanço país por país, e tirar do mesmo algumas lições. Atualmente, os Estados-membros da CPLP são nove: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe, e TimorLeste. Em Angola, o Regulamento Sanitário Internacional foi rapidamente aprovado, através da Resolução 32/08, de 1 de setembro de 2008, da Assembleia Nacional. A Resolução em questão recomendava ao Governo a urgente atualização do Regulamento Sanitário Nacional com vista a sua adaptação ao RSI. Contudo, e apesar de reafirmado várias vezes (inclusive pelos representantes da OMS em Angola) desde 2011, o novo regulamento nunca viu a luz. No Brasil, o RSI foi aprovado no plano interno em 2009 (Decreto Legislativo 395/2009) e as estruturas de Saúde Pública adaptada quase inteiramente, em particular com a contribuição da importante Agência Nacional de Vigilância Santária (Anvisa). Em 2012, data patamar para a implementação do RSI, o governo brasileiro monitorizou esta implementação, concluindo ter já alcançado perto de 100% dos objetivos previstos (Hage Carmo, 2013). NO caso de Cabo Verde, o RSI foi aprovado em 2010 (através do Decreto n.º 9/2010), e atualmente a situação de implementação é boa. Na Guiné-Bissau, pais que dispõe de um Instituto Nacional de Saúde

da

Guiné-Bissau

(INASA),

carece-se

contudo

de

informações

sobre

a

implementação do RSI. A última informação official disponível, no final de 2015, indicava a

1104

criação (tardia) do primeiro posto de inspeção de normas do RSI no aeroporto internacional da capital, Bissau. No caso da Guiné Equatorial, cuja situação política é complexa, o acesso às fontes de informação não é fácil. As últimas informações, provenientes da OMS, indicavam o estado preocupante da situação sanitária, com a inclusão do país, em final de 2014, na lista dos paises “exportadores” do poliovirus selvagem, após a deteção da importação para o Brasil de uma contaminação originária da Guiné Equatorial (European Centre for Disease Prevention and Control, 2017).

Em Moçambique, a situação da

implementação do RSI está atrasada, como o próprio Ministério da Saúde reconhece (os primeiros passos para a implementação começaram só em 2011)(Instituto Nacional de Saúde, 2017). Em Portugal, a aplicação do RSI não coloca qualquer problema. Apenas se nota que a versão de divulgação do RSI (através do o Aviso n.º 12/2008, do Ministério dos Negócios Estrangeiros), em format PDF, é de dificil manuseamento. Em São Tomé e Príncipe, e segundo a informação recolhida no site do Observatório Africano da Saúde, o sistema de vigilância em saúde pública na parte que concerne o RSI não apresenta problemas (OAS/OMS, 2014). Finalmente, e no caso de Timor-Leste, as informações são escassas. No relatório sobre a estratégia de cooperação do país com a OMS 2015-2019, não há sequer uma menção da implementação do RSI (WHO, 2016). Esta area de estudo, em em especial o espaço que deve ser reservado ao trabalho conjunto, em língua portuguesa, para uma melhor coordenação da implementação do RSI, está no seu princípio. Iniciativas conjuntas, nos órgãos da CPLP, deveriam ser acentuados. Em certos setores, como a colaboração com a Organização Internacional do Trabalho, bons resultados foram alcançados. Nada obsta, portanto, a que seja feito um mesmo esforço de cooperação com a OMS, numa área do direito e das políticas públicas tão essencial para o bem-estar das populações.

Referências bibliográficas

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1105

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1106

Eixo 12 – Determinantes sociais da saúde

Acolhimento em uma Unidade Básica de Saúde no Município de Santarém/PA: Percepção dos usuários. Larissa Ádna Neves Silva1

RESUMO: Trata-se de uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa na qual buscou compreender como ocorre a prática do acolhimento, de acordo com a percepção dos usuários, na Unidade Básica de Saúde do Bairro Mapiri, no município de Santarém/PA. A coleta de dados foi realizada com 10 (dez) usuários dos serviços de saúde, por meio de entrevistas semiestruturadas, do tipo aberta pertinente a temática, que foram analisadas e categorizadas pelo método de análise de conteúdo de Laurence Bardin, as categorias a seguir foram selecionadas: desrespeito com o indivíduo, classificando-o pela sua classe social, poucos profissionais para realizar o atendimento, ampliando as filas e o tempo de espera, pessoas despreparadas para orientar os usuários, dificuldade na resolutividade do problema e profissionais despreocupados com a condição da pessoa. Os usuários atribuíram um conceito a acolhimento que se interligou com a ideia do atendimento considerando a integralidade do sujeito e a sua expectativa quando é atendido. O acolhimento compreendido como tecnologia para as relações humanas, dinamiza o ambiente integrando a necessidade à realidade do sujeito, torna-se fundamental essa compreensão por profissionais e usuários para que trabalhem juntos em busca de promoção e prevenção a saúde. Palavras-chave: Atenção Básica; Acolhimento; Profissional/usuário.

Introdução A inclusão da Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS, em 2004, evidencia a humanização como sendo o guia das atividades de saúde em todas as instâncias do Sistema Único de Saúde. Política essa que detém como eixo principal para seu desenvolvimento, o acolhimento, na qual de acordo com Ministério da Saúde “é um modo de operar os processos de trabalho em saúde, de forma a atender todos que procuram os serviços de saúde, ouvindo o usuário e assumindo uma postura capaz de acolher, escutar e dar respostas mais adequadas aos usuários” (1). Para uma reorganização dos processos de práticas em saúde e proporcionar maior resolutividade das atividades em saúde, faz-se necessário que as pessoas que buscam atendimento sejam acolhidas. Acolher transcende a concepção de acesso ao serviço de 1

Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. E-mail: [email protected]

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saúde, é além de uma ação de porta de entrada e recepção do usuário. Acolher, baseia-se no desenvolver de um processo contínuo, sendo envolvido pela sensibilidade e conhecimento técnico-científico de todo o conjunto de profissionais para detectar necessidades de saúde decorrente de processos sociais, físicos biológicos, ambientais e mentais (2). O Sistema Único de Saúde ao longo da sua implementação apresenta avanços importantes quanto ao acesso às ações de saúde, principalmente no que se refere à atenção básica como porta de entrada preferencial do sistema. No entanto, adversidades são enfrentadas pelos gestores, principalmente relacionada à oferta desordenada e por vezes, duplicada dos serviços, além de uma desarticulação da rede de atenção que levam ao desenvolvimento de grandes filas, pacientes em corredores, estruturas físicas precárias, a falta de condições para a realização da assistência por parte dos profissionais de saúde e/ou a falta de comunicação adequada entre os profissionais e os usuários (3). O acolhimento dentro das Unidades Básicas de Saúde (UBS) é uma estratégia de mudança para a reorientação dos processos mecanizados de trabalho, visando garantir os direitos de todos, quanto ao acesso e a integralidade na atenção e modificando as relações entre profissionais e usuários, visto que a Atenção Primária é a porta de entrada para os usuários dos serviços de saúde. Os indivíduos diariamente buscam dos profissionais, atenção, apoio e a resolução dos seus problemas, remetendo-se a situações de desconforto em grandes filas de espera, e constrangimentos quanto a sua realidade social, o que os leva a procurar os serviços na Atenção Secundária e Terciária, superlotando os hospitais e desmistificando o papel central da UBS. Nesta proposição, compreender como ocorre a prática de acolhimento dentro das Unidades Básicas de Saúde do município de Santarém/PA e identificar os aspectos que dificultam e favorecem o relacionamento profissional/usuário é indispensável para conceber estratégias de mudanças na lógica do atendimento, contribuindo como base aos gestores na criação de políticas e programas efetivos para a promoção da saúde e na percepção

dos

usuários

e

profissionais

como

protagonistas

no

seu

processo

saúde/doença.

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Metodologia Trata-se de um estudo baseado na pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa. A pesquisa foi realizada no Bairro Mapiri, na cidade de Santarém/PA, onde fica localizado a unidade de saúde em estudo e a amostragem do estudo foi composta por 10 (dez) usuários dos serviços de saúde que foram escolhidos de forma aleatória. Foram incluídos: usuários dos serviços de saúde na Unidade Básica de Saúde do Bairro Mapiri, com idade igual ou superior a 18 anos e usuários que utilizassem os serviços da Unidade Básica de Saúde do Bairro. Os dados foram coletados por meio de uma entrevista semiestruturada, do tipo aberta pertinente a temática, sendo questionados quanto a atividade de acolhimento desenvolvido na unidade em estudo. Foram utilizados pontos chaves para nortear a conversa, entre eles: atendimento na Unidade Básica, orientação recebida na chegada ao serviço e se houve atendimento e resolução dos problemas que o levaram ao serviço. Solicitando ainda que o morador atribuísse um conceito a acolhimento e revelasse o seu nível de satisfação com os serviços. O tempo de duração média de cada entrevista variou de 10 a 15 minutos, dependendo da disponibilidade e possibilidade do usuário. Sendo realizada na residência do entrevistado, por ser um ambiente doméstico, privado, no qual o participante obtém mais liberdade de expressão e menos preocupação com o tempo. As informações obtidas foram submetidas a verificação de forma qualitativa. A análise do conteúdo foi realizada empregando o método analítico descritivo segundo Bardin (2011). As respostas foram transcritas integralmente e selecionadas para concretizar as discussões, recortando as partes mais marcantes do discurso para compreensão do processo, e para elaboração da possível intervenção na comunidade. As informações obtidas foram submetidas a verificação de forma qualitativa. A análise do conteúdo foi realizada empregando o método analítico descritivo. As respostas foram transcritas integralmente e selecionadas para concretizar as discussões, recortando as partes mais marcantes do discurso para compreensão do processo, e para elaboração da possível intervenção na comunidade.

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Resultados e Discussão A pesquisa foi integrada por 10 (dez) moradores do bairro que aceitaram participar voluntariamente do estudo após a explanação de todos os assuntos a serem abordados. Com as opiniões e percepções dos pesquisados, as seguintes categorias puderam ser organizadas e apresentadas com recorte dos discursos dos participantes da pesquisa, identificando os principais problemas que dificultam e favorecem o relacionamento profissional/usuário: a.

Desrespeito com o indivíduo, classificando-o pela sua classe social;

O atendimento nos serviços públicos de saúde sempre foi alvo de críticas, por apresentarem uma assistência desumana, carente de respeito e atenção pelos profissionais, estes considerados sempre inferiores aos serviços particulares (2). Na fala dos participantes da pesquisa, pode-se perceber a preocupação com a sua condição econômica, justificando a forma como são atendidos: “(...) Não, ela tem dinheiro, coloca ela logo aí na frente. Deixa esse daí porque ele é pobre e não tem nada.” “Se você tiver alguma coisa, você sempre vai estar na frente, se não tiver, quando sobrar que você vai conseguir.”

b.

poucos profissionais para realizar o atendimento, ampliando as filas e o

tempo de espera; A grande procura pela Unidade Básica de Saúde, para o atendimento e resolução dos problemas antes que estes se agravem e demandem serviços de emergência, resultam em uma demanda excessiva de usuários, provocando filas intermináveis e as vezes até o não atendimento das pessoas que precisam. Os entrevistados através de suas falas deixam claro que a carência de profissionais, aumenta o tempo de espera e compromete a qualidade dos serviços: “(...) precisava assim, mais de uma gente pra atender, né?” “Muita gente pra atender e ainda tem pessoas que vem de outro bairro, e aí fica sobrecarregado o atendimento.”

c.

Pessoas despreparadas para orientar os usuários;

Autores afirmam que o acolhimento só será mais efetivo se houver capacitação para os profissionais, para que estes saibam recepcionar, escutar, atender, dialogar, tomar decisão, amparar, orientar e negociar visando o bem-estar do cidadão (4). Na Atenção 1110

Básica são prementes os problemas na relação trabalhador-usuário, visto que os trabalhadores parecem não estar preparados para prestar o atendimento, possuem poucas informações a respeito dos serviços e não sabem ouvir e interpretar as necessidades que são expostas a eles. Os entrevistados exprimiram a importância de que haja capacitação para os profissionais em suas falas: “Eu acho que pra mim é as demandas do posto que tem que ter uma pessoa mais orientada.” “Acho assim, pra você ter um acolhimento de pessoas, você tem que ter um estudo feito para que você saiba receber as pessoas.”

d.

Dificuldade na resolutividade do problema;

A falta de medicamentos na farmácia básica é constante dentro das Unidades Básicas de Saúde, dificultando a acessibilidade destes aos usuários que necessitam. Alguns entrevistados deixaram claro a decepção em não conseguirem os medicamentos necessários para o controle de suas patologias ou problemas convenientes, estes ainda sentem que ocorre acepção de pessoas dentro da Unidade na disponibilidade de remédios: “Fizeram o posto, diz que agora bonito, mas pra que? Não tem nada dentro.” “Tem remédio aqui? Não, não tem! Aí a gente tem que comprar fora. As vezes a gente tá sabendo que tem medicamento porque a gente vê eles dando para outras pessoas. ”

e.

Profissionais despreocupados com a condição da pessoa;

O acolhimento é utilizado como ferramenta entre usuários e trabalhadores para as práticas relacionais. Nessa dinâmica, o usuário espera, no mínimo, ser bem atendido, que seja acolhido de forma humanizada e integral por profissional de saúde que se importe com seus problemas, a fim de tentar ao menos esclarecer suas dúvidas, compreender seus medos, angústias, incertezas dando-lhe apoio e atenção permanente (5). Os entrevistados ao retratarem sobre acolhimento evidenciaram em suas falas a necessidade da humanização no atendimento e de considerar o sujeito na sua integralidade, emitindo exemplo de como deveria ser o “acolher”:

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“Eles não têm consideração com gente de idade, eu achei que quando chegasse na minha idade, na idade dessa senhora daqui, iam dizer: Agora vamos da prioridade para as senhoras de mais idade! Mas não, é uma situação meio crítica.” “Acolhimento é a pessoa chega lá e ser bem recebido, o que a senhora deseja, o que a senhora quer, por que se eu vou falar com você é por que de alguma coisa eu estou precisando.”

As categorias identificadas foram separadas de acordo com a premência do assunto nas entrevistas. Verificou-se nas entrevistas que todos os usuários, mesmo citando a problemática na realidade da Unidade, conseguiram ser atendidos. No entanto pode-se perceber nas entrevistas que alguns usuários pareciam estar satisfeitos com o atendimento e outros explicitaram sua angústia, mesmo com o seu problema resolvido. A percepção do usuário é fundamental para que haja mudanças no modelo assistencial vigente. Desde a década de 80, movimentos populares permeiam as conquistas e avanços do Sistema Único de Saúde, tanto que na Constituição de 1988 foram garantidos dentro do seu arcabouço jurídico os princípios mais democráticos e universalistas, objetivando a inclusão social. Entretanto, tais avanços na prática não são concebidos ou realizados como estão escritos. O acolhimento, a humanização no atendimento e a integralidade da atenção e o vínculo, ditos por Trindade (2010) e diversos autores, são ferramentas indispensáveis para a modificação das relações entre os sujeitos sociais. São essas que resgatam a realidade dos princípios do SUS e promovem a mudança no processo de trabalho. Neste sentido, as discussões com os usuários, constituíram momentos importantes em que estes devem ser usados para possível melhoria do atendimento na Unidade. Em nosso estudo, percebemos que diversas falas sobre acolhimento convergiram, inclusive quando ditas as dificuldades sentidas para serem atendidos. A maioria dos entrevistados

foram

expressivos

nas

conversas

explicitando

os

mesmos

descontentamentos e indignação ao mencionarem os problemas existentes quanto a demora e o atendimento inadequado por parte dos profissionais, a falta de medicamentos e recursos humanos. Alguns usuários têm a opinião e visão reduzida e sobre o que é acolhimento, por reconhecerem que a resolutividade do problema não é completa, mas que conformados aceitam que o Sistema Único de Saúde funciona assim, estes ainda estão voltando ao conceito de saúde predito antes como ausência de doença e não com o bem-estar físico, mental e social do ser humano.

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Os usuários ainda chamam a atenção para a necessidade da humanização no atendimento e de profissionais preocupados com a condição da pessoa. Quando dado a falta dessas ferramentas ocorre um entrave na relação trabalhador/usuário impedindo o estabelecimento de vínculos e a resolutividade do problema, corroborando com a ideia de que não existe realmente mais espaço para o profissional que tem a visão fragmentada e individualista na realização do atendimento (6). Os usuários centralizaram-se na figura do médico e na necessidade de mais profissionais desses para prestar atendimento, todavia reconhecem que tudo inicia-se pela porta de entrada na Unidade Básica de Saúde, ali mesmo na recepção, e que todos os profissionais estão aptos e precisam realizar o acolhimento mais eficaz possível. Esse reconhecimento deve ser visto não só pelos profissionais, mas também pela população assistida sobre o que é acolhimento, envolvendo aspectos humanísticos e organizacionais no seu processo de produção de saúde. Quando ouvidos revelaram suas opiniões em relação aos serviços de saúde e expressaram de diversas maneiras, frases reflexivas que emitem a ideia de eles só querem ser acolhidos eficazmente, como diz o entrevistado A: “Quando a gente é tratado mal num lugar, a gente não vai lá, porque a gente sabe que vai ser tratado mal” ou o entrevistado F na necessidade de melhorar o tratamento: “Nós somos iguais. Juiz não é feito de ferro e nem advogado de madeira, todos somos iguais. Observa-se também que as pessoas a medida que procuram os serviços de saúde criam suas avaliações a respeito das ações experimentadas por eles anteriormente e estas são repassadas para os seus vizinhos e familiares o que acaba determinando a qualidade do serviço proporcionado. A carência de medicamentos e a dificuldade para realização de exames que é constante na Unidade, segundo os usuários, compromete a qualidade do serviço. Estes ainda ressaltam que é mais fácil fazer em uma clínica privada, como diz o entrevistado D “é, as vezes quando eu tô muito apressada e se eu tiver dinheiro, eu faço logo e levo para o médico do SUS” do que esperar em filas à procura de fichas, o outro entrevistado C, relata não ir a Unidade por ter pavor ao modo como é realizado o atendimento “utilizo o plano privado na firma em que eu trabalho”. Outras recorrem a medicina alternativas, como diz o entrevistado A: “muitos recorrem a esta benzedeira quando não conseguem atendimento com o médico. Ela receita” e o entrevistado B “a forma como são tratados por ela, eles (as pessoas atendidas) se sentem mais confortáveis”, logo essas pessoas fazem o uso recorrente de plantas medicinais “utilizo remédios caseiros, tenho várias plantas aqui

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e eu tomo com fé que ela vai me curar”, “utilizo remédios caseiros quando as crianças estão gripadas e não tem dinheiro para comprar, a gente inventa um remédio”. O acolhimento compreendido como tecnologia para as relações humanas, dinamiza o ambiente integrando a necessidade à realidade do sujeito, torna-se fundamental essa compreensão por profissionais e usuários para que trabalhem juntos em busca de promoção e prevenção a saúde.

Conclusões Este estudo permitiu reconhecer os obstáculos enfrentados pelos usuários na aplicabilidade do acolhimento na Unidade Básica de Saúde do Bairro Mapiri, e que revelaram as situações em que são submetidos os usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), na percepção dos mesmos. A pesquisa foi realizada durante as eleições e é muito claro que as pessoas ao expressarem suas opiniões, colocam que os gestores têm o poder de decisão na organização do trabalho. Tanto que durante a realização deste trabalho, estes perguntavam se éramos de algum cabo eleitoral, se estávamos fazendo campanha ou pesquisa de opinião pública que pudesse trazer melhorias para o bairro. Os usuários demonstraram a importância da mudança na postura profissional, para que tenha a ruptura do modelo biomédico, individualista e mecanicista para uma visão mais holística da realidade social e integral do ser humano. Assim, é necessário colocar-se no lugar do outro para que essa barreira seja vencida e o vínculo entre o profissional e o usuário estabelecido.

Referências 1 Brasil, Ministério da Saúde. Acolhimento as práticas de produção de saúde/Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. 2º edição. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. 2 Guedes, MVC. Henriques, ACPT. Lima, MMN. Acolhimento em um serviço de emergência: percepção dos usuários. Revista Bras. Enferm. Brasília: 2013, jan-fev. 3 Viana, RV. A humanização no atendimento: construindo uma nova cultura. Dissertação. Brasília, 2004. 4 Litwinki, GIS. O acolhimento como uma ferramenta para a melhoria da qualidade do acolhimento na unidade básica de saúde. UFMG. Belo Horizonte: 2011.

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5 Aranha, J.S. Silva, MÊS. Silva, JL.L. Acolhimento e humanização: perspectiva do atendimento na atenção básica. Informe-se em promoção da saúde, v.7, n.2, 2011. 6 Trindade, CR. A importância do acolhimento no processo de trabalho das equipes de saúde da família. Monografia do curso de especialização em atenção básica e saúde da família. Belo Horizonte, 2010.

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Determinantes Sociais da Saúde vs Determinação Social da Saúde: Uma aproximação conceitual1 Carlos Dornels Freire de Souza2

RESUMO: Objetivo: Explorar os conceitos de determinantes sociais da saúde e de determinação social da saúde, estabelecendo as principais diferenças e críticas. Metodologia: Trata-se de uma revisão bibliográfica utilizando o método hipotético-dedutivo. Resultados e Discussão: Diferenças históricas, epistemológicas e de arcabouço teóricometodológico podem ser evidenciadas na construção e aplicação dos conceitos de determinantes sociais e de determinação social. Complementares em determinados momentos, excludentes em outros. Próximos num mesmo objetivo, que é tentar entender o processo saúde-doença. Conclusão: Os dois modelos trazem contribuições importantes para a compreensão do fenômeno saúde-doença, possuindo vantagens e desvantagem, fortalezas e fragilidades. Palavras-Chave: Determinantes Sociais da Saúde; condições sociais; condições de vida

Introdução No ideário popular, diz-se que a vida imita a arte [ou será o contrário? ]. Talvez ambas as afirmações sejam verdadeiras. O fato é que ao longo do século XX, o espetáculo multiforme da vida foi predito pela arte ao mesmo tempo em que ela, a arte, denunciou a polissemia das múltiplas cenas da saga humana, vivida por personagens reais, nem sempre sujeitos de si, mas frutos do meio e do contexto sócio-histórico. Em 1967, enquanto estava exilado na França, o médico e geógrafo recifense Josué de Castro escreveu o único romance de sua carreira. Homens e caranguejos é uma obra atemporal povoada pela nostalgia do autor, sobretudo no seu prefácio intitulado “Prefácio um tanto gordo para um romance um tanto magro”. Diz ele “O tema deste livro é a história da descoberta que da fome fiz nos meus anos de infância, nos alagados da cidade de Recife, onde convivi com os afogados deste mar de miséria” (1). A obra conta a sua história pobre nos manguezais da Veneza brasileira, mostrando o mimetismo entre os homens e os caranguejos, que dividiam o mesmo espaço, e o modo

Este texto é parte do projeto de Pesquisa intitulado “HANSENÍASE NO ESTADO DA BAHIA E DETERMINANTES SOCIAIS DA SAÚDE: Compreensão dinâmica de um fenômeno complexo - Uma abordagem a partir de métodos quantitativos 2 Universidade Federal de Alagoas (Curso de Medicina). E-mail do autor assistente/principal: [email protected] 1

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como esses mesmos homens tornavam-se cada vez mais parecidos com os caranguejos, seus irmãos de leite. Uma denúncia figurada da íntima relação entre o social e o natural. Duas décadas antes, outro pernambucano, o poeta Manuel Bandeira escreveu “O bicho” (2). Dizia ele: “Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”. (MANOEL BANDEIRA, 1947)

Era um prelúdio do que viria a ser chamado de “Homem-gabiru”, em reportagem jornalística de 1991. Uma nova raça do Nordeste brasileiro, gerada pela [abundante] falta de tudo. Fruto do meio, corroído pela miséria e chupado pela fome, o corpo definhado e emagrecido não passava de 1,35 m de altura, razão pela qual assemelhou-se a ratos de esgoto [gabirus]. Esses dois relatos representam uma incipiente síntese do que escreveu brilhantemente Bruno Pichhi em ensaio no qual analisa a evolução do pensamento do “Geógrafo da fome”. No primeiro momento, vemos que a arte imitou a vida. No segundo, o contrário se fez. Em comum? A relação entre sujeito e meio. Esses dois exemplos servem de ponto de partida para o que pretendemos discutir neste ensaio, que se materializa essencialmente na discussão sobre “determinantes sociais da saúde” e “determinação social da saúde”. Sinônimos? Excludentes? Complementares? Coisas distintas não relacionadas? Se o ponto de partida é uma reflexão acerca dos conceitos, o ponto de chegada [se conseguirmos] será a diferenciação entre eles e as principais críticas existentes.

Metodologia Trata-se de um estudo de revisão bibliográfica. Foi realizada uma busca das principais referências nacionais e internacionais a respeito dos temas “Determinantes Sociais da Saúde” e “Determinação Social da Saúde” nas principais bases de dados. Adotou-se o método hipotético-dedutivo para a construção do presente ensaio.

