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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO - UMESP ESCOLA DE COMUNICAÇÃO, EDUCAÇÃO E HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

FRANCISCO GENCIANO JUNIOR

A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA APODERAMENTOS LAICOS E RELIGIOSOS DE UM CONCEITO POR OCASIÃO DO DEBATE SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS NO BRASIL

SÃO BERNARDO DO CAMPO 2016

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FRANCISCO GENCIANO JUNIOR

A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA APODERAMENTOS LAICOS E RELIGIOSOS DE UM CONCEITO POR OCASIÃO DO DEBATE SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS NO BRASIL

Dissertação apresentada à Universidade Metodista de São Paulo em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, com vistas à obtenção do título de Mestre. Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Orientadora: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza

SÃO BERNARDO DO CAMPO 2016

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FICHA CATALOGRÁFICA

G285s

Genciano Junior, Francisco A sacralidade da vida humana apoderamentos laicos e religiosos de um conceito por ocasião do debate sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos no Brasil / Francisco Genciano Junior -- São Bernardo do Campo, 2016. 151fl. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Escola de Comunicação, Educação e Humanidades Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião São Bernardo do Campo. Bibliografia. Orientação de: Sandra Duarte de Souza 1. Aborto – Aspectos morais e éticos 2. Aborto – Aspectos religiosos 3. Aborto – Leis e legislação - Brasil CDD 241.6976

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A dissertação de mestrado intitulada: “A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA: APODERAMENTOS LAICOS E RELIGIOSOS DE UM CONCEITO POR OCASIÃO DO DEBATE SOBRE A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO DE FETOS ANENCÉFALOS NO BRASIL”, Elaborada por FRANCISCO GENCIANO JUNIOR, foi defendida e aprovada em 25/02/2016, perante banca examinadora composta por: Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza (Presidenta/ Umesp), Profa. Dra. Naira Pinheiro (Umesp) e Prof. Dr. Ricardo Bitun (Mackenzie)

________________________________________________ Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza Orientadora e Presidenta da Banca Examinadora

________________________________________________ Prof. Dr. Helmut Renders Coordenador do Programa de Pós-Graduaçaão

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião Área de Concentração: Religião, Sociedade e Cultura Linha de Pesquisa: Religião e Dinâmicas Socioculturais

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Dedico este trabalho à causa da vida, e vida em abundância. À causa da harmonia, civilidade e honradez, tão próprias à dignidade e sacralidade da vida humana.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus por seu generoso e constante cuidado. À minha família, minha companheira Sônia, meus filhos Sarah e Vitor, e à dona Eulália, minha mãe, pela compreensão e apoio imprescindíveis. A meus irmãos e irmãs com os quais compartilho de perto os desafios de seguir a Cristo e de viver a fé e os valores do Reino de Deus, que me sustentaram em orações. Ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo e à CAPES, que pela bolsa de estudos oferecida tornou possível a realização dessa jornada. À minha orientadora, Profa. Dra. Sandra Duarte de Souza, pela competência e cuidado na condução da orientação acadêmica, e pelos constantes incentivos que ajudaram imensamente. Aos demais integrantes do corpo docente, funcionários e colegas, que, de uma maneira ou de outra ajudaram em minhas reflexões, não apenas para a efetivação da pesquisa, mas para ponderar a vida e o mundo que nos cerca.

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“Às vezes, tenho a sensação de que só algum senso de sacralidade é capaz de nos impelir a respeitar de verdade os nossos semelhantes.” Reinaldo José Lopes Jornalista e autor do blog Darwin e Deus

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GENCIANO Jr, Francisco. A sacralidade da vida humana: apoderamentos laicos e religiosos de um conceito por ocasião do debate sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos no Brasil. 2016. 150 p. Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2016.

A sacralidade da vida humana: apoderamentos laicos e religiosos de um conceito por ocasião do debate sobre a descriminalização do aborto de fetos anencéfalos no Brasil.

RESUMO O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, suscitada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, finalizado em 12/04/2012, que versou sobre a descriminalização da antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos no Brasil, estabeleceu paradigma jurisprudencial para o tema e possibilitou debates nos quais estiveram presentes a temática relativa ao conceito de sacralidade da vida humana, dignidade humana ou valor intrínseco da vida humana. A pesquisa tem por objetivo analisar o uso do conceito de sacralidade da vida humana nos discursos políticos, jurídicos, científicos e religiosos havidos durante o desenrolar do julgamento, visando assim identificar como se estrutura o conceito e como foi apoderado pelos discursos laicos e religiosos quando do julgamento da ADPF n. 54. Para tanto se efetua a análise de elementos imbricados na questão, como a temática da secularização e da laicidade, com a respectiva abordagem da condição da religião em espaços públicos, e destas com o assunto crucial dos direitos humanos e o papel da religião. Seguindo para o levantamento da formação e concretização da ideia de sacralidade da vida humana, e análise do conteúdo do material relacionado ao mencionado julgamento: Acórdão e transcrições das audiências públicas nas quais foram promovidos os discursos que interessa averiguar.

Palavras-chave: sacralidade da vida humana; aborto; fetos anencéfalos; religião; direitos humanos; discursos; secularização; laicidade, religião

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GENCIANO Jr., Francisco. The sacredness of human life: secular and religious appropriations of a concept on the ocasion of the debate about the decriminalization of the abortion of anencephalic fetuses in Brazil. 150 p. Dissertation (Master of Science in Religion) – Escola de Comunicação, Educação e Humanidades da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2016.

The sacredness of human life: secular and religious appropriations of a concept on the ocasion of the debate about the decriminalization of the abortion of anencephalic fetuses in Brazil.

ABSTRACT The decision on the Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (abbreviation ADPF, meaning Accusation of Breach of Fundamental Precept) No. 54, raised by the National Confederation of Healthcare Workers, issued in 04/12/2012, which concerned the decriminalization of therapeutic induction of early deliveries of anencephalic fetuses in Brazil, established jurisprudential paradigm on the matter and possible debates in which were present the issues on the concept of the sacredness of human life, human dignity or the intrinsic worth of human life. This present research aims to analyse the use of the concept of human life sacredness in political, legal, scientific and religious speeches during the course of the trial, thus aiming to identify how the concept is structured and how it was taken over by secular and religious discourses as the ADPF No. 54 unfolded. For that to be accomplished the analysis was performed of the overlapping elements involved, such as the issue of secularization and secularity (laicity), with their respective approaches to the status of religion in the public square, and how these relate with the crucial subject of human rights and the role of religion. Said analysis was followed by a survey of the formation and actualization of the idea of sacredness of the human life, and another analysis of the content on the material related to the mentioned ADPF: Judgment and transcripts of public hearings in which were promoted the discourses of interest to the present work.

Keywords: sacredness of human life; abortion; anencephalic fetuses; religion; human rights; speeches; secularization; secularism

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 12 1 - RELIGIÃO E DIREITOS HUMANOS NA SOCIEDADE LAICA .......................................... 19 1.1 – O PROCESSO DE SECULARIZAÇÃO ..................................................................................... 19 1.2 – O IDEAL DA LAICIDADE ........................................................................................................ 30 1.3 - RELIGIÃO E DIREITOS HUMANOS ....................................................................................... 45 2 - A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA: ENTRE DIREITOS, LINGUAGENS E AMBIGUIDADES .............................................................................................................................. 55 2.1 – A MODERNA CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS ...................................................... 55 2.2 – A GRAMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A QUESTÃO DA RELIGIÃO ................... 68 2.2.1 – AS AMBIGUIDADES DA RELIGIÃO FRENTE AOS DIREITOS HUMANOS .................. 78 2.3 – A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA ................................................................................. 82 3 - A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS HAVIDOS NA ADPF Nº 54 ... 95 3.1 – A CONDIÇÃO DO FETO ANENCÉFALO ANTE A CIÊNCIA, O DIREITO E A RELIGIÃO ............................................................................................................................................................. 95 3.2 – ANÁLISE DO CONCEITO DE SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS QUE INTEGRAM A ADPF N. 54 ..................................................................................................... 105 3.2.1 – ANÁLISES INTRODUTÓRIAS ............................................................................................ 108 3.2.2 – O CONCEITO DE SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS LAICOS ............................................................................................................................................. 120 3.2.3 - O CONCEITO DE SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS RELIGIOSOS .................................................................................................................................... 128 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................... 137 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................... 145

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INTRODUÇÃO Laicidade, casamento entre pessoas do mesmo sexo, aborto, eutanásia, células-tronco embrionárias e outros temas atrelados às densas discussões pautadas por considerações éticas e pelos ideais dos direitos humanos fundamentais têm sido por vezes apresentados como campo de embate entre religiosidade e secularismo. Nesse confronto estariam em jogo princípios democráticos como a razão pública – esfera argumentativa na qual devem estar ausentes as moralidades específicas de quaisquer grupos –, a liberdade religiosa e direitos individuais essenciais, como o direito à vida? A razão de fundo do conflito entre Poder e Religião (seja o poder quer o do Estado, quer o do Direito, quer o de ambos…) é que todos estão possuídos de sacralidade. Há uma sacralidade religiosa propriamente dita e uma sacralidade estadual e jurídica, que pode mesmo, em certas circunstâncias, transformar o Estado e o Direito (embora “direito” com muitas aspas[...]) em verdadeiras religiões laicas (CUNHA, 2006, p. 14).

Nesse entroncamento de intensas e apaixonadas razões, por convicções religiosas, pela racionalidade, pelo secularismo e positivismo, identificam-se os reclamos e reivindicações de setores diversos da sociedade. Na pesquisa em tela pode-se apontar a participação no espaço sociojurídico da comunidade médica, da sociedade civil, e da comunidade religiosa. O elemento “religioso” presente nesses temas espinhosos e incômodos suscita a questão das experiências concretizadas e em desenvolvimento das manifestações e relações das religiões com a sociedade civil e o Estado democrático de direito. São várias as experiências e as considerações teóricas dessa participação das religiões nos espaços públicos, nos quais se incluem aqueles destinados ao encontro e ao debate, e considera-se que há constância e intensidades quanto à presença das religiões na sociedadze civil e a partir desta. Essa refrega por lugar e voz nos espaços da sociedade não dá sinais de arrefecimento. A presença midiática e política de segmentos do meio religioso evangélico vão propiciando que temas tensos como os acima citados sejam desenvolvidos em nuances monológicas e com a exploração e divulgação nem sempre primorosas ou esclarecedoras pelos meios de comunicação. Entretanto, a presença do pensamento religioso nos espaços públicos e políticos remete à já citada causa democrática da laicidade e de seu potencial sedimentador das regras

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para o convívio e diálogo em sociedades plurais, além de tencionar entendimentos fechados para o fenômeno da secularização. Assuntos analisados no primeiro capítulo desta dissertação. Ao pensar a religião, ou religiões em uma sociedade democrática há que se considerar a relação com o Estado. Quando se fala em laicidade está-se partindo da definição de uma postura estatal de não adotar uma religião oficial e de pautar-se pela neutralidade ante as religiões. O Estado laico, além da obviedade da separação entre Igreja e Estado, que estabelece esferas de atuação e limites, pressupõe que não ocorram favorecimentos a qualquer religião e tampouco impedimentos ou imposições para o exercício da fé e do culto, além daqueles constitucionalmente instituídos que objetivam a garantia da ordem pública e dos direitos de terceiros. A laicidade firma-se então como uma forma de organização da convivência e das relações que as religiões travam com o Estado. Sua implementação deve se voltar para o reconhecimento da dignidade e autonomia de todas as pessoas, religiosas e não religiosas, garantindo-lhes o pleno exercício de suas liberdades. O ministro do Supremo Tribunal Federal, Dr. Luís Roberto Barroso afirma que o Estado brasileiro adota a laicidade, mas não prega o laicismo – entendido como a defesa da ignorância ou da hostilidade em relação ao elemento religioso. A ordem constitucional reconhece a religião como uma dimensão relevante da vida das pessoas, quer sejam crentes, quer ateias ou agnósticas. Afinal, submeter um crente a práticas contrárias a sua religião é tão invasivo quanto determinar a um ateu que se ajuste a padrões religiosos. Em qualquer dos casos haverá a imposição externa de valores existenciais e a consequente violação da dignidade como autonomia1.

Respeito, convivência, liberdade e tolerância são palavras que podem dar a tônica daquilo que se almeja com a concretização democrática da laicidade: acolhimento. Imposições e ingerências não são aceitáveis, antes, se configuram em aberrações a serem evitadas. Como afirma Poulat, «la laicidad pública no es "todo al César y nada a Dios", sino todo a la conciencia y à la libertad de los hombres llamados a vivir juntos, a pesar de todo lo que les separa, opone y divide»? El reto es contribuir con lo particular, sin imposiciones, a la construcción de una convivencia plural, diversa, en la construcción del nosotros colectívo (COSTA, 2006, p. 9). 1

BARROSO, Luís Roberto. Legitimidade da recusa de transfusão de sangue por Testemunhas de Jeová. Dignidade humana, liberdade religiosa e escolhas existenciais. Disponível em . Acesso em 05/08/2014

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A multiplicidade de práticas e de teorizações e concretizações históricas não permitiu que se lograsse alcançar uma definição final e absoluta para a laicidade. Mas, como diretriz para a sociedade democrática brasileira, a laicidade do Estado é essencialmente a garantia do direito à liberdade religiosa, recepcionada pela Constituição Federal de 1988, mas cujo princípio além de estar presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, estaria na própria base constitutiva, ou na genealogia afirmativa dos direitos humanos (JOAS, 2012), tanto quanto da condução governamental em suas esferas de atuação – executiva, legislativa e judiciária – isenta de ações, elaborações e decisões pautadas em idiossincrasias religiosas. Observa-se, enfim, que a Constituição Federal do Brasil subscreve um modelo de laicidade favorável ao fenômeno religioso com considerável abertura para a incursão da religião no espaço público, demonstrando tratamento mais benéfico às religiões que aquele adotado em outras sociedades mais secularizadas. O que não redunda necessariamente em um voo sem turbulências. Consequentemente, olha-se para o estabelecimento da laicidade estatal em contraste com a circunstância de ser o homo sapiens também o homo religiosus e de não haver sociedade que ignore o transcendente e o sobrenatural ou que sobreviva tão somente na dimensão da racionalidade material (BAPTISTA, 2013). Indaga-se então, não deveria o pensamento (ético, moral e utópico) religioso participar da manutenção ou refundação da sociedade que ajudou a construir? E se deve participar como se dá essa participação? Quais as tensões e contradições que se apresentam nesse relacionamento entre religião e sociedade civil? Mais especificamente, no enfoque pretendido pela pesquisa, o que passa e perpassa o encontro entre pensamento moral religioso e ordenamento sociojurídico ante as reivindicações por direitos humanos? Os direitos humanos apesar de tão presentes nos mais variados discursos, nem sempre tem uma conceituação clara por parte de quem usa a expressão, ou de quem o usa como linguagem, na verdade, na análise produzida no segundo capítulo da dissertação constata-se pluralidade de linguagens e gramáticas de direitos humanos. Podem os direitos humanos ser entendidos pela mais complexa definição jurídica ou tratados como fala filosófica abstrata. Percorre-se a pesquisa assumindo-se os direitos humanos como aqueles que têm por objetivo resguardar os valores mais caros à pessoa humana, como o direito à vida, à integridade física

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e psicológica, à liberdade, à igualdade, à autodeterminação, etc., com múltiplas possibilidades para além do sistema internacional de direitos humanos. Entendem-se, também, direitos humanos em sua concepção contemporânea, firmada e em desenvolvimento logo após o término da Segunda Guerra Mundial, pela qual se estabelece que, ainda que o Estado seja responsável pela garantia da efetivação dos direitos humanos, estes também visam proteger o indivíduo da ação arbitrária estatal. Ao se falar em garantias de proteção do indivíduo frente ao Estado fica implícita uma internacionalização dos direitos humanos, que precisam de mecanismos aptos a fomentar e implementar tais políticas de proteção, o que conduz ao problema da universalidade dos direitos humanos, enfrentado no segundo capítulo da pesquisa. Tal questão que não se entende por um confronto entre direitos humanos nacionais ou regionais – o lugar onde de fato se efetivam ou não os princípios de uma ética da vida humana – vs. direitos humanos internacionais. Antes se vislumbra a imbricação de direitos humanos positivos com reivindicações morais ou éticas dos sujeitos. Assim como é certo que os Estados reconhecem em determinados acordos internacionais o direito de voto como direito humano, é ao mesmo tempo certo que só se obrigam a garantir esse direito a seus próprios cidadãos. Do mesmo modo, constata-se que os direitos humanos, em geral, nascem na filosofia, depois, tornam-se exigências políticas e, por vezes, “materializamse” em direitos positivos; por isso é possível e, às vezes, até necessário entender os direitos humanos não só como direitos positivos, mas também como direitos morais (PTERKE, 2010, p. 88).

