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Sociedad y Religión: Sociología, Antropología e Historia de la Religión en el Cono Sur ISSN: 0326-9795 [email protected] Centro de Estudios e Investigaciones Laborales Argentina Jungblut, Airton Luiz O declínio do capital ético dos evangélcos brasileiros e a construção de sua indistinção social Sociedad y Religión: Sociología, Antropología e Historia de la Religión en el Cono Sur, vol. XVIII, núm. 28-29, 2007, pp. 25-39 Centro de Estudios e Investigaciones Laborales Buenos Aires, Argentina

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S ociedad y Religión O declínio do capital ético dos evangélicos brasileiros e a construção de sua indistinção social Airton Luiz Jungblut Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS – Brasil

Até bem recentemente os estereótipos atribuídos aos evangélicos brasileiros não só pelo senso comum, mas, também, por boa parte dos estudiosos do assunto compunham uma imagem deste grupo religioso como detentor de uma superioridade moral em relação a sociedade envolvente. Numa sociedade onde o catolicismo “democrática e anarquicamente”, segundo as palavras de Carlos Rodrigues Brandão, estaria por todos os espaços, “não só nas igrejas e nas cortes de justiça”, mas também “nos prostíbulos, nos campos de futebol e nos blocos de carnaval” (Brandão, 1988: 53), o evangélico destacava-se como renunciante a isso tudo, o sujeito que asceticamente mantinha-se afastado de tudo aquilo que em seus trajetos intramundanos mostrava-se brasileiramente impróprio para a almejada salvação pós-morte: a frouxidão moral da malandragem tupiniquim, a sensualidade tropical, o hedonismo mundano. No imaginário popular brasileiro o evangélico, também chamado “crente”, foi, por muito tempo, tomado por aquele sujeito que apesar de se apresentar desagradavelmente sisudo, introvertido, moralista e ascético possuía, em contrapartida, uma confiabilidade bastante interessante para uma sociedade onde há grandes déficits de credibilidade entre seus cidadãos. Com esse índice de confiabilidade alto, já que de um evangélico nunca se esperaria uma atitude de desonestidade, esse grupo tem faturado as vantagens trazidas por essas características identitárias, como por exemplo, o acesso privilegiado a determinados espaços profissionais. Entre as classes populares, por exemplo, de onde os grupos sociais mais privilegiados arregimentam mão de obra para ocupações domésticas, levam vantagem aqueles indivíduos que se declaram evangélicos. Essa auto-identificação aumenta significativamente as chances destes serem contratados pois essa auto-identificação, funcionado como eficiente atestado de probidade, diminui

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consideravelmente as preocupações cotidianas dos futuros patrões com a presença doméstica de alguém que, não fosse evangélico, inspiraria aquele temor das “sempre perigosas” classes populares. Declarar-se convertido à fé evangélica no Brasil atual tem sido, outrossim, uma atitude de auto-identificação que, em vários contextos, produz efeitos atenuantes sobre o passado de indivíduos com trajetórias biográficas socialmente deterioradas. Assassinos cruéis, facínoras, criminosos notórios, etc.. depois de presos e submetidos à justiça têm, com bastante freqüência, se declarado convertidos à fé evangélica. Os benefícios destas declaradas conversões para a imagem pública desses criminosos não são nada desprezíveis: declarando-se culpados perante a lei dos homens e a lei de Deus e, resignados com as conseqüências penais que terão que encarar, eles adquirem uma dignidade que os faz serem menos execrados socialmente. Nos presídios acabam por habitar alas especiais onde são segregados do mundo extremamente violento do sistema carcerário brasileiro. Quando encontram-se em condições de solicitar benefícios como regime semiaberto, liberdade condicional, indultos, etc.. a condição de convertido à fé evangélica sempre é lembrada por seus advogados como atestado de reabilitação moral. Muitos crentes parecem ter se dado conta dos benefícios sociais produzidos pela associação entre fé evangélica e comportamento ético. Percebendo que dispunham de uma identidade religiosa que funciona como um eficiente atestado de idoneidade moral numa sociedade em que há escassez dessa moeda, trataram de, explicitamente, faturar os potenciais benefícios desta imagem. Isso se viu mais claramente no campo da política eleitoral onde tem sido crescente a cada eleição o número de candidatos a todos os cargos eletivos ostentarem suas identidades de cristãos evangélicos. Ostentar uma identidade religiosa como elemento abalizador de uma candidatura, seja para cargo legislativo ou executivo, até onde é possível perceber – claro que com exceções –, têm sido uma estratégia eleitoral caracteristicamente evangélica adotada seja individualmente, pelos candidatos, seja coletivamente, por algumas denominações, sobretudo pentecostais. Dos grupos que se lançaram em busca de um espaço na política brasileira o mais bem sucedido em sua estratégia e, como conseqüência, também em termos de resultados eleitorais, foi a já mundialmente famosa Igreja Universal do Reino de Deus. Pois é também essa igreja neopentecostal, fundada em 1977 no Rio de Janeiro, quem melhor parece ter percebido os potenciais dividendos, em termos de marketing político, que se poderia obter da associação entre ética e fé