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Resultados e discussão Determinantes Sociais da Saúde vs Determinação Social da Saúde A palavras determinar tem sua origem na junção de terminar (do latim terminare) que significa “demarcar, concluir, limitar”, acrescido do prefixo DE-, “para fora”. Em simples conceituação, poderíamos dizer que o termo se refere ao conjunto de elementos externos que delimitam ou demarcam um processo (3). O mesmo é aplicado ao termo determinação. Embora do ponto de vista etimológico não seja possível evidenciar diferenças, sob a égide epistêmica, a diferenciação é necessária e está assentada em momentos históricos. Determinantes sociais tem relação com o cartesianismo do século XIX, caracterizado pela causalidade da doença (epidemiologia clássica), enquanto que determinação social ganhou corpo com o nascimento da epidemiologia social e considera a articulação dinâmica entre os diferentes elementos, numa perspectiva complexa, no qual não é adequado o isolamento das variáveis – e nem poderia ser, uma vez que determinados processos tão somente existem como produto da inter-relação entre outros dois (4,5,6). No campo da saúde, a expressão “Determinantes Sociais da Saúde” ou simplesmente “DSS”, ganhou espaço nas últimas décadas e vem sendo incorporada ao arcabouço conceitual da saúde, muito embora, desde o século XIX, pesquisadores e cientistas já exploravam em seus estudos a influência dos fatores sociais na saúde da população. Edwin Chadwick (1800-1890) estudou as condições sanitárias da população trabalhadora da Grã-Bretanha. Louis René Villermé (1782–1863) publicou um relatório analisando a relação entre renda e mortalidade em Paris (Tableau de l'état physique et moral des ouvriers). John Snow (1813-1858) estudou a fundo a epidemia de cólera em Londres e pôs em evidência o processo de transmissibilidade da doença por meio da água contaminada (6,7). Muitos conceitos, sintéticos ou mais detalhados, foram adotados na perspectiva de caracterizar a relação entre os elementos sociais e o adoecimento. O que todos eles afirmam é que as condições nas quais as pessoas vivem e trabalham favorecem determinados padrões de morbimortalidade. A definição mais sintética de DSS foi proposta por Tarlov, que definiu como as condições sociais dentro das quais a vida opera (8). O espectro dessas condições é amplo,

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variando desde elementos macrodimensionais, aparentemente distantes da vida dos sujeitos e expressos por fatores socioeconômicos e políticos gerais, muitas vezes definidos no nível global, passando por elementos intermediários, como o contexto social e redes de coesão, até aqueles elementos próximos e intimamente relacionados ao próprio sujeito, como a sua inserção no mercado de trabalho, suas relações familiares e com os demais membros da sua comunidade. Todos esses elementos estão conectados por uma complexa teia de mediações, caracterizada como de múltiplas influências e de reciprocidades. Meia década depois, Nancy Grieger, autora da teoria ecossocial, deu aos DSS um aspecto funcionalista ao conceituar como as condições sociais que afetam a saúde e que podem ser objeto de intervenção capaz de transformar ou modificar as condições nas quais as pessoas nascem, crescem, vivem, trabalham, envelhecem e morrem (9). Em verdade, a temática ganhou destaque a partir da década de 1970 com a conferência de Alma-Ata e novo fôlego na década de 1990 com a discussão entorno das Metas do Milênio, que ratificaram a necessidade de criação da Comissão sobre Determinantes Sociais da Organização Mundial da Saúde (Commission on Social Determinants of Health – CSDH), ocorrida em 2005. No ano seguinte, o Brasil cria a Comissão Nacional Sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), sendo o primeiro país do planeta a comprometer-se diretamente com a superação das iniquidades sociais (10). Desde a sua criação, a comissão brasileira vem se dedicando ao estudo da influência das condições socioeconômicas na situação de saúde da população. Sua composição, formada por pessoas da sociedade civil, artistas e cientistas de diferentes áreas do conhecimento põe em evidência o conceito de saúde como um bem social pertencente a todos, razão pela qual foi tipificado como direito social expresso no caput do artigo 6º da Carta Magna Brasileira. Ao lado de outros direitos, inscreve-se como direitos e garantias fundamentais (11). O trabalho da CNDSS está alicerçado em três compromissos: compromisso com a equidade (justiça social), compromisso com a evidência (entender como operam os determinantes sociais na produção das iniquidades em saúde e onde as intervenções devem ser realizadas) e compromisso com a ação, que se expressa pela transformação da realidade. Tais compromissos foram assumidos considerando três objetivos centrais: gerar informações e conhecimentos sobre os determinantes sociais da saúde no Brasil, contribuir

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para a formulação de políticas que promovam a equidade em saúde e mobilizar diferentes instâncias do governo e da sociedade civil sobre este tema (12). Oportunamente, é mister destacar que diferentes modelos explicativos foram construídos com o objetivo de favorecer a compreensão da complexa teia dos DSS. Dahlgren e Whitehead, Solar e Irwin, Diderichsen e Hallqvist, (adaptado por Diderichsen, Evans e Whitehead e Brunner, Marmot e Wilkinson são apenas alguns dos modelos conceituais existentes. Como não é intenção deste ensaio explorar cada modelo, vamos destacar apenas aquele proposto por Dahlgren e Whitehead, como exemplo. O modelo proposto por Dahlgren e Whitehead, também denominado de influência em camadas ou influência em níveis é o modelo explicativo mais conhecido (Figura 1). No centro está o indivíduo e seus determinantes mais próximos, os biológicos (idade, sexo e fatores hereditários). Na primeira camada, estão inseridos os estilos e hábitos de vida dos indivíduos, como a prática de exercícios, o tipo de alimentação, o consumo de bebidas alcóolicas ou cigarro. A segunda camada diz respeito as redes sociais e comunitárias na qual os indivíduos estão inseridos. Populações de classes mais baixas possuem uma rede de proteção social frágil, o que amplia a vulnerabilidade e tornam os sujeitos mais suscetíveis a padrões de adoecimento derivados, muitas vezes, da sensação de injustiça. Na terceira camada estão as condições de vida e de trabalho. A inserção ou não no mercado de trabalho, as condições de habitação, o acesso a água tratada e a esgotamento sanitário, a oferta de serviços de educação e saúde e os meios de subsistência explicam porque determinados grupos sociais são mais acometidos por agravos específicos. Na última camada, temos os determinantes mais distais e referem-se aqueles que o sujeito, individualmente, possui pouco controle, mas que influenciam na sua condição de saúde. Conforme anteriormente mencionado, geralmente são definidos longe da capacidade de interlocução ativa das pessoas. Os fatores econômicos nacionais e globais são exemplos disso. Outros elementos presentes nesse nível são aqueles relacionados aos elementos culturais e ambientais gerais. Nas nações onde há pouca tolerância com a diversidade, há maior probabilidade da ocorrência de conflitos e guerras do que aquelas que cultivam a igualdade como princípio.

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Figura 1. Modelo de Determinantes Sociais da Saúde proposto por Dahlgren e WhiteHead

Fonte: Dahlgren e WhiteHead (13)

Mesmo diante de tamanho arcabouçou teórico, são pungentes as críticas ao modo como se busca compreender os determinantes e sua influência no fenômeno saúdedoença. Críticos, como Rita Barradas Barata, asseguram que a fragmentação do processo torna incapaz o entendimento do todo e sua complexidade. Essa fragmentação pode ser percebida quando as variáveis são isoladas em modelos matemáticos, não colocando em evidência os produtos das interações entre esses determinantes. Borde et al (14) corroboram com esse pensamento afirmando que o modelo DSS “não propõe uma análise compreensiva das relações de poder e dos padrões de exploração, dominação e marginalização que subjazem as hierarquias sociais” (p. 846). A abordagem “desconsidera a complexidade, a multidimensionalidade e a natureza social do processo saúde-doença” (p. 847) O todo, podemos assegurar, é muito maior do que a mera soma das partes. Do mesmo modo, o processo saúde-doença não pode ser compreendido na sua totalidade com o estudo isolado de cada fragmento da realidade. Justamente em razão dessa fragilidade, surgiu o movimento que defende a “Determinação Social da Saúde” como forma capaz de superar a fragmentação observada no modelo de Determinantes Sociais da Saúde. Sustentada na Reprodução Social e alicerçada na recém-nascida epidemiologia social latino-americana, figuras como Jaime Breihl (Equador) e Juan Samaja (Argentina) destacam-se como importantes personagens desse processo. É bem verdade que a discussão trazida por esses autores é anterior a ênfase dada pela OMS ao termo “determinantes sociais”.

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A determinação social da saúde é mais ampla na medida em que discute saúdedoença como resultado de processos históricos e sociais vividos pelos sujeitos. A saúde e a doença são, portanto, oriundas das relações sociais construídas, considerando as dimensões biológica e social, conectadas de tal modo que se influenciam mutuamente, resultando em situações de desgaste ou fortalecimento (15). Para Samaja, “(...) as noções de ‘saúde’ e de ‘doença’, assim como ‘problemas de saúde’ são componentes de uma ordem descritiva que serve para qualificar estados possíveis, nos indivíduos vivos em toda a extensão da biosfera. (...) Na esfera de fenômenos humanos a saúde-doença deixa de ser um estado biológico possível vivido meramente pelos sujeitos, para tornar-se um objeto da ação e da consciência de todos os membros do coletivo social: eis a essência do conceito de ‘saúde-doença-cuidado” (16).

Fleury-Teixeira e Bronzo colocam que a Determinação Social da Saúde é uma dimensão da determinação da vida dos indivíduos e que se materializa de duas maneiras. A primeira diz respeito a interação social, isto é, ao modo como o organismo social está estruturado e como se dá a interatividade dentro desse organismo. A segunda maneira refere-se as escolhas própria do indivíduo. Seus hábitos de vida, signos e significados, valores construídos, ou seja, resultado de sua própria biografia (17). Jaime Breilh afirma que a fragmentação trazida pela concepção de determinantes sociais, conforme proposto pela OMS, que supervaloriza os fatores de risco e a causalidade (Uni ou multicausalidade), enfraquece a ideia de determinação social, tornando menos visíveis os processos sócio-histórico que determinam a saúde e a doença (18). Sobre essa questão, Rita Barata pontuou a diferença entre o conceito de causa, presente no modelo de determinantes sociais e o conceito de determinação social. O conceito de causa, na versão uni ou multicausal, necessita da identificação de eventos independentes relacionados através de uma ligação unidirecional, necessária, específica e capaz de gerar o desfecho de interesse. Tais características são raramente observadas nos processos biológicos e sociais. A busca por mecanismos de causalidade, assemelhados aos fisiopatológicos e tendo como causa um fator social está fadada ao fracasso, uma vez que os aspectos da vida social não podem ser dissociados sob pena de perderem sua significação, e de não fazerem sentido quando isolados do contexto da sua produção. O conceito de determinação é mais adequado para a compreensão de processos sociais complexos, pois não necessita do isolamento completo das variáveis nem da noção de independência entre elas. Tampouco está baseado na ideia de um vínculo necessário, genético e específico. Na

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perspectiva das diferentes variedades de determinação existentes no mundo material, os limites nem sempre são claros, não há vínculos unidirecionais, e a maioria das relações são contingentes, ou seja, não são nem necessárias nem suficientes em si mesmas (5).

A determinação social aparece, na ordem do dia, como uma alternativa a fragmentação da realidade, apontada como fragilidade da proposta de determinantes sociais. Alguns críticos, porém, tecem crítica à determinação social, alegando a falta de um arcabouço metodológico capaz de capturar essa complexidade. O certo é que cada uma das propostas possui em si fortalezas e fragilidades, não devendo haver supremacia de uma abordagem sobre a outra, mas a articulação das duas na compreensão do processo saúde-doença. Conclusões Entender os principais conceitos de determinantes sociais e de determinação social parece um caminho interessante na busca por aportes teórico-metodológicos que ajudem a compreender a dinâmica de saúde-doença na população. Parece claro que nenhuma abordagem, por mais desenvolvida que seja, dará conta de ofertar uma leitura completa da realidade. Realidade essa que se apresenta como dinâmica, polissêmica e continuamente metamorfoseada por sua própria composição. Cada proposta tem se papel no fortalecimento da ciência e na produção de novos saberes, que são produtos da evolução do próprio conhecimento, da forma de ver e ler o mundo. REFERÊNCIAS

1. CASTRO, J. Homens e caranguejos. Editora Record:2001. 2. BANDEIRA, M. O Bicho. In: Bremer, L.M. A imagem da realidade – poesia “o bicho” de Manuel Bandeira. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem; 2011; 17961804. 3. CUNHA, A.G. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 4ª edição. Editora Lexicon, 2010. 4. OLIVEIRA, M.A.C; Egry, E.Y. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúde-doença. Rev Esc Enferm USP. 2000;34(1):9-15. 5. BARATA, Rita Barradas. Epidemiologia social. Rev. bras. epidemiol. [online]. 2005, vol.8, n.1 [cited 2017-06-25], pp.7-17.

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Microrganismos prevalentes em unidade de terapia intensiva e sua relação com as infecções relacionadas a assistência à saúde

Rodrigo Quaresma Murilo Lopes1 Patrício Almeida

RESUMO: O objetivo deste estudo é identificar os principais microrganismos causadores de infecções relacionados a assistência à saúde que se desenvolvem em unidades de terapia intensiva de dois hospitais públicos de Macapá/AP. Trata-se de um estudo técnicodocumental, de caráter descritivo-exploratório, com abordagem quantitativa e qualitativa. Utilizou-se como fonte de informação o Banco de dados da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) de dois hospitais públicos de Macapá, Estado do Amapá. Referentes ao período de Janeiro à Dezembro de 2014. Observaram-se nos resultados que em um dos hospitais públicos de referência da capital a prevalência da bactéria do gênero Staphylococcus na unidade de terapia intensiva, acompanhado pela bactéria Pseudômonas aeruginosa, além Klebsiella pneumoniae, são microrganismos prevalentes neste setor do hospital. Estes agentes infecciosos podem sobreviver em superfície inanimada por um longo período, sendo perigosa fonte de transmissão. Portanto, acreditase que a pesquisa desenvolvida, contribuirá para o conhecimento destes microrganismos, e o desenvolvimento de estratégias que contribuam para a prevenção/diminuição das Infecções relacionadas a Assistência à saúde (IrAS) em âmbito hospitalar. Palavras-chave: Infecção Hospitalar; Microrganismos; Brasil

Introdução As Unidades de Terapia Intensiva (UTI) são “locais de atendimentos de pacientes graves ou de risco, que dispõe a assistência médica e de enfermagem ininterruptas, com equipamentos específicos próprios, recursos humanos especializados e acesso a tecnologias avançadas” (1). Os agravos de causas infeciosas designados como Infecções relacionadas a assistência à Saúde (IrAS) atingem frequentemente os sistemas de saúde, constituindo-se como um grave problema de saúde pública mundial, elevando não somente os custos hospitalares, como também os índices de morbidade e mortalidade entre os pacientes (2).

Mesmo diante dos avanços científicos e tecnológicos significativos na área da saúde pública, há ocorrências frequentes de doenças causadas por agentes infecciosos, desta forma, convém abordar as IRAS e seus microrganismos mais comuns em ambiente

1

Faculdade Macapá – FAMA. E-mail: [email protected]

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hospitalar. Na qual a “problemática é mais séria em UTI, devido à condição clínica e a variedade de procedimentos invasivos em pacientes acamados (3). O alto risco de mortalidade relacionada às IRAS está intimamente associado a fatores como a “realização de procedimentos invasivos diagnósticos e terapêuticos, a gravidade da doença de base que acomete o paciente, ao sitio da infecção, à adequação da terapia e à sensibilidade dos microrganismos aos antimicrobianos” (4). Na era pré-antibiótica predominavam as bactérias Streptococcus pyogenes e Staphylococcus aureus como causadores de infecções relacionadas a assistência à saúde, com a introdução de novos antimicrobianos as mesmas declinaram. As infecções por bactérias Gram-negativas e fungos surgiram, como consequência deste novo cenário as enterobacteriáceas e pseudômonas aeruginosas dominaram o ambiente das infecções hospitalares (5).

Os dados sobre IRAS no Brasil são poucos documentados, devido a consolidação reduzida das informações por diversos hospitais, dificultando o conhecimento da extensão do problema no país. Diante desta realidade, “ressalta-se que na infância, as IRAS atuam como importante fator limitante para a vida, aumentando a morbidade e mortalidade” (6). A implantação de medidas efetivas para o controle de IRAS é fundamental, o diagnóstico preciso de sua ocorrência na instituição de saúde, por meio da vigilância epidemiológica. A qual, abrange “a observação ativa, sistemática e continua da ocorrência e da distribuição dessas infecções entre os pacientes hospitalizados e dos eventos e condições que afetam o risco de sua ocorrência, com vistas à execução oportuna de ações de controle” (7). Assim, entende-se, que é de suma importância a identificação correta dos microrganismos causadores de IRAS, visando o tratamento adequado e a melhor recuperação do paciente. Sabe-se que o perfil das mesmas ainda não é completamente conhecido, porém, entende-se, que em hospitais públicos há uma maior prevalência de pacientes que adquirem infecções se comparados às instituições particulares, devido as mesmas atenderem a casos mais seletivos e de menor complexidade. Portanto, este estudo possui como objetivo buscar identificar os principais microrganismos causadores de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS), que se desenvolvem em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) de dois hospitais públicos do Estado do Amapá.

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Metodologia Trata-se de um estudo técnico documental, descritivo exploratório com abordagem quantitativa e qualitativa. Neste estudo, prioriza-se como local, as Unidades de Terapia Intensiva que pertencem aos dois Hospitais Públicos de referência regional de Macapá, Estado do Amapá. Sendo estes, denominados de Hospital de Clinicas Doutor Alberto Lima (HCAL) e Hospital da Criança e do Adolescente (HCA). Estes são localizados respectivamente na: Avenida FAB, nº 70 – Bairro Central – Macapá/AP – CEP: 68900-073 / Avenida FAB, nº 80 – Bairro Central – Macapá/AP – CEP: 68900-073. Utilizou-se como fonte de informação o banco de dados da Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) do Hospital de Clínicas Doutor Alberto Lima (HCAL) e Hospital da Criança e do Adolescente (HCA), contendo registros dos microrganismos identificados e isolados, associados as Infecções relacionadas a Assistência à Saúde (IRAS) que ocorreram no serviço das Unidades de Terapia Intensiva. Referentes ao período de janeiro a dezembro de 2014. Foram incluídos no estudo os formulários oficiais da CCIH alusivos ao período em questão, contendo os dados referentes aos agentes causadores de IrAS notificadas e documentadas, que ocorreram na UTI dos referidos hospitais, sendo excluídos aqueles em que não havia comprovação laboratorial da Infecção relacionada a assistência à saúde. Para acesso aos dados não se encontrou necessário a autorização do Comitê de Ética e Pesquisa, visando que os mesmos, fazem parte do levantamento anual da CCIH do referido hospital, onde não houve por parte do estudo contato com seres humanos ou com suas informações individuais e confidenciais. Entretanto, foi solicitado o consentimento da Coordenação da CCIH da instituição em estudo, onde foi feito uma pré-avaliação do projeto de pesquisa. Foram utilizadas ferramentas do Microsoft Office Excel para realização de descrição tabular e para sumarização dos dados obtidos nos arquivos da CCIH. Foi realizada uma análise indicativa, segundo os dados disponibilizados pela CCIH dos hospitais, que indicam a prevalência em notificações dos microrganismos causadores de IRAS nas Unidades de Terapia Intensiva. Os resultados das análises deste estudo foram disponibilizados em forma de gráficos, para melhor compreensão do leitor.

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Resultados e discussão Os resultados obtidos e analisados neste estudo foram caracterizados em forma de gráficos visando a compreensão do leitor sobre a temática a ser discutida.

Gráfico 1 – Microrganismos prevalentes na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital de Clínicas Doutor Alberto Lima (HCAL) em Macapá, Estado do Amapá. Referente ao ano de 2014.

Fonte: Relatório CCIH – HCAL, 2014.

No Gráfico 1, foram notificados de acordo com as culturas obtidas pelo GAL/LACEN, os microrganismos prevalentes na UTI do HCAL, sendo estes responsáveis por IRAS. Entre esses agentes, o de maior prevalência é a bactéria Staphylococcus sp. do gênero Staphylococcus. Acompanhado pela bactéria Pseudomonas aeruginosa, do gênero das Pseudomonas. E como terceiro microrganismo mais frequente a bactéria Klebsiella pneumoniae do gênero das Klebsiella. A “Pseudômonas aeruginosa é o agente mais prevalente em UTI, representando 13%, seguida por S. aureus (12%), Estafilococos coagulase negativa (10%), Enterococcus sp (9%), Enterobacter sp (8%) e 10% para Candida sp” (8). Entretanto, na pesquisa realizada no HCAL, a prevalência do gênero foi dos Staphylococcus, o que contraria os dados do CDC, que possui as bactérias do gênero Pseudômonas aeruginosa como as de maior frequência na UTI. Assemelham-se com o

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resultado encontrado os estudos de (9), estes também identificam a bactéria do gênero das Staphylococcus, como prevalentes neste setor hospitalar. O “Staphylococcus é um dos principais agentes de infecção hospitalar, sendo o principal responsável pelas infecções de sitio cirúrgico, é encontrando colonizando a microbiota natural, principalmente da pele, podendo tornar-se patogênico” (10). O primeiro caso de Staphylococcus resistente, o problema da resistência antimicrobiana tem sido uma grande preocupação para a saúde pública com sérias implicações econômicas, sociais e políticas que afetam nossa espécie em âmbito global, cruzando todos os limites ambientais e étnicos (11).

Os Staphylococcus “têm ocupado lugar de destaque na etiologia das IRAS e o aumento de infecções. E os próprios indivíduos colonizados têm sido descritos como fator de risco para o desenvolvimento dessas infecções” (12). Em um ambiente hospitalar, a equipe, ao oferecer assistência a pacientes portadores persistentes

ou

manipular

objetos

colonizados,

podem

contaminar

mãos

e,

subsequentemente, transmitir o organismo para outros pacientes.

Gráfico 2 – Microrganismos prevalentes na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica do Hospital da Criança e do Adolescente em Macapá, Estado do Amapá. Referente ao ano de 2014.

Fonte: Relatório CCIH – HCA, 2014.

De acordo com o Gráfico 2, no ano de 2014, foram notificados 108 perfis de microrganismos causadores de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde na UTI pediátrica do Hospital da Criança e do Adolescente em Macapá, Estado do Amapá. Entre

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esses agentes, o de maior prevalência é a bactéria Pseudomonas aeruginosa do gênero das Pseudomonas. Acompanhado pela bactéria Staphylococcus aureus do gênero das Staphylococcus. E como terceiro microrganismo mais frequente a bactéria Staphylococcus epidermides do gênero das Staphylococcus. Dentre as infecções mais temidas, estão “as causadas por Pseudomonas aeruginosa, devido a dificuldade de tratamento decorrente da alta resistência desse microrganismo, consequentemente, apresenta escassas opções terapêuticas, além da dificuldade de diagnóstico” (13). A espécie P. aeruginosa, é um componente da microbiota normal, é um bacilo Gram-negativo não fermentador que possui requerimento nutricionais mínimos e pode sobreviver a grande variedade de superfícies e ambientes aquosos. Além de ser encontrados na pele, em superfícies de bancadas, pias, respiradores, desinfetantes, nos alimentos e na água o que evidencia boa capacidade de adaptação dessa espécie (14).

A “pneumonia é a infecção hospitalar que apresenta maior taxa de mortalidade, a qual é maior nos pacientes com pneumonias cujo agente etiológico é a Pseudômonas aeruginosa, podendo atingir valores próximos a 80%” (15). Os dados encontrados na UTIP do HCA são preocupantes, devido a prevalência deste microrganismo e de outras bactérias gram-negativas. As “taxas de colonização por P. aeruginosa aumentam naqueles pacientes hospitalizados por longos períodos de tempo e/ou que estejam recebendo terapia antimicrobiana de amplo espectro ou terapia de combate a neoplasia” (16). A P. aeruginosa apresenta uma particular propensão para o desenvolvimento de resistência e esta situação está associada ao aumento da taxa de mortalidade, morbidade e dos custos do tratamento.

Conclusão Os resultados bibliográficos encontrados e discutidos possibilitaram observar que os microrganismos causadores das IrAS estão entre as principais causas de morte nas unidades de terapia intensiva, além de representarem uma ampliação no tempo de internação do paciente, com elevados custos para as instituições, por agregar inúmeros fatores de risco. A assistência aos pacientes críticos requer a inevitável aplicação de procedimentos invasivos e a administração de antimicrobianos de amplo espectro, tal fator, propõe que a

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atenção seja redobrada por todos os profissionais envolvidos, desde o uso de técnicas cada vez mais assépticas, a lavagem rotineira das mãos e o uso controlado e estritamente necessário de técnicas invasivas e de antibióticos na rotina dos cuidados. Portanto, considera-se, que a prevenção deve ser concentrada nos sítios de infecção mais comuns, entretanto, é necessário também conhecer o agente causador, suas especificidades, como multiplicam-se no ambiente, o que facilita sua distribuição, onde comumente podem ser encontrados, e como prevenir para sua erradicação ou diminuição no ambiente hospitalar, especificamente na Unidade de Terapia Intensiva.