A dignidade humana sem dúvida alguma floresce como a base a partir da qual se desenvolvem os sistemas de direitos humanos. Entretanto, o conceito de dignidade humana desenvolve-se em direção a nuances e complexidades que se entendem arroladas no pressuposto fundamental, porém subjetivo, de sacralidade da vida humana, qual seja, sua santidade, inviolabilidade e intrínseco valor. Então, a ideia de sacralidade da vida humana é o que se extrai, ainda no segundo capítulo, para o uso na presente pesquisa. Tal ideia pode ser entendida como construída por princípios teológicos e filosóficos, e considera-se que de fato o seja. Porém, o conceito foi tranquilamente absorvido e secularizado pela racionalidade e positivação normativa. O termo “sacralização” não exclusivamente um significado podem assumir as qualidades subjetiva e intensidade afetiva.

deve ser concebido como se tivesse religioso. Os conteúdos seculares também características da sacralidade: evidência A sacralidade pode ser atribuída a novos

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conteúdos; ela pode migrar ou ser transferida, e até mesmo todo o sistema de sacralização válido num culto pode ser revolucionado (JOAS, 2012, p. 19).

Entender-se-á então o sagrado por aquilo que é inviolável, que não pode ser tocado, provoca horror o presenciar ou saber de sua degradação ou destruição. Esse é o pressuposto que atravessa o entendimento humano do que significa ser humano. O valor próprio da condição de ser humano é o que atribui dignidade a ser preservada e garantida. A indignificação daquele que nos é igual causa-nos repulsa, pode ser que talvez nem tanto pelo sujeito que a sofre, mas pelos valores que ao serem ameaçados, nos ameaçam. Os valores em questão são objeto de não pequena problemática. Discussões acerca da prevalência da dignidade como autonomia em respeito à liberdade de agência e de interesses do indivíduo ou da dignidade como heteronomia em defesa dos interesses da comunidade, do conflito (aparente ou não) de direitos entre a gestante e o feto e da morte como dignidade (em situações de reivindicação pela eutanásia ou suicídio assistido), não parece que alcançarão consenso em um futuro próximo. De todo modo, a dignidade, inviolabilidade ou sacralidade da vida perpassa o arcabouço conceitual até mesmo de grupos que se posicionam em polos opostos de alguma discussão ou disputa, como, segundo Hans Joas (2012) e Ronald Dworkin (2009), é o caso dos proibicionistas, ou conservadores, e dos não-proibicionistas, ou liberais, no que se refere ao aborto. Deixa-se notar que a temática dos direitos humanos não pode estar ausente de quaisquer ponderações públicas. Como não se considera abdicar, por exemplo, do regime democrático, mesmo com suas lacunas e necessidade constante de reelaboração, não se vislumbra progresso e avanço sem considerar e respeitar detidamente a seara dos direitos humanos, que mesmo apresentando desafios, lacunas e necessidades de (re)interpretação, é o caminho adequado para o trato respeitoso dos assuntos que dizem respeito ao ser humano, na sua individualidade e na coletividade. Encaminhando-se para o estreitamento de foco que objetiva a pesquisa, chega-se ao terceiro capítulo e ao tema do aborto de fetos anencéfalos. O problema do aborto emerge de maneira singular, até mesmo pelo termo ter sido estrategicamente preterido pela entidade autora da ação, assim como em manifestações como as da professora e ativista pró-escolha Débora Diniz, que escolheu falar em antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos. Intencionalmente utiliza-se do termo aborto no título da pesquisa, por se entender que os

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desdobramentos da questão em análise se estendem para o problema mais amplo do aborto voluntário. No assunto da gestação de anencéfalo, considera-se que estão presentes condições de reclamos típicos da seara dos direitos humanos, como direito à vida, direitos reprodutivos, direito à liberdade como dignidade e direito a mitigar a frustração. Desponta também por esse tema da questão da anencefalia a crucial importância da consideração médica, que a define por uma má formação rara do tubo neural, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo e da calota craniana. A documentação médica atesta que não há possibilidade de prolongamento da vida extrauterina, restando ao bebê acometido pela anomalia poucos minutos, ou no máximo alguns dias de vida. O diagnóstico de morte certa introduz o feto anencéfalo em aspectos peculiares nas visões jurídicas, filosóficas e religiosas, e a gestante em situações de sofrimento e constrangimentos. Há que se mencionarem igualmente os profissionais de saúde que ante as incertezas que cercavam a condição jurídica da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos, recorreram ao poder judiciário em busca de uma clarificação paradigmática do tema em seu aspecto legal. Sendo assim, uma questão se apresenta como um ponto que pode ser identificado, delimitado e observado para análise da problemática: Como se estrutura o conceito, ou a ideia de sacralidade da vida humana e como se apresentou nos discursos políticos, jurídicos e religiosos quando do julgamento da descriminalização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos no Brasil? Assim a pesquisa volta-se para a análise dos conteúdos dos discursos havidos durante o julgamento pelo STF da descriminalização do aborto de fetos anencéfalos no Brasil (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 54, movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde). Especificamente a manifestação da sociedade nas audiências públicas e o Acórdão elaborado ao final do processo. Para as audiências foram separados pelo STF os blocos religioso, médico-científico e comunitário (sociedade civil e política). Fica desta maneira estabelecido um recorte espaço-temporal com a coleta da integralidade do Acórdão e da transcrição das audiências públicas realizadas no âmbito da já mencionada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. O portal do Supremo

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Tribunal Federal disponibiliza tais peças, devidamente digitalizadas no formato de arquivos PDF, que reunidos (audiências e íntegra do acórdão) agregam cerca de 800 laudas. Para fins de análise dividiram-se os discursos em laicos (jurídico, científico e comunitário) e religiosos, compreendendo-se que a divisão ordenada pelo STF propiciou certa permeabilidade entre os campos que se pretendeu agrupar, tendo havido, por exemplo, discursos oriundos de sujeitos do campo político na audiência destinada à oitiva do segmento médico. Para a efetivação da pesquisa foram adotados critérios sistemático-históricos no que tange à revisão da bibliografia pela qual se desenvolveu a elaboração teórica necessária para subsidiar a pesquisa documental, qual seja, a análise dos conteúdos dos autos relativos à ADPF n. 54. Os conteúdos tiveram abordagens multifocais quanto à sua análise, valendo-se de procedimentos sistemáticos, com extração de dados qualitativos e quantitativos. A fim de identificar e inferir nos discursos sobre a ideia de sacralidade da vida humana aplicaram-se análises estruturadas com vistas a superar questões vocabulares atendo-se à organização temática a fim de identificar unidades de significação e núcleos de sentido relativos ao tema da sacralidade da vida humana. A essa análise temática dos conteúdos propõe-se agregar a análise de seus sistemas de relações e associações, ou seja, estruturas que podem ser comuns na diversidade de manifestações, que demonstrem, ou não a presença de significados convergentes sob a aparente disparidade de sentidos. Recorreu-se à teoria da análise de conteúdos encontrada em Laurence Bardin (2009) e em Maria Cecília de Souza Minayo (2007). Os insights advindos da pesquisa remetem ao apelo pelo resgate daquela vivência dialógica elevada, que não se ofende com o contraditório, mas que em tudo, como disse Martin Buber, leva as pessoas a não se tratarem como objetos, mas como parceiros nos acontecimentos da vida, mesmo que seja apenas uma luta de boxe (BUBER, 1982).

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CAPÍTULO I

1 - RELIGIÃO E DIREITOS HUMANOS NA SOCIEDADE LAICA Ante os objetivos da pesquisa em analisar o conceito de sacralidade da vida humana em sua materialização normativa e nos usos que recebeu dentro dos discursos laicos (políticos, científicos e jurídicos) e religiosos havidos durante o desenrolar do julgamento da ADPF n. 54, identificando de que maneira se estrutura e como é apoderado pelos atores envolvidos, faz-se preciso o reconhecimento de contexto e conceitos que envolvem a utilização da ideia de sacralidade da vida humana. Para tanto se requer a compreensão dos modos de relacionamento entre religião e espaço público, e das interações e desafios destes em relação aos direitos humano. Portanto, neste capítulo tratar-se-á do desenvolvimento dos conceitos de secularização e laicidade, assim como de sua concretização, para o entendimento de como se dá a relação entre religiões e sociedade civil na arena pública, assim como das implicações desses imbricamentos em relação aos direitos humanos fundamentais. 1.1 – O PROCESSO DE SECULARIZAÇÃO Segundo a tese da secularização apresentada pelos sociólogos no final do século XIX, as sociedades ao se modernizarem, devem passar por um declínio irreversível das crenças e práticas religiosas. O fortalecimento da ciência e das técnicas deve fazer refluir as crenças; o materialismo enfraquece a espiritualidade; o poder religioso dá lugar ao poder laico (DORTIER, 2010, p. 576).

Pode-se tentar sintetizar e afirmar que o fenômeno da secularização implica na emergência e prevalência de valores seculares – valores desvinculados da seara própria da religião e intimamente relacionados com o avanço da modernidade e objetivação científica. Tais valores são aqueles nos quais os mais diversos campos da sociedade e da cultura passam a se basear, seja o direito, a educação ou a arte. Entretanto, a complexidade do processo denominado secularização impõe que se apresente um panorama mínimo que permita ao menos a compreensão das principais vias de seu desenvolvimento histórico e respectivo desenvolvimento conceitual, sua polissemia e desdobramentos, enfim, seu significado e alcance em nosso atual contexto.

Secularização como legado cristão

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Está presente entre os estudos do tema a ideia de que com o advento da modernidade e seu apelo à razão e à definição da realidade por aquilo que se pode constatar no plano empírico “a religião poderia decrescer e até desaparecer” (ZEPEDA, 2010, p. 129). Ocorre que esse processo de alijamento de conteúdos mágicos e enraizamento de conteúdos

racionalizados

e

eticizados,

notoriamente

conhecido

pelo

sintagma

desencantamento do mundo, cunhado por Max Weber (PIERUCCI, 2013), deu-se, no Ocidente, exatamente pela atuação da religião judaico-cristã. Seu monoteísmo varreu todas as pretensões mágicas de sentido e salvação e ao exigir um incremento racional para a fé, adotar uma postura com ênfase moral e praticar o ascetismo intramundano. Adentrou deste modo exatamente no campo do racionalismo e de sua reverberação, o secularismo. O protestantismo ascético fez a proeza de reunir numa mesma conduta de vida racional e santificada – eis um tema weberiano por excelência – a rejeição religiosa do mundo com a intramundanidade da ação religiosamente válida. “Talvez nunca tenha existido”, diz Weber, “uma forma mais intensa de valorização religiosa da ação moral do que aquela provocada pelo calvinismo em seus adeptos” (PIERUCCI, 2013, p. 202).

Não se quer incorrer no provável deslize de associar assim, tão naturalmente, o desencantamento do mundo com a secularização, ou, mais adiante, o ressurgimento do religioso com o reencantamento. Afinal, como sentenciou severamente Antônio Pierucci (2013, p. 120) “é básico para um cientista social que se pretende especializar no estudo das religiões entender, por exemplo, que desencantamento em sentido técnico não significa perda para a religião nem perda de religião, como a secularização”. Entretanto, existem boas razões para que se aponte um legado cristão para o processo de secularização. De fato Fernando Catroga (2010) apresenta três razões para se situar uma das causas da secularização no legado judaico-cristão. Em primeiro lugar ele destaca que a fé em um Deus transcendental acarreta na autonomia tanto do mundo político quanto do natural. Em segundo lugar aponta para a mobilidade de Deus, no sentido de intervenções diretas na história humana, rompendo a velha lógica circular do cosmos, reforçada pela Encarnação, estabelecendo uma relação divinohumano, na qual os indivíduos são chamados à sua liberdade e responsabilidade. Em terceiro lugar, a lei mosaica e a esperança escatológica (juízo final, retorno de Cristo, novos céus e nova terra) reforçaram o caráter ético de Deus, encaminhando o pensamento religioso da cristandade a racionalizar os elementos morais. “Daí que, cristianizada, a Europa tenha sido palco de uma prematura e relativa separação das ordens cósmica, cultural e social, processo atravessado, porém, por uma permanente tensão entre a transcendência e o mundo” (CATROGA, 2010, P. 25).

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O que segue no transcorrer histórico vem projetar, com revestimentos utópicos até (CATROGA, 2010), o ideal emancipatório (em relação à religião), a reivindicação da autoridade da ciência e da razão, bem como da morte do sobrenatural (BERGER, 1997) – os traços mais fortes da Modernidade. “O desenvolvimento da ciência, da técnica e do racionalismo faz recuar as concepções sacrais e religiosas do homem e do mundo” (RANQUETAT, 2008, p. 61).

Semântica da Secularização Antes de se prosseguir nas ações e reações, tensões e inflexões do processo, considerase necessário um pequeno exercício semântico. Afinal, como afirma Giacomo Marramao (1998, p.12), “Secularización es – como se sabe – una de las expressiones clave del debate político, ético y filosófico contemporáneo. Por su carácter ubiquitario ha asumido cada vez más una variedad de acepciones y de atributos semânticos”. Antônio Pierucci (1998, p.43) ao enfatizar, e não apenas sugerir, a necessidade da discussão conceitual da secularização, cita Jürgen Habermas para firmar a imprescindibilidade de se enfrentar a problemática: “saber do que se fala sempre ajuda”. Nesse escopo é que se buscou pautar a análise do processo de secularização. A gênese da palavra escapa aos limites deste trabalho. Para fazê-lo teríamos que retroceder ao uso religioso da palavra saeculum2 e aos ditames do direito canônico. Objetivase, então, em apertada síntese percorrer o desenvolvimento do principal significado para o conceito contemporâneo de secularização. A primeira ocorrência da expressão teria se dado em 8 de Maio de 1646, em Münster, “para dar nome à acordada transferência de terras episcopais para mãos régias” (CATROGA, 2010, p. 56). Naquele contexto o que se assinalava era a transferência de bens eclesiásticos a mãos seculares. Prática acentuada e impulsionada pela Revolução Francesa de 1789. Ou seja, o termo “foi usado originalmente, na esteira das Guerras de Religião, para indicar a perda do controle de territórios ou propriedades por parte das autoridades eclesiásticas” (BERGER, 1985, p. 117). Partindo dessa utilização do termo no campo político-jurídico segue-se arrastado e atribulado processo de (re)afirmação de uma soberana jurisdição estatal secular – o Estado moderno. Tal “processo secularizador foi acelerado pela acentuação da dicotomia entre o espiritual e o secular” (CATROGA, 2010, p. 58), ou seja, entre a religião (o transcendente, o

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Ver CATROGA ( 2010) e MARRAMAO (1998)

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sagrado) e o mundo (o profano), e o termo passou a ser postulado como condição necessária à emancipação da humanidade. Com esses ideais em curva ascendente, além da expropriação dos bens eclesiásticos, surgem significados próprios no campo filosófico-histórico e cultural, com ideólogos arvorados no modelo “descristianizador da Revolução Francesa” (CATROGA, 2010, p. 60) e começa-se a reivindicação por uma secularização da educação. Por sua vez, em Inglaterra, um seguidor do socialista utópico Owen – o futuro positivista e livre-pensador Jacob Holyoake – criou, em 1846 a London Secular Society, com o objetivo de lutar contra os poderes temporais da Igreja e da religião, em prol da secularização da sociedade. Daí que tenha criado o termo “secularismo”, para resumir este intento: “interpretar e regular a vida prescindindo tanto de Deus como da religião” (CATROGA, 2010, p. 61).

“Na verdade, com a entrada do século XIX, o termo, de acordo com o dicionário inglês de Oxford (1851), já referenciava uma moral que se devia basear no bem-estar da vida presente, excluindo todo o critério tirado da crença” (CATROGA, 2010, p. 60). O tom das relações, ou da dicotomia entre o religioso e o secular assume ares não muito pacíficos. Quando falamos sobre a história ocidental moderna, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de áreas que antes estavam sob seu controle ou influência: separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja, ou emancipação da educação do poder eclesiástico, por exemplo. Quando falamos em cultura e símbolos, todavia, afirmamos implicitamente que a secularização é mais que um processo socioestrutural. Ela afeta a totalidade da vida cultural e da ideação e pode ser observada no declínio dos conteúdos religiosos nas artes, na filosofia, na literatura e, sobretudo, na ascensão da ciência, como uma perspectiva autônoma e inteiramente secular do mundo (BERGER, 1985, p. 119).

