Desafios da pesquisa em jornalismo

1 2 Desafios da pesquisa em jornalismo 3 Desafios da pesquisa em jornalismo 4 Desafios da pesquisa em jornalismo 5 Francisco Gonçalves da ...
2 downloads 3 Views 6MB Size
1

2

Desafios da pesquisa em jornalismo

3

Desafios da pesquisa em jornalismo

4

Desafios da pesquisa em jornalismo

5

Francisco Gonçalves da Conceição Joanita Mota de Ataide Roseane Arcanjo Pinheiro Organizadores

Desafios da pesquisa em jornalismo Alexandre Zarate Maciel Ana Spannenberg Denise Cristina Ayres Gomes Erly Guedes Barbosa José Ribamar Ferreira Júnior Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa Márcio Carneiro dos Santos Pamela Araújo Pinto Patrícia Kely Azambuja Rosinete de Jesus Silva Ferreira Seane Alves Melo Thaísa Cristina Bueno Wesley Pereira Grijó

2011

6

Desafios da pesquisa em jornalismo

Organização: Francisco Gonçalves da Conceição Joanita Mota de Ataíde Roseane Arcanjo Pinheiro Projeto gráfico: Dupla Criação e Publicidade Ltda Revisão: Marcos Fábio Belo Matos

Reitor: Prof. Dr. Natalino Salgado Filho Vice-reitor: Prof. Dr. Antonio José Silva Oliveira Diretor da Edufma: Prof. Dr. Sanatiel de Jesus Pereira

Desafios da pesquisa em Jornalismo/ Francisco Gonçalves da Conceição, Joanita Mota de Ataíde, Roseane Arcanjo Araújo Pinheiro. - São Luís: Edufma, 2011. 248 p. ISBN: 978-85-7862-207-7 1. Jornalismo - Pesquisa científica - Maranhão 2. Comunicação Social - Pesquisa Científica - Maranhão. I. Conceição, Francisco Gonçalves da II. Ataíde, Joanita Mota de III. Pinheiro, Roseane Arcanjo. CDD 070.001 409 812 1 CDU 070:001.891 (812.1)

7

Sumário 09

Apresentação

11

Prefácio

15

TV digital, notícias e interatividade: a pirâmide invertida em ambientes não gutenberguianos

Francisco Gonçalves da Conceição, Joanita Mota de Ataíde e Roseane Arcanjo Pinheiro

Carlos Eduardo Franciscato

Márcio Carneiro dos Santos

35

“Cadernalização” em telejornal: algumas questões na produção de roteiro hipermidiático Patrícia Kely Azambuja

53

Dia a dia na redação do ciberjornal: linguagem semelhante, modo de produção particular Thaísa Cristina Bueno

69

A objetividade no texto jornalístico: a técnica do lead e o lugar de contar história no Jornal do Povo nos anos 1950 José Ferreira Júnior

81

Sob os ventos da Independência: Odorico Mendes e o jornalismo político do século XIX no Maranhão Roseane Arcanjo Pinheiro

93

João Francisco Lisboa: o jornalismo no Maranhão no século XIX e sua identificação com a crônica política Seane Alves Melo e Joanita Mota de Ataíde

8

Desafios da pesquisa em jornalismo

105 Moderna tradição nas páginas impressas: itinerário do papel social do jornal soteropolitano no século XX a partir de coberturas eleitorais Ana Spannenberg vocação comunitária ou peça de 121 Jornal-laboratório: assessoria? Alexandre Zarate Maciel da cena enunciativa: 135 (Des)construção metodologia para o Jornalismo

proposta de

Joanita Mota de Ataide Cidadão: a experiência da rádio 149 Jornalismo comunitária Bacanga FM Wesley Pereira Grijó e Rosinete de Jesus Silva Ferreira

161 Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa e paralelos da geopolítica do jornalismo 177 Limites brasileiro Pamela Araújo Pinto fala, quem cala: representatividade das fontes 195 Quem no discurso jornalístico sobre a loucura Denise Cristina Ayres Gomes em preto e branco: representações da 213 Mosaico mulher negra no jornalismo feminino brasileiro Erly Guedes Barbosa

233 A pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão Francisco Gonçalves da Conceição

9

Apresentação

Esta publicação é parte do esforço para conferir visibilidade à pesquisa científica em Comunicação realizada por pesquisadores com atuação nas instituições de ensino superior do Estado do Maranhão, por meio da qual nos achamos empenhados em constituir um campo específico de pesquisa em jornalismo. Por isso, os artigos que compõem esta coletânea têm um elemento comum: tratam de jornalismo. Embora o Jornalismo ocupe uma centralidade nas sociedades contemporâneas, em estados como o Maranhão ainda são poucos os pesquisadores voltados para entender as suas particularidades. Essa tendência, no entanto, vem se modificando nos últimos anos, com as políticas de capacitação docente adotadas pela UFMA e a nucleação dos professores de Comunicação em grupos de pesquisa. Os textos apresentados nesta coletânea traduzem esses dois movimentos – uns apresentam resultados parciais ou finais de pesquisas desenvolvidas em programas de pós-graduação (mestrado e doutorado), outros expõem resultados parciais ou finais de pesquisas desenvolvidas no âmbito de suas respectivas unidades acadêmicas. Isso explica a diversidade de objetos e marcos teóricos e metodológicos. No conjunto, os artigos apresentam um rico panorama das preocupações e interesses dos pesquisadores em Jornalismo, nesta fase. A leitura dos artigos permitirá ao leitor observar não apenas a análise dos objetos de estudo, mas também as referências teóricas e metodológicas adotadas pelos autores e os debates em curso na área, com o encontro desses docentes no território maranhense. Desta coletânea, participam ex-alunos do Curso de Comunicação Social da UFMA que apresentaram recentemente trabalho de conclusão

10

Desafios da pesquisa em jornalismo

de curso, como Seane Alves Melo e Erly Guedes Barbosa, além de outros, que ora cursam doutorado, como Wesley Pereira Grijó (UFRGS) e Pamela Araújo Pinto (UFF). Participa também desta coletânea a Profa. Ana Spannenberg, da Universidade Federal de Uberlândia. Com este conjunto de artigos que ora levamos ao público da Comunicação e em particular do Jornalismo, desejamos promover o debate sobre temas de interesse atual da área, contribuir para a formação de redes regionais de pesquisa e estimular novos trabalhos sobre essa modalidade particular de produção do conhecimento. Aguardamos os comentários e críticas dos leitores que desejarem interagir com os autores desta coletânea, através dos seus respectivos e-mails.

São Luís, Maranhão Francisco Gonçalves da Conceição Joanita Mota de Ataíde Roseane Arcanjo Pinheiro

11

Prefácio

A obra que os leitores estão recebendo traz artigos que refletem, sob variadas perspectivas, a produção contemporânea de pesquisa em jornalismo no Maranhão. É uma amostra representativa que indica temas, problemas, objetos e olhares sobre jornalismo e comunicação a partir de preocupações de uma comunidade acadêmica regional. A expansão dos estudos em jornalismo no Brasil nos últimos anos é observável tanto pela afirmação da qualidade da pesquisa e pela sua institucionalização (e o surgimento da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo – SBPJor é um exemplo disso) quanto pelo maior grau de interação entre grupos regionais de pesquisadores em busca do enfrentamento a problemas que são, sob certo aspecto, comuns. Esta primeira década do século XXI foi, com certeza, histórica para o campo da comunicação. Ao lado do surgimento de associações científicas demonstrando a preocupação de pesquisadores em trabalhar compartilhando experiências e crescendo em consequência desta interação continuada, a última década mostrou um forte impulso ao sistema brasileiro de pós-graduação em comunicação. A pós-graduação ganhou diversidade e expansão pelas cinco regiões brasileiras, em um movimento que tende a continuar, considerando o surgimento de novos grupos acadêmicos, focos e temáticas. A pesquisa em jornalismo reflete, de várias maneiras, este momento positivo da área de comunicação. Isto porque, historicamente, foi uma das primeiras comunidades a pensar sobre fenômenos de mídia no Brasil, devido à constituição social e definição do seu objeto de estudo (o jornalismo como atividade e instituição e seus efeitos sociais) em relação aos demais processos midiáticos. As raízes do pensamento sobre jornalismo são, de fato, anteriores à sua própria organização acadêmica:

12

Desafios da pesquisa em jornalismo

ainda no século XIX, o jornalismo alcançava significativa penetração social, tornando-se um desafio intelectual aos pensadores da época. A pesquisa histórica sobre jornalismo foi uma das primeiras vertentes de investigação. Hoje, com renovada vitalidade, estimula o conhecimento sobre épocas passadas por meio de uma análise dos textos jornalísticos, suas formas de produção, os valores imersos nele e as representações que trazem. É compreensível, então, que parte dos textos deste livro contenha esta perspectiva histórica sobre o jornalismo no Maranhão. A leitura que fazem do jornalismo produzido, dos modos de sua construção e de seus laços com a vida social e política de determinadas épocas ilumina passagens relevantes da história do próprio Estado. O jornalismo maranhense é objeto, também, dos pesquisadores que se debruçam sobre suas experiências contemporâneas. No cenário de manifestações múltiplas que a atividade vem alcançando nas últimas décadas, as análises aqui presentes mostram a riqueza dos problemas e dos novos enfoques a serem considerados. O jornalismo é, ao mesmo tempo, considerado como objeto de apropriação cidadã e como ator relevante no sistema político. Assim, história e contemporaneidade complementam-se, e os artigos aqui presentes, mesmo que autônomos na sua concepção, auxiliam-se na construção de algumas faces da atividade jornalística. Um terceiro tipo de abordagem que esta coletânea nos oferece pensa o jornalismo no seu papel de construtor da cultura e da identidade, na forma como cria imagens e representações do social. Produzir o conteúdo jornalístico interfere na dimensão sociocultural, e os recortes aqui propostos sinalizam a força do jornalismo contemporâneo. Se hoje as novas tecnologias da comunicação imbricam jornalismo e redes digitais, criando novas formas de contato e trocas discursivas e convidando o cidadão comum a ser produtor de conteúdos, é perceptível, ao mesmo tempo, que o jornalismo continue a manter sua força como prática social. Então, a construção do social faz-se também com a presença do texto jornalístico e seu papel singular constituído historicamente.

13 Há, claro, um cenário desafiador para o jornalismo, a partir da expansão da comunicação em novo padrão tecnológico. As mídias clássicas se reestruturam interna e externamente, novas formas de comunicação brotam com fantástica rapidez, fazendo com que as duas primeiras décadas deste século estejam a prometer um novo padrão para o sistema de comunicação, distanciando-se das formas vigentes no século XX. Novas plataformas de produção comunicacional transformam linguagens, gêneros, mídias, conteúdos, organizações, rotinas de trabalho e relações com o leitor. Parte dos artigos deste livro convida a uma reflexão que extrapola as dimensões do regional e enfrenta tópicos que estão na agenda comunicacional. Convergência, interatividade, hipertextualidade e mobilidade tornam-se termos que desenham a silhueta das novas mídias. Para alguns, tais movimentos levam a uma “crise” do jornalismo, dada a força com que nublam fronteiras entre produtos, organizações e profissões e, assim, hibridizam o conteúdo jornalístico com os demais conteúdos midiáticos. Para outros, a força das mudanças é estimulante, convida a repensar ou “reinventar” o jornalismo. O esforço que a comunidade dos pesquisadores em jornalismo tem executado é o de construir cenários, desvendar processos e delinear tendências. Este livro alia-se a esse compromisso com os estudos em jornalismo. Carlos Eduardo Franciscato Jornalista, professor do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Sergipe, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela UFBA. Atualmente é presidente da Associação Brasileira dos Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor).

14

Desafios da pesquisa em jornalismo

15

TV digital, notícias e interatividade: a pirâmide invertida em ambientes não gutenberguianos



Márcio Carneiro dos Santos Mestre em Comunicação Social pela Universidade Anhembi Morumbi (UAM-SP), professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão UFMA, jornalista e produtor de vídeo. E-mail: [email protected]

1. Um cenário de possibilidades Em recente palestra na comemoração dos 40 anos do Curso de Comunicação Social da UFMA, o professor doutor José Marques de Melo, ao discorrer sobre a evolução da comunicação nessas quatro décadas definiu-se como um “gutenberguiano”, ou seja, alguém que cresceu e viveu tendo como fonte básica de informação e entretenimento o texto impresso, através de suportes tradicionais como o jornal, os livros e as revistas. Se pensarmos em como as tecnologias influenciam as gerações e as pessoas, evitando determinismos e generalizações, poderíamos ter na outra ponta desse espectro de tendências humanas a geração que Douglas Rushkoff, escritor, professor e documentarista chama de “screenagers”1, uma geração que cresceu e se desenvolveu numa cultura mediada por telas, sejam elas de TV, computadores ou qualquer outro dispositivo. 1. Literalmente: os nascidos na idade da tela.

16

Desafios da pesquisa em jornalismo

A palestra do “gutenberguiano” Melo para uma plateia onde também havia muitos alunos do curso de Comunicação, “screenagers” dos tempos atuais, mostra de forma simples que não é possível pensar em termos lineares sobre a cultura e suas interfaces com o desenvolvimento tecnológico. No complexo ecossistema contemporâneo dos meios e tecnologias de comunicação, elementos com séculos ou apenas meses de “vida” podem coexistir, eventualmente com níveis maiores ou menores de conflito e ao redor de seres humanos que experimentam um mundo em acelerada transformação e cheio de novas possibilidades.

2. Televisão digital e interatividade O desenvolvimento pela academia nacional do SBTVD-Sistema Brasileiro de Televisão Digital, com sua ainda pouco conhecida característica da interatividade, é um desses eventos que têm, pelo menos potencialmente, a capacidade de alterar mais uma vez o cenário descrito anteriormente onde o até então comportado espectador passa a ter possibilidades novas, mudando seu status diante do dispositivo televisivo e incorporando a capacidade de escolher, participar e manifestar-se de forma mais direta e efetiva. É óbvio que o termo interatividade, quando isolado da ideia de uma aplicação, um software desenvolvido com uma finalidade específica, não é privilégio, nem foi inventado pela TV digital. Os espectadores sempre interagiram com a TV, escrevendo cartas, ligando para a emissora e principalmente, mantendo ou não a sintonia em determinado canal na forma mais básica de interação. Já nos tempos atuais os veículos têm se voltado para a internet num movimento quase que obrigatório na sua eterna busca pela audiência. É cada vez mais comum o direcionamento para o site dos programas, onde, via chats, grupos, listas de discussão, blogs, twitter e todo o repertório das mídias sociais, são oferecidas a esse espectador formas de participar e interagir com a programação da TV aberta.

TV digital, notícias e interatividade

17

Definir interatividade tem ocupado muitos estudiosos do assunto. Quando o foco é interatividade na televisão digital, alguns autores partem de conceitos da Internet, outros da computação, artes, comunicação. Apesar da falta de consenso sobre o conceito, a maioria das definições aponta para a transmissão de software junto à programação audiovisual visando melhorar a comunicação entre emissor e receptor da mensagem. (BECKER; ZUFFO, 2009, p.47)

No presente trabalho usamos o termo interatividade no sentido de designar possibilidades tecnológicas específicas ligadas à TV digital, baseadas em soluções técnicas que envolvem hardware e software, incluindo o conceito de midlleware, no caso brasileiro o Ginga, este último um ambiente de execução e processamento de aplicações, que fica literalmente no meio de dois tipos de softwares diferentes, intermediando a troca de informações entre um sistema operacional (como o Linux) e o software de aplicação, que tem por objetivo criar um ambiente de contato com o usuário final. Esse sistema de 3 níveis pode ser organizado em dois sentidos: Uma aplicação de TV digital é uma coleção de informações processadas por um ambiente de execução (middleware) para interagir com um usuário final. O processamento pode ser de natureza declaratória (indica “o que” deve ser feito) ou procedural (indicando “como” deve ser feito) . (FERRAZ, 2009, p.30)

Com a interativida do SBTVD, uma aplicação com determinado propósito será transmitida junto com o fluxo audiovisual, processada ou rodada no conversor interno ou set-top-box (STB) através de um software intermediário residente, no nosso caso o Ginga, midlleware criado para compatibilizar o sistema operacional que roda no conversor com a aplicação que será enviada. No momento atual do desenvolvimento vários programadores têm desenvolvido aplicações através das linguagens NCL (declarativa) e LUA (procedural) com o objetivo de testar o código e a operacionalidade do Ginga nesse novo cenário. O site do Clube NCL2 é um bom exemplo para quem quer ver o que tem sido produzido na área.

2. www.clubencl.com.br

18

Desafios da pesquisa em jornalismo

As aplicações começaram a ser categorizadas de acordo com a área de interesse em que atuam. Assim uma aplicação de t-learning é uma aplicação de interatividade em TV Digital para a área do ensino, t-health para a saúde, t-banking para operações financeiras e daí em diante. Uma aplicação de interatividade para a área do jornalismo seria algo da área de t-news. Tudo ainda é muito novo e de forma geral todo o processo de desenvolvimento das aplicações tem sido guiado pelo interesse em desenvolver o código num esforço de programadores de todo o país que inegavelmente avançaram muito em sua tarefa. Um problema se apresenta: a TVDi – televisão digital interativa chega ao momento crítico de enfrentar o mercado e, para tanto, agora as aplicações além de serem logicamente corretas devem ser também interessantes, capazes de realmente interagir com os espectadores não apenas através de uma organizada exibição de mídias via linguagem NCL, mas sim conseguindo sua atenção e participação. No ambiente do mercado de tecnologia as mudanças acontecem de forma muito rápida e perder uma janela temporal de oportunidade pode custar caro. Recentemente dois grupos de empresas globais lutaram para consolidar um novo modelo de mídia ótica que pudesse suceder o DVD como suporte da indústria do audiovisual. Blu-ray e HD-DVD representaram esforços e investimentos milionários desses dois grupos e como resultado da disputa o primeiro já está nas locadoras e na casa dos consumidores enquanto o segundo vai em direção ao esquecimento. Há cerca de 30 anos algo parecido aconteceu entre o VHS e o Betamax num final já conhecido. Quantos hoje sabem que um formato de vídeo chamado Betamax um dia existiu, se o próprio VHS, vencedor da disputa, também já é coisa do passado? Os desafios da interatividade na TV digital também não são menores. Uma nova geração de TVs que podem conectar-se à internet já chegou ao país e oferece, via conexão de rede, acesso a vários sites parceiros dos fabricantes através de acordos que podem trazer uma experiência de navegação em páginas da web na tela da TV. Na Europa, onde

TV digital, notícias e interatividade

19

a interatividade em TV aberta começou há cerca de 10 anos, apenas na Inglaterra as aplicações de TVDi permanecem com potencial. Na maioria dos outros países europeus as TVs conectadas já dominaram o mercado e os difusores do broadcast já não consideram mais as aplicações como algo viável em termos de negócios. As imagens abaixo mostram um modelo de TV que acessa, através de um navegador simples embutido internamente, conteúdo do YOU TUBE e do Portal TERRA.

Figuras 1 e 2 - Exemplos de acesso a conteúdo do YOU TUBE e do Portal Terra a partir de TV conectada. Fonte: www.gizmodo.com.br. Acessado em 18 de julho de 2010.

O exemplo da Inglaterra é interessante na medida em que foi lá que as aplicações de interatividade conseguiram de forma mais eficiente fazer o que se espera de um programa de TV: atrair e manter o interesse do espectador, seja pelo entretenimento ou pela informação. Ao que tudo indica, uma abordagem de desenvolvimento de produto audiovisual tem que ser incorporada às aplicações de interatividade, acrescentando ao núcleo do código do programa uma camada a mais, pensada não por programadores, mas sim por profissionais da área de conteúdo audiovisual. Usando termos de mercado poderíamos identificar duas gerações no desenvolvimento das aplicações de interatividade. A primeira, do início dos trabalhos de desenvolvimento do Ginga até os dias atuais, identificada por um processo software driven e a segunda, que começamos agora no Brasil, caracterizada por um processo audience driven, ou seja, não mais guiado pelo código e sim guiado pelo alinhamento com o

20

Desafios da pesquisa em jornalismo

que o espectador se interessa em ver e acha atrativo. A primeira geração das aplicações de interatividade tem pouco tempo para evoluir e precisa incorporar o conhecimento da área da comunicação e ainda resolver problemas novos como a questão da usabilidade em telas de TV que são vistas a distâncias maiores e de uma forma diferente do que já se sabe para a tela do computador. É importante lembrar também que a TV Digital enquanto imagem com resolução maior, de melhor qualidade, gerada por um número bem superior de pontos eletrônicos (pixels) na tela3 já está em processo de difusão pelo país e tem boas chances de consolidar-se. A maioria das emissoras de TV, por ainda não saber ao certo o que fazer com a interatividade do sistema, tem focado a divulgação da nova TV DIGITAL apenas na característica da qualidade superior de imagem e som e também, ainda que em menor escala, na característica da mobilidade, isto é, na capacidade de sintonizar com qualidade o sinal digital em dispositivos móveis como celulares e smartphones. Tais possibilidades são representadas na ilustração abaixo:

Figura 3 - Fonte: Site do Fórum Brasileiro de Televisão Digital http://dtv.org.br/ acessado em 18 de julho de 2010.

Mesmo assim, vários experimentos têm sido feitos. Aproveitando

3. A resolução máxima proposta pela TV DIGITAL é a conhecida por FULL HD com telas de 1920 por 1080 pontos – pixels – de definição. A resolução da TV Standard ou SD é de 720 por 480 pontos.

TV digital, notícias e interatividade

21

o evento da Copa do Mundo da África do Sul a Rede Globo lançou e testou com sucesso uma aplicação de interatividade que foi oferecida aos poucos espectadores já em condições de experimentar a TVDi. Muitos conversores externos (STBs) e televisões que têm o conversor embutido oferecidos hoje no mercado não têm o Ginga disponível e por isso, apesar de receberem o sinal da TV Digital e exibir imagens em alta definição, ainda não rodam as aplicações. Até o momento a Globo divulgou que já desenvolveu cerca de 11 aplicações e continuará trabalhando em novas modalidades, entre elas a já anunciada para o programa BIG BROTHER BRASIL.

Figuras 4 e 5 - Telas da aplicação da Rede Globo na Copa de 2010. Fonte: Site da Revista Home Theater

Poderíamos tentar organizar então esse atual momento no desenvolvimento do SBTVD em 3 contradições que precisam ser solucionadas: a) Apesar de potencialmente ter a chance de revolucionar o cenário das tecnologias de comunicação agregando ao modelo unidirecional da TV aberta no Brasil a possibilidade de interação efetiva e bidirecional com o espectador, a TVDi depende de uma avaliação bastante pragmática em termos de mercado, espectadores e difusores, esses últimos ainda em parte traba-

4. Uma questão comum é a de que com a sobreposição do material interativo na tela perde-se a atenção na narrativa principal e em todas as modalidades tradicionais de comunicação que sustentam o modelo de negócio das TVs abertas através da propaganda e do merchandising.

22

Desafios da pesquisa em jornalismo

lhando com a indefinição sobre a viabilidade comercial das aplicações de interatividade4. b) A maioria das aplicações desenvolvidas atualmente, por terem sido feitas com o objetivo de testar o Ginga e as linguagens de programação utilizadas, tem pouco interesse, pouco apelo, ao espectador justamente por serem pensadas por programadores e não por produtores de conteúdo audiovisual. c) A TVDi parece posicionar-se entre a experiência da TV aberta tradicional e a experiência customizada da internet. As aplicações mais ricas pressupõem o canal de interatividade para funcionar e justamente por isso poderíamos perguntar: por que alguém que poderia acessar a internet pelo modo comum o faria pela TV com as dificuldades de visualização e sem os dispositivos de entrada mais eficientes do computador como o teclado e o mouse? A identidade da TVDi do Brasil e suas chances de consolidação no mercado nacional5 passam por essas questões que precisam ser equalizadas através de uma maior compreensão de qual é a real vocação da interatividade em termos de TV aberta.

3. A ideia da reconfiguração narrativa na TVDi Já há alguns anos a internet vem ensinando a todos as habilidades de navegação e interação com interfaces amigáveis que nos permitem também escolher caminhos e compartilhar relatos e histórias completas, reais ou de ficção, de um jeito simples e numa escala até então inédita, num modelo de muitos para muitos, rotulado como web 2.0, que cresce em proporções geométricas ou virais, usando o jargão tecnológico. O advento da TV Digital com a interatividade, mais uma vez, leva as narrativas a um novo patamar, só que agora diante de um problema que os roteiristas nunca tinham enfrentado antes: a manipulação do 5. Ginga também tem conseguido espaço no mercado internacional. No momento em que esse artigo está sendo escrito, cerca de 11 países já aderiram ao sistema brasileiro.

TV digital, notícias e interatividade

23

tempo de duração do conteúdo audiovisual tocado a quatro mãos, as do autor e as do espectador que, dependendo do tipo de interatividade proposta pela aplicação, pode quebrar a linearidade da narrativa com idas e vindas sem controle o que, em tese, impediria o planejamento e a inserção desse material na grade de programação tradicional da emissora, onde os tempos são contados com precisão e de forma linear; sendo este apenas um dos vários problemas técnicos envolvidos nesse ambiente. Pensar em narrativas interativas no sentido de oferecer ao usuário a possibilidade de escolher, por exemplo, um entre 3 finais distintos para uma novela ou acompanhar um relato audiovisual sobre a ótica de vários personagens diferentes, como no filme “RASHOMON” do diretor Akira Kurosawa, produzido em 1950 ( sim, as narrativas audiovisuais já conseguiam fazer isso muito antes da TV Digital) ou no mais recente “PONTO DE VISTA” (VANTAGE POINT), onde uma tentativa de assassinato ao presidente americano é relatada através da visão dos diversos elementos da trama, nos leva a pensar em novos problemas. As dificuldades poderiam ser resumidas em 3 níveis: NO CONTROLE DO TEMPO FINAL DO PROGRAMA – Esse problema pode ser mais bem explicado considerando que ao ir e vir à vontade nas opções interativas da aplicação, o usuário poderia reduzir ou expandir o tempo efetivo da exibição para ver as coisas do jeito que gostaria, impossibilitando a inserção do programa dentro de uma grade tradicional de televisão, uma espécie de “playlist” que a área de programação das emissoras organiza incluindo também os comerciais e planejando o tempo disponível no canal de difusão. NA ORGANIZAÇÃO DA NARRATIVA EM SI – apesar de existirem exemplos como os dos filmes de Kurosawa e o recente “PONTO DE VISTA”, já citado, ou da obra “FINNEGAN’S WAKE” de James Joyce na literatura, é no modelo da narrativa clássica hollywoodiana, estruturado em fórmulas bastante conhecidas nos manuais de roteiro, que a maioria de nós está acostumada a navegar na fruição das narrativas audiovisuais, principalmente na área da ficção. Uma organização que privilegia o en-

24

Desafios da pesquisa em jornalismo

tendimento e a condução segura do espectador pela narrativa, situando a trama em termos espaço-temporais e caracterização dos personagens de forma clara e definida. A ausência desse ambiente familiar poderia causar estranhamento ao espectador mediano, levado a um lugar onde as coisas podem perder o nexo ou o “fio da meada” ao longo das suas escolhas e gerando talvez a mais temida reação da audiência por parte de qualquer difusor, ou seja, a troca de canal. NO ENVIO DOS VÍDEOS OU PARTES ADICIONAIS PROPOSTOS PELA APLICAÇÃO INTERATIVA PARA A TV OU SETUP BOX (STB) DO USUÁRIO - um detalhe importante a ser lembrado é que, quando o tipo de interatividade da qual falamos é disponibilizada, cada espectador na tranquilidade do seu lar poderá então fazer um caminho diferente, o que nos coloca numa configuração que nos termos da internet é conhecida como “ vídeo sob demanda” ou VOD ( vídeo on demand no inglês) só que num ambiente de televisão aberta que, através do canal de difusão, só pode gerar a mesma coisa para todos os espectadores. Essa dificuldade se consolida no fato de hoje a maioria dos STBs (set-top boxes ou conversores) dispor apenas de 2 Megabytes de memória interna, o que inviabilizaria o armazenamento dos vídeos opcionais ou extras para o acesso ao usuário. Poderíamos então começar a imaginar possibilidades para enfrentar as objeções acima listadas. Um bom começo para enfrentar a questão do tempo é lembrar que nas transmissões ao vivo, como num jogo de vôlei, esse controle da duração final e seu encaixe na grade de programação também tornam-se instáveis e são enfrentados com várias estratégias de ajuste, como uso de comerciais de apoio cultural ou chamadas para a própria programação, redução do tempo disponível para o programa seguinte (se este também for ao vivo, como um telejornal por exemplo, numa espécie de transferência da solução para um momento mais adequado) ou simplesmente através do corte antecipado ou postergado de uma longa ficha técnica que serve de “sanfona” para enfrentar variações imprevisíveis. Diante da segunda categoria de dificuldades, a primeira coisa a lembrar seria obviamente que a linearidade e a coerência tão bem repre-

TV digital, notícias e interatividade

25

sentadas pela estrutura clássica da narrativa hollywoodiana não se constituem como único arranjo possível. Ao analisar o que chama de “Modos Narrativos”, uma espécie de categoria ou estrutura organizadora sobre a qual a narrativa é construída, David Bordwell (1985) , um dos principais pesquisadores da área do cinema, lista pelo menos outros três. Entre eles o do cinema de arte, onde lacunas e incertezas são bem mais comuns e estruturas não lineares também são frequentes sem causar estranhamento. Mesmo dentro do tipo de organização narrativa mais conhecida do cinema americano, na tradição dos blockbusters6 e das intensas campanhas de divulgação mundial, poderíamos lembrar do formato do trailer, onde uma espécie de reconfiguração narrativa nos apresenta uma outra história que necessariamente não é idêntica à que veremos ao assistir ao filme que o trailer ajuda a divulgar. Questões retóricas à parte, os trailers são também um exemplo de configuração não linear que, apesar disso, continua oferecendo uma lógica interna e compreensível, abrindo uma janela que talvez possa ser replicada nos novos experimentos de interatividade onde, mesmo com a quebra de uma linearidade tradicional, uma nova ordem pode ser estabelecida, principalmente se o espectador participa das escolhas que a tornam possível. Em termos gerais e considerando as possibilidades acima discutidas, poderíamos pensar numa sistematização das aplicações interativas para a TV Digital através de 03 estratégias básicas de organização das narrativas: A) ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA – onde o conteúdo será or-

6. Filmes que em sua maioria têm custo de produção alto (normalmente por conta de cachês e efeitos especiais), custos de lançamento também elevados e às vezes próximos ou superiores aos custos de produção (em razão do número elevado de cópias e da publicidade massiva) e rápida “queima” do filme no circuito primário de exibição, não importando o quão positivo seja o boca-aboca, já que eventuais prejuízos de bilheteria, através da lógica do high concept, poderão ser compensados nos mercados secundários de exibição, bem como através dos produtos conexos. (MASCARELLO, 2006, p.349)

26

Desafios da pesquisa em jornalismo

ganizado em camadas de representatividade ou interesse, lembrando muito a ideia da pirâmide invertida das técnicas do jornalismo. Nesse cenário, o usuário teria acesso a um fluxo principal com as informações mais importantes e poderia, via interatividade, aprofundar-se em níveis posteriores, pesquisando mais detalhes sobre determinado fato (no caso de um programa jornalístico ou documentário) ou indo além e vendo sequências adicionais nas trajetórias de determinados personagens ou ainda escolhendo finais, numa narrativa ficcional. B) ORGANIZAÇÃO DE FOCALIZAÇÃO ESFÉRICA OU MULTIANGULAR – onde o mesmo evento é mostrado pela visão ou focalização de narradores ou personagens diferentes, através de vários ângulos. Como no exemplo da “Torcida Virtual” do LAVID, onde posso escolher em que torcida quero estar, ou como no filme “PONTO DE VISTA” em versão para a TV DIGITAL, onde eu poderia ver a história do ângulo da vítima, do policial honesto ou do criminoso. C) ORGANIZAÇÃO PARALELA – onde os fluxos da narrativa teriam pouca relação uns com os outros e seriam escolhidos apenas pelas preferências individuais de cada espectador. Como no caso de um noticiário que oferecesse as escolhas das notícias pelas editorias ou um filme com estrutura que estipulasse nenhuma ou pouca conexão entre as trajetórias dos personagens, como no filme “CRASH- NO LIMITE” de Paul Haggis, vencedor do Oscar de melhor filme em 2006, que acompanha as histórias de oito personagens principais (e de muitos outros secundários) num período de 24 horas na cidade de Los Angeles. Esses fluxos quase independentes ou histórias particulares poderiam ser gerados em modo síncrono, sendo apenas comutados via aplicação interativa ao gosto do usuário, num mecanismo parecido com o da “TORCIDA VIRTUAL” na organização esférica, mas com a diferença fundamental de que, na lógica da torcida, o evento narrado em todas as câmeras ou fluxos é o mesmo, apenas visto em ângulos diferentes, enquanto que

TV digital, notícias e interatividade

27

na organização paralela a comutação ou corte de um fluxo para outro determinaria também a mudança do tema principal. (SANTOS, 2010, p.122) Por todas as complexidades do novo cenário proposto pela TV DIGITAL, fica claro que as possibilidades são imensas mas que dependem ainda do desenvolvimento tanto da tecnologia envolvida em termos de engenharia e programação das aplicações como da experimentação e análise das possíveis formas de reconfiguração das narrativas audiovisuais em novos arranjos (às vezes nem tão novos assim), gerando programas interativos para o espectador. É importante lembrar também que esse desafio se agrava considerando que esse espectador, principalmente o das novas gerações, nos dias de hoje, já está sendo “treinado” em outros meios, como a internet, os games e os discos Blu-ray, a ter experiências muito mais complexas em termos do que chamamos de interatividade.

4. Jornalismo e pirâmide invertida A ideia da pirâmide invertida tem mais de 100 anos no jornalismo. Mar de Fontcuberta citado por ZAMITH (2006, p.177) atribui o nascimento da pirâmide invertida à Guerra da Secessão norte-americana, quando os correspondentes se precipitavam aos postos de telégrafos procurando ser os primeiros a relatar os acontecimentos. Autores como Carl Warren e José Álvares Marcos (apud ZAMITH 2006, p.177) citam a queda do Forte Sumter, em 16 de abril de 1861, como fato que desencadeou a prática porque as linhas telegráficas constantemente não funcionavam e os editores então recomendaram aos repórteres que enviassem apenas o essencial. Pena reforça essa tese: Os autores tradicionalmente afirmam que a estratégia ou estrutura narrativa “pirâmide invertida” surgiu em abril de 1861, em um jornal de Nova York. Pouco tempo depois ela já era usada pelas agências de notícias, espalhando-se por todo o planeta, por ser mais prática e com preço mais barato na transmissão via telegrama, da época; assim dependendo do interesse do cliente da agência, o primeiro ou o segundo parágrafos já seriam suficientes para atender à demanda do veículo assinante; em termos de custos, a matéria completa, contada letra a letra saía invariavelmente mais

28

Desafios da pesquisa em jornalismo

onerosa. (PENA, 2006, p.48)

A técnica que teve, portanto, sua justificativa inicial ligada à economia de custos e tempo em um ambiente tecnológico com muitas dificuldades, chega até os dias atuais como prática difundida e comum, inclusive no jornalismo que se faz no ambiente digital (apesar das discussões específicas sobre esse tema). Discutindo a utilização da técnica da pirâmide invertida no webjornalismo, Mielniczuk (2002) lembra as seis principais características listadas por vários pesquisadores associadas ao jornalismo online. São elas: multimidialidade/convergência, interatividade, hipertextualidade, personalização, instantaneidade e memória. Pensando em termos de TV Digital, uma aplicação de t-news poderia incorporar as 5 primeiras características trazendo para o ambiente da TV aberta possibilidades antes apenas disponíveis no ambiente online. Quanto à memória, pelo menos se considerarmos essa característica no aparelho do espectador, por enquanto, não existe grande espaço para arquivamento nos set-top boxes (STBs) e conversores hoje comercializados, algo que pode mudar com o tempo. Além disso, as aplicações são enviadas no fluxo em tempo real do sinal de vídeo e áudio tradicionais, o que dificulta um pouco pensarmos em memória, obviamente tendo sempre a possibilidade de arquivamento contínuo, pela emissora, de todo o material gerado, já que são arquivos digitais. O problema é que, diferente da internet, esses arquivos não podem ser acessados pelo espectador a qualquer momento e sim apenas via transmissão do difusor. Voltando à técnica da pirâmide invertida, é importante ressaltar que ela também tem uma função organizadora, estruturando a informação de uma forma eficiente. É essa função que acaba estabelecendo uma hierarquia de interesse sobre os fatos relatados na notícia, o que parece ter muita semelhança com a forma em que aplicações interativas tratam o conteúdo dispo-

TV digital, notícias e interatividade

29

nibilizado. No diretório do Clube NCL não são muitas as aplicações que têm como objetivo acoplarem-se a programas de cunho jornalístico. De modo geral as formas mais comuns são as enquetes, as informações do clima e a escolha do tipo de notícias que se quer ver através da aplicação. Um exemplo é uma aplicação que lê um feed de RSS7 a partir de um servidor web e o apresenta na tela.

Figura 6 - Leitor de RSS. Fonte: http://manoelcampos.com/tvd/leitor-de-rss-paratv-digital/. Acessado em 23 de julho de 2010.

A lógica do “mais importante” e do “menos importante” para o espectador parece ser então a mais comum através da organização que chamamos anteriormente de hierárquica. O espectador, a partir de um menu inicial, escolhe um tema ou editoria (esportes, economia, política, etc.) que tem as notícias do seu interesse ou ainda pode acessar o noticiário específico de determinado evento como a Copa do Mundo de Futebol.

7. A sigla representa o padrão Really Simple Syndication que permite que o usuário se inscreva em determinado site que forneça esse serviço e oferece um “feed”, um conjunto de notícias sobre determinado assunto que é constantemente realimentado e atualizado. Na aplicação Leitor RSS esse fluxo é apresentado na tela da TV do espectador confirmando que a característica da instantaneidade pode ser portada para o jornalismo na TV aberta.

30

Desafios da pesquisa em jornalismo

Figura 7 - Exemplo de Aplicação de Notícias com organização hierárquica. Fonte: http://www.broadbandbananas.com/content/blogcategory/27/54/. Acessado em: 23 de julho de 2010.

5. Considerações finais As possibilidades de convergência entre aplicações de t-news e uma prática centenária como a pirâmide invertida vão além da organização hierárquica. Apenas ainda em caráter exploratório, é possível pensar em semelhanças e pontes entre o código de programação da linguagem NCL e o código da linguagem audiovisual em termos de descrição do que vai acontecer na tela. A organização da pirâmide invertida que se estabelece através das respostas às questões originais do lead também está presente na forma como a linguagem NCL estabelece seus principais parâmetros para descrever a aplicação. A semelhança é mais que coincidência, já que a função organizadora é idêntica, apenas sendo traduzida em termos do código de programação para o código audiovisual.

TV digital, notícias e interatividade

31

As telas abaixo fazem parte de um trabalho sobre a produção de aplicações para televisão digital utilizando a linguagem Ginga-NCL. Figuras 8, 9 , 10 e 11 - Exemplos das semelhanças entre a linguagem NCL e um lead jornalístico. Fonte: NETO, Carlos S. de. Curso “Desenvolvimento de Aplicações para TV Digital em Ginga-NCL” apresentado na JIM - Jornada de Informática do Maranhão, 2010.

Através da determinação do tipo de mídia, da localização, de como e quando essas mídias devem aparecer, qualquer aplicação em NCL é estruturada. As respostas que o lead deve trazer para estruturar as principais

32

Desafios da pesquisa em jornalismo

informações relativas à notícia são quase as mesmas que o NCL usa para descrever a aplicação de interatividade. O presente estudo, que tem apenas caráter exploratório e ainda está na sua fase inicial, pretende analisar essa situação a partir do conceito de “tradução”, através do método semiótico, como forma de contribuir para a integração e melhor eficiência dos profissionais que participam da nova e multidisciplinar atividade de desenvolvimento de aplicações para a televisão digital. Uma nova geração de produtos audiovisuais com aplicações de interatividade acoplada precisa surgir para que o próprio destino do Ginga e das soluções brasileiras em termos de TVDi possam prosperar num mercado cada vez mais competitivo e difícil. Facilitar o entendimento e a colaboração entre programadores e produtores de conteúdo será um bom começo para que gutenberguianos e screenagers possam mais uma vez se encontrar.

Referências BECKER, Valdecir; ZUFFO Marcelo K. Interatividade na TV Digital: Estado da arte, conceitos e oportunidades In: SQUIRRA, Sebastião & FECHINE, Ivana (Orgs.) Televisão Digital: Desafios para a comunicação. Porto Alegre: Meridional, 2009. BORDWELL, David. Narration in the fiction film. Madison: University of Wisconsin Press, 1985. FERRAZ, Carlos. Análise e Perspectivas da Interatividade na TV Digital. In: SQUIRRA, Sebastião & FECHINE, Ivana (Orgs.) Televisão Digital: Desafios para a comunicação. Porto Alegre: Meridional, 2009. MASCARELLO, F. Cinema hollywoodiano contemporâneo. In: MASCARELLO, F. (Org.). História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006. MIELNICZUK, Luciana. A pirâmide invertida na época do webjornalismo: tema para debate. Trabalho apresentado no NP08 – Núcleo de Pesquisa Tecnologias da Informação e da Comunicação, XXV.Congresso Anual em Ciência da Comunicação, Salvador/BA, 04 e 05. Setembro, 2002. Disponível em: http://www.ericaribeiro.com/Arquivos/PiramideInvertidaWeb-

TV digital, notícias e interatividade

33

Jornalismo.pdf. Acesso em: 21 jul. 2010. PENA, Felipe. Teoria do jornalismo. São Paulo: Contexto, 2006 SANTOS, Márcio C. A TV digital e a narrativa reconfigurada- O problema da linearidade no encontro do produtor de conteúdo com o espectador interativo. Revista CAMBIASSU – Ed. Eletrônica Jan/Jun – Nº 6. São Luis: UFMA, 2010. Disponível em: http://www.cambiassu.ufma.br/carneiro.pdf. Acesso em: 24 jul. 2010. ZAMITH, Fernando. Pirâmide invertida na cibernotícia: a resistência de

34

Desafios da pesquisa em jornalismo

35

“Cadernalização” em telejornal: algumas questões na produção de roteiro hipermidiático

Patrícia Azambuja Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]

1. Introdução A combinação entre “mídias clássicas e novas mídias” (DIZARD, 2000, p.20) faz emer­gir questionamentos nem sempre tão antigos no que se refere às relações humanas. Um desses: o de partici­pa­ção efetiva nos processos comunica­cionais. Apesar de passar pelo de­senvolvimento de novas tecnologias, hoje parece claro que questões ligadas ao con­su­mo de informações, na verdade, são norteadas por necessidades humanas e direcio­na­mentos sociais recorrentes. Segmentar e interagir, portanto, aparecem como realidades indissociáveis e são duas situações que estão muito próximas da ideia de liberdade. Raquel Recuero (2009), por exemplo, define a interação como elemento fundamental para as relações e os laços sociais, traduzindo-se em ação e reação como reflexos comunicativos entre o indivíduo e seus pares. Em seu trabalho Redes Sociais na Internet, a pesquisa­do­ra analisa as possibilidades interativas no ciberespaço e a complexidade na medição via computadores, identificando, in-

36

Desafios da pesquisa em jornalismo

clusive, diferentes níveis de relacionamento nesses espa­ços. A interação social, portanto, está envolvida com a comunicação entre atores e, de al­gu­ma forma também, com os suportes utilizados para este fim. Destaque para a relação dialógica que vem sendo incorporada aos mecanismos da rede, gerando intera­ções mútuas capazes de produzir grandes reflexos na ação comunicativa. Para Manuel Castells (2003, p. 100), embora a internet tenha efeitos esmagadores sobre a pró­pria prática social, ela “não parece ter um efeito sobre a configuração da vida cotidiana em geral, exceto por adicionar interações on-line às relações sociais existentes”. Entende-se que, para Castells (2003), a internet potencializa (maximiza ou mini­miza) relações já existentes. Não as cria. E, nesse sentido, corrobora os indícios em tor­no dos conceitos de interação, segmentação e liberdade. A própria ideia de autonomia é entendida, nesse caso, como pressuposto para os processos comunicacionais mediados por tecnologias diversas e a relação específica com a internet fortalece ainda mais este debate. Castells (2003), por exemplo, analisa amplamente origens e influências da rede mundial de computadores, situadas antes mesmo da consolidação de suas ferramentas no século XXI. Identifica o que chamou de “cultura da internet”, introduzida a partir de 1960 numa convergência clara entre comu­ni­dades acadêmicas, virtuais, de hackers e empresas. Essa influência coletiva trans­cende interesses individuais e, de uma forma ou de outra, define novos comporta­mentos: jun­tos, esses atores (cultura tecnomeritocrática, hacker, comunidades virtual e empresarial) instituem a ideologia da liberdade. “A Cultura da Internet é a cultura dos criadores da Internet” (CAS­TELLS, 2003, p.34). E entendendo o conceito de cultura como um conjunto de valores e crenças que definem comportamentos, enfatiza o “modo como as pessoas adap­tam a Internet às suas vidas, em vez de transformar seu comportamento sob o ‘impacto’ da tecnologia” (CASTELLS, 2003, p.107). Portanto, rotinas desenvolvidas nas redes de cooperação voltadas para projetos tecno­lógicos somam-se à dimensão social do compartilhamento e da ideia de ciência como bem comum, produzindo “uma cultura de convergência entre seres humanos e suas má­quinas num processo

“Cadernalização” em telejornais

37

de interação liberta” (CASTELLS, 2003, p.45). Por se tratar de uma tecnologia maleável, a internet propõe outros padrões sociotécnicos de interação, em condições agora de organização em rede, reforçada por laços seletivos, interesses e valores individuais. As redes são definidas, portanto, pelas estratégias dos atores sociais (sejam individuais, familiares ou outros grupos) e os critérios de espacia­ lidade deixam de ser as formas fundamentais de sociabilidade. Manuel Castells (2003 ) analisa o individualismo na rede como um padrão. Não como sinônimo de indivíduos isolados, mas no papel de organismos que têm como referência afinidades e projetos comuns. Para ele, não é a internet que cria esse padrão, mas é a sua utilização massiva como suporte material para as trocas comunicacionais individuais que o faz. Após a transição da predominância de relações primárias (corporificadas em fa­ mí­ lias e comunidades) para a de relações secundárias (corporificada em asso­ ciações), o novo padrão dominante parece fundar-se no que poderíamos chamar de relações terciárias, ou no que Wellman chama de “comunidades persona­ li­ za­ das”, corpori­ fi­ cadas em redes egocentradas. Representa a priva­tização da socia­bilidade. Essa re­lação individualizada com a sociedade é um padrão de socia­ bilidade específico, não um atributo psicológico (CASTELLS, 2003, p.108).

Enfim, o padrão de individualismo em rede desenha novos critérios de sociabilidade e o que, de alguma forma, sempre esteve baseado no suporte tecnológico, hoje amplia as chances de articulações entre indivíduos, a partir das possibilidades de escolha entre interesses particula­ res. Assim, o individualismo em rede pode tornar-se forma domi­nante entre as práticas sociais existentes. Outra sinalização curiosa relacionada a este fato diz respeito a como al­gumas possibilidades, entre elas a interação e a segmentação, aparecem de forma re­corren­te nas análises sobre os processos comunicacionais. Antes mesmo até do próprio advento da inter­net, revistas, jornais, espectro de radiofrequência, walkmans, video­cassetes, controles remotos, conteúdos por assi­natura já davam visibilidade a este tema ou articulavam situações efetivas para o entendimento de estruturas potencialmente per­so­nalizadas. Wilson Dizard (2000), em A nova mídia: a

38

Desafios da pesquisa em jornalismo

comunicação de massa na era da informação, discorre sobre essas influências que, segundo ele, já vinham defi­nindo novos direcionamentos para os meios de comunicação de massa. A nova mídia, para ele, assume outros desafios e o principal está rela­cionado à descentralização das fontes de produção e distribuição de conteúdos. “Além disso, a nova mídia em geral fornece serviços especializados a vários pequenos seg­ men­tos de público” (DIZARD, 2000, p.23). É no suporte digital, a partir do qual há possibilidade de fluxo de multiconteúdos em base eletrônica comum e canal bidirecional, que consumi­do­res de infor­ma­ção e entreteni­ mento consolidam uma possível autonomia em relação aos meios.

2. Ambientes digitais, convergência e interação Aos novos direcionamentos de sociabilidade que emergem por meio de estratégias e ferramentas da internet, soma-se a sua aplicação em outros ambientes digitalizados. A televisão, por exemplo, em sua base digital disponibiliza então um número de possi­bilidades nunca antes imaginadas em contexto analógico. Sua base convergente, carac­ terística já reivindicada por Peter Greenaway para o vídeo (antes por Richard Wagner, em relação à ópera e por Eisenstein, em relação ao cinema), caracteriza o que se observa como a síntese de todas as artes e mídias (MACHADO, 2008), um conjunto poten­cializado hoje pela base hipertextual. Vicente Gosciola (2003), em Roteiro para Novas Mídias, analisa o audiovisual multimídia na sua aproximação do que chamou linguagem hipermídia, quando da sua conexão com o som digitalizado, animação, vídeo, realidade virtual e banco de dados. Enfim, hipermídia seria o resultado do conjunto de meios que permitiria acesso simultâneo a textos, imagens e sons de modo interativo e não-linear, possi­bilitando fazer links entre elementos de mídia, controlar a própria navegação e, até, extrair telas, imagens sons cuja sequência constituirá uma versão pessoal do usuário (GOSCIOLA, 2003, p.33).

A linguagem hipermídia, portanto, propõe um entendimento mais complexo para os conteúdos multimídia, pois além de definir-se por

“Cadernalização” em telejornais

39

situações convergentes, pressupõe a necessidade de ação interativa para o seu uso. É possível compreender, a partir daí, uma complexidade cada vez maior quando o assunto são as novas mídias: o volume de conteúdo possível em um único espaço e os diferentes níveis de interatividade tornam o trabalho de roteirização ainda mais complexo. No entanto, também parece propor um caminho sem volta. Utilizando como referência os jogos eletrônicos - exemplos de formas culturais nativas dos computa­dores – observa-se como ganham cada vez mais espaços como formas de interação social. E as novas mídias, não mais compreendidas apenas pelos seus aspectos técnicos, despertam interesse como “objetos culturais que usam a tecnologia computa­cio­nal digital para distribuição e exposição” (MANOVICH, 2005, p.27). Esse mesmo autor sintetiza o novo modelo: Resumindo, as novas mídias podem ser compreendidas como o mix de antigas convenções culturais de representação, acesso e manipulação de dados e convenções mais recentes de representação, acesso e manipulação de dados. Os “velhos” dados são representações da realidade visual e da experiência hu­mana, isto é, imagens, narrativas baseadas em texto e audiovisuais – o que nor­ mal­ mente compreendemos como “cultura”. Os “novos” dados são dados digitais (MANOVICH, 2005, p.36).

Institui-se aí a convergência entre diferentes forças e convenções culturais. Além da correlação de conteúdos diversos em espaço comum, esse mix envolve formas culturais maduras - já incorporadas, na relação com os meios, às convenções dos softwares de computador. “Como resultado dessa mistura, conseguimos híbridos estranhos como ‘mapas de imagem’ clicáveis, paisagens de dados financeiros navegáveis [...], ícones animados – uma espécie de microcinema da cultura computadorizada” (MANOVICH, 2005, p.37). É o que Lev Manovich (2005, p.37) definiu como “estética da cultura infor­mática inicial”: estratégias que acompanham toda nova tecnologia, por exemplo, na sua relação com o acesso, com a representação do real, com a instantaneidade ou na distância entre observador e observado. Já Rodrigo Bomfim Oliveira e Roberto Ribeiro Miranda Cotta (2009) fazem referência à “estética de recepção”, a partir

40

Desafios da pesquisa em jornalismo

da qual há possibilidade de recriação da obra no momento da recepção, em especial, pelas ressignificações possíveis nos espaços deixados em aberto. De alguma maneira, características como as percebidas em ambientes exclusivamente digitais migram e começam a influenciar outros contextos de comunicação. Muitas décadas de produção de mídia analógica resultaram em um enorme arquivo de mídias e é o conteúdo desse arquivo – programas de televisão, filmes, gravações de áudio, etc. – que se tornou dados brutos a serem pro­ cessados, rearticulados, minados e reempacotados por meio de software digital – em vez da realidade bruta (MANOVICH, 2005, p.45).