Referências 1. Brasil. Portaria nº 2918/GM, de 09 de junho de 1998. Critérios para cadastramento e classificação das unidades que realizam tratamento intensivo. Ministério da Saúde. Disponível em: http/www.saúde.gov.br. Acesso em: 05 de agosto de 2016. 2. Barros, L. M. et al. Prevalência de microrganismos e sensibilidade antimicrobiana de infecções hospitalares em unidade de terapia intensiva e hospital público no Brasil. Revista de Ciências Farmacêuticas Básica Aplicada, v. 33, n. 3, p. 429-435. 2012. 3. Braga, K. A. M.; Souza, L. B. S. Microrganismos mais frequentes em unidades de terapia intensiva. Revista Médica Ana Costa, v.9, n.4, p.71-74, 2004. 4. Cordeiro, A. L. A. O. et al. Contaminação de equipamentos em unidade de terapia intensiva. Revista Acta Paulista de Enfermagem, São Paulo, v. 28, n. 2, p. 160-5, 2015. 5. Chaves, N.M. Controle de infecção em cateterismo vesical de demora em unidade de terapia intensiva. Revista de Enfermagem do Centro Oeste Mineiro, v. 5, n. 2, p. 1650-1657, 2015. 6. Leiser, J. J.; Tognim, M. C. B. Infecções hospitalares em um centro de terapia intensiva de um hospital de ensino no norte do paraná. Ciência Cuidado e Saúde, Paraná, v. 6, n. 2, p. 181-186, 2006. 7. Lima, M. E.; Andrade, D. D. Avaliação prospectiva da ocorrência de infecção em pacientes críticos de unidade de terapia intensiva. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, v. 19, n. 3, p. 342-347, 2007. 8. Matos, E. C.; et al. Prevalência de agentes microbianos e sensibilidade da pseudômonas aeruginosa. Revista Paraense de Medicina, v. 28, n. 2, abr-jun. 2014. 9. Moura, M. E. B. et al. Infecção hospitalar: estudo de prevalência em um hospital público de ensino. Revista Brasileira de Enfermagem, v.60, n.4, 2007. 10. Moraes, A. A. P.; Santos, R. L. D. Infecções em uti geral de um hospital universitário. Revista Brasileira de Terapia Intensiva, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 135143, 2003.

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Utilização da Água de Reuso com Alternativa Sustentável para Sociedade Natasha Berendonk Handam1 Priscila Gonçalves Moura2 Adriana Sotero-Martins3

RESUMO: Objetivo: Avaliar a qualidade sanitária da água de reuso e a utilização na agricultura, visando o uso seguro da água. Metodologia: A qualidade da água de reuso foi avaliada, por meio de análise colimétricas. Foi analisada por meio de experimento, em que foram cultivadas hortaliças (salsa) irrigadas com água de reuso e com água potável, e por biologia molecular foi feita a extração de DNA total no tempo inicial da cultura e após 15 dias de ensaio. E também foi realizada a Reação da Polimerase em Cadeia (PCR), seguida de observação por eletroforese com os marcadores moleculares 16S rRNA, uidA, nifH, HadV, T-antigen, COWP e beta-giardin para bactérias, vírus e protozoários. Resultados e Discussão: As análises colimétricas indicaram baixos níveis de coliformes fecais e totais, no entanto nas análises moleculares foi detectada a presença de outros microrganismos, caracterizando a amostra de água de reuso avaliada como imprópria para fins de contato primário de recreação e de consumo humano. O estudo também indicou que a água de reuso favoreceu mais o crescimento de microrganismos no solo. Outro fato observado foi o maior desenvolvimento das plantas irrigadas com água de reuso. Conclusão: Para segurança alimentar humana outros estudos devem ser realizados, pois para determinados fins, a água de reuso não deveria conter contaminantes químicos e patogênicos para a segurança da saúde humana e animal. INTRODUÇÃO Um dos direitos fundamentais ao humano é a água, tornando-se ainda mais relevante nos contextos onde está escassa. A falta de água ocorre em diversas regiões do mundo e no Brasil, principalmente, no Semiárido (1). A água é um recurso ambiental essencial a sobrevivência dos seres vivos. Em 2010 a legislação da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, Resolução A/RES/64/292 (2), reconheceu e determinou formalmente que a água e o esgotamento sanitário são um direito a todas as populações humanas. Após este marco, todas as cidades devem proporcionar e garantir o abastecimento de água e o esgotamento sanitário às residências (3). A escassez de água, segundo a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, acomete mais de 40% da população no mundo, e deverá aumentar por conta das mudanças climáticas e da falta de 1Programa de Doutorado em Saúde Pública e Meio Ambiente – ENSP/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: [email protected] 2 1Programa de Doutorado em Saúde Pública e Meio Ambiente – ENSP/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil 3 DSSA/ENSP/FIOCRUZ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil 1

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gestão adequada da água. Um dos objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS) é o 6 – Água Potável e Saneamento, para assegurar a disponibilidade e a gestão sustentável da água e saneamento para todos. É possível atingir este objetivo, por meio da cooperação internacional, proteção às nascentes, rios e bacias e compartilhamento de tecnologias de tratamento de água (4). Em meio à escassez de água para o consumo humano, a seca em diferentes regiões, a desigualdade no acesso à água de qualidade em diversas regiões do mundo, a água de reuso vem sendo estudada como uma fonte alternativa e sustentável para a sociedade. O incentivo a utilização da água de reuso está incluída dentro dos objetivos do desenvolvimento sustentável. Dentre estes estão, reduzir à metade a proporção de águas residuais não tratadas, e aumentar substancialmente a reciclagem e reutilização segura globalmente, e o apoio ao desenvolvimento de capacidades para os países em desenvolvimento em atividades e programas relacionados a água e ao saneamento, incluindo a reciclagem e as tecnologias de reuso (4). A água de reuso estudada neste trabalho é aquela resultante do tratamento do esgoto doméstico, seja total ou parcial. No tratamento completo do esgoto, ele passaria pelas etapas de tratamento em Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) da seguinte forma: tratamento primário (desinfecção), tratamento secundário (remoção da matéria orgânica) e tratamento terciário (remoção de fósforo e nitrogênio), e após a avaliação microbiológica e físico-química este se torna apropriado para retornar ao ambiente para fins balneáveis. Para o esgoto tratado ser transformado em água de reuso de boa qualidade ele deveria passar em mais três etapas de purificação, que são realizadas em Estações de Tratamento de Água de Reuso (ETAR), que são: filtração, ultrafiltração e osmose reversa (5-6). A água de reuso tem potencial para ser utilizada em diversas atividades como, por exemplo, na agricultura, na indústria, em atividades domésticas, lavagem de carro, limpeza urbana, rega de canteiros (7). Um dos possíveis benefícios do uso da água de reuso é o emprego na agricultura, que é a atividade econômica do país que mais demanda água, e devido à escassez das fontes de água para esta atividade em diversas regiões do país, seria uma alternativa para enfrentamento desse problema. Além disto, a água de reuso representa uma alternativa para diminuir a pressão da demanda sobre os mananciais (8). A água de reuso é a forma mais eficiente de obtenção alternativa de água e de reaproveitamento de água, em

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comparação a outras formas importantes, como a dessalinização da água e o reaproveitamento da água de chuva. Esta maior eficiência se deve ao fato de que a água consumida e posteriormente transformada em esgoto ser novamente utilizada podendo ciclicamente acontecer o seu beneficiamento, o que também é importante para diminuir a necessidade de captação de água dos mananciais e reduzir a quantidade de esgoto descartada. Contudo, a utilização da água de reuso ainda pode enfrentar o problema do preconceito por parte da população: "A água deve ser julgada por sua qualidade, e não por sua origem, portanto, sob o ponto de vista estritamente de tecnologias existentes, pode-se afirmar que é possível converter todo o efluente de uma indústria ou cidade em água de alta qualidade que pode ser amplamente reutilizada" (9).

A educação ambiental deve propor o debate com a sociedade de modo que evite o preconceito do uso desse tipo de água, como também o conhecimento seguro por parte da população, tendo a população segurança sobre a qualidade desse subproduto do esgoto tratado. Vale ressaltar que em diversos países, como Estados Unidos (10), Israel (11) e países europeus (12), a tecnologia empregada na produção de água de reuso é tão avançada que este tipo de água se torna potável. Outro fato importante a se ressaltar é que, a água para ser utilizada na recreação e no consumo deve estar dentro de padrões de qualidade estabelecidos em leis. No Brasil ainda não há uma legislação específica para a água de reuso, o que existe é uma norma técnica da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) 13.969/97 (7), que traz instruções para a utilização da água de reuso: • Define parâmetros da avaliação da qualidade da água de reuso de acordo com a classe de uso: lavagem de carros, lavagem de pisos, uso em vaso sanitário e rega de hortaliças. • Define também como acondicionar e distribuir de forma segura. • Alerta para o risco a saúde pública pelo contato direto do usuário com a água de reuso. No entanto esta norma técnica da ABNT não define parâmetros quanto à presença de microrganismos patogênicos. Estudos sobre água de reuso para fins de consumo geralmente utilizam como referência a Portaria do Ministério da Saúde nº 2.914 de 2011 (13), que determina os padrões para potabilidade. E quanto a utilização da água de reuso para fins de recreação a

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referência é a Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) nº 274/2000 (14), na qual possui os padrões estabelecidos para balneabilidade, visando garantir condições seguras à recreação de contato primário. Contudo dependendo do nível de coliformes que a água de reuso apresentar, ela pode não ser utilizada para consumo e nem para recreação, mas pode ser utilizada para outros fins como, por exemplo, limpeza urbana e irrigação de jardins. Tendo em vista que dentre as diversas formas de utilização de água, a agricultura é responsável por cerca de 70% do consumo global de água (15), o objetivo do projeto foi avaliar a qualidade sanitária da água de reuso e a utilização na agricultura, visando o uso seguro da água.

Metodologia Esse projeto teve início de forma laboratorial sendo testada a utilidade da água de reuso. Foi utilizado uma água de reuso proveniente do esgoto sanitário tratado até nível de Estação de Tratamento de Esgoto (ETE). A qualidade da água de reuso foi avaliada inicialmente, por meio de análises colimétricas for the Examination of the Water and Wasterwater (Eaton et al., 2005). Tendo como objetivo avaliar os benefícios e riscos deste tipo de água na agricultura, em um grupo de vasos de cultivo de hortaliça (salsa) foi irrigado com água de reuso e outros com água potável, que foram o grupo de comparação. Foram inseridos 100 mL de água no primeiro dia de experimento e após 15 dias, sendo coletados 14 mL da água que vazou pelo furo do vaso. E por meio da biologia molecular foi feita a extração de DNA total, por meio do Kit QIAGEN's Power Water® Sterivex™ DNA Isolation Kit, no tempo inicial da cultura e após 15 dias de ensaio. E posteriormente foi realizada a quantificação do DNA total encontrado, através do NanoDrop™ 1000 spectrophotometers. Para avaliar quais os microrganismos que persistiram na água de reuso foi realizado o teste de DNA por Reação da Polimerase em Cadeia (PCR), seguida de observação por eletroforese com os marcadores moleculares 16S rRNA, uidA, nifH, HadV, T-antigen, COWP e beta-giardin para bactérias, vírus e protozoários que vem sendo utilizados como marcadores de poluição biológica, por serem microrganismos associados à humanos.

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Resultados e discussão Os resultados do estudo mostraram que depois de 15 dias de utilização da água de reuso para irrigação do cultivo da hortaliça, houve aumento de 9,7 vezes mais DNA total do que no primeiro dia, enquanto que com a água potável o aumento foi de 1,5 vezes. Portanto, o estudo indicou que a água de reuso favoreceu mais o crescimento de microrganismos no solo. Outro fato observado foi o maior desenvolvimento das plantas irrigadas com água de reuso, devido provavelmente mais nutrientes provenientes da matéria orgânica que permanece neste tipo de água, quando comparada com a água potável. Alguns autores sugerem que devido a presença de nutrientes na água de reuso, o solo e os cultivos agem como biofiltros naturais, a sua utilização na irrigação pode diminuir os gastos com a fertilização dos cultivos (16). Estudos sobre a qualidade da água de reuso analisam apenas bioindicadores bacteriológicos, os coliformes totais e a Escherichia coli (E. coli), porém outros microrganismos patogênicos de difícil detecção por estas metodologias tradicionais têm sido persistentes nas amostras e não são avaliados, e ainda pode haver neste tipo de água poluentes que podem inviabilizar o crescimento dos coliformes, mascarando os resultados dessas análises. Por isso neste projeto foi proposto a utilização da avaliação por biologia molecular, de organismos indicadores de poluição por elementos patogênicos. Nas análises colimétricas da água de reuso os resultados apresentaram 4 UFC/mL de coliformes totais e 2 UFC/mL de Escherichia coli. Os níveis de coliformes e de E. coli ficaram fora do padrão para potabilidade, ou seja, para beber, lavar os alimentos e para a higiene pessoal, pois não poderia ser detectado nenhuma colônia de coliforme. No entanto, estes valores estão dentro do padrão para balneabilidade (recreação). Em análises por biologia molecular, que permite avaliar a presença ou ausência dos microrganismos alvos por meio do DNA destes, sendo uma técnica mais sensível e especifica, foram encontradas bactérias de origem humana e vírus patogênicos que oferecem risco a saúde humana e animal. Com isto, as análises colimétricas indicaram baixos níveis de coliformes fecais e totais, por análises moleculares, e foi detectada a presença de outros microrganismos, caracterizando a amostra de água de reuso avaliada como imprópria para fins de contato primário de recreação e de consumo humano. Nosso grupo irá avaliar futuramente outra

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água de reuso, que seja produzida passando por etapas de produção em ETAR, antes de iniciar os experimentos em campo.

Conclusões Para segurança alimentar humana outros estudos devem ser realizados, pois para determinados fins, a água de reuso não deveria conter contaminantes químicos e patogênicos para a segurança da saúde humana e animal. Além disto, os resultados demonstram que os tratamentos para a produção de água de reuso da amostra coletada não estão sendo capaz de retirar todos os microrganismos, sendo sugerida uma reavaliação das etapas de tratamento, ou a inclusão de novas etapas de tratamento.

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9. Revista TAE. Especializada em tratamento de água e efluentes. Reuso de água: alternativa para preservar e economizar. 2015. Disponível: http://www.revistatae.com.br/9252-noticias 10. EPA. United States Environmental Protection Agency. Guidelines for Water Reuse. 2012. 11. Friedler E. Water reuse an integral part of water resources management: Israel as a case study. Water Policy. 2001;3:29–39. 12. Monte MHM. Water Reuse in Europe. E-Water Official Publication of the European Water Association (EWA). 2007. 13. BRASIL. Portaria nº 2914 de Ministério da Saúde de 12 de dezembro de 2011. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 13 de dezembro de 2011. 14. BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Conselho Nacional de Meio Ambiente. Resolução n.274, de 29 de novembro de 2000. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, 25 jan. Seção 1, p. 70-71. 2001. 15. World Health Organization (WHO). Water Security & the Global Water. Agenda AUN-Water Analytical Brief. Canada. 2013. 16. Eaton AD, Rice EW, Baird RB, et al Standard Methods for the Examination of Water and Wastewater. 21. ed. New York:American Water Works Association; 2005:1368p. 17. Haruvy N. Agricultural reuse of wastewater: nation-wide cost-benefit analysis. Agriculture, Ecosystems and Environment. 1997;66:133-119.

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Aspectos emocionais de hemofílicos em tratamento com a profilaxia e os estigmas sociais em Maceió-AL. Júlio Ricardo Macedo Silva1 Layanne de Oliveira Ferro Dálity Keffelen de Barros Rodrigues

RESUMO: A hemofilia é uma coagulopatia decorrente da deficiência nos fatores de coagulação VIII e IX, sendo de caráter genética, acometendo o paciente a ter sangramentos em articulações e músculos em diferentes intensidades provocando sequelas. A profilaxia aparece como nova forma de tratar hemofilia através de infusões frequentes dos fatores de coagulação, antes mesmo das hemorragias, beneficiando diretamente na qualidade de vida do portador da doença, evitando o aparecimento das sequelas e permitindo que o hemofílico possa desempenhar atividades que antes não eram possíveis, como praticar exercícios físicos. A pesquisa foi realizada no Hemocentro de Alagoas (HEMOAL), com 22 pacientes hemofílicos que utilizam a profilaxia como tratamento, a qualidade de vida foi avaliada através de questionários semiestruturados. Os resultados apontaram melhoria na qualidade de vida de pacientes hemofílicos destacadas pela diminuição de crises e episódios hemorrágicos e pela crescente melhoria na sua autopercepção como indivíduo portador de hemofilia ao longo dos anos, enquanto no parâmetro social do preconceito ainda é presente no seu cotidiano indicado a necessidade de ainda se fazer muitas políticas e articulações públicas de saúde para combate-lo. Palavras-chave: Hemofilia. Qualidade de vida. Preconceito. Níveis de saúde.

Introdução A hemofilia é uma deficiência hereditária da atividade coagulante do sangue conhecida há mais de 2000 anos e ganhou destaque público devido acometer muitas famílias reais europeias (1). A doença é caracterizada em dois tipos: hemofilia A, onde há deficiência no fator de coagulação VIII, e hemofilia B ocasionada pela deficiência do fator IX (2). A herança genética e as hemorragias tornam-se os principais indicadores para um diagnóstico da doença. Os sangramentos geralmente ocorrem devido aos níveis dos fatores de coagulação, característicos de cada tipo de hemofilia, estarem abaixo do considerado normal (3). A intensidade e a frequência das hemorragias variam de acordo com o nível plasmático do fator VIII ou IX. Pacientes com o tipo mais severo tendem ao sangramento espontâneo ou por esforço mínimo, já os casos leves necessitam de ferimentos graves ou de intervenções cirúrgicas (4). Entre as décadas de 50 e 60, os portadores de hemofilia eram tratados apenas com transfusões de sangue total ou plasma 1 Centro Universitário Cesmac; Universidade Federal de Pernambuco; Centro Universitário Adventista de São PauloUNASO. E-mail: [email protected] Universidade

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fresco, não tendo capacidade de interromper um sangramento grave devido à baixa concentração de proteínas FVIII e FIX. Dessa maneira muitos hemofílicos eram contaminados por HIV, hepatites e outras doenças infecciosas, pois na época ainda não eram utilizados técnicas de sorologia para análise das transfusões ou morriam antes de chegar à adolescência, devido hemorragias durante procedimentos cirúrgicos ou sangramentos em órgãos essenciais (5).

A descoberta, por Judith Pool em 1964, que

frações de crioprecipitado de plasma possuíam consideráveis quantias de FVIII, levou o tratamento da hemofilia a uma evolução bastante considerável e permitiu que através da infusão dessas quantidades de crioprecipitado os pacientes pudessem ser submetidos a cirurgias de grande porte e eliminou as chances de contaminação durante as infusões que antigamente marcava a saúde e a imagem social dessas pessoas (6). A profilaxia surge como forma de tratamento mais eficaz, caracterizando-se pela aplicação do fator de coagulação deficiente através de infusões frequentes, as quais podem variar de duas ou mais vezes por semana, sendo essas infusões determinadas antes de acontecer o sangramento. Esse tipo de tratamento pode ser classificado em primário, quando acontece nos primeiros anos de vida ou secundário, após o 3º episódio de hemorragia, e garante que o portador de hemofilia tenha em sua circulação sanguínea fatores VIII ou IX em quantidades suficientes para que não existam ocorrências de sangramentos espontâneos (7).

Fica evidente que os eventuais casos de hemorragias além de ocasionarem

problemas nas articulações e músculos, afetam a qualidade de vida relacionada à saúde dos portadores (8). Entende-se por qualidade de vida a compreensão do ser humano sobre sua existência conforme o cenário cultural e os padrões de valores no qual estão inseridos, relacionando-o também aos seus objetivos, esperanças e receios. (9) (WHOQOL, 1995). Assim esse tipo de tratamento possibilitou que os hemofílicos tenham condições de tentar levar uma vida normal e até melhorar suas questões psicossociais (10). Tornou-se importante a realização desta pesquisa para avaliar a percepção dos pacientes em tratamento referente aos aspectos emocionais e verificar paralelamente a condição que estes são vistos socialmente mesmo com o advento e evolução do tratamento, destacando os efeitos alcançados com a aplicação do uso dos fatores na sua qualidade de vida.

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Material e método Tratou-se de um estudo Semi-qualitativ no Hemocentro de Alagoas (HEMOAL). A execução da pesquisa teve início após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (COEPE) do Centro Universitário Cesmac, através do CAEE 44801515.0.0000.0039, analisando a rotina dos pacientes durante as visitas ao Hemocentro. Foram coletadas informações importantes através de entrevistas, com a aplicação de questionários semiestruturados, para antes e depois do uso da profilaxia, com a finalidade de avaliar as vantagens da nova forma de tratamento na qualidade de vida dos hemofílicos e paralelamente sua integridade social.

O questionário fechado possui 8 questões

fechadas que foram baseadas na versão brasileira de qualidade de vida SF-36 (11), sendo que destas apenas 2 questões foram utilizadas para elucidação, sendo elas as de estado geral de saúde, aspectos emocionais e intensidade do preconceito para esse trabalho, pois o mesmo questionário avalia oito escalas importantes de qualidade de vida: capacidade física, limitação por aspectos físicos, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos sociais, aspectos emocionais e saúde mental. Os resultados das questões foram expressos em forma de gráficos e tabelas em números percentuais de cada alternativa utilizando o programa Microsoft Office Excel, visando obter dados comparativos de antes e depois do uso da profilaxia. As questões abertas presentes nesse questionário foram compiladas por meio de discussões críticas, sendo a mesma referente a aspecto social e mental comparando as respostas obtidas com dados já existentes sobre o assunto.

Resultados A tabela 1 informa os dados gerais dos 22 pacientes entrevistados, 20 (90,91%) possuem hemofilia A, enquanto apenas 2 pacientes (9,09%) têm hemofilia B. A média de idade dos pacientes foi de 27.9 anos, prevalecendo pacientes entre 18-35 anos. A maioria dos pacientes utiliza a profilaxia a mais de um ano, e apenas 7 (31,82%) começaram a utilizar a profilaxia nos últimos meses (menos de um ano).

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Fonte: Dados de pesquisa

De acordo com a percepção sobre o estado geral de saúde observa-se que 13 pacientes (59,09%) relataram uma piora discreta do quadro antes de começar a profilaxia, porém durante o uso deste tratamento 17 hemofílicos (77,27%) afirmaram ter uma saúde muito melhor que antes (Tabela 2).

Fonte: Dados de pesquisa

A tabela 3 avaliou os aspectos emocionais dos hemofílicos de acordo com o que eles percebem sobre sua saúde. Antes da profilaxia 16 entrevistados (72,73%) tinham a percepção de que ficavam mais doentes que outras pessoas, esse mesmo percentual representa a quantidade de hemofílicos que achavam que sua saúde iria piorar, e apenas 5 (22,73%) deles se achavam tão saudáveis quanto qualquer outra pessoa. Com o tratamento profilático 20 pacientes (90,91%) não acham que adoecem mais fácil e nem que a sua saúde irá piorar, e 13 pacientes (59,09%) hoje se sentem tão saudável quanto qualquer outra pessoa. As questões abertas que tiveram como foco os aspectos social e mental, perguntando ao paciente quais os maiores benefícios e mudanças de vida que aconteceram depois que

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começaram a utilizar a profilaxia, juntamente com seus objetivos de vida. Os benefícios e mudanças de vida mais citados foram: Segurança, independência, autonomia, diminuição no número de crises, hemorragias e episódios dolorosos, poder estudar, trabalhar e se locomover com mais facilidade. Dentre os objetivos de vida, a maioria relatou poder concluir os estudos e fazer uma faculdade, seguidos da vontade de conseguir um emprego. Tabela 3 – Aspectos emocionais na percepção de hemofílicos antes e durante a profilaxia.

Fonte: Dados de pesquisa

O gráfico 1 relata o preconceito e sua intensidade no dia a dia dos hemofílicos, onde apenas 9 (9,09%) relatam não ter sofrido de forma algum episódio de discriminação. Dos 13 pacientes que falaram já ter sofrido preconceito, a maioria (36,36%) relata uma intensidade moderada.