Em princípios do século XX “el desarrollo de la sociedad europea occidental moderna está representado – por primera vez explicitamente y de forma completa – por Max Weber como ‘processo de secularización’” (MARRAMAO, 1998, p. 55). Segundo Antônio Pierucci (1998, p. 47) Weber usou essa expressão por duas vezes no ensaio As seitas protestantes e o espírito do capitalismo, “chamando de processo o desenvolvimento da sociabilidade e de modos de sociação característicos das modernas sociedades euro-norte-americanas de matriz puritana”. Weber ao tratar do racionalismo ocidental moderno não se dedica apenas às condições da moderna técnica científica e jurídica, ou econômica, mas observa e registra também a disposição das pessoas para certas “condutas de vida prático-racionais” (MARRAMAO, 1998, p. 59); que Peter Berger (1985) chama de secularização da consciência. Introduzindo

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em sua análise o já citado fator ético da religião judaico-cristã, acentuado pelos ideais ascéticos da Reforma Protestante. Nessas novas condutas de vida, que abrangem o “reino da moralidade, é que a questão da secularização agora se coloca com mais acuidade” (ISAMBERT, 1976, p. 576). Com a perspectiva de uma moral secular os membros de grupos religiosos passam a relativizar velhas condutas e dogmas religiosos. Pois ainda que a aderência ou fidelidade à religião possa ser reduzida por forças externas, é possível “também que seja aceito a partir de dentro do grupo religioso e considerado legítimo” (ISAMBERT, 1976, p. 577). Essas transformações afetaram diretamente o status cultural das religiões, enquanto instituições, e a vida prática dos fiéis e, por consequência, as demais esferas culturais que assumem valores advindos dos processos de racionalização. Tais processos são plurais e os modos de vivência ante tais mudanças são igualmente múltiplos, e Weber teria captado a complexidade e cadências da secularização. E vai permitir o que de mais precioso, a meu ver, existe na contribuição weberiana à tese da secularização, a saber, a capacidade de por à mostra de modo convincente a interface entre racionalização religiosa e racionalização legal. A racionalização religiosa, que desencadeia, desdobra e acompanha no Ocidente o desencantamento do mundo, implica ou supõe, embora não se identifique com, a racionalização jurídica, que de seu lado perfaz o desencantamento da lei, a dessacralização do direito, e põe de pé o moderno Estado laico como domínio da lei (PIERUCCI, 1998, p. 49).

Considera-se importante sublinhar que se observaram tentativas de conceituação da secularização pelo sintagma forjado por Max Weber: desencantamento do mundo. Entretanto, tal associação não é tão natural quanto possa parecer, haja vista que Weber ao tratar do tema em sua vasta obra, ao ligá-lo à religião falava de uma desmagificação ou dessacralização do mundo pelas religiões éticas (sobretudo o monoteísmo judaico-cristão). É básico para um cientista social que se pretende especializar no estudo das religiões entender, por exemplo, que desencantamento em sentido técnico não significa perda para a religião nem perda de religião, como a secularização, do mesmo modo que o eventual incremento da religiosidade não implica automaticamente o conceito de reencantamento (PIERUCCI, 2013, p. 120).

De todo modo, não parece estar muito errada então a ideia de secularização como indicativo do processo de deslocamento, enfraquecimento ou mesmo perda, nas modernas sociedades ocidentais, da religião como doadora de sentido e de produção/reprodução social. Destaca-se, contudo, que quando esse processo se dá de maneira objetiva, intencional, quando é politicamente mediado, o termo secularização é por vezes substituído pela ideia de secularismo, que pode ser definido como “uma secularización acaecida, en la medida en la

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que se contrapone a la religión el ámbito autónomo del pensamento y lo aleja, tanto en el plano teórico com en el práctico, de su influencia” (MARRAMAO, 1998, p. 86). Ou como “fenómeno que se da cada vez que la secularización tende a invadir el campo de competencia de la fe, dejando así de ser simplemente secular[...] con su pretensión de absolutización del actuar humano y de totalización de las instituciones político-sociales” (MARRAMAO, 1998, p.119).

Secularização hoje Tem havido discussões e (re)elaborações quanto à validade, alcance e permanência das teorias da secularização ante aquilo que é chamado de dessecularização ou ressacralização. Peter Berger (2000, p. 10), por exemplo, a partir de determinado momento passou a sustentar “ser falsa a suposição de que vivemos em um mundo secularizado. O mundo de hoje, com algumas exceções[...] é tão ferozmente religioso quanto antes, e até mais em certos lugares”. Não são problematizações apresentadas e defendidas com sutileza por algumas das pessoas envolvidas, com insinuações de comprometimento ideológico de ambos os lados. Peter Berger (1997, p. 20) ao falar sobre a “evasão do sobrenatural” afirma que esta foi recebida “com ira profética, em profundo pesar, com alegre triunfo, ou simplesmente como um fato incapaz de provocar qualquer emoção”. Antônio Flávio Pierucci (1997, p. 99), de seu lado, ao postular que sociologia da religião, para ser ciência, deve se pautar pela moderna crítica radical da religião, lamentou que “certos sociólogos da religião vêm celebrando a factualidade empírica da ‘revanche de Deus’, que identificam na nova visibilidade pública da efervescência religiosa. Aplaudem, nesse alegado ‘retorno do sagrado’ o fim do processo de secularização”. Os argumentos, o que de fato no interessa, a favor de um processo de dessecularização partem da posição de considerar errada a ideia de a modernização levar necessariamente, como uma marcha inexorável, ao enfraquecimento ou declínio da religião. “Com certeza, a modernização teve alguns efeitos secularizantes, em alguns lugares mais do que em outros. Mas ela também provocou o surgimento de poderosos movimentos de contrassecularização” (BERGER, 2000, p. 10). Essencialmente, o que Peter Berger afirma é que as relações entre a modernidade e a religião são bastante complexas, e que a secularização na esfera socioestrutural não está ligada necessariamente à secularização das consciências. Ou seja, ainda que instituições deixem de ter poder e influência na sociedade os indivíduos podem assumir novas formas institucionais ou não-institucionais de fervorosa religiosidade. De outro lado, ainda que haja

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reduzida aderência dos indivíduos, as instituições ainda poderiam manter certo poder de influência na sociedade. Outro ponto destacado na crítica às teorias da secularização é que, ao contrário do esperado, não são as comunidades religiosas que se adaptam à modernidade as que mais se desenvolvem, ao contrário. Na cena religiosa internacional, são os movimentos conservadores, ortodoxos ou tradicionais que estão crescendo em quase toda parte. Esses movimentos são justamente aqueles que rejeitaram o aggiornamento3 à modernidade tal como é definida pelos intelectuais progressistas. Inversamente, as instituições e os movimentos religiosos que muito se esforçaram para ajustar-se ao que veem como modernidade, estão em declínio em quase toda parte (BERGER, 2000, p. 13).

Isso seria suficiente para demonstrar que modernidade e secularização não são fenômenos parelhos, ou, ao menos, demonstraria que a contrassecularização também é um fenômeno igualmente importante. “Eu diria que essa interação de forças secularizantes e contrassecularizantes é um dos temas mais importantes para uma sociologia da religião contemporânea” (BERGER, 2000, p. 14). Muito das conclusões tidas por Berger partem da constatação do acentuado acréscimo às fileiras protestantes na América Latina nas últimas décadas, por ele entendido como um novo evangelismo nativo não dependente “de correligionários norte-americanos” (BERGER, 2000, p. 15). Evidentemente tudo isso também é passível de crítica ou de outros olhares, como se verifica adiante. Mesmo defendendo o que o mundo atual é, em suas palavras, ferozmente religioso, Berger aponta para duas exceções à dessecularização. Uma delas seria evidente e outra mais difusa. A exceção evidente seria a Europa. “Na Europa Ocidental, principalmente, a velha teoria da secularização parece estar valendo” (BERGER, 2000, p. 16). A exceção difusa não se localizaria regionalmente, mas seria algum tipo de específica dimensão cultural. Existe uma subcultura internacional composta por pessoas de educação superior no modelo ocidental, em particular no campo das humanidades e das ciências sociais, que é de fato secularizada. Essa subcultura é o vetor principal de crenças e valores progressistas e iluministas. Embora seus membros sejam relativamente pouco numerosos, são muito influentes, pois controlam as instituições que definem “oficialmente” a realidade, principalmente o sistema educacional, os meios de comunicação de massa e os níveis mais altos do sistema legal. (BERGER, 2000, p. 17).

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Aggiornamento, termo italiano popularizado pelo Papa João XXIII quando da realização do Concílio Vaticano II (1962-1965) para expressar o anseio por atualização da Igreja Católica. Ou seja, sua adaptação e a de sua mensagem ao mundo moderno.

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Nessa perspectiva os surtos religiosos havidos em cada país teriam características predominantemente populares e teriam motivações para além das religiosas, seriam “movimentos de protesto e de resistência contra uma elite secular” (BERGER, 2000, p. 17). No campo aparentemente oposto há perspectivas como as de Antônio Pierucci (1997, p. 100) que rebate abordagens que postulem o retorno do sagrado afirmando ser correto o uso do termo declínio da religião, posto ser este “o termo-chave, o processo-chave a ser nomeado quando se leva a sério a secularização da sociedade, ainda que o indivíduo continue a crer e quem sabe a praticar suas crenças múltiplas”. Pierucci defendeu que as teorias da secularização, especialmente o conceito desenvolvido por Max Weber, não tinham pretensões de se apresentarem como previsões fechadas que anunciariam o fim histórico da religião. Entretanto, o que se denotaria é o deslocamento da religião para o âmbito da vida privada, mesmo que não linear ou homogêneo, mas historicamente constatável. Havê-la banido do centro mesmo que articula arquitetonicamente a coesão do corpo social, pergunto eu, é pouco? Desbancá-la do seu papel de matriz cultural totalizante, insisto, é pouco? Terem abandonado o "dossel sagrado" (BERGER,1967), num processo altamente dinâmico e generalizado de especialização institucional, as esferas normativas do direito positivo moderno e da ética racional, as esferas expressivas da arte moderna e do entretenimento e, last but not the least, as esferas cognitivo-intelectuais da filosofia e da ciência, é pouco? (PIERUCCI, 1997, p. 103).

No decorrer de seus argumentos Pierucci ainda viria a dizer que o sobrenatural até pode ter significado e valor para os indivíduos e para as relações pessoais, ou seja, no plano da intimidade, na esfera privada, mas sem qualquer transferência de poder para as instituições religiosas ou capacidade de influência nas estruturas sociais prevalecentes, incluídas as dinâmicas do poder político. E mesmo que se constate maior adesão de pessoas à religião seria preciso entender [...]que, por maior que seja a magnitude demográfica dessa mobilização religiosa, por mais que se intensifiquem a adesão e a prática religiosas de pessoas até então desinteressadas e desmobilizadas, por mais que novos grupos religiosos e novas igrejas se formem e agitem o campo com novas energias de combate e conquista, isto não significa de modo algum o fim do processo de secularização. Antes, pelo contrário, ajuda-o, acelera-o (PIERUCCI, 1997, p. 114).

Não se pode simplificar a poucas linhas a problemática da secularização – se é que alguém já tenha tentado fazê-lo. Os autores visitados até aqui deixam isso bem evidente. Mas talvez, e apenas talvez, posicionamentos contundentes gerem ruído bastante para impedir a identificação de bases comuns, assim como aproximações analíticas de zonas fronteiriças, das

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capilaridades, das táticas e estratégias que insistem em não se enquadrarem em tipos-ideais de formulações teóricas. Assim, outras abordagens sobre o fenômeno da secularização pode nos ajudar a traduzir melhor o que já foi acrescentado até aqui e, quiçá, enveredar por algumas trilhas menos percorridas, porém bem iluminadas. Cecília Loreto Mariz, responsável pela revisão e notas do artigo já visitado de Peter Berger (A dessecularização do mundo: uma visão global, 2000), também elaborou um texto para dialogar com Berger na temática secularizaçãodessecularização (Secularização e dessecularização: comentários a um texto de Peter Berger, 2000). A autora destaca que o grande interesse pelo texto de Berger se deu pelo fato de “o conhecido sociólogo da religião estar, ao menos aparentemente, revendo algumas de suas posições e se retratando de ter defendido a tese da secularização da sociedade moderna” (MARIZ, 2000, p. 26). Em concreto, Berger não nega a secularização como tal, mas nega um processo simples e mecânico, sustentando que o processo pode gerar resultado oposto, a contrassecularização. Essencialmente, então, ele não estaria negando a existência da secularização, mas questionando a relação necessária entre modernidade e declínio da religião. Mas, pergunta Cecília Mariz (2000, p. 27), “onde estaria ocorrendo a dessecularização?”. O termo remete à reversão do processo de secularização, e, por isso, Cecília Mariz (2000, p. 27) não o entende aplicável aos “pentecostais do Brasil, por exemplo, que têm sido, em sua grande maioria, recrutados em grupos sociais com visões de mundo bem encantadas e nada seculares”. Outro elemento que distingue pentecostais de “fundamentalistas” muçulmanos é o fato dos primeiros não estarem preocupados em propor um Estado religioso. Sua incursão no campo da política, embora levante bandeiras religiosas, paradoxalmente tem tido um efeito relativamente secularizador – ao menos é o que podemos verificar no cenário político brasileiro. Na medida em que os pentecostais no Brasil estão contestando o monopólio católico das esferas públicas, tendem a defender a separação entre o Estado e a fé. Esses exemplos distintos apontam para a inadequação de se generalizar a dessecularização ou de negá-la por total. (MARIZ, 2000, p. 28).

Mariz acrescenta que Berger apontou para a luta por reconhecimento social ou por privilégios como o motor do processo de dessecularização. Esse leitmotiv bem pode ser associado ao interesse em ver mantido em toda sociedade o arcabouço moral e ético que emergem das religiosidades, em nosso caso sobretudo a cristã, que precisam, por outro lado, serem interpretados quando se manifestam em termos de moral e razão pública.

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Entretanto, mesmo entre grupos mais radicais a mudança de posição dentro da estrutura social, e o consequente empenho pelo reconhecimento social agora efetuado a partir das estratégias, racionalidades e meios comuns, têm como provável consequência algum grau de secularização interna, que acabam por flexibilizar crenças e decisões dos fiéis. Demais pontos tocados por Berger são analisados e discutidos por Cecília Mariz, mas, para os limites desta pesquisa o que foi sublinhado até aqui leva à consideração, mais uma vez, de que o problema atual das teorias da secularização talvez não se dê tanto no sentido de explicar o declínio da religião, mas sim de indagar sobre sua permanência. Portanto, a utilidade das teorias da secularização seria posta à prova em virtude de sua incapacidade de explicar a nova situação da religião nas sociedades contemporâneas. No entanto, uma análise superficial da bibliografia sociológica especializada (sociologia da religião) não endossa abertamente a conclusão acima referida, mas o que mostra é uma intensa discussão entre os especialistas, cujos argumentos revelam muito da base ideológica e mecanicista que subjaz à concepção amplamente difundida de “secularização” como “sem religião”. E mais, grande parte dos sociólogos que abordam esse problema chega inclusive a sustentar que a noção de secularização possui grande potencial explicativo da religião mesmo em condições de globalização e pós-modernidade (ZEPEDA, 2010, p. 130).

E ainda Jürgen Habermas ao tratar da possibilidade da modernidade encontrar estabilidade tão somente pelas forças seculares, afirma ser esta uma questão empírica aberta. “Isso não significa que eu pretenda considerar o fenômeno da permanência da religião num ambiente de secularização progressiva como um mero fato social. A filosofia precisa levar a sério esse fenômeno como um desafio a ser analisado a partir do lado interior” (SCHULLER, 2013). A relação entre modernidade e secularização continua sendo nuclear para os debates e teorias em desenvolvimento, portanto, ao se afirmar como característica da modernidade a primazia da razão e dos postulados empíricos, o lugar e as projeções para a religião acabam tolhidos em controvérsias que extrapolam o campo teórico, tornando-se “ainda um programa político-ideológico”, afirma Zepeda (2010, p. 131) ao tratar das abordagens dos mestres da suspeita (Nietzsche, Marx e Freud) em relação à religião. Assim reconhecem-se duas perspectivas dominantes acerca do processo de secularização: a tese dura e a tese suave da secularização, que, segundo Zepeda (2010, p. 131), tem na primeira o conceito de um processo inexorável, ainda que lento, do fim da religião, e no segundo como “um processo pelo qual a religião sofre severas alterações na modernidade, mas persiste disseminada pelos interstícios da cultura, disfarçada ou oculta na

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economia[...] na política como “religião civil”, ou como formas socioculturais pouco relevantes”. Uma importante consequência na esteira da tese suave da secularização, da modernidade-secularização, com a reivindicação de tolerância, e laicidade, como se aborda mais adiante, é o pluralismo religioso. Com o fim das religiões politicamente dominantes o que se assiste é um grande (re)surgimento de opções religiosas diversas. Nessa diversidade, aquelas opções religiosas com maior carga emocionalista seriam as mais abundantes e mais adequadas ao tempo presente, pois são altamente adaptáveis às condições do novo contexto: carecem de pontos fixos de referência, tradição ou autoridade; apostam mais na experimentação do que na crença, são sincréticos por natureza e não se estruturam mais em torno do eixo “transcendência-imanência (ZEPEDA, 2010, p. 135).

Essa nova realidade religiosa não indica a perspectiva de retorno à condição prémoderna da religião, pois não permite o monopólio institucional de outrora. O pluralismo vigente, aliás, favorece aquilo que se denomina religiosidade de bricolagem, na qual os indivíduos transitam entre grupos religiosos e mesclam elementos diversos, paradoxais até, recolhidos das distintas religiosidades. Esse novo contexto conduz à revalorização do plano simbólico e à necessidade de se dar sentido à vida, elementos que estão intrinsecamente articulados em todas as tradições religiosas. Isso possibilita a existência da tolerância religiosa, como também sua revalorização na esfera pública. Assim, pode-se falar em “religiões públicas”, não no sentido pré-moderno de religiões que atuam de maneira central no espaço público (por exemplo, “igrejas oficiais”), nem no sentido de religiões competindo com outras como se fossem partidos políticos, no sentido de que operam publicamente no espaço da “sociedade civil” (ZEPEDA, 2010, p. 136).