Ana Sílvia Lopes Davi Médola (2009) afirma que a televisão não pode mais ser pensada exclusivamente a partir de paradigmas analógicos, pois a linguagem televisual passa a sofrer influência decisiva (e mais efetiva) dos dispositivos digitais. Com isso, confirma sua tradição multimídia, num potencial de congregação de diferentes experiên­cias cultu­ rais, valorizando o cruzamento de mídias e de conteúdos com o hibridismo de formatos. “Por sua função indicial, de contiguidade no processo de semiose hipertextual, a TV possi­­bi­­lita ao telespectador/interator trilhar percursos próprios de busca da informação na estética da hiperfragmentação” (MÉDOLA, 2009, p.259). Arlindo Machado (2005) corrobora com Médola (2009) e vincula o sentido de qualidade para este meio ao potencial elástico de seu repertório. Televisão de qualidade, para o pesquisador, deve ser capaz de equacionar variedade. Portanto, pensar possibilidades e conteúdos para a TV Digital, de uma forma ou de outra, passa pela compreensão de uma nova lógica em curso, fundamentalmente, a busca por compatibilizar antigas formas às novas possibilidades que emergem de práticas incor­poradas em outros ambientes, de multiplicidade e de complexidade. Algo próximo ao que Carlos Alberto Scolari (2009, p.176) chamou de “hipertelevisão”, caracteriza­da pela “multiplicación de los programas narrativos em la series televisivas contempo­ráneas o la conformación de narrativas transmediáticas”.

“Cadernalização” em telejornais

41

3. Confluência entre possibilidades técnicas e mudança de hábitos Em certo sentido, a exposição às múltiplas situações de conteúdo obriga o espectador a te­r uma maior percepção em relação aos conteúdos disponíveis, tornando-se, portan­to, mais seletivo e, consequentemente, participativo - características que articulam influências diversas: da televisão por assinatura às redes colaborativas da internet. No entanto, é fato incontestável: internet e televisão são meios de comunica­ção distintos e incor­poram rotinas de recepção também muito diferentes. Apesar dessa distinção, as influências mútuas entre estas estruturas técnicas e seus diferentes hábitos começam a diluir, inevita­ vel­men­te, as fronteiras entre algumas formas de comunicação. Lorenzo Vilches (2009) ana­li­sa a transformação pela qual passam os modelos a partir das novas propostas tecnológicas: a televisão, por exemplo, vem sofrendo um progressi­vo distanciamento do modelo familiar de recepção em favor do individualismo, no qual questões individuais dos espectadores, em suas necessidades particulares, passam a definir as rotinas e as formas de relacionamento com o meio televisivo. Um exemplo desse hibridismo na mudança de hábitos é analisado por Renata Prado Alves Silva (2009), no artigo Fansub e scanlation: caminhos da cultura pop japonesa de fã para fã via web, a partir do qual avalia como fãs de mangás e animes (publicações típicas do Japão) começam a romper com as barreiras de distribuição dos meios de comunicação convencionais. Através de redes colaborativas, os fãs (chamados produ­sers) subvertem a programação na forma aplicada pelas emissoras. Renata Silva (2009) afirma que, apesar de atuantes, fãs viviam às sombras na cultura de massas e, com o uso da rede de computadores, começam a adequar cronogramas de exibição às suas necessidades. Utilizando-se de uma lógica colaborativa e demonstrando um baixo grau de tolerância em relação aos procedimentos massivos, iniciam (ainda de for­ma amadora) suas próprias escalas de produção e distribuição: fazem cópias no momen­to da primeira exibição, organizam grupos de trabalhos, legendam e distri­buem, através da internet, para os grupos de fãs espalhados pelo

42

Desafios da pesquisa em jornalismo

mundo. “Trata-se de um processo que encoraja a inteligência coletiva: na sociedade em rede as pessoas geram conhecimento através de comunidades e trabalham juntas para resolver problemas que não poderiam confrontar individualmente” (SILVA, 2009, p.3). Isto serve tanto na relação com mangás e animes como para grande parte das séries televisivas. Para alguns espectadores, aguardar o momento exato de acom­panhar a con­ti­­nuação da sua série preferida começa a parecer excentricidade, visto que é cada vez mais possível e usual que tais acessos possam se dar em momentos a sua escolha. O próprio conceito de grade de programação fixa parece não mais atraente a este tipo de público, que prefere fazer as suas escolhas e definir sua própria programação.

4. Linguagem hipermidiática em produção telejornalística Neste sentido, o artigo aqui proposto utiliza como referência algumas questões situadas na experiência com o projeto telejornal1, a partir da qual tínhamos como obje­ti­­vo pensar um roteiro de hipermídia que incorporasse, no múltiplo possível pela base digital convergente, recursos de navegação não linear e formas de organização a partir dos diferentes interesses do público espectador, notadamente heterogêneo. Por isso, apesar de entendermos essa como uma proposta complexa do ponto de vista da produ­ção (pelo dispêndio em relação ao modelo anterior), compreendemos também que a “cadernali­za­ção” adap­tada ao telejornalismo poderia ajudar a incorporar, no jornalismo da tele­vi­são digi­ tal, possibilidades interativas importantes e, inclusive, recorrentes na história do jornalismo em geral. Entre as “antigas” formas que ajudaram a caracterizar as “novas” propostas de fusão, po­de­mos citar como exemplos as que desvelam al1. Peça prática produzida por alunos e professores do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão a partir da colaboração do Laboratório de Sistemas Avançados da WEB – LAWS, do Departamento de Informática (http://www.laws.deinf.ufma.br).

“Cadernalização” em telejornais

43

gumas dessas influências. O jornalismo impresso instituiu, na segunda metade do século XX, um período de mo­der­nização tec­nológica responsável por mudanças radicais na produção de seus exem­plares. Maior velo­cidade das modernas impressoras offset, melhor detalhamento das ima­gens em cores e um modelo racional para todo processo, muito provavelmente, colo­ca­ram a im­prensa em um novo patamar, em um patamar de excelência industrial e comercial, que impôs novas formas de pensar a organização das notícias. Norval Baitello Junior, no prefácio feito para o livro de Rafael Souza Silva (2007), Controle remoto de papel: o efeito do zapping no jornalismo impresso diário, afirma que o saber lidar com o tempo é uma das estratégias mais preciosas e lucrativas nesses mo­men­ tos, justificadas por duas estratégias indissociáveis: acelerar e subdividir. O trabalho de Silva (2007) analisa o Projeto Folha - conjunto de mudanças im­ple­mentadas pelo jornal Folha de S. Paulo no período entre 1974 e 1986 – e pondera sobre as características que alteram o comportamento e a anatomia do jornalismo brasilei­ro na­que­le momento. Aspectos como sistematização modular, fragmentação e segmen­ta­ção ganham destaque como práticas importantes na relação entre veículos de comunicação e seu público, inicialmente com o efeito zapping proposto pelo controle remoto aos espectadores de televisão e, em seguida, pela “cadernalização” sugerida por este hábito, entre outras influências ligadas ao maior controle individual dos leitores de jornais. Especificamente, nos casos de roteiros hipermidiáticos, antes de imaginar que a simples exis­tência de um link seja um pressuposto para interação, importante perguntar o que poderá servir como estímulo para que ela venha a acontecer. A relação entre conteúdos e aspectos de usos, certamente, é uma instrução importante a se considerar: cada aplica­tivo hipermidiático propõe uma estrutura, está inserido em um contexto, possui seus obje­tivos e deve ser entendido assim dentro de universos bem específicos. Nosso primeiro desafio, portanto, seria o de trabalhar de acordo com o que Lev Mano­vich cha­mou de “gramática do acesso”: no mix entre “antigas” formas de representação visual da experiência humana e os “novos” dados digitais. No entanto, conciliar situa­ções tão divergentes

44

Desafios da pesquisa em jornalismo

inevitavelmente passa pela mudança de hábitos institucionalizados e pelo desafio de entender como as proposições para meios ditos convencionais podem convergir e potencializar estru­turas em transformação. Segmentação e interação, cer­ta­men­te, são pressupostos signifi­cati­vos, pois apontam caminhos para redefinir as ferra­mentas no telejornalismo e incorporar novas rotinas às suas práticas. O desafio agora, em específico no campo da televisão digital, é pensar propostas con­cre­tas e criativas para a sua programação que, de alguma forma, envolvam elaborações em torno da tecnologia utilizada para produção de aplicativos, mas, sobretudo, questões ligadas à funciona­ lidade desses aplicativos e ao conteúdo que será desenvolvido e recebido por intermédio de tais plataformas de comunicação. Neste sentido, o artigo de Felipe Muanis (2010) estabelece algumas dessas questões ao analisar textos fílmicos e seus diversos dispositivos materiais de exposição, explorando diferentes experiências fíl­­­micas: da momentânea imobilização da sala de cinema às facilidades do DVD. As distintas relações entre os dispositivos resultam em novas formas de leitura. “É no ato de ver o filme que se encontra a experiência fílmica e não no objeto em si. É na expe­riên­cia de contato com o texto que seu leitor elabora um diálogo da sua percepção de mundo com o filme e os textos que o permeiam” (MUANIS, 2010, p.89). No âmbito específico da TV Digital, retoma-se esta discussão, pois na sua passagem analógico/digital, a televisão em seu quesito materialidade parece servir de base para um grande número de possibilidades produtivas. Entre as principais, teríamos o “supos­to” controle do aparelho, consequentemente do conteúdo apreendido. A relação cada vez mais individualizada com os televisores (antes, com o livro, os receptores de rádio e mais recentemente com a internet) faz dessa experiência solitária um elemento impor­tante no contexto da TV. Felipe Muanis, ao analisar esse poder de controle do filme a partir do DVD como dispositivo de projeção, descreve “o poder de controle do filme pelo espectador, ‘personificado’ pelo próprio controle remoto” (MUANIS, 2010, p.90). As ferra­mentas de aceleração, de parada, retorno ou aproximação transformam o espectador de cinema e contribuem com novas incorporações estéticas para o audiovisual.

“Cadernalização” em telejornais

45

Tal materialidade amplia as possibilidades da releitura do filme, como na literatura, pois o filme vira objeto portátil que é colocado na prateleira e que pode ser retirado a qualquer momento, seja para vê-lo inteiro ou ver apenas uma passagem [...] A programação contínua e as interrupções transformariam o texto fílmico criando uma nova forma do seu leitor se relacionar com ele. Com o texto e com o meio. A fragmentação que surge na neo-televisão, as meta imagens, o zapping, proporcionam uma forma do espectador lidar com a televisão que é mais presencial do que conteudística o que, contudo, não elimina a busca por textos na televisão (MUANIS, 2010, p.91).

Lorenzo Vilches (2003, p. 212), no livro Migração Digital, afirma que para o usuário das novas tecnologias, incluindo a televisão, “oferece-se um mundo no qual a felicidade consiste em ter muitas opções [...] Frente a essa multiplicação da oferta, e devido ao possível colapso das audiências, por overdose de imagem e de informação [...] é preciso buscar o espectador ativo”. A discussão sobre “novas audiências” ganha contornos signi­fi­ cativos neste momento, quando a heterogeneidade cultural pode ser acessada por cada indivíduo, a partir dos quais escolhas prescindem diferentes competências. Vê-se emergir um grande número de possibilidades técnicas, materiais e humanas, assim como um universo estético também diferenciado. Lorenzo Vilches afirma ser muito cedo para definir-se uma estética digital por excelência, mas aponta para a di­lui­ção da era do específico, “um leguaje para cada género, una estética para cada suporte – es el punto de partida para cualquier reflexión sobre los efectos estéticos de la TDT” (VILCHES, 2009, p.168) e enxerga, para a TV Digital, um campo disponível para aplicações estéticas baseadas em fragmentação da narrativa, repetição e interrupção. Lev Manovich, inclusive, pondera sobre uma possível “gramática da interrupção” e busca paralelos desse estilo estético em Jorge Luiz Borges ou Vannevar Bush, a partir dos quais descreve “a idéia de uma enorme estrutura ramificada como uma maneira melhor de organizar dados e representar a experiência humana” (MANOVICH, 2005, p.49), introduzindo, assim, o que Janet Murray (2003, p. 237) convencionou

46

Desafios da pesquisa em jornalismo

chamar de experiência combinada: “de ativi­da­des sequen­ciais (assistir e, então, interagir), para atividades simultâneas, porém separa­das (interagir enquanto assiste), para uma experiência combinada (assistir e interagir num mesmo ambiente)”.

5. Interatividade e segmentação: caso telejornal E assim vemos crescer a discussão sobre potenciais interativos para os meios conven­cionais: da seleta e “especializada” audiência de TV por assinatura ou internet para o universo massivo das transmissões digitais abertas. Para isso, Carlos Ferraz (2009), no artigo Análise e perspectivas da interatividade na TV Digital, destaca algumas dis­cussões sobre interação neste espaço e, entre as diversas possibilidades, aponta um gran­de campo para transfor­mações na relação entre espectadores e conteúdos audio­visuais. Segundo ele, a interatividade é viabilizada, principalmente, por uma plataforma de software, denominada middleware. Esta plataforma é capaz de executar aplicações escritas em linguagem de programação que precisam de grande poder de representação das ideias dos que pensam na interação usuário-TV, análogo à interação usuáriocomputador (FERRAZ, 2009, p.27).

A partir do decreto assinado entre Brasil e Japão, o Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre – SBTVD-T2 incorporou, além de carac­te­rísticas fundamentais do pa­drão japonês de transmissão, resultados de pesquisas desenvolvidas no Brasil, entre estes a plataforma de software denominada middle­ware, respon­sável por dar uma visão única a todas as aplicações escritas em um ambiente de intera­ção, na interface homem-

2 Também conhecido, para efeitos comerciais, como International System for Digital Broad­casting – Terrestrial Brazil - ISDB-Tb, pois, a partir da publicação do Decreto Presidencial No. 5.820, em novembro de 2006, incorporou a base de modulação do ISDB-T - Integrated Servi­ces Digital Broad­casting Terrestrial. O padrão japonês ISDB-T tinha, entre as suas características originais, mobilidade e portabilidade, permitindo também transmissões em alta definição (até 1080i60) e com interatividade. ISDB-Tb entrou em operação comercial em 2 de Dezembro de 2007, começando pelo estado de São Paulo.

“Cadernalização” em telejornais

47

-máquina e em qualquer que seja o terminal de qualquer fabri­cante. Dessa estrutura técnica, com­posta de uma parte declarativa (Ginga-NCL) e outra procedural (Ginga-J), é estabele­cido “um dos grandes susten­táculos do tripé interativi­dade, alta definição e mobilidade” (FERRAZ, 2009, p.37). De onde também é proposta a multiprogramação (trans­­missão simultânea de múltiplos conteú­dos em um mesmo ca­nal) ou as aplicações transversais aos canais, tais como: guia eletrônico de programação, comércio eletrônico, banco eletrônico, jogos, progra­mas e publicidades interativas. As possibilidades interativas são apresentadas em três níveis diferentes (local, simples e plena) e o grau de participação dependerá da integração de equipamentos receptores e redes de comunicação. A indefinição sobre qual será ou se haverá o canal de interatividade tem um forte impacto negativo na introdução da interatividade na TV Digital. A tendência é contar com diversos canais de interatividade, mas essa diversidade torna complexo o desenvolvimento das aplicações, exigindo que se segmente o público, passando-se a ter diferentes públicos-alvo (FERRAZ, 2009, p.31).

Nesse sentido, a proposta de telejornal optou pela interatividade local, a partir da qual não haverá canal de interatividade (conexão com a internet ou telefonia) e acon­tecerá na própria transmissão (informações enviadas ciclicamente através do chamado “carrossel de dados”). Um modelo que privilegia, portanto, o já existente universo de espectadores de televisão no Brasil, o que poderia ser extremamente reduzido se colo­cássemos como exigência para a interatividade a necessidade de conexão de rede. No entanto, o segmento ainda é um foco. Organizar as informações de maneira a privi­legiar os diferentes espectadores seria uma forma de demonstrar que existiria um espaço pensado especificamente para ele naquele noticiário, permitindo-lhe passar de espectador passivo para usuário ativo, mesmo sendo apenas localmente. Em uma análise sobre a evolução da televisão interativa na Europa, Valdecir Becker e Marcelo Knörich Zuffo identificaram, especificamente, na BBC (British Broad­casting Corporation) alguma resistência à interatividade. “Um dos motivos estava no fato de os serviços oferecidos não

48

Desafios da pesquisa em jornalismo

interessarem à parcela significativa da população” (BECKER, ZUFFO, 2009, p.45). Serviços interativos confusos, pensados na especificidade com a internet, sem fazer uma adequação ao veículo televisão, normalmente oferecem grande resistência e dificuldade de adaptação. Para os autores, as experiências hoje devem ser propostas no sentido de tornar esses tipos de conteúdos acessíveis a um maior número de pessoas e de oferecer ao telespectador o que ele realmente precisa, chamando assim a sua atenção e influenciando na qualidade do conteúdo. “Qualidade essa não apenas técnica, estética e informacional, mas também relacionada ao uso e à compreensão das novas ferramentas” (BECKER, ZUFFO, 2009, p.61). E, neste sentido, a experiência com o telejornal buscou estabelecer estratégias com base na recepção cada vez mais individualizada dos espectadores de televisão. Indivíduos que, dos seus espaços íntimos ou receptores portáteis, valorizam a relação com conteúdos específicos, determinados por escolhas particulares. Portanto, neste primeiro protótipo (Figura 1), que ocupará 10 minutos da programação, já há, de início, a diferenciação entre três editorias principais (arte e literatura; esportes; ciência e tecnologia), no sentido de disponibilizar uma “navegação” por conteúdos distintos. Isto é, além de um programa linear de 10 minutos (incluindo matérias das três editorias), paralelamente, haverá mais três blocos, com 10 minutos cada, com os conteúdos específicos aprofun­dados (ou mais matérias sobre aqueles temas).

Figura 1 - Printscreen da abertura do telejornal, que já inicia sugerindo a “navegação” por editoriais

“Cadernalização” em telejornais

49

6. O que esperar dessa experiência? Este pequeno programa-piloto não teve a pretensão de definir algum tipo de modelo pa­ra o telejornalismo, mas, simplesmente, levantar algumas questões para este mo­mento de passagem analógico/digital na televisão aberta. Algumas situações foram surgindo no momento da finalização do projeto e, ao presente trabalho teórico, coube a respons­ a­bilidade de tentar dissolvê-las. Em especial: o que justificaria uma produção tão com­plexa e dispendiosa. Com base nas diversas descrições de cenários, conceitos e propostas de ferramentas, o que se propôs foi uma experiência que alinhavasse algumas dessas possibilidades de forma coerente, mas que de alguma maneira também pudesse ser ousada a ponto de correr alguns riscos. Algumas das etapas foram registradas no site http://hiperinterativos. wordpress.com/ e a peça final no site www.clubencl.org.br. Entendendo que as influências entre os diversos veículos de co­ municação não necessariamente modificam as formas de uso desses conteúdos, pare­ce vital, neste momento, compreender os novos e originais usos que eles possam apresentar. Por isso, a proposta do telejornal não pretenderia ser apenas um exercício estético de manobras modulares e fragmentadas, baseadas em uma gramática da interrupção, mas um primeiro passo para entendermos como esse público, conhecido mais por sua expec­tativa em relação aos conteúdos, poderá comportar-se quando a expectativa for transformada em ação.

Referências BECKER,Valdecir ; ZUFFO, Marcelo Knörich. Interatividade na TV Digital: estado da arte, conceitos e oportunidades. In: SQUIRRA, Sebastião et al. (org.). Televisão Digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade [Trad. de Maria Luiza X. de A. Borges; Ver. Paulo Vaz] Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. DIZARD, Wilson. A nova mídia: a comunicação de massa na era da in-

50

Desafios da pesquisa em jornalismo

formação. [Trad. 3a edição Edmond Jorge] 2.ed.rev. e atualizada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 2000. FERRAZ, Carlos. Análise e perspectivas da interatividade na TV Digital. In: SQUIRRA, Sebastião et al. (org.). Televisão Digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. Gosciola, Vicente. Roteiro para as Novas Mídias: do game para as novas mídias. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2003. __________. Narrativas complexas para TV digital: do cinema de atrações à interatividade. In: SQUIRRA, Sebastião et al (org.). Televisão Digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. MACHADO, Arlindo. O cinema e a condição pós-midiática. In: MACIEL, Kátia (org). Cinema sim: narrativas e projeções: ensaios e reflexões. São Paulo: Itaú Cultural, 2008. _­­__________. A televisão levada a sério. 4.ed. São Paulo: Editora Senac, 2005. MÉDOLA, Ana Sílvia Lopes Davi. Televisão digital, mídia expandida por linguagens em expansão. In: SQUIRRA, Sebastião et al. (org.). Televisão Digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. MANOVICH, Lev. Novas mídias como tecnologia e idéia: dez definições. In: LEÃO, Lúcia (org.). O chip e o caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Editora Senac, 2005. MUANIS, Felipe. Cinema: entre o texto e o dispositivo. In: Revista Logos 32 Comunicação e Audiovisual. Ano 17. Disponível no site http://www.e-publicacoes.uerj.br/ index.php/logos/issue/current/showtoc. Acessado em 30 de junho de 2010. MURRAY, Janet H. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço [Trad. de Elissa Jhoury Daher, Marcelo Fernandez Cuzziol] São Paulo: Itaú Cultural: Unesp, 2003. OLIVEIRA, Rodrigo Bomfim; COTTA, Roberto Ribeiro Miranda. Interações no cinema: proposta de realização de um filme colaborativo na WEB. Anais do XXXII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Disponível no site http://www.intercom.org.br/ papers/nacionais/2009/

“Cadernalização” em telejornais

51

resumos/R4-1212-1.pdf. Acessado em 26 de junho de 2010. RECUERO, Raquel. Redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2009. SCOLARI, Carlos Alberto. Ecología de la hipertelevisión, complejidad narrativa, simulación y transmedialidad em la televisión contemporânea. In: SQUIRRA, Sebastião et al. (org.). Televisão Digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. SILVA, Rafael Souza. Controle remoto de papel: o efeito do zapping no jornalismo impresso diário. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2007. SILVA, Renata Prado Alves. Fansub e scanlation: caminhos da cultura pop japonesa de fã para fã via web. Anais do XIV Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste. Disponível no site http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2009/resumos/R14-0145-1.pdf. Acessado em 26 de junho de 2010. VILCHES, Lorenzo. Televisión digital: entre la esperanza y el exceptismo. In: SQUIRRA, Sebastião et al (org.). Televisão Digital: desafios para a comunicação. Livro da Compós. Porto Alegre: Sulina, 2009. __________. Migração Digital. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

52

Desafios da pesquisa em jornalismo

53

Dia a dia na Redação do Ciberjornal:linguagem semelhante, modo de produção particular

Thaísa Bueno

Mestre em Linguística e Semiótica pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e membro do grupo de estudos em Ciberjornalismo nesta mesma instituição. Atualmente é professora do Curso de Comunicação Social/ Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), em Imperatriz (MA). E-mail: [email protected]

1. Introdução Mídia relativamente nova, com pouco mais de dez anos, o jornalismo na Internet ainda não explorou todas as possibilidades de textualização que o suporte deste texto sincrético – que agrega diferentes linguagens – permite1. Esta constatação, ao avesso do que se poderia pensar, não é uma particularidade do modelo regional de ciberjornalismo. Muito pelo contrário, trata-se de uma característica dos sites de notícia de uma 1. Embora as taxas de adesão à internet cresçam continuamente, há uma grande massa de pessoas que não está conectada. Um site que usa muitos recursos multimídia pressupõe um internauta que dispõe de uma conexão em banda larga, ou seja, com condições de navegação rápida, ainda que a página esteja “pesada”. Como em geral os sites jornalísticos tentam atingir o maior número de internautas, já que tratam de assuntos variados, uma página assim poderia afastar um enunciatário que, embora guiado pela agilidade, fizesse uso de uma Internet de conexão com modem ultrapassado. Um site “pesado”, que demora mais tempo para carregar sua página, seria sancionado como lento. Isso explica, em partes, porque não é possível usar em demasia opções mais arrojadas de design gráfico.

54

Desafios da pesquisa em jornalismo

maneira geral, basta pensar que quatro anos depois da primeira investida on-line do jornalismo nacional – uma experiência do grupo Estado de São Paulo, que colocou sua versão impressa na rede em 1995 – o leitor sul-mato-grossense já podia acessar sua página regionalizada e, melhor, com conteúdo exclusivamente apurado para a web e com acesso ilimitado e gratuito, no endereço do Campo Grande News (www.campograndenews.com.br). O fato é que, ágil ou lento ao apresentar novas possibilidades de apresentação das reportagens, o ciberjornalismo de uma maneira geral ainda é bem jovem e, portanto, mantém sua referência primeira alicerçada nas orientações do jornalismo tradicional, principalmente do impresso, ainda que o novo domínio permita outras investidas além do texto escrito, fotografia e gráfico. Investidas como, por exemplo, vídeo, áudio, ilustrações animadas, links de acesso a outras matérias que tenham informações complementares ou indiquem caminhos fora do espaço virtual a que o conteúdo é apresentado. Essa migração de linguagem é muito comum quando do aparecimento de uma mídia. Aconteceu, por exemplo, com a TV, que antes de definir um estilo específico adotou a linguagem do veículo que lhe parecia mais próximo, no caso, o Rádio. A história é antiga e se repete por ocasião do nascimento de cada nova mídia. O rádio, o cinema e a televisão, cada um no seu tempo, surgiram com conteúdos que reproduziram as mídias que os precederam. À medida que eles foram amadurecendo, os conteúdos tornaram-se aos poucos mais adequados ao formato do novo meio. [...] A internet ainda não é muito diferente. Na sua parte multimídia, a World Wide Webe oferece amplas possibilidades para o emprego de áudio e imagens, mas são fundamentalmente as palavras que continuam prevalecendo. (PINHO, 2003, p. 182)

Assim poderíamos dizer que das mídias tradicionais a Internet adaptou: o modo conciso e direto do Rádio; as sobreposições de manchetes e chamadas em formato flash da TV; e quase toda a referência e disposição na página do jornal Impresso. Não estamos falando aqui, ainda, das mudanças no processo de apuração e divulgação da notícia,

Dia a dia na redação do Ciberjornal

55

que ao que parece é o seu principal diferencial e onde o ciberjornalismo tem dado sua maior contribuição no sentido de mudar o paradigma da mídia contemporânea. Este assunto será tratado adiante, por enquanto é satisfatório entender que enquanto linguagem este suporte ainda não encontrou uma especificidade muito evidente, como o fez no processo de produção e apresentação. Navegando por webjornais, há alguns anos, tinha-se a impressão de estar lendo o jornal impresso na tela do computador. Hoje, a situação mudou bastante, encontramos muito mais links e recursos de multimidialidade, mas não vemos nada de muito diferente do que já foi visto. A ‘novidade’, por enquanto, é que podemos ler o jornal impresso, assistir ao noticiário da televisão e ouvir o noticiário do rádio, na mesma tela do computador, de maneira quase simultânea (MIELNICZUK, 2004, p. 11).

2. Alicerçado no impresso Em análise do Portal Uol, Hernandes (2005) adaptou leis de diagramação do jornalismo impresso que poderiam ser usadas no estudo do jornal na web. Ele apresenta algumas semelhanças na linguagem que seriam partilhadas entre os dois veículos, impresso e on-line, e apontou alguns pontos de referência, aos quais chamou de semi-simbolismos, e que servem para mostrar como aconteceu a migração das leis da diagramação e os recursos de webdesign e que agregam sentido à linguagem do veículo. Assim, conforme o estudo de Hernandes (2005), as leis partilhadas no portal Uol, e que se repetem também em outras mídias no mesmo modelo, seriam as seguintes:

56

Desafios da pesquisa em jornalismo

Em análise do site CGNews, as tabelas que foram usadas no estudo do Portal Uol apresentam mais quatro leis, sendo que as duas últimas são exclusivas do jornal online:

2. Na tabela original, que tem como base a teoria semiótica francesa, o autor acrescenta a todas essas leis a Correspondência no Plano de Conteúdo como: Maior valor e potencial de atenção x menor valor e potencial de atenção. Para este artigo ela foi excluída porque não interessa a esta pesquisa a relação com o Gerenciamento do Nível de atenção, que corresponde à capacidade do jornal em atrair a atenção do enunciatário. A nomenclatura também foi substituída, já que este artigo não tem como foco a semiótica. 3. O autor usa o termo unidade noticiosa para se referir a “elementos de significação de qualquer jornal analisado” (HERNANDES, 2005, p. 36). Nisso se incluem desde as chamadas notícias informativas a recursos opinativos do jornal, como charges, crônicas, editoriais e outros.

Dia a dia na redação do Ciberjornal

57

3. Linguagem parecida, modo de produção distinto Se repetiu alguns padrões ou criou algumas formas marcantes com relação ao modo de exibir seu conteúdo na página, o fato é que o jornalismo on-line também tem, ora de maneira intuitiva, ora mais elaborada, desenvolvido, paulatinamente, um jeito próprio de se firmar no mercado como um novo modelo de trabalhar a notícia, e o próprio fazer jornalístico, não se resumindo apenas como mais um formato de divulgação de outras mídias. Em outras palavras, fazer jornalismo na web não é divulgar notícias por meio das redes de computador, mas praticar uma nova gestão da informação. E o que teria ela de inovadora? Vários autores, entre eles Pinho (2003), Palácios (2003), Ferrari (2004) já apontaram, com eficiência, algumas características clássicas do ciberjornalismo. Palácios (2003), por exemplo, diz que a ruptura pode ser percebida em seis elementos distintos: Multimidialidade/Convergência, referindo-se à concentração de formatos tradicionais de mídia num mesmo espaço; Interatividade, que integra o leitor no processo através de vários meios, entre eles troca de e-mail, disponibilidade de um sistema em que o internauta pode deixar sua opinião sobre a matéria, etc; Hipertextualidade, que seria a interligação de textos por meio do link; Personalização, capacidade de configurar seus produtos conforme seu interesse; Memória, disponibilidade coletiva do conteúdo; e por fim a Instantaneidade, que somaria rapidez às facilidades de produção. Pinho (2003) acrescenta a isso o conceito de não-linearidade. No jornal impresso, no rádio e na TV, as notícias e as reportagens têm começo, meio e fim. [...] a história é escrita ou gravada para ser consumida exatamente nessa ordem. Entretanto [...] a

58

Desafios da pesquisa em jornalismo

informação na World Wide Web é não-linear, permitindo que o internauta navegue na estrutura do hipertexto sem uma seqüência predeterminada, saltando de um ponto para outro, de uma página para outra, de um site para outro. (PINHO, 2003, p. 186) .

Ele também elenca outros pontos em particular, como o baixo custo de produção, a dirigibilidade, que segundo o autor faria referência à vantagem de não ter um espaço limitado de inserção, etc. Mas se estas mudanças são evidentes e, inclusive, muitas delas consenso entre os estudiosos, como influenciam na rotina produtiva desta “ciberedação”? O que um jornalista precisa saber e quais as habilidades exigidas para desempenhar um bom papel no dia a dia destes veículos? Para dar conta dessas mudanças, o profissional da imprensa também teve de se adequar e criar um novo paradigma de como obter, trabalhar e organizar a produção e divulgação da informação. Neste ponto deste artigo, tendo como base a rotina produtiva do CGNews, apresentam-se algumas particularidades, não do modelo de jornalismo digital, que isso já foi muito bem apontado por teóricos, mas de como este padrão alterou a rotina produtiva e exigiu uma atualização também de seus profissionais. É claro que estes apontamento não encerram a discussão, já que uma mídia tão volátil pode alterar seu modelo mais rapidamente do que possamos acompanhar, mas abalizam algumas especialidades que o CGNews adotou na sua organização diária e que assinalam um caminho eficiente de se fazer jornalismo diário na Internet e que não é só dele. Afinal, quando aparece uma tecnologia nova, não é só o produto que muda, a alteração também atinge seu elemento primeiro: o homem, o “fazedor de notícias”, a figura do jornalista. É evidente que não estamos aqui querendo reinventar a roda, afinal, as regras básicas do bom jornalismo continuam valendo na mídia em rede, acrescidas de muita rapidez e algumas especificidades que seguem.

3.1. Um jornalismo menos hierarquizado Uma das modificações visíveis do novo modelo de organização no ciberespaço jornalístico é a habilidade de o profissional do texto trabalhar a notícia. Se até então a hierarquia na mídia era muito evidente, com

Dia a dia na redação do Ciberjornal

59

cada um sabendo exatamente a sua função, na redação on-line as funções se confundem e surge um profissional de multitarefas. É o que poderíamos chamar de Completo, que agrega a função de pauteiro/repórter/ editor/revisor/finalizador, e em alguns casos fotógrafo e, em outros mais extremos, motorista. Uma figura que desempenha várias funções. Não que a Redação não tenha uma hierarquia definida e inclusive um editor, mas este perde o caráter de dar uma última revisada no texto, de dar o acabamento; aqui ele muda de função e fica como um grande orientador geral, um administrador das tarefas. O novo profissional nesta redação alforriada tem a independência de fazer suas matérias e colocá-las no sistema sem passar pelo crivo, muitas vezes repreensivo, da figura do editor. É claro que toda a liberdade pressupõe também uma responsabilidade maior, e a este profissional será exigido conhecer bem a linha editorial do veículo, suas necessidades, dominar técnicas de apuração, escrita e edição e, obviamente, de fazer tudo isso de maneira rápida e eficiente. Bem, se até então ele podia ter talento para redação, fotografia ou edição, agora ele precisa ser “bom em tudo”. Para isso é preciso ser sistemático para se policiar sozinho e cumprir as metas sem precisar ser lembrado.

3.2. Mais independente nas escolhas Se não tem mais uma hierarquia muito delimitada, nada mais natural que a famigerada reunião de pauta, palco de muitas discussões e risadas nas Redações tradicionais, também passasse por mudanças. O que não era de se esperar é que ela desaparecesse quase que por completo. Mas é assim: como o tempo é curto, ainda que em geral os repórteres trabalhem períodos de seis horas seguidas, não há tempo para fazer uma reunião geral e discutir os assuntos que cada um deveria apurar. Assim, a reunião de pauta transformou-se numa grande exposição genérica, organizada pelo editor, com a agenda do dia e algumas orientações abrangentes. Esta pauta geral é disponibilizada no sistema e partilhada por todos os outros jornalistas. Enfim, sem a reunião sistematizada, e com uma pequena orientação de assuntos “inadiáveis”, cabe a

60

Desafios da pesquisa em jornalismo

cada ciberjornalista escolher sozinho o que vai selecionar como prioridade. Neste cenário é aconselhável ter um bloco de notas para anotar pequenos detalhes do cotidiano. As pautas surgem de uma observação apurada, da desconstrução do olhar e de muita dedicação.

3.3. Sem editorias definidas Em um ambiente tão peculiar, e usufruindo de uma autonomia tão pulsante, é fácil adivinhar que a ocupação de uma editoria também perdeu o seu posto no meio desta rede de informações. Ainda que o jornal tenha suas editorias distintas, que no caso do Campo Grande News recebe o nome de Canais, na Redação não existe mais o repórter de Cultura, Esporte, Cidades e assim por diante. Ainda que um ou outro acabe assumindo o papel de apurar mais um assunto, de uma maneira geral os ciberjornalistas investigam assuntos variados, passando da cobertura do lançamento da última moda da estação para o assassinato no interior, ou o pacote de medidas econômicas apresentadas pelo governo. Tantas informações distintas exigem do repórter uma capacidade profunda de conhecer um pouco de tudo. É preciso não apenas manter uma lista de fontes múltiplas e saber daquilo que está investigando, ele precisa ler e acompanhar a toda hora o que os outros colegas estão apurando, já que a qualquer momento poderá debruçar-se sobre este assunto também. Mais, é preciso que acompanhe temas variantes em lugares diferentes, para que tenha articulação e argumentos para entrevistar fontes de interesses distintos, sem muito tempo para se preparar para isso. Enfim, é um novo conceito de entender a Editoria não como uma seção limitante, mas uma forma de guiar e ampliar a rede de assuntos a serem selecionados.

3.4. Apurar e escrever de maneira simultânea Além de conhecer várias editorias, suas particularidades e termos técnicos, outra marca do jornalismo on-line é o acumulo de pautas apuradas simultaneamente. Sem o número definido de matérias a concluir

Dia a dia na redação do Ciberjornal

61

até o fim do dia, como acontece, em geral, nas redações de TV ou de jornal impresso, estes webrepórteres precisam começar muitas reportagens juntas. Assim quando uma for concluída a outra já estará em desenvolvimento. Para isso é preciso arquitetar o conhecimento de maneira organizada, apurando e escrevendo entre um intervalo e outro, entre um telefonema ocupado e um instante que a fonte pediu para esperar. Enquanto aguarda a resposta sobre determinado assunto, já finaliza o texto cujas anotações foram captadas anteriormente.

3.5. Reportagem em parceria Com tantas funções acumuladas, e um tempo curto para cumpri-las, o meio encontrado para suprir as dificuldades, e que se tornou uma característica marcante do ciberjornalismo, foi a reportagem em parceria: se um repórter apura os fatos, o outro escreve! Este é um dos traços mais visíveis para o internauta, as matérias assinadas por duas pessoas. Por este modelo um jornalista vai até o lugar onde o fato acontece, entrevista as fontes e, por telefone, narra o que viu e ouviu para o colega que está na Redação. Em geral, o primeiro nome que aparece na matéria é o do repórter que está na Redação e escreveu o texto; e o segundo nome, o do repórter que está no local do fato e repassa as informações por telefone. Para que as matérias não sejam publicadas com ruídos de informação, a responsabilidade do repórter que está na rua é ainda maior. Apesar da pressa e agilidade, antes de repassar para o colega o que apurou é preciso organizar estes dados de forma clara. Assim a maneira mais adequada é adotar uma sistematização das anotações por prioridades, como a que segue em forma de exemplo: 1- Anote o fato apurado por ordem de importância (ainda que não seja a ordem cronológica dos acontecimentos); 2- Selecione esses fatos em forma de temas e divida a apuração em três ou quatro argumentos principais; 3- Contextualize a pauta – onde está, porque está ali, ainda que

62

Desafios da pesquisa em jornalismo

este não seja o enfoque da sua matéria; 4- Repasse as informações selecionadas pelos temas separadamente, como se estivesse escrevendo sua própria nota; Anote pelo menos duas ou três citações, na íntegra. Elas garantem veracidade ao texto.

3.6. Tempo definido Outra marca do modelo digital é que a organização permite ao jornalista um horário fixo de trabalho. Isso porque, como as apurações são contínuas, não é preciso concluir toda a reportagem para deixar a redação. Se o jornalista não terminou a investigação, ele repassa os dados, contatos e a etapa em que se encontra para o colega que chega para cobrir seu turno. Enfim, uma propriedade que sempre esteve atrelada ao formato tradicional de jornalismo, com serões e horas extras, não foi transferida para o formato da web.

3.7. Número de matérias Em uma Redação de site e portal a sanção de eficiência, representada no julgamento do internauta ou do próprio repórter - neste caso se comparada ao restante da equipe - não fica mais restrita a uma boa matéria, que seria aquela contextualizada, com uma apuração precisa e um texto criativo. Não está mais limitada a uma reportagem de profundidade, com um enfoque inédito, por exemplo, que sempre marcou a carreira dos grandes repórteres e até hoje é vista como um diferencial em qualquer suporte. A confirmação da eficácia, agora, inclui nesta soma um ponto importante: a quantidade. Os jornais digitais estão sempre muito atentos à produtividade de seus repórteres, inclusive um sistema interno contabiliza e aponta a produção diária, semanal e mensal de cada membro da equipe.

3.8. Enfoques Para não contabilizar um número de matérias abaixo do esperado e com uma média muito inferior à dos colegas - em geral de 15 a 20

Dia a dia na redação do Ciberjornal

63

notas por período de seis horas -, as notícias publicadas nos webjornais costumam ser postadas com dados fracionados. A grande reportagem, de oito ou dez parágrafos, é substituída por duas ou três notas que se complementam e constroem um sentido à medida que são lidas em sequência. Desta forma, uma única apuração pode render, em números, mais do que uma grande reportagem, mas muitas matérias. Assim, exige-se do jornalista uma grande capacidade de encontrar diferentes enfoques noticiáveis numa mesma reportagem, o que no jargão jornalístico seria “encontrar ganchos variados”. A máxima de que o mais importante deve estar no topo da pirâmide - no primeiro parágrafo da matéria - agora não fica muito clara. O mais importante tem de ser colocado no plural. Cada ponto “mais importante” vai se tornar uma nova matéria.

3.9. O uso dos releases Outro traço do modelo de mídia digital, que tem uma relação direta com a contagem de notas publicadas, é o tratamento dado aos releases - textos enviados por assessores de imprensa, promotores de eventos e pessoas ou empresas com diferentes interesses. Ainda que na sua essência o release seja uma sugestão de pauta, uma indicação de assunto a ser examinado, na pressa ele acaba tornando-se um texto a ser editado. Cada vez mais completos – estratégia das assessorias de imprensa para garantirem a publicação de seu material sem dificuldades –, os releases muitas vezes apresentam-se como reportagens prontas, algumas, inclusive, com enfoques coerentes ao interesse do jornal. Neste sentido, a grande dificuldade para esses repórteres é, justamente, encontrar uma nova perspectiva e alterar com eficiência textos que alguns consideram “acabados”. Na Redação on-line o jornalista necessita dilatar sua capacidade de discernimento entre o que é noticiável ou não. O importante é buscar neste recurso uma orientação de pauta a ser apurada, ou, se não for possível, usar o material de modo que aproveite as informações para escrever outra matéria, seja alterando o enfoque e a disposição do texto,

64

Desafios da pesquisa em jornalismo

seja complementando com informações usadas anteriormente, seja encontrando nele um gancho de maior interesse público.

3.10. Texto de profundidade Mas esta organizada marcada pela apuração meteórica não impede os jornais da Internet de produzirem reportagens mais elaboradas, em geral matérias sem cunho factual, que tragam entrevistas analíticas e mais fontes. É a chamada “matéria especial”. Paralelamente à produção diária, o jornalista de on-line tem de escrever uma matéria com este perfil para usar nos fins de semana, quando as Redações são organizadas em escalas e o grupo fica reduzido. Para isso novamente exige-se do jornalista uma organização do tempo e das anotações. Mas mesmo no caso da publicação de matérias maiores é importante entender que como a leitura na tela do monitor é mais cansativa que no papel, a edição do texto deve ser bem cuidadosa, principalmente no uso de frases curtas, parágrafos pequenos, em geral de no máximo cinco linhas, um espaço em branco entre eles e uso de intertítulos para guiar a leitura.

3.11. Mais ferramentas, mais fontes Se o tempo atrapalha a produção de matérias de profundidade, a tecnologia se apresenta como uma aliada deste profissional cheio de afazeres. Um reflexo desta mudança está na facilidade de apuração, mudança que chega a ser adotada, também, por veículos tradicionais. Na internet, como o tempo move toda a organização, não é possível manter muitos repórteres na rua, onde os fatos acontecem. Assim muitas matérias são apuradas por telefone, MSN, pesquisa em sites institucionais, troca de dados por e-mail, etc. Inclusive, Machado (2003) diz que o ciberjornalsimo melhorou muito a relação do jornalista com a fonte e lhe permitiu informações mais críticas, porque não o deixa mais na dependência de uma entrevista ou outra, mas permite uma contextualização maior à medida que mostra que há outras formas de conseguir este saber. Segundo ele (2003, p. 26), “a estrutura centralizada do jornalismo convencional gera uma supremacia absoluta das fontes oficiais”. E mais:

Dia a dia na redação do Ciberjornal

65

A novidade do jornalismo digital reside no fato de que, quando fixa um entorno de arquitetura descentralizada, altera a relação de forças entre os diversos tipos de fontes porque concede a todos os usuários o status de fontes potenciais para jornalistas. (MACHADO, 2003, p. 27)

Assim, com a tecnologia como aliada, é imprescindível conhecer bem essas ferramentas e entender qual a mais adequada para cada formato de pauta.

3.12. Contabilizar o tempo Por fim, é indicado saber o tempo de que dispõe para tudo isso. De 20 a 30 minutos, em geral, é o tempo que um repórter tem para produzir uma matéria, incluindo a escolha da pauta, sua apuração, produção do texto, edição e inserção no sistema. Neste ritmo, intercalando entre um repórter e outro, numa Redação de tamanho mediano, é possível ter uma notinha a cada 10 minutos, um tempo grande se comparado a coberturas com diferenças de dois a três já vistas em sites da rede. Produção irracional, talvez, mas praticada nas Redações de Mato Grosso do Sul e do Brasil, e que exige deste novo profissional muito domínio, habilidade e treino.

4. Conclusão E se não resta outra coisa a fazer se não acelerar o ritmo, é importante entender como chegamos nessa meta de urgência e apontar algumas alternativas para fazer jornalismo sério e eficiente nestas condições. Primeiramente, não é o objetivo deste artigo apontar culpados, afinal, não é apenas o veículo que impõe o ritmo, mas são mudanças de orientação coletiva. O leitor também quer ser o mais rápido a saber. Medina (1988) defende que o conceito de agilidade foi mudando com o passar da história e que, apesar de a Gazeta do Rio de Janeiro ter sido a primeira folha impressa no Brasil em 1808, somente com a virada do século, na Segunda Guerra Mundial, e já com o aparecimento do rádio, surge pela primeira vez de forma significativa “a pressa em saber as coisas”.

66

Desafios da pesquisa em jornalismo

Nesta época já existia o telegrama e a corrida pela novidade era a necessidade de encurtar distâncias. Uma pressa que, na avaliação de Virílio (1995), pode ser mais bem ilustrada com as mudanças na capacidade de impressão e difusão da Times Londres, que em 1814 instalou sua primeira impressora a vapor com capacidade para imprimir mil jornais por hora; substituída em seguida, em 1827, por outra mais eficaz que quintuplicou essa capacidade, já anunciando o ritmo da primeira rotativa, que apareceu 21 anos depois; seguida, na década seguinte, por uma capaz de imprimir 20 mil jornais por hora; para chegar, finalmente, ao final do século, à aceleração do modelo linotipo. “A imprensa na Grã-Bretanha alcançaria os vinte e cinco milhões de exemplares impressos por volta de 1810 e, dez anos mais tarde esse número chegava a trinta milhões” (VIRÍLIO, 1995: 29). Inclusive, a rapidez parece ter sido sempre uma meta das tecnologias e da própria imprensa. Em 1985, por exemplo, quem não tivesse um aparelho de fax estaria “fora da realidade” – atrasado com relação ao progresso. As mídias em geral, o telégrafo, o telefone, o cinema, a TV e hoje também o jornal na web acompanharam a aceleração das relações humanas. O jornalismo na rede está especificamente ligado à questão da velocidade para garantir o diferencial com relação às outras mídias. O furo jornalístico não é uma novidade inventada pelo jornal online e integra o próprio fazer jornalístico. A diferença é que, na mídia da Rede Mundial, esse espaço para se conseguir chegar antes está cada vez menor e se aproxima de uma irracionalidade em termos de condições de apuração. Assim, sendo a agilidade e a quantidade de matérias um ponto crucial no dia da dia da Redação, além de ter muitas fontes, das mais diferentes editorias, o repórter de site precisa conhecer esses procedimentos diários que garantem o abastecimento do sistema em um intervalo de tempo sempre menor. Para encerrar este artigo vale dizer que nada disso substitui a originalidade e o talento de um bom profissional.

Dia a dia na redação do Ciberjornal

67

Referências FERRARI, Pollyna. Jornalismo digital. São Paulo: Contexto, 2004. HERNANDES, Newton. Semiótica dos jornais – análise do Jornal Nacional, Folha de São Paulo, Jornal da CBNM, Portal UOL, revista Veja. Tese apresentada no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Doutor, 2005. __________. A revista Veja e o discurso do emprego na globalização – uma análise semiótica. Salvador: Edufba; Maceió: Edufal, 2004. ISKANDAR, Jamil Ibrahim. Normas da ABNT: comentadas para trabalhos científicos. Curitiba: Juruá, 2007. MACHADO, Elias e PALACIOS, Marcos. Modelos de Jornalismo Digital. Salvador, Calandra, 2003 MACHADO, Elias. O ciberespaço como fonte para os jornalistas. Salvador, Calandra, 2003. MEDINA, Cremilda. Notícia – um produto à venda. São Paulo: Summus, 1988. MIELNICZUK, Lucina. Webjornalismo de terceira geração: continuidades e rupturas no jornalismo desenvolvido na web. http://www,adtevento. com./intercom/resumos/R08161-pdf. Acessado em junho de 2006. MOHEDAUI, Luciana.   São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2002. MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em “tempo real” – o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro: Revan, 2002. PINHO, J.B. Jornalismo na Internet - planejamento e produção da informação on line. São Paulo: Summus, 2003. RABELO, José. O Discurso do jornal – o como e o porquê. Lisboa: Editorial Notícias, 2000. WHITROW, G.J. O tempo na história – concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993. (Coleção Ciência e Cultura).

68

Desafios da pesquisa em jornalismo

69

A objetividade no texto jornalístico: a técnica do lead e o lugar de contar história no Jornal do Povo nos anos 1950.

José Ferreira Junior Jornalista. Mestre e Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUCSP. Pós-Doutor em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. Professor Associado de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão. E-mail: [email protected]

1. Introdução O propósito deste artigo é trazer para o plano regional, mais especificamente o jornalismo praticado na década de 1950 em São Luís do Maranhão, uma problematização, já plenamente consolidada no recinto dos estudos sobre a imprensa localizada nas maiores cidades do país, sobre a questão da objetividade do texto jornalístico e da profissionalização da categoria. Trata-se de retirar (ou retirar exclusivamente) o foco dos personagens que foram “eleitos” responsáveis pelas reformas editoriais, passando-o para os processos. Examinam-se, de início, as circunstâncias em que foram alicerçadas as construções mitificadoras, passando-se pelo legado positivista o qual alcança o texto jornalístico, impondo-lhe a aura legitimadora da objetividade, seguindo-se, logo adiante, para a análise do objeto escolhido: a imprensa maranhense, mais detidamente o Jornal do Povo, extraindo-se do mesmo aquilo que o aproxima de outras publicações no âmbito na-

70

Desafios da pesquisa em jornalismo

cional e mesmo regional, sinalizando-se também para aspectos distintivos, cujo interesse se restringe, às vezes, somente ao plano dos estudos locais. Para finalizar, listam-se alguns pontos que podem servir de balizamento para as reflexões acerca da imprensa regional diante de temas de interesse geral para os estudos sobre a mídia, a cultura e a profissionalização na imprensa.

2. Os pressupostos de fundação e a construção mitificadora Os significados, quase mitológicos, em torno da introdução dos parâmetros de objetividade no jornalismo brasileiro (RIBEIRO, 2003), cujo marco zero teria sido a reforma editorial pela qual passou o jornal Diário Carioca, nos anos 1950, com a introdução do lead (clássicas seis perguntas que devem ser respondidas no início de cada matéria: o que, quem, como, onde, quando e por que), tendo à frente o jornalista Pompeu de Sousa, possuem uma relativamente farta literatura, a partir da qual se encastelaram categorias e pretextos para, inadvertidamente, mistificar um determinado período histórico. O foco sobre o período é limitado aos centros urbanos mais dinâmicos, sobretudo do eixo Rio de Janeiro-São Paulo, esquecendo-se as demais cidades, médias ou pequenas, com maior ou menor importância econômica, política e cultural. Instituiu-se, pelo menos para esse ponto de vista, um consenso, o qual reza que foi nesses anos 1950 o início dos processos de mudança no plano da redação do texto jornalístico; e, paralelamente, foi quando se fincaram as bases do profissionalismo para os que exerciam as funções de jornalista no Brasil. No Rio de Janeiro, tornou-se quase lendária a criação do jornal Última Hora, tendo-se como elemento mítico a figura do jornalista Samuel Wainer (2005), que valorizara a programação visual, item este que ganharia destaque ainda maior no Jornal do Brasil, em função da reforma gráfica e editorial, consolidando no imaginário da profissão os nomes

A objetividade no texto jornalístico

71

de Odylo Costa, filho, Janio de Freitas, Alberto Dines e do designer Amílcar de Castro, o profissional responsável pela estratégia de redimensionar o espaço grafo-visual, partindo do suplemento literário dominical e chegando à primeira página da publicação. São momentos expressivos, sem dúvida, no que tange à valorização de elementos formais em um ambiente cujo foco ainda era o conteúdo editorial (LESSA, 1995; FERREIRA JUNIOR, 2003) Já em São Paulo, cravou-se na memória épica da década de 1950 o episódio da reforma editorial do conservador jornal paulistano O Estado de S. Paulo, cujo processo de modernização teve em seu comando o jornalista Claudio Abramo (1988), que, anos mais tarde, estaria à frente da reformulação editorial do jornal Folha de S. Paulo.