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Gráfico 1 – Hemofílicos e o preconceito

Fonte: Dados de pesquisa

Discussão O estudo permitiu observar pela análise da tabela 1 que a maioria dos pacientes possuíam hemofilia A comprovando a proporção de 4 casos de hemofilia A para 1 caso de hemofilia (12). Outra variável presente nos dados gerais foi a faixa etária, onde os entrevistados apresentaram uma média de 27,9 anos, tendo em vista os critérios de exclusão da pesquisa, onde menores de idade não foram submetidos. A prevalência do tempo de uso da profilaxia dos hemofílicos entrevistados foi entre 1-2 anos, levando em consideração que no Brasil, a deliberação nº 40/2011 da CITEC foi validada pelo Ministério da saúde, aprovando o uso da profilaxia primária para hemofilia grave no ano de 2012 (13). A tabela 2 possibilitou notar uma melhora expressiva durante a profilaxia em relação a antes, pois o tratamento garantiu ao hemofílico maior segurança e diminuição de crises, assegurando que atualmente tenham condições de vida adequadas. A profilaxia surgiu como método de prevenção da artropatia hemofílica, que é responsável por várias sequelas. Logo esse tipo de tratamento possibilita que os hemofílicos possuam condições de ter uma vida normal, um bom desenvolvimento psicossocial, tanto no âmbito educacional como ocupacional, social e até mesmo possibilita a prática de atividades físicas (14). Referente a questão emocional que envolveu a percepção a respeito de como os indivíduos enxergam sua condição e estado de saúde, principalmente comparando-os com indivíduos que não apresentam a coagulopatia estudada. Quando questionados se tinham a sensação de ficar doente mais fácil que outras pessoas e sobre achar que a

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saúde iria piorar, o número de pacientes foi igual, tanto os que afirmaram como os que negaram tal afirmação. A diferença notada é a de que antes de realizar o tratamento profilático, mais pessoas afirmaram ter tais percepções do seu estado de saúde, número que caiu bastante durante a profilaxia, aumentando assim a quantidade de entrevistados que negaram sentir-se assim atualmente. Outra afirmativa, dessa vez positiva, foi a de sentir-se tão saudável quanto qualquer pessoa, onde antes da profilaxia 17 pacientes relataram não ter essa percepção, número que foi reduzido durante o tratamento, aumentando assim, os entrevistados que afirmaram serem saudável mesmo comparado a outras pessoas, justamente pela segurança e estabilidade que os mesmos sentem ao realizar o tratamento preventivo que garante menos riscos. Contudo, em casos mais graves e de idade avançada, como já mencionados no estudo, mesmo depois da profilaxia alguns pacientes afirmam sentir-se com a saúde debilitada, devido a complicações ocorridas antes de iniciarem a profilaxia. Na concepção da revista Fator Vida, a profilaxia garante ao paciente mais liberdade, pois permite que o tratamento seja feito em casa, possibilitando a realização de atividades que antes ou não eram possíveis ou eram dificultadas. A melhoria na qualidade de vida é perceptível, o que permitiu ao hemofílico se integrar na família e na sociedade, diminuindo faltas e problemas na escola e no trabalho. Embora a profilaxia não seja capaz de reverter às sequelas nas articulações, consegue reduzir as hemorragias, impedindo que os danos se agravem (15). Na questão aberta sobre limitação de aspecto físico foi abordado quais as maiores sequelas presentes no paciente hemofílico, sendo a articulação mais acometida o joelho, onde 16 pacientes a relataram. Seguido do cotovelo, com 8 pacientes, tornozelo com 5 pacientes e ombro e quadril com 1 paciente cada. Esses dados corroboram com a literatura já citada nesse trabalho, onde Mulder (16), justifica o fato dessas articulações serem as mais acometidas devido não possuírem vários graus de movimentos e por não ter grandes quantidades de músculo ficam mais desprotegidas do que outras articulações. No Gráfico 1 expressa a intensidade de preconceito na percepção do indivíduo é possível observa que de 22 entrevistados, 9 afirmaram que de forma alguma na sua percepção socialmente tenham identificado algum ato ou efeito relacionado ao preconceito ou estigmatização da hemofilia, porém isso não implicar dizer que esses não possam ser atingidos ou vivenciar ao longo da sua vida alguma situação reflexo do preconceito e desconhecimento com a doença, já que pelos outros 13 indivíduos relataram que já foram vítimas ou são em algum tipo de intensidade diariamente. Segundo o estudo cientifico intitulado como Genética comunitária

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e hemofilia em uma população brasileira de 641 indivíduos pesquisados dentro de uma comunidade, apenas 51% já tinham tido contato por algum meio de informação sobre hemofilia. Nesse contexto é notável que, a falta de informação é a principal causa para perpetuar conceitos populares e errados que interferem diretamente na sua qualidade de vida, e a sociedade em geral ainda não tem dimensão da evolução do tratamento hoje disponível para estes doentes e suas melhorias (17). Devido ao preconceito, a grande maioria destes pacientes relatou muita dificuldade em conseguir emprego, na maioria das vezes não por suas limitações físicas, pois as mesmas conseguem se adequar e gerar bons resultados com o uso da profilaxia. Atualmente, porém por menção ao nome da doença estes acabam não podendo se adequar em algum trabalho que almeja e desempenhar boas funções devido às limitações e mistificações criadas em torno da doença pela sociedade. Estudos comprovam que os preconceitos sofridos pelos hemofílicos no meio social, sobretudo, acontece dos empregadores, o que de forma direta causam sérios problemas socioeconômicos ao hemofílico (18). De acordo com um grupo de estudiosos em qualidade de vida, a mesma é definida como a compreensão do ser humano sobre sua existência conforme o cenário cultural e os padrões de valores no qual está inserido, relacionando-o também aos seus objetivos, esperanças e receios (19). Rossi (20), mostra que a integração do hemofílico na sociedade é dificultada, tendo em vista que o mesmo se sente diferente as vezes, mas a grande dificuldade também é expressa pela falta de informações públicas fomentadas para sociedade. As questões abertas que tiveram como foco os aspectos social e mental, perguntando ao paciente quais os maiores benefícios e mudanças de vida que aconteceram depois que começaram a utilizar a profilaxia, juntamente com seus objetivos de vida. Os benefícios e mudanças de vida mais citados foram: Segurança, independência, autonomia, diminuição no número de crises, hemorragias e episódios dolorosos, poder estudar, trabalhar e se locomover com mais facilidade. Dentre os objetivos de vida, a maioria relatou poder concluir os estudos e fazer uma faculdade, seguidos da vontade de conseguir um emprego. Dessa forma o que as pessoas sentem não é o resultado apenas do que está acontecendo em suas vidas, mas também da sua interpretação desses acontecimentos e de como o ambiente interage com ela. Estudos realizados com portadores de doenças genéticas crônicas têm demonstrado diferentes graus de adaptação pessoal à sua condição clínica e ao acolhimento social que as vezes pode não ser tão harmônico. Alguns indivíduos com grandes complicações físicas podem revelar um

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pequeno impedimento em suas relações sociais e vice-versa que na maioria das vezes é gerado pela sociedade (21).

Conclusão Em virtude dos aspectos mencionados nota-se um processo de melhora nas condições de vida dos pacientes entrevistados após iniciarem o tratamento, assim como também na sua percepção em relação ao sua saúde e suas particularidades nos aspectos emocionais, pois a reposição programada de fator garantiu que os mesmos conseguissem realizar atividades que eram antes consideradas impossíveis, como participar de forma segura de práticas de lazer, assumir responsabilidades em funções que já foram restritas antes da profilaxia, além de um maior controle sobre sua saúde. Benefícios esses que estão relativamente ligados à diminuição do número de crises e episódios hemorrágicos dando mais autonomia ao paciente e permitindo ultrapassar os limites da doença. Porém em relação ao preconceito e os hemofílicos é notável que existe um desconhecimento e uma ausência de meios que possam fomentar melhor sobre a doença e a vida das pessoas que convivem com a mesma em ambientes de trabalho, em universidades, em rodas de conversas e outros, além disso falta ainda uma articulação de comunicação de saúde para com o próprio paciente, para que o mesmo desenvolva estratégias de comunicação para defender sua imagem social e seu direito de expressar a realidade na qual realmente ele hoje vive diante das situações de preconceito e duvidas que se colocarem a sua frente, para que o mesmo também possa ser agente de mudança e disseminação de informação a favor da sua vida e pela luta dos seus direitos. Referências 1. Stevens, R. F. The history of haemophilia in the royal families of Europe. British Journal of Haematology, v.105, n. 1, p. 25-32, mar. 1999. 2. Ozelo, M.C. Diagnóstico da Hemofilia. In: Pacheco, L. R. L.; Wolf, A. L. P. (Org.). Ortopedia e Fisioterapia em Hemofilia, Barueri: ed. Manolo, 2013. Cap.2 p. 9-10. 3. Barrowclife, T. W. Monitoring haemophilia severity and treatment: new or old laboratory tests? Haemophilia, v.10, n.4, p. 109-114. 2004.

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16. Caio V. M. Genética comunitária e hemofilia em uma população brasileira. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 17, n. 3, p. 595-605, mai/jun. 2001. 17. Markova, I.; Forbes, C. D. Coping with haemophilia. International Review of Applied Psychology. American Psychological Association, v. 33, n. 4, p. 457-477, out. 1984. 18. Whoqol, G. The World Health Organization Quality of Life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization, Special issue on health-related quality of life: what is it and how should we measure it?. Social Science & Medicine, v. 41, n. 10, p. 1403-9. 1995. 19. Rossi, M. B. Hemofilia: O cuidado e a Dimensão Psicológica do Adoecimento. 2013. 39 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Programa de Aprimoramento Profissional) – Secretaria de Estado da Saúde, Fundap, Faculdade de Medicina de Marília, Marília. 2013. 20. Dsmlouij, R. F.; Cohen, K.; Careche, K.; Georgeopoulos, A. & Folstein, M., 1982. Social disability and psychiatric morbidity in sickle cell and diabetes patients. Psychosomatics, 23:925-931.

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Qualidade de vida de hemofílicos atendidos em um hemocentro de Maceió-AL durante o ano de 2015 antes e depois do uso da profilaxia. Layanne de Oliveira Ferro1; Dálity Keffelen de Barros Rodrigues Júlio Ricardo Macedo Silva

RESUMO: A hemofilia é uma doença genética caracterizada pela deficiência nos fatores de coagulação VIII e IX, levando o paciente hemofílico a ter hemorragias que acometem articulações e músculos, causando sequelas. A profilaxia aparece como nova forma de tratar hemofilia através de infusões frequentes dos fatores de coagulação, antes mesmo das hemorragias, beneficiando diretamente na qualidade de vida do portador da doença, evitando o aparecimento das sequelas e permitindo que o hemofílico possa desempenhar atividades que antes não eram possíveis, como praticar exercícios físicos. A pesquisa foi realizada no Hemocentro de Alagoas (HEMOAL), com 22 pacientes hemofílicos que utilizam a profilaxia como tratamento, a qualidade de vida foi avaliada através de questionários semiestruturados. Os resultados apontaram melhoria na qualidade de vida de pacientes hemofílicos destacadas pela diminuição de crises e episódios hemorrágicos, ressaltando a importância da profilaxia como determinante da qualidade de vida englobando todos os níveis de saúde: social, mental, físico, emocional, etc. Palavras-chave: Hemofilia. Qualidade de vida. Profilaxia. Níveis de saúde.

Introdução A hemofilia é uma deficiência hereditária da atividade coagulante do sangue conhecida há mais de 2000 anos e ganhou destaque público devido acometer muitas famílias reais europeias (1). A doença é caracterizada em dois tipos: hemofilia A, onde há deficiência no fator de coagulação VIII, e hemofilia B ocasionada pela deficiência do fator IX (2). A herança genética e as hemorragias tornam-se os principais indicadores para um diagnóstico da doença. Os sangramentos geralmente ocorrem devido aos níveis dos fatores de coagulação, característicos de cada tipo de hemofilia, estarem abaixo do considerado normal (3). A intensidade e a frequência das hemorragias variam de acordo com o nível plasmático do fator VIII ou IX. Pacientes com o tipo mais severo tendem ao sangramento espontâneo ou por esforço mínimo, já os casos leves necessitam de ferimentos graves ou de intervenções cirúrgicas (4).

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Universidade Federal de Pernambuco; Centro Universitário Adventista de São Paulo-UNASP; Centro Universitário Cesmac. E-mail do autor assistente/principal: [email protected].

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Ainda sobre as hemorragias, Mulder (2006), relata que as articulações mais acometidas são os joelhos, tornozelos e cotovelos, uma vez que não possuem vários graus de movimentos e não são cobertas por grandes quantidades de músculo, ficando assim mais desprotegidas do que outras articulações (5). Entre as décadas de 50 e 60, os portadores de hemofilia eram tratados apenas com transfusões de sangue total ou plasma fresco, não tendo capacidade de interromper um sangramento grave devido à baixa concentração de proteínas FVIII e FIX. Dessa maneira muitos hemofílicos morriam antes de chegar à adolescência, devido hemorragias durante procedimentos cirúrgicos ou sangramentos em órgãos essenciais (6). A descoberta, por Judith Pool em 1964, que frações de crioprecipitado de plasma possuíam consideráveis quantias de FVIII, levou o tratamento da hemofilia a uma evolução bastante considerável e permitiu que através da infusão dessas quantidades de crioprecipitado os pacientes pudessem ser submetidos a cirurgias de grande porte (7). A profilaxia surge como forma de tratamento mais eficaz, caracterizando-se pela aplicação do fator de coagulação deficiente através de infusões frequentes, as quais podem variar de duas ou mais vezes por semana, sendo essas infusões determinadas antes de acontecer o sangramento. Esse tipo de tratamento pode ser classificado em primário, quando acontece nos primeiros anos de vida ou secundário, após o 3º episódio de hemorragia, e garante que o portador de hemofilia tenha em sua circulação sanguínea fatores VIII ou IX em quantidades suficientes para que não existam ocorrências de sangramentos espontâneos (8). Fica evidente que os eventuais casos de hemorragias além de ocasionarem problemas nas articulações e músculos, afetam a qualidade de vida relacionada à saúde dos portadores (9). Entende-se por qualidade de vida a compreensão do ser humano sobre sua existência conforme o cenário cultural e os padrões de valores no qual estão inseridos, relacionando-o também aos seus objetivos, esperanças e receios (10). Assim esse tipo de tratamento possibilitou que os hemofílicos tenham condições de levar uma vida normal e ter um bom desenvolvimento psicossocial e participação regular em atividades físicas, no âmbito educacional, garantindo oportunidades sociais e de trabalho (11). Torna-se importante a realização desta pesquisa para avaliar o uso da profilaxia na evolução da qualidade de vida de pacientes com este tipo de tratamento, destacando os avanços alcançados com a aplicação do uso dos fatores de coagulação em suas

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residências e seus impactos diretos nos aspectos psicológicos e socioeconômicos do indivíduo, comprovando os benefícios da profilaxia na qualidade de vida de pacientes hemofílicos atendidos no hemocentro de Alagoas (Hemoal).

Material e método Tratou-se de um estudo Semi-qualitativo.

Local da pesquisa Hemocentro de Alagoas (HEMOAL) Procedimentos A execução da pesquisa teve início após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa

(COEPE)

do

Centro

Universitário

Cesmac,

através

do

CAEE

44801515.0.0000.0039, analisando a rotina dos pacientes durante as visitas ao Hemocentro. Foram coletadas informações importantes através de entrevistas, com a aplicação de questionários semiestruturados, para antes e depois do uso da profilaxia, com a finalidade de avaliar as vantagens da nova forma de tratamento na qualidade de vida dos hemofílicos.

Questionário – Questões fechadas O questionário possui 3 questões fechadas que foram baseadas na versão brasileira de qualidade de vida SF-36 (12) levando em consideração as oito escalas importantes para avaliar qualidade de vida: capacidade física, limitação por aspectos físicos, dor, estado geral de saúde, vitalidade, aspectos sociais, limitações por aspectos emocionais e saúde mental. Porém, os resultados das questões foram expressos em forma de gráficos e tabelas em números percentuais de cada alternativa utilizando o programa Microsoft Office Excel, visando obter dados comparativos de antes e depois do uso da profilaxia.

Questionário – Questões abertas As questões abertas presentes nesse questionário foram compiladas por meio de discussões críticas, comparando as respostas obtidas com dados já existentes sobre o assunto. 1153

Resultados A tabela 1 informa os dados gerais dos 22 pacientes entrevistados, 20 (90,91%) possuem hemofilia A, enquanto apenas 2 pacientes (9,09%) têm hemofilia B. A média de idade dos pacientes foi de 27.9 anos, prevalecendo pacientes entre 18-35 anos. A maioria dos pacientes utiliza a profilaxia a mais de um ano, e apenas 7 (31,82%) começaram a utilizar a profilaxia nos últimos meses (menos de um ano).

Fonte: Dados da pesquisa.

De acordo com a percepção sobre o estado geral de saúde observa-se que 13 pacientes (59,09%) relataram uma piora discreta do quadro antes de começar a profilaxia, porém durante o uso deste tratamento 17 hemofílicos (77,27%) afirmaram ter uma saúde muito melhor que antes (Tabela 2).

Tabela 2 - Classificação do estado de saúde geral antes e durante o uso da profilaxia.

Fonte: Dados da pesquisa.

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O gráfico 1 correlaciona a capacidade física dos hemofílicos de acordo com o grau de dificuldade para realizar tanto atividades rigorosas (correr, levantar objetos pesados, etc.) como atividades moderadas (jogar bola, mover uma mesa, etc.). Antes de utilizar a profilaxia 19 pacientes relataram ter dificuldades nas atividades rigorosas, sendo que 9 (40,91%) afirmaram ter muita dificuldade e 10 (45,45%) pouca, 3 pacientes (13,64%), porém, não sentiram dificuldade nesse tipo de atividade. Durante o uso da profilaxia 9 pacientes (40,91%) não sentem dificuldades para realizar tais atividades, sendo que apenas 1 paciente (4,54%) afirma ainda ter muita dificuldade. Sobre as atividades moderadas, 11 pacientes (50%) declaram que antes do uso da profilaxia tinham muita dificuldade em realiza-las, porém apenas 4 (18,19%) continuam com esse grau de dificuldade após o uso da profilaxia, 4 hemofílicos (18,18%) tinham pouca dificuldade antes da profilaxia, após o número subiu para 8 (36,36%). Não apresentaram dificuldade nas atividades rigorosas antes da profilaxia 7 pacientes (31,82%), enquanto durante o uso o percentual subiu para 10 pacientes (45,45%) (Gráfico 1).

Gráfico 1 – Classificação das atividades de capacidade físicas antes e durante profilaxia. Fonte: Dados da pesquisa. As questões abertas que tiveram como foco os aspectos social e mental, perguntando ao paciente quais os maiores benefícios e mudanças de vida que aconteceram depois que começaram a utilizar a profilaxia, juntamente com seus objetivos de vida. Os benefícios e 1155

mudanças de vida mais citados foram: Segurança, independência, autonomia, diminuição no número de crises, hemorragias e episódios dolorosos, poder estudar, trabalhar e se locomover com mais facilidade. Dentre os objetivos de vida, a maioria relatou poder concluir os estudos e fazer uma faculdade, seguidos da vontade de conseguir um emprego.

Discussão O estudo afirmou que a maioria dos pacientes possuíam hemofilia A comprovando a proporção de 4 casos de hemofilia A para 1 caso de hemofilia (13). Outro variável presente nos dados gerais foi a faixa etária, onde os entrevistados apresentaram uma média de 27,9 anos, tendo em vista os critérios de exclusão da pesquisa, onde menores de idade não foram submetidos. A prevalência do tempo de uso da profilaxia dos hemofílicos entrevistados foi entre 1-2 anos, levando em consideração que no Brasil, a deliberação nº 40/2011 da CITEC foi validada pelo Ministério da saúde, aprovando o uso da profilaxia primária para hemofilia grave no ano de 2012 (14). Esse estudo possibilitou notar uma melhora expressiva durante a profilaxia, pois o tratamento garantiu ao hemofílico maior segurança e diminuição de crises, assegurando que atualmente tenham condições de vida adequadas. A profilaxia surgiu como método de prevenção da artropatia hemofílica, que é responsável por várias sequelas. Logo esse tipo de tratamento possibilita que os hemofílicos possuam condições de ter uma vida normal, um bom desenvolvimento psicossocial, tanto no âmbito educacional como ocupacional, social e até mesmo possibilita a prática de atividades físicas (15). É evidente a crescente melhora na qualidade de vida de hemofílicos quando comparada com antes e durante a profilaxia. As atividades rigorosas exigem maior esforço e consequentemente apresentam dificuldades maiores para um paciente com o quadro clínico característico da doença, nas atividades moderadas a dificuldade ainda se mantem presente. Os pacientes que relataram um grau de dificuldade considerado na pesquisa como “muito” apresentaram-se em menor quantidade quando questionados a partir do momento que iniciaram a profilaxia, pois com a mesma houve redução na frequência de episódios hemorrágicos, permitindo maior flexibilidade e segurança na realização de tais atividades. Alguns estudos comprovam que a qualidade de vida relacionada à saúde adquire um resultado positivo quando o paciente utiliza a profilaxia, mas sofre um efeito negativo

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importante com o aumento da idade (16). Comprovação essa que se confirma no item de menor dificuldade do gráfico 1, onde um número maior relata esse grau de dificuldade depois do uso da profilaxia, pois os hemofílicos que citaram ter muita dificuldade, continuam ainda a sentindo, mesmo que em menor frequência, o que relativamente se deve as sequelas que foram ocasionadas no passado e a idade avançada de alguns, que em casos mais graves, impedem ou limitam muitas atividades do cotidiano. Contudo, com a profilaxia como forma de tratamento mais pacientes afirmaram não apresentar nenhuma dificuldade, pois os mesmos atualmente conseguem conviver com a doença sem maiores prejuízos. As sequelas já existentes são as principais causas de limitações na doença, porém alguns relatam que conseguem hoje com a profilaxia conviver com tais limitações, pois se sentem seguros e reconhecem que devido à reposição programada dos fatores, o quadro clínico não se agravará de forma rápida e dolorosa. Os dados analisados nas questões abertas evidenciam os benefícios e mudanças de vidas ocorridas com os pacientes após iniciarem o tratamento em estudo. Dentre eles, a independência e autonomia de poder levar o fator para casa garantiram maior confiança e segurança, devido também à diminuição dos números de hemorragias e de episódios de dor, dando maior tranquilidade aos hemofílicos. As sequelas que já existiam, não foram agravadas, permitindo que outro benefício citado fosse o da locomoção, relatando maior facilidade. O desempenho escolar melhorou após o uso da profilaxia, com a diminuição das faltas e a possibilidade de concluir o ano letivo. No âmbito profissional, a redução das crises, permitiu maior motivação e segurança para que o hemofílico seja inserido no mercado de trabalho, já que hoje as melhorias na qualidade de vida possibilitaram a realização de atividades e funções que antes traziam medo e dificuldade.

Conclusão Em virtude dos aspectos mencionados notou-se uma crescente melhora nas condições de vida dos pacientes entrevistados após iniciarem o tratamento, pois a reposição programada de fator garantiu que os mesmos pudessem realizar atividades antes consideradas impossíveis, como participar de forma segura de praticas de lazer, assumir responsabilidades em funções que já foram restritas antes da profilaxia, além de um maior controle sobre sua saúde.

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Referências 1. Stevens, RF. The history of haemophilia in the royal families of Europe. British Journal of Haematology, 1999,105: 25-32. 2. Ozelo, MC. Diagnóstico da Hemofilia. In: Pacheco, LRL.; Wolf, ALP. (Org.). Ortopedia e Fisioterapia em Hemofilia, Barueri: Manolo; 2013. 3. Barrowcliffe, TW. Monitoring haemophilia severity and treatment: new or old laboratory tests?. Haemophilia, 2004,10: 109-114. 4. Hernández, EJ.; Medina, HB. Manifestaciones Clínicas de la Hemofilia. In: Fernández, RA. et al. Hemofilia, México: Prado; 2001. 5. Mulder, K. Exercícios para pessoas com hemofilia. World federation of Haemophilia, Quebec, 2006. 6. Mannucci, PM. Back to the future: a recent history of haemophilia treatment. Haemophilia, 2008, 14: 10-18. 7. Mannucci, PM. Haemophlia and related bleeding disorders: a story of dismay and success. Education Program of the American Society of Hematology, 2002: 1-9. 8. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 354, de 6 de maio de 2014. 9. Barr, RD. et al. Health Status and Health-Related Quality of Life Associated With Hemophilia. American Journal of Hematology, 2002,71: 152-160. 10. Whoqol, G. The World Health Organization Quality of Life assessment (WHOQOL): position paper from the World Health Organization, Special issue on health-related quality of life: what is it and how should we measure it?. Social Science & Medicine, 1995, 41: 1403-9. 11. Nilsson, IM. et al. Twenty-five years' experience of prophylactic treatment in severe haemophilia A and B. Journal of Internal Medicine, 1992, 232: 25-32. 12. Ferreira, PL. A Medição do Estado de Saúde: Criação da Versão Portuguesa do MOS SF-36. Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra, 1998: 1-81. 13. Chair, UH. et al. Congenital Hemorrhagic Disorders: New Insights into the Pathophysiology and Treatment of Hemophilia. American Society of Hematology, 2000: 241-265. 14. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 354, de 6 de maio de 2014. 15. Nilsson, IM. et al. Twenty-five years' experience of prophylactic treatment in severe haemophilia A and B. Journal of Internal Medicine, 1992, 232: 25-32.