Ou seja, ainda que aceitem tranquilamente a neutralidade estatal no campo religioso, reivindicam participação na esfera pública da sociedade, dentro da lógica das liberdades essenciais, e da linguagem dos direitos humanos no moderno Estado democrático. No contexto brasileiro dos últimos anos talvez a presença de grupos religiosos em busca de espaço na arena política, assim como sua manifestação e ação em assuntos polêmicos, tenha perturbado o implemento legítimo dessa “nova presença pública da religião, não reativa nem fundamentalista , muito menos governista, mas sobretudo dialógica” (ZEPEDA, 2010, p. 136). Nesta seara, contribui, mais uma vez, a análise de Jürgen Habermas: Começa a prevalecer na sociedade pós-secular a ideia de que a modernização da consciência pública afeta de maneira defasada tanto as mentalidades religiosas quanto as seculares, modificando-as de forma reflexiva. Entendendo a secularização da sociedade como um processo comum de aprendizagem complementar, ambos os lados estarão em condições de levar

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a sério em publico, por razões cognitivas, as respectivas contribuições para temas controversos (SCHULLER, 2013, p. 52).

Assim tem acontecido com alguns temas críticos de nossa sociedade, como no caso das controvérsias em relação à descriminalização do aborto de fetos anencéfalos, cujos discursos estão em análise justamente para se identificar quais os usos que o conceito de sacralidade da vida humana recebe, e se estão, ou podem ser decodificados em temos de razões cognitivas, ou razão pública. Contudo, tais controvérsias nem sempre se dão sem atritos que enveredam por reclamos no sentido de silenciar a parte contrária, com apropriações antagônicas do princípio da neutralidade política e jurídica em relação às religiões, flexionando os alcances e propósitos da laicidade do Estado em sentidos opostos. Portanto, é acerca da ideia/ideal de laicidade que convém discorrer a seguir.

1.2 – O IDEAL DA LAICIDADE

[...] se toda a laicidade é uma secularização, nem toda a secularização é (ou foi) uma laicidade e, sobretudo, um laicismo (CATROGA, 2010, p. 273).

Ainda naquele espírito do saber do que se fala sempre ajuda, faz-se importante estabelecer o conceito de laicidade, mesmo em se tratando de conceito e fenômeno com acepções e concretizações históricas distintas em seus desenvolvimentos e peculiaridades. Fernando Catroga (2010) aponta para a possibilidade de se distinguir três acepções de secularização. Uma estaria se referindo primordialmente ao distanciamento dos indivíduos em relação às tradições religiosas, outra faz comparação com a tendência moderna de privilegiar o pertencimento ao mundo terreno, e, por fim, aquela que seria a tradução daquele processo de separação funcional e estrutural das instituições, que veio a ser chamado laicização. Esse desdobramento institucional do fenômeno da secularização é o conceito que se agrega a importante parcela dos modernos estados democráticos; como o brasileiro, constitucionalmente laico. Grosso modo, apenas como ponto de partida, pode-se estabelecer que a laicidade trate de definir as relações entre o Estado e as religiões, ou antes, a autonomia daquela primeira instituição política em relação às religiões e a garantia de esferas independentes e da plena liberdade religiosa. Mas não se pode acomodar tranquilamente em curta definição um tão amplo prisma de contextos e tipicidades nas quais se dão tais relações. Quando são abordados os dispositivos que orquestram o político e o religioso nas democracias contemporâneas, fica-se surpreso com sua variedade e com a singularidade das manifestações sociais das religiões segundo os contextos sócio-históricos (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 51).

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É possível que ao se suscitar a questão da secularização-laicidade tenha-se em conta o modelo francês. Porém, ante a pluralidade de concretizações da laicidade, tendo igualmente em conta sua incompletude – não como coisa pendente de ser terminada, mas como estrutura em permanente aprimoramento, acomodação e revisão – parece um desacerto limitar aquele último conceito de secularização, citado a pouco, às especificidades francesas, ante o risco de se reduzir o processo a uma perspectiva mais intervencionista do Estado com implicações quanto à eliminação do religioso na esfera pública e mesmo interferências na liberdade de consciência. Num quadro diferente a secularização corresponderia, sobretudo, a um decréscimo da pertinência social e cultural da religião como quadro normativo; tratar-se-ia, portanto, de um fenômeno de longa duração e sem sujeito activo explícito, porque mais dependente das interacções da dinâmica interna das sociedades do que do propósito planificador da instância política. Seja como for, raciocinam bem todos os que, dentro de um pano de fundo comum, separam os conceitos e aceitam que ambos se podem combinar, ou não, de acordo com as experiências históricas concretas (CATROGA, 2010, p. 274).

A história das palavras Os dicionários frequentemente incluem “secular” e “leigo” como sinônimos, embora exista diferença entre as duas palavras. O termos “leigo” tem origem latina (laicu) e grega (laïkós). Como adjetivo latino, define-se em oposição às ordens sacras ou como alheio a um assunto qualquer. O substantivo grego significa comum, ordinário ou vulgar. “Secular” tem um sentido dinâmico porque é aquilo que sai do campo sagrado, por distinção conceitual ou expropriação, e recupera sua condição comum. “Leigo” é um estado areligioso que não necessariamente resulta de uma oposição ao sagrado (RIVERA, 2015, p.17).

Segue-se, então, pelo mesmo percurso intelectivo que foi adotado para o conceito de secularização, pretendendo-se a melhor compreensão da coisa toda cabe usar aqui também um pouco de semântica e etimologia. Notar-se-á que apesar de suas origens os termos laicidade, laicismo e outras derivações não servirão, em um primeiro momento, para um uso dos crentes ou da igreja, ao contrário, serão usados em face destes. A caminhada etimológica do vocábulo principia no antigo termo grego laós, portador de um contexto militar em sua origem, que tratava da relação entre um grupo de homens com seu chefe, por consentimento mútuo. Era o modo típico de organização das antigas sociedades guerreiras. Referia-se, então, ao povo que portava armas e estava submetido a um líder, isso excluía crianças e velhos, e frequentemente mulheres. Esta significação primária da palavra afastava-se de termos como dêmos, que se referia tanto à porção de terra quanto o povo que ali vivia, denotando condição social e não ligações

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parentais ou políticas. Tampouco se aproximava de ethnos, palavra com aplicações tanto a seres humanos quanto a animais, significando a vinculação por laços naturais e história comum, ou seja, vínculos estabelecidos cultural e civilizacionalmente. Indo além de sua significação primeira o termo laós passou a “significar que, antes de ser dêmos e de se formar como polis4, o “povo” seria láos, base substancial daquelas duas outras expressões” (CATROGA, 2010, p. 278), ou seja, designava pessoas que viviam em conjunto em determinado lugar e tempo. O uso bíblico majoritário de laós é para designar o povo de Deus. Os pagãos são designados sem maiores minúcias como ethnos. Em suma: para assinalarem a aliança entre Israel e Javé, aos tradutores gregos do Antigo Testamento pareceu-lhes mais adequado fazer a corresponder a palavra hebraica am a laós, termo que qualifica Israel como o povo eleito de Deus, frequentemente em contraste com a palavra hebraica goy, usada para denominar os pagãos (éthnê). Por conseguinte, o que na maior parte dos casos transforma o povo judeu em laós é a eleição e a graça de Deus, e não suas índoles étnicas, naturais ou históricas (CATROGA, 2010, p. 278).

No grego tardio laós originou o termo laikós, que, em latim tornou-se laicus, chegando aos nossos termos leigo e laico. Essa dicotomia que passa a marcar as esferas da vida espiritual e da vida temporal vai, no interior do cristianismo, estabelecer a divisão entre clérigos e leigos. O antigo conceito que designava todo o povo de Deus passa a ser usado para estabelecer a hierarquização dentro da igreja. “Segundo alguns autores, laikós terá aparecido pela primeira vez em 96 d.C., numa carta do Papa Clemente, para qualificar um fiel, em oposição a um diácono, ou a um padre (os iniciados e os detentores do saber” (CATROGA, 2010, p. 279). Assim, os detentores do poder espiritual, dentro mesmo da igreja, passaram a dar o sentido de secular para o termo leigo. Foi se popularizando o significado de laico para se referir aos membros de uma comunidade religiosa que não eram ordenados clericalmente, ou seja, não eram padres ou sacerdotes, que não tinham qualquer graduação de clericatura. Em português, esta semântica encontra-se no célebre Vocabulário de Rafael Bluteau (1716). Assim, registrando a palavra “laical”, este escreveu: “cousa de leigo ou de Irmão Leigo em ordem religiosa”. Ao mesmo tempo definia “leigo” como um adjectivo que tinha por origem o “grego laós, que vale o mesmo que povo”, e esclarecia: “chama a Escritura pão leigo ao pão não sagrado. Chama-se leigos a todos os que não são clérigos nem ordenados. Leigo vale o mesmo que não clérigo” (CATROGA, 2010, p. 281).

Se na antiga pólis religião, política, lei e moral se mesclavam costumeiramente, o mesmo já não ocorria no Ocidente desde a Idade Média, que, pelo impulso do pensamento de 4

Comunidade humana que se organiza em torno de uma constituição civil e jurídica comum, uma cidadeestado

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Santo Agostinho, acentuava as distinções entre a cidade de Deus (celestial) e a cidade dos homens (terrena). A cisão entre o político e o religioso, as tensões entre política, direito, moral e religião e o estabelecimento do Estado de direito que se foram intensificando com a Modernidade, condicionantes da secularização, igualmente levaram aos reclamos e lutas pela autonomia da razão. Para o avanço deste movimento modernizador também não foram somenos os combates travados pela nova filosofia, ao reivindicarem o exercício autónomo da razão crítica liberto de todos os dogmatismos, e ao reclamarem, como a primeira das liberdades, a liberdade de consciência e o livrepensamento. Por sua vez, se tudo isso foi comum a muitos países europeus, em alguns deles – não por acaso, dominantemente católicos, chamar-se á laicidade à instituição da diferença entre o espiritual e o temporal, o Estado e a sociedade civil, o indivíduo e o cidadão. E foi para nomear tais propósitos, e para lutar por eles, que os progressistas franceses criarão, a partir da raiz de velhos vocábulos como lai/laïe, novos conteúdos, a fim de identificarem adversários e melhor significarem os seus sonhos de autonomia e emancipação (CATROGA, 2010, p. 283).

Essa terminologia proposta a partir dos antigos radicais, agora ressignificados, vai ditando os rumos que o processo trilhará, sobretudo naquelas arenas onde se encontram o político e o cultural, nas quais o Iluminismo e experiências revolucionárias modernas (marcadamente a Revolução Francesa) vão se opor àquelas Igrejas que detinham poder cultural, político e econômico. Derivações vocabulares, então, surgidas no amplo mundo da abstracção ideológica (laical; laicalismo ou laicismo; laicização; laicizar)[...] puderam se adoptadas pelo discurso positivista para significar em primeiro lugar oposição a clerical e clericalismo e depois, de modo mais geral, a oposição a todo o universo de referência confessional ou simplesmente religiosa (CATROGA, 2010, p. 285).

Assim a terminologia citada acaba por avançar ideologicamente também no campo educacional. Os ideais laicizadores reclamavam pela secularização do ensino – tudo isso não ocorreu sem reações da Igreja, como pontuado mais adiante. Entretanto, o embate mais ferrenho entre os ideais da laicidade e as Igrejas ao se acomodar na primeira metade do século XX, acabou por impor uma distinção de termos. Neste ponto o termo laicismo vem indicar situações nas quais a laicização ultrapassa “a esfera da neutralidade e da indiferença”, ampliando-se até as consciências dos indivíduos ao tentar firmar uma “mundividência que a acção política do poder político (Estadopedagogo) teria de tornar hegemônica para se poder fazer cidadãos patriotas e racionalistas” (CATROGA, 2010, p. 302). Destaca-se que o vocábulo laicismo não é tido unanimemente como representativo de aspecto negativo da laicidade, com viés autoritário e impositivo, mas

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com significado positivo, expressando ação afirmativa em favor dos valores laicos a serem conservados e defendidos. No que se refere à pretensão de impor à sociedade a laicidade, essas duas expressões – “ultralaicismo” e “integrismo laico” – parecem-nos mais adequadas que o mero “laicismo”: afinal, sendo a laicidade uma situação institucional mas também um valor a respeitar-se, o laicismo seria o movimento em seu favor (LACERDA, 2014, p. 190).

Quando laicidade passa a significar neutralidade do Estado em relação às religiões, ou às crenças religiosas, também vai traduzir-se em oposição ao anticlericalismo, estabelecendo que a revolução cultural em marcha deveria se apoiar em direitos de cidadania. E nessa lógica de explicitar e normatizar as relações entre religiões e Estado, afirma-se a tolerância às crenças e práticas religiosas, que se estende para os sujeitos sem religião (LACERDA, 2014, p. 179).

Reações à modernidade Basicamente identificam-se duas modalidades paradigmáticas de reação, ou antes, oposição religiosa à modernidade, tais são formuladas pelos conceitos de fundamentalismo e de integrismo. A primeira liga-se à ortodoxia protestante e a outra se refere à reação católica. O fundamentalismo protestante ocorreu ao final do século 19, com concretização teórica tida ao final de uma série de conferências que culminou na publicação de doze fascículos repletos de artigos teológicos, intitulados The Fundamentals: a testimony to the truth. Em princípio foi uma reação ao liberalismo teológico protestante, firmando posicionamento no sentido de preservar elementos tidos como fundamentais para a fé. Os ensaios foram projetados para afirmar, entre outras coisas, crenças protestantes conservadoras, especialmente os da tradição Reformada, e defender contra as ideias consideradas hostis a eles. Eles são amplamente considerados como a fundação do fundamentalismo cristão moderno (TORREY; DIXON, 2013, posição 89).

Posteriormente a corrente experimentou derivações radicalizadas, com forte presença midiática na divulgação de sua comunicação. “E esta pregação passou a objectivos políticos de claro cariz conservador[...] que não deixou de provocar os seus efeitos, mesmo que indirectos, na vida dos EUA, através de suas articulações com a religião civil americana” (CATROGA, 2010, p. 287). O integrismo – que não deve ser confundido com o fundamentalismo, posto estar este pautado na ênfase da revelação bíblica e nos fundamentos da fé cristã, enquanto aquele faz referência à tradição da igreja católica e à integralidade de sua doutrina –,

tem sua

emergência associada ao magistério do Papa Leão XIII (1887-1903), que em 1892, em plena

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III República francesa, recomendou aos católicos franceses a aceitação tanto do regime republicano quanto de sua doutrinação social (sem, entretanto, deixar de fazer criticas à modernidade e ao princípio de tolerância, que colocaria todas as religiões em perspectiva de igualdade). Daí procedem o movimento social católico e as tensões entre os que aceitaram os novos tempos e os que a ele eram refratários, assim como a “tendência para se consolidar a autonomia dos laicos (dentro da Igreja) e se desconfessionalizar as instituições, conflitos que irão diferenciar os católicos integrais e os sociais” (CATROGA, 2010, p. 289). As reações à revolução cultural e à modernidade, que traziam consigo a secularização da sociedade e a laicização das estruturas de governo, incluem, por exemplo, aquela de Pio VI (1775-1799) que qualificou os direitos de liberdade e igualdade como insensatos (carta Quod aliquantum, de 10 de março de 1791) e, dois anos depois vinculou o catolicismo ao Absolutismo, prognosticando que os princípios consignados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão levariam à barbárie; ou as críticas ao pensamento liberal que nortearam a encíclica Ubi primum (1824), ou, ainda, a doutrinação de Gregório XVI (1831-1846), que condenou Lamennais, na Mirari vos (15 de agosto de 1832), e que, na Singulari nos (1834) exprobou o galicanismo, o racionalismo e o indiferentismo, assim como as liberdades de consciência e de opinião, vistas como um “delírio” e como o mais pernicioso de todos os erros (CATROGA, 2010, p. 289-290).

Outras manifestações radicais face à modernidade ocorreram, e deixam de ser abordadas ante o espaço destinado ao tema, ajustando-se o foco para relevância primordial quanto ao desenvolvimento da presente pesquisa. Entretanto, importante mencionar que com o Concílio Vaticano II (1962-1965) e sua já citada proposta de aggiornamento, o integrismo passa a ser chamado tradicionalismo, e a Igreja procura maior diálogo com a sociedade moderna.

Laicidades Traçado o sintético roteiro semântico e estabelecidos os elementos basilares do conceito, é conveniente tornar a sinalar que as relações entre Estados democráticos e religiões não ocorrem sempre do mesmo modo. Adotaremos, em princípio, aquela distinção que sublinha quatro tipos de laicidade. O primeiro modelo, o francês, tido como um tipo de “laicidade ideológica” é aquele no qual o projeto de laicização assume abrangência tal que se pretende como alternativa às religiões.