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evangélica. Vendendo-se como uma “energia nova” (Oro, 2003:64) que sopra sobre a corrompida política brasileira a Igreja Universal oferece-se como a solução re-eticizante dessa esfera. Evidentemente que neste caso há, nesse discurso de adesão a defesa da ética, uma sinalização que, muito provavelmente, visa desfazer a péssima imagem que essa igreja possui no Brasil justamente por mostrar-se pouco ética na forma como arrecada os dízimos e doações que têm alimentado o seu espetacular crescimento. Vale lembrar que na última eleição presidencial, vencida por Luis Inácio da Silva do Partido dos Trabalhadores (PT), essa igreja uniu-se justamente a esse partido que até então detinha a reputação de ser o mais ético entre seus pares, buscando sinalizar, claramente, seu repentino ardor re-eticizante. A Universal, em particular, e os candidatos evangélicos em geral têm, em síntese, reivindicado para si a função de reserva moral da sociedade brasileira, têm se apresentado como única força capaz de moralizar uma política que, em sua visão, estaria carcomida pela corrupção pois controlada por homens que não andam nos caminhos do Senhor. As candidaturas evangélicas têm sido percebidas pelos estudiosos do assunto como de caráter essencialmente corporativista, ou seja, voltadas exclusivamente para o eleitorado evangélico visando tão somente a defesa dos interesses objetivos dos diversos grupos que o compõe. A lógica dos especialistas em marketing político tende a considerar um mau negócio ostentar em campanhas eleitorais a identidade evangélica num país majoritariamente católico (Dores & Mariz, s/d). A mesma lógica, então, leva a crer que se os candidatos evangélicos ostentam tão explicitamente a sua identidade religiosa o fazem ou porque são mal assessorados em termos de marketing eleitoral, ou porque, conscientes, têm como alvo unicamente o universo evangélico e esperam elegerem-se tão somente com os votos que vierem dali. Uma terceira possibilidade apresenta-se mais interessante de ser investigada: a de que esses candidatos e seus grupos ostentam a identidade evangélica não somente para arrecadar os votos de seus irmãos de fé, mas, sim, tal como fariam crentes candidatos a empregos domésticos ou crentes apenados desejando indultos, para reivindicarem à si a autoridade moral indubitavelmente constituída com vistas a tratar de forma eticamente evangélica dos interesses indistintos da sociedade, da coisa pública em geral, onde haveriam déficits de moralidade. Trata-se, em outras palavras, de indagar se os candidatos que ostentam publicamente sua identidade evangélica o fazem dirigindo-se exclusivamente aos seus pares ou o fazem indistintamente a todos querendo faturar os dividendos dos estereótipos que lhes atribuem maior moralidade. Outra questão, adjunta a essa, é indagar se isso funciona, se não-evangélicos votam em evangélicos porque

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reconhecem neles sujeitos sociais eticamente mais habilitados que os demais para tratar da coisa pública. Sabe-se que uma grande parte dos evangélicos brasileiros, mas não todos, votam em candidatos evangélicos. O que não se sabe é quantos não-evangélicos votam em candidatos evangélicos e porque o fazem. A questão fundamental, por fim, é saber se existiria um capital ético evangélico na esfera da ação política similar aquele que opera nas relações sociais mais amplas no Brasil. Se a reputação de campeões da ética que detém os evangélicos brasileiros também funcionaria na esfera da política. Na verdade, a intenção desta análise até agora foi a de tentar demonstrar de que essa reputação de campeões da ética atribuída aos evangélicos e/ou por eles reivindicada existe ou existiu, opera ou operou, nos discursos e percepções a cerca dos evangélicos no Brasil. Concluído, sucintamente, isso pode-se dar o passo seguinte. O aspecto relativamente novo que merece menção, em função do que foi desenvolvido até aqui, relaciona-se com o fato de que hoje se levantam vozes, tanto nativas do universo protestante, como externas, dos estudiosos do assunto, a dizer que estaria havendo no Brasil uma falência do capital ético evangélico. Vejamos o que diz um porta-voz evangélico dessa denúncia; “Lembro-me de que certa vez participei de uma reunião numa instituição evangélica em São Paulo, em que se discutia um plano para ampliar a construção da parte de trás do prédio da organização. De repente, um pastor, líder de uma grande igreja na capital paulista, deu uma sugestão. Foram mais ou menos essas as suas palavras: - Nós começamos numa sexta-feira, fazemos tudo bem depressa, no domingo já está terminado e ninguém precisa ficar sabendo. Perguntei-lhe por que tudo tinha que ser feito tão depressa e porque ninguém poderia ficar sabendo. Ele me disse que tal modificação era ilegal. Disse-lhe então que se era ilegal não poderia ser feita. Como ficaríamos diante da Palavra de Deus e da ética cristã? Ele respondeu-me com hostilidade: - Olha aqui, meu filho, no dia em que você dirigir uma igreja como eu, vai jogar a Bíblia e a ética fora. Que absurdo! A cola nos exames escolares tornou-se, infelizmente, uma prática comum para muitos evangélicos. Quando nos referimos a isso numa igreja, a reação do auditório é de riso e zombaria, como se estivessem dizendo: não exagere, o que é que tem fazer uma colinha? Deus não vai se importar com essas coisas!