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16. Fischer, K.; Van Der Bom, JG.; Van Den Berg, HM. Healthrelated quality of life as outcome parameter in haemophilia treatment. Haemophilia, 2003, 9: 75-82.

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A informação genética como motivo de discriminação no ambiente de trabalho

Annestella de Lima Pinto Charles de Sousa Trigueiro

Introdução O presente artigo tem por objetivo analisar o progresso tecnológico e aos avanços obtidos no sequenciamento e mapeamento genético, onde pode-se observar, o estreito liame entre a genética, a investigação das causas de certas enfermidades e o diagnóstico paulatinamente crescente de doenças, como também, a descoberta de predisposições para o desenvolvimento de algumas delas, tudo isso proporcionado pelo Projeto Genoma Humano, pois ele vem possibilitando a análise do código genético dos indivíduos de forma detalhada. Em razão dessa crescente disseminação do conhecimento biotecnológico e a busca incessante pela solução de problemas na saúde em níveis profundos, em questões genotípicas, torna-se evidente o surgimento de possíveis discriminações genéticas, que consistem na diferenciação discriminatória dos seres humanos, decorrentes de herança genética e informações difundidas de maneira antiéticas, atingido a pessoa ou uma coletividade. Sendo assim, o fato de a genética inspirar o agir do ser humano faz, portanto, aflorar o conflito entre ela e a evolução técnico-científica, resultando na discriminação, que consiste na agressão aos direitos da pessoa humana, em relação a sua dignidade, liberdade e personalidade, tornando-se uma das mais importantes áreas de avanço do Direito na contemporaneidade. Desse modo, a intimidade genética do trabalhador e a sua proteção contra práticas discriminatórias ilegítimas baseadas em informações genéticas podem, e devem, se dar com fundamento nas diversas Declarações e Convenções internacionais que discutem sobre o tema, bem como, no âmbito do Brasil, nos preceitos básicos previstos na Constituição Federal de 1988 e na aplicação analógica da legislação infraconstitucional que rege a proteção do trabalhador contra outras formas de discriminação ilícita na esfera das relações trabalhistas.

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Logo esse artigo aborda primeiramente a importância do tema na atualidade demonstrando os direitos e os limites éticos da atuação do empregador quanto a discriminação genética.

Metodologia O objetivo geral do presente artigo é compreender que apesar das possibilidades de realização de exames genéticos como requisito prévio a qualquer atividade laboral, tais resultados não podem ser motivo de discriminação de acesso ao trabalho. Como objetivos específicos, busca-se: problematizar a questão no debate sobre possibilidade de evitar esses tipos de discriminações possíveis. Nesse contexto, este artigo tem como objeto de estudo a análise da normativa nacional, internacional e da jurisprudência produzida nos tribunais, como direito comparado, sobre a possibilidades de realização de exames genéticos como requisito prévio a qualquer atividade laboral, com impossibilidade de discriminação. Para a realização da presente investigação foi necessário aplicar o método dogmático, como a hermenêutica que os textos normativos recomendam, mas, também, o aporte à doutrina e à transversalidade foi necessário, desde que se trata de tema interdisciplinar de elevado teor político e sociológico, tudo alinhado por uma tradição de pensamento racionalista do direito a saúde e fundamentada na hermenêutica internacional dos direitos humanos da Organização Mundial de Saúde, e princípios do direitos bioético.

Discussão A discriminação nas relações de trabalho sempre existiu, uma vez que o sistema capitalista procura "o perfil perfeito de trabalhador". Nos primórdios da Revolução Industrial Marx destacava os efeitos "alienantes" dos métodos e atividades diante da exaustão e repetição da mesma atividade. Engels, por outro lado, intensifica o fato de que muitos trabalhadores, diante das práticas inadequadas de trabalho, acabariam por sofrer de uma série de lesões ao tornarem-se vítimas de algum acidente, com "debilidade permanente". (1) Esse autores já alertava aos temas de “população excedentária” ou “exército de reserva de mão-de-obra”.(2) Segundo Durkheim (3), as pessoas que foram excluídas da nova divisão internacional do trabalho, acabaram sendo colocadas às margens da ordem social e de produção laboral, consideradas desviantes, dependentes e “necessitadas” de uma política assistencialista sem qualquer propensão de inserção social.

1161

Com os avanços da Terceira Revolução Industrial, surge o tema da biotecnologia. Nesse cenário, a genética ainda marcha no campo da probabilidade, onde as “chances percentuais e riscos relativos de doenças comuns que afligem todos nós e que incluem componentes genéticos e ambientais, sem que nenhum dos dois esteja bem definido” (4). Isso é demonstrado na falta de certeza em muitos aspectos no diagnóstico genético. A discriminação genética em empregos, pode ocorrer de várias formas, uma delas que é a mais comum, após a entrevista de emprego é solicitado uma série de exames. A partir daí pode-se analisar o genoma utilizando uma técnica chamada Exoma: Uma equipe liderada por pesquisadores do Instituto MUHC e Universidade de McGill, no Canadá, demonstrou ser possível identificar qualquer doença genética em tempo recorde por um poderoso e confiável método de sequenciamento do exoma, uma pequena parte do genoma (menos de 2%). Disponível em: http://ciencia.estadao.com.br/blogs/ciencia-diaria/tecnica-desequenciamento-revoluciona-triagem-e-tratamento-de-doencas-geneticas/. Acesso em: 18 set. 2017.

Informações privilegiadas sobre possíveis desenvolvimentos futuros em curto espaço de tempo. Outra forma de discriminação pode ocorrer quando há alguém na família do candidato com determinada doença ou predisposição para tê-la e a empresa toma conhecimento. O fato problemático é que se não há igualdade na relação de emprego, na medida que muitos perdem e poucos se beneficiam, haja o desrespeito a princípios que devem ser observados, em outras palavras, a humanidade parece se mover para uma realidade na qual não será difícil somente conseguir um emprego, mas manter-se nele. “Desejada ou não, esta é a realidade atual e retrata uma forma de discriminação que tende a aumentar com o decorrer dos tempos e com os avanços biotecnológicos por vir”

Nesse

entendimento podemos supor que cargos e salários serão maiores e melhores dependendo da carga genética da pessoa, e os excluídos dessa carga genética perfeita serão marginalizados e encaminhados a subcargos percebendo subsalários, sendo esta sua única opção e oportunidade: “A dignidade humana terá sido relegada a outro plano, pois nem todos terão direito a mesma dignidade no viver em razão da desigualdade genética”. (5). O mercado é propenso a escolher os papéis mais rentáveis, porém pode não optar pela forma mais ética. (6).

1162

Nesse contexto histórico, surgiu em 2005 a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada pela ONU/UNESCO, 2005. De acordo com essa órbita, a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia e da Medicina, em seu artigo 11, consagra o princípio da não discriminação. Também na Declaração Universal sobre Genoma Humano e os Direitos Humanos, há vedação à discriminação, em seu artigo 6º. O mesmo princípio, aparece, na Declaração Internacional sobre Dados genéticos Humanos, em seu artigo 7º. Ainda, concernente à discriminação genética, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos preconiza, também, em seu artigo 11. A Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia de 2000, em seu artigo 21, destaca o princípio da não discriminação, igualmente: a Carta Social Europeia, de 1961; a Resolução sobre os Problemas Éticos e Jurídicos da Manipulação Genética, de 1989; a Convenção de Oviedo, de 1997.(7) Denise Hammerschmidt (8), destaca que a resolução sobre problemas éticos e jurídicos da manipulação genética traz, em seus artigos 19 e 20, a proibição da exigência de informações sobre dados genéticos, para firmar um contrato.

Resultados Não obstante sejam poucos os casos documentados desse tipo de diferenciação, ressalta a doutora Lisa N. Geller, mencionada pelo autor da revista Exame, Jeremy Rifkin, juntamente com outros pesquisadores do Departamento de Neurobiologia e da Divisão de Ética Médica da Faculdade de Medicina de Harvard, que foi constatado que há uma difusão muito maior do que o que se pensa, quanto à discriminação genética e traz à baila alguns exemplos, tais como o caso de uma operadora de saúde que se recusou a pagar a terapia ocupacional de um indivíduo cujos exames de saúde diagnosticaram a presença de MPS-1 (que está associada ao retardamento mental e à organomegalia, que é o crescimento anormal dos órgãos), alegando que se tratava de condição preexistente. Lembrou, outrossim, o que ocorreu com uma jovem de 24 anos, que não pode fazer o seguro de vida porque sua família tinha, em seu histórico, casos de doença de Huntington, apesar de não ter sido comprovado em seus exames. Destacamos “Um caso de discriminação genética: um traço falciforme no Brasil”, onde uma atleta profissional do voleibol, durante o processo de seleção, destinado à escolha da equipe que iria compor a Seleção Brasileira Infanto-Juvenil, para representar o

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país no campeonato Sul-Americano de Vôlei, em 2004, foi diagnosticada como portadora do traço falsiforme e, afastada da seleção, apesar de ter sido considerada como uma das melhores jogadoras brasileiras da categoria: As hemoglobinas normais são as do tipo “A”. No caso de anemia falciforme, as hemoglobinas produzidas são do tipo “S”, que, devido a capacidade que esta possui de alterar o formato da hemoglobina, prejudica o transporte de oxigênio, nos casos de alterações ambientais, como elevadas altitudes, ausência de oxigênio no ambiente, ou mesmo as mudanças climáticas. Entretanto, isso não ocorro nos casos em que as pessoas possuem apenas o traço falciforme, com produção de hemoglobina tipo “AS”, isto é, apenas possui, de forma recessiva, o caráter falciforme. Assim sendo, é evidente a distinção entre ter anemia falciforme e ter apenas o traço falciforme, pois este último não caracteriza doença. (9)

Nos Estados Unidos, houve o caso de uma senhora que foi coagida a fazer o teste de DNA, em que foi identificada a presença de um gene recessivo de fibrose cística.(Fibrose cística é uma doença pulmonar letal) Devido ao resultado, a seguradora excluiu do plano de saúde da senhora examinada qualquer cobertura decorrente de problemas respiratórios, justificando que ela era propensa a essas doenças. (10) Na Espanha, art. 14 da Constituição, traz o princípio da não discriminação. Por sua vez, a Lei 8/80, do Estatuto dos Trabalhadores, no art. 4.2, c), segundo parágrafo, afirma que "eles não podem ser discriminados por causa de reduções físicas, psíquicas e sensoriais, desde que estejam aptos a realizar o trabalho ou emprego em questão "; e a letra e) do mesmo preceito reconhece o direito de "respeitar a sua privacidade e consideração devido à sua dignidade". (11) Carlos de Sola advoga que são varias as razões em que um empregador pode ter interesse em conhecer um possível futuro estado de saúde do candidato a emprego, para evitar novas responsabilidades para a empresa: a) assegurar que a pessoa contratada, tenha uma saúde boa, a fim de desempenhar eficientemente suas funções; b) evitar ou reduzir o absentismo; c) evitar investir em formação de pessoas, que devido a uma enfermidade ulterior, não podem tornar a informação rentável; d) evitar o aumento nas citações de seguros de doença, invalidez e morte no caso em que a contribuição do empregador varia de acordo com as reivindicações; e) evitar possíveis futuras predisposições

para

o

aumento

ou

agravamento

da

enfermidade

(concausas

preexistentes); f) diminuir os riscos de responsabilidade empresarial por danos causados a

1164

terceiros em consequências dos acidentes que uma enfermidade do empregado pode ocasionar. (12) O Professor Romeo Casabona(13), citando o Convênio sobre direitos humanos e biomedicina que assegura a proibição contra qualquer forma de discriminação por razões genéticas, e limitações de realizações de provas genéticas no âmbito médico e de investigação médica, considera que, no contexto do emprego, nas condições gerais estabelecidas na norma acima mencionada (consentimento informado, proteção de privacidade, etc.), as análises que resultam diretamente em um benefício para a saúde do empregado. Não se pode ignorar as disposições contidas na Lei Espanhola de Prevenção de Riscos Laborais, que, embora estabeleça a regra regenerativa de que os exames de saúde dependem, em princípio, da necessidade de autorização do trabalhador, Art. 22 de la Ley 31/1995 de Previnción de Riesgos Laborales.(14) Sala(15) não acredita que o simples interesse comercial em contratar o melhor poderia justificar "em tese" a intromissão na esfera privada do trabalhador, exigindo uma análise genômica. O mesmo autor reconhece que, muitas empresas antes de contratar uma pessoa exigem verificações físicas e psicológicas e testes para verificar as condições e habilidades para o trabalho. De acordo com o autor, a resolução razoável entre a informação pretendida e a tarefa a ser executada. Por exemplo, seria o controle visual legal de um motorista de caminhão ou o controle físico de um jogador de futebol, mas não seria legal exigir algum tipo de informação sobre a vida sexual de um candidato para mineração. Na verdade, a OMS aponta para a necessidade de incentivar a saúde e a prevenção de doenças não-transmissíveis no local de trabalho. Assim, é instado a participar voluntariamente em um programa para promover a saúde das empresas na perspectiva da responsabilidade social corporativa e a satisfação do interesse coletivo.(16) O sistema da economia de mercado caminha para induzir necessidades e direcionar as pesquisas em algumas áreas, em vez de outras, e criar conflitos de interesse. É evidente que o neoliberalismo econômico e a globalização factual limitam a esfera da autonomia de tomada de decisão no pleno sentido, tanto para a cidadania como para as políticas de saúde.(17) Após, os tratados Internacionais, as legislações dos países começam a abordar o tema da não discriminação genética.

1165

O Brasil não trata diretamente, mas por analogia, podemos concluir que a Constituição de 1988, Artigo 154 do Código Penal, Código Civil na parte do direito a personalidade, e diretamente o artigo 123 do Código de ética médica. Lei n.º 13.146/15 Art. 34. § 3o "É vedada restrição (...)exames admissional e periódico(...) bem como exigência de aptidão plena". E princípio da não discriminação do Decreto n.º 6.949/09. Os Estados Unidos possui a Lei Federal Genetic Information Nondiscrimination Act. (18) Na Suíça, a Confederação Helvética prevê no artigo 24 de sua Constituição. (19) Na França, Lei nº 94-548, de 01/07/94, e Código Civil, art. 16, § 13.(20)

Conclusões Ressalta-se primeiramente que o Brasil não é detentor de regulamentação específica sobre o tema em discussão. Como consequência o julgador deverá buscar solucionar o conflito baseado nos princípios constitucionais. Conforme DIAS, GARDINI (2006), o Ministério Público do Trabalho engrenou uma batalha contra listas elaboradas pelos empregadores, através de dados constantes dos sítios dos Tribunais do Trabalho, que possuíam reclamações trabalhistas, essas listas ficaram denominadas de “listas negras”, isso nos leva a pensar na proporção dos atos dos empregadores se pudessem ter acesso a dados de ordem genética. Podemos citar o caso de um candidato a escrivão da Polícia Federal que precisou recorrer ao judiciário para continuar concorrendo por ter sido desclassificado por apresentar indicie glicêmico de 120, fora do padrão determinado de 70 a 110. O entendimento da Desembargadora Selena Maria de Almeida foi: “não é justificável impedir a contratação de candidato saudável aprovado em concurso público em razão da possibilidade de em algum tempo vir a desenvolver patologia crônica, (...) eis que condicionado a evento incerto e sem qualquer data determinada” (Processo nº. 001552362.2006.401.3400/DF)[10]. Igualmente, ainda há que se mencionar o parecer CFM nº.19/94 bem como a resolução CFM nº. 1931/09. No âmbito internacional há vários Tratados. Por essas razões, FUKUYAMA (2003) e VENTER, COHEN (2000) defendem a criação de uma norma universal para manter os avanços e aplicação do conhecimento genético nos eixos da moral e da ética. Nesse sentido, ELTIS (2007, p. 288,) afirma que “frequentemente, responsáveis políticos sabem muito pouco sobre ciência para fazer uma regulamentação eficaz; o

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público sabe menos ainda”. Tem que haver o equilíbrio entre ciência e moralidade para definição de responsabilidade genética, e o meio para encontrá-la diz respeito a toda sociedade e não apenas à classe política, deve haver acima de tudo o respeito mútuo entre todos os cidadãos. De toda feita não é possível delegar a saúde do trabalhador para segundo plano, é preciso buscar fundamentar a solução na essência da ética e da moral, utilizando a lei sem dardejar o princípio da dignidade da pessoa humana e igualdade de oportunidades.

Referências 1. ENGELS, Friedrich (1969), The Condiion of the English Working Class in England. St Albans: Granada. [1844/5] 2. MARX, Karl [1867], Capital: A critique of political economy. Harmondsworth: Peguin. (1981) 3. DURKHEIM, Émile (1964), The Division of Labour in Society. Glencoe, IL: Free Press. [1893] 4. SALZANO, Francisco M. Genética e Genômica: 135 anos de investigação científica: o que o futuro nos reserva são amplos horizontes e não becos sem saída. Revista Pesquise FAPESP, nº. 54, jun. 2000, p. 13. 5. OLIVEIRA, Simone Born de. Da bioética ao Direito: manipulação genética & dignidade humana.Curitiba: Juruá, 2006. p. 103. 6. NALINI, José Renato. O juiz e a proteção da privacidade genética. Revista da Academia Paulista dos Magistrados, São Paulo, nº. 1, dez. 2001. 7. NETO, Francisco Vieira Lima. O Direito de não sofrer discriminação genética. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 8. HAMMERSCHMIDT, Denise. Alguns aspectos da informação, intimidade e discriminação genética no âmbito jurídico internacional. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 94, V. 837, Julho, 2005, p. 33, 186-188. 9. GUEDES, Cristiano; DINIZ, Débora. Um caso de discriminação genética: o traço falciforme no Brasil, p. 503 e 511. In: Physis. Revista de Saúde Coletiva. nº. 3. Rio de Janeiro: Instituto de Medicina Social da UERJ, 2007. V. 17, p.501-520. 10. DINIZ, Maria Helena. O Estado atual do biodireito. 6. ed. revisada, aumentada e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 445. 11. Juan-Felipe Higuera Guimerá. El derecho penal y la genética. Madri: Trivium, 1995, p. 123. 1167

12. Carlos de Sola - ' Privacidad y datos genéticos. Situaciones de conflicto (II)'. Revista Derecho y Genoma Humano 2/1995, págs. 157-166. 13. Carlos Maria Romeo Casabona. - Capítulo 'El tratamiento y la protección de los datos genéticos', de la obra "Gen-Ética, págs. 252-255. 14. Fernando Abellán - García Sánchez. Bioética, Derecho e Información Genética. p. 200. IN: Bioética, Religión y Derecho. FUNDACION UNIVERSITARIA ESPANOLA, Madrid, 2005. 15. SALA, T. El proyecto genoma y las relaciones laborales, em Proyecto Genoma Humano: Ética, Documenta, Fundación BBV, Bilbão, 1991, p. 339 - 343. 16. Iluminada del Rocío Reria Basilio. La tutela del patrimonio genetico del trabajador. Coleccion Tesis doctorales. Abacete (España): Bomarzo, 2013, p. 406. 17. Gaia Marsico. Bioetica: voci di donne. Bologna: Edizioni Dehoniane, 2002, p. 133. 18. (ANDORNO, Roberto. Bioética y dignidade de La persona. Madrid: Editorial Técnos, 1998. 19. NETO, op cit., p. 130-132. 20. Valérie Depadt Sebag. Direito e Bioética. Tradução de Sandra Campos. Lisboa: Piaget, 2014, p. 174.

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Determinantes Sociais da Saúde e a ocorrência das Doenças Diarreicas Agudas em Arapiraca/Alagoas: Exercício prático Jéssica Lays Ferreira Ribeiro da Silva1 Vivianne Beatriz dos Santos Lúcio Beatriz Brito Ribeiro Jamile Ferro de Amorim

RESUMO: Objetivo: Identificar os principais Determinantes Sociais da Saúde (DSS) relacionados à ocorrência de Doenças Diarreicas Agudas (DDAs) em Arapiraca/Alagoas. Metodologia: Relato de experiência prática, pautada na análise dos prontuários no período 2015-2016 nas Unidades Básicas de Saúde José Barbosa Leão (Planalto), Francisco Pereira Lima (4º Centro de Saúde) e Daniel Houly, em busca de casos de diarreia e da identificação de determinantes sociais das doenças diarreicas nos territórios, a partir de diagnósticos comunitários realizados no primeiro semestre de 2017. Resultados e Discussão: Com um total de 4.748 prontuários analisados, foram encontrados 168 casos de diarreia. A partir dessas informações, pôde-se constatar que fatores socioeconômicos e ambientais, como o acesso insuficiente à água tratada e a ausência de saneamento básico adequado, podem ser apontados como determinantes locais para a ocorrência de doenças diarreicas agudas. Conclusão: Observou-se maior valor absoluto e incidência de DDAs no bairro Planalto, resultado associado às condições socioeconômicas e de infraestrutura deficientes encontradas na comunidade, ressaltando assim a importância de intervenção interna e externa, visando à melhoria dessas variáveis. Palavras-Chave: Doenças Diarreicas Agudas, Determinantes Sociais de Saúde, Diagnóstico Comunitário.

Introdução As Doenças Diarreicas Agudas (DDA’s) são a segunda causa de mortalidade infantil em todo o mundo e estão intimamente associadas à falta de acesso à água potável e à escassez de saneamento básico, principalmente nos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento (1). Anualmente morrem por volta de 2 milhões de crianças ao redor do mundo por este agravo, uma taxa quase equivalente à da mortalidade por AIDS em todas as faixas etárias (2). Levando esse fato em consideração, torna-se necessária uma avaliação mais profunda acerca dos motivos que levam à dimensão dos impactos causados por esta enfermidade. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a diarreia é definida como evacuação líquida ou pastosa que ocorre três ou mais vezes por dia, ou com frequência acima do normal para um indivíduo. Geralmente é um sintoma de infecção gastrointestinal, 1

Universidade Federal de Alagoas – Campus Arapiraca (Curso de Medicina). E-mail: [email protected]

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causada por diversos tipos de bactérias, protozoários ou vírus. Esses microorganismos podem se disseminar através da água, de alimentos contaminados, e pela falta de higiene de pessoa a pessoa (1). A desidratação é a consequência mais grave dessa disfunção, pois, a cada evacuação, grandes quantidades de água e de eletrólitos são perdidas (1). A água é um composto essencial para a homeostase das funções metabólicas do organismo humano, e sem ela todo o metabolismo fica comprometido. Sendo assim, a sua intensa eliminação por um período prolongado pode levar à morte (3). Tendo em vista a magnitude deste agravo, faz-se necessária uma melhor elucidação dos fatores que amplificam a ocorrência da DDA, com o intuito de promover melhorias. Nas últimas décadas, tanto na literatura nacional como na internacional, observa-se um grande avanço nos estudos sobre o modo de organização e de desenvolvimento de sociedades e a situação de saúde de sua população (4), o que tem permitido a visualização de um panorama mais amplo em relação aos fatores que caracterizam a saúde. De acordo com a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS)

os

DDS

são

definidos

como

fatores

sociais,

econômicos,

culturais,

étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam na ocorrência de problemas de saúde, bem como os fatores de risco para tais problemas (5). Umas das formas mais didáticas para explicar esses fatores é o modelo proposto por Dahlgren e Whitehead, composto por diferentes camadas, segundo seu nível de abrangência, desde uma camada mais próxima aos determinantes individuais até a camada mais distal, em que se situam os macrodeterminantes (6). Em decorrência disso, o estudo dessas correlações no ambiente de atuação dos acadêmicos de Medicina da Universidade Federal de Alagoas campus Arapiraca tornou-se plausível e essencial a uma intervenção eficaz nas unidades básicas de saúde nas quais estão inseridos.