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A laicidade do modo como germinou na França não pode ser entendida sem o prisma conflituoso entre anticlericais que se proclamavam defensores da liberdade de pensamento e amantes da Revolução e uma Igreja católica disposta a persistir em suas velhas prerrogativas tanto políticas quanto culturais. Jean-Paul Willaime, citado por Olivier Bobineau e Sébastien Tank-Storper (2011, p. 53), ressalta que: “A laicidade à francesa não é compreensível sem essa dimensão de combate contra o clericalismo, isto é, contra o poder da Igreja sobre a sociedade e sobre os indivíduos, particularmente no domínio educacional”. Imprescindível observar que nos primórdios desse modelo de laicidade foi promulgada a Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão (1789), pela qual se proclama a liberdade de consciência e de culto, deixando assim o catolicismo de ser a religião do Estado e abrindo caminho para que protestantes pudessem se organizar e judeus terem abertura para o exercício da cidadania. Naquele primeiro umbral da laicidade francesa destacam-se “uma fragmentação institucional, em que a religião não é mais socialmente portadora de um sentido que diga respeito a todos os aspectos da vida[...] um reconhecimento da legitimidade social da religião[...] reconhecimento do pluralismo religioso” (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 54). Se naquele primeiro momento pretendia-se uma realocação das relações entre o Estado e a Igreja, com uma espécie de reimbricação entre política e religiões, pela abertura ao pluralismo religioso, os conflitos entre clericais e anticlericais, por vezes violento, teve por remédio o pacto laico de 1905, que estabelece um segundo umbral para a laicidade na França, marcado pela consolidação da separação entre Igreja e Estado, pela “dissociação institucional (a religião não é mais oficialmente considerada uma das instituições que estruturam a sociedade)[...] inscrição como liberdade pública fundamental da liberdade de consciência e de culto” (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 55). Aquele pacto laico serviu como propulsor para a pacificação do processo de laicização, uma vez que teria abafado aqueles aspectos com tendências ao laicismo, pois “a laicidade contida na Lei de 1905 é, ao contrário, uma laicidade inclusiva, um pacto laico que rompe com a religião civil republicana e seus aspectos excomunicatórios” (WILLAIME, 2011, p. 311). A partir de tempos mais recentes, porém, a laicidade francesa vem sendo desafiada por questões vindas do próprio pluralismo religioso, como aquela que ficou conhecida como a questão do véu islâmico. Em se considerando essa problemática específica traz-se como fato emblemático para elucidar a complexidade do tema, que gravita ao redor da questão do (subjetivo) uso ostensivo de símbolos religiosos, aquele

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caso de três meninas muçulmanas – Samir Saidani e as irmãs Leila e Fatima Achaboun – impedidas de assistir às aulas em um colégio na cidade de Creil, ao norte de Paris. Segundo o diretor, Ernest Chenière, o objetivo da sanção era limitar a exteriorização excessiva de todo pertencimento religioso ou cultural (CARVALHO, 2013, p. 106)

A privatização das práticas do catolicismo podem não representar um significativo problema neste momento para as amplitudes da laicização em seus entroncamentos com a democracia e os direitos humanos, entretanto, para “religiões como o islã ou o judaísmo, que possuem uma definição diferente das relações público/privado” (BOBINEAU; TANKSTORPER, 2011, p. 56), é um ponto de tensão expressivo. A questão do véu vem de fato desvelar a indagação por uma laicidade apta não apenas a reconhecer, mas também garantir a autonomia dos indivíduos de pertença religiosa no livre exercício de suas crenças. O argumento pela proibição do véu, valendo-se inclusive de um discurso em favor da emancipação – movimentos feministas denunciaram “a influência de radicais islâmicos e da pressão sofrida pelas jovens para usarem o véu (CARVALHO, 2013, p. 111) – acaba por ser tomado como um “registro de uma laicidade de combate com acentos às vezes autoritários que tem dificuldade em conceber que possa existir uma prática religiosa livremente consentida” (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 57). Nesse conflito são identificadas duas vertentes para a política da autonomia: a liberal, que pretende manter as expressões de religiosidade na esfera privada e ambiente cúltico, e a autoritária, que almeja limpar as consciências de toda influência religiosa; e uma laicidade limitada por três lados. O primeiro lado consiste na ausência de dominação da religião ou de qualquer outra convicção sobre o Estado, as instituições, a nação, o indivíduo. O segundo lado é constituído pelo respeito à prática e à liberdade de consciência, de culto, de religião ou de não religião, etc. O último remete por fim à igualdade de direito das diferentes religiões e das diferentes convicções não religiosas (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 58).

A objeção às manifestações públicas da fé e a privatização de suas expressões e pensamento é mais marcada na França do que no restante da Europa, ou mesmo do que em outros estados democráticos ocidentais. Outro modo de concretização de laicidade é aquele chamado de estatal, cujo modelo a ser destacado é aquele que emerge nos Estados Unidos da América. Em marcado contraste com a experiência europeia, sobretudo francesa, na qual a limitação do religioso na esfera privada é a práxis, os Estados Unidos trazem outra forma de relacionamento entre Estado e religiões.

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As instituições políticas dos Estados Unidos são constitucionalmente separadas das instâncias religiosas. A Constituição de 1787 faz referência à religião apenas em seu artigo 4º, para estabelecer que as funções políticas não podem depender de crenças de indivíduos, e a Primeira Emenda, de 1791, estabelece garantias para a separação entre as igrejas e o Estado e para a liberdade de consciência. Entretanto, ainda que prevaleça no nível federal a separação constitucional entre igrejas e Estado, há presença de valores morais e religiosos na vida política (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 59). Isso implica em diferentes margens e fronteiras no nível dos estados da federação quanto à elaboração de legislações que limitem, dificultem ou proíbam práticas tidas como imorais. Isso até que a Suprema Corte não estabeleça critérios jurídicos impedindo tais legislações, como ocorreu recentemente, no dia 26/06/2015, com a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Assim, não é “tanto no nível federal quanto no plano jurídico e civil que as religiões marcam sua presença na política estadunidense. Elas continuam sendo atores maiores na definição dos valores morais, tão importantes no jogo político” (BOBINEAU; TANKSTORPER, 2011, p. 60). Essa aparente contradição, na qual em havendo uma bem estabelecida separação entre política e religiões estas continuam muito presentes, levou o escritor e pensador político francês Alexis de Tocqueville a se interrogar: “perguntei-me como podia ser que ao diminuir a força aparente de uma religião fosse possível aumentar seu poder real” (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 60). Em outras palavras, a laicização não implica forçosamente o declínio ou o enfraquecimento das religiões; pelo contrário, ela pode contribuir com sua maior vitalidade e com sua maior capacidade de influência sobre a sociedade (BOBINEAU; TANKSTORPER, 2011, p. 61). Um terceiro modelo a ser assinalado é o da laicidade em parceria. Diferentemente da França, na qual a autonomia política foi conquistada em conturbados processos, em outros países, como a Alemanha, não ocorreu aquele relacionamento turbulento entre a política e a religião dominante. Antes, o problema central se deu na coexistência de duas confessionalidades, a católica e a protestante. Nesse ambiente o desafio colocado à soberania política foi o de garantir a convivência pacífica dessas confissões religiosas que não se sobrepuseram uma à outra. Nesse contexto foram estabelecidas formas de cooperação entre as estruturas políticas de governo e as igrejas. Além de se ter em conta a Reforma Protestante, para uma melhor compreensão da laicidade de parceria na Alemanha, há que se considerar também as ditaduras nazista e

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comunista que assolaram o país. Ambos os regimes foram hostis às religiões, e as igrejas tiveram importante papel tanto na desnazificação quanto na reunificação e reconstrução da Alemanha. Em outras palavras, a conquista da autonomia da esfera política, a defesa das liberdades e o triunfo da democracia contra a ditadura e o nacionalismo andam lado a lado, na Alemanha, com a consolidação da posição institucional e social das Igrejas e de seu magistério moral. Assim, ainda que “não exista Igreja de Estado” (artigo 137-I da Constituição), o Estado alemão cede parte do espaço público às instituições religiosas (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 63).

Tal inserção das religiões no espaço público se dá em variados níveis. No constitucional há o reconhecimento das sociedades religiosas como corporações de direito público, quando estas agem em prol do interesse público. Na esfera da sociedade existem diversas intervenções das igrejas, com a estruturação de dispositivos institucionais que fornecem desde formação educacional e profissional e assistência à saúde, passando por desenvolvimento humanitário, lutas contra exclusões, etc. No “plano econômico, as Igrejas reconhecidas como instituições políticas que participam do bem comum recebem financiamento público. Trata-se do imposto eclesiástico” (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 63). E por fim, no nível escolar, o ensino religioso é disciplina regular nas escolas públicas, até o ensino médio, avaliada do mesmo modo que as demais matérias que compõe a grade escolar.

São ministradas de acordo com as comunidades religiosas, sem um controle

verdadeiro do Estado (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 64). Nesse regime de parceria, a laicidade lida com as igrejas tendo-as como formas sociais institucionalizadas e organizadas que ainda detém algum poder de influência social. Por último, nesse quadro de modelos emblemáticos de laicidade, temos aquela que pode ser considerada como uma espécie de laicidade jurídica, observada na democracia israelense, na qual a liberdade de religião e de consciência está inscrita na Declaração de Independência israelense, de 14 de maio de 1948. O judaísmo não é religião de Estado (do ponto de vista da lei, todas as religiões são iguais), mas isso não implica a indiferença total do Estado nas questões religiosas. O artigo 2º dos Princípios fundamentais apresentado em Knesset em 8 de março de 1949 dispõe, por outro lado: “O Estado proverá as necessidades religiosas dos habitantes, mas evitará toda coerção em questões religiosas. Os Shabbat e as festas judaicas serão dias de descanso no Estado de Israel. O direito dos não judeus aos seus Shabbat e dias de descanso será garantido” (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 65).

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Ou seja, ainda que os feriados nacionais estejam referenciados na Torah, os feriados dos não judeus (majoritariamente mulçumanos e cristãos) estão garantidos por lei. Isso define uma laicidade que não lida com neutralidade alienada em matéria religiosa no espaço públicopolítico, antes demonstra prover garantias para a pluralidade religiosa. Essa modalidade de laicidade difere notadamente daquela distinção marcada entre público e privado, como na laicidade francesa, ao operar a neutralidade pública estatal na forma de garantir efetivamente que o espaço público seja um lugar de respeito à diversidade religiosa, que se torna espaço mais para lugar impregnado de signos religiosos do que espaço arreligioso. Outra característica distintiva da laicidade jurídica israelense é a Lei sobre jurisdição dos tribunais rabínicos, de 1955, que delega às autoridades das comunidades religiosas – constam Tribunais rabínico, islâmico, cristão e druso – competência sobre o estatuto pessoal de seus membros, quais sejam: casamento e divórcio. Isso poderia gerar tensões para além das toleráveis, ante o risco de um crescimento desproporcional e agravoso dos religiosos. Porém, A chave de compreensão da laicidade de tipo israelense se encontra no fato de ceder ao rabinato central, encarregado de encarnar a “religião civil” israelense, um magistério moral e jurídico sem que isso crie um conflito maior no âmago da sociedade israelense moderna. De modo geral, a aplicação do direito religioso ortodoxo no direito pessoal não cria, com efeito, maiores problemas. O direito religioso não proíbe que certos casais se casem sob o pretexto de que frequentam uma sinagoga liberal e não lhes fecha tampouco o acesso aos cemitérios, respeitando, pois, a liberdade de consciência (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2011, p. 66).

De todo modo, os que não se enquadram nas molduras desse direito religioso (casais mistos ou de religiosidade imprecisa) sempre podem recorrer à Suprema Corte, que vai garantir a aplicação de um direito absolutamente laico.

Pontos comuns Os modelos apresentados dão uma base interessante para a compreensão da multiplicidade de configurações para as relações entre política (Estado) e religiões. Outras classificações há, como a de “quase laicidade”, atribuídas aos países católicos do Sul da Europa (Itália, Portugal e Espanha), como em Fernando Catroga (2010). Por questões de espaço e foco deixamos de discorrer sobre Estados modernos nos quais há uma religião (Igreja) estatal, mas com garantias laicas quanto à política e liberdade religiosa, como é o caso da Noruega, Dinamarca e Reino Unido. Entretanto, mesmo ante ocorrências, desenvolvimentos e concretizações distintas têmse identificado e buscado uma base e objetivos comuns para o projeto democrático da

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laicidade. Ainda quando se fala acerca das filosofias da laicidade identificam-se notas em comum, [...]mormente: uma concepção evolucionista acerca da origem do homem e da sociedade; uma teoria antidivinista sobre as origens do poder; a confinação do religioso, no quadro do respeito da liberdade de consciência, à esfera privada; a afirmação do papel activo do Estado perante a sociedade civil; a consequente promoção de ideias e valores capazes de ligar as diferenças, a começar pelas subjectivas, tendo em vista combater o atomismo social e consolidar a cidadania (CATROGA, 2010, p. 321).

No ano de 2007 foi apresentada a Declaração Universal da Laicidade no Século XXI 5. Com a cooperação e apoio de estudiosos como Roberto Blancarte e Jean Baubérot, o documento afirma em seu preâmbulo querer incitar os Estados a velar pelo equilíbrio entre os princípios essenciais que favorecem o respeito pela diversidade e a integração de todos os cidadãos à esfera pública. Ao longo de 18 artigos são apresentados os princípios essenciais, que têm na laicidade o princípio fundamental do Estado de direito, e os debates e desafios para a concretização democrática da laicidade. Os direitos fundamentais de liberdade de consciência e de expressão estão significativamente presentes na Declaração Universal da Laicidade, apontando para o quanto vai permeada a questão pelos precedentes valorativos da dignidade humana. São destacados os seguintes pontos: Artículo 4. Definimos la lacidad como la armonización, en diversas coyunturas socio-históricas y geopolíticas, de los tres principios ya indicados: respeto a la libertad de consciência y a su práctica individual y colectiva; autonomía de lo político y de la sociedad civil frente a las normas religiosas y filosóficas particulares; no discriminación directa o indirecta hacia seres humanos. Artículo 5. Un proceso de laicización emerge cuando el Estado ya no está legitimado por una religión o por uma corriente de pensamento particular y cuando el conjunto de los ciudadanos puede deliberar pacificamente, en igualdad de derechos y de dignidad, para ejercer su soberania en el ejercício del poder político[...] Elementos de la laicidad aparece entonces necesariamente en toda sociedad que quiere armonizar relaciones sociales marcadas por intereses y concepciones morales o religiosas plurales. [...] Artículo 9. El respeto concreto a la libertad de conciencia y a la no discriminación, así como la autonomía de lo político y de la sociedad frente a norma particulares, deben aplicarse a los necesarios debates que conciernen a las cuestiones relacionadas con el cuerpo y la sexualidad, la enfermedad y la muerte, la emancipación de las mujeres, la educación de los niños, los matrimonios mixtos, la condición de los adeptos de minorias religiosas o no religiosas, los “no-creyentes” y aquellos que critican la religión. 5

Declaração Universal da Laicidade no Século XXI. Disponível em: . Acesso em: 02/07/2015.

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A laicidade, como integrante do projeto democrático, está de igual modo difundida em peculiaridades culturais-regionais e em permanentes processos de construção e reelaboração, o que não significa de pronto que não existam princípios, bases ou pontos em comum, sem os quais não haveria estrutura a ser erigida. Assim os elementos buscados na Declaração Universal da Laicidade podem ser abordados como uma espécie de dever-ser da laicidade. Como ensina o melhor da cultura republicana, a sociedade não pode subsumir a realização do indivíduo como pessoa. A unidade fundante do laós, para ser bem cumprida, é incompatível com todas as discriminações, positivas ou negativas, quaisquer que sejam os seus pretextos (religiosos, filosóficos, sexuais, étnicos, sociais, etc.) Ela dita que a ordem política se organize conforme o seu conceito, isto é, tem de assentar na soberania popular. Postulando a igualdade, mas também a assunção livre das diferenças, a começar pelas de índole individual, é sua função criar uma realidade comum a todos, mas de acordo – e contra as suas interpretações homogenizadoras – com uma prática de alteridade, em que o outro não seja, tão-só, pretexto narcísico de auto-reconhecimento (CATROGA, 2010, p. 488).

O projeto de laicização do Estado democrático precisa zelar no sentido de garantir que a abertura oferecida ao outro não seja uma mitigação, mera tolerância condescendente pela qual o indivíduo ou grupo afirme a exclusividade e superioridade de sua identidade enquanto concede solenemente o favor da fala ao outro. Diálogo, pluralidade, convivência, coexistência requerem antes que o outro seja tanto quanto o eu, que as identidades sejam plasmadas ante as diferenças e a sociedade se construa a partir da possibilidade daquilo que, em sendo comum, habilite legítimas trocas e comunicações entre os diferentes e suas diferenças.