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Geralmente, apresentam muitas outras desculpas. Que Deus nos ajude!” (Romeiro, 1996:19) Segundo esse mesmo pastor a "igreja evangélica brasileira passa por duas crises muito sérias, a da ética e da doutrina". Para ele haveria "uma epidemia de pastores que mentem, compram diplomas, fazem falcatruas, falsificam documentos, dão cheques sem fundo"1. Ora, o que esse teólogo está a denunciar no intramuros evangélico encontra consonância com o quadro de falência ética que Flávio Pierucci (1999) e Reginaldo Prandi (1999) percebem no campo religioso brasileiro em geral. Segundo esses autores, há entre as várias religiões existentes no Brasil atualmente, incluídas aí algumas variantes do protestantismo, uma tendência que faz com que “a religião [torne-se] cada vez menos ética, mais ritual e mais mágica” ou seja, nas palavras desses autores, trata-se de um processo de “(des)moralização” da religião religião brasileira em geral e de setores do campo evangélico em particular (Prandi, 1999:1). Quanto ao diagnóstico dos pastores evangélicos que denunciam essa falência ética no intramuros evangélico há que se ter em conta que ao mesmo tempo que estes acusam seus pares de atitudes anti-éticas, sobretudo aqueles vinculados as modalidades neopentecostais, auto-atribuem-se o papel de guardiões da antiga moralidade evangélica que estaria a se corromper nos dias atuais. Tratam-se portanto de acusações direcionados a setores concorrentes no interior do universo evangélico e que, portanto, têm que ser relativizadas em sua capacidade de informar sobre a realidade. Os grupos neopentecostais, vale dizer, constituem o setor evangélico que mais cresce no Brasil e com isso a face deste campo religioso tem estado mais exposta a opinião pública nesses últimos anos. Mesmo aceitando que é preciso relativizar as informações nativas a respeito de um declínio ético no interior evangélico parece inegável que uma parte considerável deste rebanho da cristandade brasileira está cada vez mais inclinada a não se deixar constranger por padrões éticos muito rígidos. Isso se percebe, por exemplo, através de monitoramentos que temos feito do comportamento de usuários evangélicos de Internet no Brasil, principalmente adolescentes e adultos jovens. Observá-los nesse meio é interessante pelo fato de que ali os constrangimentos sociais do mundo offline estão bastante atenuados o que torna os seus usuários bastante despreocupados com vigilâncias moralizadoras. 1

Declaração feita através de uma mensagem eletrônica (e-mail) que o autor fez circular pela Internet. Sociedad y religión vol. xviii nº 28/29 (2007)

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Essas pesquisas com evangélicos usuários de Internet mostram que eles sofrem ali de uma certa contaminação das lógicas que imperam nesse meio quando, por exemplo, se deixam levar tranqüilamente por uma certa “irresponsabilidade” que caracteriza as ações individuais nesse ambiente e que permite a seus usuários praticarem atos “livres de conseqüências” fazendo uso daquilo que Sherry Turkle chama de “moratória” com a realidade offline (Turkle, 1997:265). É possível perceber esses evangélicos, cometendo uma série de atos “ilícitos”, tais como: atacar canais de chat onde ocorre o debate de crenças não-evangélicas, “hackear” páginas pornográficas na Web, piratear, copiar e trocar músicas em formato mp3 e softwares não reconhecendo os direitos de copyright de seus autores, ser agressivo e vingativo com contendores e desafetos, etc. Quando fazem isso dizem não se sentir incorrendo propriamente em desrespeito ao principio bíblico que exorta os cristãos a cumprirem as “leis dos homens” da mesma forma que deveria ser cumprida a “lei de Deus” (“Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” - Mateus 22:21). Em muitos casos advogam, em defesa desses atos “ilícitos”, que estão desrespeitando leis que, afinal de contas, ninguém respeita ou desrespeitando “leis anti-cristãs” ou, ainda, porque atos ilícitos se justificam quando se está “em guerra contra a corrupção do mundo”. Trata-se, pois, de uma espécie de maquiavelismo evangélico em que os meios (os atos ilícitos) justificam os fins (a defesa ou a edificação do “Reino de Deus”) e que dá a esses evangélicos a sensação de não estarem efetivamente inobservando aquilo que é ditado pela tradição religiosa a que se submetem. Mas, contra justificativas desse tipo sempre poderão se levantar evangélicos mais “legalistas”, dizendo que a prática de qualquer ato ilícito por um cristão representa participar da “corrupção do mundo”. A questão é saber se ao se permitirem esse tipo de “transgressão”, não estariam, além de se deixar contaminar pela “irresponsabilidade” que impera no ciberespaço, também fazendo eco àquela “(des)moralização” da religião de que falam Pierucci (1999) e Prandi (1999). Essas e outras evidências permitem constatar que o meio evangélico brasileiro definitivamente caminha para um afrouxamento ético, fato que torna essa modalidade de cristianismo indistinta do todo resto representado pela cultura brasileira. Os evangélicos parecem destinados a não mais ser aquela grande minoria onde se alojava um capital ético importante para a construção da cidadania nacional. Eles já não parecem distintos do cidadão comum com seu jeitinho brasileiro para burlar as regras e obter egoisticamente benefícios. Nesse sentido parece estar certo Ricardo Mariano quando afirma que “antes, reconhecia-se um crente a uma centena de metros de distância” e que “com o neopentecostalismo [e o afrouxamento ético por ele promovido – A.L.J.], a demarcação