3. A herança positivista e a crítica às mitificações Uma literatura revisionista sobre o período acima citado vem sendo construída, ao longo das duas últimas décadas. Uma vertente sai em busca das origens para os parâmetros de objetividade redacional do texto no jornalismo e encontra-os no discurso legitimado das ciências a partir do momento que esse discurso passa a substituir o discurso emanado do poder teológico, como bem salienta Cremilda Medina, ao situar marcas de Augusto Comte na normatização à qual se submeteu o texto jornalístico: Quando se observa o fazer cotidiano do jornalista e a doutrina presente na formação universitária (que data também do fim do século XIX), verificam-se marcas epistemológicas herdadas do Discurso sobre o espírito positivo. Ou do espírito comtiano. Senão, vejamos: a noção de real e a relação objetiva com o real; a tendência para diagnosticar o acontecimento social no âmbito da invariabilidade das leis naturais; a ênfase na utilidade pública dos serviços informativos; o tom afirmativo perante os fatos jornalísticos; a busca obsessiva pela precisão dos dados como valor de mercado; a fuga das abstrações; a delimitação de fatos determinados. A moldura ideológica, fixada no jornalismo, está representada nas palavras-chave da bandeira brasileira – ordem e progresso (MEDINA, 2008, p. 24-25).

72

Desafios da pesquisa em jornalismo

É importante frisar que tal empreendimento crítico não sai em socorro dos que, por ventura, pretendam defender a pura subjetivação do texto jornalístico. Trata-se, sim, de realizar um questionamento sobre a maneira pela qual a técnica redacional sobrepõe-se à perspectiva dialógica entre o discurso da ciência e o discurso do jornalismo. O tema da objetividade é recorrente, por exemplo, nos manuais de redação dos jornais de maior referência em âmbito nacional (HOHLFELDT, 2000); e, de maneira assídua, no currículo dos cursos de graduação em jornalismo. Para colaborar com a outra vertente, a crítica, deve-se acrescentar que a mitificação dos primórdios da implantação da técnica modernizadora (a década de 1950), por assim dizer, um elegível “elo perdido”, no qual o texto jornalístico substitui o nariz de cera (modo subliterário, pelo qual as notícias eram redigidas, na opinião dos que defendiam a objetividade) pelo lead, não é somente um fetiche pela datação fundadora, mas constituiu-se, sobretudo, em referencial do universo da profissão de jornalista no qual foram negligenciadas experiências anteriores e desdobramentos posteriores, limitando-se a esse momento, ainda, no plano da legitimidade, a definitiva profissionalização das atividades nas redações dos jornais. Para Marialva Barbosa, privilegiam-se as inovações em detrimento das permanências, além da clara tentativa de consagrar, no limite, uma epopeia: A reforma dos anos 1950 passa, portanto, à história do jornalismo como o período em que jovens homens da imprensa, inovadores e visionários, transformam, como num passe de mágica, o jornalismo que se fazia. São os “verdadeiros jornalistas”, na construção discursiva que reafirmam, que instauram na redação os padrões indispensáveis ao profissionalismo. Mas o profissionalismo foi um longo processo empreendido pelas empresas jornalísticas e corroborado pelo discurso dos próprios jornalistas (BARBOSA, 2007, p. 157).

A tendência a vislumbrar uma perspectiva crítica, sobre a década emblemática de 1950, não fica na órbita tão-somente dos pesquisadores acadêmicos ou da ideia de

fundação profissional, como é o caso do

trabalho empreendido por Marialva Barbosa, mas adentra, ultimamente, ao universo dos trabalhos de memória biográficos e autobiográficos,

A objetividade no texto jornalístico

73

colocando-se como um exemplo relevante a obra A rotativa parou! Os últimos dias da Última Hora de Samuel Wainer, do jornalista Benício Medeiros (2009), observador participante do ocaso da publicação como jornalista em início de carreira, em cujas críticas encontram-se ressalvas às instalações físicas do prédio do jornal carioca, embora as fotos de arquivo até hoje traduzam um estado de opulência. O debate sobre um tema tão candente não se expande às dinâmicas e às lógicas do jornalismo afastado dos polos urbanos mais desenvolvidos. Nas cidades menores, mesmo capitais de Estado de regiões mais remotas (como era o caso de São Luís do Maranhão), as mudanças tiveram outro ritmo em que, ratificando o delineamento de Marialva Barbosa, havia “inovações e rupturas” convivendo com “permanências e continuidades” (BARBOSA, 2007, p. 157). Dentro de uma abordagem em que não se negligenciam os meandros culturais do lugar sobre o qual se debruça o olhar analítico, retirando-se a quase exclusividade do contexto econômico e seguindo a trilha da literatura com a qual se está conduzindo esta reflexão, assentam-se as bases para o trabalho de fazer retroceder ao ambiente em que se encontravam os jornais diários de São Luís, empreitada para a qual se deve lembrar, por aconselhável prudência, da recomendação de Roger Chartier: O objeto fundamental de uma história que se propõe reconhecer a maneira como os atores sociais dão sentido a suas práticas e a seus enunciados se situa, portanto, na tensão entre, por um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, por outro, as restrições e as convenções que limitam – de maneira mais ou menos clara conforme a posição que ocupam nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, dizer e fazer (CHARTIER, 2009, p. 49).

4. Os jornais de São Luís: política e um lugar de contar histórias Mesmo que se queira dar primazia à análise das transmudações no campo do jornalismo ao aspecto cultural, não é desnecessário, ou sem

74

Desafios da pesquisa em jornalismo

propósito, localizar pontos importantes do processo político e econômico, sem os quais alguns elementos ficariam obscuros. É empiricamente notável, até nos dias de hoje, que na região Nordeste, e não apenas nela, o Estado é maior que a Sociedade, algo consolidado ao longo da história do Brasil. O comportamento das classes dirigentes é objeto de observação, por diversos estudiosos, pela peculiaridade como se comporta e pela maneira como se relaciona com o poder central: Num processo que poderia ser classificado de oposto ao de imigrantes enriquecidos, as elites agrárias do Nordeste conservam, por muito tempo, uma influência política desproporcional à importância do setor econômico que geriam. Como é sabido, a continuidade de sua influência deveu-se ao fato de associarem o domínio da terra ao domínio dos aparelhos de Estado e ao controle sobre segmentos importantes da burocracia, como as Forças Armadas, o Itamaraty, universidades etc. aos quais a nova burguesia, de origem imigrante, não teve acesso (RODRIGUES, 1990, p. 64).

Os jornais de São Luís não deixaram de traduzir, até certo ponto, essa tendência, razão pela qual se encontravam em mãos de proprietários de terras ou comerciantes, classe dirigente que tinha como líder o senador Vitorino Freire, do Partido Social Democrática (PSD), sendo que sua liderança política ligava o poder local ao poder central. O Jornal do Dia e o Diário da Manhã foram, exemplificando, publicações que apoiaram o governo local e passariam a se configurar como folhas semioficiais, algo comum na região até os dias de hoje. O grau de vínculo com partidos políticos expressava-se em editoriais, ou artigos de fundo (MELO, 2003, p. 108), publicados na primeira página, às vezes, escritos na primeira pessoa do plural. É datado desses anos 1950 o surgimento de um jornal diário que viria a se perenizar no imaginário maranhense como um marco na tentativa de “modernizar” a estrutura de texto, assim como empreender uma postura de oposição em face do poder local. Trata-se do Jornal do Povo, cujo fundador era o deputado Neiva Moreira, do Partido Social Progressista (PSP). O proprietário do jornal era um jornalista, com militância em redações importantes do Rio de Janeiro como a de O Cruzeiro dos Diários Associados, principal revista da época, além de opositor de

A objetividade no texto jornalístico

75

primeira hora do senador Vitorino Freire, posição política que lhe garantia popularidade junto à população urbana de São Luís. As razões que motivaram a criação do Jornal do Povo foram semelhantes às que levaram à fundação da Última Hora no Rio de Janeiro: a política. No caso do jornal carioca, tratava-se de um veículo que dava sustentação e divulgava a política nacional-desenvolvimentista do segundo governo de Getúlio Vargas do PTB, Partido Trabalhista Brasileiro (19511954). O Jornal do Povo foi criado com recursos do governador de São Paulo, Adhemar de Barros, do PSP, cujo objetivo era chegar à presidência da República. O fim da publicação foi logo em seguida ao golpe militar (a circulação findou-se em 4 de abril de 1964), com a prisão e posterior exílio do proprietário, Neiva Moreira (BUZAR, 1997, p. 7). A Última Hora circulou até o final dos anos 1970, mas sob o comando de Samuel Wainer somente até o começo daquela década (WAINER, 2005, p. 363). A mitificação da personagem do fundador do Jornal do Povo teve a colaboração de sua trajetória jornalística e política, a qual foi construída no plano local e no cenário nacional, durante uma vida longeva, dos 15 anos de exílio, da criação da revista Cadernos do Terceiro Mundo, acrescentando-se a isso tudo o fato de a literatura regional sobre o período não lhe poupar elogios: Nos quinze anos de existência de O Jornal do Povo, sobretudo na década de 50, quando a ação política de Neiva Moreira era mais voltada para o Maranhão, em razão do combate à fraude eleitoral, pode-se contar, nos dedos, os dias em que o matutino não trazia uma artigo ou matéria de sua lavra (...) era de tal modo marcante e inconfundível, que se costumava dizer em São Luís ser fácil saber quando Neiva Moreira estava dentro ou fora da cidade. Bastava ver o Jornal do Povo para sentir-se a diferença (BUZAR, 1997, p. 7-8).

Um paralelo, metodologicamente rigoroso, entre a Última Hora e o Jornal do Povo seria descabido, mas enfatizar que, às vezes, as nuances pertencentes ao âmbito nacional têm consequências no plano regional é oportuno, valendo tal proposição tanto para a estruturação das empresas jornalísticas quanto para o modo como as mudanças de rotina profissional acontecem; e, ainda, para a construção da memória de um determinado período histórico. Os personagens Samuel Wainer e Neiva Moreira

76

Desafios da pesquisa em jornalismo

foram mitificados (assim como outros jornalistas), cada qual à sua maneira e em diferentes circunstâncias, como modernizadores e inovadores. O processo de transformação da imprensa passou, certamente, pela colaboração deles, mas foi, antes de qualquer coisa, um caminhar com avanços e recuos ao longo do tempo. Ao se ter acesso aos exemplares do Jornal do Povo, nota-se que havia uma sinalização para incorporar a técnica de redação, à época inovadora, mas havia, de modo contundente, o compromisso em contar uma história, com maior ou menor grau de “objetividade”. Observem-se dois exemplos de matéria do Jornal do Povo nos quais a preocupação não era a de cumprir regras da técnica do lead. Em 28 de fevereiro de 1952, com o título Greve branca do povo contra o aumento das passagens de ônibus, tendo como subtítulo: Diminuem as filas em conseqüência da reação popular – o bonde ganha preferência. A operação do texto é uma busca por contar uma história, sem qualquer preocupação em escamotear o viés político da publicação, deixando explícitos, contudo, os elementos factuais: Maria Teresa, Maria Raimunda e Augusta Cardoso, operárias da Fabril, não podem pagar os Cr$ 6,00 de transporte e, por isso, viajam de pés, do Anil ao serviço – o operário José Raimundo declara à reportagem que Cr$ 2,80 de transporte por dia, de Monte Castelo à cidade, é muito pesado e, por isso, resolveu também não mais andar de ônibus. A hora em que estamos redigindo esta notícia, já estão sendo cobradas as passagens de ônibus, com aumento arbitrado, ilegalmente, pela portaria nº 11, de 22 do mês em curso (JORNAL DO POVO, 28 de fevereiro de 1958).

Em outra reportagem, em 27 de agosto de 1954, quando do suicídio do presidente Getúlio Vargas, o Jornal do Povo noticia a repercussão do acontecimento na cidade, iniciando o texto desta maneira: A morte de Getúlio Vargas emocionou a cidade, sobretudo nossos bairros proletários. Muitas pessoas chorosas, outras tiveram palavras de carinho para o presidente morto. Muitas mensagens de condolências estão sendo enviadas à família Vargas.

A objetividade no texto jornalístico

77

Nota-se que a preocupação da narrativa do Jornal do Povo é com o sentimento das pessoas (revolta ou tristeza), tirando-se o foco das instituições, dos governos (estadual e municipal), das empresas, razão pela qual tais enunciados distanciam-se do que, comumente, se observa nas mídias regionais das últimas décadas, já inseridas no contexto das técnicas redacionais que dão primazia à denominada objetividade, cuja tradução é a publicação de press-release em que a estrutura do texto dá ênfase a fontes oficiais: sejam as de matriz governamental, sejam as vinculadas ao patronato.

5. Considerações Finais A busca pelos formatos instituídos em jornais distantes dos grandes centros urbanos brasileiros é uma tarefa longa e irá requerer trabalhos monográficos focados nas publicações que, de algum modo, ousaram alterar uma “gramática” sobre a qual se alicerçavam as rotinas profissionais do jornalismo, contudo as vistas do pesquisador devem estar voltadas para o quanto esse processo traduz, atualiza e transforma experiências anteriores e, ao mesmo tempo, dá suporte a outros projetos posteriormente elaborados e desenvolvidos. No caso do objeto analisado, apreendem-se alguns pontos para uma reflexão: 1 Há uma tradição de estudos que consagram personagens históricos da imprensa brasileira, havendo, em contrapartida, uma fortuna crítica, sobretudo nos estudos acadêmicos (não somente neles), que desconstrói essas formulações, privilegiando os processos e reconhecendo os personagens destacados, pela história, como elementos desses processos; 2 No plano da mídia regional, constroem-se não raro mitificações locais que se assemelham às edificadas no plano nacional, cujo papel crítico também cabe ao ambiente acadêmico, pela facilidade de realizar a tarefa de levar olhares críticos sobre os temas como reforma, inovação, profissionalização, etc;

78

Desafios da pesquisa em jornalismo

3 A década de 1950 suscitou a construção de parâmetros comparativos, marcos fundadores, pioneirismo, requerendo negociações metodológicas para a compreensão de um momento tensivo e dinâmico em que, tomados como exemplos, a Última Hora carioca (e a cadeia de jornais de Samuel Wainer, com o mesmo nome em outros Estados), na instância nacional, e o Jornal do Povo, na pequena capital do Estado do Maranhão, tiveram papéis relevantes, mas, antes de tudo, estavam inseridos em um momento histórico no qual alguns valores foram sendo substituídos, outros resistiam, sendo que a narrativa (o contar uma história) passou por transformações, reafirmando-se em variados formatos até o presente.

Referências ABRAMO, Claudio. A regra do jogo. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. ABREU, Alzira Alves et. al. A imprensa em transição. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1996. ALBUQUERQUE, Afonso de. A obrigatoriedade do diploma e a identidade jornalística no Brasil: um olhar pelas margens. Contracampo, Niterói: Instituto de Arte e Comunicação Social, 2006, v. 14, p. 73-91. BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica. 2 vols. 4ª ed. São Paulo: Ática, 1990. BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa. Brasil – 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad, 2007. __________. História cultural da imprensa. Brasil – 1800-1900. Rio de Janeiro: Mauad, 2010. BUZAR, Benedito. Neiva Moreira. O jornalista do povo. São Luís: Lithograf, 1997. Chartier, Roger. A história ou a leitura do tempo. Trad. Cristina Antunes. Belo Horizonte, Autêntica, 2009.

A objetividade no texto jornalístico

79

DINES, Alberto. O papel do jornal. 9. ed. revista. São Paulo: Summus, 2009. FERREIRA JUNIOR, José. Capas de jornal. São Paulo: SENAC-SP, 2003. __________.A arena da palavra. Parlamentarismo em debate na imprensa maranhense (1961-1963). São Paulo: Annablume, 1998. HOHLFELDT, Antonio. Objetividade: categoria jornalística mitificada. 2000. Disponível em: http://www.ufrgs.br/gtjornalismocompos/estudos2000.htm Acesso em: 27 de junho de 2010. LESSA, washington Dias. Dois estudos de comunicação visual. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. LOUZEIRO, José. O pilão da madrugada. Neiva Moreira. Rio de Janeiro: Editora Terceiro Mundo, 1989. MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008. MEDEIROS, Benício. A rotativa parou. Os últimos dias da Última Hora de Samuel Wainer. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. MEDINA, Cremilda. Ciência e jornalismo. São Paulo: Summus, 2008. MELO, José Marques de. opinião no jornalismo brasileiro. 3. ed. rev. e ampl. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003. RESENDE, Fernando. O olhar às avessas – a lógica do texto jornalístico. 2004. Disponível em: http://www.ufrgs.br/gtjornalismocompos/estudos2004.htm Acesso em: 27 de junho de 2010. RIBEIRO, Ana Paula Goulart. Imprensa e história no Rio de Janeiro dos anos 50. Tese de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000. __________. Memória de jornalista: Um estudo sobre o conceito de objetividade nos relatos dos homens de imprensa dos anos 50. In: FRANÇA, Vera et. al. Livro do XI compós 2002. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 285299. RIBEIRO, Ana Paula Goulart; Herschmann, Michel. Comunicação e história. Rio de Janeiro: Mauad, 2008. RODRIGUES, Leôncio Martins. Partidos e sindicatos. São Paulo: Ática,

80

Desafios da pesquisa em jornalismo

1990. ROMANCINI, Richard; LAGO, Cláudia. História do jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular, 2007. SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. São Paulo: Martins Fontes, 1983. WAINER, Samuel. Minha razão de viver. São Paulo: Planeta do Brasil, 2005.

81

Sob os ventos da independência: Odorico Mendes e o jornalismo político do século XIX no Maranhão

Roseane Arcanjo Pinheiro Professora assistente do curso de Comunicação Social – Habilitação Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus Imperatriz. Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: [email protected].

1. Imprensa, Opinião Pública e Jornalismo Um território crivado pelas lutas políticas, em fase de confronto direto entre partidários da emancipação brasileira e os defensores da recolonização das terras brasileiras. No Maranhão, no primeiro quartel do século XIX, esse panorama não era diferente dos demais territórios brasileiros, no quais os debates políticos se recrudesciam pelas ruas, igrejas, comércios, quartéis e casas. Traziam ecos dos confrontos pelo poder no âmbito das classes politicamente hegemônicas após a independência e a então defesa dos grupos conservadores em Portugal da proposta de uma possível volta ao regime das colônias no continente americano. Se questões políticas e econômicas voltavam à baila após a separação política entre a ex-colônia e o Governo Português, quais as particularidades que guardava o Maranhão em meados dos anos de 1800? Trata-se de uma província que teria “relutado” em aderir à independên-

82

Desafios da pesquisa em jornalismo

cia, tema que então voltou ao debate público entre 1824 e 1825, em decorrência de conflitos políticos. O espírito “separatista” do território, que teve a possibilidade de apoiar a Confederação do Equador, é descrito por parte da historiografia que vislumbrava uma unidade nacional em pleno século XIX, como analisam e contestam Galves, Costa (2009). Apontar uma uniformidade de interesses e anseios em um amplo território como tal, envolvido em cisões, nos parece um exercício para apagar diferenças, cuja compreensão é relevante para apreendermos o porquê de tantos choques políticos no Brasil do século XIX. No Maranhão, com jornais impressos desde 1821, a imprensa almeja contribuir para as transformações que se avizinham até então, os grupos políticos ou seus simpatizantes inauguram os jornais, verdadeiras searas impressas, agregadoras das ideias e embates das ruas, os burburinhos e as opiniões têm lugar nos jornais, saem das ruas e alamedas e percorrem a letra impressa e voltam a retornar para as esquinas (BARBOSA, 2010). As práticas da oralidade demarcam sua força, como explica Marialva Barbosa, e reforçam as repercussões das ideias políticas defendidas pelos jornais, que almejam para si o papel de condutores do debate público. A cidade de São Luís, de acordo com Marques Melo (2003), foi a quarta cidade da colônia a ter jornais impressos. O jornal pioneiro, O Conciliador, que circulou entre 1821 e 1823, inicialmente manuscrito e posteriormente impresso, estava editorialmente vinculado ao governo da Província. Sua duração foi emblemática já que ocorreu em um momento de fissura política: começou a circular aliado a Portugal e noticiou a queda do domínio português em suas últimas edições. Além do registro, o que essa questão cronológica pode sinalizar? Uma cidade na qual os grupos socialmente dominantes tentavam demarcar sua presença e influir nas polêmicas políticas, frente à mudança de poder, cristalizada na disputa entre portugueses e brasileiros. Podemos compreender que a imprensa e seu conjunto de jornais, panfletos e folhetos constituem atores sociais, capazes de atuar no jogo político, influenciar decisões, apagar dissidências, amplificar vozes. Enquanto palco de discursos, resultado das práticas sociais, a imprensa

Sob os ventos da independência

83

tem “papel fundamental na reprodução, manutenção e transformação das representações que as pessoas fazem e das relações e identidades com que se definem numa sociedade” (PINTO, 1999, p.24). Mas em cada território, de acordo com as configurações das sociedades locais, essa participação na formação de uma opinião pública, eivada de distensões, consensos e embates, vai ganhando corpo. Como aponta Barbosa (2010), a imprensa é um dos canais do incremento de uma cultura política, de crescente participação de segmentos sociais que desejam nos espaços de poder influir no futuro dos governos e do país. Entre liberais e absolutistas, os segmentos letrados e seus opositores arvoravam-se sobre os veículos impressos na tentativa de expor novas ideias, de cunho liberalizante ou buscar consensos sobre outras em vigência com vistas a definir o destino político do Brasil, de acordo com entendimento do que seria interesse público para cada um desses grupos. No Maranhão, visto como território “separatista”, com pendor aos interesses portugueses, a gênese de uma opinião pública conviveu com a “adesão” do território ao Brasil após a invasão coordenada pelo almirante inglês Cochrane, enviado pelo novo governo após a independência da colônia para domar os que ainda defendiam alinhamento com o poder português (GALVES, COSTA, 2009). A ordem política nascente surgiu crivada pelos embates entre partidos ou jornalistas na imprensa local, cujos nomes estavam associados aos grupos políticos que lutavam pela hegemonia. A opinião pública foi disputada pelos que buscavam legitimidade política, maior poder para conduzir o governo e a tomada de decisão. Como acentua Morel, Barros (2003), o termo opinião pública abarca a perspectiva do grupo que se sobressai politicamente, que se sobrepõe no jogo de poder em cenários que se transformam, ou ainda os que conseguem o consenso em torno de uma ideia em disputa. A sociedade, a partir da análise dos autores, não é homogênea ou tampouco governada por uma única visão de mundo, as propostas políticas são postas no tabuleiro e o ordenamento a ser delimitado será fruto dos consensos ou da opinião cuja força rompeu o âmbito privado e soergueu o cenário político. Um dos ambientes desse processo, especialmente pela força junto à sociedade, foram os jornais.

84

Desafios da pesquisa em jornalismo

Em São Luís, capital do Maranhão, as dissidências apareciam claramente nos jornais então em circulação: Argos da Lei e O Censor. O primeiro de autoria de Odorico Mendes, um dos mais destacados jornalistas maranhenses no século XIX, identificado com a “causa brasileira”, e Garcia de Abranches, competente cronista português, proprietário de O Censor, onde o alinhamento à antiga Metrópole era um dos eixos editoriais. Esses jornais não eram os únicos a circular na principal cidade maranhense naquele momento: pasquins apócrifos “incendiavam” as brigas políticas, azedavam ainda mais as inimizades, acirravam as intrigas. Insultos, sátiras, ironias e xingamentos transformavam-se em letras impressas, o jornalismo abarcava então as crônicas polidas de O Censor e Argos da Lei, além dos ataques pessoais e políticos dos pasquins “incendiários” através de uma linguagem virulenta (JORGE, 1998). Afora os panfletos anônimos e os periódicos com demarcada posição política, a cidade de São Luís convivia com uma imensa população de analfabetos e escravos, em 1821 somente 29% dos habilitantes eram homens livres, sendo os demais negros (CALDEIRA, 2003). Para a maioria dos moradores da cidade, o acesso à imprensa ocorria através dos comentários, das contestações, dos questionamentos, das conversas informais de seus leitores que repassavam suas impressões em quitandas, praças e ruas, movimento que dava também concretude à opinião pública. As práticas jornalísticas em meados do século XIX ganham contornos polêmicos, cunhadas por teses e interesses de diferentes grupos. O jornalismo doutrinário, característica dos anos de 1800, especialmente em decorrência das mudanças nas estruturas de poder¸ anunciava o nascimento da imprensa enquanto uma instituição social que posteriormente teria feições empresariais. Os impressos protagonizavam disputas pela hegemonia política, tornando-se um dos canais para as decisões na esfera pública. Sobre essa questão, assevera Genro Filho ( 1987, p. 48): O jornalismo se impõe, de maneira angular, como possibilidade dos indivíduos em participar do mundo mediato pela via de sua feição dinâmica e singular, como algo sempre incompleto, atribuindo significações e totalizando de maneira permanente como se estivessem vivendo na imediaticidade de sua aldeia.

Sob os ventos da independência

85

A radicalidade opinativa dos impressos foi um dos marcos desse período, com funcionários públicos, padres, políticos e militares determinando seus lugares de fala na imprensa e assumindo o ofício de jornalistas de seu tempo. E a imprensa, com sua capacidade de participar do jogo político, alçou parte dos seus protagonistas para outras instâncias de poder, como as câmaras municipais e assembleia legislativa do império. Foi o percurso de Odorico Mendes, jovem estudante de Coimbra que retornou ao Maranhão no início do século XIX, e fundou em 1825 o jornal O Argos da Lei. Eleito deputado, foi fundador de outros periódicos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Enquanto jornalista, liberal e defensor dos ideais iluministas, Mendes foi um dos ativistas no Maranhão de uma das fases de consolidação da ruptura política com Portugal.

2. As vertentes de um jornalista A Revolução Constitucionalista em 1820 significou um breve sopro de liberdade de imprensa no Brasil, sempre ameaçada pelos desmandos, apreensões de maquinários e fechamento de impressos. Proliferam jornais na colônia de forma lenta nas várias províncias, perfazendo espaços de novas vozes em um clima político de discussões cada vez mais acirradas (ROMANCINI, LAGO, 2007, p.31). O Maranhão foi uma província que chegou a ser no século XVII subordinada diretamente à Metrópole, além de ter se constituído em um outro território pertencente a Portugal e separado do ponto de vista administrativo da colônia, o Grão-Pará e Maranhão, de acordo com Jorge (2000, p. 20). Essas particularidades fizeram recrudescer as diferenças políticas na cidade São Luís e os jornais – de propriedade de brasileiros ou portugueses – escolheram suas bandeiras entre 1824 e1825, quando foi reavivada a possibilidade de reatamento político com Portugal, de acordo com as proposições de grupos cujos interesses tinham sido prejudicados com a separação. O jornalista Odorico Mendes, brasileiro de nascimento com postura política erigida na Europa nos estudos em Coimbra, aderiu ao jornalismo panfletário, através da fundação de O Argos da Lei em 07 de

86

Desafios da pesquisa em jornalismo

janeiro de 1825 com suas convicções alinhadas à manutenção da independência. A trajetória do editor de O Argos, de acordo com a historiografia sobre a imprensa maranhense, é caracterizada pelo enaltecimento do defensor da “causa brasileira”. As características do trabalho de Odorico Mendes são acentuadas por Frias, em estudo de 1883 (2001, p.24): o escritor Odorico Mendes teria imprimido ao Argos da Lei uma atuação virulenta contra os portugueses, ao defender a independência, sem moderação e com espírito apaixonado, tendo dirigido críticas e condenado todos os portugueses sem distinção, como contrários aos interesses brasileiros. No entanto, frisa Frias, o jornalista foi habilidoso e um dos mais importantes estudiosos da língua materna. Uma das obras de maior fôlego sobre os embates entre O Argos da Lei e O Censor, do adversário Garcia de Abranches, é de autoria de Sebastião Jorge, A Política movida a Paixão – o jornalismo polêmico de Odorico Mendes. As várias vertentes de Odorico - de jornalista, patriota e político - são descortinadas na obra, com ênfase nas brigas através da imprensa entre o jovem estudante de Coimbra com o português Abranches (JORGE, 2000). Outra questão abordada, com o desfecho da vida pública do jornalista, é a partida para a Europa após a decadência política. Odorico decide morar na França com os filhos, já decepcionado com os rumos da política no Império. Não se trata aqui de demarcar ou negar o patriotismo de Odorico Mendes em seus jornais, tampouco eivar seu percurso político ou jornalístico. A finalidade é apreender seus movimentos, perceber seu lugar de fala e as representações do escritor acerca da realidade imediata na qual estava imerso, a partir de suas práticas jornalísticas e do seu envolvimento com a seara política. Se os jornais são produtores de sentidos, faz-se necessário relacionar o dizer com as condições histórico-culturais, o contexto desse dizer (BRANDÃO, 1997). Odorico Mendes, além de O Argos da Lei, contribui em outros jornais no Maranhão: jornal Constitucional, ao lado de Sotero dos Reis, e o Maranhense. Em São Paulo e no Rio de Janeiro trabalhou em 7 de Abril, Astrea, Farol Paulistano, Clube Aurora Fluminense, Iris, O Verdadeiro Liberal, Liga Americana, O Homem e a América e Jornal do Comércio (JORGE, 2000).

Sob os ventos da independência

87

3. Os dizeres de um jornalista Um republicano e defensor da monarquia. Esses horizontes demarcaram a atuação jornalística e nortearam o pendor político de Odorico Mendes, em uma carreira que entrelaçou essas duas instâncias de poder. Através das páginas de O Argos da Lei, fundado assim que retornou ao Maranhão, em 1825, no calor das desavenças entre portugueses e brasileiros, defendeu a manutenção da independência e das ações voltadas para a consolidação desse cenário político. O jornal repercutiu no meio político, em função da imagem do proprietário de homem letrado, aliado da causa brasileira. Circulando duas vezes por semana, O Argos da Lei publicava artigos e notícias de jornais de outros países, que chegavam com atraso na ex-colônia. A postura dos brasileiros e a dos grupos políticos que se diziam “nacionalistas” foram elevadas pelo editor de O Argos da Lei, a exemplo do n°1, de 7 de janeiro de 1825, onde combateu o preconceito contra os brasileiros, ao criticar o ódio desmedido de portugueses ao novo governo (JORGE, 2000). Um das atribuições que Odorico Mendes delegava ao jornalista residia na denúncia contra a má administração no governo, no trabalho equivocado de funcionários públicos, no resguardar do interesse da sociedade. Para Odorico Mendes, o jornalista de seu tempo transfigurava-se em um educador do público, no orientador dos leitores e no defensor dos interesses e anseios sociais. Como reforça Morel; Barros (2003; p. 41): o que se formulava na perspectiva desses homens de letras era sobretudo a crença de que estariam imbuídos de uma missão pedagógica, esclarecedora, civilizadora. Desejavam contribuir para incorporar à sociedade as camadas que, de classes perigosas ou ameaçadoras, poderiam se transformar em elementos úteis e integrados, por meio da educação e da cultura.

Nos choques com Garcia de Abranches, através dos editoriais de O Censor versus O Argos da Lei, vêm à tona as diferenças políticas, os ataques dos brasileiros são condenados e as ideias do adversário postas abaixo, por meio de ofensas pessoais e contestações. Para Abranches, Odorico Mendes era um embusteiro ou louco, como publicou em O Cen-

88

Desafios da pesquisa em jornalismo

sor na edição n°74. O embate pelas letras impressas ganhou um tom duro e incisivo na defesa das autoridades, do poder público, do imperador D. Pedro, dos partidos, na liberdade de imprensa e na República. A epígrafe de O Argos de Lei, que circulou entre janeiro e julho de 1825, dava pistas do pensamento político de seu proprietário: “Boas são as leis, melhor o uso bom dela”. Ao iniciar a publicação do impresso, na edição n°01, justificou a necessidade de um jornal, pois assim a sociedade teria um porta-voz dos desejos e necessidades do povo da província, novamente demandando para si o esforço de erguer as bandeiras do nacionalismo e das questões relevantes para o Maranhão. A ideia aponta para o constitucionalismo e as ideias inspiradas no movimento constitucionalista, no liberalismo e no iluminismo, na nova ordem, econômica e histórico-social, representada pela perspectiva de alterar a realidade, transformá-la em um ambiente político favorável em decorrência da Lei de Imprensa Portuguesa de 1821, que tolerou a circulação de jornais e a livre expressão. Com a eleição, ainda em 1825, para a Assembleia Legislativa do Império, o jornalista Odorico Mendes iniciou a carreira parlamentar. Durante a legislatura publicou O Despertador Constitucional, em 18 de agosto de 1828, para defender o amigo José Cândido de Moraes e Silva, proprietário do jornal O Farol, que havia criticado o governador da província, Costa Pinto, sendo então vítima de arbitrariedades e perseguições (JORGE, 2000). “A liberdade de imprensa é só o que pode salvar a Província do golfão das calúnias e dos aleives”, declarou o jornalista na edição única de O Despertador Constitucional. O editor de O Argos da Lei questionou os ataques ao José Cândido e o desrespeito às liberdades individuais e ressaltou a obediência às leis vigentes. No decorrer do primeiro mandato, Odorico Mendes não se desatrelou da vida jornalística, desde vez em terras cariocas e paulistas. Em Astrea, o escritor contestou o governo e parte da imprensa, que cometia excessos em nome do liberalismo. No Farol Paulistano, convidado por José da Costa Carvalho, adotou a ironia para atacar os inimigos, buscou em seus artigos o fortalecimento da Constituição e incentivo ao progresso econômico. Pouco simpatizante da implantação imediata da repúbli-

Sob os ventos da independência

89

ca em meados do século XIX, condenou os atos do governo que considerava destoante da nova ordem, calcada no Império e na legislação antiabsolutista. O nacionalismo foi a marca de Odorico Mendes também em Aurora Fluminense, lançada em 1827, com José Apolinário, José Francisco Sigaud e Francisco Walderato, com o discurso moralizante, com o objetivo de ressaltar os objetivos do poder público e sua responsabilidade junto aos cidadãos (JORGE, 2000). Em outras publicações, tais como A Liga Americana, 7 de Abril, O Homem e a América, Iris e O Verdadeiro Liberal, novamente fez uso da sátira, uma estratégia que atraía o público, para as críticas ao poder vigente e os equívocos na administração pública. Em 1830, em São Luís, voltou a colaborar com jornais, em parceria com Sotero dos Reis, quando publicou o Constitucional, que posteriormente foi substituído pelo jornal Maranhense. Neles questionava as ideias que diminuíam o povo brasileiro, os preconceitos contra sua gente e combatia à ideia da Metrópole, a guiar os passos da ex-colônia no continente americano. A reeleição para Assembleia Legislativa do Império foi obtida ainda em 1830, com mandato de quatro anos. Odorico Mendes teve expressiva participação em episódios relevantes, tais como a abdicação ao trono de D. Pedro, em abril de 1831, cuja imagem começava a sofrer arranhões (LOPES, 1959). Alguns fatos contribuíram naquele momento para manchar a atuação do dirigente do Império, como o ataque e o assassinato de jornalistas no episódio conhecido como “Noite das Garrafadas”. Nas tribunas da Assembleia e nos jornais, Odorico Mendes contestou as arbitrariedades e a violência, o que contribuiu para queda do governo, embora tenha recoberto seus discursos em tom moderado, pedindo o apaziguamento das relações entre brasileiros e portugueses. Com a queda do imperador, Odorico Mendes sofreu um revés político e foi detratado pelos aliados e pelos inimigos políticos na nova cena. Contestavam o tom conciliador do jornalista em um momento no qual os ânimos políticos se acirravam frente aos fatos, quando então a defesa de uma união nacional não caberia por conta da pressão para que os parlamentares adotassem uma postura em relação ao imperador, a favor ou contra as suas decisões. Os reflexos dessa nova ordem política

90

Desafios da pesquisa em jornalismo

envolveram a vida parlamentar de Odorico Mendes, que em 1833 não conseguiu eleger-se para a Assembleia Legislativa. A derrota nas urnas no Maranhão o fez desiludir-se com a política, apesar da tentativa, em 1844, de representar Minas Gerais no Parlamento. O editor de O Argos da Lei decidiu então abandonar a trajetória jornalística e a vida pública, retomou o antigo desejo de dedicar-se às letras. O ofício foi abraçado em 1847, quando decidiu morar em Paris, onde se destacou na área literária ao traduzir as obras clássicas de Homero (LOPES, 1959). Em território europeu faleceu em agosto de 1864, na Inglaterra, sem realizar o desejo de retornar ao Maranhão. Odorico Mendes construiu suas práticas jornalísticas em um momento de transformações, de transição política e da implantação de novos núcleos de poder. Em uma fase na qual o jornalismo e a atuação do jornalista se confundiam intensamente com os ideários particulares ou partidários, cada linha impressa prestava-se a uma tese sobre a atualidade de então. Dessa forma, o editor de O Argos da Lei teceu do seu lugar de fala as representações sobre o mundo que o cercava, tencionou contribuir ora para acomodações políticas, ora para o apaziguamentos ou enfrentamentos, tendo como arenas a política e o jornalismo. Através das suas falas, podemos depreender que o cronista entendia que esses lócus poderiam se constituir em espaços de poder, de discursos e de germes de mudanças a alcançarem a realidade na qual estava imerso.

Referências BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa (Brasil – 1800-1900). Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas: Unicamp, 1997. CALDEIRA, José de Ribamar Chaves. O Maranhão na literatura dos viajantes do século XX. São Luís: Edições AML/Sioge, 2003. FRIAS, J.M.C. Memória sobre a tipografia maranhense. São Paulo: Siciliano, 2001.

Sob os ventos da independência

91

GALVES, Marcelo Cheche; COSTA, Yuri. Maranhão oitocentista. São Luís: Editora Uema, 2009. GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide: para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Editora Tchê, 1987. JORGE, Sebastião. Política movida a paixão: o jornalismo polêmico de Odorico Mendes. São Luís: Edufma, 2000. __________.A linguagem dos pasquins. São Luís: Lithograf. 1998. LOPES, Antonio. História da Imprensa no Maranhão (1821-1825). Rio de Janeiro: DASP, 1959. MARQUES DE MELO, José. História social da imprensa. São Paulo: Editora Edipucrs, 2003. MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro de. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: DP & A, 2003. PINTO, Milton José. Comunicação e discurso: introdução à análise do discurso. São Paulo: Hackers Editores, 1999. ROMANCINI, Richard; LAGO, Claudia. História do Jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular, 2007. SERRA, Joaquim. Sessenta anos de Jornalismo: a imprensa no Maranhão (1820-1880). São Paulo: Siciliano, 2001.

92

Desafios da pesquisa em jornalismo

93

João Francisco Lisboa: o jornalismo no Maranhão do século XIX e sua identificação com a crônica política

Seane Alves Melo Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

Joanita Mota de Ataide (orientadora) Doutora e Pós-doutora em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP), Professora Associada da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

1. Introdução Este artigo é parte de uma pesquisa maior apresentada, em julho de 2011, como trabalho de conclusão do curso de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, da Universidade Federal do Maranhão, e intitulada “Crônicas de uma guerra: o jornalismo de João Francisco Lisboa na Crônica Maranhense”. Neste artigo, são focadas, principalmente, as características apresentadas por Teixeira (2002) para a crônica política como um gênero específico de crônica. Nosso objetivo é demonstrar como, na primeira metade do século XIX, a vinculação dos jornalistas à política era mais intensa que a proximidade com a literatura propriamente dita. Apesar de não se afastar das influências literárias, que eram as referências de escrita da época, o jornalista maranhense João Lisboa vive em um momento em que a maioria dos intelectuais e homens das letras estava preocupada com os direcionamentos políticos do país logo após a Independência e durante a Regência.

94

Desafios da pesquisa em jornalismo

As questões que movem o nosso artigo e que também estão presentes na monografia são: Como era praticado o jornalismo antes da profissionalização? Como os fatos eram noticiados? Percebendo uma forte interseção, no Jornalismo do século XIX, entre política e literatura e um hibridismo semelhante, na crônica, entre o relato histórico e poético, resolvemos analisar se seria possível identificar as matérias de João Lisboa no jornal Crônica Maranhense, publicado de 1838 a 1841, como crônicas e, mais especificamente, como crônicas políticas.

2. Prática jornalística no século XIX: entre a política e a literatura Mesmo antes de ser considerado uma prática profissional e um mercado, o Jornalismo não deixava de ser uma demanda da sociedade que se modernizava. A propósito frisou o presidente dos EUA, Thomas Jefferson, em discurso: “se me fôsse dado decidir se deveríamos ter um govêrno sem ter jornais ou jornais sem govêrno, eu não hesitaria um momento sequer em preferir esta última tese” (JEFFERSON apud AMARAL, 1978, p. 26). No entanto, a atividade jornalística que foi praticada até o século XIX ficava, por vezes, distante das características definidas por Beltrão (1992) como próprias do Jornalismo (atualidade, variedade, interpretação, periodicidade, popularidade e promoção do bem comum), apesar de as condições para a sua prática remontarem ao século XVIII. Em parte devido à abertura dos limites do “campo” no período anterior à sua profissionalização1, o Jornalismo sofreu forte influência dos planos político e literário2, que se refletiu em gêneros “híbridos” como a crônica, o folhetim e os panfletos. 1. Definimos “profissionalização” como a determinação de atividades e atributos específicos para a prática jornalística como campo profissional legitimado socialmente. 2. Utilizamos o termo “plano”, para não cair nas armadilhas conceituais do conceito de “campo”, formulado por Bourdieu (2009). Para ele, campo é o espaço estrutural onde se estabelecem as relações objetivas entre os agentes, espaço este que deve ter certa autonomia e uma crença (illusio) própria. No caso dos

João Francisco Lisboa: o jornalismo no Maranhão do século XIX

95

Alguns autores, como Petrarca (2007), mais diretamente, e Arnt (2001) operam uma divisão no Jornalismo praticado no século XIX, que aqui chamaremos de “fases”. Na primeira fase, que abrange a primeira metade do século em questão, os jornais tinham uma forte conotação política, devido ao momento de efervescência pelo qual o Brasil passava. A imprensa garantiu a divulgação dos ideais pró-independência e foi palco das discussões e disputas sobre o novo regime que deveria ser adotado. Na segunda, correspondente à segunda metade do século XIX, a literatura passou a ter mais espaço, em gêneros específicos, nos jornais. É o caso da crônica de costumes e, especialmente, dos folhetins e contos. Neste artigo, porém, nos deteremos somente na primeira fase, pelo fato de ter sido menos explorada na bibliografia e por ser o período em que João Lisboa atuou. Essa época em nosso país, segundo Arnt (2001), coincide com o momento de menor controle da imprensa pela Coroa, depois do I Reinado. Após a Independência, em 1822, as facções de comerciantes portugueses e de brasileiros iniciaram uma série de disputas políticas pelo poder nas províncias. Isso explica a prática de um jornalismo profundamente identificado com as questões políticas e com as facções e partidos então existentes. Mesmo em um momento de efervescência política, os escritores possuíam papel de relevância, escrevendo para as folhas, estas, geralmente de duração efêmera, refletindo e criticando as práticas políticas e os costumes de uma sociedade baseada no escravismo e no latifúndio. Petrarca ressalta que os jornais eram fundados e redigidos por pessoas que desempenhavam funções públicas e também “por escritores, padres, ex-militares, médicos, personagens políticos e revolucionários vinculados

campos político e literário, entendemos como os campos onde se relacionam os agentes que acumularam os “capitais” (cultural, político, econômico, etc.) valorizados em cada um desses campos. No século XIX, os campos não estavam plenamente constituídos, ou seja, não possuíam autonomia em relação ao campo do poder (no caso do campo literário), assim como o campo jornalístico. Por isso, observamos que este foi um momento em que os diferentes capitais foram postos em jogo na busca de uma posição dominante, seja como literato seja político.

96

Desafios da pesquisa em jornalismo

aos movimentos sociais e políticos do momento” (PETRARCA, 2007, p. 62). Como regra geral, os agentes que ainda não se vinculavam diretamente à atividade política se envolviam em movimentos ou partidos. O Jornalismo era percebido como uma atividade militante, que tinha por objetivo acusar, defender ou criticar governos e causas, apoiar partidos, instruir e orientar o povo; enfim, colaborar para a definição dos rumos da política brasileira. Essa forma de atuação “se perpetua por toda a geração de 1870, para a qual o trabalho intelectual [...] é inseparável do exercício político, tornando impossível a distinção entre “intelectuais”, “políticos” e “jornalistas”” (PETRARCA, 2007, p. 63). Os agentes que trabalhavam na imprensa eram conhecidos como “publicistas”, termo empregado em diferentes países. Balzac, na sua Monografia de Imprensa Parisiense, critica o novo sentido que a palavra havia assumido, pois antes era a denominação de grandes escritores, mas, em sua época, “tornou-se o [nome] de todos os escrevinhadores que fazem política” (BALZAC, 1999, p. 21). Assim como o próprio Balzac, que atuou na imprensa parisiense, a fluência do verbo, por meio da ironia e da sátira, era frequentemente acionada por esses jornalistas em suas batalhas verbais. O modelo do publicista combativo e irônico também pode ser encontrado no Brasil e no Maranhão. A propósito, Sebastião Jorge constata: “a produção satírica circulava entre os habitantes de São Luís em folhas manuscritas. Foi desse modo que surgiram as primeiras manifestações do jornalismo, nesta província” (JORGE, 2008, p. 20). Essa linha foi preponderante pelo menos até a metade do século XIX, quando os jornais, além das crônicas políticas, passaram a explorar outros gêneros literários.

3. João Francisco Lisboa e o Crônica Maranhense No rol de jornalistas maranhenses ilustres do século XIX, João Francisco Lisboa é presença garantida e obrigatória. Desde 1832, quando iniciou sua carreira no Jornalismo, com o hebdomadário O Brasileiro, o publicista se destacou na imprensa local pela crítica ácida aos costumes

João Francisco Lisboa: o jornalismo no Maranhão do século XIX

97

da época e pela defesa apaixonada dos ideais liberais3, em grande parte de sua obra. Segundo perfil biobibliográfico traçado por Augusto Vistorino Alves Sacramento Blacke, no Diccionario Bibliographico Brazileiro, em 1895 (BLACKE apud SOARES, 2008, p.193), João Lisboa era “filho de João Francisco de Mello Lisboa e dona Gertrude Rita Gonsalves Nina, nasceu em Itapirucú-mirim, província do Maranhão, a 22 de maio4 de 1812, e falleceu em Lisboa a 26 de abril de 1863”. Aos quinze anos, Lisboa se mudou para São Luís, onde começou a trabalhar como caixeiro, para, dois anos depois, abandonar a profissão e se dedicar às letras, ao Jornalismo e à política. João Lisboa fez seus primeiros estudos em São Luís, frequentou algumas aulas de literatura, algumas aulas de latim do mestre Sotero dos Reis e completou os estudos de maneira autodidática. De acordo com os relatos de Janotti (1977), biógrafa do maranhense, a aparição de Lisboa na vida pública se deu em momento de efervescência política, por volta de 1831. D. Pedro I acabara de abdicar, e as disputas se acirravam entre “caramurus” ou restauradores e brasileiros, que por sua vez temiam que os portugueses tentassem restaurar o poder do Imperador. No Maranhão, João Lisboa encontrava-se entre os que assinaram as reivindicações de 13 de setembro de 1831 (motivo pelo qual o movimento ficou conhecido como Setembrada), exigindo do presidente da província o afastamento dos cargos públicos e o exílio de portugueses e brasileiros simpáticos ao retorno do rei.

3. Segundo José Murilo de Carvalho (2007), até 1864 “as divergências entre liberais e conservadores se prenderam quase que totalmente aos conflitos regenciais entre as tendências de centralização e descentralização do poder [...]. Os liberais eram por maior autonomia provincial, pela Justiça eletiva, pela separação da polícia e da Justiça, pela redução das atribuições do poder moderador” (CARVALHO, 2007, p. 206). 4. Para Antonio Henriques Leal (1901 apud JANOTTI, 1977, p. 21), autor de “Notícias acerca da Vida e Obra de João Francisco Lisboa”, Lisboa teria nascido em 22 de março. (Informação contida em: LISBOA, J. F. Obras Completas de João Francisco Lisboa. Lisboa, João Francisco. 2.ed. Lisboa: Tip. Mattos Moreira & Pinheiro, v. I, 1901. p. 6).

98

Desafios da pesquisa em jornalismo

O jornal O Brasileiro tinha como objetivo criticar o governo conservador, mas teve duração efêmera. No mesmo ano, 1832, o maranhense decidiu continuar o trabalho de José Cândido de Moraes e Silva, que acabara de falecer, no Farol Maranhense e reviveu a publicação até 29 de outubro de 1833, quando decidiu se retirar do jornalismo pela primeira vez. No Dicionário do Brasil Imperial, de 2002 (VAINFAS apud SOARES, 2008), consta que Francisco Lisboa foi redator do Farol Maranhense, assim como do Eco do Norte, no qual era porta-voz do partido liberal maranhense. Além de ter sido eleito para duas legislaturas, o maranhense também ficou famoso pelo seu trabalho como publicista no Crônica Maranhense. Assim é assinalado no trecho: Redator dos jornais Farol Maranhense (1832-33) e Eco do Norte (1834-36), atuava no último como porta-voz do Partido Liberal. Elegeu-se deputado provincial por duas legislaturas, sobressaindose como orador e estudioso dos problemas da instrução pública. Atingiu o apogeu da carreira de jornalista, à frente da Crônica Maranhense (1838-40) [sic], quando a Balaiada agitava o cenário público regional (VAINFAS apud SOARES, 2008, p. 215-216) [Grifos do autor].

Definido como a folha política mais eloquente da Província, por Sotero do Reis, o jornal Crônica Maranhense começou a circular em dois de janeiro de 18385, sendo impresso na Tipografia de Ignácio José Ferreira, na Rua da Paz, nº 34, e interrompida a sua publicação em 24 de março de 1841. De acordo com Soares (2008), é grande a variedade de seções que perpassam o jornal, uma novidade para a época: “Era novidade a multiplicidade de assuntos apresentados como notícias, correspondências, avisos, variedades, ordens do dia, lista de preços, leis e decretos, reflexões, extratos de jornais, relatórios oficiais, etc.” (SOARES, 2008, p. 260). Segundo relata o mesmo autor, as matérias eram quase sempre divididas 5. Apesar de Sebastião Jorge (2008, p. 134) defender que Lisboa começou a publicá-la em 20 de janeiro, outros autores, como Soares e Janotti, são uníssonos em apontar a data de 02/01/1838, fato que se comprova na compilação de artigos da Crônica feita pelo Museu Histórico Nacional, datada de 1969.

João Francisco Lisboa: o jornalismo no Maranhão do século XIX

99

em quatro seções: Corte, com recortes de jornais do Rio de Janeiro, ou notícias de outras províncias, além de leis e relatórios parlamentares; Maranhão, notícias e documentos de interesse da província, como, por exemplo, “ordens do dia” da presidência; Crônica Maranhense6, coluna do redator, onde eram noticiados e comentados assuntos políticos do Maranhão; e Anúncios, espaço reduzido, direcionado para informes diversos. As notícias e outras informações seguiam geralmente essa sequência, mas, às vezes, mudavam completamente de uma edição a outra.

4. Crônica Política Apesar de se referirem a assuntos da atualidade, característica-chave da crônica e do jornalismo, as matérias de João Lisboa, especialmente no Crônica Maranhense, não haviam sido estudadas em suas características editoriais, estilísticas e estruturais. Alguns autores, como Soares (2008), chegaram a negar o fato de se tratar de crônicas, apesar do que poderia ser deduzido pelo nome do jornal. Sobre isso, Gargurevich (1982 apud MARQUES DE MELO, 1994) explica que os próprios jornalistas do século XIX chamavam seus escritos de crônicas, mas, ao contrário do historiador, ele defende que esta pode ter sido a primeira forma de jornalismo. Excetuando-se algumas definições mais gerais de crônica, como a de Beltrão (1980)7, muitos autores parecem definir e classificar uma crônica que se desenvolveu a partir da segunda metade do século XIX, com os jornalistas-escritores, dos quais José de Alencar é exemplar. Assim, a definição que tem predominado nos estudos é a de Antônio Cândido (1992) e Marques de Melo (1994), segundo os quais a crônica é um relato poético do real, produzido por um cronista que fala de coisas miúdas

6. Usamos duas formas para nos referirmos ao termo Crônica Maranhense. Quando precedido de “o” e em itálico, nos referimos ao jornal. Quando grafado normalmente e precedido de “a”, nos referimos à coluna ou seção. 7. Segundo Beltrão (1980), a crônica “é a forma de expressão do jornalista/escritor para transmitir ao leitor seu juízo sobre fatos, idéias e estados psicológicos pessoais e coletivos” (BELTRÃO, 1980, p. 66).

100

Desafios da pesquisa em jornalismo

quando, no entanto, realiza uma verdadeira crítica social. Teixeira (2002) vai observar essa limitação ao tentar classificar os textos de Machado de Assis, Carlos Heitor Cony e Luís Fernando Veríssimo. Dessa forma, ao estudar e se apropriar das características da crônica apresentadas por outros autores, Teixeira assim define a crônica política: além do tratamento direto de assuntos políticos, ela se caracteriza pelo uso da ironia (um dos recursos estilísticos fundamentais desse tipo de crônica) e do humor, para a construção da crítica. A categoria crônica política abrange, assim, aqueles textos onde o tema principal é a política nacional/internacional utilizando, para isto, a ironia e outros recursos retóricos ligados ao humor com o firme propósito de tecer comentários críticos a determinada conjuntura e/ou governo, tomando como ponto-de-partida acontecimentos previamente noticiados pela imprensa (TEIXEIRA, 2002, p.9).