Metodologia Trata-se de um relato de experiência prática de ensino do “Eixo Integração – Ensino – Serviço – Comunidade” do curso de medicina da Universidade Federal de Alagoas campus Arapiraca. Realizou-se inicialmente um levantamento de dados em três Unidades Básicas de Saúde (UBS) da cidade: Unidade Dr. Daniel Houly, Unidade José Barbosa Leão e Unidade Francisco Pereira Lima (4º Centro de Saúde). A escolha das unidades deu-se

1170

pela inserção dos alunos desde o primeiro período a estas. Dessa forma, os estudantes foram divididos em três grupos para acompanharem as três unidades e assim realizarem as duas etapas do trabalho. A primeira etapa foi realizada no segundo período letivo do ano de 2016, e teve como principal objetivo a compreensão do processo de territorialização, o que permitiu o conhecimento da dinâmica do meio no qual se estabelece o processo saúde-doença. A partir desses dados, construiu-se o diagnóstico comunitário de cada UBS, com o intuito de conhecer as necessidades específicas da população. A segunda etapa foi realizada no primeiro período letivo do ano de 2017. Foi feita uma busca ativa de casos de Doenças Diarreicas Agudas (DDA) nos territórios das três UBS, analisando no total 4.748 prontuários, datados nos anos de 2015 e 2016, os quais foram disponibilizados pelas 9 Equipes de Saúde da Família. Neste processo, foram recolhidas informações a respeito do número de ordem das fichas dos pacientes, datas dos atendimentos, faixas etárias (separadas em quatro campos: menores de um ano; entre um ano e quatro anos; entre cinco e noves anos; e, por fim, maiores de dez anos), presença ou ausência de sangue nas fezes, nível de desidratação, local e zona de residência, conduta tomada pelo médico e realização de exames laboratoriais. Também foi avaliado o plano de tratamento adotado nos casos identificados, dividido em: A, representando hidratação oral em domicílio; B, hidratação por via oral na unidade de saúde; e C, hidratação intravenosa na unidade hospitalar, para casos graves (8). Em seguida, de posse dos casos, buscou-se identificar nos diagnósticos comunitários os fatores que funcionam como determinantes do adoecimento por doenças diarreicas em cada território. Resultados e discussão Durante

a

construção

dos

Diagnósticos

Comunitários,

foram

observadas

características locais que permitiram inferir os Determinantes Sociais de Saúde (DSS) associados aos casos de DDA. A UBS José Barbosa Leão atende um total de 3.330 famílias. Em seu território, podese destacar muitas localidades que não possuem saneamento básico nem água tratada e, em alguns locais, há acúmulo de lixo nas ruas. Tais características estão bastante interligadas com as doenças diarreicas, visto que os indivíduos ficam mais propícios à infecção por vírus e bactérias, causando a gastroenterite e, consequentemente, a diarreia.

1171

Isto se associa ao fato desta UBS apresentar o maior número de casos por família, quando comparada as outras duas Unidades. O 4º Centro de Saúde é responsável pelo atendimento de 4.126 famílias. Este território contempla áreas tanto com boas condições sociais, quanto algumas mais vulneráveis. Desta forma, algumas localidades apresentam condições sanitárias adequadas, enquanto outras possuem esgoto a céu aberto e vários locais com acúmulo de lixo, o que está ligado ao processo de infecção e, consequentemente, ao adoecimento por diarreia. Somam-se a isso também a precária qualidade da água encanada e o consumo de água que não passa pelo tratamento adequado. A UBS Dr. Daniel Houly atende 1.868 famílias. Quando comparada às duas Unidades anteriores, esta apresenta um território que dispõe de uma significativa qualidade sanitária, com a maioria das ruas asfaltadas, sem esgoto a céu aberto e sem acúmulo de lixo, existindo poucos locais com lixo acumulado e falta de saneamento. Sua população é majoritariamente idosa, por isso os casos de doenças infecciosas, como a diarreia, são poucos, comparados aos casos de doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. Foram encontrados, no total, 168 casos de diarreia nas três unidades de saúde entre os anos de 2015 e 2016: o maior número de casos foi registrado na UBS José Barbosa Leão, representando 47,6% do total (80 casos); seguido do 4º Centro de Saúde, com 33,3% (56 casos); e, por fim, a UBS Dr. Daniel Houly com o menor número de casos, contabilizando-se um total de 32 ocorrências (19%). Considerando o número de famílias, a UBS com maior cobertura é a do 4º Centro de Saúde, com um total de 4.126 famílias cadastradas, divididas entre quatro equipes de saúde da família, com um total 13.800 usuários; em seguida temos José Barbosa Leão, que cobre 3.330 famílias, divididas em três equipes de saúde família, atendendo um total 13.815 usuários; e a Dr. Daniel Houly, com 1.868 famílias cadastradas, num total de 6.401 usuários, divididos entre as duas equipes de saúde existentes na unidade. Para que os dados ficassem proporcionais ao número de pessoas, foi calculada a incidência de diarreia a cada 1000 usuários, cujo resultado é dado na tabela a seguir.

1172

Tabela 1. Proporção de casos das doenças diarreias por 1000 habitantes nas unidades de saúde. Arapiraca- AL, 2015-2016.

Fonte: Elaborada pelos autores.

Desta forma, percebe-se que a UBS José Barbosa Leão é a que possui maior número de casos de diarreia e também maior proporção, chegando a 5,79 casos a cada 1000 indivíduos. A UBS Dr. Daniel Houly, apesar de ter o menor número de casos, possui segunda maior proporção, correspondente a 4,99 casos para cada 1000 pessoas. O que obteve menor proporção, sendo esta de 4,05, foi o 4º Centro de Saúde. Tal fato pode ser explicado pela menor procura dos usuários da Unidade por atendimento em casos de DDA. Entender os mecanismos ambientais e sociais que contribuem para o surgimento das doenças e as formas de intervir sobre elas há muito tempo faz parte do conceito de Saúde Pública. Em 2008 foi criada pelo governo brasileiro a Comissão Nacional Sobre Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), promovendo nacionalmente o debate sobre esses mecanismos (5). O conceito de DSS, abordado no relatório final da CNDSS, foi baseado no modelo de Dahlgren e Whitehead (figura 1). Este modelo traz de forma simples, estratificados em camadas, os principais fatores que modificam o processo saúde-doença: a base, relacionada ao indivíduo propriamente dito (sexo, idade, genética); na segunda camada, estão os fatores ainda individuais relacionados ao estilo de vida; a camada seguinte já parte para o âmbito social, incluindo condições de vida e trabalho (acesso à água potável, à saúde, à educação e à alimentação de qualidade, por exemplo); a última camada indica influência de fatores econômicos, culturais e ambientais que envolvem não só a sua comunidade, mas todo o município, estado ou país em que o indivíduo habita (6). Os principais DSS da diarreia nas regiões Norte e Nordeste do Brasil estão associados, majoritariamente, a questões de abastecimento de água e de esgotamento sanitário (8). Diante desse cenário, é possível identificar a pobreza, a falta de saneamento

1173

básico e a ausência de água tratada: fatores que são capazes de potencializar em até cinco vezes o risco de morte por diarreia.

Figura 1. Modelo de Determinantes Sociais da saúde proposto por Dahlgren e Whitehead.

Fonte: Whitehead & Dahlgren apud Brasil, 2006.

Desse modo, a explicação para o bairro Planalto apresentar o maior número de casos diz respeito às condições sociais presentes em parte do território, como a elevada falta de água tratada, a falta de saneamento e a presença de lixo a céu aberto nas ruas. Além disso, por ser o bairro com mais moradores dentro dessa situação, o aparecimento de novos casos de diarreia nesses cidadãos está mais propício do que nas outras Unidades. Nesse contexto, verificou-se também que o 4º Centro apresentou o segundo maior número de casos. Seu bairro, Itapoã, é caracterizado pelo contraste evidente em suas ruas: umas com boa qualidade de saneamento; outras em péssimas condições com a ausência de água tratada. Dessa forma, podemos associar essa situação característica à sua segunda posição de maior número de casos encontrados. A UBS Dr. Daniel Houly, conhecida por se situar em uma área de fácil localização, abrangente e de intenso comércio, com um saneamento de qualidade e sem a presença de lixos a céu aberto, apresentou o menor número de casos diarreicos na pesquisa realizada. Pode-se concluir, por princípio, que esses determinantes sociais estão intimamente ligados à ocorrência da diarreia em uma região, os quais acabam por afetar a saúde de seus cidadãos. Apesar da relação entre os DSS e a ocorrência de casos de DDA, especificamente na UBS Dr. Daniel Houly, há certa divergência, se avaliado que esta apresenta menor número

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de casos de diarreia, o que pode ser explicado por ter melhores condições físicas no bairro. Entretanto, ela apresenta uma incidência maior que a da UBS do 4° Centro - que possui o dobro da população e maior presença de fatores que podem influenciar no aumento de casos - e, ainda assim, a Unidade Dr. Daniel Houly se mantém com a incidência superior. A razão para tais achados implica a necessidade de investigar a fundo em busca de mais explicações, podendo estar relacionado com a falta de busca de atendimento por razão da DDA. De maneira clara e sucinta, vê-se que tanto a proporção quanto o valor absoluto de casos de diarreia acometeram mais fortemente o bairro Planalto. Quando observamos a quantidade de famílias atendidas por cada Unidade de Saúde, há uma discrepância entre o 4º Centro e as outras, devido à sua abrangência de bairros periféricos. Contudo, a análise principal dos DSS relacionados às DDAs ressaltam três principais pontos: saneamento básico precário ou inexistente, água não tratada e níveis de escolaridade associados ao nível socioeconômico baixo, enfatizando certa vulnerabilidade. Fica claro, portanto, o quão importante é a superação desses determinantes sociais para a melhoria da saúde, tornando-se um desafio a ser resolvido pelas políticas públicas do município de Arapiraca, a fim de se promover saúde aos cidadãos que nele residem. Conclusões Diante dos Determinantes Sociais em Saúde relacionados às ocorrências das DDA, pode-se notar que há deficiência nas políticas públicas de saúde e nas ações promotoras de saúde, visto que a pobreza remete a um menor acesso tanto à informação quanto à educação. Destaca-se a importância da educação em saúde nos processos de promoção à saúde e de prevenção de agravos. Essa educação, que ocorre principalmente na Atenção Primária, visa à orientação da comunidade e pode atuar diretamente nos fatores condicionantes de saúde. Assim, considerando as doenças diarreicas, ressalta-se a necessidade de informações e incentivo para o consumo de água mineral ou fervida, além da higienização adequada de alimentos e higiene pessoal, concedendo também uma atenção especial para a faixa etária abaixo dos dez anos de idade. Além da atuação das Equipes de Saúde, evidencia-se a necessidade de atuação no planejamento dos bairros, visando a uma melhoria nas qualidades sanitária e ambiental dos locais que possuem vulnerabilidade para os fatores que levam à diarreia. Associado a

1175

isso, seria de grande importância para a UBS ter o favor de instituições não governamentais, como intuições religiosas, ONGs, comerciantes locais, escolas e centros comunitários, a fim de que possam realizar ações de prevenção, com o objetivo de desencadear uma sensibilização em massa para a redução desses casos de diarreia.

Referências 1. World Health Organization Media Centre. Diarrhoeal Disease, Fact Sheet. Updated May 2017. Disponível em: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs330/en/ Acesso em: 13.09.2017. 2. World Health Organization (WHO). Joint United Nations Programme on HIV/AIDS (UNAIDS). AIDS Epidemic. Geneva: UNAIDS/WHO; 2008. 3. FEDERAÇÃO DAS APAES DO ESTADO DE SÃO PAULO. Desidratação: conceito, causas, fisiopatologia, sinais e sintomas, diagnóstico, tratamento, prevenção, evolução e complicações. Disponível em: . Acesso em: 29.09.17. 4. ALMEIDA FILHO, N. et al. Research on health inequalities in Latin America and the Caribbean: Bibliometric analysis (1971-2000) and descriptive content analysis (19711995). Am J Public Health, n. 93, p. 2.037-2.043, 2003. 5. BUSS, P. M.; FILHO, A. P. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):7793, 2007 83. 6. SOBRAL, A.; FREITAS, C. M. Modelo de organização de indicadores para operacionalização dos determinantes socioambientais da saúde. Saúde soc., São Paulo, v.19, n.1, p. 35-47, Mar. 2010. 7. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Coordenação-Geral de Desenvolvimento da Epidemiologia em Serviços. Guia de Vigilância em Saúde: volume 1. 1ª ed. atual. – Brasília: Ministério da Saúde. 3 v.: il. 2017 8. BUHLER, H. F. et al. Análise espacial de indicadores integrados determinantes da mortalidade por diarreia aguda em crianças menores de 1 ano em regiões geográficas. Ciência e Saúde Coletiva, v. 19, n. 20, p. 4131-4140, 2014.

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O Princípio da Responsabilidade e os Determinantes Socioeconômicos da Saúde Jane de Souza Ramos1 Jorge Alexandre Barbosa Neves2

RESUMO: Neste artigo, busca-se analisar o saneamento como fator mediador entre as diferentes dimensões do desenvolvimento humano. Mais especificamente, busca-se observar se variáveis de saneamento fazem a mediação entre as dimensões de educação e renda do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a dimensão referente à saúde. Para tanto, estima-se um modelo de equações estruturais para o teste da hipótese proposta. Ao final, conclui-se que a hipótese é corroborada pela análise estatística dos dados, indicando que a elevação dos fatores de educação e renda do IDH e da cobertura do abastecimento de água tratada permitem o atendimento do princípio da responsabilidade do direito sanitário. Palavras-chave: Determinantes socioeconômicos da saúde; princípio da responsabilidade, justiça social; desenvolvimento.

Introdução À luz da lei 11.445/2007, saneamento básico é o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo de águas pluviais, atividades que, de acordo com o seu Art. 2°, par. III, devem ser realizadas de forma adequada à garantia da saúde publica da população (1). Para a Organização Mundial de Saúde (OMS), saneamento é o controle de todos os fatores do meio físico do homem, que podem exercer ou exercem efeito nocivo sobre o seu bem estar físico, mental e social (2). Desta forma, é incontestável dizer que o acesso universal a serviços de saneamento e higiene adequada é essencial para a saúde, bem-estar e desenvolvimento da população. O que se vê no Brasil, porém, dez anos após a promulgação da referida lei vai na contramão desta afirmativa. Segundo análise de dados da Pesquisa Nacional por amostra de Domicílios de 2015 (PNAD-2015), 29 milhões de pessoas no Brasil ainda permanecem sem acesso ao abastecimento geral de água, 69,2 milhões sem acesso ao esgotamento sanitário por rede e 20,5 milhões sem coleta de lixo (3). 1 2

CEFET/MG, UFMG. E-mail: [email protected] CEFET/MG, UFMG. E-mail: [email protected]

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O impacto da falta de investimentos em saneamento é assustador. Dados recentes mostram que, anualmente, 1,7 milhão de crianças com menos de cinco anos que residem em ambientes insalubres, morrem em todo o mundo por doenças como diarreia, malária e pneumonia provocadas por fatores ambientais como poluição, falta de saneamento e uso de água imprópria para o consumo (4). Para mudar esse cenário, é necessário que ocorra o aumento de investimentos no setor visto que, de acordo com a OMS, para cada dólar investido em água e saneamento, são economizados 4,3 dólares em custos de saúde no mundo (5). Conhecer os determinantes sociais, econômicos, políticos, culturais e ambientais que impactam diretamente a saúde é, portanto, fundamental para a formulação de políticas e estratégias que direcionem investimentos na área. Neste artigo, buscar-se-á analisar o saneamento como fator mediador entre as diferentes dimensões do desenvolvimento humano. Mais especificamente, será observado se variáveis de saneamento fazem a mediação entre as dimensões de educação e renda do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e a dimensão referente à saúde. A discussão detalhada do problema de pesquisa, bem como a fundamentação teórica serão apresentadas, adiante. Problema de pesquisa O que é uma sociedade justa? Essa questão ganhou grande impulso a partir da publicação do seminal trabalho de Rawls (1971), que inaugurou uma nova fase no debate entre a Filosofia Moral, o Direito e as Ciências Sociais (6). Coleman (1974) foi um dos primeiros cientistas sociais a se debruçar sobre as implicações do trabalho de Rawls para os estudos empíricos sobre desigualdade e políticas públicas (7). Apesar do elevado nível de erudição, sua análise falhou ao identificar como inconciliáveis os princípios de liberdade e equidade. O desenvolvimento dos Estados de Bem-Estar Social tem provado que esses princípios são conciliáveis. A partir de reflexões provocadas pelo trabalho de Rawls (1971), Amartya Sen desenvolveu uma série de reflexões sobre justiça e desenvolvimento que geraram publicações na forma de artigos acadêmicos e livros (8). Essas reflexões culminaram na publicação de um livro que sintetiza a abordagem de Sen (2011). Para Amartya Sen, o desenvolvimento pensado de forma ampla leva ao desenvolvimento de uma sociedade

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livre e justa, na qual a liberdade é alcançada quando os indivíduos têm as capacitações (ou capacidades, dependendo da tradução) necessárias para se alcançar o bem-estar. “Para entendermos o conceito de capacitações, precisamos primeiro explicar o que são funcionamentos. Sen diferencia dois aspectos em relação a bem-estar (well-being): o bem-estar efetivamente alcançado pela pessoa e a liberdade para alcançar bem-estar. É essa distinção que está por trás dos conceitos de funcionamentos e capacitações. Funcionamentos consistem nos estados e atividades que as pessoas valorizam em suas vidas. Como exemplo de funcionamentos relevantes, Sen destaca algumas como estar adequadamente nutrido, gozar de boa saúde, poder escapar de mortalidade prematura, ou até mesmo estar feliz, ter autorrespeito ou fazer parte da vida da comunidade. Aquilo que uma pessoa realiza pode ser considerado um vetor de funcionamentos. Funcionamentos, portanto, têm relação com o bem-estar efetivamente alcançado. Por outro lado, capacitações dizem respeito à liberdade para alcançar bem-estar, uma vez que consistem no conjunto de vetores de funcionamentos: ou seja, capacitações são as várias combinações possíveis de funcionamentos que refletem a liberdade da pessoa de viver o tipo de vida que deseja” (9).

Portanto, a partir de Sen, pode-se perceber que a saúde é um fator de funcionamento central para a vida das pessoas. Não é à toa, portanto, que o direito à saúde é um dos elementos centrais das políticas de bem-estar (10). O princípio da responsabilidade no direito sanitário: “Tem como pressuposto a premissa de que todos temos deveres com relação à proteção da saúde, sejam eles individuais, sejam eles coletivos e sociais. A proteção à saúde exige que cada indivíduo se comporte de forma responsável de acordo com seus deveres. O princípio da responsabilidade é fundamental para a segurança sanitária. Ele atinge tanto os comportamentos privados e íntimos do indivíduo quanto seus comportamentos sociais e públicos”. (11)

Para o cumprimento de tal princípio, contudo, se faz necessário que os indivíduos e as sociedades disponham das capacidades indicadas por Amartya Sen. Para analisar tais capacidades de forma comparativa3, Sen desenvolveu, junto com Mahmub Ul Haq, o Índice de Desenvolvimento Humano, em 1998. Com base nas análises de Amartya Sen sobre desenvolvimento e justiça, propomos o problema de pesquisa do presente trabalho. Buscar-se-á, aqui, analisar a relação entre as diferentes dimensões do IDH (educação, renda e saúde) e a mediação entre elas a partir de uma variável referente às condições de saneamento. Ou seja, será analisada a relação 3

Sen propõe uma teoria pragmática da justiça baseada em avaliações comparativas, em contraposição a abordagens como a de Rawls, que Sen considera transcendentais

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entre as mediações entre o IDH referente às dimensões de renda e educação com o IDH referente à dimensão saúde (ou longevidade), mediada pelas condições de saneamento. A hipótese proposta é a de que esses quatro diferentes fatores (IDH-R, IDH-E, saneamento e IDH-S) estão positivamente relacionados. A hipótese proposta, portanto, leva à expectativa de que o princípio da responsabilidade com relação à saúde se viabiliza quanto mais presentes forem as condições objetivas (renda, educação e saneamento) ou capacitações.

Metodologia Para o teste da hipótese proposta acima, foi estimado um Modelo de Equações Estruturais com base nos dados sobre IDH e saneamento dos estados brasileiros em 2010. Com respeito ao saneamento, duas variáveis foram consideradas, a saber, o percentual de domicílios com abastecimento regular de água tratada e o percentual de comicílios com saneamento. Todavia, apenas a primeira variável (referente ap abastecimento de água) mostrou-se adequada para a estimação de um modelo com elevado nível de ajustamento4. O Modelo final estimado foi:

Onde: idhe diz respeito ao IDH referente à educação; idhr diz respeito ao IDH referente à renda; agua se refere ao percentual de domicílios com abastecimento de água e; idhs diz respeito ao IDH referente à.

O Modelo acima pressupõe a estimação de duas equações estruturais (com coeficientes padronizados), a saber:

4 Giatti (2007) já havia demonstrado a relevância do abastecimento de água tratada para a saúde pública (12).

1180

aguai = B1(idhei) + B2(idhri) idhsi = B3(idhei) + B4(idhri) + B5(aguai)

Os dados sobre o IDH vêm do Atlas de Desenvolvimento Humano do PNUD, ao passo que os dados sobre abastecimento de água vêm do Sistema Nacional de Informações sobre o Saneamento (SNIS).

Resultados A estimação do Modelo proposto trouxe os seguintes resultados:

Tabela 1: Efeitos sobre a Variável “agua”

*p < 0,10. Obs.: Coeficientes padronizados.

1181

Tabela 2: Efeitos Diretos e Totais (sobre a variável “idhs”)

**p < 0,05; ***p < 0,001. Obs.: Coeficientes padronizados.

Os resultados da estimação do Modelo de Equações Estruturais mostram que os coeficientes apresentaram valores positivos, como esperado pela hipótese proposta 5. Portanto, pode-se concluir que a hipótese proposta foi corroborada pelos dados. Adicionalmente, percebe-se que a dimensão do IDH referente à renda é, de longe, o fator mais relevante na determinação do IDH da dimensão saúde6. Ou seja, a elevação da renda é a variável com maior potencial para elevar a satisfação do princípio da responsabilidade.

Conclusão A análise comparativa de modelos de organização social e de políticas públicas revela a multidimensionalidade do desenvolvimento proposta por Amartya Sen. A relação entre diferentes dimensões do desenvolvimento social é, portanto, esperada. No presente trabalho, a partir da estimação de um Modelo de Equações Estruturais, foi possível mostrar a relação entre as três dimensões do IDH. Foi proposta a hipótese de que as dimensões de educação e de renda são explicativas da dimensão de saúde e que a relações entre as

5 Alguns coeficientes não se mostraram estatisticamente significantes para a rejeição das hipóteses nulas. Todavia, deve-se considerar que os dados analisados são populacionais, não são amostrais. Assim sendo, neste caso, os coeficientes de significância são apenas ilustrativos. O modelo estimado foi escolhido em função dos elevados valores encontrados nos índices de ajuste 6 Por serem padronizados, os coeficientes são comparáveis

1182

duas primeiras dimensões e a última são mediadas por variáveis de saneamento. Ao final, observou-se que: a) entre fatores referentes a saneamento, apenas o abastecimento de água tratada funcionou com variável mediadora entre as dimensões de educação e renda do IDH e a dimensão de saúde; b) a dimensão renda do IDH tem, de longe, o efeito mais relevante na determinação da dimensão saúde do IDH. c) do ponto de vista da abordagem teórica proposta, observa-se que os fatores de educação e de renda do IDH e o abastecimento de água tratada são fatores explicativos da saúde, ou seja, contribuiem para o atendimento do princípio da responsabilidade proposto no direito sanitário, bem como representam fatores capacitadores que promovem uma sociedade justa, pois livre e equitativa.

Referências 1. BRASIL. Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007.. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2017. 2. WHO. Sanitation. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2017. 3. ABES. Situação do saneamento básico no Brasil: uma análise com base na PNAD 2015. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2017. 4. WHO. Inheriting a sustainable world: atlas on children’s health and the environment. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2017. 5. WHO, UN-Water Global Analysis and Assessment of Sanitation and Drinking-Water (GLAAS) 2014 - Report Investing in Water and Sanitation: Increasing Access, Reducing Inequalities. Disponível em: . Acesso em: 02 out. 2017. 6. RAWLS, John. A Theory of Justice. Oxford: Clarendon Press, c Cambridge: Harvard University Press, 1971, pp. 60-65 7. COLEMAN, James S. Inequality, Sociology, and Moral Philosophy. American Journal of Sociology, Chicago-IL, v. 80, n. 3, p. 739-764, 1974.

1183

8. SEN, Amartya Kumar. A ideia de justiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 9. KANG, Thomas. Justiça e Desenvolvimento no Pensamento de Amarya Sen. Revista de Economia Política, Vol. 31, No. 3, pp. 352-369, 2011. 10. DALLARI, Sueli. Uma Nova Disciplina: O Direito Sanitário. Revista de Saúde Pública, Vol. 22, No. 4, pp. 327-334, 1988. 11. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Manual de direito sanitário com enfoque na vigilância em saúde. Brasília, 2006. 12. GIATTI, Leandro. Reflexões sobre Água de Abastecimento e Saúde Pública: um estudo de caso na Amazônia Brasileira". Saúde e Sociedade, Vol. 16, No. 1, pp. 134-144, 2007.