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identitária dos crentes tornou-se problemática, algo a ser indefinidamente redefinido e reconstruído em outras bases” (Mariano, 1999). A ética que tornava os evangélicos cidadãos modernos exemplares parece estar realmente em declínio no Brasil e com isso, também, esse grupo religioso esta cada vez mais indistinto da cultura e da sociedade brasileira envolvente. Ocorre que essas transigências de natureza ética não podem ser tomadas isoladamente de processos mais amplos de transformações nas feições dos grupos evangélicos brasileiros em várias esferas (doutrinais, litúrgicas, estéticas, comportamentais, políticas, etc.). A crescente indistinção dos grupos evangélicos para com a mundaníssima cultura brasileira não é, propriamente, efeito perverso de algum acidente de percurso no processo de crescimento dessa modalidade religiosa no Brasil. Trata-se, antes de tudo, do resultado natural de uma visível guinada cultural desses grupos em direção a uma maior harmonização com a mundanidade envolvente. A análise desse processo permite, portanto, que se verifique com mais acuidade o que, efetivamente, está em jogo. É o que se fará agora. *** Há dentro do universo evangélico brasileiro um movimento que tenta diversificar as modalidades de culto ali existentes no sentido de tornar mais atraente a religiosidade evangélica para certos grupos sociais avessos ao sectarismo e ao tradicionalismo puritano que tradicionalmente caracterizou essa modalidade de cristianismo no Brasil. Esse movimento fez-se possível através de uma redefinição das precauções mantidas em relação às coisas mundanas, coisas estas, tidas por muitos evangélicos como potencialmente perigosas (em diversos graus) para a salvação da qual se dizem propagadores. Vejamos, então, como se deu essa redefinição. Já não é de hoje que uma das características fundamentais da doutrina protestante, suas concepções a cerca “do mundo”, têm levado os estudiosos da religião a se debruçarem sobre essa modalidade do cristianismo. Max Weber é, entre esses, provavelmente, o mais conhecido a analisar o tipo de relações mantidas pelos protestantes em relação ao “mundo”. Se tornou clássica a sua noção de “ascetismo intramundano” para nomear, principalmente no protestantismo, uma ética segundo a qual “o mundo” necessitando ser evitado, por ser o lugar onde a pecaminosidade é reinante, só o é na própria interioridade da ordem mundana e isso a partir de uma disciplina de autodomínio e recusa ao gozo de prazeres “irracionais” (pecaminosos) estimulados pelo mundo (Weber, 1969: cap. 5).