A autora também acrescenta outras características, as quais deduz da comparação que fez de crônicas dos três autores acima citados. São elas: a referência a acontecimentos noticiados pela imprensa (relação com o cotidiano), a presença de um posicionamento crítico do autor para análise dos fatos e o diálogo virtual com o leitor, que, segundo Moisés (apud TEIXEIRA, 2002), é como uma espécie de conversa imaginária com o leitor. Munidos dessas características e da estrutura da crônica proposta por Beltrão (1980), que a divide em introdução, argumentação e conclusão8, extraímos uma amostra bimestral dos anos de 1839 e 1840 para a composição do nosso corpus de análise. Utilizamos como critério

8. Na introdução, o jornalista desenvolve o aspecto noticioso da crônica, ao abordar a notícia ou fato da atualidade sobre o qual exporá o seu juízo. Geralmente, a apresentação é sintética, respondendo algumas das perguntas do lead (quem? o quê? onde? quando?), sendo este trecho o de criação mais restrita do autor. Ainda na introdução, o autor deve apresentar a premissa maior, que, segundo Beltrão (1980), é o predicado ou atributo da conclusão. Logo em seguida vem a argumentação, onde o autor deve alinhar os raciocínios, partindo da premissa inicial ou maior para a premissa menor, que é o sujeito da sua conclusão. Na conclusão, o autor retoma seu juízo, inferindo-o das duas premissas anteriores (a maior e a menor). Com isso, ao fim, o leitor tem conhecimento da ideia, o que poderá levá-lo a aceitar o rumo indicado pelo jornalista.

João Francisco Lisboa: o jornalismo no Maranhão do século XIX

101

de análise o fato de as matérias se referirem à Balaiada, revolta amplamente noticiada no jornal, do final de 1838 ao início de 1840. Entretanto, só obtivemos acesso a matérias de 1839 e 1840, por meio da coletânea publicada pelo Museu Histórico Nacional, em 1969. O corpus foi definido de acordo com o sistema registrado nas seguintes tabelas:

OBS.: Os zeros preenchidos com um traço indicam que dispomos de exemplar/ cópia das edições correspondentes. Já os zeros vazios indicam que as edições nas datas às quais eles correspondem não foram encontradas na obra pesquisada.

Assim, obtivemos seis matérias de 1839 e nenhuma de 1840. A análise do material foi realizada observando-se se aquelas poderiam ser identificadas com a estrutura da crônica proposta por Beltrão (1980) e com as características da crônica política apresentadas por Teixeira (2002).

5. Considerações finais Mesmo situando-se como escrito dedicado ao seu tempo, os relatos de João Lisboa e dos escritores que se dedicaram à imprensa no início do século XIX não são suficientemente apreendidos pelas duas correntes que situam a crônica entre a história e a literatura, mesmo que ambas tenham tido influência sobre essa escrita. Com o respaldo de diferentes conceitos de crônica, visamos a comprovar que a crônica é um gênero antigo, que durante muito tempo esteve mais vinculado à exposição e argumentação que ao relato poético e ao entretenimento.

102

Desafios da pesquisa em jornalismo

A referência a documentos e notícias publicados no jornal faz com que a coluna Crônica Maranhense seja o local onde o autor exerce a sua interpretação, no sentido dado ao termo por Beltrão (1992), e busca dar sentido aos fatos. Duas das características editoriais principais da crônica são observadas aqui: referência à atualidade e valoração dos fatos ou a subjetividade do autor. Essa última característica é responsável por cumprir a função de orientação (BELTRÃO, 1980) exercida pelo Jornalismo. Observamos que as matérias analisadas cumpriram o objetivo que Beltrão atribui à crônica: “interpretar um tema, utilizando argumentos, ora lógicos, ora sugestivos e persuasivos, em um conjunto ordenado para levar o leitor à aceitação do juízo último” (BELTRÃO, 1980, p. 69). Em termos da estilística textual, as figuras de linguagem foram amplamente encontradas no texto do jornalista maranhense, com destaque para o uso da ironia, característico do estilo de João Lisboa e, também, recorrente na escrita dos “cronistas políticos” analisados por Teixeira (2002). Observamos também, nas matérias do jornalista, a maioria das características apresentadas por Teixeira (2002) referentes ao conteúdo e à estilística – tratamento direto de assuntos políticos, uso do humor, referência a acontecimentos anteriormente noticiados pela imprensa, presença de um posicionamento crítico do autor para análise dos fatos e diálogo virtual com o leitor – que definem a crônica política, excetuando-se o uso do humor. A constatação é interessante por apontar uma permanência nas características de um gênero específico de crônica: a crônica política. Somando-se aos autores já estudados por Teixeira (Machado de Assis, Carlos Heitor Cony e Luís Fernando Veríssimo), os escritos de João Lisboa, situados na primeira metade do século XIX, demonstrariam uma permanência dessas características do início do século supracitado ao século XX. O trabalho é pertinente por incluir nessas análises um autor que atuou fora dos espaços centrais de análise (Sul e Sudeste do país), mas igualmente relevante para a história do jornalismo no Brasil.

João Francisco Lisboa: o jornalismo no Maranhão do século XIX

103

Referências 1. Jornais CRÔNICA MARANHENSE. (Artigos de João Francisco Lisboa). Dep. de Imprensa do Museu Histórico Nacional. Estudos e Documentos III, 1ª e 2ª partes, 1969.

2. Livros e artigos ARNT, Héris. A influência da literatura no jornalismo – o folhetim e a crônica. Rio de Janeiro: E-papers, 2001. BALZAC, Honoré de. Os jornalistas. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. BELTRÃO, Luiz. Jornalismo Opinativo. Porto Alegre: Sulina-Ari, 1980. _________. Iniciação à filosofia do jornalismo. São Paulo: Edusp, 1992. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. CÂNDIDO, Antônio, et al. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas, SP: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa, 1992. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro das sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. CURRAN, James; SEATON, Jean. Power without responsibility: the press and broadcasting in Britain. London; New York: Methuen, 1986. JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. João Francisco Lisboa: jornalista e historiador. São Paulo: Ática, 1977. JORGE, Sebastião. A imprensa do Maranhão no século XIX: 1821-1900. São Luís: Lithograf, 2008. MARQUES DE MELO, José. A crônica como gênero jornalístico. In: Teoria do Jornalismo: identidades brasileiras. São Paulo: Paulus, 2006 MARQUES DE MELO, José. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópo-

104

Desafios da pesquisa em jornalismo

lis: Vozes, 1994. PETRARCA, F. R. O Jornalismo como profissão: recursos sociais, titulação acadêmica e inserção profissional dos jornalistas no Rio Grande do Sul. Tese (Doutorado em Sociologia). Programa de Pós-Graduação em Sociologia, UFRGS, Porto Alegre, 2007. 308p. ROCHA, Hildon. O liberal e o moralista. In: LISBOA, João Francisco. Crônica política do Império. Rio de Janeiro: F. Alves; Brasília: INL, 1984. SOARES, Flávio José Silva. No avesso da forma: apontamentos para uma genealogia da Província do Maranhão. Flávio José Silva Soares – Recife: O autor, 2008. TEIXEIRA, Tattiana. A crônica política no Brasil. 2002. Disponível em: http://www.bocc.uff.br/pag/teixeira-tattiana-cronica-politica-Brasil. pdf. Visitado em: 22 de abril de 2010.

105

moderna tradição nas páginas impressas: itinerário do papel social do jornal soteropolitano no século XX a partir de coberturas eleitorais

Ana Spannenberg Jornalista, mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas (UFBA/2004), doutora em Ciências Sociais (UFBA/2009) e professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected]

1. A modernização nos jornais O jornalismo praticado hodiernamente na maior parte dos países ocidentais e, entre eles, no Brasil, foi forjado no século XIX, a partir de um contexto – especialmente, estadunidense, mas também de alguns países europeus, como a Inglaterra – no qual a prática, já consolidada socialmente, passou a ser percebida como forma de negócio e, ao mesmo tempo, como função social relevante no novo modo de organização sócio-política que se implantava: a democracia representativa. Seguindo a proposta do pesquisador português Nelson Traquina (2005), podemos afirmar que o processo de modernização1 da atividade jornalística ancorou-se em três vertentes: a expansão, a comercialização e a profissio-

1. Optamos por utilizar o conceito de modernização de acordo com as perspectivas propostas por Anthony Giddens (1991) e Carlota Solé (1998), que o entendem de modo processual, evitando a ideia de narrativa histórica única e linear, tal como ocorre nas concepções que vinculam modernização e progresso.

106

Desafios da pesquisa em jornalismo

nalização2. O autor ressalta, porém, que a grande mudança sofrida pelos periódicos é “[...] a emergência de um novo paradigma – informação, não propaganda – que é partilhado entre os membros da sociedade e os jornalistas”, pois a partir dele “os jornais oferecem um novo produto – as notícias baseadas nos ‘fatos’ e não nas ‘opiniões’” (TRAQUINA, 2005, p.34). É o próprio Traquina quem alerta para a não existência de uniformidade e concomitância de tais processos em todos os lugares. No Brasil, onde o jornalismo chegou oficialmente em 1808, transcorridos 276 anos do início da ocupação do território, o ritmo foi bem diferente3. O principal historiador da imprensa brasileira, Nelson Werneck Sodré, situa o início da modernização da atividade no período do Segundo Reinado (1840-1889), estendendo-se até as primeiras décadas do século XX, coincidindo com os processos de industrialização, urbanização e implantação de formas econômicas capitalistas, especialmente nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo. A historiografia clássica não amplia seu olhar para as demais regiões do país, tampouco se preocupa em apresentá-lo como singular ao Sudeste, tratando suas conclusões como características do jornalismo “brasileiro”, o que reforça a necessidade de esgarçar tal perspectiva. As diferenças regionais demonstram que, na verdade, a modernização do jornalismo brasileiro se deu a partir de diversos processos não lineares que, consequentemente, produziram outros tipos de jornalismo e abriram lacunas a serem investigadas4. Longe de pretender esgotar a questão, o intuito do presente artigo é discutir brevemente algumas especificidades do processo de modernização nos jornais impressos no que tange ao papel social desempenha2. Traquina em momento algum utiliza o termo “modernização” para caracterizar tais transformações (prefere usar “novo jornalismo” para demarcar oposição ao antigo), porém consideramos que o conjunto de fenômenos descritos identifica o processo tal como aqui o compreendemos. 3. Sobre isso ver: MELO, 2003, p.71. 4. Importante destacar que estudos mais recentes já têm se debruçado sobre a análise de tal processo levando em conta a sua não linearidade. Entre eles, destacam-se os trabalhos de Marialva Barbosa (2007), Ana Luiza Martins e Tania Regina de Luca (2006, 2008) e Lavina Madeira Ribeiro (2004) que, porém, concentram suas pesquisas prioritariamente no eixo Rio-São Paulo.

Moderna tradição nas páginas impressas

107

do por esses ao longo do século XX em Salvador/BA5. Para tanto, buscamos aporte teórico-metodológico na Sociologia Figuracional de Norbert Elias, que compreende a sociedade como uma configuração na qual cada um dos elementos interfere e sofre interferência de todos os demais, numa espécie de “teia de interdependências” (ELIAS, 1999). Para focar a análise, foram escolhidas as coberturas eleitorais dos pleitos para o governo estadual da Bahia nos anos de 1919, 1954 e 1990 por serem períodos de regime formalmente democrático, nos quais as eleições ocorreram por voto direto, pois entendemos que nesses momentos, geralmente, há explicitação do posicionamento político-ideológico do veículo. O principal veículo analisado foi o jornal A Tarde, diário mais antigo ainda em funcionamento na cidade, considerado importante elemento do processo de modernização do jornalismo soteropolitano e o único atuante nos três pleitos. Contudo, também foram observados outros jornais e entrevistados jornalistas que atuaram nos diferentes períodos. A proposta do presente texto é reconstruir brevemente as configurações sociais de cada um dos três momentos a fim de demonstrar que o jornal impresso de Salvador, ao longo do século XX, assumiu uma postura de tribuna política e, mesmo sofrendo modificações formais e estruturais características da modernização da atividade e conforme também se transformava seu leitorado, a cobertura eleitoral, com raras exceções, funcionou como espaço de resistência das antigas tradições da política baiana. O texto está estruturado em duas partes, além desse tópico introdutório. No segundo item, serão descritas, em linhas gerais, as coberturas das três campanhas analisadas, com ênfase nos posicionamentos dos veículos e, por fim, no tópico “Permanências” será apresentada uma breve análise, na busca de tentar responder à questão proposta.

5. O artigo apresenta alguns dos resultados obtidos na tese “Entre mudanças e permanências – Itinerário do papel social dos jornais diários soteropolitanos no Século XX a partir da análise das coberturas eleitorais do jornal A Tarde em 1919, 1954 e 1990”, defendida no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia, em junho de 2009.

108

Desafios da pesquisa em jornalismo

2. Jornalismo em campanha Em 1912 foi lançado o jornal A Tarde, considerado um marco no processo de modernização do jornalismo baiano. Conforme o jornalista Aloysio de Carvalho Filho, o periódico pode ser considerado “[...] a estréia, na Bahia, da imprensa moderna, pelo modelo de A Noite, que Irineu Marinho criara com êxito, na capital do país” (2005, p.67). O jornal chegou propondo mudanças, transformando a capa em espaço privilegiado destinado aos conteúdos em destaque, dando lugar para a atuação feminina e introduzindo uma feição mais comercial, através dos classificados pagos. A modernização do discurso e da prática, contudo, convivia ainda com traços da tradicional cultura baiana, representada pelo seu fundador, Ernesto Simões Filho, neto de coronéis sertanejos que protagonizaram uma das mais sangrentas guerras entre famílias do século XIX (CALMON, 1986, p.15-16) e que, ao ser chamado de “jornalista de balcão” por cobrar pela publicação de informações de interesses pessoais e comerciais, não titubeou em responder à bala ao seu agressor (MORAES, 1997, p.87). Desde os primeiros anos, o periódico colocou-se como veículo de oposição ao então governador José Joaquim Seabra e seus partidários6. Como a maioria dos jornais do período, o A Tarde declarava, em seu editorial de fundação, ser um órgão “imparcial”, porém alertava que a folha “[...] não será contudo indiferente aos embates de direito; neutra, não se esquivará das controvérsias partidárias quando interessarem ao bem-estar coletivo [...]” (CALMON, 1986, p. 63.67). Mas, como os demais, o jornal trazia muita opinião e pouca informação, podendo ser bem classificado como órgão partidário, característica acentuada no período de campanha eleitoral, com explicitação de apoio a determinados candidatos e hostilidade aberta contra os oponentes. Foi buscando equilibrar-se na tênue linha que dividia o tradicional e o novo, que o A Tarde lançou-se na campanha de 1919 pela sucessão governamental, como principal opositora à candidatura de J.J. Seabra. Aquela que foi considerada a eleição mais acirrada da República Velha 6. Simões Filho apoiou Seabra na tomada do poder, no início de 1912, mas se afastou do governador ainda no mesmo ano. O principal biógrafo do jornalista especula que tal mudança se justifica, pois Simões desejava o cargo do secretário geral, para o qual foi preterido por Seabra (CALMON, 1986, p.73).

Moderna tradição nas páginas impressas

109

(cf. SAMPAIO, 1998, p.148) não permitiu a periódico algum manter-se imparcial na disputa. O A Tarde, porém, foi mais longe. Sem contentar-se apenas com a divulgação e opinião sobre os fatos que marcavam a campanha, o jornal lançou a candidatura de Simões Filho à interventoria municipal da capital, cargo que, à época, não permitia votação direta, dependendo da indicação do governador e, com ela, uma série de editoriais que tentaram convencer os eleitores da legalidade do pleito, como “Pode ser feita a eleição” (24 out. 1919) e “Salvemos o município!” (7 nov. 1919). Após a derrota no pleito municipal, o jornal direcionou toda sua atenção à disputa estadual. Porém, ao vislumbrar a possibilidade concreta de outra derrota, passou a incentivar os coronéis do Sertão Baiano, há tempos descontentes com o governo do seabrista Antônio Moniz, a armarem seus exércitos e atacarem Salvador, episódio que ficou conhecido como Revolta Sertaneja. O incentivo pode ser percebido em editoriais como “O dever do Sertão”: “[...] Ah o dever do sertão é levantar-se! Que elle meça o horror de sua escravidão e, erguido como um só homem, leve de vencida tudo quanto sirva de obstaculo ao advento de sua liberdade.” (O DEVER, 18 dez. 1919) O objetivo da oposição liderada por Simões Filho era mobilizar uma intervenção federal, contando que ela destituiria o seabrismo do poder, como havia feito em 1912, com Aurélio Viana, quando o Governo Federal interveio, bombardeando Salvador e garantindo a posse de Seabra. Os principais instrumentos para isso eram os jornais, especialmente o A Tarde, que a cada edição relatavam as vitórias das tropas revoltosas, que ameaçavam invadir a capital: “É a revolução!” (21 fev. 1920), “Viva o sertão bahiano!” (25 fev. 1920), “O banimento da oligarchia Seabra” (2 mar. 1920) e “A reacção libertadora do Nordeste” (5 mar. 1920). A intervenção aconteceu, porém, contra os revoltosos, contidos pelo Exército, e Seabra permaneceu no governo (TAVARES, 1987, p.172). Transcorridos mais de 30 anos, em 1954, não se observam grandes modificações na cobertura eleitoral. Salvador cresceu e se encaminhou lentamente para um processo de industrialização. Superado o governo ditatorial de Getúlio Vargas, ao qual as principais correntes políticas baianas fizeram oposição, os representantes locais começaram, nova-

110

Desafios da pesquisa em jornalismo

mente, a ganhar projeção nacional e o Estado voltou a ocupar lugar de destaque no mapa econômico brasileiro (ARAGÃO, 1999). A descoberta de petróleo no Recôncavo baiano foi a grande propulsora das mudanças, pois atraiu para a Bahia as atenções de todo o País e, na década seguinte, alimentou o desenvolvimento industrial de toda a Região Metropolitana de Salvador (cf. RISÉRIO, 2004). Culturalmente, a capital modificou-se, com a implantação da Universidade da Bahia que, além de atrair investimento em educação, trouxe para a cidade uma gama de profissionais de outros lugares, do Brasil e de outras partes do mundo, que começaram a refletir de modo diferenciado sobre a cultura local, sem os vínculos estabelecidos com uma visão tradicional (ARAGÃO, 1999). Sua concepção, contudo, ainda era elitista, afirma Rita Aragão (1999, p.47). Apesar da breve oferta de um curso superior de Jornalismo pela Universidade da Bahia a partir de 1949 (fechado em 1955), a maior parte dos jornalistas do período ainda tinha formação prática na área e diploma superior em carreiras tradicionais, especialmente a de Direito. É certo que, em três décadas, o jornalismo também sofreu modificações, mas essas se concentraram mais na forma. Na década de 1950, as informações eram mais bem distribuídas graficamente, geralmente com seções bem definidas e identificadas por linhas e desenhos; as temáticas eram mais diversificadas, com espaços fixos dedicados à cobertura esportiva e ao público feminino. Porém, a cobertura política permanecia muito semelhante àquela de 1919. A linguagem utilizada também era a mesma, repleta de adjetivações. No A Tarde, por exemplo, sempre que mencionada a “campanha” ou “candidatura” de Pedro Calmon, encampada pelo jornal, eram utilizados os adjetivos “vitoriosa” ou “grandiosa”, já a candidatura do seu opositor, Antônio Balbino, era tratada por “candidatroça” (OS ESCRAVOS, 13 set. 1954). O apoio aos candidatos era explícito, como se pode ver na edição do dia do pleito, 03 de outubro. No Diário de Notícias, a capa era composta unicamente por uma grande foto de Antônio Balbino. Acima dela, apenas uma frase em caixa alta: “PARA GOVERNADOR”; ladeando a foto, o nome do candidato, “BALBINO” e, abaixo da figura, “UM HOMEM DE BEM PARA O BEM DA BAHIA” (3 out. 1954). Já no A Tarde, a edição da

Moderna tradição nas páginas impressas

111

mesma data tinha a página cinco totalmente dedicada às eleições, estampando a frase “A decisão dos destinos da Bahia” e fotos ampliadas de Pedro Calmon e Simões Filho, candidato à vaga de senador. Sobre a primeira, liam-se as palavras “Inteligência Trabalho Honradez” e, abaixo, “Pedro Calmon – Para Governador do Estado” e, sobre a segunda estava escrito “45 anos de luta pela Bahia” e abaixo “Simões Filho – Para Senador federal” (3 out. 1954). A novidade do período ficou por conta do rádio que, implantado três décadas antes, já estava consolidado e com grande público nos anos 1950 (ARAGÃO, MENEZES E SANTOS, 2006, p.24). Com linguagem coloquial, que permitia interlocução aparentemente mais fácil entre comunicador e destinatário, o rádio passou a ser utilizado para veiculação de propaganda política, sem qualquer legislação que regulasse tal prática. Os impressos continuaram atuando como panfletos políticos. Apesar de, já nesse período, ser o jornal mais lido do Estado, o A Tarde não conseguiu eleger seu candidato, derrotado por aquele que tinha o apoio dos meios vinculados à cadeia dos Diários Associados, de Assis Chateaubriand, na Bahia: dois jornais impressos e a rádio mais antiga e de maior público, a Sociedade da Bahia7. O predomínio eleitoral daqueles que detinham o apoio dos principais meios de comunicação, apenas prenunciado em 1954, foi evidenciado nas eleições de 1990. Nesse momento, entraram em cena três novos elementos, decisivos na campanha política. O primeiro deles foi a prevalência da televisão sobre todos os demais meios como veículo de comunicação com grandes audiências. Implantada na Bahia, em 1960, a televisão ampliou seu campo de atuação, a partir das melhorias técnicas e da redução do custo dos aparelhos receptores, como resultado da própria política do governo militar (1964-1985). Em 1988, eram 10 emissoras de televisão (IBGE, 2009), sendo quatro na capital: a precursora Itapoan; a TV Aratu, de 1969; a TV Bahia, da família de Antônio Carlos Magalhães, criada em 1985; e a estatal TVE, também de 1985. A prevalência da televisão pode ser constatada até mesmo nos impressos, nos quais a dispu7. Informações disponíveis em: . Acessado em: 17 jan.2009.

112

Desafios da pesquisa em jornalismo

ta dos espaços de visibilidade eletrônica, através da propaganda eleitoral, monopolizou as manchetes, como no exemplo abaixo, publicado no jornal Tribuna da Bahia: O Tribunal Regional Eleitoral conseguiu transformar, ontem, o horário eleitoral gratuito em um verdadeiro palanque do candidato do PFL a governador, Antônio Carlos Magalhães. Além de estrelar o programa de sua própria coligação, ACM ocupou, exercendo direito de resposta concedido pelo TRE, parte do horário do PMDB/PSDB e praticamente todo o tempo do PDT e do PRN na TV. [...] (TRE TRANSFORMA, 27 set. 1990, p.1)

Uma segunda novidade foi a criação de uma legislação eleitoral que garantiu acesso gratuito e igualitário a todos os candidatos para divulgação de suas plataformas políticas em rádio e televisão, a Lei Nº 4.737, de 15 de julho de 1965 (JOBIM, PORTO, 1996, p.55, vol. III). Criada na década de 1960, o impacto dessa legislação, porém, só passou a ser percebido a partir de meados dos anos 1980. Em 1987, nas principais cidades brasileiras, 88% das famílias de classes D e E e 90% das de classe C possuíam aparelho de televisão (cf. MATTOS, 2000, p.236). Em 1989, uma alteração na legislação autorizou também a divulgação de pesquisas prévias, o que se tornou um dos grandes elementos na disputa de 1990. As manchetes de dois dos principais jornais no dia da votação demonstram essa importância. Na Tribuna da Bahia, lia-se “Datafolha indica 2º turno na Bahia” (03 out. 1990), enquanto no Correio da Bahia, o destaque era “Ibope confirma: ACM é eleito governador hoje” (03 out. 1990). Ambos informavam, com base em fontes consideradas “confiáveis”, previsões contrárias para o mesmo fato. A segunda tornou-se verdadeira e Antônio Carlos Magalhães assumiu seu terceiro mandato como governador, pela primeira vez eleito por voto direto. A história política do médico, porém, havia iniciado oficialmente na eleição de 1954 e se consolidado durante a ditadura militar, desenhando o terceiro elemento decisivo de mudança na eleição de 1990: a dominação da política carlista. As relações políticas mantidas por ele explicam, em grande medida, sua ascensão rápida, chegando à prefeitura de Salvador com apenas 40 anos. A manutenção no poder, entretanto, mesmo com o final do regime de exceção, pode ser explicada, dentre

Moderna tradição nas páginas impressas

113

outros fatores, pelo sistema de comunicação montado ainda durante o período militar, bem como pela adaptação à nova realidade “democrática” que o país vivia (RUBIM, 2001). No “novo” cenário, no qual a disputa política ocorria, principalmente no campo eletrônico da mídia, ACM levava vantagem: além de já ser proprietário de uma empresa de comunicação impressa (o jornal Correio da Bahia, fundado em 1978), em 1985, assumiu o cargo de Ministro da Comunicação e montou a maior rede de comunicação do estado, concedendo a seus familiares e correligionários autorização para cinco emissoras de televisão, além de uma emissora de rádio (cf. RUBIM, 2001). Nesse cenário, a campanha para o governo do estado em 1990 foi marcada pelo conflito entre a tradição dos velhos modos de fazer política e a inovação dos novos meios e formas de se comunicar com o público-eleitor. As estratégias de exaltação dos aliados são facilmente encontradas, como no Correio da Bahia, relatando em texto pretensamente informativo o momento da votação de ACM: “Depois de já depositado o seu voto nas urnas, Antônio Carlos voltou a ser cumprimentado, aplaudido, aclamado como vencedor e, dessa vez, não se conteve. Os mais próximos dele percebiam fácil as lágrimas correndo pelo seu rosto. [...]” (NA HORA, 4 out. 1990, p.3). Também foi recorrente a utilização do recurso de difamação dos oponentes. Nas páginas da Tribuna da Bahia, por exemplo, ACM era identificado como “carrapato dos quartéis” (ACM IMITAVA, 11 set. 1990, p.3), “o candidato do ‘rouba mas faz’”, e sua coligação como “forças retrógradas” (ROBERTO E JOACI, 3 set. 1990, p.1). Os impressos dividiram-se em duas tendências de cobertura. Enquanto Correio da Bahia e Tribuna da Bahia fizeram campanha explícita para seus candidatos, A Tarde e Jornal da Bahia assumiram postura mais informativa, usando recursos que visavam a demonstrar uma aparente imparcialidade, com pautas variadas para além das agendas, das diferenças partidárias e dos resultados das pesquisas. Porém, mesmo com a postura explicitamente opinativa adotada pelos jornais em campanha, percebe-se um movimento lento em direção a maior neutralidade, cercando-se de alguns cuidados técnicos, possivelmente por uma maior profissionalização, visto que desde 1962 a Universidade Federal da Bahia

114

Desafios da pesquisa em jornalismo

voltara a oferecer o Curso de Jornalismo. As denúncias mais violentas, por exemplo, geralmente eram feitas por fontes humanas e não pelo próprio jornal, o que se caracterizava pela utilização de aspas.

3. Permanências Em nossa observação dos jornais, buscamos identificar como a função social do jornal modificou-se ao longo de nove décadas do século XX, a partir dos processos de modernização dos impressos e de mudanças na própria configuração social soteropolitana. Embora tenhamos consciência de que as respostas a tais dúvidas exijam esforço ainda maior de pesquisa e análise, acreditamos ter levantado pistas relevantes que nos permitem esboçar algumas respostas. Elas se direcionam mais no sentido de “permanências” do que de “mudanças”, visto que tais alterações foram parciais e negociadas, colocando sempre em confronto as tradições que enraízam as práticas sociais e as inovações que tentam transformá-las. Acreditamos que isso acontece porque, ao analisar suas instâncias de produção e recepção, percebemos que os jornais impressos soteropolitanos, ao longo do século XX, foram produzidos e destinados a um mesmo grupo social, a elite8. Cabe, porém, discutir brevemente como essa elite soteropolitana foi se modificando gradualmente ao longo das nove décadas e, com ela, também o jornalismo, ou parte dele. Sobre a Primeira República, é possível falar em uma elite soteropolitana, pois, guardadas as diferenças de interesses momentâneas que existiam entre os grupos que se abrigavam sob tal denominação, havia uma identificação ideológica que os aproximava. A oligarquia agromercantil detinha mais prestígio político do que econômico nesse momento, pois, após dois séculos de predomínio, a cana-de-açúcar produzida no Recôncavo baiano deixava de ser o principal produto de exportação do Brasil. A continuidade de sua dominação sobre as populações que viviam sob sua dependência, entretanto, garantia a manutenção do poder político, trocando votos dos “currais eleitorais” por favores. Na cidade, uma 8. O termo elite está sendo utilizado como sinônimo de “[...] qualquer grupo ou categoria em um sistema social que ocupa uma posição de privilégio e dominação” (JOHNSON, 1997, p.82).

Moderna tradição nas páginas impressas

115

elite econômica composta por comerciantes e banqueiros controlava a circulação de mercadorias, garantindo, com isso, a permanência de seu modo de vida afrancesado, que tentava reproduzir nos trópicos cultura e visão de mundo europeias, sustentadas pela lembrança de um passado no qual Salvador figurava como a cidade mais cosmopolita da colônia. Os herdeiros desses dois grupos recebiam formação universitária na Europa, na capital da República e, até mesmo, nas poucas escolas superiores da capital do estado. Eles constituíam o que podemos chamar de uma elite intelectual baiana, reprodutora da cultura erudita adquirida na sua formação e totalmente comprometida com a manutenção do sistema social estabelecido. Os jornais produzidos por esse grupo funcionavam como tribuna para exposição de suas ideias e instrumentos de doutrinação e formação para aqueles que tinham acesso ao voto, homens alfabetizados. Os poucos leitores que fugiam do perfil dessa elite encontravam nos periódicos a condução necessária – tanto do aspecto moral quanto educacional e político –, cedida generosamente por aquele grupo que se outorgava o papel de condutor da coisa pública. A estagnação econômica que assolava a Bahia no início do século começou a ser superada com a instalação, na década de 1950, da Petrobrás e o início de um lento processo de industrialização. Nesse momento, percebe-se um movimento de gradual separação entre os grupos que constituíam as elites soteropolitanas. Os jornais, ainda presos aos grupos de poder econômico e político tradicionais, não permitiram observar tais modificações a partir de sua cobertura política. Em outras áreas, porém, havia indícios de mudanças, com diversidade das temáticas abordadas e alguma inovação gráfica e no perfil dos profissionais. Tais alterações, contudo, foram minimizadas pelo caráter prioritariamente político assumido pelos impressos como tribuna das diferentes facções partidárias. A linguagem rebuscada e formal, somada às estratégias de difamação dos oponentes em substituição ao debate de ideias, denunciam que a produção permanecia nas mãos dos grupos ligados aos modos mais tradicionais de ação política. A emergência do veículo rádio, caracterizado pela coloquialidade e popularidade de seu conteúdo, não conseguiu alterar, a partir de um contexto concorrencial, o estilo antigo de se fazer

116

Desafios da pesquisa em jornalismo

jornal, o que faz crer que a instância da recepção dos impressos também não se modificou significativamente. Foi apenas com a consolidação do processo de industrialização baiano que as mudanças no perfil das elites se delinearam de modo mais explícito. A instalação, na Bahia, de uma série de empreendedores e profissionais vindos do Centro-Sul, atraídos pelos benefícios da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), trouxe para a cidade de Salvador um novo tipo de elite econômica, culturalmente diversa daquela que aqui existia e politicamente descomprometida com os antigos grupos de dominação. A elite intelectual também se modificou nessa direção, a partir da ampliação do ensino superior e do crescimento das classes médias, que passaram a ter acesso à formação, antes restrita. Com ela, alterou-se também o perfil do jornalista profissional, agora um técnico, com formação variada nas áreas humanística, prática e ética. Embora uma parte ainda estivesse vinculada aos tradicionais grupos de poder, muitos desses profissionais chegavam às redações sem compromisso com a manutenção do sistema de dominação vigente, alterando gradativamente o modo de produção dos jornais. Alguns veículos, sensíveis a tais alterações, talvez por perceberem a mudança de direção dos seus públicos receptores, talvez por influência das transformações sofridas por seus produtores, passaram também a oferecer um jornalismo mais descompromissado com as antigas tradições da política baiana. Nesse movimento, a busca da credibilidade como valor foi decisiva para garantir o novo consumidor e, com ela, a explícita separação do conteúdo informativo, opinativo e propagandístico foi essencial. Importante ressalvar, contudo, que as instâncias decisórias na estrutura das empresas noticiosas ainda eram compostas por profissionais “da confiança” dos proprietários, sendo muito recente o registro de contratação de gerentes e diretores profissionais (apenas nos primeiros anos do século XXI). Apesar das mudanças no perfil das elites econômica e intelectual, a dominação política permaneceu, na última década do século XX, nas mãos de um grupo com comportamento e ideologias nitidamente homogêneos e vinculado a tradicionais valores da sociedade baiana. Nesse

Moderna tradição nas páginas impressas

117

âmbito, não houve significativas modificações em relação aos métodos e estratégias utilizadas para chegar e manter-se no poder, predominando comportamentos de clientelismo, cooptação e corrupção, naturalizados na fala popular como “a tradicional política do ‘rouba mas faz’”. Houve inovações nos modos de se comunicar com esse público, com a expansão dos meios eletrônicos, que oferecem controle ideológico a partir de entretenimento barato e jornalismo superficial. Os jornais impressos ligados às tradicionais elites, contudo, pouco inovaram nas coberturas políticas. Neles, prevaleceu a opinião, mesmo nos textos formatados como conteúdo informativo. Havia propaganda política explícita a favor dos aliados e calúnia e difamação grosseiras contra os adversários. Existiram, evidentemente, avanços na tentativa de construção de uma imagem de imparcialidade, especialmente nas demais temáticas, o que demonstra preocupação, ainda que mínima, com a busca de credibilidade. Mas, a quase total ausência de anunciantes nos jornais predominantemente políticos denuncia que a visão empresarial ainda não estava totalmente consolidada, sendo muito mais panfletos partidários que empresas comerciais. Assim, é possível afirmar que, ao longo dos 90 anos de prática jornalística observada na Salvador do século XX, houve mais permanências do que mudanças. O jornalismo pode ser considerado espaço privilegiado no qual se percebem as oscilações que marcaram a sociedade soteropolitana nesse período, especialmente o movimento das elites. Contudo, também permite observar sua característica mais marcante, exaltada por poetas e escritores, criticada por pensadores e políticos: a de ser uma terra de dicotomias, na qual convivem, em equilíbrio nem sempre harmônico, as tradições mais remotas de um passado colonial e escravocrata e as novidades mais recentes, nas tecnologias e comportamentos engajados. Nele também é possível perceber, de modo explícito, a estratificação social que marca a cidade, com parcelas pequenas muito (ou pouco) ricas e um grande contingente de miseráveis, que ocupam as páginas dos impressos apenas de modo exótico e extraordinário. Afinal, mesmo com nove décadas e muitas modificações sociais, econômicas e culturais, o jornal impresso de Salvador no século XX continuou sendo

118

Desafios da pesquisa em jornalismo

um veículo feito por e para as elites, no qual a modernização chegou de modo apenas parcial e isolado.

4. Referências ARAGÃO, Joana; MENEZES, Juliana; SANTOS, Lourivânia. A Caixa Mágica – Um resgate da História da TV em Salvador. Salvador: Faculdade Social da Bahia/Curso de Jornalismo, 2006. ARAGÃO, Rita. O Contexto de Gestação da Universidade da Bahia. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas (org.). A ousadia da criação – Universidade e Cultura. Salvador: Ufba / Facom, 1999, p. 35-63. BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa – Brasil – 1900-2000. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. CALMON, Pedro. A vida de Simões Filho. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1986. CARVALHO FILHO, Aloysio de. Jornalismo na Bahia, 1875-1960. In: TAVARES, Luiz Guilherme (org). Apontamentos para a história da imprensa na Bahia. Salvador: Academia de Letras da Bahia; Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2005, p.53-73. DANTAS NETO, Paulo Fábio. Tradição, Autocracia e Carisma – A política de Antônio Carlos Magalhães na modernização da Bahia (1954-1974). Belo Horizonte: Editora UFMG; Rio de Janeiro: IUPERJ, 2006. ELIAS, Norbert. Introdução à sociologia. Trad. Maria Luísa R. Ferreira. Lisboa: Edições 70, 1999. GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. IBGE – Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Estatísticas do Século XX. Disponível em: . Acessado em: 10 jan.2009. JOBIM, Nelson; PORTO, Walter Costa (Orgs.) Legislação Eleitoral no Brasil: do século XVI a nossos dias. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Biblioteca, 1996, vol. II e III. JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia – Guia Prático de Linguagem Sociológica. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

Moderna tradição nas páginas impressas

119

MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tânia Regina de. Imprensa e Cidade. São Paulo: Editora Unesp, 2006. (Col. Paradidáticos). _____. (Orgs.) História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008a. MATTOS, Sérgio. A televisão no Brasil: 50 anos de história (1950-2000). Salvador: PAS: Ianamá, 2000. MELO, José Marques de. História Social da Imprensa: fatores socioculturais que retardaram a implantação da imprensa no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. Coleção Comunicação, 27. MORAES, Walfrido. Simões Filho – O jornalista de combate e o tribuno das multidões. Salvador: W. Moraes, 1997. RIBEIRO, Lavina Madeira. Imprensa e Espaço Público – A Institucionalização do Jornalismo no Brasil – 1808-964. Rio de Janeiro: E-Papers, 2004. RISÉRIO, Antônio. Uma História da Cidade da Bahia. Rio de Janeiro: Versal Editores, 2004. RUBIM, Antônio Albino Canelas. ACM: poder, mídia e política. Trabalho apresentado ao X Encontro Anual da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (COMPÓS), Brasilia/DF, 29 de maio a 1º de junho de 2001. SAMPAIO, Consuelo Novais. Partidos Políticos da Bahia na Primeira República – Uma Política da Acomodação. Salvador: EdUfba, 1998. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4.ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. SOLÉ, Carlota. Modernidad y modernización. Rubi (Barcelona): Anthropos Editorial; México: Universidad Autónoma Metropolitana – Iztapalapa, 1998. TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 8.ed. São Paulo: Ática, 1987. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo – Porque as notícias são como são. 2.ed. Florianópolis: Insular, 2005. Volume I.

PERIÓDICOS ACM IMITAVA até os gestos dos generais, Tribuna da Bahia, Salvador, 11 set.1990, p.3.

120

Desafios da pesquisa em jornalismo

A DECISÃO dos destinos da Bahia. A Tarde, Salvador, 2 out.1954, p. 5. A REACÇÃO libertadora do Nordeste, A Tarde, Salvador, 5 mar.1920, p.1. DATAFOLHA indica segundo turno, Tribuna da Bahia, Salvador, 3 out.1990, p.1 É A REVOLUÇÃO! A Tarde, Salvador, 21 fev.1920, p.1. IBOPE confirma: ACM é eleito governador hoje, Correio da Bahia, Salvador, 3 out.1990, p.1. NA HORA do voto, ACM tem consagração popular, Correio da Bahia, Salvador, 4 out.1990, p. 3. O BANIMENTO da oligarchia Seabra, A Tarde, Salvador, 2 mar.1920, p.1. O DEVER do Sertão, A Tarde, Salvador, 18 dez.1919, p.1 OS ESCRAVOS do ideal, A Tarde, Salvador, 13 set.1954, p.1. PARA GOVERNADOR Balbino – Um homem de bem para o bem da Bahia, Diário de Notícias, Salvador, 3 out.1954, p. 1. PODE ser feita a eleição, A Tarde, Salvador, 24 out.1919, p.1. ROBERTO E JOACI levam 30 mil à praça, Tribuna da Bahia, Salvador, 3 set.1990, p.1. SALVEMOS o Municipio, A Tarde, Salvador, 7 nov.1919, p.1. TRE TRANSFORMA HORÁRIO gratuito na televisão em palanque de ACM, Tribuna da Bahia, Salvador, 27 set.1990, p.1. VIVA O SERTÃO bahiano! A Tarde, Salvador, 25 fev.1920, p.1.

121

Jornal-laboratório: vocação comunitária ou peça de assessoria? Alexandre Zarate Maciel Professor do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da UFMA, Campus II, em Imperatriz (MA). Mestre em Ciências da Informação (UnB). Membro do grupo de pesquisa do CNPq Cultura e Identidade na Contemporaneidade, na linha de pesquisa Mídia, Jornalismo e Rotinas Produtivas. E-mail: [email protected]

1. Argumentação perigosa Considerado como produção obrigatória dos cursos de Jornalismo, o jornal-laboratório muitas vezes é alvo da falta de entendimento quanto à sua essência por parte da administração das instituições de ensino superior (IES), principalmente nas privadas. As comissões de avaliação do Ministério da Educação (MEC) costumam destacar, nos processos de análise dos cursos, a obrigatoriedade destas publicações. A regularidade recomendada é de, no mínimo, oito edições anuais e a impressão deve ser custeada pelas próprias universidades. Convém ressaltar que, diante destas normas, o professor responsável pela publicação se vê constrangido, em muitos casos, a envolver os seus acadêmicos na elaboração de periódicos que tratem das questões internas e não da comunidade. Trata-se de uma confusão envolvendo a verdadeira função de um laboratório dessa natureza. Ou seja, a publicação se torna um house-organ, uma peça de assessoria e não um instrumento de reflexão sobre

122

Desafios da pesquisa em jornalismo

a cidade e suas problemáticas, exercitando o acadêmico para a pauta, captação e redação de notícias em veículos impressos plurais. Portanto, o jornal-laboratório, cujo amparo em termos de legislação e aparato ético serão mencionados neste artigo, não pode ter como sua conduta editorial uma única fonte de informação, no caso, as ações da universidade. Neste texto, são citadas opiniões avalizadas de autores da área de comunicação que estudaram a questão em artigos recentes. Para iluminar o debate, interpreta-se a problemática a partir das novas Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de Jornalismo. Entram em questão, ainda, as implicações em termos do Código de Ética dos Jornalistas, bem como as consequências legais que a transformação de um jornal-laboratório em produto de divulgação institucional pode acarretar. Por fim, será relatada a experiência do jornal-laboratório do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), campus II, localizado em Imperatriz e denominado Jornal Arrocha, que, desde o seu primeiro número publicado em 2010, procura se adequar aos padrões éticos aqui apresentados. Pesquisadores da área da comunicação têm se preocupado em estudar o valor do jornal-laboratório como instrumento de formação nos cursos de jornalismo e concordam em alguns pontos cruciais. O principal deles é que o jornal-laboratório, garantido pelo Ministério da Educação (MEC), deve ser um instrumento de prática acadêmica coordenado de forma interdisciplinar, com total liberdade editorial. No caso do Jornal Arrocha, as disciplinas diretamente envolvidas são as de Jornalismo Impresso, Fotojornalismo e Planejamento Visual, com os acadêmicos matriculados participando de todas as etapas sob a coordenação dos respectivos professores.

2. Consenso contra os limites Há um entendimento entre os autores da área de que esses produtos não devem tratar de assuntos institucionais. Ou seja, o acadêmico não pode ser obrigado a produzir matérias sobre as ações da universi-

Jornal-laboratório: vocação comunitária ou peça de assessoria?

123

dade. O argumento, em geral utilizado pelas administrações superiores, é de que o estudante estaria desta forma, “praticando” a profissão ao mesmo tempo em que divulga a instituição de ensino superior que, afinal, custeia o produto. O perigo desta interpretação é analisado por Marçolla e Policeno Filho (2007): O aumento da concorrência (com maior oferta de vagas), as reduções do número de estudantes (pulverizados nessa concorrência) e a conseqüente queda dos recursos necessários para se manter têm feito os dirigentes de escolas superiores recorrerem ao marketing como meio de recuperar o terreno perdido. No entanto, quando o jornal-laboratório é transformado em instrumento de propaganda institucional, os efeitos para a imagem da IES podem ser inversos aos pretendidos com a ação. (MARÇOLA E POLICENO FILHO, online, 8/05/2010)

O documento “Novas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Jornalismo” foi elaborado em 2009 por uma comissão de especialistas designada pelo MEC para repensar o ensino, a extensão e a pesquisa na área em um novo cenário globalizado. O texto deixa clara a necessidade de articular o conhecimento teórico e a prática em ações multidisciplinares, de preferência com a elaboração de produtos que promovam a interação da universidade com a sociedade. A criação do Jornal Arrocha, no final de 2010, procurou atender a várias recomendações das diretrizes, resultado de ampla consulta pública via audiências presenciais ou pela internet. No campo das propostas para repensar a estrutura dos cursos de graduação em jornalismo, o documento recomenda que os currículos devam prever a utilização de “(...) diferentes cenários de ensino-aprendizagem permitindo ao aluno conhecer e vivenciar situações variadas em equipes multiprofissionais” (artigo V, item 2, on-line, 8/05/2010). O Jornal Arrocha, que já publicou em versão digital suas outo primeira edições, visualizáveis no link http://www.imperatriznoticias.com.br/jornal-arrocha, busca integrar visões diferenciadas e dinâmicas do fazer jornalístico, com o diálogo entre as disciplinas envolvidas. Outra proposta em termos de diretrizes é que os cursos da área devem propiciar a interação permanente do acadêmico com as fontes, os profissionais e o público do

124

Desafios da pesquisa em jornalismo

jornalismo “desde o início de sua formação, estimulando o aluno a lidar com problemas reais, assumindo responsabilidades crescentes, compatíveis com seu grau de autonomia” (artigo VI, ítem 2, on-line, 8/12/2009). Comparando estas recomendações com a produção acadêmica do jornal-laboratório fica claro que, nas edições em que os estudantes podem exercitar livremente o trabalho de apurar, interpretar, editar e transformar fatos externos à IES em notícia é possível praticar a busca da mencionada “verdade” jornalística com postura ética. Independente de qualquer direcionamento prévio dos assuntos a serem abordados, como é recomendável em um meio de comunicação plural. No entanto, a partir de quando um jornal-laboratório passa a seguir uma mesma linha editorial ditada pela administração superior de qualquer IES, restringindo o seu leque de possíveis temas de coberturas aos assuntos institucionais, fica claro que está prejudicada a sua relação com outras áreas sociais, culturais e econômicas e mesmo com o instrumental teórico prático voltado para a posição de um ponto de vista ético-político. Outra problemática do uso institucional do jornal-laboratório diz respeito ao fato de o acadêmico, nesses casos, só travar contatos com fontes de informação da IES prejudicando o exercício de relacionar-se com fontes de qualquer natureza. A produção de house organs ou jornais institucionais, estes sim, responsáveis pela divulgação das ações dos centros universitários, deve ficar ao cargo, no entendimento dos autores pesquisados, das respectivas assessorias de comunicação, sendo desenvolvidos por jornalistas profissionais. Na opinião de Lopes (1989, p. 29), apenas o caráter comunitário das pautas garante ao estudante de jornalismo a reprodução da realidade futura da profissão. Ele define jornal-laboratório comunitário como “aquele dirigido a um público definido de fora da instituição, a uma comunidade externa”. Por sua vez, Zanotti (2007), alerta que: (...) para reduzir gastos ou estrategicamente por interesse político, os jornais-laboratório fixam enquanto público-alvo os alunos de suas próprias instituições de ensino. Tornam-se, assim, em larga medida, órgãos oficiais das direções ou reitorias das universidades que os patrocinam. (ZANOTTI, online, 8/05/2010)

Jornal-laboratório: vocação comunitária ou peça de assessoria?

125

Marçolla e Policeno Filho (2007) lembram que as universidades podem interpretar que o uso institucional do jornal-laboratório garante a “projeção de sua marca” ou mesmo representa “uma propaganda institucional de baixo custo”. Ressaltam, no entanto, a seguinte problemática: [...] ao enfraquecer o valor pedagógico do jornal-laboratório, a instituição enfraquece o valor do seu produto educacional, o que pode deixar insatisfeitos os estudantes que esperam poder exercitar amplamente a prática jornalística por meio dele. Ao verificarem que a oportunidade do exercício prático está comprometida por causa de uma finalidade mercadológica, os estudantes podem entender que falta qualidade de ensino à instituição. Podem se queixar dela, fazendo propaganda boca-aboca negativa. (ONLINE, acesso em 8/05/2010)

Por sua vez, Oliveira e Rodelli (2006) alertam, após pesquisa em instituições de ensino superior, que boa parte dos órgãos laboratoriais não tem público definido: “Os jornais são distribuídos na própria instituição e assim não se exercita o cumprimento de um contrato social com o leitor, ponto fundamental para a ética do Jornalismo” (OLIVEIRA E RODELLI, online, acesso em 8/05/2010). A questão até despertou o I Encontro dos Jornais-Laboratório dos Cursos de Jornalismo de Santa Catarina, realizado em 2004, reunindo representantes de sete instituições daquele estado. Em documento conclusivo, no artigo VII, os participantes recomendam: Regulamentado por lei, o JL precisa ser visto como um projeto obrigatório fundamental à formação do aluno de jornalismo. As universidades não podem confundir a função do jornal-laboratório com os jornais institucionais (house-organ), que têm como objetivo promover a imagem das organizações que o mantêm. O JL precisa ter garantido e facilitado seu financiamento pela instituição sem que seu projeto editorial sofra qualquer constrangimento ou restrição de pautas aos limites da universidade. (2004)

Já Souza e Varão (2008) relatam pesquisa realizada com todas as publicações laboratoriais no Brasil que apontou três grupos mais comuns de jornais-laboratório. Um primeiro segmento trata de temas variados e um segundo abrange jornais que versam sobre os temas internos das universidades, correndo o risco de se transformarem em house-organs.

126

Desafios da pesquisa em jornalismo

O terceiro seria de jornais temáticos, considerado um formato ideal pelos autores e adotado pelo Jornal Arrocha. Os autores comentam sobre o assunto: A segunda opção – dos temas da IES – também pode desembocar no problema do house-organ, ou seja, os alunos acabam exercitando práticas de assessoria de comunicação e, portanto, sentindo-se limitados para tratar de alguns assuntos ou assumir determinados pontos de vista. Essa prática, inclusive, não é reconhecida pelo Ministério da Educação como prática de jornal-laboratório. (ONLINE, 08/05/2010)

Antes de ingressar como professor assistente no curso de Jornalismo da UFMA, o autor deste artigo editou 40 edições do jornal-laboratório Unifolha na instituição particular Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal (Uniderp), hoje Uniderp Anhanguera, localizada em Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Em vários momentos a reitoria solicitou que os acadêmicos organizassem coberturas de eventos da universidade para publicá-las no jornal. Até mesmo, em certa ocasião, após uma viagem de certo reitor pela Europa, foi recomendado que fosse produzida uma edição especial com as “conquistas” que ele havia obtido para a universidade. Mesmo nas edições em que havia liberdade de pauta, quando o jornal se tornava temático e debatia questões da capital, era exigido, em troca do custeio da impressão, que fosse aberta uma página para publicações de material da assessoria de imprensa da instituição, o que gerava, muitas vezes, confusão na linha editorial.

3. Caminhos éticos Mas, afinal, qual seria o real papel pedagógico do jornal-laboratório na formação do futuro profissional de jornalismo? Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a Resolução n° 03/78 do Conselho Nacional de Educação (CNE) foi a primeira a estabelecer a aplicação prática dos acadêmicos nas diferentes áreas de formação por meio de projetos experimentais realizados em laboratórios da própria escola, com redações-modelo, oficina gráfica, sala de diagramação, laboratórios fotográfico, de rádio, tele, cinejornalismo e hemeroteca.

Jornal-laboratório: vocação comunitária ou peça de assessoria?

127

Outra resolução do CNE, de n° 2/84, reforçava como exigência do currículo mínimo para o curso de Jornalismo um prazo de três anos para implantação de órgãos laboratoriais. Esta última resolução afirmava exatamente o seguinte, em seu artigo 7º: Os estabelecimentos de ensino superior que mantenham cursos com habilitação em Jornalismo editarão, anualmente, ao menos 8 (oito) jornais-laboratórios realizados por seus alunos com orientação dos professores de disciplinas da área técnico-profissional. (SANTOS, 1998, p. 229).

No entanto, a Lei de Diretrizes e Bases de 1996 revogou o dispositivo mencionado, já que extinguiu os currículos mínimos. Apenas em 2002, como resultado das então novas Diretrizes Curriculares, a Diretoria de Estatísticas e Avaliação da Educação Superior do MEC criou o Manual de Avaliação do Curso de Comunicação Social, com algumas regras para “Produção de Periódicos para Públicos Determinados”, com três conceitos: Muito fraco – quando há até 7 produtos impressos por turma durante o curso; Regular – quando há mais de 7 e até 10 produtos impressos por turma durante o curso; Muito bom – quando há mais de 10 produtos impressos por turma durante o curso”. (DAES, 2002, p. 42).