Laicidade(s) no Brasil E quanto à laicidade que se desenvolveu em nosso país? Nas duas ou três últimas décadas o tema da laicidade, do princípio do Estado laico, tem estado bem presente na esfera pública, sejam por políticos, movimentos sociais ou as mais variadas representações religiosas (EMMERICK, 2010). Essa relação repleta de tensões e inflexões reflete a problemática da separação Igreja-Estado, que tem um histórico no qual se apresentaram e apresentam, dentre múltiplos atores, uma religião predominante, monarquia, república e redemocratização. Opta-se em trazer, por breve, síntese tão somente os modelos de laicidade experimentados pelo Brasil a partir do advento da república, na qual se identificam basicamente dois modelos de laicidade: “um modelo de separação, definido pela Constituição de 1891, e um modelo de cooperação, estabelecido pela Constituição de 1934 e, grosso modo, mantido até os dias atuais” (LEITE, 2011, p. 32).

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O texto constitucional de 1891 teria estabelecido uma marcada separação entre Igreja e Estado, enquanto a de 1934, como contraposição católica ao texto de 1891, projetou um modelo de cooperação. Essa leitura do texto constitucional de 1891 tem em seu favor os seguintes aspectos principais: (i) um contexto de profundas mudanças institucionais, incluindo a separação entre Estado e religião e, portanto, a revogação das relações estabelecidas entre essas esferas durante a monarquia; (ii) uma série de dispositivos constitucionais que reforçavam essa mudança, afirmando a laicidade do Estado e sua independência em relação à religião católica; (iii) a ideologia positivista de um grupo qualitativamente expressivo dos atores que tomaram parte nos eventos republicanos; (iv) certas medidas de governo no sentido da laicização do Estado (LEITE, 2011, p. 32).

Atendo-se à análise do texto constitucional de 1891 pode-se afirmar que ali foram estabelecidos os critérios que identificam os chamados Estados democráticos modernos. Qualquer reunião entre poder civil e religioso foi rejeitada. O Estado assumia a responsabilidade por garantir a liberdade e a igualdade de seus cidadãos, sem qualquer dependência ou restrições quanto a valores morais particulares e religiosos. A Constituição da República de 1891 estatuiu um regime jurídico autônomo e moderno que não buscou legitimar-se no poder religioso. Houve a secularização de instituições como o casamento, o registro civil e a gestão de cemitérios e o fim da educação pública confessional. Isso implicou no fim das diferenças havidas entre cidadãos católicos e não-católicos. Confira-se o disposto no artigo 72, parágrafos, 4º, 5º, 6º e 7º da Constituição de 1891: Artigo 72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: [...]. § 4º - A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita. § 5º - Os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis. § 6º - Será leigo, [isto é, laico], o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos. § 7º - Nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial, nem terá relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados (EMMERICK, 2010, p. 152).

Mas a mera leitura do texto constitucional, ou de outro texto jurídico, não é suficiente, do contrário, como observa Fábio Carvalho Leite (2011), pode ser erro metodológico dependendo das finalidades do estudo. Isso é assim pois dependemos da compreensão jurídica dada ao texto em determinada época para então entender suas implicações concretas na

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sociedade, tendo em conta também o fato de que a sociedade brasileira continuou majoritariamente católica, os operadores do governo e do direito também não devem ter abandonado sua confessionalidade, e os representantes da Igreja empenharam-se em tentar que se mantivessem benefícios e reconhecimentos. Como o apelo enviado à constituinte por D. Antônio, arcebispo da Bahia: Srs. Membros do Congresso Nacional, acolhei este último apelo que a Igreja Católica, a religião de vossos país, faz à vossa honra, à consciência, ao coração e ao patriotismo de cada um de vós. Inspirai-vos, no redigir a Constituição, no exemplo da sua nobre irmã do Norte e das mais repúblicas da nossa generosa América; eliminai, apagai ao menos do nosso pacto fundamental as cláusulas ofensivas da liberdade da Igreja Católica, a que pertence toda esta Nação (LEITE, 2011, p. 39).

Desses elementos não seria um disparate considerar, como o faz Fábio Leite (2011), que já no período de vigência daquela primeira constituição republicana, o que se via de fato era uma relação mais próxima entre política e a religião prevalecente. Mais enfático Ricardo Mariano (2011, p. 246) vai dizer que “a separação Igreja-Estado no Brasil, estabelecida com o advento da República, não pôs fim aos privilégios católicos nem à discriminação estatal e religiosa às demais crenças, práticas e organizações mágico-religiosas”. A Constituição de 1934, mantendo um ideal de separação entre Igreja e Estado, já aponta para um regime de cooperação. Saliente-se que no preâmbulo os constituintes introduziram a citação a Deus, o que, jurídica e politicamente não carrega obrigações legais, uma vez que os preâmbulos, no caso, constitucionais, não tem força legal, posto que apenas servem de enunciado precedendo o texto normativo, em todo caso, pode demonstrar uma acomodação em relação ao tipo de laicidade pretendida. Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL DE 16 DE JULHO DE 1934. Por sua vez, a referida Constituição, em seu artigo 17, também contemplou de forma clara a colaboração recíproca entre a Igreja e o Estado. Artigo 17 - É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] II - estabelecer, subvencionar ou embaraçar o exercício de cultos religiosos; III - ter relação de aliança ou dependência com qualquer culto, ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo (EMMERICK, 2010, p. 153).

Essa é proposta de laicidade em operação até hoje. O que não implica que as relações entre Estado e Igreja ou religiões não tenham sofrido transformações no ritmo das

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demais mudanças, em especial as relativas à pluralidade religiosa no cenário brasileiro e à forte presença pública e midiática de outras religiosidades, em especial a pentecostal, com acentuada presença televisiva, e a espírita, com presença importante no mercado de produções televisivas, cinematográficas e literárias. Se no plano jurídico-constitucional as relações Igreja/Estado pouco se alteraram entre a Constituição de 1934, 1946 e 1967/1969, nos planos econômico, social, cultural e intelectual as mudanças foram significativas. Talvez, o fato mais relevante neste contexto seja a perda de hegemonia da Igreja Católica, enquanto instituição detentora da produção dos bens simbólicos, ante a expansão de outras denominações religiosas (EMMERICK, 2010, p. 155).

Nossa atual Constituição, de 1988, assegurou definitivamente uma série de direitos e garantias fundamentais, como as de liberdade de culto e de consciência, ao mesmo tempo em que manteve um regime de cooperação, isentando igrejas e templos de tributação, mantendo a validade civil do casamento religioso, a prestação de assistência religiosa em hospitais e entidades civis e militares de internação coletiva, prevendo ainda o ensino confessional em escolas públicas. A laicidade, como já pontuado, coloca desafios a serem enfrentados como elementos constituintes da democracia. E o regime de colaboração em vigência no Brasil não escapa desses desafios. Conjugar elementos tão caros e complexos quanto os direitos individuais consagrados como inseparáveis da dignidade humana – como o da autodeterminação dos sujeitos –, o de participação plena de cidadãos e instituições nos debates públicos e o da presença das religiões, ou do pensamento religioso, sem deixar de garantir que tudo se resolva em termos de razão pública e não de particularidades religiosas ou filosóficas. O propósito pretendido com todo esse referencial e conceitos para fins de análise nesta pesquisa se desdobra agora na problemática tida em relação aos direitos humanos e a religião. Sobretudo quanto à ocupação de espaços públicos pelo discurso, pensamento e moral religiosa e as dinâmicas sociais envolvidas em face de princípios e discursos quanto aos direitos humanos.

1.3 - RELIGIÃO E DIREITOS HUMANOS

As sociedades secularizadas esperam que de fato haja separação entre o Estado e as religiões; as religiões historicamente minoritárias também. A laicidade garante que direitos e liberdades fundamentais sejam plasmados na sociedade. Disso decorre que tanto a laicidade e

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sua linguagem como os direitos humanos e sua linguagem sofram apropriações e sejam usados para denunciar segmentos contrários, ou transversais, que se embatem na sociedade civil e na esfera política. Quando se percorreu o histórico do conceito e as concretizações das laicidades foi assinalado o perigo de o ideal da laicidade despencar para uma dominação estatal das consciências, o laicismo. Nisso desponta mais um dos pontos que clamam por equilíbrio nas sociedades democráticas; nessa tensão entre laicidade e direitos humanos, entre pluralismo (religioso, ideológico, filosófico, político, etc.) e direito à plena cidadania e participação. Importa afunilar a ampla problemática para aquilo que diz respeito mais diretamente aos propósitos deste estudo. Assim, cuida-se de discorrer algo acerca das dinâmicas envolvendo religião e (no) espaço público brasileiro, bem como de desafios à efetivação ampla dos direitos de dignidade humana.

Religião no espaço público Talvez, para uma melhor compreensão do entroncamento entre laicidade, religião e direitos humanos, seja apropriado iniciar o argumento a partir da obrigação laica e democrática de garantir a liberdade religiosa (de consciência, de culto, etc) em prol de princípios acolhidos como indispensáveis à dignidade humana, presentes na Declaração Universal dos Direitos Humanos e tornados em norma constitucional no Brasil. Essa obrigação implica em ação estatal no sentido de impedir quaisquer discriminações por motivos religiosos. Roberto Blancarte (2003) nos alerta quanto à necessidade de não se confundir tolerância com não discriminação. Segundo o autor é possível tolerar ao mesmo tempo em que se discrimina, posto ser a liberdade religiosa uma definição em aberto, pelo que seria possível haver liberdade religiosa sem garantias de não discriminação. La discriminación por motivos religiosos o de convicción es condenada como una violación a los derechos humanos y como un obstáculo para las relaciones amistosas y pacíficas entre las naciones. Por ello, se pide que los Estados adopten “medidas eficaces” para prevenirla, incluyendo la adopción o derogación de leyes (BLANCARTE, 2003, p. 284).

Nesse sentido Luciano Oliveira (1996) faz lembrar as palavras do pastor francês Rabaud Saint-Etienne, ditas quando dos debates para a elaboração da Declaração dos Direitos do Homem de 1798: “Não é a tolerância que eu reclamo, mas liberdade” (p. 67). A tolerância representaria tão somente a disposição de suportar alguma coisa (ruim em si mesma) a fim de se evitar um mal maior, e assim sendo encarada, difícil escapar à discriminação.

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A discriminação por motivos religiosos pode partir de indivíduos, grupos, ou mesmo do aparato estatal, a depender do conceito e do tipo de laicidade concretizada – como no caso do véu islâmico na França.

Essencialmente a liberdade religiosa associada à não

discriminação significa direito à diferença, e es indispensable que el Estado y su mejor instrumento cívico, que es la escuela laica, dentro de la universalidad de los valores republicanos o de derechos humanos que defiende, enseñe el derecho a la diferencia y combata la discriminación, sea ésta por motivos religiosos o de cualquier otro tipo (BLANCARTE, 2003, p. 307).

E ainda Costa & Ferraz (2010, p. 44): A utilização do laicismo como justificativa para diminuir a expressão social dos adeptos de alguma crença, e o valor dos argumentos que estes levantam nos debates de interesse nacional, aponta gravemente para um viés totalitário e ideológico desse laicismo. Uma das principais marcas dos pensamentos que levaram a implantação de regimes totalitários é a concepção de que a única verdade existente é aquela que apregoam, e para sua aplicação todos os meios devem ser utilizados e opositores silenciados.

Conjugar a garantia de liberdade religiosa com a proteção à pluralidade e ao trato político e legislativo em termos de razões públicas, geralmente suscitados em termos de semântica de direitos humanos, é desafio a ser enfrentado democraticamente pelo Estado. No que tange à liberdade religiosa em nosso país, admite-se que longe de uma privatização do religioso, um confinamento ao templo e à esfera privada da família, o que temos em nossa sociedade é uma franca presença das religiosidades nas mais diversas esferas e estruturas da sociedade. Acredita-se ter ficado demonstrado que a emergência de Estados seculares, com a afirmação da laicidade, não está atrelada à automática privatização do religioso na esfera privada. Pode-se considerar que a maneira como a secularização ocorreu e a laicidade foi colocada em prática no Brasil redundou na afirmação da presença da religião nas esferas públicas e na sociedade civil em geral. A própria afirmação jurídico-constitucional da garantia à liberdade religiosa, que terminou por impor à nascente República a necessidade de um enquadramento quanto ao que de fato poderia ser considerado religião, funcionou como forja institucionalizadora. Se a religião contava com proteção legal, ao contrário da magia e do curandeirismo, o assumir formas institucionais foi a alternativa encontrada para as religiosidades afro-brasileiras e para o espiritismo (MONTERO, 2006). Agrega-se a tal fato aquele outro pelo qual,

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No processo histórico de construção da sociedade civil brasileira, os limites do Estado para implementar uma política social e assistencial abrangente o levaram a apoiar-se reiteradamente em acordos com a Igreja Católica. No rastro dessa “devolução” das funções seculares do Estado para a Igreja, organizou-se no espaço público todo um conjunto de práticas de assistência no campo da saúde que se apropriou do código cristão da “caridade” (MONTERO, 2006, p. 59).

No campo protestante constata-se a mesma presença caritativa na sociedade, somandose, como no caso da Igreja Católica, forte penetração também na esfera educacional. Outras organizações religiosas também atuam no plano da caridade, como os centros espíritas. Com a novidade da expressão pentecostal no campo evangélico, seguida pelo neopentecostalismo, verifica-se uma mescla entre assistencialismo, cura e agenciamento miraculoso para a prosperidade econômica, veiculados maciçamente pela mídia. Então, o embate entre o que seria religioso e o que seria magia, tanto como o choque entre catolicismo e protestantismo, podem ser tidos como resultado da emergência de um Estado democrático e laico, garantidor da liberdade religiosa, assim, como afirma Paula Montero (2006, p. 63), a diversidade de cultos e o respeito à liberdade de consciência “não foi fundamento do Estado moderno, mas seu produto”. Roberto Cipriani (2008) investigando o entroncamento entre religião, espaço público e laicidade no Peru constata a ocupação de espaços públicos pela religião com perspectivas positivas, pelas quais ameaças à dignidade e à vida pode ser alvo de mitigações pela intervenção de atores da esfera religiosa, assim como podem emergir propostas conciliatórias para embates políticos mais raivosos, minimizando as possibilidades de dano à população. É uma questão de participação democrática produtiva, em um misto de ver-se democraticamente garantida sua participação e participar com vistas às garantias democráticas e humanitárias ansiadas pela sociedade. “Por lo tanto, la religión há desarrollado um rol activo en el âmbito público, logrando dar prueba de una nueva laicidad, no comprometida con el poder y sensible a los pedidos de participación popular en la cosa pública” (CIPRIANI, 2008, p. 38). Esse seria o modelo ideal de participação, sem perda de identidade, e sem planos de impor a própria identidade a outros grupos e sujeitos. A constituição de uma arena civil com ampla liberdade para religiosidades e instituições religiosas viria a produzir também agentes religiosos preparados para a atuação pública e política. “Ora, ao ser expulsa, contra a sua vontade, do aparato estatal, a Igreja Católica tornou-se uma força política, entre outras, dessa esfera civil em construção” (MONTERO, 2012, p. 170).

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Ainda que se pontuem situações acerca das quais a postura da Igreja Católica é criticada e denunciada por setores da sociedade, e mesmo por setores formados por seus próprios fiéis, como estando em oposição à implantação efetiva de direitos fundamentais, é certo que houve participação política em prol da restauração e desenvolvimento de direitos individuais, coletivos, culturais e econômicos (MONTERO, 2012). O catolicismo ainda mantém, a meu ver, a primazia simbólica e política na passagem dos valores para as normas[...] e seu êxito relativo em produzir elites capazes de representar politicamente causas que interessam à Igreja são, entre outros, elementos importantes que garantem, ao mesmo tempo, a preservação de sua legitimidade e sua capacidade de influir na formulação das leis. O protestantismo pentecostal nos parece ser hoje o único grande movimento religioso que, pelo seu rápido crescimento e progressiva conquista de meios de produção de visibilidade tais como canais de rádio e televisão, desafia essa hegemonia[...]. Outro elemento que obriga a renovação dos estudos sobre os fenômenos religiosos diz respeito à emergência de um novo consenso internacional no qual os Estados nacionais são instados a proteger e conceder direitos iguais às minorias. No caso brasileiro, a Constituição de 1988 estimulou a criação de novos arranjos políticos de modo a ampliar a base de representação nos processos decisórios. A palavra chave que melhor caracterizou esse processo foi a de “participação democrática”. Inspirados nos movimentos internacionais que reivindicavam maior responsabilidade decisória para os cidadãos comuns, padres, pastores e outros representantes de diferentes religiões conquistaram muitas posições nos novos fóruns criados para deliberar questões relativas à implementação de políticas públicas. Nesse sentido, é possível afirmar que o secularismo, enquanto doutrina política do Estado, não implicou necessariamente na separação entre as instituições religiosas e as instituições governamentais. Ele colocou em jogo, ao contrário, uma dupla mutação na qual, por um lado, as demandas religiosas se representam nos fórum decisórios e, por outro, agentes religiosos são chamados a colaborar na execução de políticas públicas. Nesse processo se re-elaboram novas concepções de “religião” de “ética” e de “política” (MONTERO, 2012, p. 172).