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O que, certamente, torna as concepções protestantes a cerca “do mundo” um tanto problemática para seus estudiosos é que nelas não se vislumbra – a menos que se faça um esforço de adaptação conceitual muito complexo e de duvidoso sucesso – a clássica oposição complementar entre as esferas do sagrado e do profano, tão verificável em outras inúmeras cosmovisões religiosoas. Há pelo menos dois tipos de tentativas de interpretação destas problemáticas particularidades doutrinárias: uma que, a despeito das dificuldades do modelo “sagrado/profano”, persiste em sua utilização através de complexas adaptações; e outra que, ao deixar de lado o modelo “sagrado/profano”, envereda por caminhos explicativos que assumem a irredutibilidade das tais particularidades doutrinárias a este modelo. Carlos Rodrigues Brandão oferece uma interessante versão do primeiro tipo de tentativa: “De um campo do que é socialmente reconhecido como real, existente fora da pura e simples imaginação, ele [o evangélico] recorta em primeiro lugar uma dimensão de sagrado, oposto a uma dimensão terrena do profano. De um lado coloca o sub e o sobrenatural, o celeste e o demoníaco, e, do outro, aquilo que é profano porque é ‘do mundo’, em uma visão inicial que depois modificará. Se, de um lado, o profano é todo o campo de sujeitos, situações e símbolos que não são e não podem ser diretamente associados ao que existe fora do mundo material, de outro lado a dimensão demoníaca do sagrado profana o religioso e estabelecerá uma segunda qualificação da idéia de ‘ser do mundo’, ou seja ser o oposto ao sagrado celeste. Assim, um ateu ou um maçom estão ‘no mundo’ porque não são sujeitos de religião e, portanto, são a afirmação social da possibilidade do profano. Mas um umbandista ou um espírita, percebidos pelo evangélico como identidades que lidam com o sagrado, são profanadores da religião pelo fato de que fazem a opção pelo culto de forças que, não-terrenas, são igualmente não-celestiais. Não são ‘de Deus’ e, por isso mesmo, só podem provir do ‘mal’, do demônio, da ‘feitiçaria’ (...). Assim, se o campo do real passível de ação e de representação humana opõe um domínio de sagrado a um de profano, esta primeira oposição obriga a uma segunda, imediata, onde o sagrado devolve ao profano o que o profana, ou seja, todas as modalidades de crença e culto que, associadas ao não natural, são o oposto do sobrenatural celeste e traçam a diferença entre a religião e a não religião (magia, feitiçaria, ‘coisas do diabo’).” (Brandão, 1988: 34-35) Como se vê, o autor, ao tentar explicar as percepções simbólico-espaciais constitutivas da cosmovisão evangélica, utiliza-se do modelo sagrado/profano para separar o sobrenatural – celestial ou demoníaco – do terreno ou “do mundo”, para depois tentar demonstrar que o profano, que em princípio seria Sociedad y religión vol. xviii nº 28/29 (2007)

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tão somente o mundano, acaba por comportar uma parcela do que sendo sobrenatural (o demoníaco) tenderia a ser visto como sagrado. O que é questionável neste modelo explicativo é justamente a base onde está assentada a lógica do autor, ou seja, o pressuposto de que existiria nesta cosmovisão religiosa uma separação inicial entre profano – entendido como o não-religioso ou mundano – e o sagrado – entendido como o religioso. Por que questionável? Rubem Alves, analisando este problema, numa outra perspectiva – representativa do outro tipo de tentativa referida anteriormente – fornece elementos para justificar as reservas que podem ser feitas a percepção de Brandão: “A dualidade dos caminhos [caminho largo da perdição / caminho estreito da salvação] é a categoria fundamental da organização do universo protestante. Para quem não vê com os olhos da fé, parece que não há dois caminhos. As opções são múltiplas. Os destinos são variados. Para o protestante, entretanto, a multiplicidade superficial se resolve numa dualidade básica. Todo o tempo e todo o espaço estão subordinados a esta divisão original. Não há espaços e tempos neutros, seculares, profanos, que não sejam determinados por estes dois campos de forças. No seu sentido etimológico, o profano é aquilo que se encontra fora dos limites do sagrado, isto é, fora do templo (pro = diante; fanum = templo). Mas, para o protestante aquilo que está fora do templo não está fora do sagrado. Cada homem é um sacerdote. Onde quer que esteja um homem, ali está o sagrado. O protestantismo aboliu os mosteiros e uma classe sacerdotal privilegiada porque ele transformou o mundo todo num templo e todos os homens em sacerdotes. A vida toda está coberta pelo manto sagrado. Assim, a afirmação de que o que caracteriza a religião é a divisão do mundo em profano e sagrado não vale para o Protestantismo (grifo nosso – ALJ). Mesmo aquilo que, de uma perspectiva sociológica, está localizado fora dos limites do religioso, como a profissão, a política, a economia, o lazer, a ciência, para o protestante se encontra rigorosamente subordinado ao mapeamento religioso da realidade em dois caminhos. É verdade que nem todo o religioso é divino. Há um religioso demoníaco. O caminho largo se constitui a partir de uma definição religiosa. Mas ali, o religioso se apresenta como uma rebelião contra o divino. Aquilo que denominamos profano ou secular, portanto, não é uma área indiferente a salvação. Ele é, a um tempo, obstáculo e meio da caminhada para os céus. Como obstáculo, o secular é entendido como mundo, como tentação. Mas como meio, ele é visto como vocação.” (Alves, 1982: 135-136) Vê-se que este tipo de percepção a cerca das significações atribuídas ao “mundo” harmoniza-se com a noção de “ascetismo intramundano”, proposta por Weber. Trata-se, pois, de um “mundo” não loteado entre sagrado e profano, visto