Agora, com as Novas Diretrizes Curriculares para o curso de Jornalismo, em análise no MEC, o perfil do egresso tem a seguinte redação: O Bacharel em Jornalismo ou Jornalista atua na elaboração de notícias para a publicação nos meios de comunicação. Em sua atividade, organiza pautas, planeja e executa coberturas jornalísticas, conduz entrevistas e redige notícias, adotando critérios de rigor e independência na seleção das fontes e no relacionamento profissional com elas. Trabalha tendo em vista o princípio da pluralidade, o favorecimento do debate, o aprofundamento da investigação, a fiscalização do poder e a garantia social da veracidade das informações. Em sua atuação, deve respeitar os fundamentos éticos prescritos para a sua atividade profissional, a partir do reconhecimento das expectativas e demandas da sociedade em relação ao seu papel social e ao direito à informação. (2009, online, acesso em 8/12/2009)

Assim, com conceitos como critérios de rigor e independência, reconhecimento das demandas da sociedade, princípio da pluralidade e

128

Desafios da pesquisa em jornalismo

favorecimento do debate, fica claro que as instituições que ainda sofrem pressões no sentido de direcionar os seus produtos laboratoriais podem contar com um instrumento de liberdade. Lopes (2008, p.50) lembra que fazer jornal-laboratório não é um mero exercício escolar, nem apenas treinamento, “mas uma forma de começar a transformar o estudante num profissional crítico, disposto a transformar e ajudar a melhorar um pouco a sociedade em que vive”. E acrescenta que o acadêmico de jornalismo deve ser incentivado a escrever matérias de interesse do leitor e não de uma instituição em si, “produzindo um veículo que ajude o receptor a se posicionar criticamente diante do mundo”. A consciência crítica da comunidade também se aprimora quando está diante de um veículo de comunicação que discute com amplitude as suas principais questões. O jornalismo impresso ainda continua sendo - mesmo ou cada vez mais diante do novo cenário tecnológico - o lugar do aprofundamento dos temas, do enfoque cuidadoso e da busca do equilíbrio das verdades. Ao ver a sua cidade e problemáticas interpretadas nas reportagens e fotografias, tudo organizado por uma diagramação que facilita a leitura e a consequente reflexão sistêmica, os leitores passam a fazer parte da chamada construção social da realidade. Ou seja, os jornalistas ouvem as fontes, os personagens e suas visões subjetivas dos fatos cotidianos, reinterpretam o real pelo viés das técnicas jornalísticas e os leitores, por sua vez, com as suas variadas visões de mundo, também participam dessa elaboração do conhecimento. Para Melo (in. VIEIRA JR., 2002, p.35), a grande função do jornal-laboratório é “[....] criar um ambiente propício para a reprodução dos processos jornalísticos, em situações práticas, vivenciadas pelos alunos, das quais os professores extraem evidências para explicar as teorias que embasam a profissão”. O próprio Vieira Jr. (2005, p.9), que desenvolveu uma tese de doutorado sobre jornais-laboratório, afirma que a finalidade deste instrumento pedagógico “é oferecer ao mercado um jornalista criativo, com capacidade de se comportar criticamente na atividade profissional e não apenas reproduzir mecanicamente o modelo vigente”. Finalmente, encontra respaldo no novo texto do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, atualizado em agosto de 2007, o perigo de

Jornal-laboratório: vocação comunitária ou peça de assessoria?

129

uma convivência impositiva e mesmo de uma mescla entre um jornal-laboratório e uma publicação institucional. As palavras do cânone, ensinados nos curso de Jornalismo, são claras: O jornalista não deve [...] VI- Realizar cobertura jornalística para o meio de comunicação em que trabalha sobre organizações públicas, privadas ou não-governamentais, da qual seja assessor, empregado, prestador de serviço ou proprietário, nem utilizar o referido veículo para defender os interesses dessas instituições ou de autoridades a elas relacionadas (art.7º inc. VI)

Desse modo, um jornal-laboratório que incentive a prática de coberturas restritas ao ambiente institucional se traduz em um incentivo à transgressão do próprio código moral da profissão, pois faz com que os estudantes realizem produções que venham a ferir essa determinação no que concerne às coberturas no próprio estabelecimento onde estudam. Isso acarreta na formação de jornalistas totalmente desprovidos de respeito pelos princípios ensinados nas salas de aula e exigidos no mercado, incorrendo em atitudes como, por exemplo, atuar como repórter das páginas de economia de um jornal impresso e, ao mesmo tempo, assessor de imprensa de uma rede de bancos privada. Sua credibilidade será logicamente questionada, assim como a da instituição que formou tal “profissional”. Vale mencionar que em vários países da Europa, as funções de jornalista e assessor de imprensa são separadas legalmente, com cursos e códigos diferenciados e regulamentações distintas, com o impedimento, inclusive, de exercício simultâneo de ambas, como atesta o Estatuto de Jornalistas de Portugal, no seu artigo primeiro. Logo, plantar nas universidades essa simbiose forçosa entre jornal-laboratório e house-organ ou jornal institucional é também caminhar contra a maré das nações mais desenvolvidas do mundo.

4. Jornal voltado para a comunidade: proposta de um periódico Tomando por base os preceitos recomendados pelos autores, o curso de Comunicação Social/Jornalismo do campus II da Universidade

130

Desafios da pesquisa em jornalismo

Federal do Maranhão (UFMA), localizado em Imperatriz (MA), propôs, em fevereiro de 2010, o projeto de elaboração de um jornal-laboratório, voltado para a comunidade, com o título Jornal Arrocha escolhido a partir de uma pesquisa entre os acadêmicos e professores. Trata-se de uma expressão típica que, na região sul do Maranhão tem o sentido de agir, tomar uma atitude. Também pode significar o “arrochar” no poder público e, ainda, “a rocha”, uma lembrança dos princípios éticos que devem servir de norte para as publicações. O jornal mensal, de 12 páginas e totalmente colorido em versão digital, tem o propósito de ser temático e voltado para a comunidade tratando de assuntos caros à população de Imperatriz (MA), como as questões do saneamento básico, conflitos sociais, desenvolvimento econômico, saúde, educação, esportes, cultura, entre tantas outras abordagens. Esse olhar para a cidade, além dos muros da universidade, permite aos acadêmicos envolvidos aprender a observar as realidades sociais do município ou região onde irá atuar futuramente (devido à localização privilegiada de Imperatriz nesse sentido), sempre de uma forma multiangular. Vale acrescentar que na cidade circulam apenas dois jornais diários e um semanário, com equipe deficitária e muita dependência da informação de releases do poder público, sendo patente a carência de apuração e reflexão na imprensa escrita local. Para atender o propósito de estimular a consciência crítica da população de Imperatriz com um produto dinâmico, de leitura agradável e amplitude de temas, os acadêmicos envolvidos buscam compreender, antes de cada edição, quais são as questões mais urgentes e que merecem abordagem sistêmica. O primeiro número do jornal foi produzido no mês de fevereiro de 2010, com o tema central “águas de Imperatriz” e publicado no mês de junho do mesmo ano. Desde então, os acadêmicos, sob supervisão dos professores, já produziram 15 edições, sendo 8 já publicadas em forma digital no link mencionado e as três primeiras impressas. O segundo número do Jornal Arrocha tratou das questões urbanas e o terceiro apresentou um panorama da música produzida em Imperatriz. Os temas das edições já publicadas digitalmente são religião, vícios e hábitos, sexualidade, anônimos que fazem Imperatriz e formação cul-

Jornal-laboratório: vocação comunitária ou peça de assessoria?

131

tural. Estão prontas e serão publicadas em 2012, uma por mês, as edições especiais esportes, mídia, educação, mercadinho, idosos, jovens e crianças e trabalhadores noturnos. A impressão das edições é viabilizada pela gráfica da UFMA de São Luís, de forma gratuita. Vale ressaltar que as versões em PDF do jornal estão disponíveis no site laboratorial www. imperatriznoticias.com.br, no link Arrocha, o que amplia as possibilidades de visibilidade e distribuição do produto. O próprio ato de participar de um processo que simula a produção de um jornal impresso, exercitando a observação múltipla sobre um mesmo fato, a fotografia e a diagramação em uma ação interdisciplinar proporciona aos acadêmicos colocar em prática os seus conhecimentos adquiridos em diversas matérias ao longo do curso. No número pioneiro, sobre as águas de Imperatriz, foram abordadas questões como: a precariedade do saneamento básico; a qualidade da água em bares e restaurantes; o descaso com os riachos e com o rio Tocantins, que recebem esgoto in natura; a vida dos pescadores e ribeirinhos; o ciclo das cheias e das chuvas intermitentes; uso da água no meio rural; desperdício no uso doméstico e até mesmo o símbolo da água nas religiões. No seu segundo número o desdobramento do tema central “questões urbanas” rendeu reportagens sobre: o trânsito e suas carroças, moto-táxis e táxis-lotação; o desrespeito à Lei do Uso do Solo; o comércio formal e informal; a explosão dos condomínios e prédios em contraste com a favelização; o Plano Diretor sub-júdice; o crescimento populacional; a acessibilidade prejudicada por uma série de obstáculos; as praças e novas obras para melhorar a infraestrutura de Imperatriz. Em ambas edições os acadêmicos das disciplinas de Jornalismo Impresso, Fotojornalismo e Planejamento Visual tiveram total participação, já que receberam notas de 0 a 10 pelo seu desempenho. Pensaram os desdobramentos dos temas e as turmas diferentes de produção de texto e captação de imagens trabalharam em conjunto como em uma redação. Após a edição coletiva das matérias e fotos, todo material foi encaminhado para os acadêmicos responsáveis pela diagramação. Todas as etapas foram plenamente discutidas em conjunto com os professores, o que configura o Jornal Arrocha como uma experiência multidisciplinar

132

Desafios da pesquisa em jornalismo

e com eficiência na formação do acadêmico ético e preocupado com as questões comunitárias e sociais.

5. Conclusão: instrumental de liberdade Fica claro que é inconcebível que os produtos laboratoriais fiquem à mercê das linhas editoriais ditadas pelas instâncias superiores das universidades. Sempre que a liberdade do jornal-laboratório ou comunitária for ameaçada, cabe aos professores e acadêmicos unirem-se no sentido de combater formas de cerceamento da liberdade no ato da construção social da realidade. Na verdade, esses movimentos de reação são muito mais complexos em uma instituição privada, como bem já comprovou o autor deste artigo em sua experiência com o jornal “Unifolha”, mas as diretrizes apresentadas ao MEC são claras e devem ser cumpridas. É importante que as comissões de avaliação estejam muito atentas às condições de produções do jornal laboratorial, atribuindo notas baixas para as experiências que se assemelhem às peças de assessoria. Durante a elaboração do Jornal Arrocha, os bolsistas podem consolidar, conforme recomendam também as Novas Diretrizes Curriculares com relação ao campo das competências dos futuros profissionais, a identificação e o reconhecimento da relevância e do interesse público entre os temas da atualidade. E também aprender a pesquisar, selecionar e analisar informações em qualquer campo de conhecimento específico. A perspectiva de aprimoramento desta visão na prática constante da elaboração de um jornal voltado para a comunidade, multiangular é de suma importância para os acadêmicos, que ampliam seus talentos para coordenação de grupos e edição de material jornalístico e colocam em prática o jornalismo impresso e o seu peculiar aprofundamento dos temas. A formação do espírito de equipe e aprofundamento das relações entre as disciplinas também é favorecido, pois os alunos não se restringem a apurar, redigir notícias, fotografar e diagramar. Podem vivenciar, nas sucessivas edições, o espírito de elaboração de todas as etapas de

Jornal-laboratório: vocação comunitária ou peça de assessoria?

133

um jornal impresso, desenvolvendo, inclusive, projetos futuros de produtos autônomos nessa área.

Referências Carta do 1º Encontro dos jornais-laboratório dos cursos de Jornalismo de Santa Catarina, 2004, Palhoça. Palhoça: Unisul, 2004. Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Fenaj: 2007. www.fenaj.org. br, nos links “assessoria jurídica” e “Legislações sobre a profissão dos jornalistas”, acesso em 8 de maio de 2010. LOPES, Dirceu Fernandes. Jornal-laboratório: do exercício escolar ao compromisso com o público leitor. São Paulo: Summus, 1989. LOPES, Dirceu Fernandes. Muito além do treinamento. São Paulo: Primeira Impressão, novembro 2006, p.2, ed.88. MARÇOLLA, Rosangela; POLICENO Filho, Mário Luiz;. Jornal-laboratório: atividade pedagógica ou exercício de marketing? Junho de 2007. Disponível em: www.fnpj.org.br/soac/ocs/viewpaper.php?id=112&print=1&cf=7> Acesso em: 8 de maio de 2010 MELO, José Marques de. Uma pedagogia para o jornal-laboratório. In: VIEIRA JUNIOR, Antonio. Tese (Doutorado em Comunicação). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. Novas Diretrizes para os cursos de Jornalismo. On-line, http://portal. mec.gov.br/dmdocuments/documento_final_cursos_jornalismo.pdf acesso em: 8 de dezembro de 2009. OLIVEIRA, Dennis de; RODELLI, Patrícia. Jornal-laboratório: prática extensionista articulada com a dimensão ética do jornalismo. Trabalho apresentado no GT Produção Laboratorial – Impressos do IX Encontro do FNPJ – 2006. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, Brasília, v.1, n.1, p.106-125, abr./jul. 2007. Disponível em: Acesso em: 8 de maio de 2010. VIEIRA Junior, Antônio. Uma pedagogia para o jornal-laboratório. Tese (Doutorado em Comunicação). Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002. ZANOTTI, C. A. Saiba+: Reflexões de uma experiência em jornal laboratório. In: 3o Encontro Paulista de Professores de Jornalismo, 2007, Piracicaba. Formação do Jornalista e Mercado, 2007. Disponível em: < www. fnpj.org.br/soac/ocs/viewpaper.php?id=127&cf=7> Acesso em: 8 de maio de 2010.

135

(Des)Construção da cena enunciativa: proposta de metodologia para o Jornalismo.1

Joanita Mota de Ataide Professora Associada do Departamento de Comunicação Social/UFMA. Doutora e Pósdoutora em Jornalismo pela ECA-USP. Membro do Conselho Consultivo da revista Caligrama. E-mail: [email protected]

1. Introdução. A reflexão que ora expomos retoma proposta metodológica destinada a aplicação em pesquisa na área do telejornalismo, que tem como objeto a cobertura da CPI2 do Crime Organizado, criada e realizada em 1999, feita por duas emissoras de televisão do Maranhão: TV Difusora do Maranhão (afiliada ao SBT-Sistema Brasileiro de Televisão) e TV Mirante (integrante do Sistema Mirante de Comunicação e afiliada à Rede Globo de Televisão). Esses canais editam três telejornais locais diários: pela manhã, à tarde e à noite, fato que, em princípio, proporciona regularidade e intensidade de exposição do telespectador aos fatos noticiados. O material de análise totaliza 02 (duas) horas de cobertura, em duas

1. Trabalho submetido à análise da Diretoria Científica da SBPJor- Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo, com vistas ao 6º. Encontro Nacional da entidade, na categoria Comunicação Individual 2. Comissão Parlamentar de Inquérito

136

Desafios da pesquisa em jornalismo

modalidades: telejornal e documentário. Nosso propósito, aqui, é descrever sucintamente os objetivos do projeto e nos determos na descrição dos conceitos que dão corpo ao conjunto de procedimentos teórico-metodológicos com o qual pretendemos operar a análise do corpus da pesquisa. O conjunto a que nos referimos acima se organiza em torno do tema da enunciação e do conceito que lhe é correlato, e inseparável: o enunciado. O caminho que vamos descrever a seguir foi-nos indicado pela presença da disciplina Epistemologia do Jornalismo no novo Projeto Político-Pedagógico do Curso de Comunicação Social, da Universidade Federal do Maranhão, em nível de graduação. Assim, entendemos que nos cabe construir nosso próprio arcabouço teórico-metodológico, destinado a dar suporte à concepção de Jornalismo contida na Ementa da disciplina. Esperamos que essa construção seja levantada sobre terreno antes sedimentado pela experiência de pesquisadores na área do Jornalismo e da midiologia. As análises das proposições feitas pelos autores que tomamos por referência é o que vamos descortinar nas próximas linhas. O tema central da pesquisa é o estudo daquilo que consideramos a principal função jornalística no que diz respeito à práxis institucional: a função testemunhal. As questões que norteiam os estudos provêm da concepção do Jornalismo como prática discursiva institucional, que tem como uma das suas funções essenciais dar testemunho de sua época, da realidade atual. Postulamos, igualmente, que a estrutura narrativa é forma privilegiada do discurso organizado no Jornalismo. Nosso objeto de pesquisa se configura na indagação de como se processa a cobertura e de como se organiza o discurso telejornalístico e televisivo-documental na descrição de processos de natureza especial, como os processos político-jurídicos instaurados por instituições públicas do domínio político. Especificamente, duas indagações nos sobrevêm. Uma, sobre o próprio objeto: _Poderemos conceber uma CPI (mecanismo que pretende

(Des)Construção da cena enunciativa

137

ouvir, mostrar, investigar e apontar possíveis culpados de corrupção) como processo em que determinados actantes sejam capazes de desenvolver seqüências de ações para transformar uma realidade de dano ao patrimônio público e à dignidade dos cidadãos da polis, em direção à restauração de um estado em que se verifique o equilíbrio? Outra, supondo o discurso jornalístico articulado preferencialmente sob a forma narrativa, e que se complementa com a anterior: _Com quais formas de articulações discursivas o Jornalismo (em específico, o telejornalismo) poderá ordenar esses movimentos? Consideramos que a noção de “testemunho”, no Jornalismo, tem sido discutida meramente sob o ponto de vista de ordem técnica, da prática jornalística. Assim, pretendemos levantar questões que nos direcionem, com o devido aprofundamento de conceitos teórico-metodológicos, à proposição de alguns princípios organizadores da práxis jornalística. Acreditamos que tal estudo contribua para rediscutir alguns princípios que fundamentam a complexidade das relações do fazer jornalístico, dentre as quais privilegiamos: a) a relação entre o repórter e sua fonte, caracterizada sob a forma de “testemunho”, conforme apreendemos de Jacques Derrida (2000, p. 11-89); b) a relação entre o meio e o telespectador, sugerida por Eliseo Verón como “contrato enunciativo”, cuja essência reside nas modalidades do dizer; a manutenção do contrato, por sua vez, implica a observância de princípios como confiança, crença, que são conceitos estreitamente ligados ao de contrato (1991, p. 168) [grifos do autor]; c) as relações estabelecidas pelos mídias na sociedade global, midiatizada, os quais, segundo Verón, não somente “têm a tendência de ‘curto-circuitar’ as instituições políticas”, quanto serem “o lugar, (o único) em que (...) se faria o ‘trabalho’ sobre as representações sociais”, donde decorre a conclusão de que “as instituições políticas seriam de mais a mais despossuídas desta função” (1991, p. 168) [grifo do autor].

138

Desafios da pesquisa em jornalismo

A função do testemunho, em qualquer setor de atividade humana, se exerce mediante um conjunto de procedimentos que têm como escopo “a verdade” e que, para isso, supõe uma prática que se paute em princípios tais como “credibilidade”, “fidedignidade”, por um lado, e “credencial”, “crença”, “fé”, por outro (Derrida, 2000). Tais noções abrangem e estabelecem áreas semânticas próximas, constituindo, assim, um conjunto de conceitos afins, com os quais o discurso daí decorrente se organiza sob a forma de testamento (legado, herança, que implica transmissão a outrem). Com base nesses princípios, objetivamos verificar como se pode articular o conceito de testemunho com a função jornalística de reportar os fatos, de modo a proferir “a verdade”, pressupondo-se que “a verdade” é múltipla, sempre, princípio este que pontifica no capítulo da ética profissional e institucional. Desta forma, o ato de testemunhar, no caso do Jornalismo, objetiva atestar sobre a verdade dos fatos publicados. Conceito correlato e indispensável para o entendimento do problema do testemunho é a questão do “olhar”, que, juntamente com o ouvir e o falar, é inerente ao processo/ato de testemunhar, fundamental ao jornalismo tele-visivo. Objetivamos entender a relação entre o olhar e o ver, ou seja, traçar a perspectiva a partir da qual se posicionam repórter e câmera, bem como a implicação, aí, da presença do público, na sua relação com a imagem. Essa discussão se fundamenta na proposta de Verón (1991) sobre o “contrato enunciativo”, e ainda em Quéré, segundo o qual o jornalista, ocupando lugar perspectivo, se torna “testemunha do real no seu surgimento, assim como a garantia da sua visibilidade e da sua inteligibilidade (adição da função de especialista)” (QUERÉ, 1982, p. 162) [grifo nosso]. Discussão complementar refere-se à própria noção de realidade, em razão da sua essencialidade para a compreensão, não apenas do presente problema, mas também de toda a prática jornalística. Dessa forma, objetivamos esclarecer as principais abordagens a essa noção, com base em estudos provenientes do campo das Ciências da Linguagem, partindo de dois supostos: a) um, que concebe a realidade como realidade simbólica, a única a que o homem tem acesso e onde, deduzimos, se

(Des)Construção da cena enunciativa

139

acham os sujeitos, em relação; b) outro, que concebe a realidade do Jornalismo como “fabricação”, ou “construção”, segundo outros autores.

2. Fundamentos. O aprofundamento da discussão acerca da função testemunhal do Jornalismo nos impele a buscar a construção de mecanismos teórico-metodológicos para responder à pergunta: Como absorver o fundamento da função testemunhal do Jornalismo? Dado o propósito deste trabalho, vamos nos situar no campo das Ciências da Linguagem para apresentar os principais conceitos que, acreditamos, podem fundamentar a discussão do nosso conceito central, o ato de testemunhar, a partir do conceito de dispositivo de enunciação, que aqui chamamos de cena enunciativa. Iniciamos pela proposta originária da psicanálise lacaniana de concepção de Linguagem como a realidade a que o sujeito tem acesso. E falar do sujeito é tratar de um conceito sem o qual não poderíamos pensar a práxis jornalística. Concebemos o sujeito humano como instaurado na Ordem Simbólica, ou da Linguagem. O sujeito é humano pela fala, porque fala – mas a quem falta, pois é dividido entre o corpo e o lugar da fala: o corpo lhe é próprio, mas o lugar de onde provém e aonde dirige a sua fala acha-se em outro lugar –. Marcado por essa divisão estrutural, o sujeito origina-se no lugar do Outro, vê-se capturado pelo Outro – o lugar da interpelação, da interlocução, das subjetividades, da enunciação –. O Outro, que, na terminologia lacaniana, é o Grande Outro, marcado com o A, é o lugar primeiro, lugar do significante, lugar onde os discursos se estruturam e são determinados. Entendemos que o repórter se coloca nesse lugar, o lugar da enunciação, investido da posição, discursiva, de “sujeito da enunciação”, de onde e como tal profere enunciados, com os quais se dirige ao público do jornal, da televisão. O público, por sua vez, constituído e construído enquanto tal nessa relação enunciativa, vem a ser o outro, imaginário, suposto demandante das mensagens, e que nelas crê. Lacan nos diz que o lugar do A é o lugar da garantia da palavra dada. Garantia vacilante,

140

Desafios da pesquisa em jornalismo

pois não existe o A do A (não há um A fiador da palavra de outro A), de modo que essa garantia é retirada daquele que, instaurando-se no lugar do A, se põe como o suporte da verdade do testemunho e da fé no testemunho. Derrida nos diz que o testemunho do sujeito “faz apelo à fé do outro e, portanto, desdobra-se em uma fé jurada” (2000:16). O discurso, por sua vez, concebido como “a língua em ato” (KRISTEVA, 1974; Benveniste, 1989, p. 6), é o lugar onde se travam as relações entre os sujeitos humanos, onde os contratos são instituídos, onde se dão as trocas, lugar constituído no/pelo simbólico, lugar discursivo. O discurso, pois, no entendimento deste trabalho, é o lugar onde encontramos as marcas do sujeito da enunciação. Lugar do simbólico, a Linguagem “consiste essencialmente nos significantes que constituem a sua ordem” (FREITAS, 1992, p. 53). Cada discurso produzido pelas diversas instituições e em circulação na sociedade se vincula a uma cadeia ou rede, a cadeia significante. Dizemos significante porque os discursos produzem significações, as quais produzem efeitos de sentido (sempre e necessariamente diversos, segundo o propõe Verón) junto aos sujeitos que interagem. É essa situação de comunicação, caracterizada como cena enunciativa, que se constitui o centro das reflexões ora propostas.

3. Metodologia. No contato com o material componente do corpus da pesquisa, no momento de decupagem das fitas, descobrimos que não disporíamos de método capaz de dar conta de analisar a diversidade e o ineditismo das imagens televisivas geradas na cobertura da CPI do Crime Organizado no Maranhão. Dadas essas características, as imagens se investiram de certa autonomia em relação à proposta inicial da pesquisa, pois foram indicando novas noções a serem estudadas, quer de ordem teórica, quer metodológica. Da reflexão feita em torno das imagens resultou a proposta metodológica aqui apresentada, que, por sua vez, se correlaciona com a fundamentação teórica. A organização metodológica do trabalho se dá em torno do conceito de enunciação, mas parte do conceito que lhe é precedente e o supõe: a fala ou elocução.

(Des)Construção da cena enunciativa

141

Para efeito desta proposta, a enunciação é concebida como o dispositivo onde o sujeito se situa para proferir o discurso, cujo ato reporta-se, na práxis jornalística, ao testemunho da realidade. Definimos abaixo cada um dos conceitos integrantes do conjunto de conceitos que embasam a metodologia: (1) fala, como ato discursivo, ou seja, “a língua posta em ato”. Decorre dessa concepção o entendimento de discurso ou fala como “prática significante” (KRISTEVA, 1974), própria do discurso, na sua função de produção de significações, exercida mediante a produção de “efeitos de sentido”, ou “efeitos de significado” junto ao público. Inferimos que na “prática significante” se exercem dois mecanismos, os quais a pesquisa objetiva descrever: as condições em que se dá a prática discursiva jornalística; os modos de estruturação desse discurso. (2) enunciação, conceito complementar ao de fala e respeitante ao primeiro mecanismo referido acima. A enunciação, segundo Benveniste (1989), constitui o processo pelo qual o falante, apropriando-se da língua, transforma essa apropriação em ato discursivo. Para construir a noção de enunciação, Benveniste instituiu o mecanismo que denominou de “aparelho formal de enunciação”, estando implicadas aí, necessariamente, as categorias da subjetividade, constituídas na relação eu-tu (noção que encontramos de certa forma também em Freud), ou sujeito e outro (segundo Lacan), bem como as categorias relativas às construções de espaço e tempo, integrantes da estruturação narrativa dos discursos. (3) cena, noção que tomamos por empréstimo do conceito de enunciação, resultando nessa convergência a noção de “cena enunciativa”, com a qual faremos a descrição do que analogamente chamamos de cenário (locais, diversificados, de reunião de trabalho dos membros da CPI, na sua totalidade ou em parte, demais sujeitos implicados no processo, o público presente nas galerias do prédio da Assembleia Legislativa e na

142

Desafios da pesquisa em jornalismo

rua), dos rituais (ações da CPI, organizadas sob determinada forma, dentre elas, as sessões, denominadas tecnicamente de “Audiência Pública”) e das normas (regimentais e legais), bem como as pertinentes à pragmática própria a processos político-jurídicos. Incluímos L. Quéré (1982, p. 162,164) na discussão sobre a construção da cena enunciativa, ao postular que o jornalista situa-se em lugar perspectivo, de onde pode ver o que o Poder vê e faz. Tem como função descrever as ações do Poder, tornando-as ora visíveis, ora inteligíveis. Situa-se também, ao mesmo tempo, no lugar do Povo (público), com o fim de saber, e descrever, o que o povo pensa. Pensamos ainda o lugar da enunciação, a partir de M. de Certeau, entendendo que o telejornalismo constrói “cenários, suscetíveis de organizar práticas num discurso hoje inteligível – aquilo que é propriamente ‘fazer história’” (CERTAU, 1982, p. 17-19). O papel do repórter na cobertura telejornalística seria, por esse entendimento, construir a coerência dos vários atos discursivos. Verón, na obra aqui referenciada (2005), dialoga com Certeau, citando e discutindo a proposição deste. A descrição acima, em outras palavras, é a descrição da própria cobertura telejornalística da CPI. Denominamos essa descrição de “cenografia” (NASCIMENTO, 2002), constituída de elementos que concebemos como “tele-grafos” (ou telegráficos), pois constituem uma “tele-grafia”, segundo supomos (ATAIDE, 2005). A esse processo denominamos de “escritura”, que consiste em grafar e, assim, inscrever na tela da TV uma escrita caracterizada pela condensação de elementos de diversas materialidades: imagens, fala, música, texto, silêncio, espaços vazios, luz e sombras (LEITE, 2006). O processo de escritura, supomos, produz uma “orto-grafia” (FREITAS, 1998). (4) enunciados, concebidos como “estruturas discursivas”, produto do processo de enunciação, ou seja, a “escrita” propriamente dita. São essas estruturas que buscamos identificar na análise do corpus da pesquisa. É no desvelamento (configuração) de cada cena que se vão apreendendo as marcas do sujeito da

(Des)Construção da cena enunciativa

143

enunciação, bem como revelando as estruturas discursivas, conforme depreendidas na cobertura ao vivo, nos telejornais e no documentário. A produção discursiva institucional, em qualquer sociedade, obedece a regras (pragmática) próprias, segundo Lyotard (1986), para quem as regras “privilegiam certos tipos de enunciados, por vezes um único, cuja predominância caracteriza o discurso da instituição: há coisas que devem ser ditas e há maneiras de dizê-las”. Nessa luta, as regras existem e devem ser cumpridas, “(...) para que os enunciados sejam declarados admissíveis (...)” [grifo nosso]. Aqui retomamos o postulado de Verón (1991; 2005) segundo o qual o contrato se faz no campo das modalidades do dizer, e não do conteúdo. Ressaltamos que distinguimos a noção de conteúdo da noção de modos de dizer o discurso, o dizer (enunciação), do enunciado (enquanto conteúdo da mensagem). Nosso interesse pelo enunciado está restrito à extração das estruturas presentes e configuradoras do discurso, que, naturalmente, constituem um enunciado, um “dito”. (5) estrutura narrativa, no sentido dado por Greimas (1973), da leitura que faz de Propp (1970) sobre a estrutura do conto popular russo. Propomos (com base em Ataide, 1998) que a estrutura discursiva privilegiada no Jornalismo é a estrutura narrativa. Com a noção de narrativa pretendemos estudar a questão da corrupção, entendida como o “dano”, elemento estrutural e estruturante das narrativas. (6) testemunho, conceito que tem como base os conceitos acima, visando a construir o entendimento do ato próprio da testemunha, ou seja, o repórter que testemunha “a realidade”; o ato do testemunho, supomos, consiste primordialmente em um ato discursivo “performativo” (LYOTARD, 1986), ato condizente com os termos do contrato enunciativo. Na complexidade da função testemunhal do Jornalismo, o repórter produz ainda uma diversidade de atos discursivos, como os narrativos, descritivos e prescritivos (LYOTARD, 1986); e, ainda, atos constatativos,

144

Desafios da pesquisa em jornalismo

que descrevem acontecimentos, conforme Austin (apud DUBOIS et all, 1997, p. 304). Na análise das matérias, reiteramos, objetivamos identificar as marcas da presença do sujeito da enunciação, a diversidade dos atos de fala ou modalidades do seu dizer, no sentido de inferir as características estruturais dos enunciados ali produzidos. (7) contrato enunciativo, que, segundo Véron (1991; 2005), “é jogado pelo essencial, não sobre o plano do conteúdo, mas sobre o plano das modalidades do dizer”. Para o autor, no estudo do processo de produção midiática é imprescindível pensar a participação do receptor, pois “é a articulação entre produção e recepção dos discursos que é a questão fundamental” [grifo do autor]. Véron (1991) se refere a contrato “de leitura, de escuta ou de visão, segundo o suporte midiático”. Para Derrida (2000), a relação contratual, em forma de testemunho, é pautada mediante um contrato fiduciário, em que se põe em jogo a confiança entre as partes [grifo nosso]. É ainda Verón (1991), como vimos acima, que nos indica ser função do Jornalismo, nas sociedades atuais, midiatizadas, o exercício da “mediação”. O contrato, pois, é um princípio que, segundo entendemos, regula de forma implícita, mas fundante, as relações no processo telejornalístico de mediação, nas sociedades democráticas industriais e tecnológicas. Como vimos, o conjunto de conceitos que compõem a noção de enunciação nos servirá de base teórico-metodológica para a leitura das imagens, sons e textos televisivos gerados na produção dos telejornais e do documentário que constituem o corpus da pesquisa. E, retomando a fundamentação dada a este trabalho, entendemos discurso como aquilo que faz laço, que apreendemos da postulação de Lacan (1966; 1985), e com Freitas (1992). Além disso, na tentativa de aplicar postulado de Lyotard (1986) aos estudos do Jornalismo, diríamos que cabe à instituição jornalística promover o “vínculo social”, concebido como efeito dos “jogos de linguagem”. Considerando que o principal laço social vigente na atualidade é constituído mediante as relações ca-

(Des)Construção da cena enunciativa

145

pitalistas, o fazer jornalístico objetiva dar conta de tais relações, na sua função mediadora entre os diversos segmentos da sociedade, entre as instituições. Para pensar essa função-fim dos mídias, recorremos novamente à noção de “aparelho formal de enunciação”, de Benveniste (1989), com a qual concebemos a instauração de um duplo lugar enunciativo: a) Lugar implícito: o lugar do A, do qual falamos acima: para tudo o que o sujeito realiza numa situação de enunciação, há um contrato implícito, que é básico, pois sem ele não há humanidade; b) Lugar explícito: o “contrato enunciativo”, o que se faz na cena enunciativa: “Juro dizer a verdade...” Enfim, a incorporação de conceitos-chave das Ciências da Linguagem – dentre os quais se destaca o conceito de “inconsciente”, proveniente de Sigmund Freud – é que nos vai permitir revelar a estrutura do discurso do telejornalismo e, consequentemente, dos mecanismos que são o suporte dos laços sociais. Os mecanismos a que Freud se refere são a condensação e o deslocamento, ou metáfora e metonímia, que se manifestam nas diversas formas discursivas, dentre as quais se acham os atos falhos, os chistes, os sonhos (FREUD, 1976). Para Lacan, tais mecanismos constituem o discurso do sujeito dividido ($), ou sujeito do inconsciente, na insistente trajetória pelo encontro com o seu desejo. Nesse entendimento, o cidadão maranhense e brasileiro deseja, insistentemente, que se apliquem os princípios republicanos da preservação e usufruto do patrimônio público, que é de todos, por todos.

Referências ATAIDE, J. M. de. Discurso jornalístico: da carta ilegítima à carta cidadã, no entremeio da política e do Jornalismo, no Maranhão. Brasil: 1985-1990. Tese de Doutorado. v.1. Universidade de São Paulo-USP /Escola de Comunicações e Artes-ECA /Departamento de Jornalismo e Editoração-CJE, São Paulo, 1998. __________. O Telejornalismo em processos político-jurídicos. a cobertura da CPI do crime organizado / CPI do narcotráfico. Maranhão-Brasil,

146

Desafios da pesquisa em jornalismo

1999. – Projeto de pesquisa - Parte II. São Luís: Departamento de Comunicação Social/Universidade Federal do Maranhão, 2008. BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Trad. Eduardo Guimarães et alii. Campinas: Pontes, 1989. 294p. (Linguagem/Crítica) CERTEAU, M. de. A Escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. DERRIDA, J. Fé e saber. As duas fontes da “religião” nos limites da simples razão. In A Religião: o seminário de Capri. VATTIMO, Gianni, DERRIDA, Jacques. (org.) São Paulo: Estação Liberdade, 2000. p. 11-89 FREITAS, J. M. M. de. Comunicação e psicanálise. São Paulo: Escuta, 1992. (Ensaios: Comunicação) __________. A CNN e a Globalização Mediática: uma nova hegemonia ou a formação de comunidades imaginárias? Relatório Final de Pesquisa. São Paulo: NJL-CJE/ECA-USP/CNPq, 1998. FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer; psicologia de grupo e outros trabalhos. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1976. 352p. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, 18) LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Versão. M.D. Magno. 4.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990. __________. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. 2.ed. Trad. M.D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. __________. Televisão. Versão: Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993. (O Campo Freudiano no Brasil) LEITE, Andrea. O traçado da luz: um estudo da sintaxe em reportagens televisivas. Dissertação de mestrado. Universidade de São Paulo, 2006. s/e. Acompanha CD-Rom. Nascimento, Patrícia. Jornalismo em revistas no Brasil: um estudo das construções discursivas em Veja e Manchete. São Paulo: Annablume, 2002. 186p. (Selo Universidade) QUÉRÉ, L. Des Miroirs équivoques. Aux origines de la communication moderne. Paris: Aubier Montagne, 1982. STRECK, Lenio Luiz. A concepção cênica da sala de audiências e o pro-

(Des)Construção da cena enunciativa

147

blema dos paradoxos. Última instância: revista jurídica. www.ultimainstancia.uol.com.br. Acesso em 17.03.2005. TV Difusora do Maranhão. Bom Dia Maranhão. (Imagens e texto em decupagem.) São Luís, 1999. TV Difusora do Maranhão. Bandeira 2. (Imagens e texto em decupagem.) São Luís, 1999. TV Mirante. Jornal da Manhã. (Imagens e texto em decupagem.) São Luís, 1999. TV Mirante. Repórter Mirante. (Imagens e texto em decupagem.) São Luís, 1999. VÉrOn, E. Les médias en réception: les enjeux de la complexité. In Médias pouvoir. Politiques, économies et stratégies des médias. Paris: Bayard Press, n.21, jan.-mar. 1991, p.166-172. __________. Fragmentos de um tecido. Trad. Vanise Dresch. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2005. (Comunicação)

148

Desafios da pesquisa em jornalismo

149

Jornalismo cidadão: a experiência da rádio comunitária Bacanga FM

Wesley Pereira Grijó Doutorando do PPGCOM da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Comunicação, Cultura e Cidadania pela Universidade Federal de Goiás. E-mail: [email protected]

Rosinete de Jesus SilvaFerreira Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora do Departamento de Comunicação Social da UFMA. E-mail: [email protected].

1. Introdução Sob o ponto de vista da economia política da radiodifusão, o Brasil possui um sistema de distribuição de concessões de rádios restrito a poucos grupos econômicos, o que só veio a esboçar certa mudança com a aprovação da Lei 9.612/98, que teria por finalidade promover a comunicação comunitária no país, mas que ainda assim possui seus limites para o crescimento desses meios alternativos. Por outro lado, dentro do que se costumou chamar de “reforma agrária no ar”, como definiu Denoti (2004), as rádios comunitárias ainda se apresentam hoje como importantes instrumentos de participação popular na produção jornalística. Elas emergiram no cenário brasileiro da comunicação para alterar nosso contexto comunicacional a partir da segunda metade da década de 19901. 1. As rádios comunitárias são herdeiras das experiências comunicacionais desenvolvidas pelas rádios livres, pelos Movimentos de Educação de Base- MEB e pelas rádios populares, que tiveram presença significativa no contexto social

150

Desafios da pesquisa em jornalismo

Apesar das poucas pesquisas na área de radiojornalismo nas emissoras comunitárias, acreditamos que são nelas onde realmente se colocou em prática o jornalismo comunitário pelo qual as grandes empresas de comunicação não se interessaram. São as comunitárias que passaram a dar mais importância aos acontecimentos locais, diferentemente do que fazem na cobertura dos grandes meios jornalísticos. Portanto, é a partir das questões que envolvem o radiojornalismo, que propomos discutir a produção da rádio comunitária Bacanga FM, em São Luís-MA. Nosso objetivo é fazer uma interação entre esse jornalismo comunitário e a noção de cidadania, pois consideramos que todas essas ideias interagem na comunicação comunitária, como a própria história do movimento ratifica.

2. A rádio Bacanga FM A origem da Rádio Comunitária Bacanga remonta ao ano de 1988, quando nasceu no bairro Anjo da Guarda2, em São Luís-Maranhão, o primórdio do que seria a Rádio Bacanga FM: um rádio popular de sistema de alto-falante. A iniciativa partiu do padre Luís Zadra, então responsável pela igreja da comunidade, com o objetivo de promover uma comunicação diferenciada na Área Itaqui-Bacanga3. Assim, a emissora teve origem com o sistema de alto-falante instalado na igreja Católica, como outras da mesma categoria no Brasil e na América Latina, conforme já foi apontado por Peruzzo (1998) em pesquisa realizada em âmbito nacional. Com o passar dos anos, área Itaqui-Bacanga se expandiu, o que tornou a rádio popular insuficiente para cobrir os mais de 57 bairros com mais de 238 mil pessoas4. A carência, a necessidade e a importância do país a partir dos anos 80. Ver mais em: Moreira; Del Bianco (2001) e Congo (1998). 2. Bairro da periferia de São Luís, no estado do Maranhão, localizado na chamada Área Itaqui-Bacanga. O bairro destaca-se por ter intenso comércio e uma relativa vida cultural. Dentro da Capital maranhense, o bairro é também conhecido por possuir altos índices de violência. 3. Localidade mais populosa da Capital maranhense, segundo dados do IBGE 2007, onde está situado o bairro do Anjo da Guarda, além de mais outros 30 bairros, com cerca de 200 mil pessoas. 4. Dados atuais, a partir de estimativa referente à segunda metade da década de 2000, com base no IBGE.

Jornalismo cidadão: a experiência da rádio comunitária Bacanga FM

151

de uma rádio que chegasse a toda a área começou a tomar conta dos integrantes da rádio popular. Essa necessidade coincidiu com o aparecimento do movimento de rádios comunitárias no país, na segunda metade da década de 1990. Em outubro de 1998 foi colocada no ar a rádio comunitária na frequência de 104,1 MHz, com pouca estrutura, somente um transmissor e um CD player, num estúdio improvisado no salão paroquial da igreja do bairro. Nos primeiros anos, a programação tinha grande ligação com a igreja católica, contudo os integrantes tinham o ideal de fazer uma comunicação produzida pelos grupos populares da comunidade. A Rádio Popular operou até 1997, quando seus fundadores resolveram criar uma emissora que tivesse maior abrangência e em Frequência Modulada (FM). Neste mesmo ano, foram realizadas várias visitas a bairros vizinhos ao Anjo da Guarda, com o intuito de explicar para as pessoas o que era e qual a importância da rádio comunitária. Em outubro de 1998, mesmo ano da sanção da Lei 9.6125, entrou no ar a Rádio Bacanga FM, operando na frequência 104,1 Mhz. Como em todas as rádios comunitárias de fato, o começo desta emissora foi marcado por dificuldades estruturais e financeiras. A rádio iniciou com equipamentos doados pela Abraço-MA6 e por moradores do bairro: um amplificador, uma mesa de som de seis canais, um microfone e um toca discos. A clandestinidade logo foi reprimida pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações). A Bacanga FM chegou a ser fechada três vezes, tendo os equipamentos lacrados pela Polícia Federal. No entanto, os integrantes da rádio burlavam a decisão judicial e voltavam a colocá-la no ar, mudando o local de funcionamento da emissora, isso aconteceu por seis vezes. Por conta da reincidência, o diretor da rádio, Luis Augusto, respondeu a um inquérito na Polícia Federal. Em 1999, a emissora sofreu a primeira intervenção da Anatel, quando foi apenas notificada e, diferentemente da prática comum da agência reguladora, a rádio não teve seus aparelhos subtraídos, uma vez 5. A Lei 9,612 foi sancionada no dia 19 de fevereiro de 1998, no primeiro governo do presidente Fernando Henrique Cardoso. 6. Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária.

152

Desafios da pesquisa em jornalismo

que os moradores do Anjo da Guarda se mobiliaram e, em menos de 30 minutos, mais de 100 pessoas estavam em frente ao estúdio impedindo a polícia de apreender os aparelhos. Após uma reunião com vários moradores, a direção da emissora decidiu que descumpriria a decisão da Anatel e retornaria com a programação normal, mesmo estando ilegal. Naquele mesmo ano, a rádio voltou ao dial, com uma programação mais intensa e diversificada. Quase de forma imediata, a Anatel, a Polícia Federal e Polícia Militar conseguiram entrar no estúdio e lacrar o transmissor. Novamente a comunidade se mobilizou e decidiu romper o lacre e colocar a rádio novamente em funcionamento. Após sair das dependências da igreja que estava em reforma, a emissora se instalou numa das ruas do bairro onde passou quase um ano. Nesse mesmo tempo, em Assembleia Geral, em 2000, ficou decido que a direção da rádio procuraria se legalizar perante os órgãos reguladores. De início, os participantes da rádio criaram uma associação cultural, contrataram um engenheiro conforme exigia a Legislação para as emissoras comunitárias. Em 18 de março de 2002, a Rádio Comunitária Bacanga FM recebeu a concessão provisória do Ministério das Comunicações para funcionar como rádio comunitária. Antes que o prazo da concessão provisória expirasse, a emissora recebeu a concessão definitiva, em 14 de março de 2003, tornando-se então, de direito e de fato, a primeira rádio comunitária de São Luís. Neste tempo, a emissora voltou a funcionar nas dependências da igreja católica. Em 13 de agosto de 2004, um grande vendaval destruiu a torre da rádio, o que causou grande prejuízo financeiro e administrativo para a Rádio Bacanga. Sem nenhuma alternativa de montar estúdio naquele local que ficou bastante danificado, a direção resolveu se mudar para Avenida Moçambique, principal via do Anjo da Guarda, funcionando numa oficina de bicicletas por um mês. No âmbito administrativo, novos documentos tiveram que ser revistos para permitir o retorno da emissora; no que tange à estrutura, sem a torre de 30 metros (exigência da Lei 9.612) um vergalhão de 4 metros foi colocado no telhado, com essa

Jornalismo cidadão: a experiência da rádio comunitária Bacanga FM

153

medida a rádio voltou a funcionar. Uma nova torre só pôde ser colocada – dentro do prazo exigido pela Anatel7 - após a direção da Rádio Bacanga conseguir patrocínio com uma multinacional instalada no bairro. Atualmente, a Rádio Bacanga FM está em pleno funcionamento, contando em seu corpo de apoio com cerca de 60 pessoas, entre voluntários e diretoria. Estruturalmente, a emissora possui dois estúdios (transmissão e gravação), transmissão simultânea pela Internet8. Como em toda rádio comunitária, educativa ou comercial, a Bacanga passou por várias mudanças na grade de programação9. Contudo, o caráter comunitário esteve sempre presente. Também não se pode deixar de lado que, como em outras rádios comunitárias, é latente a influência das emissoras comerciais nos programas. Apesar de serem falhas admitidas pela direção da emissora, só podem ser extintas ou amenizadas com capacitações10, conscientizando os agentes sociais envolvidos na emissora da importância social que eles exercem.

3. O radiojornalismo da Bacanga FM Consideramos o Jornalismo Comunitário como o principal fator para a promoção da cidadania11 na programação da Rádio Bacanga FM. Na prática, o jornalismo é feito por pessoas voluntárias, quase sempre sem formação acadêmica, principalmente na área da comunicação. A exceção neste caso é para um dos membros da direção da emissora, 7. Segundo a Lei 9.612, uma emissora comunitária só pode ficar fora do ar por 30 dias, pois depois desse prazo a fundação perde a concessão da rádio. O prazo só pode ser estendido mediante aviso prévio à Anatel. 8. http://www.radiobacangafm.com.br/ 9. Devido a certa inconstância na programação da emissora, limitamos nosso objeto de análise nos programas mais fixos e mais antigos, visto que sedimentaram o espírito comunitário da rádio comunitária. 10. Em 2006, a Rádio Bacanga foi visitada pelo Grupo de Apoio a Rádios Comunitárias (GARC), projeto de extensão do Curso de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão. Em anos anteriores, a mesma rádio recebeu capacitação da ABRAÇO-MA, sob a coordenação do professor da UFMA, Campus Imperatriz, Ed Wilson. 11. O conceito de cidadania sofre mudanças desde a Grécia Antiga, mas os avanços da técnica e da política provocaram impactos que alteram os direitos e deveres dos cidadãos. Com a transformação, várias atitudes caracterizam a prática da cidadania, então, envolve participação social e garantia de direitos à vida, saúde, alimentação, habitação, saúde dentre outros.

154

Desafios da pesquisa em jornalismo

Alessandro Martins, formado em Comunicação Social (Relações Públicas), na Universidade Federal do Maranhão. Os voluntários da emissora, assim como em outras rádios comunitárias no Brasil, possuem pouca formação escolar, o que de certa forma é percebido no momento da transmissão da mensagem, como por exemplo, os erros de leitura ou mesmo equívocos da norma padrão da língua portuguesa no material produzido para ser lido. Assim, sob um ponto de vista didático no que diz respeito ao radiojornalismo, verificamos a predominância do que vamos denominar aqui de formatos12, bem característicos das emissoras comerciais, sendo já classificados pela literatura do campo da comunicação. Dentre esses formatos, o mais comum entre os programas da emissora é a Nota, geralmente lida pelo próprio locutor durante o programa, seja jornalístico ou entretenimento. Assim, a Nota no caso da Rádio Bacanga pode ser conceituada como um informe sintético de acontecimento ou fato atual. O tempo de duração é predominantemente curto não ultrapassando 45 segundos, caracterizado por frases diretas, de forma quase telegráfica. O que denominamos de Notícia no campo do jornalismo – que numa visão estruturalista pode ser conceituada como relato integral de um fato que já eclodiu no organismo social, como diz Marques de Melo (2003) - também é constante no radiojornalismo da Bacanga FM. Na prática, notamos que essa Notícia possui um tempo de apresentação curto, com aproximadamente um minuto e meio. Geralmente é apresentada por mais de um locutor, citamos como exemplos, os programas de cunho estritamente jornalístico. Algumas vezes, a Notícia pode vir acompanhada de uma entrevista (sonora), neste caso, tal possibilidade fica sujeita às condições estruturais da emissora, como gravador, repórter e funcionamento do estúdio de gravação. As notícias no radiojornalismo da rádio ludovicense são transmitidas ainda através de entradas ao vivo de qual12. Neste caso, partimos de uma verificação a partir da audição da grade de programação. Durante esse processo de audição verificamos ainda que tais formatos não são uma constante, ocorrendo de forma esporádica nas atrações ao logo da programação, a exceção se faz presente nos programas predominantemente jornalísticos.

Jornalismo cidadão: a experiência da rádio comunitária Bacanga FM

155

quer ponto da comunidade Itaqui-Bacanga, o que é feito com a ajuda de telefone celular ou mesmo de algum telefone público do bairro. Outro formato encontrado na emissora é o Boletim noticioso. Este formato é apresentado em poucos minutos, produzido e apresentado por apenas uma pessoa; no Boletim noticioso conta muito a instantaneidade da notícia, mas no âmbito da Rádio Bacanga ele é geralmente produzido por agências públicas de comunicação, como Agência Brasil, Agência Senado, Rádio Câmara, etc. O Boletim noticioso normalmente é veiculado nas “cabeças de horário”. Já a Reportagem, que segundo Marques de Melo (2003), é o relato ampliado de um acontecimento que já repercutiu no organismo social e produziu alterações que são percebidas pela instituição jornalística, raramente se faz presente no radiojornalismo daquela emissora comunitária. Os motivos podem ser considerados desde a falta de pessoal capacitado para tal finalidade até a falta de estrutura da rádio. Mesmo não sendo feita a reportagem nos parâmetros pensados por Marques de Melo (2003), verificamos um tipo de reportagem típica do meio radiofônico: menos rígidas aos padrões jornalísticos dos meios impressos e mais voltada para a questão da oralidade e do repórter in loco no momento da transmissão do acontecimento. Em praticamente todos os programas, a Entrevista acontece com mais frequência. No que diz respeito à estrutura, ela se caracteriza pelo diálogo entre o entrevistador e o entrevistado, através de perguntas e respostas, com objetivo de obter informações. Durante a programação da Rádio Bacanga, verificamos a predominância de entrevistas de dois tipos: a primeira é aquela que tem como eixo a informação, nesse caso são as entrevistas utilizadas nas reportagens, boletins noticiosos ou entrevistas com responsáveis por serviços públicos, organização de eventos, etc; o outro tipo de entrevista é aquela que tem como eixo a personalidade do entrevistado, frequentemente são utilizadas em programas de entretenimento com cantores, músicos, atores, artistas locais. Predominantemente, essas entrevistas são veiculadas ao vivo, sendo que o entrevistado pode estar presente no estúdio ou falando por telefone.