Pode-se afirmar, então, que católicos, e atualmente protestantes, sobretudo do meio pentecostal, têm significativa participação nos debates públicos e na condução parlamentar e respectiva produção de leis. Mas, enquanto para Paula Montero (2012, p. 173) isso se dá por um ajuste de “sua visão ética a uma linguagem mais secularizada”, Gomes e colaboradores (2009, p. 17) vão assegurar que A inserção na política, pela eleição de candidatos de diferentes confissões religiosas para cargos no Poder Legislativo, relaciona-se ao que é definido pelas instituições religiosas como um “direito” de defender a sua “verdade” e atuar na esfera pública, em oposição a ações e conquistas capazes de ameaçar os valores cultivados no religioso. É claro que estamos nos referindo aqui, especialmente, à perspectiva de atuação de segmentos cristãos.

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Seja como for, não se pode ignorar que o segmento cristão presente na política e na arena civil é aquele que, ao menos visivelmente, desempenha ativamente o papel formulador e influenciador de políticas e de elaboração de leis “referentes a temas polêmicos, como homossexualidade, aborto e eutanásia. Na elaboração de leis, a ética e os valores das instituições religiosas tendem a orientar os posicionamentos na atividade parlamentar” (GOMES et al, 2009, p. 19). As controvérsias em abordagem na presente pesquisa vêm demonstrar que a lógica da pluralidade democrática “possibilita e legitima a diversificação de posicionamentos contrastivos na esfera pública. Nesse contexto o vínculo religião-política ganha novos contornos” (GOMES, 2009, p. 45), e fica patente a particiapação da religião nos debates acerca de pontos críticos da sociedade, como, no caso em análise, a legalização do aborto de fetos anencéfalos. Prevalece nesses discursos a mensagem que afirma ser a vida um dom de Deus. Tendo a Igreja Católica, religião majoritária no Brasil, a postura de repudiar o aborto em quaisquer situações, defendendo, hodiernamente, que o início da vida humana, e seus respectivos direitos, se dá na concepção. Outros atores do campo religioso adentram essa arena de debates, sendo peculiar no campo evangélico o posicionamento da Igreja Universal do Reino de Deus – sem ignorarmos os questionamentos que tal denominação encontra quanto a ser classificada como instituição genuinamente evangélica. Maior abertura em relação à descriminalização [do aborto] pode ser percebida na Igreja Universal do Reino de Deus. Em entrevista à revista Veja (edição 1431), o líder da igreja manifestou publicamente um posicionamento favorável ao aborto, dependendo da situação (estupro, risco de morte materna, anomalias fetais e dificuldades econômicas), ressaltando que se tratava de opinião pessoal e não de um pronunciamento oficial (GOMES, 2009, p. 54).

Adiantamos que a Igreja Universal do Reino de Deus, em sua participação nas audiências públicas do julgamento da ADPF n. 54, naquele ato representada pelo Bispo Carlos Macedo de Oliveira, posicionou-se favoravelmente à descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. Temas críticos como esse acabam, por vezes, escapando da esfera puramente legislativa, o que, segundo especialistas, é esperado. “Em sociedades complexas, é nas instâncias jurídicas que se obtém a resolução ou acordo, mesmo temporário e tenso, acerca dos dramas e conflitos públicos” (LUNA, 2009, p. 127). Sem dúvida os temas relacionados ao aborto representam verdadeiros dramas sociais, e por isso, mais do que o desenrolar mesmo

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da ADPF 54, importa verificar a argumentação utilizada pelas partes que se introduziram no debate jurídico. Retomando o foco na questão da laicidade, verifica-se que aquela em operação no Brasil lida com uma configuração de relações que já foi chamada por Burity (2001) de “deslocamento de fronteiras e ressignificação ou redescrição de práticas”, cujo efeito vem produzir uma desprivatização do religioso. Burity aponta uma série de fatores para o surgimento desse deslocamento de fronteiras, que vão desde o chamamento estatal para que as religiões participem na implementação de programas sócias até a possibilidade de ingerências estatais na vida privada, intimidade e consciência dos indivíduos. Enfim, a linguagem religiosa reforça ou exprime demandas por direitos humanos ou por identidade nacional em contextos nos quais a linguagem da política ou da cultura secular são ainda muito frágeis ou tornaram-se suspeitas de autoritarismo e indiferença à sorte de milhares de pessoas. Em tudo isso, o que é público ou privado, propriamente político ou propriamente religioso, já não pode ser definido de forma categórica e estável (BURITY, 2001, p. 34).

Essa alternativa aos modelos conceitual-analíticos que materializam dicotomias, com viés idealista entre a Igreja e o Estado, o público e o privado, a religião e a política, soa bem interessante para a compreensão da realidade das relações citadas e dos desafios que vão adiante de nossa democracia, laicidade e compromisso com a dignidade humana. Nessas fronteiras flutuantes, fluídas talvez, Não há nem o apagamento das fronteiras entre os domínios público e privado nem inversão hegemônica (por exemplo, o espaço público sendo ocupado pela religião), mas um deslocamento expresso na crescente atividade reguladora do Estado, garantindo, por exemplo, oportunidades iguais para homens e mulheres no mercado de trabalho ou cotas nas universidades para os afros-descendentes e, por outro lado, a competição entre as diferentes religiões por maior espaço na representação política traduzida em disputas eleitorais e na frequente mobilização do sistema judiciário na resolução de questões éticas (como a manipulação genética e o aborto de fetos anencéfalos). Esta lógica pluralista permite a afirmação de identidades religiosas antes relegadas ao domínio privado, lógica esta baseada na diferença, multiplicidade de visões de mundo e na garantia de liberdade e igualdade para todos na luta por seus direitos na esfera pública (GRUMAN, 2005, p. 112).

Essas configurações também levam os agentes do campo religioso a desenvolverem “estratégias de produção de visibilidade” e “a aprender, em cada situação específica, a gramática e a semântica relacionada ao modo de organização de cada cultura pública particular” (MONTERO, 2012, p. 176). Esse conjunto tem como elemento constitutivo de visibilidade a manifestação de controvérsias públicas. Tais controvérsias são abordadas como

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objeto analisável “capaz de revelar valores, representações e demandas de uma sociedade” (GOMES et al, 2009, p. 16). “Como resultante de um processo discursivo, o mapeamento das controvérsias se torna um instrumento útil para a compreensão dessa dinâmica” (MONTERO, 2012, p. 177). O conceito de controvérsia nos permite observar as manipulações de diversas formas discursivas por diferentes agentes sem a necessidade de supor que eles estão todos disputando no interior de um mesmo campo e que manejam visões de mundo de um só campo[...] [isso] define a noção de controvérsia como uma forma de “incerteza compartilhada”, ou seja, uma série de “situações nas quais os atores estão de acordo de que discordam entre si” (MONTERO, 2012, p. 178).

O desafio dos direitos humanos Veio perpassando a discussão trazida até aqui, no mais das vezes, mesmo que implicitamente, a temática dos direitos humanos. A interface que agrega laicidade e religiões desemboca necessariamente nas garantias aos direitos civis fundamentais, e nos leva à questão quanto ao alcance e significado da laicidade para os direitos humanos. A presença pública e política das religiões vai inevitavelmente, suscitar suspeitas quanto à tentativa de impor normas morais e crenças de seus respectivos grupos, no caso brasileiro, majoritariamente cristãos, a toda sociedade. De fato, apesar de bases históricas para o desenvolvimento e de seu potencial para a educação e prática em direitos humanos, não poucas vezes as instituições religiosas foram encontradas em oposição àqueles – como se demonstra na próxima seção deste estudo. Mas a repressão não desponta como alternativa muito democrática, apesar de ser possível que a ideia agrade algumas pessoas. Nessa tensão entre as diversas consciências com direito a liberdade de prática e manifestação, para a qual este estudo se volta a fim de procurar identificar valores, comuns talvez, nos controversos discursos, torna-se necessário indagar também acerca do sentido de laicidade e de dignidade humana em sua aplicação concreta. Funciona igualmente para todos os atores sociais envolvidos? O presente estudo se debruça sobre os discursos produzidos durante o desenrolar do processo que culminou com a legalização da antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos, então, podemos dirigir a pergunta da seguinte maneira: Fetos são detentores de direitos? E fetos acometidos por anencefalia? E os direitos humanos das mulheres são efetivamente iguais aos dos homens?

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Roberto Blancarte6 pergunta-se quanto à serventia do Estado Laico às mulheres para em seguida dizer que existem duas maneiras estabelecidas para as relações entre Estado Laico e os direitos das mulheres. A primeira ligada aos princípios mesmo da laicidade, pelos quais a convivência social baseia-se na soberania popular como forma de legitimação política, e não mais em elementos religiosos. A segunda maneira corresponde ao comportamento dos indivíduos, particularmente as mulheres, frente aos valores éticos e morais de uma sociedade plural. Blancarte destaca que os direitos das mulheres são posteriores ao estabelecimento dos Estados laicos, remontando à segunda metade do século passado, sendo que os direitos ligados aos direitos sexuais e reprodutivos são ainda mais recentes. De todo modo, a laicidade estatal garante que não haja imposições morais a impor decisões, permitindo, inclusive, que mulheres de pertença religiosa decidam quanto à sua vida sexual e planejamento familiar sem recorrer aos princípios de doutrina religiosa. Entretanto, há que se ter em conta as limitações e ambiguidades presentes tanto nos sistemas governamentais modernos quanto nos sistemas de direitos humanos. Teresa Martinho Toldy (2010) vem nos lembrar de que, sob a alegação de garantir a laicidade e a aplicação dos direitos humanos, as mulheres podem ser alijadas de suas liberdades quanto à prática e manifestação de suas religiosidades. Mas a religião também é invocada frequentemente pelas mulheres, no Ocidente e no Oriente, como um lugar de inspiração para a defesa dos seus direitos. Possuirá ela, afinal, um potencial emancipatório para elas? Será possível articulá-la como uma ferramenta de libertação, passível de conciliação com uma interpretação também ela emancipatória dos direitos humanos? E serão estes, de per si, direitos das/para as mulheres? (TOLDY, 2010, p. 7).

O foco da autora ao suscitar tais riscos está no que é chamado de eurocentrismo, no atribuir estranheza, diferença indesejável, principalmente aos imigrantes muçulmanos. Para Toldy esses discursos enaltecedores da secularização e a retórica dos direitos humanos seriam indicativos dos limites da modernidade frente a outros povos e etnias, posto que terminam por relegar as mulheres ao plano privado, único lugar no qual poderiam – outra vez o exemplo francês para ilustrar – utilizar o véu islâmico. Na modernidade a convivência entre diferentes pode ser definida como o modo de ser, agir e vivenciar humanos que respeita as maneiras diferentes de ser, agir e vivenciar no mesmo espaço social. A perspectiva foi alargada, e os desafios também. As questões sobre 6

¿Para qué les sirve el Estado laico a las mujeres? Disponível em: . Acesso em: 30/03/2015.

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doutrinas religiosas pode ser que nada ou pouco importem à sociedade, mas outros temas como pena de morte, tortura, pedofilia, incesto, aborto e direitos reprodutivos precisam ser enfrentados em termos dialogais. Não se nega que a problemática seja intrincada e que clama por constantes (re)elaborações e (re)visões no que se refere às interfaces entre Estado, sociedade civil e religiões, particularmente diante dos também intrincados e (sempre?) inacabados direitos humanos e democracia. Definitivamente existem segmentos sociais, ou antes, humanos, que veem seus direitos ameaçados ou abstratizados, tanto por demandas governamentais quanto por anseios religiosos, às vezes desdobrados em fundamentalismos tacanhos. Os desafios para a aplicação plena dos direitos humanos são colocados diante de todas as pessoas e estruturas. Estados laicos ou não, religiões, laicistas, religiosos, agnóstico e ateus, são conclamados para e denunciados pelos direitos humanos. A emergência do que hoje conhecemos como direitos humanos, com a disseminação de sua semântica, e, especialmente do processo de sacralização da vida humana, ocupa o próximo capítulo.

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CAPÍTULO II

2 - A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA: ENTRE DIREITOS, LINGUAGENS E AMBIGUIDADES Ao se falar em direitos humanos fala-se em defesa da dignidade humana frente a qualquer forma de violação. Não apenas violação da integridade física ou de bens e propriedades, mas também de violações e ameaças às liberdades, mesmo as subjetivas. Tudo que se refere à defesa da dignidade humana carrega, ainda que implicitamente, a noção de que a vida humana deva ser preservada e promovida no sentido de seu pleno e satisfatório desenvolvimento, ou seja, traz consigo como fundamento algum tipo de afirmação quanto à inviolabilidade ou sacralidade da vida humana. Tal conceito, o da sacralidade da vida humana, não remete necessariamente a componentes e cosmovisões religiosas, apesar de se encontrar entre apropriações e disputas religiosas e laicas. Um panorama do desenvolvimento do conceito está contemplado neste capítulo, mas principia-se a discussão pela concepção hodierna dos direitos humanos, suas linguagens e as ambiguidades nos entrelaçamentos com a religião. Tópicos importantes para a identificação e análise da noção de sacralidade da vida humana utilizada nos discursos abordados no capítulo final desta pesquisa.

2.1 – A MODERNA CONCEPÇÃO DE DIREITOS HUMANOS A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em que se considerem seus muitos desafios e limites, assumiu caráter formativo para o estabelecimento de uma cultura de harmonia na pluralidade ao estabelecer fundamentos para a garantia da preservação e incremento da dignidade humana. “A criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) em 1948 assinalou a fundação do movimento moderno de direitos humanos” (POOLE, 2007, p. 85). “La Declaración Universal de los Derechos Humanos es sin duda uno de los documentos más decisivos e importantes que ha producido la humanidad” (ISA, 1999, p. 11). A Declaração, ainda que elaborada no período imediatamente após o término da Segunda Guerra Mundial e que carregue a repulsa e horror das barbaridades cometidas em seu

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preâmbulo, é resultado não somente de um longo processo histórico com raízes longínquas, mas também concretização de esforços objetivos para sua elaboração.

Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do ser humano comum[...] – 7

Em junho de 1941, durante a Segunda Guerra, diversas nações afirmaram sua fé na paz e esperanças para um futuro pós-guerra mediante a Declaração do Palácio de St. James8. Era dado o primeiro passo para a formação de uma organização mundial. Outras conferências se seguiram até que em 1945, na cidade de São Francisco, nos Estados Unidos da América, durante conferência que contou com representantes de 50 países, foi firmada a Carta das Nações Unidas, que impõe a tarefa de organizar e obter cooperação internacional para a promoção e estímulo ao respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais. A dignidade/valor/sacralidade da vida humana já se anuncia como elemento fundamental para a constituição de princípios e normas aptos a inculcarem e garantirem proteção a indivíduos e sociedades humanas. Assim é desde o preâmbulo da Carta das Nações Unidas: Nós, os povos das nações unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade ampla. 9

A produção da Declaração Universal dos Direitos Humanos ocorreu no intervalo entre o fim da Segunda Guerra e o recrudescimento da Guerra Fria. Isso permitiu a participação conjunta, por exemplo, dos Estados Unidos da América e da União Soviética, tornando possível algum consenso internacional, mas não eliminando completamente conflitos ideológicos. A Guerra Fria teve seu efeito no processo de redação: dois modelos ideológicos de base iluminista competiram entre si para que fossem 7

Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em . Acesso em 04/02/2014 8 Declaração do Palácio de Saint James. Disponível em: . Acesso em 24/08/2015. 9 Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Disponível em . Acesso em 24/08/2015.

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traduzidos na Declaração. O modelo capitalista ocidental, com ênfase no individualismo, na empresa e no direito de propriedade, tinha como foco principal os direitos civis e políticos. O modelo comunista soviético, com ênfase nos direitos coletivos, nos deveres individuais e na propriedade coletiva, concentrava-se nos direitos econômicos, sociais e culturais. O resultado foi uma Declaração que acatou a importância tanto da liberdade individual quanto da unidade coletiva em que vivem as pessoas. Sua formulação aparentemente desqualificada do direito de expressão (Artigo 19) agradou aos libertários; o direito a um padrão de vida adequado (Artigo 25) empolgou os socialistas (POOLE, 2007, p. 89).

Independentemente

dos

embates

constitutivos

e

apoderamentos

ideológicos

posteriores, a Declaração sem dúvidas “colocou o ser humano no centro do direito internacional. A autoridade suprema para a Declaração não é o Estado, mas as qualidades de humanidade que todos os povos do mundo têm em comum” (POOLE, 2007, p. 91). E por reconhecer essa dignidade comum a toda família humana, e pela mudança de foco do Estado para o indivíduo, é que se tem considerado a Declaração mais universal do que internacional. La idea de los derechos humanos, basada en las nociones de dignidad del ser humano y de limitación al poder del Estado, es un fenómeno que se encuentra presente, aunque con diferentes manifestaciones, prácticamente a lo largo de toda la historia. . La lucha por el reconocimiento de la dignidad de la persona es una constante del devenir histórico, desde el tímido reconocimiento de los derechos de los indios en la época de la Conquista hasta la moderna plasmación de los derechos del hombre y del ciudadano tras la Revolución Francesa (ISA, 1999, p. 17).