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ser ele um espaço onde inexistem instâncias terrenas aprisionadoras de um sagrado que se oporia a um profano. O indivíduo tem à sua frente um espaço mundano potencialmente sagrado ou profano – o que na prática torna inútil ou impróprio o uso dessas categorias –, onde tudo quanto lhe é oferecido contribui ou para sua salvação, ou para sua perdição2. Sua ação neste espaço, claramente caracterizada por um “ascetismo intramundano”, é orientada tanto para uma conduta individual de não-envolvimento com o que nele possa ser considerado pecaminoso como para tentar purificar – tornar não-pecaminoso – tudo o que ali, mesmo que mundano, não se incompatibilize com as condutas requeridas para a salvação. Ora, as percepções que podem ser colhidas entre a maioria dos evangélicos brasileiros a respeito dessas territorializações simbólicas encontram maior correspondência com o segundo modelo explicativo exposto – de Rubem Alves (Cf. tb. Fernandes, 1982: 71-72). Apesar disso, o primeiro modelo proposto por Carlos Rodrigues Brandão, mesmo pecando no uso pouco apropriado das categorias de sagrado e profano, nos chama a atenção para elemento complicador do modelo proposto por Rubem Alves: o lugar da religiosidade não orientada para o divino. Alves até chega a mencionar rapidamente a existência deste complicador, mas sem enunciar uma solução analítica satisfatória. Para que orientações doutrinárias sejam fornecidas, tendo em vista este quadro de bifurcação direcional entre caminho estreito da salvação e caminho largo da perdição, são tecidas no mundo evangélico brasileiro interpretações bíblicas a cerca das forças que agiriam “no mundo” desde a queda de Adão e Eva, quando teria se inaugurado este estado de ambigüidade espiritual até hoje reinante na Terra. Há a crença generalizada de que é a partir deste momento primordial que o “mundo” se tornou um espaço onde passaram a existir três forças distintas: a humanidade, Deus e Satanás. Neste quadro é reconhecido a imensa inferioridade dos poderes humanos em comparação aos de Deus (poderes do bem) e os de Satanás (poderes do mal), sendo que estes últimos estariam fadados a se enfrentar até o “final dos tempos” quando Deus venceria por fim a última das batalhas. Ao homem, nesta contenda, só caberia aliar-se a um destes poderes superiores, o que, por conseqüência, representa, para aquele lado (Deus ou Satanás) que for escolhido, uma parcela de vitória em relação a totalidade da contenda e, a esse que se define, a possibilidade da salvação ao lado de Deus ou a danação ao lado de Satanás. Desta forma, inexiste a possibilidade de uma neu2

Segundo Rubem Alves, “a Reforma sacralizou a consciência e dessacralizou o mundo”. (Alves, 1982: 42)

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tralidade humana em relação a estas forças superiores, o que, em outras palavras, significa dizer que quem não estiver explicitamente aliado a Deus ou a Satanás está automaticamente contabilizado como submetido ao segundo. São, portanto, atribuídas a Satanás maiores facilidades de obter alianças com a humanidade, uma vez que a ele são remetidos todos aqueles que de diversas maneiras não conseguiram, ou não se interessaram em conseguir, efetivar uma aliança incondicional com Deus. O que se tem, então, é que a imensa maioria da humanidade, por ser vista através de critérios evangélicos como “apartada” de Deus, encontrase inconscientemente – ou conscientemente, para uma parcela menor – aliada a Satanás, no que resulta o reconhecimento, nesta cosmovisão religiosa, da incontestável hegemonia satânica sobre o “mundo”. O “mundo” é, portanto, o lugar onde o mal é reinante e, em função disso, os aliados de Deus que nele habitam têm que se manter afastados de tudo aquilo que, através de critérios evangélicos, é tido como de proveniência satânica. Resulta disso toda uma ética de precaução em relação aos estímulos mundanos. Ética essa que, durante muito tempo, levou os evangélicos a cultivarem um relativo isolacionismo no interior da própria ordem mundana. Respeitando suas leis, mas mantendo-se afastados de suas perversidades, eles preferiram imaginarse como o pequeno rebanho eleito por Deus que aceitava trilhar o estreito caminho da salvação. A proximidade com a mundanidade só era aceita para a estrita satisfação das necessidades de uma existência em consonância com os ensinamentos bíblicos. Para muitos evangélicos na atualidade, no entanto, sempre que há uma demasiada ênfase nesta ética de precaução para com a mundanidade – o que costuma ocorrer com alguma recorrência cíclica na tradição protestante –, muitas das igrejas evangélicas que a vivem, acabam por arrefecer seu necessário, porque bíblico, conversionismo. O grupo cresce, então, apenas vegetativamente e, com isso, cessam-se as possibilidades de se estender aos “apartados de Deus”, que estão perdidos na mundanidade, os ensinamentos de que esses necessitam para alcançar a salvação aliando-se a Deus. Esses grupos, assim agindo, passam a experimentar um estado descrito como de “mal estar espiritual”, uma vez que estariam eles em flagrante desobediência a um mandamento tido como fundamental no meio evangélico, o de terem eles que levar a todo mundo, como “embaixadores de Cristo”, a mensagem de reconciliação para com Deus. Foi, em grande parte, por terem se dado conta a vigência desta situação no interior de suas igrejas que muitos evangélicos brasileiros passaram, nestas últimas décadas, a repensarem as precauções que mantinham em relação à mundanidade. E foi no rastro dessas reavaliações que começam a emergir uma série Sociedad y religión vol. xviii nº 28/29 (2007)