156

Desafios da pesquisa em jornalismo

Durante a veiculação dos programas, seja de cunho jornalístico ou de entretenimento, verificamos a presença constante do Comentário, atribuído sempre a alguma informação relatada anteriormente. Observamos que o Comentário tem a função de informar e orientar o ouvinte, além de incliná-lo em favor de uma determinada interpretação do fato, considerado justo e correto. Temos que deixar evidente também que o comentário parte de conceitos e ideias sob a ótica do comunicador que, através de sua visão de mundo, tem o objetivo de criar opinião similar na audiência. Por essa razão, consideramos a opinião dos comunicadores durante os programas como Comentário, haja vista que este reside no seu conteúdo opinativo, expressando a opinião do autor. O único exemplo de Radiojornal presente na programação da emissora são os informativos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em nível local e nacional. Esse formato é constituído por diversas seções ou editorias, como as de notícias locais, nacionais, econômicas, de serviço, de política, etc. Esses programas caracterizam-se pela periodicidade diária, mantendo a regularidade nos horários de início e término das transmissões. O tempo desses radiojornais varia de quinze minutos a uma hora. Estruturalmente, contêm a cabeça do programa, as manchetes, os destaques, os resumos, a classificação dos blocos noticiosos, cortinas sonoras para a divisão dos blocos (recursos para atrair a atenção do ouvinte e a utilização de fundo musical). Os programas são apresentados por um casal de locutores com a participação de repórteres. Diariamente, a rádio possui programa Esportivo com conteúdo produzido por voluntários da emissora comunitária. Como uma tendência mundial de considerar os programas esportivos como uma categoria ou gênero jornalístico, aqui também os tomamos como um dos formatos em que temos jornalismo na Rádio Bacanga, sendo um dos que mais cativam o público, conforme opinião de muitos ouvintes13. Em termos de estrutura, o jornalismo esportivo na rádio comunitária aparece em três formas: 1) noticiário esportivo - que ocorre diariamente com assuntos locais, estaduais, nacionais e internacionais; 2) transmissão de eventos - especialmente o futebol e basquete, dando prioridade absoluta ao es13. Opinião apurada durante pesquisa de campo com ouvintes da Rádio Bacanga FM.

Jornalismo cidadão: a experiência da rádio comunitária Bacanga FM

157

porte desenvolvido na comunidade de abrangência da emissora. Dentro do programa Esportivo e, às vezes, em outras atrações da emissora, aparecem ainda os Debate e/ou Mesa Redonda. A rádio inclusive já tentou promover um debate entre candidatos à Prefeitura de São Luís, contudo não obteve êxito. Sem uma fórmula fixa intencional, a emissora apresenta debates e/ou mesas redondas quando aborda assuntos com a participação de várias pessoas de opiniões diversas, abrindo espaço inclusive para a audiência se manifestar. Mesmo tendo jornalismo ou informação na maioria dos programas, é no “Show da Comunidade” que os moradores do Anjo da Guarda podem se fazer ouvir através de cartas ou telefonemas. No programa, são lidas primeiramente as principais notícias dos jornais que circulam na cidade, com ênfase ao jornal Folha Itaqui-Bacanga, cujo conteúdo é voltado para a localidade homônima. Essa etapa do programa é ainda um resquício dos primórdios do radiojornalismo, quando o locutor lia as noticias diretamente dos periódicos. Logo depois são comentados assuntos que o apresentador considera relevantes e que, geralmente, têm algum reflexo para os ouvintes, o que nem sempre coincide com algum acontecimento ocorrido na comunidade. Em seguida, o público pode participar com suas opiniões ou reclamações para serem expostas ao vivo. Nesse momento, o jornalismo se torna de caráter mais comunitário visto que é totalmente dominado por temas da localidade. Dependendo da gravidade do que está sendo exposto pelo ouvinte, a emissora imediatamente entra em contato com alguma autoridade para realizar o “confronto” de informações, principalmente quando é denúncia ou reclamação de mau funcionamento do serviço público. No que diz respeito ao conteúdo dos programas, observamos certa hibridização14 entre os temas locais com os estaduais, nacionais e até internacionais. Nos programas de caráter exclusivamente jornalísticos, verificamos a predominância da cobertura de acontecimentos locais, o 14. Para este termo tomamos como referência a obra Culturas Híbridas, de Néstor Garcia Canclini. CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair de da modernidade. São Paulo: Edusp, 2003.

158

Desafios da pesquisa em jornalismo

que fica a desejar nos programas de entretenimento, que muitas vezes são reflexos do que se está discutindo em nível nacional e internacional, deixando de abordar ou pelo menos contextualizar com a realidade local. Dentro dessa cobertura local, podemos ver a hegemonia de assuntos de prestação de serviços, assim como a procura da audiência para denúncias de descasos do Serviço Público. Assim, a comunidade se apóia na emissora para cobrar melhorias em ruas, instalação elétrica, saneamento básico, denúncias sobre atendimento em órgãos públicos e até ajuda financeira para compra de alimentos e medicamentos. Nessa questão estaria implicada a ideia de cidadania construída pela emissora comunitária.

4. Considerações finais: o poder de fala do subalterno Este artigo coloca em pauta um assunto que está nas atuais discussões: os chamados estudos pós-coloniais15, principalmente, em relação ao poder de fala dos grupos subalternos16. Assim, identificamos aquelas pessoas que produzem o radiojornalismo da Bacanga FM não apenas como cidadãos envolvidos num meio de comunicação comunitário, mas sim como sujeitos em busca de poder de fala numa sociedade de capitalismo tardio. Nesse sentido, nos valemos do título e do pensamento de Spivak (2007)“Can The subaltern speak?” com a finalidade de colocar em questionamento o poder e o local de fala dos grupos marginalizados ou su15. Os estudos pós coloniais são marcados por estudos transversais que envolvem a teoria literária, a psicanálise, a filosofia, a antropologia, a histórica e a política. 16. Nossa ideia de grupos subalternos parte da contribuição dos subaltern studies, integrado por intelectuais encabeçados por Gayatri Spivak. Estudos desse grupo e de outros pesquisadores contemporâneos acrescentaram mais embasamento teórico ao uso do conceito de “subalterno”, que agora se ampliou enormemente. O ponto de partida é o conceito estabelecido por Gramsci, ou seja, do camponês meridional particularmente, mas se vai adiante, com o mundo colonial e pós-colonial, o migrante, o refugiado. Para o contexto brasileiro, os favelados, moradores das periferias, migrantes, sujeitos às margens do modo de vida considerado hegemônico. As ideias de Antonio Gramsci que iniciaram essa questão podem ser obtidas em: GRUPPI, L. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda., 1980.

Jornalismo cidadão: a experiência da rádio comunitária Bacanga FM

159

balternos. Consideramos que, no caso da rádio analisada, os subalternos falam através dessa experiência de comunicação comunitária que por vários anos vem atuando naquela localidade. Contudo essa “fala” é feita baseada no modus operandi do jornalismo dos meios tradicionais. Pudemos verificar isso através da análise do radiojornalismo diluído na programação da emissora, onde identificamos os gêneros/formatos presentes nos jornalismo das emissoras comerciais. Verificamos que a relação entre o jornalismo e a comunidade da Rádio Bacanga FM está relacionada a interesses de várias ordens. Assim, por ser aquele radiojornalismo de caráter comunitário, são bem expressivas as bandeiras levantadas pela emissora: campanhas de limpeza urbana, preservação do meio ambiente e combate a doenças, assistência aos moradores necessitados, etc. Quando se pauta pelas questões de cidadania, o conteúdo do jornalismo da emissora está muito relacionado ao trabalho de assistência promovido ao longo da programação. Isso se deve a uma razão bem simples: o perfil da audiência da emissora. Ou seja, são pessoas que num perfil sócio-econômico estão na base da pirâmide econômica e social da capital maranhense e, por isso, seus valores e conceitos estão atrelados a uma ideia de cidadania, participação e reivindicação de forma mais concreta, a partir das necessidades de seus cotidianos.

Referências CANCLINI, N. G. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1995. CANCLINI, N. G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair de da modernidade. São Paulo: Edusp, 2003. COGO, D. M. No ar... Uma rádio comunitária. São Paulo: Paulinas, 1998. MOREIRA, S. V.; DEL BIANCO, N. Desafios do rádio no século XXI. Rio de Janeiro: UERJ, 2001. DENOTI, M. Rádios comunitárias: revolução no ar. In: FILHO, André Barbosa (org). Rádio: sintonia do futuro. São Paulo: Paulinas, 2004. GRIJÓ, W. P. Jornalismo e cidadania: um estudo de recepção da Rádio

160

Desafios da pesquisa em jornalismo

Comunitária Bacanga FM. Monografia (Trabalho de Conclusão de Curso). Graduação em Curso de Comunicação Social. Universidade Federal do Maranhão. São Luís, 2008. GRUPPI, L. O conceito de hegemonia em Gramsci. Rio de Janeiro: Edições Graal Ltda., 1980. MANZINI-COVRE, M. L. O que é Cidadania? São Paulo: Brasiliense, 2005. MARQUES DE MELO, J. M. Jornalismo Opinativo: gêneros opinativos no jornalismo brasileiro. 3ª ed. Campos do Jordão: Mantiqueira, 2003. MENDONÇA, M. L. Comunicação e cultura: um novo olhar. In: Sousa, Mauro Wilson de (org.). Recepção mediática e espaço público: novos olhares. São Paulo: paulinas, 2006. PERUZZO, C. Comunicação nos Movimentos Populares: a participação na construção da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998. SPIVAK, G. Can the subaltern speak? In: The post-colonial studies reader. Routledge, 2007.

161

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa Professora Assistente do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão, Campus II, Imperatriz (MA). Doutoranda do Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]

1. Introdução Este artigo, parte de minha pesquisa de doutorado1, é a expressão de uma inquietação nascida no dúbio ambiente em que me movimento na sociedade midiatizada como consumidora e produtora de conteúdo jornalístico: a inquietação de tentar compreender como um dado cultural específico de uma parte do país é transformado em representante da cultura nacional, reconhecível por toda a comunidade formadora do Estado-Nação. A pesquisa é motivada pela necessidade de investigar o processo de hegemonização cultural, potencializado através da mídia, que torna possível a sociedades internamente tão diversificadas – como a brasileira – partilharem um repertório cultural mínimo comum. Aqui, apresento 1 O artigo é parte das reflexões teóricas iniciais da pesquisa intitulada “Mídia, Cultura e Identidade nacional: processos de hegemonização cultural em perspectiva comparada”, com orientação de Gustavo Lins Ribeiro.

162

Desafios da pesquisa em jornalismo

as inquietações teóricas que balizam a condução da pesquisa em andamento. A importância de se compreender como um determinado elemento cultural é escolhido para representar, para significar a cultura de uma nação está no fato de que, no atual estágio do desenvolvimento da sociedade, há a tendência a naturalizar-se o que não passa de uma construção simbólica: a cultura nacional. Tão simbólica e construída quanto a própria nação que, conforme Anderson (2008), é, em todos os casos, uma comunidade imaginada. Acredito que produtores e editores de conteúdo de telejornais partilham uma cosmologia do que seja a nação e sua cultura, uma espécie de nós-ideal (ELIAS, 2006), sedimentado no senso comum das redações (SOUSA, 2002) e operacionalizado a partir das rotinas jornalísticas (TRAQUINA, 2004; TUCHMAN, 1983; ALSINA, 1996) que permitem a seleção de determinados elementos culturais regionais em detrimento de outros e, desta forma, contribuem para o processo de produção de hegemonia cultural. Os núcleos culturais e ideológicos escolhidos pelos produtores e editores de conteúdo televisivo como sendo representativos da cultura nacional são aqueles relacionados ou identificados com aspectos culturais das cidades sinédoques (RIBEIRO, 2002) do País, especialmente a cidade do Rio de Janeiro. A cidade é o centro de produção televisiva do Brasil, onde estão localizados os maiores complexos midiáticos brasileiros. As emissoras geradoras, conhecidas como cabeças-de-rede, encontram-se, majoritariamente, ali e centralizam a produção de todo o conteúdo exibido em rede nacional, mesmo quando produzido pelas afiliadas espalhadas pelos estados. O sistema de televisão em rede favorece a homogeneização porque há o caráter integrador próprio do meio televisivo, aquele de reunir públicos os quais as circunstâncias – sejam elas geográficas, econômicas, sociais ou mesmo culturais – tendem a separar (WOLTON,1996). O Brasil logrou um nível de integração cultural elevado graças ao sistema de transmissão do sinal televisivo em rede via satélite. Não podemos esquecer que essa tarefa foi facilitada pelo fato de a língua da transmissão ser a mesma falada pela virtual totalidade dos receptores.

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

163

A possibilidade de uma pessoa ver, a milhares de quilômetros de distância dos grandes centros, os mesmos programas ao mesmo tempo foi o elemento capaz de produzir essa homogeneidade. As particularidades regionais tendem a ser suprimidas do espectro televisivo, exceto quando podem ser reduzidas a estereótipos e veiculadas como curiosidades culturais de países imensos. A cultura das redações torna possível a padronização da cultura nacional por meio do conteúdo das notícias e do senso comum partilhado por produtores e editores dos telejornais de rede. Cabe pontuar que não trabalho com a ideia de um maquiavelismo simplista, o qual leva a crer que esses processos são pensados e executados de forma deliberada por alguma figura orwelliana, um Big Brother homogeneizante sentado em uma cadeira cumprindo burocraticamente a rotina de determinar o que uma sociedade deve pensar. Acredito, pelo contrário, que exista influência – e não manipulação – e que a influência opera a partir das expectativas e aberturas do próprio público que recebe o conteúdo televisivo. Se existe algo parecido com esse Big Brother, ele não age no vazio. É preciso que o público encontre naquele conteúdo algo com o qual se identifique minimamente para que possa ser operado o “milagre” da construção de uma cultura nacional a partir de segmentos culturais regionais. Algum elemento catalisador esses núcleos culturais e ideológicos devem possuir para, por meio da repetição, serem aceitos pelo público consumidor como sínteses do nacional. Não acredito em imposição de identidade simbólica, embora concorde com Bourdieu (1997; 2010) a respeito do poder de exercício de violência simbólica que aparatos como a televisão são capazes de exercer em determinados contextos.

2. Televisão e cultura nacional: influências múltiplas Os meios de comunicação de massa desempenham um papel importante não apenas para uma construção social da realidade cultural nacional, mas principalmente para assegurar a noção de pertencimento

164

Desafios da pesquisa em jornalismo

e de reconhecimento dentro de um contexto de elevada heterogeneidade. Bird (2010, p. 2) considera que a antropologia da notícia e do jornalismo não pode ser excluída de um debate tão rico e provocante, afirmando que “anthropology today can no longer dismiss media as external forces acting upon distinct ‘cultures’, but rather that they are inextricably embedded in culture, reflecting and reshaping it in an ongoing process”. Como processo, a construção da cultura nacional, em países cuja televisão oferece um repertório cultural comum, propicia a ocorrência de fenômenos como aquele que Bucci identifica no caso do Brasil, País em certa medida integrado via Embratel. Nas palavras do autor, a televisão é muito mais do que um aglomerado de produtos descartáveis destinados ao entretenimento da massa. No Brasil, ela consiste num sistema complexo que fornece o código pelo qual os brasileiros se reconhecem brasileiros. Ela domina o espaço público (ou a esfera pública) de tal forma que, sem ela, ou sem a representação que ela propõe do país, torna-se quase impraticável a comunicação – e quase impossível o entendimento nacional (BUCCI, 1996, p. 9).

Ribeiro (2000, p. 27) chama a atenção para o fato de que a televisão não tem conseguido “visibilidade”, nem “centralidade” nos estudos antropológicos e questiona o motivo dessa lacuna: se por não conseguirmos vê-la ou se por não podermos interpretá-la como “objeto fundamental para a socialização dos atores sociais”. Meu interesse de pesquisa parte do pressuposto de que a televisão é sim esse objeto de socialização e, também, de homogeneização de processos socioculturais e precisa ser analisada como tal. Não apenas a televisão, mas os meios de comunicação de massa em geral, têm a capacidade de “criar estados emocionais coletivos” (ORTIZ, 2001) e demandam um esforço analítico mais interdisciplinar. No campo teórico da Comunicação, a televisão é interpretada a partir de enfoques mercadológicos (MARCONDES FILHO, 1989; CAPARELLI, 2004), jornalísticos (ALSINA, 1996; VILCHES, 1996) e até mesmo filosóficos (JOST, 2004). Falta, porém, aprofundar a discussão pelo viés antropológico, perceber, conceber e problematizar a televisão como locus privilegiado de produção e circulação de cultura. A televisão “é uma

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

165

técnica, um eletrodoméstico, em busca de necessidades que a legitimem socialmente” (SODRÉ, 1984). Ela é parte de um aparato social que permite a integração cultural via satélite de uma nação. Obviamente não se exclui aqui outros canais de difusão cultural, mas acredito que a noção de brasileiro como “contrafação de carioca” (RIBEIRO, 2000, p. 15) é acentuada graças aos discursos reiteradamente veiculados pelo meio televisivo que é, afinal, aquele de maior penetração territorial em nosso País2. O Brasil é pensado de maneira homogeneizante em várias esferas (ibdem), especialmente no campo jornalístico, no qual a simplificação é a regra. As notícias e o jornalismo, de acordo com Bird (2010,18), “play a significant role in the construction and maintenance of culture at the local and global levels”. “Construir” e “manter” cultura é parte do processo de hegemoneização que aqui nos interessa. Para que haja simplificação, é preciso que haja socialização dos processos produtivos dos conteúdos que serão veiculados. Vários estudos já foram realizados nesse sentido (TUCHMAN,1983; GANS, 2004; PEREIRA, 2003; ALSINA,1996; SOUSA, 2002; dentre outros), os quais mostram que os jornalistas formam uma comunidade que compartilha um código comum, definido como senso comum das redações. Esses estudos, porém, centram-se na Sociologia do Jornalismo, com a preocupação de descobrir por que as notícias são como são. Os jornalistas formam comunidade interpretativa (ZELIZER, 1993; TRAQUINA, 2005) que não é mera produtora de notícias, mas também produtora de símbolos culturais nacionais. Embora os telejornais não sejam os programas mais vistos da TV – as telenovelas o são –, eles têm o diferencial de lidar com fatos que afetam o cotidiano das pessoas com a chancela do real, reconhecível na experiência do telespectador mesmo que, paradoxalmente, essa experiência seja apenas midiática. Os telejornais são produtos que veiculam símbolos e signos, “entidades sociais” (RIBEIRO, 2000), constituídas por meio de narrativas que, conforme Souza (2007, p. 17), são “atos socialmente simbólicos e múltiplos que se disseminam por meio de formas 2. No Brasil, o sinal da maior emissora, a Rede Globo, cobre 98% do território nacional e alcança, segundo dados da própria Globo, a totalidade da população hoje calculada em quase 200 milhões de habitantes.

166

Desafios da pesquisa em jornalismo

escritas e orais, elaboram modos de ver e viver no mundo e se articulam em campos de disputa. Nas configurações socioculturais das nações, algumas narrativas preponderam e se disseminam hegemonicamente.” A imprensa, no século XIX, foi o veículo por excelência de difusão de ideias homogeneizantes que contribuíram para a construção simbólica do Estado-Nação com seu caráter de sociedade imaginada. Atualmente, os modernos meios de comunicação de massa continuam a desempenhar o papel do denominado “capitalismo editorial” (ANDERSON, 2008). No Brasil, a TV aberta é a que detém a maior parcela de audiência e de participação no mercado. A própria configuração socioeconômica do País, aliado ao alto custo da TV por assinatura, faz com que o modelo de televisão aberta ainda não enfrente, no Brasil, a crise de audiência e de arrecadação que já alcança vários países.

3. Interdisciplinaridade: o telejornalismo e a cultura nacional em diálogo com a Antropologia e as Teorias do Jornalismo A compreensão da influência múltipla que televisão e cultura nacional exercem entre si, inevitavelmente, leva o pesquisador a se movimentar em um campo interdisciplinar, mobilizando conceitos e metodologias de vários campos em uma interface teórica que, em último caso, contribui para a riqueza da construção teórica do campo da Comunicação e do Jornalismo como áreas do saber. A pesquisa na qual este ensaio se insere, inevitavelmente, dialoga com vários campos disciplinares. O objeto de pesquisa - processos de homogeneização cultural - está inserido na tradição antropológica que tem na cultura seu motivo mais básico. O corpus - produção televisiva sobre cultura nacional e o senso comum das redações sobre o que vem a ser essa cultura - pede que se dialogue, ainda, com conceitos caros à sociologia em geral e à sociologia do jornalismo, em particular, requerendo também o reforço da antropologia da notícia e do jornalismo. Uma noção basilar com a qual trabalho é a de núcleo cultural e ideológico, desenvolvida por Elias (2006), que parte do pressuposto de

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

167

que há, em toda sociedade, núcleos conformadores de sua identidade como grupo diferente de outros grupos e suas particularidades. As pessoas que se identificam como membros de certas sociedades compartilham uma visão de “nós-ideal” como forma de diferenciação. Nas palavras do autor, na Alemanha, na Itália, na França, assim como na Inglaterra, há algo como um ‘nós-ideal’, algo que alguém como alemão, francês, italiano ou inglês gostaria de ser ou não gostaria de ser, de fazer ou de não fazer; uma exigência que alguém coloca para si e para o outro como inglês, francês, italiano ou alemão. Algo assim ocorre em qualquer Estado nacional (ELIAS, 2006, p. 119).

A constituição, disseminação e aceitação de qualquer que seja o caráter do “nós-ideal” depende de uma base comum, embora com nuances, que se coloca acima das diferenças individuais, em menor escala, e regionais, em maior escala, dentro da sociedade. Se nações são comunidades imaginadas (ANDERSON, 2008), culturas nacionais são artefatos igualmente imaginados a partir de culturas locais. A composição social dos indivíduos – ou habitus, como define Bourdieu (2010) – é determinada pela cultura compartilhada e pela ideologia que sedimenta a forma como os indivíduos identificam-se como grupo. Neste trabalho, a noção de habitus é incorporada para ajudar a compreender quem são as pessoas que decidem o que é a cultura nacional disseminada no conteúdo dos telejornais. Produtores e editores de conteúdo compartilham um habitus, compartilham uma visão de mundo e têm no processo de socialização que torna possível o senso comum das redações (PEREIRA JR, 2003; TUCHMAN, 1983; SOUSA, 2002) o elemento que faz com que as escolhas individuais desses atores sociais sejam, em essência, escolhas coletivas. Kunczik (1997) afirma que notícia é aquilo que os jornalistas escolhem como notícia e podemos, seguindo esse raciocínio que se assenta no poder individual e coletivo de decisão sobre que aspecto da realidade privilegiar, afirmar que o que constitui a cultura nacional é, em parte, aquilo que os produtores e editores de conteúdo decidem como tal. A cultura nacional, ou aspectos relevantes dela, seria aquilo que alguém

168

Desafios da pesquisa em jornalismo

que vive certas experiências culturais determina e dissemina para o restante da sociedade. Bird (2010) argumenta que vivemos em um mundo em que a mediação de experiências vividas por outros acaba por determinar as nossas próprias experiências e nossa percepção da realidade – percepção esta que seria individual, mas transforma-se em coletiva. Para a autora, we live in a mediated world: much of what cultures ‘know’ about each other is learned from media, with news being a key conduit. News is unique among media forms in that it purports to be (and is often received as) an accurate reflection of reality, even though we know that news is a cultural construction that draws on narrative conventions and routine practices (BIRD, 2010, p. 5).

A notícia é indicador cultural, e não apenas produto de uma rotina industrial. Bird (2010, p. 10) argumenta que os textos midiáticos guardam valiosos significados simbólicos e são, eles mesmos, importantes narrativas culturais. Logo, o contexto de produção e circulação das notícias é um item decisivo para análises que se propõem a dar conta da construção de realidades sociais a partir de produtos midiáticos. Esta consciência tem balizado a realização de inúmeros estudos em antropologia e sociologia da notícia e do jornalismo, prática que remonta aos estudos das rotinas produtivas da mídia da década de 1970 e que ganhou sofisticação teórico-metodológica ao longo dos anos. As notícias, como produtos midiáticos, não dizem respeito apenas a acontecimentos transformados em textos e imagens; as notícias, em última instância, dizem respeito a processos sociais e culturais. É importante deixar claro o conceito de cultura utilizado neste trabalho. É fato que não existe uma definição ao mesmo tempo abrangente e incontroversa do que venha a ser cultura. Williams (1979) nos lembra que o termo passou a ser identificado com civilização a partir do último quartel do século XVIII, indicando a mudança estrutural de uma sociedade que deixava de ser agrícola para tornar-se, cada vez mais, urbana. Cultura, aos poucos, passou a significar conhecimento erudito para, com a crise da “civilização europeia” após duas grandes guerras mundiais e o advento dos meios de comunicação de massa e sua conso-

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

169

lidação a partir da década de 1960, ganhar um novo caráter e uma denotação plural: não se pensa mais a cultura, mas as culturas que emanam de uma sociedade. Cultura não é algo estanque, nem apartado da realidade social. A construção de um conceito abrangente deve levar isso em consideração. A proposta de conceituação de cultura em Williams articula língua, literatura e ideologia e, para o autor, o que chamamos de cultura é uma força produtiva essencial para a “produção de nós mesmos e de nossas sociedades”. Nesse sentido, cultura não é reflexo, mas parte constituinte de toda e qualquer realidade social. Assim, podemos defender que o conteúdo dos telejornais que “vendem” uma ideia de cultura nacional não é mero reflexo do senso comum das redações – redação entendida agora como uma sociedade. Esse conteúdo é, antes disso, parte tanto da sociedade mais restrita da redação quanto da sociedade mais ampla do Estado-Nação. Cultura é como a língua: uma atividade social prática (BAKHTIN, 1999), que depende de interações sociais para se estabelecer. Cultura, assim como a língua, é igualmente consciência social prática. Articulando essa noção que recebe contribuições da teoria marxista da linguagem e com o conceito de hegemonia em Gramsci (2006), Williams apresenta uma definição tão abrangente quanto factível de cultura, ao afirmar que é todo um conjunto de práticas e expectativas, sobre a totalidade da vida: nossos sentidos e distribuição de energia, nossa percepção de nós mesmos e nosso mundo. É um sistema vivido de significados e valores – constitutivo e constituidor – que, ao serem experimentados como práticas, parecem confirmar-se reciprocamente (WILLIAMS,1979, p. 113).

Elias (1994) não nos deixa esquecer ainda que cultura representa necessidade coletiva de expressão, como história coletiva cristalizada em um rol de elementos simbólicos que identificam um determinado grupo social. Wolf introduz a problemática da cultura como ideologia em produção. O autor sustenta que a cultura é “matéria-prima a partir da qual as ideologias são construídas e ganham influência” e alerta para o fato de que “a ideologia seleciona do plano mais geral da cultura

170

Desafios da pesquisa em jornalismo

aquilo que lhe é mais adequado, o que pode atuar como marcas, símbolos ou emblemas de relações que se quer destacar” (citado em Ribeiro & Feldman-Bianco 1998, p. 156). Discutir ideologia, nesse sentido, tem a importância de clarear a adjetivação inseparável da noção de núcleo que norteia a pesquisa mais ampla no qual este artigo está inserido: ao me debruçar sobre núcleos culturais e ideológicos que constituem a cultura nacional, não posso deixar de tecer considerações sobre a ideologia como conceito e como prática discursiva. Em Wolf (1999, p. 4), encontramos uma abordagem que pluraliza o fenômeno – não existe uma ideologia, mas várias – e o associa indiscutivelmente ao aspecto político da sociedade, pois ideologias “sugerem esquemas unificados ou configurações desenvolvidas para subscrever ou manifestar poder”. Estes esquemas ou configurações são parte constituinte do fenômeno da hegemonização cultural entendido como processo de transformação de aspectos de cultura localmente enraizados e nacionalmente compartilhados. Para continuar este diálogo teórico é preciso introduzir aqui uma discussão conceitual sobre hegemonia, cuja teorização clássica amplamente aceita no campo das Ciências Sociais é uma proposta do pensador comunista Antonio Gramsci (2006), que fundou toda uma tradição de interpretação da realidade social a partir da relação entre consenso e força para a estabilização das relações sociais. Hegemonia, de acordo com a proposta gramsciana, é a direção, o domínio, a liderança de um grupo sobre os demais, através da persuasão e do consenso, perpassados pela ideologia. Hegemonia é o exercício da capacidade de unificar blocos e posições por meio de dois mecanismos complementares: a força e o consenso. A força, de acordo com o autor, é o pilar principal das relações hegemônicas, já que por meio dela seria possível conservar as estruturas sociais em meio à contestação. E para que não haja contestação ao poder hegemônico, a liderança busca apoio no consenso, nas grandes narrativas unificadoras, na ideologia. Estou interessada no segundo elemento, o consenso, apoiado nas

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

171

grandes narrativas e na ideologia. Claramente, a cultura nacional e a própria noção de identidade nacional é uma grande narrativa unificadora amplificada, entre outros meios, pelos aparatos de comunicação de massa. As grandes narrativas se apóiam nos núcleos culturais e ideológicos formadores da cultura nacional e tornam-se pilares para a construção da hegemonia interna protagonizada por regiões ou cidades sinédoques (RIBEIRO, 2002) dentro dos Estados nacionais. Cidades sinédoques são aquelas que concentram, no imaginário coletivo, a síntese da representação cultural, social, política e/ou econômica de uma determinada nação. O Estado-Nação, aliás, é uma comunidade simbólica, imaginada (ANDERSON, 2008) e que funciona, culturalmente, a partir do reconhecimento entre as partes que o compõem de que existe um substrato simbólico-discursivo comum. É interessante postular que esse substrato, arbitrário em princípio, compartilhado pelos membros da sociedade como fio condutor que dá sentido ao imaginário coletivo sobre a nação, pode ser construído – embora não unicamente – a partir de escolhas individuais de um grupo reduzido de atores dessa comunidade. Jornalistas são atores que compartilham sensos comuns sobre vários assuntos pertinentes à realidade social. O chamado senso comum das redações (TRAQUINA, 2004; TUCHMAN, 1983; SOUSA, 2002, dentre outros) é um denominador do que a comunidade jornalística reproduz como sendo o “mundo possível” (ALSINA,1996), enquadrado em categorias que o público irá reconhecer como parte integrante de seu próprio mundo. Os acontecimentos sociais passam assim pelo crivo dos produtores midiáticos que tipificam os fatos em quadros de referência preestabelecidos. Wolton (1996, p. 6) defende que o público sabe assistir às imagens que recebe e não é “jamais passível, nem neutro. O público filtra as imagens em função dos seus valores, ideologias, lembranças, conhecimentos”. Os produtores e editores de conteúdo do telejornal não lançam, simplesmente, ideias soltas do que será aceito como representativo da cultura nacional, como se a audiência fosse uma massa anônima e atomizada de pessoas que aceitam manipulações simplórias. O que existe

172

Desafios da pesquisa em jornalismo

é certa influência, potencializada pela repetição e por fórmulas de simplificação da realidade que só funcionam porque a própria audiência está presente no momento da produção daquele conteúdo. Esse fenômeno é chamado de “audiência presumida” (ALSINA, 1996; SOUSA, 2002; dentre outros). A audiência presumida é um fator importante, portanto, na construção da realidade noticiada porque os produtores — jornalistas nas mais variadas funções, e emissoras em geral — levam em consideração o que pode ir ao encontro das expectativas de quem assiste à televisão. A partir do perfil médio dos telespectadores (traçado por meio de pesquisas qualitativas periodicamente encomendadas pelas emissoras), é possível aos produtores “colocarem-se no lugar de quem assiste” e selecionar assuntos e abordagens que, acreditam, interessem ao telespectador. Os critérios de noticiabilidade – que atuam como guias que os jornalistas usam para determinar que acontecimentos merecem ser publicizados, como uma forma de emprestar ordem a um caos de ocorrências da vida cotidiana – agem como fatores de seleção cultural. A noticiabilidade empresta legitimidade àquilo que compõe o noticiário e, para os jornalistas que a utilizam, é uma forma também de garantir a sensação de isenção em uma atividade que tem pouco de isenta. Quando o material a ser selecionado e publicizado diz respeito a aspectos do que constitui a – suposta e construída - essência cultural de uma nação, temos uma faceta pouco compreendida de um processo mais amplo: aquele que diz respeito à homogeneização cultural em um país de elevada diversidade cultural, porém apresentado aos olhos do público interno e externo como homogêneo, insuspeito e acima de qualquer possibilidade de contestação.

4. Considerações finais Vilches (1996, p. 15) afirma que a televisão é uma forma de expressar experiências culturais e estéticas diversas que acabam por relativizar o conceito de realidade e, por isso, o autor comenta que a televi-

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

173

são não é boa nem má em si: é apenas um meio que “expone el mito de la sociedad actual a través de lo narrativo, de lo fantástico y del ritual de la cotidianidad, sin buscar la objetividad de la realidad al modo en que lo hacen las ciencias”. Sendo assim, os processos de construção e disseminação de uma narrativa sobre o que venha a ser representativo da cultura nacional no âmbito dos meios de comunicação de massa não seguem critérios científicos nem têm a pretensão de dar conta de todos os aspectos que, antropológica e sociologicamente, deveriam constituir essa narrativa. Tudo aquilo que é específico demais, particular demais, tende a ser suprimido da grande narrativa televisiva – sobre qualquer assunto – porque a televisão é um meio de comunicação destinado a um público imenso, anônimo e heterogêneo. O Estado-Nação assenta-se na “homogeneização das diferenças – somos todos um só, uma só língua, uma só cultura”, assim, “conjuntos de feitios e intenções diferentes são agrupados e impelidos a portar características gerais que são, em um sentido, uniformizadoras” (SOUSA, 2007, p. 41). A diversidade controlada de experiências partilhadas, mediadas pelas ondas hertzianas, ajuda a construir não apenas os laços sociais, o sentimento de povo em comunidade, mas também a própria realidade. No caso da televisão brasileira, por exemplo, ela foi capaz de contribuir para a criação de um elo entre os indivíduos de todas as partes do País, forjando uma ideia de identidade nacional, entendendo por identidade a definição de Castells (1999, p. 22) como sendo “a fonte de significação e experiência de um povo”. Identidade esta talvez não nacional, mas midiática.

Referências ALSINA, Miguel Rodrigo. La Construción de la Noticia. Barcelona: Paidós, 1996. ÁLVAREZ, Gabriel O (org). Indústrias Culturais do Mercosul. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais, 2003. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem

174

Desafios da pesquisa em jornalismo

e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1999. BIRD, Elizabeth (org). The Anthropology of News and Journalism. Global perspectives. Bloomington: Indiana University Press, 2010. BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. __________O poder simbólico. 13 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. BUCCI, Eugênio. O Brasil em Tempo de TV. São Paulo: Biotempo Editorial, 1996. CAPPARELLI, Sérgio, LIMA, Venício A. Comunicação e Televisão: desafios da pós-globalização. São Paulo: Hacker, 2004. CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade: a era da informação. Economia, Sociedade e Cultura. Volume 2. 2ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Organizado por Michel Scrhöter. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. __________. Escritos e Ensaios. Volume 1: Estado, Processo, Opinião Pública. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. FAIRCLOUGH, Norman. Media Discourse. New York: St Martin’s Press, 1995. GANS, Herbert J. Deciding what’s news: a study of CBS Evening News, NBC Nightly News, Newsweek and Time. 25th Anniversary Edition. Illinois: Northwestern University Press: 2004. GELLNER, Ernest. Naciones y Nacionalismos. Ciudad de Mexico: Editorial Patria, 1991. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Vol. 2. 4ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. JOST, François. Seis Lições sobre Televisão. Porto Alegre: Sulina, 2004. KUNCZIK, Michael. Conceitos de Jornalismo - Norte e Sul: Manual de comunicação. São Paulo: Edusp, 1997. LIPMAN, Walter. Public Opinion. New York: Macmillian, 1922.

Telejornalismo e cultura nacional: um diálogo teórico interdisciplinar

175

LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. MACHADO, Arlindo. A Televisão Levada a Sério. 3 ed. São Paulo: Senac, 2003. MARCONDES FILHO, Ciro. O Capital da Notícia: jornalismo como produção social da segunda natureza. 2ed. São Paulo: Ática, 1989. PEREIRA Jr., Alfredo Eurico Vizeu. Decidindo o que é Notícia: os bastidores do telejornalismo. 3.ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2003. ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo: Brasiliense, 2001 RAPOPORT, Mario (org). Globalización, integración e identidad nacional. Análisis comparado Argentina-Canadá. Buenos Aires: Grupo Editor Latinoamericano, 1994. RIBEIRO, Gustavo Lins; FELDMAN-BIANCO, Bela. Antropologia e poder: contribuições de Eric Wolf. Revista Etnográfica, Volume VII, número 2, novembro de 2003. Lisboa: Centro de Estudos de Antropologia Social. RIBEIRO, Gustavo. Cultura e Política no Mundo Contemporâneo. Brasília: Editora UNB, 2000. __________. Tropicalismo e Europeísmo. Modos de representar o Brasil e a Argentina. In: FRIGERIO, Alejandro; RIBEIRO, Gustavo Lins (orgs). Argentinos e Brasileiros: encontros, imagens e estereótipos. Petrópolis: Vozes, 2002. SCHLESINGER, Philip. Os jornalistas e a sua máquina do tempo. In: TRAQUINA, Nelson (org). Jornalismo: questões, teorias e ‘estórias’. Lisboa: Veja, 1993. pp. 177-190. SIRVÉN, Pablo. Quién te ha visto y quién TV. Historia informal de la televisión argentina. 2ed. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1998. SODRÉ, Muniz. O Monopólio da Fala: função e linguagem da televisão no Brasil. 5ed. Petrópolis: Vozes, 1984. SOUSA, Jorge Pedro. Teorias da Notícia e do Jornalismo. Chapecó: Argos, 2002. SOUZA, Maria Luiza Rodrigues. Um estudo das narrativas cinematográficas sobre as ditaduras sobre as ditaduras militares no Brasil (1964

176

Desafios da pesquisa em jornalismo

-1985) e na Argentina (1976-1983). Tese. Centro de Pesquisa e Pós-Graduação sobre as Américas. Universidade de Brasília, 2007. TRAQUINA, Nelson (org). Jornalismo: questões, teorias e ‘estórias’. Lisboa: Vega, 1993. __________. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Vol. 1. Florianópolis: Insular, 2004. __________. Teorias do Jornalismo. A tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Volume II. Florianópolis: Insular, 2005. TUCHMAN, Gaye. La Producción de la Noticia: estudio sobre la construcción de la realidad. Barcelona: Gili, 1983. __________. Contando ‘Estórias’. In: TRAQUINA, Nelson (org). Jornalismo: questões, teorias e ‘estórias’. Lisboa: Veja, 1993. pp. 258-262. VILCHES, Lorenzo. La Televisión: los efectos del bien y del mal. Barcelona: Paidós, 1996. WOLF, Eric. Envisioning Power: Ideologies of Dominance and Crisis. Berkeley, University of California Press, 1999. __________.Antropologia e Poder. Contribuições de Eric Wolf. Editora UNB, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Editoria Unicamp, 2003. WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. WOLTON, Dominique. Elogio do Grande Público: uma teoria crítica da televisão. São Paulo: Ática, 1996.

177

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

Pâmela Araujo Pinto Doutoranda do programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense. Graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). E-mail: [email protected]

1. Introdução A proposta deste trabalho foi refletir sobre as relações entre o centro e as margens da comunicação no Brasil, a partir do jornalismo. Os variados níveis de dependência econômica e política condicionaram segmentações na mídia brasileira. Parte significativa dos teóricos situou as diferenças estruturais e ideológicas desta em dois blocos: o jornalismo nacional e o jornalismo regional. Apontou-se o primeiro grupo como o espaço comprometido com os leitores, e principalmente com os seus anunciantes, enquanto o jornalismo regional configurou-se como um instrumento político. Entretanto, é necessário um olhar crítico para delinear as proximidades e diferenças existentes entre estes dois campos. O objetivo central deste artigo é desnaturalizar a relação estigmatizada entre estes jornalismos, expondo que esta construção tem raízes

178

Desafios da pesquisa em jornalismo

na divisão da política brasileira, com a Política dos Governadores, na qual o centro foi consolidado com o apoio da periferia. Para tanto, buscou-se um objeto capaz de sintetizar os laços estabelecidos nestes dois eixos do jornalismo, influenciados diretamente pela geopolítica do país. Inicialmente, definiram-se os jornais impressos como suportes para subsidiar esta investigação: O Globo, representando a mídia nacional e O Estado do Maranhão, para ilustrar o jornalismo regional. O Globo foi a primeira empresa da família Marinho e O Estado do Maranhão, o primeiro veículo do Sistema Mirante de Comunicação, do senador José Sarney. Adotou-se como metodologia a análise dos enquadramentos recebidos pelas matérias sobre o caso Lunus nos dois jornais, tendo em vista que o enquadramento é um instrumento de poder e visibilidade.

2. A herança da política dos governadores Para compreender os laços tecidos contemporaneamente nos âmbitos político-partidários e midiáticos é fundamental uma incursão na história política brasileira, com a intenção de perceber que sua força motriz ainda carrega traços fortes da formação federalista, iniciada com a Carta de 1891 e maturada por um pacto não escrito elaborado por Campos Sales (1898 - 1902). Tal sistema estabeleceu que a força política dos atores do centro de poder era consolidada com o apoio de atores regionais. “A formulação desse pacto combinou o reconhecimento, por parte de Campo Sales, da preexistência de uma distribuição natural do poder na sociedade brasileira, com a definição de novas bases morais e doutrinárias para a política nacional, através de uma comunidade política despolitizada”, (LESSA, 2001, p. 44). A figura dos presidentes de província, sem autonomia, foi suplantada pelos governadores de estado, com poder de decisão e total apoio do governo federal. Surgiu então a Política dos Estados, amplamente acolhida pelos chefes regionais que viraram adeptos da nova sistemática, na qual a periferia legitimava, pelo voto, o poder central e este concedia autonomia, cargos e verbas aos chefes estaduais. Segundo Lessa (2001), tal política significou um engessamento da competitividade garantida pela democracia. Desta forma, a Política dos

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

179

Governadores reforçou o papel desempenhado pelos estados ao longo da vida da República, atribuindo o protagonismo aos estados localizados no centro, em detrimento dos estados periféricos que ficam margeados dos processos decisórios. Estes são responsáveis apenas por corroborar as decisões políticas centrais, não importando as estratégias utilizadas localmente para estabelecimento de sua força representativa. Implantou-se uma tradição política reforçada por outros governantes nas demais fases da vida republicana. Além dos governadores, surgiram figuras determinantes para esta estruturação de poder, os coronéis, que se aliaram ao setor político para reagir à decadência econômica do início do século XX. “A possibilidade de diminuição de seu poder fez com que ele assumisse um papel diferencial como um intermediário entre o poder federal e o setor empresarial. Esta é sua condição de sobrevivência neste momento histórico”, (SANTOS, 2006, p. 13). Para a autora, o coronelismo era fruto de alteração na relação de forças entre os proprietários rurais e o governo e significava o fortalecimento do poder do estado antes que o predomínio do coronel. Para Faoro (1995) o coronelismo não é um fenômeno novo e nem é exclusivo do Brasil, apresentando similaridades com o sistema do “compadrazzo” latino americano e a “clientela”, na Itália. O autor citou o filósofo Thomas Hobbes, para o qual o poder “se exerce de modo original, de homem para homem, ou através de uma estrutura instrumental, com a impessoalidade derivada dessa intermediação institucionalizada.”, (FAORO, 1995, p. 633). Observou-se que a estrutura básica da troca de favores para sustentar as ações do poder central vigorou ao longo das décadas, mas implicitamente nos jogos de poder das votações e dos comandos partidários nas bancadas do Congresso. A troca de favores está presente na política brasileira como sustentáculo para sua sobrevivência. O modus operandi da Política dos Governadores foi estendido à lógica de outros segmentos da sociedade, incluindo a mídia brasileira, impactada de duas formas: com a fixação do jornalismo nacional junto aos polos de comando político e a reverberação de seus conteúdos para os jornalismos praticados além destes limites. Tal fluxo de informações

180

Desafios da pesquisa em jornalismo

implicou a consolidação da grande mídia em contraste com a ideia de inferioridade técnica da imprensa regional; e pela compra de veículos de comunicação pelos políticos, que inseriram os recursos midiáticos em suas estratégias de dominação.

3. Geopolítica do jornalismo brasileiro No Brasil a relação entre o jornalismo e a política é complexa, pois a formação do sistema midiático é vinculada historicamente ao campo político. Da imprensa instalada com a chegada da Família Real, em 1808, à adoção do trusteeship model1, na década de 1930, observou-se a concentração das mídias nas mãos das elites econômicas e políticas. A falta de rigor nas legislações determinou a ocorrência de conglomerados, pois permitiu a propriedade cruzada de veículos. Assim se formaram os maiores grupos de mídia nacionais e regionais no país, resultando num sistema controlado por um reduzido grupo de empresas, (LIMA, 2006). Outro fator determinante para a relação das empresas midiáticas com o poder público foi a dependência financeira dos meios de comunicação em todo o país para obter a infraestrutura necessária a sua expansão. Conjuntura viabilizada com a ditadura militar de 1964, que proporcionou condições econômicas para o desenvolvimento de um sistema nacional de telecomunicações compatível com as novas exigências do capitalismo. Os militares idealizaram um projeto de integração nacional com incentivo para formação de grupos midiáticos capazes de abranger o território. O vínculo mais estreito que rege as relações entre mídia e a política são as concessões de radiodifusão, com acentuada distribuição no governo militar e no período pós-ditadura, na gestão do presidente José Sarney. No governo do general Figueiredo foram feitas mais de 700 concessões de rádio e televisão, o que representou mais de 1/3 do total das emissoras existentes desde o surgimento da radiodifusão no Brasil. O auge das outorgas para políticos foi o período do Congresso Constituinte (1987-1988), gerido pelo ministro das Comunicações Antônio Carlos 1. Sistema que entrega o setor de radiodifusão à exploração comercial da empresa privada, através de concessões da União.

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

181

Magalhães, em pleno jogo para permanência do presidencialismo como forma de governo e a não redução do mandato de Sarney, (LIMA, 2007). Entre 1985 e 1988 foram assinadas 1.028 outorgas, 91 dessas foram dadas para deputados e senadores constituintes. Desse total, 92,3% votaram a favor do presidencialismo e 90,1% votaram a favor do mandato de cinco anos para o então presidente da República. Durante o governo FHC foram autorizadas 357 concessões educativas sem licitação e vendidas 539 emissoras comerciais. Este trabalho pretende expor algumas características prioritariamente atribuídas ao jornalismo regional, mas que são verificadas, sobretudo, no jornalismo nacional e de certa forma constroem paralelos entre estes modelos de interface da imprensa brasileira. A primeira similaridade são os vínculos de ambos os jornalismos com o campo político. A pluralidade de espaços e de análises é incontestável na grande imprensa, assim como sua contribuição para consolidar o espaço público, entretanto os laços com a política também perpassam os interesses dos grandes veículos, tendo em vista a própria cultura de apadrinhamentos políticos na implantação de canais de radiodifusão. Os veículos da grande imprensa estão ligados a uma rede de contratos indispensáveis a sua sobrevivência empresarial e com a qual respondem com credibilidade, por meio da instituição de valores e normas jornalísticas. Mas além dos anunciantes e leitores há também parcerias políticas firmadas em consonância com as conjunturas vigentes. Outra característica diz respeito à concentração midiática que ocorre no Brasil e o impacto que ela ocasiona nas cadeias de veículos que interligam o país. Para alcançar todo o território, as grandes empresas precisam das repetidoras regionais que repassem seus conteúdos e neste processo os conglomerados nacionais fortalecem redes locais, independentemente do uso que estas empresas farão deste “poder”. Desta forma, acredita-se que existe um elo mais complexo entre o jornalismo nacional e regional, que mais que opostos, mostram-se como similares em pontos centrais e até interdependentes. É importante destacar que esta concentração não é restrita aos grupos regionais, mas iniciou na grande imprensa, que ao longo das décadas teve que se profissionalizar

182

Desafios da pesquisa em jornalismo

para atender às demandas do mercado capitalista, mas continuou concentrando os empreendimentos no âmbito familiar. Paralelamente ao afunilamento dos grupos empresariais de controle da grande imprensa, os grupos regionais – associados aos grupos dominantes nacionais – consolidam suas posições hegemônicas com a expansão da propriedade cruzada em várias regiões brasileiras, (LIMA, 2006). Como consequência desta divisão identificam-se dois polos de concentração de mídias hegemônicas: de um lado existe uma imprensa composta por grandes grupos de alcance internacional, gerindo diversos veículos em forma de conglomerados, responsáveis pela consolidação de grupos de audiência diferenciados: um massivo, guiado pelas informações televisivas e outro grupo menor, contemplado com revistas, TV a Cabo e jornais. Do outro lado, está uma imprensa monopolizada, na maioria das vezes por representantes públicos, em regiões nas quais predominam baixos índices socioeconômicos e uma economia distante dos padrões lucrativos dos grandes centros. Este segundo cenário é propício para a fixação do coronelismo eletrônico: O coronelismo eletrônico é uma prática antidemocrática com profundas raízes históricas na política brasileira que perpassa diferentes governos e partidos políticos. Através dela se reforçam os vínculos históricos que sempre existiram entre as emissoras de rádio e televisão e as oligarquias políticas regionais, e aumentam as possibilidades de que um número cada vez maior de concessionários de radiodifusão se elejam para cargos políticos (...) (LIMA, 2008, p. 27).

As redes abertas de televisão e rádio demonstram a aliança entre estas duas esferas midiáticas, pois os contratos entre afiliada e cabeça-de-rede têm dupla função: garantir a oferta de programação, agregando o valor da mídia nacional para a audiência local - sem desprender muitos recursos e consequentemente expandindo a rede de um grupo nacional de comunicação; e garante que a máquina pública atue pelos radiodifusores, (SANTOS, 2005). O jornalismo brasileiro é diretamente afetado pela divisão geopolítica do país, na qual a posição ocupada no eixo centro-periferia é determinante no poder de decisão, seguindo os parâmetros da Política dos

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

183

Governadores. O centro brasileiro foi estabelecido no Rio de Janeiro, onde também foram fixadas as principais atividades econômicas e a política do país. A concentração econômica na região Sudeste alimentou também a “autonomia” de veículos de circulação nacional, fixados nestes centros de onde reverberam informações para diferentes partes do país. Configurou-se uma divisão geopolítica da imprensa brasileira, com os diversos jornalismos produzidos de acordo com a realidade local dos jornalistas e dos empresários de mídia. O binômio “centro e periferia” é usado no Brasil, com frequência, para localizar o jornalismo regional na condição de manipulável e legitimar a autonomia da grande imprensa. Porém, estas terminologias devem ser empregadas com cautela, visto que não são condições imutáveis e devem ser entendidas como conceitos relativos, (ALBUQUERQUE, 2008). Segundo o autor, as grandes empresas midiáticas brasileiras ora atendem à ideia de centro, quando servem de modelo para grupos menores, ora estão na condição de periferia, ao tomar como referência determinado modelo estrangeiro. O mesmo acontece quando sistemas considerados periféricos servem de parâmetro, para veículos ainda menores, assumindo a condição de centro. Recorreu-se a exemplos que sintetizam esta inversão de posições entre os eixos centro e margem da comunicação brasileira. O primeiro referiu-se à tentativa de adoção do modelo norte-americano, na década de 1950, pela mídia impressa da região central e o segundo relatou as negociações da empresa Time-Life com as Organizações Globo, na década de 1960, para transferência de capital e tecnologia à embrionária emissora de televisão brasileira. Em ambos os casos, o Brasil passou da condição de centro a periferia, ao buscar o parâmetro internacional como modelo de qualidade. No caso dos jornais impressos da década de 1950, a busca pelo modelo americano tornou-se uma frustração, devido às diferenças nas raízes dos dois tipos de jornalismo. Tal diferença reflete, segundo Albuquerque (2005), os respectivos processos de colonização e de independência dos países: enquanto os ingleses colonizaram a América com autonomia, o Brasil foi uma fonte de reserva econômica portuguesa. O processo de independência brasileiro foi um acordo entre as elites, para

184

Desafios da pesquisa em jornalismo

manutenção de poder de forças estabelecidas, nos EUA houve um desligamento violento da Coroa Britânica. A sólida economia de mercado, que proporcionou relativa autonomia às empresas de comunicação; a reverência fervorosa à liberdade de imprensa nos variados segmentos sociais e a autonomia do campo jornalístico do campo literário foram fatores que permitiram à imprensa americana reivindicar um lugar de mediador entre os grupos socais. A não “adoção” deste modelo inspirou críticas e comparações entre o modelo midiático brasileiro e o norteamericano, um “parâmetro universalizante”, o que condicionou o país como mídia periférica, quando equiparado ao modelo dos EUA. Aqui, as regras do jornalismo americano foram adaptadas, a fim de ajustá-las à realidade local ao invés de uma simples adoção, (ALBUQUERQUE, 2005).