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A Gestão de Políticas Públicas e o uso de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) como facilitador de tomada de decisão em Saúde Marcelo Lima dos Anjos1 Marcos Vinícius Rodrigues Pereira2 Rafael Silva de Souza3

RESUMO: O presente Artigo, visa a explanação acerca do uso da água como um dos determinante sociais da saúde, num panorama contemporâneo, uma vez que, para o contexto cientifico atual, se faz necessário uma ampla análise e diversas pesquisas. Assim, foi feita comunicação entre área da gestão pública e do campo da tecnologia da informação e comunicação (TIC), baseada em troca informacional, no intuito de trazer contribuições positivas e a consolidação da experiência na gestão pública na saúde. Justo, pois trata-se de vidas humanas, denotando a influência de maneira decisiva na qualidade de assistência prestada resulta em uma política efetiva e eficaz. Desta forma, a compreensão dos muitos fatores determinantes da saúde, bem como a participação dos profissionais, são de suma importância para fomentar políticas públicas voltadas para a saúde. Contudo, após a leitura minuciosa desta obra, o leitor será capaz de entender que a eficiência no que é público, atualmente, é um fator relevante na atual estrutura burocrática, ao contrário de três décadas atrás, numa visão da estrutura burocrática tradicional, completamente diferente do momento atual, onde este será munido de objetos para o estudo dos casos, assim como sobre as categorias elencadas, nutrindo suas ideias sobre o mau uso da água e da má administração, no que se refere as políticas públicas, em especial na saúde. Palavras-chave: Políticas Públicas em Saúde; TIC’s; Uso Racional da Água.

Introdução A formatação deste trabalho acadêmico deu-se após a discussão acerca do mau uso da água, e sua notória escarces nos dias atuais, bem como a importância desta como fator que determina a saúde no meio social. Para se criar um parâmetro explorativo de dados, foi estabelecida uma investigação qualitativa com base nos parâmetros e procedimentos preconizados por LUDKE JANDRE (1986), denominados de explorações, decisão e descoberta. Logo, com este, pretende-se contribuir com o desenvolvimento de ações e gestão no setor público, visto um grande aporte por meio do marco regulatório da administração pública, que, de maneira evolutiva, foi se constituindo a partir da responsabilização com a 1

Mestrando em Gestão e Regulação de Serviços Públicos em Saneamento Básico pela FIOCRUZ/ENSP; Especialista em Direito Público - FACEI 2 Aluno Externo do Mestrado Profissional em Políticas Públicas em Saúde pela Escola Fiocruz de Governo – EFG; PósGraduando em Segurança da Informação - FIB 3 Graduando em Gestão Pública pela Faculdade de Tecnologia e Ciências do Distrito Federal – FATEC-DF

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gestão orçamentária, de pessoas, financeira, operacional (conformidade), diminuindo a cada dia o desvio na aplicação de recursos públicos, cumprindo fielmente os dispositivos constantes em legislações detalhistas, complexas e efetivas, que requer uma formalidade mínima nos processos administrativos. Todo este bojo existe no âmbito da administração pública, com apoio das tecnologias de informação e comunicação, será o alicerce do escopo do trabalho, visto que na administração do que é público, com ênfase no setor da saúde, é embasada numa cultura de austeridade no exercício da gestão pública, bem como uma formalidade para o fluxo dos processos administrativos.

A gestão como fator determinante das políticas públicas em saúde No contexto prático, a necessidade da cultura burocrática, definida por Max Weber, não deve entrar em contradição com maior flexibilidade para a gestão e o bom funcionamento da administração pública, uma vez que estas devem se complementar. Precisa-se. Esta evolução das funções estatais, trouxe, além de uma sofisticada complexidade na sua atuação, atos eu legitime e norteiem os resultados na qualidade da gestão, trazendo um denominador comum à sociedade, na condução dos determinantes sociais. Entende-se que a administração pública é a formatadora de políticas públicas que orientem os produtos e serviços aos seus beneficiários (cidadãos), organizações privadas e sempre visando a qualidade na prestação de serviços públicos. As políticas públicas de gestão, são nada mais, nada menos que políticas setoriais da gestão público, a exemplo: saúde, educação assistência sócia, transportes, planejamento, etc. Assim, Anjos (2015, p. 9) diz que: Essa atividade multiprofissional traz certo conforto aos profissionais de outras áreas do saber e não apenas aos gestores públicos que, conhecedores técnicos das mais diversas demandas administrativas, poderão por si ou outrem dispor de confrontações técnicas. Desta forma, fortifica-se a administração pública com instrumentos que possibilitam a reforma interna do organismo público, visando sempre à eficiência na execução de suas atividades e a eficácia inerente à administração pública.

É sabido que a imagem do setor público perante a sociedade está um tanto desgastada, principalmente quanto a aplicação e controle da gestão de recursos e sua utilização

histórica

baseada

em

desperdício

e

ineficiência.

A

necessidade

1186

de

responsabilização setorial é eficiente e pode trazer uma grande contribuição a toda sociedade que finalizaria o processo através do controle social; da participação coletiva.

A necessidade de implementação de políticas públicas de reutilização de água para uso doméstico e comum A constituição Federal de 1988 prevê em seu Art. 37 os princípios da administração pública brasileira na gestão do Estado democrático de Direito, e que têm como objetivo atender os interesses da coletividade, conforme segue: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. (BRASIL, 1988)

Logo, a administração pública procura estabelecer diretrizes para alcançar os seus objetivos com o máximo de eficiência no serviço público ou privado, trazendo assim um desenvolvimento e sustentabilidade para a sociedade brasileira. Nesse sentindo, os gestores públicos são responsáveis por planejar, assessorar projetos, coordenar ações e avaliar programas e desenvolver políticas públicas, em especial na saúde. Assim acontece que, em muitos casos, o gestor é omisso do seu dever por desconhecer as políticas públicas formadoras do SUS. A jurisdição não tem solucionado o acesso a bens e serviços de saúde, ao contrário, tem criado distorções no sistema e dado ao conceito de acesso à justiça um sentido reverso, em que uns poucos privilegiados, que podem ter acesso aos tribunais, obtêm uma sentença favorável. (DELDUQUE, 2015) Outrossim, segundo Leoneti, Prado e Oliveira (2011, p. 333) a quantidade de água necessária para o desenvolvimento das atividades humanas, tanto no processo de produção de vários tipos de produtos quanto no abastecimento para o consumo de água propriamente dito, vem aumentando significativamente ano após ano no Brasil. Em contraponto, a quantidade de água potável, ou de água que possa ser utilizada para satisfazer as necessidades humana, esses diversos tipos de finalidades não aumentou, forçando os gestores a repensassem em políticas voltadas ao reuso da água. O reuso seria o aproveitamento de água previamente utilizadas, uma ou mais vezes, para suprir as necessidades humanas, domesticas, e afins, incluindo o original. Portanto,

1187

fica claro que o reuso adequado da água é um retorno para a natureza, contribuindo de forma sustentável e eficiente. (FILHO 1987) Assim, para Brega Filho e Mancuso (2003), destacam-se: Reuso indireto não planejado: ocorre quando a água já utilizada é descarregada no meio ambiente, portanto sendo diluída, e novamente utilizada a jusante de maneira não intencional; Reuso indireto planejado: ocorre quando os efluentes, depois de convenientemente tratados, são descarregados de forma planejada nos cursos d'água superficiais ou subterrâneos, para serem utilizados a jusante de forma intencional e controlada, no intuito de algum uso benéfico; O reuso direto planejado: ocorre quando os efluentes, depois de convenientemente tratados, são encaminhados diretamente ao local de reuso.

Segundo YASSUDA & NOGAMI (1976) e AZEVEDO NETTO et al (1998), partindo da necessidade do consumo básico da água nos grandes centros urbanos, em especial no Brasil, criou-se uma cultura de desperdício, assim trazendo um novo olhar para a implementação das políticas públicas, em relação ao consumo de água, quanto maior a população, maior será o consumo de recursos naturais. Com o passar do tempo, recuso naturais estão desaparecendo com o crescimento populacional, portanto a melhor forma de prevenção contra escassez de água, é a implementação de políticas públicas, e aderir a novas tecnologias e pesquisas no reaproveitamento de água para reuso doméstico e comum.

A contribuição da tecnologia da informação e comunicação (tic) na saúde No que se refere a saúde, com destaque na pública, o Brasil, por ser uma sociedade politicamente organizada, criou mecanismos para tratar do assunto. Assim, em 1988 foi promulgada a Constituição Federal, onde, em seu Art.º 196 estabelece a saúde como dever do Estado, ficando incumbindo criar políticas públicas sociais afim de solucionar, de forma sistêmica, os problemas vividos na saúde, adotando tecnologias, que possam colaborar no combate as endemias sociais, bem como mitigar o desperdício da água, fazendo que com que todos convivam em uma sociedade politicamente organizada. Nesse diapasão, em outrora, houve a revolução da tecnologia, ocorrida no mundo moderno quando o homem buscava meios práticos de calcular. Na França surgirá a primeira máquina de cálculos, que tinha algoritmos como base. Esse evento ocorreu em 1642, que pode ser compreendido como o estopim para os avanços das tecnologias da informação e comunicação a nível mundial.

1188

Mais tarde, conforme o uso das tecnologias da informação e comunicação foram aumentando, bem como as demandas por informação no campo da saúde, os desafios inerentes à sua utilização para subsidiar a tomada de decisões no sistema de saúde brasileiro, bem como criando políticas que corroborem para saúde. Nisso, cria-se uma Política Nacional de Informação e Informática em Saúde (PNIIS), que veio como uma forma estratégica de fomentar o uso de novas tecnologias para a prestação de serviços públicos e representativa para a promoção de mecanismos de governança, tanto no que se refere ao incremento da capacidade cívica e de capital social, quanto no que tange à promoção do desenvolvimento econômico, à eficiência governamental e à transparência entre governo e sociedade civil (RUEDIGER, 2003). Destaca-se aqui o fato de as avaliações do processo de trabalho em saúde, além de permitirem correções de trajetória, apresentarem um papel fundamental na capacitação de recursos humanos e na democratização do conhecimento. (BROOK, 1996; VILLALBI, 2003) Assim, a saúde se viu obrigada a adotar determinadas tecnologias (medicamentos, equipamentos e procedimentos técnicos, sistemas organizacionais, educacionais, de informação e de suporte e os programas e protocolos assistenciais) no intuito de facilitar o atendimento de seus pacientes, e formar profissionais da área da saúde de novas ferramentas que corroboram com sua atuação. Nos casos em que houve decisão do gestor público pela incorporação de determinada tecnologia, altera-se ou elabora-se o protocolo crimino ou a diretriz terapeuta afeta ao uso da tecnologia incorporada, bem como gerando segurança e praticidade nos atendimentos médicos, desde atendimentos mais simples, quanto nos atendimentos emergenciais. (SANTOS, 2013) Diante disso, é bastante relevante o uso da informação para avaliar o sucesso das políticas públicas em saúde. Este consenso se manifesta não apenas na literatura especializada, mas também em relatórios e recomendações de Conferências de Saúde, oficinas de trabalho do SUS e eventos de sociedades científicas. Informações epidemiológicas,

financeiras,

orçamentárias,

legais,

normativas,

socioeconômicas,

demográficas e sobre recursos físicos e humanos, oriundas de dados de qualidade são capazes de revelar a realidade de serviços e ações de saúde e a situação de saúde da população, evidenciando vantagens e problemas de prioridades e investimentos definidos. (NOVAES, 1996; TRAD, 1998; HARTZ, 1999; MEDINA; AQUINO, 2002; SENNA, 2002; CONILL, 2002)

1189

Contudo, mesmo que exista uma universalização dos sistemas de informação e comunicação na saúde, é necessário a mão de obra capacitada, para que se tenha uma efetiva coleta de dados, através da criação de um roteiro sobre os determinantes sociais da saúde, o qual deve passar por frequentes atualizações, adequando a realidade local com a base de dados existente no contexto observado, facilitando a tomada de decisões.

Considerações finais Diante do contexto pesquisado neste ensaio acadêmico, a evidencia da necessidade de informações e comunicação integrada a gestão trouxe uma base de discussão de suma importância ao arcabouço institucional da saúde pública, no contexto do Direito Sanitário. Basta entender que os dados coletados e transformados em informações traduzem a situação real de cada cidadão em um conjunto de ações pautados na dinâmica evolutiva que a gestão pública necessita para apresentar políticas públicas e implementar as existentes em uma sintonia que venha a produzir grandes transformações em todo o processo de mitigação favoráveis a ampliação do direito aos parâmetros mínimos existentes a uma vida pautada no princípio de saneamento básico, resguardado pelo Direito Sanitário. A influência institucional na transformação da cultura existente é fundamental às mudanças no âmbito de reaproveitamento da agua utilizada, diante da escassez eminente ao qual a população brasileira se encontra. Trazer instrumentos que minimizem a utilização de agua potável para o uso doméstico se faz necessária, bem como as estratégias a serem traçadas é dever do estado como instituidor de determinantes sociais que elevem a qualidade de vida e promovam a saúde pública como direito do cidadão brasileiro.

Referências 1. ANJOS, Marcelo Lima dos. A capacidade postulatória do gestor público no processo administrativo. RBDGP (Pombal - Paraíba, Brasil), v. 3, n. 1, p. 8-15, jan-mar., 2015. 2. BROOK, R. H. et al. Measuring Quality of Care. The New England Journal of Medicine, Massachusetts, v. 335, n. 13, p. 966-970, Sept. 1996.

1190

3. CONILL, E. M. Políticas de atenção primária e reformas sanitárias: discutindo a avaliação a partir da análise do Programa Saúde da Família em Florianópolis, Santa Catarina, Brasil, 1994-2000. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, Suplemento, p. 191-202, 2002. 4. DELDUQUE, Maria Célia; CASTRO, Eduardo Vazquez de. A Mediação Sanitária como alternativa viável à judicialização das políticas de saúde no Brasil. SAÚDE DEBATE, Rio de Janeiro, v. 39, n. 105, p.506-513, ABR-JUN 2015 5. HARTZ, Z. M. A. Institucionalizing the evaluation of health programs and policies in France: cuisine internationale over fast-food and sur measure over readymade. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 229-259, 1999. 6. LAVRADOR FILHO, J. Contribuição para o entendimento do reúso planejado da água e algumas considerações sobre suas possibilidades no Brasil. São Paulo: Escola Politécnica de São Paulo, Universidade de São Paulo, 1987 (Dissertação, Mestrado) apud BREGA FILHO, D. e MANCUSO, P.C.S. O conceito de reúso da água. In: MANCUSO, P.C. S. e SANTOS, H.F.(Ed.). Reúso da água. Barueri: Manole, 2003. Cap.2, p.21-36. 7. LEONETI, Alexandre Bevilacqua; PRADO, Eliana Leão do; OLIVEIRA, Sonia Valle Walter Borges de. Saneamento básico no Brasil: considerações sobre investimentos e sustentabilidade para o século XXI. RAP — Rio de Janeiro 45(2):331-48, mar./abr. 2011. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rap/v45n2/03.pdf> Acessado 03/10/2017. 8. LÜDKE, Menga; ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em Educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. 9. MEDINA, M. G.; AQUINO, R. Avaliando o Programa de Saúde da Família. In: MANCUSO, P.C. S. e SANTOS, H.F.(Ed.). Reúso da água. Barueri: Manole, 2003. Cap.2, p.21-36. 10. SANTOS, Alethele de Oliveira. Discursos proferidos na Audiência Pública da Saúde do Supremo Tribunal Federal: uma análise à luz da teoria dos sistemas sociais. Brasília, 2013. 11. SOUSA, M. F. (Org.). Os sinais vermelhos do PSF. São Paulo: Hucitec, 2002. p. 135-151. 12. NOVAES, H. M. D. Epidemiologia e avaliação em serviços de atenção médica: novas tendências na pesquisa. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 12, Suplemento 2, p. 7-12, 1996. 13. PROSAB (PROGRAMA DE PESQUISAS EM SANEAMENTO BÁSICO). Reúso das águas de esgoto sanitário, inclusive desenvolvimento de tecnologia de tratamento para esse fim. Rio de Janeiro: Abes, 2006.

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14. RUEDIGER, M. A. Governança democrática na era da informação. Revista de Administração Pública, Rio de Janeiro, v. 37, n. 6, p. 1257-1280, nov./dez. 2003. 15. SENNA, M. C. M. Equidade e política de saúde: algumas reflexões sobre o Programa Saúde da Família. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, Suplemento, p. 203-211, 2002. 16. TRAD, L. A. B. et al. O impacto sociocultural do Programa de Saúde da Família (PSF): uma proposta de avaliação. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, p. 429-435, 1998. 17. YASSUDA, E. R.; NOGAMI, P. S. Consumo da água. In: OLIVEIRA, W. E.; GAGLIANONE, S.; YASSUDA, E. R.; NOGAMI, P. S.; PEREIRA, B. E. B.; MARTINS, J. A. Técnica de abastecimento e tratamento de água. Vol. 1. Abastecimento de água. 2 ed. São Paulo: CETESB, págs.:107-134, 1976.

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Promoção e Prevenção em saúde: ações em uma comunidade em vulnerabilidade social no município de Arapiraca - AL

Kathleen Cézar de Mélo Luiz Carlos Francelino Silva Junior Raquel de Lima Santos1

RESUMO: Objetivos: Em países como o Brasil e outros da América Latina, os Determinantes Sociais de Saúde (DSS) têm papel importante nas condições de vida e saúde. A promoção da saúde pode ser entendida como uma estratégia de enfrentamento dos problemas de saúde que afetam as populações humanas. A educação em saúde é uma das principais formas de interação entre a universidade e a comunidade. Assim, desenvolveu-se o Projeto de Extensão Universitária Saberes e Práticas em Saúde no Contexto de uma Comunidade em Vulnerabilidade Social com uma proposta transformadora, interdisciplinar e, a partir do conhecimento dos indivíduos e contexto social, aprimorar estratégias relevantes para a realidade da comunidade Mangabeiras, pertencente ao município de Arapiraca - AL. Este trabalho tem como objetivo relatar a experiência de um projeto de extensão universitária da Universidade Federal de Alagoas, campus Arapiraca. Metodologia: O presente trabalho é derivado de um projeto de extensão realizado na comunidade Mangabeiras, bairro Senador Arnon de Melo, no município de Arapiraca, Alagoas durante o período de um ano (2016-2017). Foram realizadas ações, com temas diversificados, no contexto da prevenção e promoção de saúde, visando integrar a comunidade e suas instituições sociais. Foi feito reconhecimento do espaço antes do início das atividades. Os locais de realização do projeto foram: ruas da comunidade, escola, creche, UBS, CRAS e espaço do projeto Cáritas. Resultados e Discussão: Dentre as temáticas trabalhadas ao longo do projeto englobam diversas áreas de conhecimento, como: “o que é saúde?”; a visão dos moradores e profissionais da comunidade sobre saúde; hábitos alimentares e de higiene; dia da mulher; saúde mental; animais peçonhentos; Primeiros Socorros: engasgo, desmaio, RCP e queimaduras. Não houve caráter impositivo na escolha dos temas, sendo realizada consulta aos participantes após as atividades. As atividades foram baseadas em metodologias ativas com sucinta avaliação de conhecimento prévio entre os participantes com subsequente aprofundamento do conhecimento a ser partilhado na atividade e realização de feedback ao final. Sendo fundamental o processo de vínculo com a comunidade construído com o diálogo entre sujeitos. Conclusão: O desenvolvimento de ações educativas no âmbito da extensão universitária corrobora a importância do papel dos acadêmicos na promoção da saúde e prevenção de doenças no meio da comunidade. A prática de intervenções educativas numa comunidade como Mangabeiras, mostrou-se eficaz para a disseminação do conhecimento das temáticas, bem como esclarecer dúvidas. Destaca-se a necessidade do profissional em saúde ser flexível em lidar com dificuldades presentes e buscar soluções. Assim, a extensão universitária se afirma como prática essencial, colocando-se como ferramenta para realizar práticas integradas. Palavras-chave: Educação em saúde; Vulnerabilidade social; Promoção da saúde; Prevenção de doenças.

1

Universidade Federal de Alagoas, Campus Arapiraca. E-mail: [email protected]

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Introdução Segundo a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), os DSS são os fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos/raciais, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população (1). Em países como o Brasil e outros da América Latina, a péssima distribuição de renda, o analfabetismo e o baixo grau de escolaridade, assim como as condições precárias de habitação e ambiente têm um papel muito importante nas condições de vida e saúde. Sendo constatado quando comparado os índices de desenvolvimento humano (IDH) entre países desenvolvidos e países em desenvolvimento. A partir da articulação entre saúde e condições de vida, pode-se identificar o aperfeiçoamento da promoção da saúde (2). Decorrente de um amplo conceito de DSS e processo saúde-doença, a promoção da saúde pode ser entendida como uma estratégia de enfrentamento a partir da integração entre os saberes técnicos e populares dos problemas de saúde que afetam as populações humanas, bem como a mobilização de recursos em prol de uma resolubilidade. Diante disso, tem-se o papel da universidade a partir de projetos de extensão como processo educativo, cultural e científico, estruturado em um grupo de ações fundamentadas na articulação do ensino e da pesquisa e na viabilização da participação efetiva da comunidade na atuação da universidade. A relação entre a universidade e a comunidade pode se desenvolver de várias formas, sendo as estratégias de educação uma das mais utilizadas, tendo como base a educação em saúde, podendo ser considerada uma das principais ações de promoção da saúde, por ser de suma importância tanto na prevenção de agravos como na formação de multiplicadores e cuidadores. Com o objetivo de proporcionar uma maior autonomia, engloba-se um cuidado holístico, uma vez que contempla o indivíduo como um todo. Assim, entende-se que tanto a extensão universitária tem um papel fundamental na educação em saúde como a educação em saúde ocupa um espaço de suma importância na extensão universitária (3). A partir disto, desenvolveu-se o Projeto de Extensão Universitária Saberes e Práticas em Saúde no Contexto de uma Comunidade em Vulnerabilidade Social com uma proposta transformadora na forma de pensar educação em saúde, pois, visou-se diminuir a estrutura vertical e hierarquizada, tradicionalmente encontradas na educação tradicional, além de abarcar a proposta interdisciplinar, com a colaboração das áreas da medicina, enfermagem e serviço social promovendo uma visão holística do contexto em que o público-alvo está 1194

inserido. Tomando essa premissa, o grupo procurou conhecer as pessoas inseridas naquele contexto social, suas necessidades, levando em consideração o conhecimento dos indivíduos e suas experiências, para, a partir disto, aprimorar estratégias embasadas em temas relevantes para a realidade da comunidade trabalhada, Mangabeiras, pertencente ao município de Arapiraca - AL. Segundo o IBGE 2013, o município de Arapiraca na Mesorregião Agreste, possui cerca de 227.640 habitantes, cerca de 123 Km da capital do estado, Maceió e possui IDH de 0,649, médio. Devido a sua localização geográfica, a cidade é atualmente um importante centro comercial na região por interligar as cidades circunvizinhas. No entanto, apesar do crescimento acelerado que a cidade vivenciou nas últimas décadas, a disparidade social continua presente. Dentro desse contexto de expansão e reestruturação urbana, surgiu em torno de um lixão a comunidade Mangabeiras, que não tem acompanhado a dinâmica de desenvolvimento da cidade, enfrentando o aumento da violência local junto ao crescimento populacional, com escasso número de moradias com condições mínimas de habitabilidade e com difícil acesso a serviços públicos essenciais estando à margem da urbanização (4). De acordo com o exposto, este trabalho tem como objetivo relatar a experiência de um projeto de extensão universitária da Universidade Federal de Alagoas, campus Arapiraca.

Metodologia O presente trabalho é derivado de um projeto de extensão realizado na comunidade Mangabeiras, bairro Senador Arnon de Melo, no município de Arapiraca, Alagoas durante o período de um ano (2016-2017). Foram realizadas ações, com temas diversificados, no contexto da prevenção e promoção de saúde, visando integrar a comunidade e suas instituições sociais. Todas as ações foram documentadas através de áudios gravados e fotografias registradas das atividades praticadas. Para tanto, fez-se uso de um termo de consentimento assinado por cada participante das respectivas atividades. Os locais de realização do projeto foram as ruas da comunidade, escola, creche, UBS, CRAS e espaço do projeto Cáritas. Para realização do projeto, inicialmente foi feito o reconhecimento do espaço da comunidade, procurando-se entender os principais aspectos e demandas em saúde

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apresentados pela população local. Assim, a comunidade era visitada semanalmente, para reconhecimento do ambiente, população e instituições locais. O projeto em questão teve como planejamento das suas ações, atividades que foram pensadas e efetivadas a partir de metodologias ativas de ensino-aprendizagem. As metodologias ativas estão alicerçadas em um princípio teórico significativo: a autonomia, a educação contemporânea deve pressupor um discente capaz de auto gerenciar ou autogovernar seu processo de formação (5). Tal conceito foi ampliado para todos os envolvidos que participaram do projeto, no âmbito das instituições (escola, creche, UBS e CRAS) com essa perspectiva de aprender a aprender, alcançando as dimensões intelectuais e afetivas dos participantes.