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de novas igrejas, organizações missionárias, movimentos de “reavivamento”, etc. centrados numa nova maneira de encarar a mundanidade para proveito de um desejado aumento do “rebanho evangélico”. Ao se olhar para o interior de certas áreas “aquecidas” do universo evangélico brasileiro na atualidade, é fácil observar ali uma espécie de anseio coletivo de que a sua modalidade religiosa seja cada vez mais estendida a todos os espaços sociais onde ela não tenha ainda se feito presente. É como se estas comunidades, insatisfeitas por ainda serem minoria num pais católico-mundano quisessem, num curto espaço de tempo, indistinguiremse do todo envolvente contaminando-o com a sua religiosidade e com seu estilo de vida. Parecem não mais se satisfazer, como antes, com a positividade religiosa de que se revestia sua exigüidade populacional. Já não querem mais ser o “pequeno rebanho de Deus” hostilizado pelo mundo por manter-se, a despeito de tudo e de todos, “firmes nas promessas”. Anseiam, agora, “roubar” aliados “do mundo” o mais que puderem para engrossar suas fileiras na luta por uma por uma crescente preponderância do Evangelho sobre a “iniqüidade humana”. Este anseio é, provavelmente, um dos reflexos das já mencionadas reavaliações em torno da ética evangélica de precaução em relação a mundanidade. A emergência dessas reavaliações deu-se através de uma conjugação de movimentos nacionais e internacionais pois, junto a um “despertar” autóctone das necessidades de redefinir as relações com a mundanidade, se somaram as influências do protestantismo norte-americano que, tradicionalmente conversionista, já há mais tempo tinha atenuado suas precauções em relação a mundanidade. Para os evangélicos, no entanto, nenhuma postura humana é aceitável do ponto de vista religioso se não estiver plenamente legitimado pela Bíblia. A imperiosidade deste princípio, porém, se problematiza quando diferentes ênfases bíblicas legitimam posturas contraditórias entre si. Quando isso ocorre no meio evangélico tem-se, então, uma disputa exegética para se definir quem consegue melhor fundamentar aquilo que considera adequado ao cristão em perfeita consonância, não só com enunciações particulares, mas, se possível, com o próprio “espírito da Bíblia”. O oponente, mormente, é sempre acusado de estar descontextualizando algum trecho da Bíblia de todo o restante da obra para um proveito ilegítimo. É preciso ter isso em mente porque as reavaliações em torno da ética evangélica de precauções em relação a mundanidade se fizeram, e ainda se fazem, assentadas numa disputa exegética desta natureza. Nessa disputa, têm-se de um lado aqueles que justificam um necessário isolamento “do mundo” argumentando que Deus atribui “bem-aventuranças” àqueles que não se detêm “no caminho dos pecadores” nem se assentam “na roda dos escarnecedores” (Salmos 1:1); Sociedad y religión vol. xviii nº 28/29 (2007)