O outro exemplo ilus-

tra a inserção de capital internacional no sistema televisivo brasileiro, com a implantação da TV Globo. A concessão do canal foi dada em 1957, por Juscelino Kubitschek, mas sua ativação só ocorreu a partir de 1962, após o contrato com o grupo Time-Life Broadcast Internacional Inc., (WEBER, 2000). A parceria entre as Organizações Globo e o grupo Time-Life iniciou em 1962, com assinatura de dois contratos: o Contrato Principal, uma conta de participação, e o Acordo de Assistência Técnica. A sociedade entre as empresas duraria 11 anos e em seguida se prorrogaria por prazo indeterminado. Em 1965, as empresas firmaram outro contrato no qual a Time-Life teria 45% de participação nos lucros da Rede Globo. Houve um aumento de remessas de dinheiro, pois a emissora começou a operar em abril de 1965, no Rio de Janeiro, (HERTZ, 1991). A associação entre as empresas foi viabilizada no governo militar, em 1967, e assim as Organizações Globo se expandiu pelo país, (WEBER, 2000). Diante deste cenário, grandes conglomerados brasileiros são periféricos em relação à mídia americana, diferentemente do que elas representam no contexto nacional, onde são apontados como exemplares máximos do centro. Uma das hipóteses deste trabalho é que esta tensão entre as mídias nacionais e regionais não é uma particularidade brasileira, mas uma condição da natureza jornalística. A disputa pela primazia

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

185

em sistemas capitalistas globalizados aflora a competitividade interna por um lugar de fala tanto em países de dimensões continentais, como o Brasil, quanto em países de dimensões pequenas e expõe esta relação entre os diferentes tipos de mídia, que ora disputam e ora se complementam.

4. Os Marinho e o Maranhão Os laços entre a grande mídia, o jornalismo regional e a política são subterrâneos, como denota a relação entre as famílias Marinho e Sarney, explicitada na pesquisa pelos jornais O Globo e O Estado do Maranhão. Estes veículos foram escolhidos por possuírem características em comum e por expor os negócios político-financeiros entre as duas famílias. As Organizações Globo e o Sistema Mirante mantêm parceiras no âmbito privado e empresarial. A TV Mirante, de propriedade da família Sarney, é afiliada da Rede Globo; Roberto Marinho teve um forte vínculo político, econômico e afetivo com o político José Sarney. O viés político desta amizade foi acentuado no período em que o maranhense ocupou a Presidência da República, (1985-1990). Como conselheiro de Sarney, Marinho indicou nomes dos ministros Antônio Carlos Magalhães (Comunicações) e Maílson da Nóbrega (Fazenda). A relação comercial entre as famílias ocorreu com a transferência do sinal da TV Globo para Sarney, em 1991, o que reforçou o poder local do Sistema Mirante de Comunicação, composto por quatro emissores de televisão, afiliadas à Rede Globo; pelo jornal O Estado do Maranhão; 14 emissoras de rádio, na capital e no interior e o portal da internet imirante.com – hospedado no portal globo.com. Os laços afetivos foram reforçados pela ligação “imortal”, pois Marinho ocupou a cadeira n º 39 da Academia Brasileira de Letras, ao lado de Sarney, cadeira n º 38. O envolvimento econômico dos grupos superou a relação matriz/ filial, como evidenciou o programa “Viva Educação”. O projeto educacional, criado em 2000 visava a aumentar os índices educacionais pelo tele-ensino, por meio da metodologia da teleaula no ensino público. Couto (2007, p. 140) apontou a Fundação Roberto Marinho e a Editora Globo como principais beneficiadas do convênio assinado com a governadora

186

Desafios da pesquisa em jornalismo

Roseana Sarney, em 22 de novembro de 2000, no valor de R$ 114 milhões. Há uma parceira lucrativa entre os dois grupos de comunicação, desconhecida por parte do público do jornalismo nacional e regional. No âmbito regional as Organizações Globo mantêm contrato formal com um sistema político clientelista, e nacionalmente critica tais práticas. A extensão do poder de comunicação da família Sarney no Maranhão é intimamente relacionada com o forte vínculo mantido com as Organizações Globo. O selo de credibilidade do padrão Rede Globo é utilizado no estado para fins políticos, não só na televisão, mas em todos os outros veículos do grupo Sarney.

5. Metodologia O conteúdo que forma o corpus deste trabalho foi pesquisado nos acervos da Biblioteca Estadual Benedito Leite, em São Luís, da Biblioteca Nacional e da Biblioteca Pública do Estado do Rio de Janeiro, nos meses de julho a novembro de 2008. Foram selecionadas 297 matérias informativas publicadas na editoria de política, sendo 107 veiculadas n’O Estado do Maranhão e 190 n’O Globo. Esta pesquisa optou pela análise de enquadramento como recurso metodológico para sistematizar a amostra coletada n’O Estado do Maranhão e n’O Globo sobre o caso Lunus. Autores como Tuchman (1978), Gitlin (1980), Entman (1991) e Porto (2004) consolidaram esta metodologia na comunicação, a partir da percepção de que o discurso jornalístico constrói seus objetos por meio da ênfase e das omissões durante a abordagem de determinado tema, o que resulta em diferentes olhares e diferentes matérias. Enquadrar significa selecionar alguns aspectos da realidade percebida e fazê-los mais salientes em um texto comunicativo, promovendo uma definição particular do problema, uma interpretação casual, uma avaliação moral e/ou uma recomendação de tratamento para o item descrito (ENTMAN, 1991). Para o autor, por trás de cada enquadramento existe uma mensagem específica. Dividiu-se o conteúdo da cobertura em três fases, nos dois jornais, a fim de se verificar a presença de quatro tipos de quadros em ação:

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

187

enquadramento policial (com ênfase nos delitos ocorridos no caso Lunus); enquadramento eleitoral (com ênfase no impacto sofrido na campanha presidencial de 2002); enquadramento de governo (retratou as relações da base governista composta pelo PFL e PSDB) e o enquadramento geopolítico (privilegiou as relações entre o local e o nacional). Outros recursos foram adotados para denotar as estratégias de visibilidade de cada veículo, como o uso das fontes citadas; a verificação do espaço dedicado às matérias; a publicação de imagens e a ausência e a presença de informações. A análise comparou o conteúdo dos dois jornais ao longo de todo o percurso para verificar as simetrias e possíveis contradições na publicação das matérias. Após complementar a contextualização do objeto com consultas em revistas, livros, páginas da internet e nos próprios jornais, em fase anterior e posterior ao recorte estabelecido, iniciou-se a segunda fase do trabalho de campo, na qual foram realizadas entrevistas (presencialmente, por telefone e por email), com profissionais que trabalharam na cobertura do caso n’O Estado do Maranhão e n’O Globo e com os grupos responsáveis pela distribuição dos respectivos matutinos.

6. Síntese da análise do caso Lunus nos jornais Dividiu-se a cobertura de O Globo e d’O Estado do Maranhão em três fases, para potencializar o estudo das matérias selecionadas e delimitar os diferentes usos dos enquadramentos. Esta segmentação foi baseada em dois critérios, comuns aos veículos aqui trabalhados: o trânsito das matérias entre a capa e as páginas internas da editoria de política; e o fluxo dos acontecimentos divulgados ao longo da cobertura. O percurso da notícia dentro do jornal denotou o destaque obtido pelos temas e com isso mostrou-se quais aspectos as empresas privilegiaram. A dinâmica provocada pelo acréscimo de novas informações ao caso expôs como cada veículo trabalhou sua versão dos fatos. Em O Globo, a crise política protagonizada por Roseana Sarney figurou em 38 edições, das quais 26 foram em março e 12 em abril. Ao longo do período analisado o caso foi tema de 26 capas, sendo o escân-

188

Desafios da pesquisa em jornalismo

dalo tratado 19 vezes nas capas de março e sete vezes em abril. Seguem as três fases de análise da amostra: 1ª Fase: composta por manchetes ininterruptas na capa do jornal, entre os dias 02 a 14 de março. Os textos refletiram o impacto do caso no cenário político nacional e ambientaram os leitores sobre os laços políticos regionais da família Sarney; 2ª Fase: iniciou em 16 de março e foi até 06 de abril, totalizando 18 dias de cobertura, com seis manchetes nas capas e 12 dias de notícias veiculadas internamente. Este foi o único período no qual se verificou a ausência de veiculação de matérias; 3ª Fase: o caso Lunus retornou às capas, entre os dias 08 a 14 de abril, para abordar a desistência de Roseana do pleito presidencial de 2002. A amostra de O Estado do Maranhão é formada por 107 matérias, coletadas em 35 edições sobre o caso Lunus, das quais 25 foram registradas em março e 10 em abril. Durante este período, o escândalo foi tema de 31 capas como manchete, sendo tratado 22 vezes em março e nove em abril. Seu conteúdo foi dividido em três fases: 1ª Fase: situou-se entre os dias 02 a 10 de março, com manchetes ininterruptas sobre o escândalo. As matérias defenderam a inocência da pré-candidata e buscavam culpados para “o golpe” sofrido. Evidenciaram-se dois movimentos nesta fase: o de “negação” do escândalo e o de “apoio” recebido pela governadora; 2ª Fase: compreendeu os dias 11 a 31 de março, nos quais cinco edições não abordaram o caso. Utilizaram, excessivamente, falas do PFL em defesa da publisher, acompanhadas de informações descontextualizadas em benefício da candidata; 3ª Fase: ilustrou a cobertura do caso entre os dias 02 a 14 de abril. A imagem de Roseana foi preservada por meio de notícias positivas sobre sua gestão estadual e por meio de um otimismo do PFL . Notou-se ao longo da cobertura que o destaque dado às imagens foi significativo nos dois jornais: o periódico carioca publicou 120 fotografias relacionadas ao escândalo, em 38 edições, o jornal maranhense veiculou 105 imagens, em 35 edições. O tema ocupou 29 capas com fotografia em O Estado do Maranhão, enquanto n’O Globo foram apenas cinco capas com foto. Quantitativamente houve uma maior valorização espacial do caso Lunus n’O Globo, pois foram publicadas cerca de 81

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

189

páginas de conteúdo, enquanto n’O Estado do Maranhão foram cerca de 55 páginas. Qualitativamente houve maior destaque para o tema n’O Estado do Maranhão, pelo espaço ocupado nas capas.

7. Considerações finais Concluiu-se com análise do caso Lunus que existiu defesa de interesses nos dois veículos analisados, esta foi realizada de forma mais direta em O Estado do Maranhão, que optou por um percurso explícito de valorização de sua proprietária, enquanto O Globo utilizou diversos recursos, inclusive a ideia de pluralidade de falas, para sobrepor a voz do PSDB em relação aos outros envolvidos no escândalo. Houve uma verdadeira inversão do enquadramento para Roseana nos jornais, pois em O Globo os índices de negatividade variavam entre 60%, na primeira fase, e 85%, na última, e n’O Estado do Maranhão eles sempre foram positivos, sendo publicadas somente sete matérias negativas sobre a governadora em toda cobertura. Percebeu-se uma lacuna de conteúdos entre a versão apresentada pel’O Globo e a apresentada em O Estado do Maranhão, pois algumas informações foram omitidas e ou distorcidas no periódico regional, em contraposição do enquadramento tendencioso pró-Serra do jornal carioca. O leitor maranhense foi prejudicado, pois o jornal era uma das fontes primárias de informação sobre o caso Lunus, tendo em vista que seu conteúdo era noticiado na cadeia de comunicação da família Sarney uniformizando o discurso do grupo político em defesa de Roseana. No Maranhão, onde o poder da família Sarney é significativo, prevaleceu uma defesa sustentada de Roseana n’O Estado do Maranhão, enquanto no Rio de Janeiro O Globo formatou um discurso coerente com os valores democráticos, onde a corrupção praticada neste processo teve ampla cobertura – atendendo também aos interesses da empresa e dos seus anunciantes. Um reflexo direto da percepção do tratamento dado à notícia nas duas esferas pôde ser atestado com o direcionamento da carreira de Roseana: no âmbito nacional sua campanha foi recusada, enquanto no Maranhão, foi eleita senadora. Na época, poucos maranhenses puderam confrontar e refletir sobre os fatos expostos na mídia nacional, pois

190

Desafios da pesquisa em jornalismo

para muitos a internet era inacessível, bem como a leitura de revistas, periódicos (nacionais) e alguns canais de televisão. Um possível resultado desta não reflexão se deu com a eleição de Roseana como senadora, no pleito de 2002. Apesar das diferenças estruturais, a relação das mídias nacionais e regionais é permeada por paralelos e interdependências, pois ambas mantêm contratos com a política, funcionando como verdadeiros partidos políticos “sem rótulos”, ao potencializar as tensões entre os campos político e midiático e interferir diretamente na democracia, (WEBER, 2004). O elo entre estas duas interfaces de comunicação é representado pelo coronel, que assim como na Política dos Governadores, assumiu um papel de intermediação entre centro e margens. Os coronéis do século XXI utilizam a lógica dos conglomerados midiáticos para reforçar seu poder localmente e com isso proporcionar a expansão dos veículos de circulação nacional em regiões afastadas. Eles são instrumentos fundamentais para interação entre estas duas esferas, sendo duplamente apoiados: por correntes políticas que se beneficiam dos seus veículos locais e dos empresários que obtêm novos mercados. Para Breed (1993) é o publisher que decide quais as forças têm de ser conciliadas, obedecendo à linha editorial do jornal e sua orientação política, disfarçada em decorrência da existência de códigos de ética jornalísticos. Para o autor, a linha editorial é apreendida por osmose e imposta no processo de socialização do jornalista na redação. De acordo com Hall (1993), são as regras destinadas a preservar a imparcialidade, que servem para orientar a mídia nas definições da realidade social, que as suas fontes acreditadas fornecem. Existe uma hierarquização da credibilidade nas lógicas do poder, conservada por meio de fontes autorizadas, que representam o pensamento dominante. Assim a mídia colabora na manutenção do poder destes grupos, dando voz aos seus discursos e silenciando outras áreas. Este processo acontece por via de formas estruturadas de comunicação aparentemente comuns, que não são visíveis como construções ideológicas. Por outro lado, a comunidade jornalística instituiu regras para legitimar os profissionais na interpretação de eventos, na definição do que é notícia (ZELIZER, 1992) e garan-

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

191

tir a autoridade no processo de dar visibilidade aos outros atores sociais. Lima (2009) defende que tornam sem sentido qualquer pretensão à existência do mito da objetividade jornalística ou de uma prática jornalística neutra e isenta. Para o autor, uma prática jornalística inteiramente livre de constrangimentos é irrealizável. O autor afirma que as limitações à independência e autonomia do jornalismo não se originam apenas no estado, mas estão presentes no interior dos grupos de mídia e no exercício da profissão. Acredita-se que a maior contribuição desta pesquisa foi demonstrar que há proximidade entre o jornalismo nacional e o jornalismo regional, e que a principal diferença destes dois polos diz respeito à distribuição de poder entre as esferas de centro e margem, que interfere na relação entre as diferentes mídias. Para embasar esta conclusão, a pesquisa demonstrou a existência de vínculos entre dois expoentes da mídia nacional e regional, as Organizações Globo e o Sistema Mirante de Comunicação, por meio de um escândalo situado entre o centro e as margens da política brasileira – o caso Lunus.

Referências ALBUQUERQUE, A. de. Another “Fourth Branch”: press and political culture in Brazil. Journalism, 2005. __________. Aconteceu num carnaval: algumas observações sobre o mito de origem do jornalismo brasileiro moderno. Artigo apresentado ao 6º Encontro de História da Mídia da Rede Alfredo de Carvalho. Niterói, 2008. BREED, W. O controlo social na sala de redação. In “TRAQUINA, N. (org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Veja, 1993. CAREY, J. W. Why and how. The dark continent of American Journalism. In MANOFF, R. K. & SCHUDSON, M. Reading the news: a pantheon guide to popular culture. New York: Pantheon Books, 1987. COUTO, C. A. de M. Estado, Mídia e Oligarquia: poder público e meios de comunicação como suporte de um projeto político para o Maranhão. – Universidade Federal do Maranhão. São Luís, 2007. ENTMAN, R. M. Framing U.S. Coverage of International News: Constrasts

192

Desafios da pesquisa em jornalismo

in narratives of the kal and Iran Incidents. Journal of Communication, 1991. FAORO, R. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 10 ed. São Paulo: Globo, 1995. GITLIN, T. The whole world is watching: mass media in the making unmaking of the new left. Berkeley: University of California Press, 1980. HALL, S. “A produção social das notícias”. In “TRAQUINA, N. (org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Vega, 1993. HERTZ, D. A história secreta da Rede Globo. Porto Alegre: Tchê, 1991. LESSA, R. A Invenção da República no Brasil: da Aventura à Rotina. In: CARVALHO, M. A. R. (Org.). República no Catete. Rio de Janeiro: Museu da República, 2001. LIMA, V. A de. Mídia Crise Política e poder no Brasil. São Paulo: FundaçãoPerseu de Abramo, 2006. __________ As concessões de radiodifusão como moeda de barganha política. Revista Adusp, 2008. ­__________Existe jornalismo independente? Observatório da Imprensa, Publicado em 26/5/2009. Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=539JDB001. Acessado em 28 de mai. de 2009. PORTO, M. Enquadramentos da mídia e política. Em: RUBIM, A. A. C. COMUNICACAO E POLÍTICA: conceitos e abordagens. Salvador: Edufba, 2004. SANTOS, S. dos e CAPPARELLI, S. “Coronelismo, Radiodifusão e Voto: a nova face de um velho conceito” in V. C. Brittos e C. R. S. Bolaño (orgs.), Rede Globo – 40 anos de poder e hegemonia; São Paulo: Paulus, 2005. __________ Nem só de samba e futebol sobrevivem as tradições históricas brasileiras: o coronelismo eletrônico como herança do coronelismo. In: IX Congreso Ibercom, 2006, Sevilha. http://alojamientos.us.es/ cibercom/comunicaciones.php. Sevilha : Universidad de Sevilha/AssIbercom, 2006. WEBER, M. H. Comunicação e espetáculos da política. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2000.

Limites e paralelos da geopolítica do jornalismo brasileiro

193

__________ Imagem pública. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Comunicação e política: conceitos e abordagens. Salvador: Edufba, 2004. TUCHMAN, G. “Contando Estórias”. In “TRAQUINA, N. (org.) Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Veja, 1993. ZELIZER, B. Covering the body: lhe Kennedy assassination, the media, and the shaping of collective memory. Chicago & London: University of Chicago Press, 1992.

194

Desafios da pesquisa em jornalismo

195

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes no discurso jornalístico sobre a loucura

Denise Cristina Ayres Gomes Professora do Curso de Comunicação Social/Jornalismo da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Campus II, Imperatriz (MA). Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS (2007), especialista em Midiologia e Cultura na Sociedade Contemporânea pela Universidade Federal do Pará (UFPA) e Jornalista. E-mail: [email protected]

1. Introdução O jornal é um espaço discursivo em que os campos sociais lutam pelo poder simbólico, ou seja, pela imposição de seu modo de interpretar a realidade. Através de seus representantes, as fontes, os discursos desses campos se tornam públicos e ajudam a construir o imaginário social. Este artigo identifica as fontes e analisa sua representatividade no campo jornalístico. Ao se analisar o corpus constituído por 19 textos jornalísticos referentes à reforma psiquiátrica, verificou-se a dicotomia entre fontes institucionais, representadas pelo campo da medicina e, de outro lado, as fontes não institucionais, constituídas pelos pacientes psiquiátricos. Em 1992 foi aprovada a lei que instituiu um novo modelo em saúde mental, em meio a uma grande polêmica sobre a implantação do novo modelo. Até então, os pacientes psiquiátricos ficavam asilados em hospitais especializados como o Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), fundado em 1884 e símbolo de confinamento e ostracismo a que os doentes mentais eram submetidos no Rio Grande do Sul.

196

Desafios da pesquisa em jornalismo

Como pioneiro a aprovar a lei da reforma psiquiátrica, o estado gaúcho protagonizou inúmeros embates entre campos sociais que utilizaram a mídia para dar visibilidade aos seus discursos sobre a reforma psiquiátrica. O jornal Zero Hora (ZH), como exemplar da grande imprensa, constitui-se em um locus de tensão entre os vários discursos. Nesse contexto, a escolha das fontes, parte do processo de produção da notícia, foi crucial para tornar público o discurso de certos campos sociais como o científico, onde figuraram representantes da medicina e que também faziam parte do poder político constituído. Por outro lado, segmentos não organizados tiveram dificuldade de ascender à condição de fonte. Dessa forma, ZH desempenhou um papel importante na condenação do modelo vigente e na proposição de uma nova política de saúde mental ao eleger o discurso dos campos sociais dominantes e calar as fontes que tecessem críticas ou se contrapusessem ao novo modelo. O estudo analisou 19 matérias jornalísticas referentes à reforma psiquiátrica no HPSP em 1992 com o objetivo de identificar as fontes, dividindo-as em institucionais, quando se referem a entidades e movimentos organizados, e não institucionais, referindo-se a fontes sem representatividade social. A partir da análise, pôde-se constatar dois polos: as fontes representativas da área médica e, de outro lado, a dos pacientes psiquiátricos.

2. O poder de se impor: a visibilidade dos campos sociais Os campos sociais são espaços onde forças lutam para se impor, instituir e legitimar suas práticas e visão de mundo, ou seja, sua forma de interpretar a realidade. Os campos sociais advêm dos processos de divisão do trabalho que se institucionalizaram e se constituem em estruturas que lutam pelo poder. Através de organizações, tais campos disputam sentidos, isto é, desejam legitimar seu modo de ver o mundo e, portanto, a soberania de seu discurso. Um campo é um espaço social estruturado, um campo de forças – há dominantes e dominados, há relações constantes,

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

197

permanentes, de desigualdade, que se exercem no interior desse espaço - que é também um campo de lutas para transformar ou conservar esse campo de forças. Cada um, no interior desse universo, empenha em sua concorrência com os outros a força (relativa) que detém e que define sua posição no campo e, em conseqüência, suas estratégias (BOURDIEU, 1997, p. 57).

Ainda que os campos sociais desejem tornar público e impor seu discurso, paradoxalmente, este nem sempre é acessível. Como afirmou Foucault (2004), certas zonas são “altamente proibidas”, ou seja, herméticas, esotéricas, pertencentes a um grupo restrito de iniciados que, através do discurso, do saber, resguardam, mantêm ou ampliam o poder. O discurso também é um lugar onde o poder e o saber se articulam. Aquele que tem a palavra está em um contexto social e investido de legitimidade para enunciar e, consequentemente, exercer poder. A medicina é um exemplo de instituição que, através do discurso esotérico, hermético e do fazer científico, procura manter o status da profissão. E se reafirma perante outras atividades que também disputam espaço na sociedade e pretendem se estabelecer como saber, fazer e poder. Disso decorre, entre outros fatores, um tensionamento entre os diversos campos sociais mediados pelo discurso, numa relação dinâmica e descentralizada. E, mesmo diante de um campo que adquiriu, ao longo do tempo, a legitimidade para lidar com a doença e possui certo prestígio social, ainda assim, a disputa com outras instâncias sociais continua a existir. As palavras não possuem em si um sentido a priori, uma essência, mas adquirem significado na instância social, dentro de um contexto histórico. Desse modo, as palavras se modificam de acordo com quem as emprega porque estão inseridas em um sistema ideológico. O discurso jornalístico, longe de ser uma representação neutra da realidade, é uma das formas de institucionalização dos sentidos e erige-se como representação do real.

3. O poder de mediar: o campo jornalístico O campo jornalístico articula e processa os discursos dos demais campos sociais para então produzir sentidos. Como prática social, o

198

Desafios da pesquisa em jornalismo

jornalismo capta, processa e divulga os acontecimentos dotando-lhes de legitimidade. É uma instituição constituída de valores próprios que mediam os demais campos sociais e tem a prerrogativa de operar, através do discurso, a representação e até as tarefas destes. Não consiste em ser apenas instância transmissora de significados, mas produtora de discursos simbólicos e dotados de um estatuto próprio. O campo jornalístico mobiliza a sociedade em torno de valores comuns, contrariando a inclinação fragmentadora da sociedade contemporânea e a consequente autonomização dos vários campos. Esse tensionamento é mediado através do discurso que busca convencer, constituindo-se na função pragmática do campo jornalístico, ou seja, atuar sobre os campos sociais ao criar um efeito de realidade. Através de vários mecanismos, o campo jornalístico tem o poder de definir os próprios interlocutores na construção da realidade. Para isso, agenda os assuntos a serem tematizados na sociedade, hierarquiza os acontecimentos ou ainda elege as fontes que possibilitam a emergência de um determinado discurso. Os campos sociais exercem influência sobre o campo jornalístico na tentativa de impor suas práticas, seus valores e legitimar seu discurso. Através das fontes oficiais detêm o “monopólio da informação legítima”, no dizer de Bourdieu (1997). Como explica o autor, as autoridades tentam manipular as informações e a imprensa, por seu lado, manipular os detentores da informação para tentar obtê-la e assegurar para si sua exclusividade. Sem esquecer o poder simbólico excepcional conferido às grandes autoridades do Estado pela capacidade de definir, por suas ações, suas decisões e suas intervenções no campo jornalístico (entrevistas, entrevistas coletivas, etc), a ordem do dia e a hierarquia dos acontecimentos que se impõem aos jornais (p. 103 e 104).

O poder da informação desempenha um papel importante a ponto de configurar a realidade, uma vez que o campo jornalístico se inter-relaciona e se impõe sobre os demais campos sociais exercendo influências que reformatam a sociedade e o próprio campo em questão. Segundo Bourdieu (1997), o campo jornalístico originou-se no

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

199

século XIX, a partir da dicotomia entre os jornais sensacionalistas e aqueles considerados analíticos e que se propunham a ser objetivos. Mas é no século seguinte que o campo jornalístico tornou-se refém das regras do mercado, dependente da audiência e dos anunciantes. Tal lógica vai interferir diretamente no fazer jornalístico, buscando a novidade e o “furo”, num frenético empenho pela renovação e luta desenfreada contra o fator tempo. O texto jornalístico possui uma materialidade discursiva que expressa sentidos diversos. As palavras possuem intencionalidades e a maneira como são utilizadas pode revelar, omitir informações, conduzir o leitor a determinadas conclusões, ou simplesmente silenciar. O sentido do texto não está dado, mas é construído pelas enunciações, através de estratégias simbólico-discursivas. O discurso jornalístico constrói modelos de compreensão da realidade e, por isso, é ideológico e intervém de maneira simbólica no social. Ideologia entendida aqui como um conjunto de ideias e conceitos que permeia os valores sociais, atua no discurso e no comportamento dos indivíduos, ou seja, é um mecanismo de produção de sentidos. O discurso jornalístico é também um dispositivo de poder que se articula a uma rede de instituições e circunscreve-se em um campo no qual as palavras operam e abrem-se a construções imaginárias, a relações sociais, produz significados e sujeitos e também possibilita a disciplina e o controle. As formas como esse poder é exercido através dos tempos variam conforme os interesses dos grupos dominantes e as condições sócio-históricas, porém, cada vez mais, tendem a tornarem-se formas de controle tão persuasivas que passam a ser introjetadas e “naturalizadas”. Esse processo de “naturalização” pode ser entendido a partir da noção de poder simbólico (BOURDIEU, 1998). O jornal exibe um recorte da realidade, publicando a notícia sob um determinado ponto de vista e como se este se constituísse no retrato real dos fatos, portanto, a verdade. Afinal, as produções simbólicas funcionam como instrumentos de dominação e demarcação e envolvem relações de poder. As tensões entre os campos sociais são enquadradas pelo discur-

200

Desafios da pesquisa em jornalismo

so jornalístico que trata as informações e as divulga. Ao jornalista é conferida a autoridade de selecionar e definir o que é notícia, deixando de lado uma infinidade de informações às quais o público, provavelmente, não teria acesso. Entre o fato e a notícia existe uma série de mediações que vão desde os critérios editoriais, a definição das fontes ou o destaque dado à matéria. A luta que é travada no interior do campo do jornalismo gira em torno do ato de nomear, pois, nele, se encontra o poder de incluir ou de excluir, de qualificar ou desqualificar, de legitimar ou não, de dar voz, publicizar e tornar público. Este poder se concentra em quem escolhe a manchete, a foto, a notícia de primeira página, o espaço ocupado, o texto assinado ou não. É esta a luta que os jornalistas travam no interior do campo do jornalismo em suas concretas e históricas relações de trabalho. (BERGER, 2003, p. 22)

O jornalismo é um instrumento de objetivação da realidade, pois transforma a ocorrência em relato, a priori, confiável e que possui a pretensão de buscar a universalidade e formar consensos. E é justamente o princípio da transparência que lhe confere credibilidade.

4. O poder de enunciar: as fontes no discurso jornalístico As fontes são parte do processo de produção da notícia. Elas se caracterizam por repassar informações ao jornalista ou mesmo podem ser apenas observadas. Embora qualquer pessoa tenha potencial para se tornar fonte, a mídia estabelece uma rede de fontes diretamente relacionadas aos setores político, econômico, social ou cultural. São as chamadas fontes institucionais. Portanto, setores organizados da sociedade tendem a ser procurados rotineiramente por jornalistas para fornecer informações. Assim, fontes podem ser definidas como as pessoas que o jornalista observa ou entrevista (...) e as que fornecem apenas informações de base ou as ocasiões para uma notícia (...). A característica mais saliente das fontes é que elas fornecem informações enquanto membros ou representantes de grupos (organizados ou não) de interesse ou de outros setores da sociedade. (GANS, 1979 apud WOLF, 2005, p. 234)

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

201

O indivíduo tomado isoladamente ou sem representatividade social enfrenta maiores dificuldades para se tornar fonte. Normalmente ele é procurado apenas quando está envolvido ou testemunha algum fato; é a chamada fonte não institucional. A luta pela visibilidade no campo jornalístico decorre, em termos noticiosos, de fatores que vão crivar as fontes aptas a fornecer informação ou promover a notícia e outros setores sociais que dificilmente ascendem à condição de fonte. Além do barulhento processo da produção jornalística (linha editorial, interesses políticos e econômicos, constrangimentos profissionais, pressões do deadline), é preciso perceber que as fontes e os leitores utilizam-se de estratégias para ter sua fala publicada (desde consagrar-se como especialistas, como autointitular-se vítima em alguma situação, até vestir-se como as páginas do jornal para chamar a atenção e redigir as cartas de acordo com as regras pré-estabelecidas pela publicação. Ou seja, há uma disputa pelo poder da fala, embora a posição social e simbólica do jornal como um todo na maioria das vezes garanta sua hegemonia na hora de falar (AMARAL, 2004, p. 114 - 115).

A busca pela imparcialidade do texto jornalístico, por exemplo, é conferida, em grande parte, através da pluralidade de fontes que o compõem e lhe dão credibilidade. No entanto, esse procedimento não garante a representatividade dos vários segmentos sociais e seus pontos de vista. A imprensa exerce um controle sobre as fontes e tende a favorecer os interesses da empresa jornalística e de seus associados. No jornalismo contemporâneo, ideais como a objetividade, veracidade, neutralidade são buscados de modo a produzir um efeito de real, uma vez que a credibilidade é seu maior valor. Para obter informações, o jornalista recorre às fontes e, como parte de um processo, acontecem várias mediações entre a ocorrência até a notícia, porém, nem todas as fontes são relevantes, e o acesso a elas ocorre de maneira diferenciada. As fontes mais recorrentemente utilizadas pela empresa jornalística refletem a estrutura social e de poder dominantes. (...). Enquanto temos agentes sociais que têm acesso praticamente

202

Desafios da pesquisa em jornalismo

imediato aos meios de comunicação (seja para promover informações, ou para conseguir que sejam publicadas as devidas correções), outros agentes sociais quase não conseguem entrar no circuito da informação. (ALSINA, 2009, p. 163)

O autor afirma ainda que existe uma institucionalização de fontes, ou seja, agentes sociais se tornam informantes rotineiros e têm acesso facilitado aos meios de comunicação, por isso, seus discursos são mais veiculados. O jornalista seleciona as fontes segundo diversos critérios, desde a acessibilidade, o fator tempo, mas se pode destacar a autoridade, a produtividade e a credibilidade. A autoridade se refere à respeitabilidade da fonte, ou seja, ao poder econômico e ou simbólico que a mesma representa. Disso se origina a recorrência a fontes oficiais ou que têm posição de autoridade. De acordo com Gans (1979 apud TRAQUINA, 2005, p. 191), “presume-se que essas fontes sejam mais credíveis, quanto mais não seja porque não podem permitir-se mentir abertamente e porque são também consideradas mais persuasivas em virtude de as suas ações e opiniões serem oficiais”. Quanto mais notória for a fonte, mais credível ela será considerada. A credibilidade relaciona-se à veracidade das informações passadas pela fonte para que o material não precise necessariamente ser checado através de outras fontes. Apesar de ser um procedimento rotineiro no jornalismo, a checagem é limitada devido ao fator tempo. Por isso, fontes credíveis tendem a ser valorizadas pelo profissional e acabam sendo frequentemente acionadas. As fontes oficiais possuem maior capacidade de responder às exigências do campo jornalístico quanto à produção de material, enquanto que, por outro lado, um indivíduo, isoladamente, dificilmente mostrará aptidão para lidar com as rotinas da mídia. Mas este pode ter a informação que o jornalista necessita e, então, assumir a condição de fonte. Entende-se por fontes oficiais as que representam o poder instituído sejam elas representativas do estado ou dos diversos campos sociais, isto é, setores organizados da sociedade. O critério de produtividade baseia-se no tipo e na disponibilidade das informações dadas pela fonte.

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

203

Uma boa fonte é aquela que proporciona material suficiente para uma boa notícia, além de conhecer o funcionamento da empresa jornalística e saber que o fator tempo é primordial no processo de produção da notícia. “A autoridade da fonte é um critério fundamental para os membros da comunidade jornalística. O fator da respeitabilidade refere-se aos procedimentos dos jornalistas que preferem fazer referência a fontes oficiais ou que ocupam posições institucionais de autoridade” (TRAQUINA, 2005, p. 191). A relação entre fontes e jornalistas deve ser permeada por regras que regulam a prática jornalística como a pluralidade de fontes e a necessidade de ouvir instâncias que possuem pontos divergentes sobre um mesmo assunto. As rotinas jornalísticas e a própria ideologia que traspassa a empresa jornalística nem sempre permitem que essa premissa seja cumprida, prejudicando assim, a equidade da expressão dos posicionamentos das fontes. Portanto, o estudo das fontes é imprescindível no jornalismo porque o profissional processa as informações colhidas, transformando-a em notícia. E é o texto jornalístico que dará visibilidade às fontes, colocando em circulação um determinado bem simbólico. As necessidades impostas pela rotina de produção da notícia e a representatividade da fonte conduzem o jornalista a recorrer a informantes oficiais, que adquirem credibilidade com o tempo e a prática. Em resumo, além de credíveis, as fontes institucionais produzem material visando à mídia e, consequentemente, o jornalista não precisará recorrer a outra fonte a fim de obter informações. Para efeito desta pesquisa, dividimos as fontes em dois tipos conforme achamos pertinentes ao corpus, ainda que várias outras distinções pudessem ser feitas. Consideramos fonte institucional aquela representativa de setores organizados da sociedade, seja o estado, associações de funcionários, empresas ou mesmo o terceiro setor. A fonte não institucional é desprovida de uma ligação com o poder instituído, representando o indivíduo ou grupo tomado isoladamente. A partir dessas considerações, vê-se a importância de se pesquisar

204

Desafios da pesquisa em jornalismo

as fontes no discurso jornalístico, principalmente no que concerne ao paciente psiquiátrico que, a priori, é desprovido de legitimidade para fornecer informações fidedignas que tenham potencial para se transformar em notícia. No entanto, existe um discurso sobre esse indivíduo nas páginas dos jornais. O estudo visa a investigar quais fontes aparecem nos textos jornalísticos e como são representadas.

5. Dissecação do corpus O estudo analisou 19 textos jornalísticos, entre matérias e reportagens do ano de 1992 do jornal Zero Hora. Os textos se referem à reforma psiquiátrica no Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), local pioneiro no tratamento de pacientes psiquiátricos desde 1884. As fontes foram classificadas em institucionais, quando representam organizações, e não institucionais, quando se referem a pacientes e/ou grupo de pessoas não organizadas. Entre as fontes consideradas institucionais, observa-se o predomínio do campo científico, representado por fontes da área médica que normalmente ocupam também cargos políticos. O campo científico, de acordo com Bourdieu (1983, p. 155), é o lugar de disputas pela autoridade científica, resultante da competência técnica e poder político. De outro lado, têm-se os pacientes psiquiátricos que representam as fontes não institucionais. O estudo identificou nos textos jornalísticos um total de 62 fontes, sendo 42 institucionais e 20 fontes não institucionais. Enquanto as primeiras estão presentes em todos os textos analisados, as fontes não institucionais se restringem a cinco textos. A análise reafirma que as fontes institucionais se tornam rotineiras e têm mais acesso à mídia, pois são consultadas constantemente sobre determinados temas, como é o caso da reforma psiquiátrica. No caso deste estudo, as fontes da área médica são rotineiras e somam 24, do total de 62 encontradas. Fontes como o diretor geral do hospital e também médico, psiquiatras do hospital, médicos da secretaria de saúde são comumente consultadas para dar versões sobre a problemática da reforma psiquiátrica.

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

205

Além de predominar nas matérias, o campo médico é o único consultado em três textos. Em momentos importantes sobre a polêmica como o debate a respeito do possível fechamento do hospital, a venda do prédio e as reformas no hospital, somente as fontes representativas da medicina apareceram no texto. A narrativa jornalística excluiu do debate os demais segmentos representativos da sociedade e outros setores não organizados. As fontes não institucionais são esparsas e representadas pelos pacientes psiquiátricos, embora sejam os mais afetados com a mudança no modelo de assistência, esses pacientes dificilmente são instados sobre o que pensam, como vivem e o que querem para si. No entanto, ao analisar como as fontes não institucionais são apropriadas pelo jornalista e aparecem nas páginas do jornal, nota-se a discrepância entre o discurso institucional e o discurso ou o silêncio do não institucional. A primeira matéria que enfoca o assunto, embora se tenham contabilizado 14 pacientes como fontes (alguns deles estão agrupados, conforme o texto jornalístico descreve e mais uma fonte classificada como não institucional) somente seis fontes são entrevistadas pelo jornalista e destas, apenas quatro têm suas falas reproduzidas. Os demais pacientes são apenas observados pelo jornalista que parece estar atento às atitudes dos internos, principalmente quando estes externam violência, expõem a sexualidade ou mostram comportamentos estranhos ou chocantes. É como se os pacientes não precisassem ser ouvidos, mas apenas observados, porque o jornalista toma para si a responsabilidade de retratar a realidade, descrever o ambiente e o cotidiano dos internos. O texto faz a seguinte descrição sobre a fonte não institucional: “Uma mulher esquelética, nua, com um monte de comida podre esparramada pelo chão, encostada num pilar na Unidade Esquirol, é como se fosse o cartão postal do setor de moradia.” (ZERO HORA, 12 jan 1992. Geral, p. 26) O texto descreve as fontes institucionais, em sua maioria, apontando o nome da pessoa e a respectiva função. O discurso dessas fontes

206

Desafios da pesquisa em jornalismo

recai sobre a necessidade de mudança no modelo de assistência, as mazelas do sistema vigente e elucidação sobre o contexto do paciente psiquiátrico. Somente o fato de ser médico ou possuir um cargo na instituição já é suficiente para legitimar o discurso da fonte e fazer parecer que este é verdadeiro. Tem-se a importância da fonte, ou seja, a posição hierárquica baliza o discurso. As falas institucionais dão o tom da abordagem sobre a política adotada no setor, o jornal afirma: “A política é incentivar o tratamento ambulatorial, evitando o internamento. Segundo o médico Antônio Quinto Neto, diretor de saúde mental da Secretaria da Saúde e Meio Ambiente (SSMA), no território gaúcho existem 2.065 leitos psiquiátricos, sendo que o São Pedro ainda tem o maior número.” (ZERO HORA, 12 jan 1992. Geral, p. 26 e 27) Não é preciso discorrer acerca do comportamento dos membros da instituição ou sequer citar alguma curiosidade ou deformidade física que algum deles possa ter. Por outro lado, os pacientes tornam-se fontes porque são pessoas vistas como “diferentes” das consideradas “normais”, como neste exemplo: “Bento gosta de cantar a música “Jesus Cristo”, de Roberto Carlos, e de ver novela na televisão. ‘Agora quero trabalhar na capina com meus novos amigos, diz’” (ZERO HORA, 23 mar 1992. Geral, p. 33) Disso decorre a necessidade de intensificar os qualificativos que vão evidenciar o grotesco, o feio, a sujeira, a animalidade, a periculosidade, a fala desconexa, afinal, elas aparecem nas páginas do jornal porque têm as marcas da anomalia como a “negra velha desdentada”, a “gringa velha” ou a “mulher esquelética, nua”, seres que, à moda da Idade Média, estão a meio-termo do animal e do humano. O discurso médico é amplamente utilizado como fonte de referência na matéria. A partir dele, os internos do Hospital São Pedro como “moradores” para os que residem no hospital; e “pacientes” aos que precisam de tratamento, portanto, são submetidos à atuação de um poder disciplinador. O poder legitimado da medicina determina o que é são e o que é patológico e é evocado visando a acentuar a tecnicidade da

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

207

fonte, legitimar o discurso jornalístico e, consequentemente, criar um efeito de verdade. Na matéria “Internos do São Pedro vão para Itapuã”, aparecem três fontes sendo que duas delas têm o discurso citado. Outra fonte é um grupo de 19 pacientes que são observados pelo jornalista e, neste estudo, são considerados como uma única fonte. A observação do repórter traduz o posicionamento do jornal em enunciar o ponto de vista institucional pelo desmonte do São Pedro. “Os pacientes demonstraram estar satisfeitos com o novo lar, onde poderão conviver com a natureza e os animais, além de executar trabalhos de agricultura, pecuária, padaria, lavanderia, jardinagem, serviços de consertos e outras atividades como ajudantes de copa, limpeza, etc.” (ZERO HORA, 23 mar 1992. Geral, p. 33) Posteriormente, desmembrado, o grupo foi entrevistado pelo repórter que buscou informações para corroborar o ponto de vista institucional. Por isso, não aparece dissenso quanto à decisão de remover os internos para outro hospital. Na matéria “Especialista inglês reprova o São Pedro”, aparecem duas fontes apenas, ambas institucionais e representativas da área médica. A competência técnica é utilizada para reiterar a necessidade de um novo modelo de assistência. O médico critica a institucionalização de pacientes e relata experiências de tratamentos alternativos em diversos países. Por ser factual, a matéria não aprofunda a problemática e deixa de citar fontes contrárias às críticas do médico. A reportagem que contextualiza a aprovação da lei que instituiu a reforma psiquiátrica utiliza doze fontes. Existe uma disparidade quanto às fontes institucionais que são predominantes no relato jornalístico, totalizando sete, enquanto as não institucionais são apenas três. O ponto de vista das fontes oficiais ganha destaque por se tratar de instituições legitimadas pela sociedade. Apesar de a lei interferir diretamente na vida de internos de hospitais psiquiátricos, somente uma paciente é utilizada como fonte. A fala se refere à nova vida possibilita-

208

Desafios da pesquisa em jornalismo

da com a ressocialização e também cita o passado, quando era paciente do hospital. “Vanda Ginbrunski, de 53 anos, uma esquizofrênica paranóica, recorda as visitas constantes ao Hospital Psiquiátrico São Pedro. ‘Levava injeção, mas como era muito nervosa, penduravam aqueles fiozinhos e lá vinha choque’, lembra, imitando o barulho da descarga elétrica.” (JASPER JR., 19 jul 1992. Geral, p. 34 - 35) Outra distinção a ser feita é quanto à caracterização das fontes. As institucionais são nomeadas e definidas pela profissão e, principalmente, pelo cargo que ocupam. A única informação que aparece no texto sobre elas é a idade. No caso das não institucionais, como a paciente, além da idade, a patologia é o carro-chefe e, associada a ela, a descrição de uma pessoa que, não obstante estar reintegrada à comunidade, parece ter um aspecto exuberante, uma “alegoria dos loucos”, devido aos aspectos ressaltados como maquilagem permanente, o uso de brincos, correntes e pulseiras. O fato de ter se submetido à eletroconvulsoterapia é relevante porque além de ser um tratamento controverso e que é estigmatizado socialmente, possui a força de apelar para a emoção e a repulsa do leitor, alçando a paciente à condição de vítima e, consequentemente, de fonte.

6. Considerações finais Um olhar mais atento verifica que o periódico reproduz estigmas sociais em relação ao paciente psiquiátrico, fazendo deste um mero figurante dos relatos e privilegiando fontes que possuem poder e disputam espaço, através da imposição do discurso. Na maioria dos casos porém, o jornalista tende a buscar fontes institucionais ou setores organizados da sociedade para figurar como fontes. No caso desta pesquisa, os pacientes psiquiátricos são “falados” a partir de outras fontes que os caracterizam e estão relacionados a instâncias de poder que decidem e se expressam por eles. Assim, seja o louco ou pessoa em sofrimento psíquico, expressão empregada atualmente, este sujeito social foi sempre concebido e “falado” através da lógica do outro. Quando houve o “sequestro” da loucura

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

209

para dentro dos manicômios, a autoridade médica se legitimou como competente para tratá-la. Na atualidade, o discurso sobre a insanidade ainda provém dos sujeitos considerados sãos e, principalmente, da autoridade médica. Como vimos nas ocorrências analisadas, a mídia viabiliza tais discursos hegemônicos, colocando-os em circulação na sociedade, visando a formar consensos. Observa-se que os campos sociais disputam a hegemonia do discurso e vários fatores influenciam para que algumas instituições se tornem fontes. O relato jornalístico, entre as inúmeras possibilidades de dizer, aponta o louco como o diferente, aquele que está confinado, possui gestos incompreensíveis, precisa ser tutelado, em oposição aos que estão do lado de fora dos portões do Hospital São Pedro e, por isso, considerados normais, podendo transitar, agir livremente e opinar sobre o outro. Os insanos ilustrados no corpus analisado são caracterizados como desgraçados, dignos de pena, maltratados, esquecidos pela sociedade, cerceados por portões e que vivem num lugar decadente e impróprio para uma possível reabilitação. O discurso jornalístico oculta os mecanismos de sua produção construindo uma realidade, apropriando-se do fato e veiculando-o como o real. Esse mecanismo de ocultamento de quem produz o texto provoca uma “naturalização” do discurso, ou seja, produz um efeito de verdade. A não neutralidade do discurso jornalístico é percebida também através desse “silenciar” dos pacientes e na busca por fontes institucionais que reiteram a necessidade de se realizar a reforma psiquiátrica e abandonar o modelo hospitalocêntrico. Ao longo do ano de 1992, os textos jornalísticos procuraram evidenciar as mazelas do antigo modelo, a ineficiência dos manicômios e abordaram as vantagens da reforma psiquiátrica. Percebe-se que as matérias tomaram o novo modelo como um “ideal” de tratamento e deixaram de enfocar vários outros aspectos sobre a pessoa com transtorno mental. Verifica-se também que as fontes contrárias à reforma não aparecem nas páginas do jornal, nem os problemas acarretados pelas deficiências do novo modelo são abordadas.

210

Desafios da pesquisa em jornalismo

Assim, ao negar a fala a certas instituições, aos pacientes ou mesmo não assumindo declaradamente sua posição diante dos fatos, o veículo apenas reitera o discurso dominante, abrindo espaço para que os atores sociais hegemônicos discutam suas ideias de forma a não comprometer o periódico. Constrói-se uma realidade, onde os mecanismos de produção da notícia são ocultados e as fontes têm o espaço para “falarem por si mesmas”, como se não houvesse intervenções, mas apenas o relato dos acontecimentos. Se a luta antimanicomial propõe um novo modelo de assistência em saúde mental, paradoxalmente, o conteúdo veiculado em ZH tende a reafirmar preconceitos, a reforçar a autoridade do médico como especialista que fala sobre o paciente enquanto este é silenciado.

Referências ALSINA, Miguel Rodrigues. A construção da notícia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009. AMARAL, Márcia Franz. Lugares de fala do leitor no Diário Gaúcho. Porto Alegre: 2004. Tese de doutorado apresentada no programa de pós-graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. BERGER, Christa. Campos em confronto: a terra e o texto. 2ª ed. Porto Alegre: Ufrgs Ed., 2003. BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico. São Paulo: Editora Unesp, 2004. __________ O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998 __________ Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar, 1997. __________ Questões de Sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 10ª ed. São Paulo: Loyola, 2004 TRAQUINA. Nelson. Teorias do jornalismo. A tribo jornalística – uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis: Insular, 2005. WOLF, Mauro. Teoria das comunicações de massa. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Quem fala, quem cala: representatividade das fontes

211

Edições do jornal Zero Hora citadas: O mundo de Argeu acaba num portão. Zero Hora, 12 jan 1992. Geral, p. 26 e 27. Internos do São Pedro vão para Itapuã. Zero Hora, 23 mar 1992. Geral, p. 33 JASPER JR., Gilberto. A humanização ganha espaço com a reforma dos hospitais psiquiátricos. Zero Hora, Porto Alegre, 19 jul 1992. Geral, p. 34 e 35.

212

Desafios da pesquisa em jornalismo

213

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra no jornalismo feminino brasileiro.

Erly Guedes Barbosa Graduada em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFMA (NEAB/UFMA). E-mail: [email protected]

1. Gênero e raça: marcas da identidade feminina Na sociedade moderna, os meios de comunicação de massa influenciam na organização social e na construção da realidade. A mídia se apresenta como elemento da comunicação de massa que influencia o pensamento social ao definir pautas e conteúdos do discurso público. O discurso é compreendido como uma forma de difusão de significados que exerce papel não somente para a elaboração, transmissão e reprodução de referências, ideias, valores, como também de preconceitos. Partindo dessa breve reflexão, essa pesquisa almeja analisar as representações de mulheres negras publicadas nas revistas Claudia e Marie Claire, de circulação nacional, voltadas para o público feminino, no período de outubro de 2007 a março de 2008. Para tanto, esse estudo busca evidenciar os mecanismos de dissimulação do racismo e do sexismo presentes na revistas femininas, para promover discussões sobre sua

214

Desafios da pesquisa em jornalismo

produção e interpretação, tendo em vista que os componentes raça, cor e gênero são elementos integrantes da costura entre as relações sociais. Na condição de dispositivo de poder, a mestiçagem deixa de ser um ato natural e comanda ações, saberes e sentimentos em determinada direção, com o objetivo de integrar e tornar dóceis as raças que estão na raiz da nacionalidade brasileira. Nesse sentido, conforme Munanga (1999), a elite brasileira exalta a mistura de raças e as possibilidades de ascensão social do mestiço, como os meios que comprovam que o Brasil é um país multicultural sem preconceitos e sem discriminação – conformando o famigerado mito da democracia racial brasileira. O conceito de raça é utilizado, nesse trabalho, em sua dimensão relacional, considerando os diversos grupos raciais que formam a sociedade brasileira. Com o desenvolvimento das Ciências Biológicas e da Genética, “raça humana” passou a ser considerado um conceito cientificamente inoperante. Embora se concorde com a inexistência biológica da raça, o uso do conceito é justificado como realidade social e política, considerando a raça como uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e de exclusão, tendo em vista que persiste tanto no uso popular como em estudos produzidos na área das ciências sociais, bem como por algumas entidades do Movimento Negro. Para Kabengele Munanga (2009), O conceito de raça, tal como o empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois, como todas as ideologias, ele esconde uma coisa não proclamada: a relação de poder e de dominação. A raça, sempre apresentada como categoria biológica, isto é, natural, é de fato uma categoria etnosemântica.

O campo semântico do conceito de raça é determinado pela estrutura da sociedade e pelas relações de poder que a conduzem. O sujeito mulher negra é perpassado, concomitantemente, por outro conceito que contribuirá na construção desta pesquisa e que, assim como raça, descarta o discurso biologizante das diferenças: o gênero. Segundo Joan Scott (2008), Ademais, o gênero é igualmente utilizado para designar as relações sociais entre os sexos. O seu uso rejeita explicitamente

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

215

as explicações biológicas, como aquelas que encontram um denominador comum para várias formas de subordinação no fato de que as mulheres têm filhos e que os homens têm uma força muscular superior. O gênero se torna, aliás, uma maneira de indicar as “construções sociais”: a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres.

Destarte, feminilidades e masculinidades são produzidas cotidianamente por meio da repetição de condutas aplicadas às características entendidas como típicas para o homem ou para a mulher no interior de contextos culturais, sociais e políticos determinados e específicos. A inscrição dos gêneros – feminino ou masculino – nos corpos é feita sempre no contexto de uma cultura. As identidades de gênero [...] são, portanto, compostas e definidas por relações sociais, elas são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (LOURO, 2007, p.11).