Resultados e Discussão Dentre as temáticas trabalhadas ao longo do tempo de duração do projeto, um ano, englobam diversas áreas de conhecimento, como: “o que é saúde?”; a visão dos moradores e profissionais da comunidade sobre saúde; hábitos alimentares e de higiene; dia da mulher; saúde mental; animais peçonhentos; Primeiros Socorros: engasgo, desmaio, RCP e queimaduras. Os temas foram discutidos previamente entre o grupo do projeto nas reuniões antecedentes à realização das atividades, no entanto, não houve caráter impositivo, pois, após a realização de cada atividade na comunidade foi sugerida a próxima temática e então, após aprovação dos participantes, prosseguia-se o planejamento seguinte.

Reunião de planejamento: 29/03/17

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Ação em 05/04/17 - Higiene

Ação em 04/05/17 - Dia da Mulher

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Ação em 15/06/17 - Animais Peçonhentos

Ação 26/07/17 - Primeiros Socorros

As estratégias utilizadas para a abordagem das temáticas envolveram sucinta avaliação de conhecimento prévio entre os participantes, os quais tinham caráter heterogêneo e diversificado de faixas etárias, com subsequente aprofundamento do conhecimento a ser partilhado na atividade. Como também a realização de feedback após a conclusão, com vista a balancear o grau de significância e consolidação do tema entre os indivíduos presentes. Os meios utilizados para a abordagem dos conteúdos com os moradores foram: roda de conversa, imagens, elaboração de cartazes, pintura de desenhos, vídeo, simulação de situações e jogo de perguntas e respostas (também utilizado como ferramenta avaliativa de conhecimento prévio e adquirido após a ação). Baseando-se nas metodologias ativas,

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onde os indivíduos são participantes do processo de construção de aprendizado e não meros espectadores (6). A simulação de uma situação cotidiana permite que o imaginário se aproxime da realidade e garante a identificação da plateia com o personagem o que caracteriza um método viável na condução de variados temas educativos. Além disso, possibilita uma interação ativa entre os membros da equipe e a população presente. Com a utilização de vídeos, outra forma de abordagem e importante instrumento de apoio e orientação, tem-se facilitação da aprendizagem e estímulo para a multiplicação de conhecimentos em saúde, os quais fazem parte do conjunto de ações para promoção da saúde e prevenção de doenças. A avaliação das atividades entre os sujeitos envolvidos é uma ação simples, que sugere, no entanto, um aguçado sentido de autocrítica. Utilizou-se roda de conversa para discussão crítica da atividade realizada ao final de cada encontro, e abertura de espaço para sugestão de acordo com o que a comunidade considerava necessário ser abordado em um próximo encontro. Sendo assim, fundamental o processo de vínculo com a comunidade construído com o diálogo entre sujeitos, elemento importante no processo de aprimoramento do conhecimento, sendo entendido como consciência da realidade e da condição humana (7).

Conclusão O desenvolvimento de ações educativas no âmbito da extensão universitária corrobora a importância do papel dos acadêmicos na promoção da saúde e prevenção de doenças no meio da comunidade, permitindo a compreensão desse tipo de projeto, ao estimular os sujeitos a serem mais ativos no seu processo de aprendizado no âmbito da saúde, refletindo sobre seus atos, incertezas e as maneiras de como cuidar da própria saúde e de seus familiares. A prática dessas intervenções educativas, numa comunidade em vulnerabilidade social como Mangabeiras, mostrou-se eficaz para a disseminação do conhecimento sobre diversas temáticas ao público diversificado que participou das reuniões, bem como esclarecer dúvidas sobre os assuntos debatidos a partir das experiências cotidianas do público, considerando o contexto socioeconômico e cultural que estão inseridos. Destaca-se, ainda, a necessidade do profissional em saúde ser flexível em lidar com dificuldades presentes e, assim, buscar soluções. No decorrer da execução do projeto 1199

algumas intercorrências foram enfrentadas: falta de apoio institucional regional, períodos de greve, limitações estruturais, difícil acesso à comunidade ocasionado pela localização, más condições de planejamento local, além da baixa adesão inicial dos moradores locais até se habituarem com a rotina do projeto e a presença dos acadêmicos na comunidade. Empecilhos que não impediram o andamento das ações. Assim, a extensão universitária se afirma como uma prática acadêmica essencial, colocando-se como uma estratégica ferramenta para realizar práticas integradas entre várias áreas do conhecimento; com a aproximação de diferentes sujeitos, e a utilização do conceito de interdisciplinaridade.

Referências - 1 Buss, P. M., Filho, A. P., A Saúde e seus Determinantes Sociais, PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1):77-93, 2007. Disponível em: http://www.uff.br/coletiva1/DETERMINANTES_SOCAIS_E_SAUDE.pdf Acesso em: 05/10/17. - 2 Buss, P. M., Promoção da saúde e qualidade de vida, Ciência & Saúde Coletiva, 5(1):163-177, 2000. - 3 Costa, D. V. S. et al. Extensão universitária na promoção da saúde infantil: analisando estratégias educativas. Rev. Ciênc. Ext. v.11, n.1, p.25-31, 2015. - 4 Carvalho, A.; Ferreira, D.; Gonçalves, T. Às margens do lixão, a Comunidade Mangabeiras em Arapiraca-al sob a ótica de suas precariedades. 7º Congresso Luso Brasileiro para o Planejamento Urbano, Regional, Integrado e Sustentável. Maceió. 2016. Disponível em: http://www.fau.ufal.br/evento/pluris2016/files/Tema%204%20%20Planejamento%20Regional%20e%20Urbano/Paper1520.pdf Acesso em: 10/10/17. - 5 Mitre, S. M. et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Ciência & saúde coletiva, 13, p. 2133-2144, - 2008. - 6 Paiva, M. R. F. et al. Metodologias ativas de ensino-aprendizagem: revisão integrativa. SANARE, Sobral - V.15 n.02, p.145-153, Jun./Dez. - 2016. - 7 OLIVEIRA, M. W. Educação popular e saúde. Rev. Ed. Popular. Uberlândia, v. 6, p.7383. jan./dez. 2007.

1200

Inovação tecnológica em doenças da pobreza no Brasil entre julho de 2015 e setembro de 2017: Análise das alterações na Rename 2017 e apontamentos sobre as perspectivas para as iniquidades em saúde no Brasil Lívia Calderaro Garcia1 Eduardo Khoury Alves2

RESUMO: O Sistema Único de Saúde incorporou diversos medicamentos voltados para as doenças da pobreza nas últimas edições da Rename, período em que se verificou uma redução nas iniquidades em saúde no Brasil. Considerando que a persistência das doenças da pobreza é reflexo dessas iniquidades, o presente estudo visa a analisar a ocorrência de inovação no âmbito das tecnologias voltadas para doenças da pobreza no período de julho de 2015 a setembro de 2017. Para isso, foram analisadas as modificações ocorridas na Rename 2017, além dos relatórios da Conitec publicados entre abril e setembro de 2017 para quantificar ocorrências relacionadas a doenças da pobreza. Com recurso ainda a outros estudos, foram analisados os dados coletados, que revelaram a pouca incorporação de tecnologias voltadas para as doenças da pobreza no sistema público de saúde, o que permitiu inferir a falta de inovação na área no período estudado. Palavras-chave: doenças da pobreza; inovação; SUS; iniquidades em saúde.

Introdução O presente estudo tem por escopo analisar as modificações empreendidas na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) 2017 (1) relacionadas a medicamentos voltados para doenças da pobreza, além dos relatórios de recomendação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec) (2) que originaram essas modificações, e aqueles voltados para o grupo alvo de doenças editados após a Rename 2017 (entre abril e setembro/2017). Foram quantificadas as ocorrências relacionadas a doenças da pobreza, de acordo com a lista de doenças negligenciadas do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI)3, visando a analisar a ocorrência de inovação nesse âmbito no período de julho de 2015 a setembro de 2017. Destaca-se a caracterização do trabalho como um estudo empírico, por, como bem define Epstein e King (3), basear-se em dados da realidade e utilizar como guia as 1

Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: [email protected] Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). 3 Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), Resolução nº 80/2013. Disponível em: . Acesso em: 03 de outubro de 2017. A resolução traz o seguinte rol de doenças negligenciadas: Doença de Chagas; Dengue / Dengue hemorrágica; Esquistossomose; Hanseníase; Leishmanioses; Malária; Tuberculose; Úlcera de Buruli; Neurocisticercose; Equinococose; Bouba; Fasciolíase; Paragonimíase; Filaríase; Raiva; Helmintíases; Manifestações decorrentes de intoxicações ou envenenamentos devido a animais venenosos ou peçonhentos. 2

1201

inferências para o desenvolvimento das conclusões do presente estudo, com o intuito de proporcionar maior confiabilidade e validade aos resultados. A terminologia adotada reflete o substrato teórico que embasa o estudo, assim justificando-se por compreendemos que a denominação "doenças negligenciadas" contribui em muito para a percepção de abandono desses medicamentos pela indústria farmacêutica; por outro lado, "doenças da pobreza" é termo que vem sendo utilizado para reforçar o papel das determinantes sociais nas iniquidades em saúde (4), de que a permanência dessas doenças, antes da negligência pela indústria, decorre. A tese de Santana (2017), dessa forma, fundamenta as análises ora empreendidas, sendo o intuito, ainda, o de reforçar a necessidade de protagonismo das políticas públicas na promoção da inovação em drogas para tratamento das doenças da pobreza, uma vez que a redução das desigualdades, um dos grandes desafios da humanidade, é ainda princípio constitucional norteador da atuação do Estado brasileiro. Dada a estreita relação das doenças da pobreza com as desigualdades sociais em geral, e em saúde em particular, de que são expressão; além da compreensão de que essas enfermidades, por não despertarem interesse mercadológico, têm o seu desenvolvimento amplamente atrelado à implementação de políticas públicas voltadas para este fim, foram ainda pontos importantes de partida a análise de uma série de artigos4, publicados no âmbito internacional (5) e nacional, que, de análise dos dados da Pesquisa Nacional em Saúde (PNS) de 20135 constataram que estes revelaram redução nas desigualdades em saúde no Brasil, além de que isso estaria em consonância com o aumento ocorrido sobretudo na primeira década do milênio no Brasil nos investimentos em políticas sociais, muitas delas relacionadas, de forma direta ou indireta, com as condições de saúde da população brasileira. A análise das modificações na Rename 2017 permitirá, portanto, verificar se o quadro constatado pelos dados da PNS 2013 reflete-se na eventual atual incorporação de medicamentos para doenças da pobreza ao sistema público de saúde, e avaliar se e, em algum grau, em que medida a redução das iniquidades em saúde tem sido objetivo prioritário nas políticas públicas brasileiras.

4

Em outubro/2016, foi publicada edição especial da International Journal for Equity in Health com 18 artigos que analisaram principalmente os dados da PNS 2013, apontando setores que precisam de incentivos, mas sobretudo identificando redução nas desigualdades em saúde em razão, principalmente, dos aumentos em investimentos sociais, direta ou indiretamente voltados para a saúde. O comentário que a inicia está disponível em:. Acesso em: 03 out. 2017. 5 Os dados podem ser verificados no sítio da PNS/Fiocruz. Disponível em: . Acesso em: 04 out. de 2017.

1202

Resultados A Rename 2017 incluiu as recomendações emitidas pela Conitec desde a Rename 2014 (atualizada em junho/2015), até março de 2017, com exceção dos medicamentos oncológicos incluídos em procedimentos hospitalares ou ressarcidos por Autorização de Procedimento Ambulatorial de Alta Complexidade (Apac). Modificações relativas ao enquadramento do medicamento no sistema de saúde, ou seja, sem alteração no tratamento ofertado, não decorrem de recomendações da Conitec. A lista de 2017 apresenta 869 itens, enquanto a de 2014, 842. De análise da última lista publicada e das alterações nela empreendidas, extrai-se que houve 7 medicamentos incluídos, voltados para o tratamento de 8 situações clínicas diversas. Com relação às exclusões, seu número foi de 8, voltadas para 8 situações clínicas. Ocorreram, ainda, 28 alterações em itens já existentes na Rename 2014, para 33 situações clínicas. As alterações podem ser classificadas em três situações diversas: aquelas que recomendaram a ampliação do uso do medicamento para determinado quadro clínico; aquelas que recomendam a restrição do uso e, ainda, as que realocam o medicamento dentre os componentes básico, estratégico e especializado, ou mesmo entre grupos contidos nesses componentes, sem alteração nos protocolos de tratamento. Tabela 1 – Modificações na Rename 2017 e relatórios Conitec (abr-set/2017). Número total e dos relacionados a doenças da pobreza.

Exclusão Inclusão Alterações das quais: Ampliação de uso Restrição de uso Realocação Relatórios Conitec (abr-set/2017) TOTAL

Todas as doenças 8 7 28 14 5 9 33 76

Doenças da pobreza 2 1 1 4

Nas alterações em que ocorreu ampliação ou restrição do uso, houve processo administrativo na Conitec, com a publicação de um relatório de recomendação e uma portaria do Ministério da Saúde, da mesma forma que ocorre com as inclusões e exclusões de medicamentos, em um processo com possibilidade de participação de diversos setores em razão do interesse público das medidas. As realocações de tratamentos entre os

1203

segmentos e grupos de medicamentos do Sistema Único de Saúde (SUS) constam da Rename 2017, sendo publicizadas, mas não dependem deste procedimento e não estão relacionadas a relatório emitido pela Conitec. De todas as modificações acima relacionadas, 3 dizem respeito a tratamentos voltados para as doenças da pobreza. Nenhuma diz respeito a inclusão ou exclusão de medicamento, evidenciando a inocorrência de incorporação ao SUS de tecnologias voltadas para o tratamento das doenças da pobreza no período compreendido entre julho de 2015 e setembro de 2017, de acordo com os critérios adotados. Uma das ocorrências identificadas é a ampliação de uso da pentoxifilina 400 mg comprimido, que passa a ser utilizado em mucosa; o relatório de recomendação da Conitec é o 199 (6). Outra ocorrência de alteração na lista de medicamentos essenciais que atendeu aos critérios de seleção é oriunda do relatório de n° 165 (7), que levou à ampliação do uso da rifampicina nas apresentações 300 mg cápsula e 20 mg/mL para a quimioprofilaxia de contatos de doentes de hanseníase com rifampicina em dose única. Ainda, uma terceira ocorrência foi a exclusão da oxamniquina 50 mg/mL, em forma de suspensão oral, voltada para o tratamento da esquistossomose, do componente básico e a sua manutenção apenas no componente estratégico; nesse tipo de alteração, não se aplica a necessidade de relatório da Conitec. Com relação aos relatórios da Conitec publicados entre março de 2017 e setembro de 2017, ainda não incorporados na Rename, ocorreram em número de 33, dos quais 1 relaciona-se com doença da pobreza. É o Relatório 305 - Desinvestimento do medicamento artemeter para o tratamento de Malária Grave (8), que foi aprovado pela Comissão para recomendar a “Exclusão do SUS” do referido medicamento, e no momento aguarda publicação de portaria para a efetivação da recomendação.

Análise dos dados no tempo Estudo (9) que analisou a possível existência de barreiras no acesso a medicamentos para doenças da pobreza nos processos de registro e incorporação tecnológica no SUS, avaliou a inclusão de medicamentos para esse conjunto de doenças e agravos na Rename entre 2006 e 2014, tendo concluído pela ocorrência de contínua incorporação no período, de 46%.

1204

Por consistência metodológica e por esta ser uma relação brasileira das doenças da pobreza, utilizamos em nosso estudo a lista editada pelo INPI6. Assim, ressalta-se o referido estudo adota relação de doenças da pobreza diversa da nossa, que é de estudo anterior (10) do autor e faz adaptação das classificações da OMS e MSF, diferenciando-se da adotada por nós principalmente por compreender as riquetsioses e os agravos decorrentes da violência sexual, sendo, portanto, mais expansiva. Para fins de viabilizar a comparação dos dados através do tempo, nesta seção, consideramos o referido critério expansivo para quantificar as ocorrências na Rename 2017 relativas a inclusões e exclusões de medicamentos e outras tecnologias voltadas para doenças e agravos da pobreza de forma consistente com os resultados encontrados por Santana (2017). Aqui, não foram consideradas as alterações de itens já existentes na Rename 2014. Verificou-se a inclusão de um medicamento (ceftriaxona 500 mg injetável) para o tratamento de duas doenças (sífilis e gonorreia resistente à ciprofloxacina), sendo esta a única ocorrência que atendeu aos critérios ao se adotar a classificação expansiva. De análise dos relatórios que originaram a inclusão [153 (11) e 154 (12)], percebe-se que a ceftriaxona é antibiótico de 3ª geração que foi registrado na ANVISA em 2001, e já estava incorporado ao SUS nas apresentações de 125mg e 250mg. Dessa forma, conclui-se seguramente não se tratar de novo fármaco. Ademais, cumpre ressaltar que é antibiótico utilizado para tratar uma série de enfermidades (13), como infecções intra-abdominais, ósseas, renais, do trato respiratório etc., não tendo sido desenvolvido com foco em doença da pobreza, portanto. Os dados encontrados por Santana apontam o acréscimo de 4 medicamentos e demais tecnologias voltadas para a pobreza na Rename 2008 em relação à de 2006; 9 inclusões na Rename 2010; 22 na Rename 2012; 7 na Rename 2014. Tem-se que o número de inclusões na Rename 2017, de 1 medicamento voltado para 2 enfermidades – com as ressalvas acima apresentadas quanto ao pouco indício de inovação expresso por essas ocorrências –, é significantemente menor do que o número de inclusões identificados nas edições de 2008 a 2014 da Rename. Esses dados demonstram que, contemporaneamente à redução nas desigualdades em saúde no Brasil identificadas por diversos estudos nos âmbitos nacional e internacional com base nos dados da PNS 2013 7, ocorreu uma expressiva inclusão de medicamentos e demais tecnologias voltadas para 6

Cf. nota 1.

7

Cf. notas 2 e 3 deste artigo.

1205

doenças da pobreza nas edições da Rename. Isso demonstra uma necessidade de continuidade e aprofundamento na análise desses dados em decorrência da ruptura que a Rename 2017 representa em termos de incorporação de inovação tecnológica voltada para doenças e agravos da pobreza no sistema público de saúde.

Discussão Infere-se pelos dados coletados a inocorrência de inovação no desenvolvimento de medicamentos e outras tecnologias voltadas para as doenças da pobreza no período estudado, em que houve a emissão de apenas 3 relatórios pela Conitec relacionados a essas doenças, dos quais nenhum diz respeito à inclusão de medicamento ao SUS. Considerando a função legal do órgão de assessoramento do MS na sua atribuição de incorporação, exclusão ou alteração de novas tecnologias no sistema público de saúde, e o déficit tecnológico existente nos tratamentos oferecidos para as doenças da pobreza, tem-se que essa baixíssima ocorrência reflete a falta de inovação no âmbito. Contrapondo-se a esta conclusão, poder-se-ia apontar que a não-inclusão de novos medicamentos voltados para o grupo de doenças estudado na Rename 2017 significa, simplesmente, a não incorporação dessas tecnologias ao SUS, o que não implicaria, necessariamente, na ausência de inovação, pois esta poderia estar ocorrendo fora do âmbito público. Ainda de forma a refutar as conclusões por nós apresentadas, poder-se-ia levantar a questão, constante do dispositivo legal que regulamenta as atribuições da Conitec8, da exigência de registro prévio na ANVISA para a avaliação do medicamento pela comissão, e então a incorporação no SUS. Quanto ao primeiro contra-argumento, consideramos a sustentação de nosso ponto infere-se das características intrínsecas das doenças da pobreza, que apresentam baixo interesse mercadológico, e depende o seu desenvolvimento em grande medida da demanda interna do sistema público de saúde e das políticas públicas voltadas para este fim. Assim, não faria sentido a hipótese rival de que a inovação estaria ocorrendo fora do âmbito da saúde pública, o maior responsável pelas demandas relacionadas ao desenvolvimento

e

incorporação

dessas

tecnologias,

tornando

viável

o

seu

desenvolvimento face à baixa demanda no mercado (14). Ademais, tendo em vista que a

8

Conforme artigo 15, § 1º, II, do Decreto 7.646 de 21 de dezembro de 2011.

1206

Conitec recebe requisições de qualquer interessado, a existência desses medicamentos no mercado nacional deveria implicar em demandas pela sua inclusão. O segundo contra-argumento merece considerações mais detidas. Sendo a incorporação de medicamentos ao sistema público dependente da passagem pela Conitec, e a exigência de registro prévio na ANVISA requisito para a submissão da proposta ao órgão, as iniciativas voltadas para o desenvolvimento desses medicamentos poderiam estar sendo obstadas antes da fase de incorporação analisada pelo presente estudo, em razão da incerteza da incorporação frente aos altos custos de desenvolvimento e registro. A relevância do argumento, no entanto, é relativizada ao ter-se em vista os dados encontrados por Santana (2017), uma vez que houve, nas edições de 2012 e 2014, a inclusão de 22 e 7 itens, respectivamente, e a exigência de prévio registro na ANVISA existe desde a criação da Conitec, em 2011. De toda sorte, reconhece-se como limitação do presente estudo a análise somente das modificações ocorridas na Rename 2017 e dos relatórios da Conitec, havendo a necessidade de futuros estudos para avaliar esse e outros possíveis entraves à inovação no âmbito das drogas destinadas ao tratamento das doenças da pobreza e a ocorrência de políticas públicas que visem a incentivar essa inovação.

Conclusão Os dados coletados permitiram observar a não incorporação de tecnologias voltadas para doenças da pobreza no SUS no período estudado, nem relatórios da Conitec nesse sentido ainda não incorporados. Assim, pôde-se inferir a inocorrência de inovação nesse âmbito no período, especialmente tendo em vista as determinantes sociais da saúde e o papel dos entes públicos em promover por meio de políticas públicas a inovação em medicamentos para as doenças da pobreza, que não apresentam relevante interesse comercial. O estudo aponta a importância de acompanhamento da incorporação tecnológica ao SUS por meio da Conitec, mormente frente aos resultados encontrados na Rename 2017, que representam ainda ruptura com a constante incorporação ocorrida nas últimas edições.

1207

Referências 1. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INSUMOS ESTRATÉGICOS. Departamento de Assistência Farmacêutica e Insumos Estratégicos. Relação Nacional de Medicamentos Essenciais: Rename 2017.

Brasília:

Ministério

da

Saúde,

2017.

211

p.

Disponível

em:

. Acesso em: 04 out. de 2017; 2. BRASIL. PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Decreto no 7.646, de 21 de dezembro de 2011. Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS e sobre o processo administrativo para incorporação, exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo SUS, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 22 dez. 2011. 3. EPSTEIN, Lee; KING, Gary. Pesquisa Empírica em Direito: as regras de inferência. São

Paulo,

SP:

Direito

GV,

2013,

p.

11.

Disponível

em:

. Acesso em: 03 de out. 2017; 4. SANTANA, R. S. SUS para todos? Avanços e desafios nas políticas farmacêuticas para doenças da pobreza. 2017. 217 f. Tese (Doutorado em Ciências farmacêuticas) – Faculdade de Saúde, Universidade de Brasília, Brasília. 2017; 5. INTERNATIONAL JOURNAL FOR EQUITY IN HEALTH. [S. l.]: The oficial journal of the International Society for Equity in Health, v. 15, 2016. Disponível em: https://www.biomedcentral.com/collections/HIB. Acesso em: 02 out. 2017; 6. COMISSÃO NACIONAL DE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS. Relatório 199 - Pentoxifilina 400mg em associação ao antimonial para tratamento da leishmaniose tegumentar mucosa. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. 21 p. 7. COMISSÃO NACIONAL DE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS. Relatório 165 - Quimioprofilaxia de contatos de doentes de hanseníase com rifampicina em dose única. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. 11 p. 8. COMISSÃO NACIONAL DE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS. Relatório 305 - Desinvestimento do medicamento artemeter para o tratamento de malária grave. Brasília: Ministério da Saúde, 2017. 21 p. 9. SANTANA, op. cit., 2017, passim.

1208

10. SANTANA, R. S. LEITE, S. N. Prioridades da pesquisa clínica com medicamentos no Brasil e as doenças da pobreza. Rev Panam Salud Publica [online]. 2016, vol.40, n.5, pp.356-362. Disponível em: . Acesso em 3 out. 2017; 11. COMISSÃO NACIONAL DE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS. Relatório 153 - Ceftriaxona 500mg injetável para o tratamento de sífilis. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. 16 p. 12. COMISSÃO NACIONAL DE INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIAS NO SUS. Relatório 154 - Ceftriaxona 500mg injetável para o tratamento de gonorreia resistente à ciprofloxacina. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. 29 p. 13. Ibid., p. 19. 14. SANTANA, 2017, op. cit.

1209