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que “a religião pura e imaculada para com Deus, o pai, é (...) guardar-se da corrupção do mundo” (Tiago 1:27); “que a amizade com o mundo é inimizade contra Deus” (Tiago 4:4); etc.. Já no outro lado estão aqueles que, mesmo conscientes da perigosa corruptibilidade “do mundo”, têm como imperiosa a necessidade de irem “como cordeiros ao meio dos lobos” anunciarem que “é chegado o reino de Deus” (Lucas 10:3-11); de serem “o sal da terra” (que impede a putrefação e a decadência moral dos outros) e “a luz do mundo” (que expõe a baixeza das obras vergonhosas pertencentes a escuridão) (Mateus 5:13-14); de irem ter, assim como Jesus, com os “publicanos e pecadores”, apesar da desaprovação dos “fariseus”, porque “há júbilo nos céus sempre que uma ovelha desgarrada é reconduzida ao rebanho” (Lucas 15:1-10). É preciso dizer que nessa disputa exegética não está propriamente em jogo o conversionismo característico da quase totalidade do protestantismo brasileiro, uma vez que todos os grupos, em princípio, sempre tiveram como suas obrigações religiosas “levar o Evangelho a todos os homens de boa vontade”. O que tem estado em jogo, é o grau de ênfase que se quer atribuir a esta obrigação ou, dito de outra maneira, trata-se de uma disputa para se definir – ou redefinir – o que deve ser preponderante entre duas classes de obrigações: as necessárias precauções contra a mundanidade ou as, também necessárias, ações conversionistas para dar ciência aos “apartados de Deus” do plano cristão de salvação; e se há prejuízo das primeiras quando intensificadas as segundas. A julgar pelo que se observa no universo evangélico brasileiro tem sido vencedora a posição que postula uma maior penetração dos evangélicos em ambientes da mundanidade que antes lhe eram interditados. Essa mudança que ali se faz sentir acaba por introduzir no imaginário evangélico um surpreendente e intrigante resgate valorizativo da mundanidade. Trata-se de um paradoxal estado de fascinação religiosa pelo mundano que se revela instalado nas mentes de muitos evangélicos e que é traduzido em novas práticas e posturas. Um fato que manifesta esta fascinação é a valorização simbólica que os espaços de marginalidade social começam a ter enquanto área de ações proselitistas. De repente, zonas de meretrício, presídios, bairros boêmios onde transitam drogados, etc., passaram a ser vistos como lugares que se revestem de uma curiosa positividade religiosa, uma vez que ali podem ser dramatizadas, em toda a sua radicalidade, ações evangelizadoras análogas em heroicidade àquelas vividas pelos primeiros discípulos cristãos que, supostamente, iam “como cordeiros ao meio dos lobos”. Desta forma, esses espaços ganham uma paradoxal positividade simbólica por se constituírem em espaços de exibição de superior obediência daquelas obrigações cristãs tidas como mais difíceis de serem levadas a cabo. Sociedad y religión vol. xviii nº 28/29 (2007)

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Outro fenômeno revelador desta inusitada e paradoxal fascinação dos evangélicos pela mundanidade é a avidez com que eles têm tentado se apropriar de tudo aquilo que produzido para finalidades mundanas mostra-se eficiente, sedutor, mobilizador, consumível em grande escala, racionalizador de esforços, etc.. Mídia, marketing, computação, Internet, artes visuais, estética moderna, sonoridades profanas, folclore, estilos e comportamentos urbanos, etc. passam a ser avidamente buscados “no mundo” a fim de serem ressemantizados para servirem a divulgação do Evangelho. É como se “o mundo”, repentinamente, se revelasse a eles como repleto de elementos transplantáveis para o interior de sua religiosidade, extraídos, obviamente, os seus conteúdos “malignos”3. Ocorrendo essas apropriações (ou desapropriações) fica, então, configurada, uma situação de reformulação do imaginário evangélico no tocante as coisas “do mundo” com o intuito de torná-las menos inconciliáveis para com o Evangelho e permitindo, dessa forma, uma maior tolerância para com novos estilos de vivenciamento da pertença evangélica, estilos esses controladamente informados pela mundanidade, ou seja, dentro dos limites “permitidos pelo Evangelho”. No plano simbólico poderia se dizer, então, que está havendo um alargamento do “caminho estreito da salvação”, uma vez que na prática já se concebe que por essa pequena trilha, metaforicamente imaginada para ser somente trilhada por crentes contumazmente evitadores “do mundo”, também hoje caminhem tipos inusitados tais como: presidiários, rockeiros, hackers pagodeiros, duplas caipiras, jogadores de futebol, blocos carnavalescos, boêmios freqüentadores de “bares evangélicos”, etc.. Esta, contudo, é uma afirmação problemática. Os evangélicos poderiam dizer que o caminho da salvação permanece estreito, uma vez que as exigências tornam este caminho muito menos atraente (e, portanto, mais estreito e íngreme) para aqueles que se deliciam com os múltiplos prazeres mundanos oferecidos ao longo do caminho largo da perdição. Assim sendo, talvez fosse mais adequado se dizer que há, atualmente, no caminho estreito da salvação uma quantidade e uma diversidade muito maior de transeuntes, se comparado a outros momentos. O fato é que esses transeuntes estão cada vez mais 3

Waldo A. César captou algo semelhante ao que se está aqui salientando só que, mais especificamente, em relação a um certo fascínio dos pentecostais para com a urbanidade moderna. Diz o autor: “Paradoxalmente (...) [o movimento pentecostal] rejeita a cidade, o mundo, mas tenta copiá-los par uso de sua própria comunidade. Temos, ai, contudo, uma (...) razão, de ordem subjetiva ou utópica, que explica a atitude paradoxal dos pentecostais relativamente a cidade: ao lado da rejeição, o fascínio, o modelo para muitas de suas iniciativas. Por que? A cidade é um modelo do futuro.” (César, 1974: 26) Sociedad y religión vol. xviii nº 28/29 (2007)

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parecidos com os transeuntes das largas calçadas da mundanidade brasileira. Uma certa indistinção está cada vez mais evidente e isso para a satisfação de alguns e a preocupação de outros.

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