As construções de gênero, logo, estão imbricadas em outros sistemas de valoração que desempenham papel fundamental na construção dessas individualidades e lhes atribui significados pertinentes ao ambiente nos quais essas venham a se manifestar. Longe da suposta naturalidade que desempenha, o feminino negro é desde cedo trabalhado e domesticado simbolicamente para desempenhar os elementos de inteligibilidade social. Entre tantas marcas, a maioria das sociedades vem estabelecendo a divisão masculino/feminino como uma divisão primordial. Essas relações se tornam mais complexas, uma vez que os indivíduos são atravessados por marcações de classe e raça que reestruturam as relações entre sexos e gêneros. Contudo, supor que o modo como pensamos identidades de gênero e sexuais, bem como de raça, seja generalizável para qualquer cultura, tempo e lugar é um equívoco. É, então, no âmbito da cultura e da história que se definem as identidades sociais (todas elas e não apenas as identidades sexuais e de gênero, mas também as identidades de raça, de nacionalidade, de classe). Essas múltiplas e distintas identidades constituem os sujeitos, na medida em que esses são interpelados a partir de diferentes situações, instituições ou agrupamentos sociais. Reconhecer-se numa identidade supõe, pois, responder afirmativamente a uma interpelação e estabelecer um sentido

216

Desafios da pesquisa em jornalismo

de pertencimento a um grupo social de referência. Nada há de simples ou de estável nisso tudo, pois essas múltiplas identidades podem cobrar, ao mesmo tempo, lealdades distintas, divergentes ou até contraditórias. Somos sujeitos de muitas identidades. (LOURO, 2007, p.12)

Racismo e sexismo têm sido os principais obstáculos para que a mulher negra possa ter a sua cidadania assegurada, pois mesmo entre os negros, as diferenças de renda entre homens e mulheres são mais significativas que entre os demais grupos raciais. A pobreza no Brasil tem cor e sexo: é negra. Sobre a mulher negra, portanto, recai o peso da herança colonial, em que o sistema patriarcal apoia-se sobre a superioridade masculina branca na seguinte escala de valores: o poder político, econômico, social e cultural é privilégio do homem de cor branca; em seguida, numa degradação de valor, fica a mulher branca; abaixo dela, o homem de cor negra, ficando a mulher negra como o estrato mais desvalorizado da população brasileira. E a mídia tem papel importante na construção dessas desigualdades. Como outros veículos de comunicação, as revistas femininas estudadas aqui trazem as representações das relações de gênero e raciais da sociedade em que estão inseridas. Além disso, pertencem aos dois maiores grupos de comunicação brasileiros, o Grupo Abril (Claudia) e as Organizações Globo (Marie Claire).1 Para dar conta dos objetivos já evidenciados, a análise de discurso de linha francesa foi o meio privilegiado para a observação das revistas investigadas, tendo em vista que dissecar o texto em busca de um sentido pode chegar a uma articulação de sentidos que um leitor comum possivelmente não percebesse em sua leitura cotidiana.

1. A revista Claudia foi lançada em outubro de 1961 pela Abril Cultural (Editora Abril), cujo slogan era: “Claudia: a revista amiga”. A publicação era voltada para a mulher casada e dona de casa, apresentando matérias de moda, decoração e culinária. Além de sexualidade, seus textos tratavam da condição de emancipação da mulher. A Claudia é a revista feminina mais antiga em circulação no Brasil. Fez 40 anos em 2001. A revista Marie Claire foi lançada no Brasil, em setembro de 1991, pela editora Globo. Ela é a versão da homônima francesa, lançada em 1937. Diferente dos conceitos das demais revistas, a Marie Claire é supostamente dirigida à mulher que pensa, como diz seu slogan “Chique é ser inteligente”.

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

217

2. Mulheres negras em revista: representações no jornalismo brasileiro As produções simbólicas podem ser instrumentos de dominação, visto que a formação dos objetos se dá no ato da enunciação. Ao classificar ou nomear um objeto, o sujeito oferece uma posição no mundo a ele. Dessa capacidade do discurso surge uma forma de poder chamada por Bourdieu (2006, p. 7) de poder simbólico que é uma espécie de círculo cujo centro está em toda parte e em parte alguma [...] é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.

Portanto, o poder simbólico é um poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem das coisas. O discurso não só é alvo de disputas, mas também é o local privilegiado da disputa pelo poder visto que a cada enunciação busca-se a hegemonia do que é dito. Para Bourdieu (2006, p. 14), o poder simbólico é o poder de se fazer tomar em consideração, o poder de falar e se fazer ouvir: O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou económica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.

Esse poder se exerce nas relações sociais, é constitutivo e, ao mesmo tempo, constitui-se na dinâmica social. Por meio das práticas discursivas, os agentes sociais disputam essa espécie de poder, isto é, disputam a prevalência do seu modo de perceber e classificar as coisas do mundo e o outro e, assim, de produzir a realidade e de intervir sobre essa realidade. A linguagem enquanto discurso é interação e um modo de produção social. Deixa de ser considerada ingênua, natural, desprovida de

218

Desafios da pesquisa em jornalismo

intencionalidade, e torna-se o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. Brandão (2004, p. 11) explica que a linguagem é lugar de conflito, de confronto ideológico, e não há como desvinculá-la dos processos histórico-sociais que a constituem. Dessa maneira, a mídia produz e reproduz estereótipos negativos em relação à mulher negra, bem como permite assumir a existência de uma luta pela fixação dos significados sociais que se situa em toda a esfera da produção simbólica, sem que, no entanto, essa violência seja apreendida objetivamente pelos interlocutores. É por meio do poder simbólico que as revistas femininas estudadas tendem a forjar a apreensão da ordem estabelecida como natural, por meio da imposição mascarada de sistemas de classificação ajustados às estruturas sociais. Produtos culturais destinados a um público específico que aparece construído e concretizado em suas páginas, as revistas femininas veiculam concepções sobre a relação entre os sexos e grupos raciais. As concepções culturais de masculino e feminino como duas categorias complementares, mas que se excluem mutuamente, formam, dentro da cultura brasileira, um sistema simbólico que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. O jornalismo, ao se investir de um discurso que se propõe objetivo e imparcial, acaba por apresentar um texto que é produto de um discurso prévio. Para evidenciar os mecanismos de dissimulação do racismo e do sexismo presentes na revistas femininas, foi isolado o espaço discursivo composto pelas matérias (reportagens e notas) que abordam a mulher negra em seu contexto de atuação, veiculadas em Claudia e Marie Claire no período de outubro de 2007 a março de 2008, de tal forma que o corpus da pesquisa incorpora 13 matérias jornalísticas sobre temas que compõem o universo da mulher negra. As duas revistas totalizam 230 matérias com referências à mulher branca, 104 na Marie Claire e 126 na Claudia. Portanto, no universo de 243 matérias jornalísticas, verifica-se que apenas 5,3% das notas ou reportagens, isto é, 13 inserções, trazem temas do universo da mulher negra, dados apontados na Tabela 01.

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

219

Tabela 01: Matérias jornalísticas publicadas nas revistas Cláudia e Marie Claire entre outubro de 2007 e março de 2008. Fonte: Pesquisa direta

Nas doze revistas pesquisadas, não foram encontradas capas com mulheres negras brasileiras. Exibindo as chamadas das principais matérias da edição, a capa da revista é o chamariz das mulheres para o consumo do produto jornalístico. As retratadas nas capas são atrizes, apresentadoras de TV, modelos ou cantoras brasileiras brancas que estão na pauta do discurso midiático. A exceção está presente na edição de novembro de 2007 da Marie Claire: a atriz norte-americana Angelina Jolie.

Figura 1 - Capas das revistas Claudia e Marie Claire entre os meses de outubro de 2007 e março de 2008

Esse trânsito constante de mulheres brancas revela o ideal de perfeição construído nos/pelos periódicos. Percebe-se, portanto, a adoção de um padrão branco como norma, a branquitude normativa, resultante da incorporação, por essas revistas, do mito da democracia racial brasileira e da ideologia do branqueamento. Edith Piza, no artigo intitulado

220

Desafios da pesquisa em jornalismo

Branco no Brasil? Ninguém sabe, ninguém viu... (In HUNTLEY; GUIMARÃES, 2000, p. 103) discute o conceito de branquitude formulado por Ruth Frankenberg: Segundo esta autora, branquitude é ‘um conjunto de dimensões interligadas’, isto é, um lugar social de vantagens e privilégios raciais; um lugar ‘de onde pessoas brancas vêem a si mesmas, aos outros e ao mundo’; ‘refere-se a um conjunto de práticas culturais que são comumente não-demarcadas e não-nomeadas’.

A representação dessas mulheres de sucesso e brancas é usada pelos veículos para vender ao público feminino um ideal de beleza e perfeição física, emocional, social, psicológica. Dessa forma, a imprensa feminina cria e dissemina um modelo ideal de mulher e sugere que todas sejam como ela, tanto fisicamente quanto em seus comportamentos, desejos, repulsas, sonhos, planos. Agrupando as notícias do corpus de acordo com características dos temas abordados que remetem ao universo das mulheres negras, traça-se uma categorização dos tipos de representação do feminino negro mais frequentes nos conteúdos dos periódicos analisados, embora sem a pretensão de esgotar a possibilidade de classificação. Assim, o estudo adota duas categorias de projeções identitárias construídas por Claudia e Marie Claire, que não se pretendem universais, mas que visam a facilitar a análise discursiva das notícias que têm temas relacionados a mulheres negras como cerne: Mulheres Notáveis e Mulheres Estereotipadas.

2.1. Mulheres notáveis: a ‘terceira mulher’ nas páginas das revistas As matérias reunidas nesta primeira categoria possuem como personagens, seja protagonista ou ocupando lugar secundário, um tipo de mulher que se enquadra na classificação de Lipovetsky (2000, p. 236) da terceira mulher, definida como “um novo modelo que se caracteriza por sua autonomização em relação à influência tradicional exercida pelos homens sobre as definições e significações imaginário-sociais da mulher”. Tal como afirmado anteriormente, quando se cruza o fator gêne-

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

221

ro com o fator raça, constata-se a exclusão das mulheres negras dos espaços de poder político e econômico já conquistados pelas mulheres brancas. Portanto, as mulheres poderosas retratadas nas matérias jornalísticas apontadas são exceções em relação ao contingente de mulheres negras que ainda não ocupam áreas profissionais de maior remuneração, de comando ou decisão, antes restritas aos homens. No corpus2 foram identificadas seis notícias que representam mulheres com o referido perfil. Por outro lado, há, paradoxalmente, em todas as matérias, a tendência para ironizar ou, no mínimo, por em evidência pontos considerados femininos que na verdade são pistas do cunho discriminatório do discurso das publicações estudadas acerca do feminino negro. A matéria escolhida para demonstrar tais identificações foi publicada pela revista Claudia em dezembro de 2007.

2.1.1. Ela dá a volta ao mundo No título, a expressão dá a volta ao mundo antecipa o tema recorrente na entrevista de uma única página com a cantora Paula Lima: a conquista da carreira internacional da artista. No subtítulo, que nesta notícia vem acima do título, o tema também aparece explicitamente: “[...] está deixando de ser conhecida como uma cantora paulistana para conquistar o planeta”. A entrevista com perguntas e respostas (pingue-pongue) introduz o sujeito do texto. O autor não é, do ponto de vista de Foucault (2005, p. 26), o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência. Dessa forma, a unidade do texto é um efeito discursivo que resulta do princípio da autoria. Ao apresentar a palavra do outro, entendido aqui como a entrevistada, constrói-se um outro, a leitora, a quem o eu (a revista) se dirige. É nesta forma que se manifesta a própria fala da revista. 2. Na revista Claudia estão Em defesa das meninas do Brasil, Ela dá a volta ao mundo, Wangari Maathai, a ativista africana que plantou 30 milhões de árvores, enquanto em Marie Claire identificamos As 10 Perguntas de Marie Claire para... Elza Soares e Quente, bem quente.

222

Desafios da pesquisa em jornalismo

A entrevista permite à leitora conhecer opiniões, ideias, pensamentos e observações da personagem da notícia. A revista conduz a fala da entrevistada, por meio de perguntas diretas, recortando o universo de atuação do eu. Dessa forma, o eu (revista) e o outro (entrevistada) se definem e se constituem mutuamente, atribuindo, a si mesmo e ao outro, a imagem que eles fazem do próprio lugar e do lugar ocupado pelo outro. Além disso, antecipam as representações da interlocutora e, de acordo com esse olhar prévio, pensam estratégias de discurso. Para realçar a força e determinação de Paula como mulher capaz de dar nova direção à carreira profissional de sucesso, a revista utiliza a fala da artista, sujeito fragmentado que tem a ilusão de ser uno e está sempre se remetendo ao já-dito, a outros discursos. Os trechos “Quero continuar sendo uma cantora de São Paulo ou conhecer o mundo?”, “Trabalho com os mesmos músicos supercompanheiros, mas assumi as rédeas da carreira” e “Este ano fui indicada a vários prêmios, saí na capa de uma revista japonesa, fiz shows na África e recebi convites para me apresentar na Itália e no Japão em 2008.” (ELA dá a volta ao mundo, 2007, p. 34, grifos nossos) reforçam o lugar de fala onde a entrevistada se coloca. Por outro lado, correspondendo ao pressuposto de abordar negativamente os assuntos referentes às negras, Paula é representada como uma mulher que alcançou o sucesso em outros países graças à intervenção do marido, que recebe o mérito do sucesso dela: “[...] Há dois anos, quando me casei, amadureci e entendi que posso tudo. Soltei as amarras. Meu marido (o administrador de empresas Ronaldo Bonfim) trouxe uma visão mais contemporânea dos negócios, observou a música que faço e deu idéias [...]”. O sucesso profissional de Paula deixa de ser fruto de seu trabalho e passa a ser resultado da intervenção do sexo masculino. Apesar de a matéria ter sido publicada na editoria Conexão Claudia, que traz sempre entrevistas sobre a vida profissional de artistas brasileiros em evidência no momento, o discurso de Claudia posiciona Paula Lima como vaidosa, ao procurar referências sobre o cuidado com os cabelos. Além disso, a abordagem desse tema, feita pela pergunta da repórter: “Seu cabelo é uma escultura com tranças ou cachos. É difícil

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

223

manter?”, demonstra a anormalidade, para a publicação, de se utilizar penteado afro. Afinal, as entrevistas das outras cinco edições analisadas não mencionam cuidados com a beleza, mas apenas assuntos profissionais. O discurso de Claudia reforça, portanto, o discurso pré-existente de que o cabelo crespo natural é ruim, feio, anormal. Hooks (2005, p. 5) salienta que “as respostas aos estilos de penteado naturais usados por mulheres negras revelam comumente como o nosso cabelo é percebido na cultura branca: não só como feio, como também atemorizante”.

2.2. Mulheres estereotipadas: submissão, sensualidade, perigo, prazer, pobreza e desordem As notícias agrupadas nessa categoria reúnem, exercendo protagonismo ou não, mulheres representadas por meio de estereótipos baseados no gênero e raça, constatando-se a contínua projeção de imagens negativas e degradantes das mulheres. Quando ocupam lugar de destaque na reportagem, são representadas sob a forma de estereótipos como a mulata sensual, indivíduo exótico, pessoa que depende da ajuda da pessoa branca, bandida ou marginal, feia. Segundo Zilá Bernd (1994), estereótipos são ideias que são repetidas sem serem questionadas. A construção da estereotipia pode se dar pela ignorância ou quando há um objetivo político de reproduzir uma ideia falsa de um determinado grupo ou sociedade. Quando reproduzido por vozes autorizadas, como cientistas e líderes de opinião ou difundidas pelos meios de comunicação de massa, como as revistas voltadas para o público feminino, o estereótipo se consolida no imaginário coletivo e contribui para firmar o preconceito em relação às mulheres negras. A tessitura que envolve o estereótipo é complexa, pois, como alerta Homi Bhabha (1998, p. 101), ele “é uma forma de conhecimento e identificação que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido”. É desse movimento que surge a força do estereótipo, atravessando os jogos sociais como “um modo ambivalente de conhecimento e poder” (BHABHA, 1998, p. 103).

224

Desafios da pesquisa em jornalismo

Deste modo, o lugar delineado para a mulher negra é em um contexto mítico e ambíguo de sedução e desejo, repulsa e perigo. Segundo Corrêa (1996), forja-se um estereótipo do feminino negro ligado à submissão, à sensualidade, ao perigo e ao prazer, mas um prazer relacionado à pobreza, à miséria e à desordem, atributos que somados ao estereótipo da negatividade dirigida à sua cor de pele tornam-na um ser duplamente discriminado: por ser mulher e por ser negra. No corpus3 de análise foram identificadas oito notícias que representam mulheres com a referida representação. A discriminação racial e de gênero na sociedade brasileira manifesta-se, muitas vezes, não em comportamentos que podemos observar ou detectar, mas exatamente na sua ausência. Trata-se, portanto, de procurar analisar o que está oculto sob o manto da indiferença, o que está implícito: as omissões, os silêncios, a inexistência, a ambiguidade. A matéria escolhida para demonstrar tais representações negativas foi publicada pela revista Marie Claire em novembro de 2007.

2.2.1. Mulheres do tráfico Publicada na Marie Claire, a reportagem explora trechos da obra Falcão – Mulheres e o Tráfico, lançada em novembro de 2007. O livro é de autoria do músico MV Bill e de seu produtor, Celso Athayde, e é o terceiro que aborda o tema do tráfico de drogas produzido por eles. O primeiro foi Cabeça de Porco e o segundo, com maior visibilidade por conta do documentário homônimo exibido no programa da Rede Globo, foi Falcão – Meninos do Tráfico. A fotografia que abre a matéria ocupa toda a primeira página. Nela aparecem duas mulheres negras abraçadas, o que sugere união, em posição que alude a um desafio, pois uma delas segura com a mão esquerda um revólver, direcionando-o para cima, num cenário percebido como uma cozinha. Como efeito de edição, a foto é avermelhada, numa indicação clara ao sentido de violência e morte, uma das simbologias que esta cor assume no Ocidente. 3. Na revista Claudia temos O drama de Darfur, Quero alisar o meu cabelo[...], Uma fada madrinha passou em minha vida e O bafafá das rainhas, enquanto a revista Marie Claire publicou Mulheres do tráfico, Este é o instrumento de trabalho desta mulher e Lições de tolerância.

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

225

O vermelho está no limite entre a cor visível e, derivando daí parte da agressividade que é característica dessa cor. É uma agressividade de caráter hipolingual, ou seja, dos códigos primários, biofísicos, que, somada à identificação da cor com o elemento mitológico fogo, como cor da proibição, do não poder tocar (porque queima), e com a cor do sangue, da violência, faz com que o vermelho também seja construído por sistemas de códigos hiperlinguais, ou seja, de códigos terciários, os códigos da cultura, o que o joga para a segunda realidade (GUIMARÃES, 2000, p. 114).

A legenda explicativa afirma: “As imagens desta reportagem não fazem parte do livro “Falcão – Mulheres e o Tráfico”. São meramente ilustrativas”. Essa foto é de autoria de Ricardo Moraes, do jornal O Dia. Todas as outras são de Jhonny, fotógrafo da Editora Símbolo e da Revista Raça. O uso daquela fotografia para abrir a matéria, com duas mulheres negras protagonizando a cena, se justifica pela ideologia que atravessa o discurso da revista.



Figura 3 - Duas primeiras páginas da reportagem Mulheres do tráfico. Fonte: CIRENZA, Fernanda. Mulheres do tráfico. Marie Claire, São Paulo, n. 200, p. 94102, nov. 2007.

226

Desafios da pesquisa em jornalismo

Sob a perspectiva dominante, inclusive da revista Marie Claire, a mulher negra da periferia representa a face perigosa da sociedade. A revista traça três grandes estereótipos: “Marie Claire selecionou parte de três histórias: a de uma mulher de bandido, a de uma irmã de falcão e a de uma mãe criminosa”. Como esclarecem Edimilson Pereira e Núbia Gomes (2001, p. 202): As práticas cotidianas, no entanto, revelam outra situação. O senso comum fornece aos indivíduos o argumento que condena os negros independentemente de se comprovar o seu envolvimento ou não em atividades ilegais. O argumento consiste em representar os negros como suspeitos em potencial, ou seja, se não cometeram um delito, é provável que venham a cometê-lo.

Essa tese determinista perpassa o discurso da revista, como bem ilustra a expressão de uma das entrevistadas do livro, identificada como uma mãe criminosa pela revista: Olha, rapaz, tu queres saber mesmo? O mundo gira em torno do dinheiro... Todo mundo tá atrás do dinheiro. Passou o tempo da moral, dos bons costumes... Eu quero para os meus filhos o que todo mundo quer pros seus filhos. Tudo que estamos fazendo está errado, mas tudo que estamos fazendo é pra nossa sobrevivência, e o nosso ganha-pão vem daqui. Eu sei que você está conversando comigo, mas sei que você me condena, mas pode ter certeza que meus netos já nasceram condenados. Nós só queremos ter as coisas igual todo mundo tem... mas eu sei que vamos se foder no final, a corda vai arrebentar aqui, na nossa mão (CIRENZA, 2007, p. 100)

A matéria é composta por passagens do livro. A jornalista, por vezes, intercala sua voz à voz dos outros na matéria (entrevistadas). Portanto, o outro na verdade são outros: a fonte de informações e a leitora. Nas entrevistas, os autores do livro conduzem a fala das entrevistadas, por meio de perguntas diretas, definindo uma série de procedimentos pelos quais a palavra dos outros (entrevistadas) é selecionada, organizada e reapresentada. Dessa forma, os outros (entrevistadas) e o outro (entrevistadores) se definem e se constituem mutuamente. Tendo em vista que os textos são originários do livro Falcão – Mulheres e o Tráfico, o eu (revista) utiliza dispositivos de enunciação para dar a palavra ao outro, isto é, aos entrevistadores, tentam restituir não só as falas como também as marcas das enunciações originais.

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

227

2.3. Silêncio estampado: onde estão as cidadãs negras fora do estrelato? A mulher negra no jornalismo feminino é silenciada, tendo em vista que aparece de forma diminuta no conjunto das matérias jornalísticas. Apesar de não declarar explicitamente, as revistas estudadas adotam uma política de silêncio e discriminação em relação às mulheres negras, forjando um discurso fundado no mito da democracia racial brasileira e da ideologia do branqueamento. O resultado dessa construção é a negação da mulher negra em relação a sua raça e cultura. O silêncio atravessa as palavras, existe entre elas, indica que o sentido pode ser outro, ou que aquilo que é mais importante não se diz. Há, pois, um aspecto político da significação que resulta no silenciamento como forma não de calar, mas de fazer dizer “uma” coisa, para não deixar dizer “outras” coisas. Ou seja, o silêncio recorta o dizer. Essa é sua dimensão política e está assentada na dimensão fundante do silêncio. No discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo. Ao se utilizar o mecanismo da censura, se proíbe ao sujeito ocupar certos lugares, isto é, proíbem-se certas posições do sujeito, se interdita a inscrição dele em formações discursivas determinadas. Consequentemente, a identidade do sujeito é afetada, tendo em vista que a identidade é resultado de processos de identificação segundo os quais o sujeito deve ser inscrito em determinada (e não em outra) formação discursiva para que suas palavras tenham sentido. Os meios de comunicação contribuem para determinar e definir o lugar da mulher negra na contemporaneidade. Assim, concebem-na em condição de agente passivo na relação com o homem, aproximando-a da identificação de mera dominada e elemento relegado ao segundo plano na relação. Ao mesmo tempo, representam-na como oposta e inferior à mulher branca. Dessa forma, os meios de comunicação, enquanto produtores de discursos, detêm o poder influenciador, de certa forma limitado, de funcionar como elementos de constituição ou reforço de identidades para

228

Desafios da pesquisa em jornalismo

a mulher negra. Isso se dá por meio de exclusão da temática que não convém e/ou não é oportuna expor à sociedade.

3. Conclusões Diante da análise de matérias jornalísticas editadas em revistas femininas de difusão nacional, constatou-se que a mulher negra é apresentada por esses periódicos de forma estereotipada e vazia. Ela é invisível nesses produtos midiáticos, pois não é foco das matérias jornalísticas e, quando ocupa lugar de destaque na reportagem, é representada sob a forma de estereótipos. Apesar de não declarar explicitamente, as revistas estudadas adotam uma política de silêncio e discriminação em relação às mulheres negras, forjando um discurso fundado no mito da democracia racial brasileira e da ideologia do branqueamento. O resultado dessa construção é a negação da mulher negra em relação a sua raça e cultura. As mulheres negras noticiadas em Claudia e Marie Claire assumem duas categorizações: Mulheres Notáveis, retratadas nas matérias jornalísticas assumem a forma da terceira mulher, caracterizada por sua autonomização em relação à influência tradicional exercida pelos homens sobre as definições e significações imaginário-sociais da mulher; e as Mulheres Estereotipadas, representadas por meio de lugares-comuns baseados no gênero e raça, constatando-se a contínua projeção de imagens negativas e degradantes das mulheres. Quando estão nas páginas jornalísticas, são representadas sob a forma de estereótipos. Constrói-se, dessa forma, um discurso que determina espaços específicos de possibilidade de presença da mulher negra. Argumenta-se que essa expressão simbólica não é somente reflexo das práticas sociais. O discurso opera na constituição de expectativas pelos atores sociais, nesse caso estabelecendo áreas onde a presença da negra é aceita, ao mesmo tempo em que assinala que outros espaços sociais -­por exemplo, economia, finanças, saúde, profissão, educação - não são espaços para essas mulheres. Além disso, as cidadãs negras que exercem funções não relacio-

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

229

nadas aos holofotes são totalmente excluídas das páginas de ambas as revistas. A advogada, médica, secretária, empregada doméstica, professora, engenheira, bióloga ou qualquer outra profissional fora do estrelato é invisibilizada pelos discursos. Nesses periódicos, textos e fotografias remetem, em maioria, a mulheres brancas apresentadas como ideal não só de beleza, mas de perfeição, pois são sinônimo de eficiência, sucesso profissional e sexualmente desejáveis. Percebe-se, portanto, a adoção de um padrão branco de normalidade, chamada branquitude normativa, que se dá em decorrência da incorporação do mito da democracia racial brasileira e da ideologia do branqueamento. A participação de mulheres negras no conteúdo de matérias jornalísticas de forma não estereotipada é uma forma de reforçar a identificação positiva dessas em relação à condição de gênero e racial. No entanto, os meios de comunicação não transmitem uma imagem equilibrada nem da diversidade das mulheres nem de suas contribuições à sociedade. A falta de sensibilidade sobre o tema se evidencia no fracasso em eliminar os estereótipos baseados no gênero e na raça, constatando-se a contínua projeção de imagens negativas e degradantes das mulheres negras. Compreender os vários papéis culturais construídos por meio das mídias impressas para as mulheres negras é de grande importância para o desenvolvimento saudável da autoestima dessas mulheres e a superação do preconceito racial e de gênero, afinal, as representações forjadas pela mídia influenciam na formação ou deformação da identidade dessas mulheres e, consequentemente, na luta para ultrapassar a barreira de estereótipos e invisibilidade.

Referências BERND, Z. Racismo e anti-racismo. São Paulo: Moderna, 1994. BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz (português de

230

Desafios da pesquisa em jornalismo

Portugal). 9 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. BRANDÃO, H. N. Introdução à análise do discurso. 2 ed. rev. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004. CIRENZA, Fernanda. Mulheres do tráfico. Marie Claire, São Paulo, n. 200, p. 94-102, nov. 2007. CORRÊA, M. Sobre a invenção da mulata. São Paulo: Cadernos Pagu (6-7), 1996. p. 35-50. ELA dá a volta ao mundo. Claudia, São Paulo, ano 46, n. 12, p. 34, dez. 2007. FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 12 ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. GUIMARÃES, Luciano. A cor como informação: a construção biofísica, linguística e cultural da simbologia das cores. São Paulo: Annablume, 2000. HOOKS, Bell. Alisando o nosso cabelo. Trad. Lia Maria dos Santos. Revista Gazeta de Cuba – Unión de escritores y artista de Cuba, Habana, jan.-fev. 2005. HUNTLEY, L.; GUIMARÃES, A. S. A. (Orgs.) Tirando a máscara: ensaios sobre o racismo no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 2000. LIPOVETSKY, G. A terceira mulher: permanência e revolução do feminino. São Paulo: Companhia das letras, 2000. LOURO, G. L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade negra. Petrópolis: Vozes, 1999. __________. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade

e

etnia.

Disponível

em:

http://www.ufmg.br/

inclusaosocial/?p=59 Acesso em: 05 abr. 2009. ORLANDI, E. P. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: UNICAMP, 2007. PEREIRA, Edimilson de Almeida; GOMES, Núbia Pereira de Magalhães. Ardis da imagem. Belo Horizonte: Mazza Edições, Editora PUCMinas, 2001.

Mosaico em preto e branco: representações da mulher negra

231

SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Disponível em:. Acesso em: 02 ago 2008.

232

Desafios da pesquisa em jornalismo

233

Pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão Francisco Gonçalves da Conceição Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ e professor do Departamento de Comunicação Social da UFMA. E-mail: [email protected]

1. Introdução Na última década houve uma expansão do ensino de comunicação no Maranhão. Atualmente, cinco instituições de ensino superior oferecem cursos de Comunicação no Estado - Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Faculdade São Luís (FACSÃOLUÍS), Centro Universitário do Maranhão (UNICEUMA), Faculdade do Estado do Maranhão (FACEM) e Instituto Maranhense de Ensino e Cultura (IMEC). Ao todo são seis cursos, já que a Federal oferece cursos em dois campi. Dessas instituições, apenas duas oferecem curso de Comunicação/ Jornalismo, no caso a UFMA, em São Luís e Imperatriz, e a Faculdade de São Luís, também na capital. O UNICEUMA chegou a oferecer curso de Jornalismo, mas não passou da primeira turma por falta de novas matrículas, mantendo apenas, hoje, Publicidade e Propaganda, que também é ofertado pelas outras instituições privadas de ensino superior, sendo que a FACEM, após quatro anos, não conseguiu iniciar nenhuma turma.

234

Desafios da pesquisa em jornalismo

Voltados exclusivamente para o ensino, a maioria desses cursos não investem em pesquisa. Somente na UFMA tem se criado as condições para a implantação de uma base de investigação científica, que tende a se ampliar nos próximos anos. A considerar os projetos aprovados em 2009 e 2010 em editais da FAPEMA e nas instâncias da própria universidade, Comunicação aparece como área emergente na pesquisa científica do Estado, com foco significativo nos estudos de jornalismo e interfaces. Para a construção desse novo cenário, pesaram a formação e a nucleação dos professores em grupos de pesquisa. O quadro é ainda embrionário, mas já indica tendência e esforço de superação da pesquisa como ação isolada, individual e descontínua. Indica ainda mudanças na política da instituição, que procura articular a transmissão do conhecimento com a produção científica. Este artigo pretende, assim, mapear novas tendências da pesquisa em comunicação e jornalismo no Estado.

2. Formação dos professores de comunicação Os dois cursos de Comunicação oferecidos pela UFMA estão organizados em habilitação. Em São Luís (Campus I), o Curso de Comunicação Social oferece três – Jornalismo, Relações Públicas e Rádio e Televisão; em Imperatriz (Campus II), o Curso de Comunicação Social oferece apenas uma – Jornalismo. A rigor, as habilitações funcionam na modalidade curso – desde o primeiro período os alunos trabalham com disciplinas da habilitação, da área de Comunicação e das Ciências Sociais e Humanas. Há cinco anos, a UFMA rompeu com a separação das disciplinas técnicas e teóricas. Este modelo foi adotado em São Luís a partir de 2007, com a implantação do novo projeto político e pedagógico, que substituiu o currículo em vigor desde 1984, que dividia a formação em tronco comum e específica, gerando uma série de distorções, a exemplo da famosa dicotomia entre teoria e prática. O primeiro currículo do curso, implantado em 1970, tomou como referência o modelo da USP. Por esse modelo, apenas no 5º período o aluno escolhia a habilitação que desejava cursar.

Pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão

235

Hoje, o candidato escolhe a habitação que deseja cursar no ato de inscrição no ENEM. Embora o projeto político-pedagógico do curso de Imperatriz tenha sido aprovado primeiro que o de São Luís, ele se beneficiou das discussões que o Departamento de Comunicação Social vinha promovendo com o propósito de avaliar, rever e alterar o padrão de ensino no Campus I. Na prática, tanto um como o outro adotaram a modalidade curso, que se distingue do modelo habilitação pela organização da grade curricular, que evita a separação das disciplinas específicas das disciplinas de comunicação e das humanidades, conferindo autonomia pedagógica a cada uma. A mudança do modelo curricular do Curso de Comunicação Social de São Luís e a proposta apresentada para a expansão em Imperatriz já refletia uma mudança no perfil dos professores. Se nas décadas de setenta e oitenta a formação em nível de pós-graduação dos professores ocorreu de forma rarefeita, a partir dos anos noventa cresceu o número de professores que buscaram os programas de pós-graduação em Comunicação, com efeitos significativos na primeira década do século XXI no que diz respeito às atividades de ensino e à reestruturação do curso de Comunicação Social. Contribuíram também para a mudança do perfil dos professores as alterações na forma de seleção dos docentes, que passou a privilegiar a formação, estabelecendo a titulação como critério para abertura de concurso público. Em Imperatriz, que nasce nesse contexto, todos os professores possuem no mínimo o mestrado. Ou seja, os concursos públicos passaram a ser convocados inicialmente para doutores e, na ausência desses candidatos, para mestres. Na maioria das vezes, os concursos foram reabertos para mestres, o que levou a uma mudança no perfil dos professores. Com trajetórias distintas, as duas unidades acadêmicas da UFMA contam com diferentes realidades no que se refere à formação dos professores. Em São Luís, dos 34 professores do quadro efetivo, onze têm doutorado, sendo que dois já fizeram o pós-doutorado; quatorze são

236

Desafios da pesquisa em jornalismo

mestres, sendo que destes cinco estão cursando o doutorado em universidades do Brasil e do exterior; dos nove professores que têm apenas a graduação, sete estão fazendo o MINTER (UFF/UFMA); dos doutores, três fizeram o doutorado em áreas afins. Até 2012, apenas dois professores terão apenas a graduação. Entre os doutores e mestres com formação em Comunicação, verifica-se formação diversificada em diferentes programas de pós-graduação do país, como Comunicação e Cultura (UFRJ), Ciências da Comunicação (USP), Comunicação e Semiótica (PUC-RS), Comunicação (UNISINOS), Comunicação Social (UAM – SP), Comunicação (UNEMSP). Entre os mais procurados, figuram cursos oferecidos pela USP e UFRJ. Três professores se doutoraram em Políticas Públicas (UFMA), Ciências Políticas (PUC-SP) e Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido (UFPA). Na unidade de Imperatriz, dos 14 professores do quadro, três são doutores e onze são mestres, sendo que, desses, três estão cursando doutorado . A exemplo de São Luís, essa unidade também conta com uma formação bastante diversificada, como se pode observar pelos programas de pós-graduação em que os docentes cursaram mestrado e doutorado: Filosofia (UFRJ), Sociologia (UFPB), Comunicação (UFPE), Comunicação e Cultura (UFRJ), Comunicação Empresarial (UFRJ), Ciências da Informação (UNB), Linguistica e Lingua Portuguesa (UNESP), Comunicação Social (UNEMSP), Agronegócios (UFMS), História (Universidade Federal da Grande Dourados), Ciências da Comunicação (Universidade do Vale do Rio dos Sinos) e Letras (UFMS). Considerando o número de professores de comunicação com mestrado, as duas unidades acadêmicas estão trabalhando no sentido de acelerar a formação desses docentes. Conjuntamente, estabeleceram a meta de formar nos próximos quatro anos vinte doutores em comunicação. Para isso, apresentaram à CAPES proposta de doutorado interinstitucional, a partir de tratativas entre a PUC-RS e a UFMA, o que já foi aprovado, com previsão de início a partir de 2012. De outro modo, ou haveria a dispersão para outras áreas, na falta de pós-graduação no Estado, ou morosidade, já que a liberação para a pós teria que ser gradual.

Pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão

237

Em São Luís, os professores do Departamento de Comunicação Social participam de duas iniciativas interinstitucionais. Uma é o DINTER em Psicologia Social, convênio celebrado com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), por iniciativa do Departamento de Psicologia da UFMA. Dessa iniciativa, participam três professores de Comunicação. A outra é o Minter, resultado de convênio entre a UFMA, Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Virtual do Maranhão (UNIVIMA). Do Minter, participam sete professores de Comunicação, com previsão de conclusão no final de 2011. Os projetos interinstitucionais são resultados de uma mudança na política de planejamento acadêmico da instituição. Com a discussão e aprovação do Plano de Capacitação docente (PDC), em assembleia departamental, a partir de 2008, essa questão deixou de ser efetivamente tratada como questão pessoal do professor para se tornar política da unidade acadêmica. Atualizado anualmente, o plano de capacitação estabelece metas e estratégias de formação dos professores. Até os anos noventa, a formação pós-graduada era vista como uma iniciativa pessoal do docente.

3. Nucleação dos professores em grupos de pesquisa Como a formação strictu sensu é apenas um momento na formação do pesquisador e visto que nem todo professor é um pesquisador, o Departamento de Comunicação Social passou a estimular a organização de núcleos de pesquisa como parte de uma estratégia de formação de pesquisadores e construção de base de pesquisa e superação do atomismo, das ações isoladas e sazonais. O objetivo era o de estabelecer uma base de pesquisa, agregar os professores com mestrado e doutorado e estimular o trabalho em projetos de pesquisa e extensão. Sobretudo os doutores foram estimulados a liderar o processo. Em Imperatriz, iniciativa semelhante foi adotada pela coordenação do curso. A meta agora é a de formar pesquisadores para a área de comunicação Esta, no entanto, não tinha sido a primeira iniciativa. Nos anos noventa, ocorreram três iniciativas de organização de núcleos de pesqui-

238

Desafios da pesquisa em jornalismo

sa no âmbito do Departamento de Comunicação Social. O professor José Ribamar Ferreira Júnior organizou o núcleo Processo de produção e criação jornalística; a professora. Joanita Mota de Ataíde realizou várias sessões de estudo sobre Comunicação e Psicanálise com esse propósito, mas que não chegou a ser institucionalizado em forma de núcleo de pesquisa. As professoras Josefa Melo e Souza Bentivi, Nadja Carvalho e Francisca Ester de Sá Marques organizaram grupo de pesquisa sobre Linguagem e Comunicação. Com o retorno, no final dos anos 1990 e no começo do século XXI, de professores que tinham ido estudar em outros estados, essa necessidade volta a ser objeto de discussão. Considerando a diversidade de formações e as três subáreas (Jornalismo, Relações Públicas e Radialismo), a experiência dos professores e o ainda pequeno número de mestres e doutores, a estratégia adotada foi criar núcleos que pudessem agregar a diversidade de formação e interesses, estimular a pesquisa e criar as condições para projetos mais definidos no futuro. Com essa perspectiva, foram criados dois núcleos – o Núcleo de Estudos em Estratégias de Comunicação (NEEC) e o Núcleo de Pesquisa em Comunicação Midiática e Institucional (NPCMI). Essas questões vão ser traduzidas nas linhas de pesquisa, que procuraram contemplar demandas de subáreas (Jornalismo, Radialismo e Relações Públicas), a trajetória dos professores e o perfil do curso de Comunicação, que precisava ser revisto. Ou seja, a estratégia era de estabelecer linhas de afinidades, que contemplassem trajetórias e interesses de subáreas. Neste sentido, os dois núcleos possuem característica em comum: articulam temas transversais ao campo da comunicação. Com isso, foi possível nucelar no mesmo grupo professores das diferentes subáreas, trajetórias diferentes, mas com interesses em desenvolver temas comuns. O Núcleo de Pesquisa em Comunicação Midiática e Institucional, proposto em 2006 pelos professores José Ribamar Ferreira Júnior, Sílvio Rogério Rocha de Castro e Luciana Saraiva de Oliveira Jerônimo se propunha a estudar o processo e as formas de construção de produtos midiáticos e institucionais, desde sua gênese até o produto final, poden-

Pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão

239

do analisar o processo global de comunicação midiática ou institucional, em organizações públicas, privadas ou não governamentais, nos âmbitos local, regional e nacional. O grupo adotou, a partir desse objetivo, duas linhas de pesquisa Processo de produção midiática e Imagem e Mensagem e produtos comunicacionais institucionais. O Núcleo de Estudos em Estratégias da Comunicação, proposto no ano anterior pelos professores Francisco Gonçalves da Conceição, Rosinete de Jesus Ferreira, Linda Maria Rodrigues, Valdirene Pereira da Conceição, Marcos Fábio Belo Matos, Francisca Ester de Sá Marques e Silvano Alves Bezerra da Silva propunha-se a investigar as estratégias de produção, circulação e consumo discursivo dos sentidos, em contexto de disputa de poder simbólico. O núcleo foi organizado em torno de três linhas de pesquisa - Discurso, poder e mudança social; Comunicação, movimentos sociais e políticas públicas; e Mídia, espaço público e sociabilidade. Em Imperatriz, os professores adotaram outro percurso. Priorizaram a formação de núcleos de pesquisa com ênfase em Jornalismo: Núcleo de Pesquisa de História da Mídia – NPHM, proposto em 2009 pelos professores Roseane Arcanjo Pinheiro, Ed Wilson Araújo, Marcos Fábio Belo Matos, Francisco das Chagas Costa Frazão Filho e José Reinaldo Castro Martins; Jornalismo, Integração Regional e Globalização, proposto em 2008, pela professora Li Shang Shuen Cristina; Grupo de Estudos de Mídia Jornalística (G.Mídia), proposto em 2010 pelos professores Marcos Fábio Belo Matos, Maria da Penha Nunes da Rocha, Joedson Marcos Silva, Alexandre Zarate Maciel, Denise Cristina Ayres Gomes, Marco Antônio Gehlen, Lucas Santiago Arraes Reino, Marcus Túlio Borowiski Lavarda, Roseane Arcanjo Pinheiro e Thaísa Bueno. Além desses núcleos, foram propostos também o Grupo de pesquisa Educação, Cultura e Infância-GECI, pela professora Emilene Leite de Sousa; o Grupo de pesquisa Cultura e Identidade na Contemporaneidade (GECIC), pelo professor Alexandre Zarate Maciel, e o Grupo de Estudo Gênero e Sexualidade: das diferenças às Desigualdades, pelo professor Gilbert Angerami Lopes. Como os cursos da expansão não contam com departamentos, os professores de Sociologia, Antropologia

240

Desafios da pesquisa em jornalismo

e Filosofia fazem parte do colegiado de Comunicação, o que explica o grupo proposto pela professora Emile, que responde pela disciplina de Antropologia no CCSST. O Grupo de Pesquisa Jornalismo, Integração Regional e Globalização, sem linhas de pesquisa, propõe-se a investigar o tratamento que o Jornalismo dá a temas da agenda internacional, como integração regional, mercados internacionais, conflitos militares e ideológico-culturais, meio ambiente e inserção do Brasil no sistema internacional. Já o Núcleo de Pesquisa de História da Mídia visa à investigação da história da mídia no Maranhão e nas regiões Norte-Nordeste a partir de quatro linhas de pesquisa: História e Teoria do Jornalismo, História da Mídia Sonora, História da Iconografia Impressa do Jornal e Periódicos e História, Discurso e Memória da Mídia. O terceiro grupo de pesquisa, o Grupo de Estudos de Mídia Jornalística pretende compreender as mais diversas dimensões e especificidades dos campos da mídia e sua relação com as práticas jornalísticas, considerando cinco linhas de pesquisa: Mídia, Jornalismo e Memória; Mídia, discurso e identidade; Mídia, imagem e contemporaneidade; Mídia, cultura e práticas de sociabilidade; Mídia, jornalismo e recepção. O G. Mídia já faz parte de um segundo momento da história do Curso de Imperatriz, em que os professores procuram romper o isolamento das iniciativas e concentrar os esforços em um grupo e em projetos coletivos de pesquisa.

4. A pesquisa em jornalismo A formação e nucleação dos pesquisadores e as mudanças na política de fomento à pesquisa no Estado a partir de 2009 vão contribuir decisivamente para o crescimento da pesquisa em Comunicação no Maranhão. Se considerarmos, para efeito de discussão, os projetos de pesquisa em andamento nos últimos dois anos, vamos perceber que, do ponto de vista quantitativo, o jornalismo ganhou relevância como objeto de estudo, sendo das subáreas da comunicação a que, hoje, agrega o maior número de pesquisadores, o que reflete também a trajetória dos professores em Comunicação.

Pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão

241

Em Imperatriz, dos cinco projetos de pesquisa, três estão focados nas práticas jornalísticas, um analisa a relação mídia e identidade e o outro não se inclui no campo da Comunicação. O projeto de pesquisa Identidades e mediações: interfaces entre comunicação e cultura no Maranhão, sob a coordenação da Profa Letícia Cardoso da Conceição, investiga a relação mídia-identidades na formação da cultura da região Tocantina, especificamente na cidade de Imperatriz. Já o projeto Akraré Krïkati: um estudo sobre a infância Krïkati, coordenado pela Profa Emilene Leite de Sousa, situa-se no campo da Antropologia e tem como objeto a infância Krikati. Os outros três projetos estão voltados para o jornalismo. Coordenado por Roseane Arcanjo Pinheiro, o projeto de pesquisa Rede Difusora Sul: análise dos condicionamentos do processo de produção jornalística nos telejornais analisa o processo de elaboração da notícia no Jornal da Difusora, da TV Difusora Sul. E o projeto Rotinas produtivas e valores-notícia no jornal da Mirante, 1a edição em Imperatriz (MA), coordenado por Alexandre Zarate Maciel, investiga as condições de produção das notícias veiculadas no Jornal da Mirante - 1a Edição (JMTV), em Imperatriz (MA), que vai ao ar de segunda a sábado, das 12 às 12h45. O quinto projeto de pesquisa - Discurso e Identidade – a construção do discurso do Maranhão do Sul na mídia impressa de Imperatriz – investiga, sob a coordenação de Marcos Fábio Belo Matos, como nos espaços instituídos pelo jornal impresso e diário O Progresso, o mais antigo da região, constroem-se as tramas de sentido que dão forma ao Maranhão do Sul, movimento de caráter separatista que compõe o cenário da região Tocantina. Esses projetos de pesquisa contam com a participação de bolsistas de iniciação científica e procuram responder à demanda por produção de conhecimento que ajude a compreender as especificidades das práticas midiáticas e jornalísticas da região. Em São Luís, doze projetos estão sendo executados, sendo que seis operam com temas como comunicação política, estratégias discursivas e mobilização social, mídia e protagonismo juvenil e documentário e memória: O professor Carlos Agostinho Almeida de Macedo Couto coordena o projeto Disseminação ideológica: normas e usos da propa-

242

Desafios da pesquisa em jornalismo

ganda político-partidária no Brasil; a professora Larissa Leda Fonseca, o projeto Documentário no Maranhão: realização, linguagem audiovisual e memória; a professora Flávia Moura, o projeto Vozes da esperança -estratégias de comunicação em redes de aliciamento e denúncia no contexto do trabalho escravo contemporâneo no Maranhão; e a professora Vera Salles, o projeto Meios de comunicação e a cultura de paz - as formas de expressão dos jovens da Vila Embratel (bairro de São Luís). As pesquisas voltadas para o campo do Jornalismo enfrentam temáticas como a convergência midiática e os fluxos da notícia, telejornalismo e função testemunhal, experiência sensível e jornais impressos, mercado das notícias e disputas de poder, fotojornalismo e memória e jornalismo e linguagem. O projeto de pesquisa Estética no jornalismo: de como as notícias dizem mais do que dizem, coordenado por Silvano Alves Bezerra da Silva, centra suas atenções sobre as relações de natureza sensível com materiais jornalísticos, mais especificamente com o jornalismo impresso. A intenção central da pesquisa proposta é caracterizar e dimensionar que região da experimentação estética é essa, construída e consolidada nos espaços da notícia. A pesquisa O telejornalismo em processos político-jurídicos – a cobertura televisiva da CPI do Crime Organizado / CPI do Narcotráfico/ Maranhão-Brasil, 1999, coordenado por Joanita Mota de Ataíde, rediscute, com base em amplo levantamento empírico, o processo de produção jornalística a partir do pressuposto de que o processo de produção-consumo da notícia requer o exercício da função testemunhal como mecanismo necessário de validação dos fatos reportados e da concepção do jornalismo como prática discursiva institucional, que tem como uma das suas funções essenciais dar testemunho de sua época, mediante um discurso articulado por noções como “verdade”, “credibilidade”, “fidedignidade”, “credencial”, “crença”. A partir do enfoque teórico-metodológico da economia política do significante, a pesquisa Mercado & Notícia - jornal, interlocução e poder em São Luís (MA), coordenada por Francisco Gonçalves da Conceição, investiga a forma dos jornais publicados na capital do Estado a partir das mudanças em curso na produção-consumo de notícias e nas relações

Pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão

243

entre os agentes do jornalismo. Trata-se de investigação sobre a forma que o jornalismo assume em uma formação social específica e em um contexto marcado por mudanças econômicas, políticas e tecnológicas. Esta pesquisa pressupõe que essas mudanças estão alterando as formas de produção e consumo de jornais, pelas quais é possível mapear modelos de jornalismo praticados nesta parte do país. Sob a coordenação de José Ribamar Ferreira Júnior, o projeto de pesquisa Estudos sobre a interface entre literatura e jornalismo focado na crítica genética se desdobrou em outros trabalhos, de inserção acadêmica, na iniciação científica. Este projeto de pesquisa tem a sua origem no núcleo de pesquisa Processo de Produção e Criação Jornalística, que agregava professores com formação na Semiótica de Charles Peirce. Este grupo deu origem, anos depois, ao Núcleo de Pesquisa em Comunicação Midiática e Institucional. Como um dos seus principais resultados, registra-se o esforço em criar grupos de iniciação científica em Comunicação, cujo resultado pode ser medido pela formação em nível de mestrado de alguns dos egressos do grupo. A pesquisa Convergência de mídias e suas implicações no fluxo de trabalho dos profissionais de comunicação: as redações jornalísticas e a formação na Universidade Federal do Maranhão, coordenada por José Ribamar Ferreira Júnior e Márcio Carneiro dos Santos, tem como foco de investigação as mudanças nos processos de produção jornalística a partir da convergência digital e as necessárias mudanças nas rotinas laboratoriais em função dos novos processos produtivos em redes convergentes. Voltado para a pesquisa aplicada, este projeto se articula aos esforços de implantação do Laboratório Experimental de Convergência Midiática (LABCOM), na UFMA, como espaço de ensino e de pesquisa sobre novos modelos de produção jornalística.

5. Conclusão Embora descritivo, este artigo procurou apresentar algumas das principais mudanças que estão acontecendo na área de comunicação do Estado do Maranhão, como desdobramento da expansão da pós-graduação e das mudanças no perfil dos professores das universidades públi-

244

Desafios da pesquisa em jornalismo

cas. Um dos principais resultados dessas mudanças diz respeito à construção de uma base de pesquisa em comunicação no Estado. Mas, esta mudança tem sido resultado também de uma mudança na cultura e na política das unidades acadêmicas, muitas vezes indiferentes ao planejamento de suas atividades e à superação da ação isolada do professor, como se a formação e a pesquisa fossem apenas um assunto particular e não parte do esforço da instituição em produzir conhecimento e formar recursos humanos para a região e o país. Para a reversão dos indicadores anteriores, duas estratégias têm sido fundamentais: a formação docente e a nucleação dos professores em grupo de pesquisa. O pressuposto desta estratégia é que nem todo professor é pesquisador ou tem interesse em desenvolver atividades de pesquisa e de que, para a pesquisa, é necessário aglutinar os professores interessados e motivados em produzir conhecimento socialmente útil. Não obstante este esforço, persiste ainda a fragmentação dos esforços. Embora tenham sido organizados os núcleos de pesquisa, os professores tendem ainda a desenvolver isoladamente os seus respectivos projetos de pesquisa. O desafio, agora, é estimular a produção colaborativa e compartilhada dos professores de Comunicação entre si e com outros pesquisadores de outras instituições da região e do país.

Referências CONCEIÇÃO, Francisco Gonçalves. O saber e o fazer: para além do currículo mínimo, uma agenda didático-pedagógica para os professores e estudantes de jornalismo. In: Cambiassu, São Luís, Vol. VII, no 1, p. 114131, jan/jun. 1997. FERREIRA JÚNIOR, José; SANTOS, Márcio Carneiro dos. Laboratório de Convergência Midiática - uma experiência de transformação do aluno espectador em ambientes de colaboração. In: Cambiassu, Ano XIX, nº 06, Jan/Jun 2010. Disponível em: http://www.cambiassu.ufma.br/cambi_2010/index.php. MACHADO, Elias. Jornalismo. MELO, José Marques de (org.). O campo da comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 91-105.

Pesquisa em jornalismo no Estado do Maranhão

245

MELO, José Marques de. O campo da comunicação no Brasil. In: _______ (org.). O campo da comunicação no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 11-20. SCOLARI, Carlos. Hipermediaciones: elementos para uma Teoría de la Comunicación Digital Interactiva. Barcelona: Gedisa, 2009.

246

Desafios da pesquisa em jornalismo

247

Este livro foi composto em fontes Lucida Bright para os textos e Bell Gothic para os títulos. Impresso em papel Apergaminhado 90g no miolo e Papel duplex 250g na capa.

248

Desafios da pesquisa em jornalismo

249