A Declaração é um documento que se insere na Carta Internacional de Direitos Humanos, acrescida pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ambos de 1966). Ou seja, quando se optou por uma declaração que precederia os pactos, isso não incorreu em “considerar a Declaração meramente uma declaração de princípios. Tanto interna quanto externamente, ela possui elementos coativos” (POOLE, 2007, p. 92). Internamente a Declaração faz a clássica distinção entre preâmbulo e artigos. Externamente tem-se que muitos de seus artigos constituíram obrigações, posto que utilizados como base para os pactos posteriores e replicados em constituições nacionais. A Constituição brasileira de 1988, por exemplo, estabelece: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: [...] II - prevalência dos direitos humanos;

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Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias[...]10

A Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma e faz ecoar uma preocupação com os direitos dos indivíduos, ou seja, com aquilo que faz e o que cabe ao indivíduo em virtude de sua condição humana. A Declaração foi redigida com o propósito de resumir as necessidades essenciais de qualquer e de todas as pessoas, ao menos foi o que se pretendeu, independentemente de condições sociais, de gênero, cultura ou religião. Tais necessidades são divididas em direitos civis e políticos e direitos sociais e econômicos, também chamados de direitos de primeira e de segunda geração. Os direitos de primeira geração apontam prioritariamente para a autonomia dos sujeitos, para o direito de direcionar, planejar e conduzir suas próprias vidas, como, por exemplo, liberdade para contrair matrimônio (Artigo 16), direito à propriedade (Artigo 17) e direito à livre opinião e expressão (Artigo 19), ou ainda liberdade de religião (Artigo 18), garantidora da plena liberdade e expressão da fé, ao mesmo tempo em que garante que uma crença em particular não seja imposta sobre todo o conjunto da sociedade. Esses direitos por vezes se desdobram em garantias de não se impedir o sujeito de realizar algo; são chamados de direitos negativos. “Para proteger os direitos negativos, o Estado deve evitar interferências na vida do indivíduo” (POOLE, 2007, p. 94). Os direitos de segunda geração, grosso modo, são aqueles que se referem ao bem-estar dos indivíduos, à capacidade de prover e sustentar a si mesmos. Nesta seara incluem-se o direito ao trabalho (Artigo 23) e à educação (Artigo 26). São classificados como direitos positivos, uma vez que sua operacionalidade se dá no sentido de habilitar os sujeitos a possuírem algo, como padrão de vida digno (Artigo 25). “Para proteger os direitos positivos, o Estado deve fazer ou dar algo para melhorar a vida do indivíduo” (POOLE, 2007, p. 94). 10

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível . Acesso em 28/08/2015

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São identificados ainda direitos de terceira e quarta geração. Os direitos de terceira geração, direitos coletivos e difusos, assumem a fraternidade como valor humano a ser promovido, posto que rompem com possíveis vieses individualizantes com a entrada e consideração de outros valores como o ecológico, no respeito à natureza e seus recursos, assim como na instituição do princípio da responsabilidade no uso de novas tecnologias, “así como el Principio de precaución, que justifica la existencia de una legislación restrictiva sobre la biotecnología para que la sociedad sea capaz de mantener el control sobre ellas” (PUERTO, 2000, p. 130). Em fins do século XX, as mudanças ocorridas na economia de mercado, diante do avanço dos processos globalizadores, somadas à crise do Estado de Bem-Estar, provocaram o surgimento da chamada “terceira geração” de direitos, cujos titulares, diferentemente das etapas anteriores, já não são os indivíduos, mas grupos humanos ou categorias de pessoas. Surgem os direitos da família (crianças e adolescentes); de algumas categorias sociais e econômicas vulneráveis, como os consumidores; os direitos da etnia; da nação etc. Nesse rol de novos direitos, podem ser identificados a autodeterminação dos povos, o direito à paz, a um ambiente ecologicamente equilibrado, ao desenvolvimento social e econômico etc. (FEITOSA, 2006, p. 37).

Com o surgimento de novas tecnologias de informação e biológicas, e com os desafios de dimensões globais como o aquecimento, as epidemias e o terrorismo, emergiram também direitos a ele relacionados. Fala-se, na atualidade, em uma quarta geração de novíssimos direitos. Entre os direitos inerentes a esse novo estágio de construção das garantias legais estariam o patrimônio genético, a preservação dos organismos naturais, a regulação da transgenia, o livre acesso às tecnologias da informação etc. Pelo alargamento (e quase diluição) da matéria objeto de proteção, percebe-se que estamos diante de direitos que extrapolam a esfera individual, de grupos, categorias ou nações. Trata-se de direitos de dimensão planetária que se vinculam à própria sobrevivência da espécie humana (FEITOSA, 2006, p. 37).

A constatação é de que “chegou-se enfim ao reconhecimento de que à própria humanidade, como um todo solidário, devem ser reconhecidos vários direitos: [da] preservação de sítios e monumentos[...] à preservação do equilíbrio ecológico do planeta” (COMPARATO, 2008, p. 57). Toda essa ampla gama de princípios e normas relacionados aos direitos humanos tem o inegável objetivo de impor obrigações aos Estados, entretanto, a redação da Declaração abre espaço para novas concepções e linguagens que visam “promover os direitos e não limitar seu foco ao comportamento dos Estados” (POOLE, 2007, p. 96). Sem dúvida o reconhecimento oficial de direitos humanos, pela autoridade política competente, dá muito mais segurança às relações sociais. Ele exerce,

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também, uma função pedagógica no seio da comunidade, no sentido de fazer prevalecer os grandes valores éticos, os quais, sem esse reconhecimento oficial, tardariam a se impor na vida coletiva. Mas nada assegura que falsos direitos humanos, isto é, certos privilégios da minoria dominante, não sejam também inseridos na Constituição, ou consagrados em convenção internacional, sob a denominação de direitos fundamentais. O que nos conduz, necessariamente, à busca de um fundamento mais profundo do que o simples reconhecimento estatal para a vigência desses direitos (COMPARATO, 2008, p. 59).

Nesse sentido observa-se que já no Preâmbulo a Declaração explicita o propósito de promover

“o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a

observância desses direitos e liberdades”, mediante a reafirmação da “fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano” como “o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade[...] se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades”. A promoção dos direitos humanos não envolve apenas a criação de dispositivos legais no plano nacional e internacional. Os princípios que essas leis defendem deveriam tornar-se parte integrante das culturas e sociedades em geral. As pessoas deveriam ter consciência de seus direitos e a linguagem dos direitos deveria informar como eles têm relação um com o outro, com suas comunidades e com seu país (POOLE, 2007, p. 98).

Fábio Konder Comparato (2008) sentencia ser irrecusável a busca por um fundamento para a vigência plena dos direitos humanos que se encontre além das estruturas estatais. Tal fundamento seria possível por intermédio de uma “consciência ética coletiva” (p. 60) quanto às exigências impostas pela dignidade humana em si mesma. Isso necessariamente suscita a questão da pretensão de universalidade da Declaração. E ainda que pairem sobre ela críticas concretas em relação à representatividade global (SANTOS, 1997; LUCAS, 2009) quando de sua redação e das opções e omissões adotadas, pode-se apontar que há êxito e potencialidade para uma politica universal de direitos humanos. E isso se dá “devido a duas características importantes: a ênfase sobre a inseparabilidade de todos os direitos e a forma simples com que foram enunciados” (POOLE, 2007, p. 99). Ou seja, o entranhamento entre direitos civis e políticos com os direitos culturais e econômicos, e os termos não complexos adotados para a redação da Declaração, substanciam muito bem as necessidades básicas dos seres humanos, independentemente das circunstâncias nas quais se inserem. Agregamos nesse ponto em particular a questão da afirmação das necessidades básicas humanas à pluralidade de linguagens nesse campo, ou seja, da existência de gramáticas,

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assim, no plural, dos direitos humanos, pelas quais a plenitude das peculiaridades regionais e culturais, desponta com o potencial necessário para formar uma ética global para os direitos humanos, para além da própria Declaração. “A hegemonia dos direitos humanos como linguagem de dignidade humana é hoje incontestável” (SANTOS, CHAUI, 2014, p. 42). Faz-se notar também que “a linguagem dos direitos humanos foi exigida dos Estados e de seus líderes” (POOLE, 2007, p. 101). E assim governantes autoritários se veem enfrentados mediante o uso das linguagens dos direitos humanos, re-formuladas para refletir as lutas pela aplicação de direitos e da dignidade humana que se dá em diferentes níveis, regiões e culturas. Relevante, portanto, extrairmos o conceito essencial da sacralidade, ou dignidade humana presente na Declaração. Relevante por ser norteador de princípios e normas, importante por ser ao mesmo tempo denso e fluído em seus apoderamentos e discursos. Uma análise de toda a Declaração foge aos limites desta pesquisa, por isso nos deteremos no Preâmbulo e nos três primeiros artigos, nos quais repousa a base fundamental para o conceito em estudo.

Uma análise do conceito essencial da sacralidade humana na Declaração Universal dos Direitos Humanos Preâmbulo Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo, Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum, Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compelido, como último recurso, à rebelião contra tirania e a opressão, Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as nações, Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre homens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla, Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos humanos e liberdades fundamentais e a observância desses direitos e liberdades,

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Considerando que uma compreensão comum desses direitos e liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse compromisso, A Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Diretos Humanos como o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o respeito a esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos próprios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua jurisdição.

O Preâmbulo da Declaração em sua metade final vem declarar o compromisso e estabelecer metas para a promoção dos direitos humanos, que, como antes citado, deveria extrapolar a esfera normativa para se agregar às culturas e sociedades, conduzindo as pessoas não apenas à consciência de seus direitos, mas também da responsabilidade em suas relações. Essa potencialidade foi recebida com entusiasmo, mas não sem críticas, quanto à possibilidade de os direitos humanos virem a se tornar a nova religião civil da humanidade (PINHEIRO, 2012). Nos três primeiros parágrafos desponta a base para a noção moderna de direitos humanos. A dignidade inerente a todos os seres humanos é declarada como sendo a base para a paz, justiça e liberdade. Um mundo onde impere liberdade de palavra e de crença, e a liberdade de não viver assolado pelo temor e pelas necessidades são apontados como a grande aspiração humana. A concepção de que os seres humanos merecem respeito pelo ideal de humanidade e dignidade é um bastião que tem levado os militantes dos Direitos Humanos a lutarem contra todas as formas de discriminação, preconceito, desigualdades, injustiças sociais, políticas e econômicas, violência física ou psicológica e impunidades de toda a sorte (SILVA, 2010, p. 80).

É importante destacar que o valor intrínseco do ser humano, ou sacralidade da vida humana seja colocada pelo Preâmbulo como a base para todo o desenvolvimento de direitos que seguem, “el fundamento de los derechos humanos consagrados en la Declaración no va a ser otro que la dignidad de la persona humana” (ISA, 1999, p. 43). Convém igualmente observar que o conceito de sacralidade da pessoa humana, não obstante sua importância para a implantação de políticas, de leis, de ações educativas e de reprodução cultural em relação à moderna concepção de direitos humanos, não está livre de embates e perguntas importantes. Os atritos e indagações como aqueles que querem estabelecer ou entender a condição do feto humano em reivindicações tais como a do aborto eletivo, ou as reivindicações quanto o direito à morte digna na árida seara do problema da eutanásia, tópicos com abissal

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profundidade de elementos vários e desdobramentos a serem detidamente considerados, não foram suportados, intencionalmente, pelos redatores da Declaração. No entanto, o princípio da dignidade humana, com seus desdobramentos filosóficos e jurídicos, é o alicerce sobre o qual se constrói o edifício da Declaração. É a base de onde podem derivar os postulados de liberdade, igualdade e fraternidade (ISA, 1999, p. 43), princípios essenciais suscitados na Declaração que são também identificados como “princípios axiológicos supremos” correspondentes à “tríade da tradição republicana francesa[...] liberdade, igualdade e fraternidade” (COMPARATO, 2008, p. 65). O princípio da liberdade está relacionado à autonomia dos sujeitos. Porém, desponta no exercício desse direito aquela dicotomia apontada nos processos de secularização da sociedade com a respectiva concretização da laicidade e os embates advindos da pluralidade, qual seja: o estabelecimento de liberdades privadas e de liberdades públicas. Confrontam-se, então os princípios da autonomia com os da heterenomia, a liberdade do indivíduo em conflito com os interesses da sociedade. A igualdade anunciada na Declaração e linguagens outros de direitos humanos remete inevitavelmente à equidade que deve prevalecer nas relações entre os indivíduos, e à igualdade individual perante a lei. Mas que garantias existem de fato quanto à perspectiva ampla e igualitária na formulação das leis? Relembrando a célebre frase do escritor Anatole France, a lei em sua majestade proíbe tanto ricos quanto pobres de viver embaixo de pontes, de mendigar nas ruas e de roubar o pão11. É certo que pontos acerca da filosofia e teoria da justiça, do direito e da política, e do entroncamento destas com a problemática da moral, não são objeto deste trabalho, entretanto, não se poderia deixar de ao menos suscitar a problemática da igualdade plena entre homens e mulheres na esfera pública e no campo da efetivação dos direitos humanos, a partir de condições etárias, sociais, econômicas, religiosas, etc. O princípio da fraternidade, ou solidariedade, por sua vez “prende-se à ideia de responsabilidade de todos pelas carências ou necessidades de qualquer indivíduo ou grupo social” (COMPARATO, 2008, p. 65). Por este princípio são reconhecidos os direitos sociais, que reclamam por políticas públicas que garantam amparo e proteção aos desprivilegiados de qualquer natureza. O Preâmbulo deixa transparecer, assim como os três artigos analisados a seguir, que mesmo tendo sido elaborada por blocos sócio-políticos, econômicos, religiosos e ideológicos

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FRANCE, Anatole. La azucena roja. Kindle edition. Pittsburgh: Centaur Editions, 2012.

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distintos ela foi uma conquista para a humanidade, de fato podemos enfatizar que “el texto de la Declaración revela um resurgir de la tesis de que hay principios fundamentales, por encima de las discrepancias ideológicas, a los cuales deben orientarse los ordenamientos jurídico positivos de cada Estado” (ISA, 1999, p. 37).

Artigo 1º Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

“O Artigo 1º é a pedra angular de toda a Declaração. Repercute a filosofia iluminista do Ocidente sobre a natureza dos direitos e estabelece o conceito fundamental de humanidade que constitui a base dos direitos humanos” (POOLE, 2007, p. 105). Ou seria então que Como nova religião sem Deus, os direitos humanos servem aos propósitos do Ocidente, que se aproveita de um traço fundamental como forma: o indivíduo, o “homem dos direitos humanos”, como homo juridicus que surge do homem imago Dei, da base antropológica do Cristianismo (FONSECA, 2014, p. 327).

Esse embate entre bases iluministas e bases cristãs para o fundamento da dignidade e igualdade da raça humana talvez possa ser entendido antes como processo colaborativo, como se pretende mais adiante ao tratarmos especificamente do conceito de sacralidade da vida humana. Entretanto, por ora, para a análise da dignidade humana na Declaração é suficiente sublinhar que direitos humanos fundamentais existem e podem ser reclamados em virtude da condição de ser humano. Não condição social, econômica ou cultural, mas tão somente sua condição antropológica se constitui de valor inato a ser preservado e promovido não apenas por declarações de princípios éticos, mas também normativamente. Este Artigo deixa transparecer a admissão de valores a partir das tradições filosóficas e religiosas ocidentais, apesar de ter-se optado pela exclusão de referências a Deus e à natureza, propostas durante o curso redacional (POOLE, 2007, p. 105), fica bem marcado que as pessoas possuem direitos tão somente por pertencerem à espécie humana. Dessa forma, ao declarar a liberdade e igualdade como direitos de todos e de cada ser humano, a Declaração procura tão somente fazer refletir pela norma jurídica uma condição que já é inerente aos seres humanos. “A lei dos direitos humanos preocupa-se com os limites opostos ao exercício dos direitos, e não com a existência em si dos direitos” (POLLE, 2007, p. 105). Mesmo que a base ideológica dos direitos humanos seja alvo de permanentes debates e inquirições, extrai-se que a autoridade para a doutrina dos direitos humanos, as razões pelas

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quais precisam e devem ser respeitados tais direitos, é a própria condição humana, sua dignidade inata, sua razão, consciência e sacralidade a serem defendidas. Relevante sublinhar nesta análise que a linguagem em termos de razões públicas, seculares e laicas pela qual se redigiu a Declaração não deixa transparecer os apelos tidos no processo de elaboração por referências transcendentais. Este mismo planteamiento del gobierno chino, en segundo lugar, se aplicó al intento por parte de algunas delegaciones de incluir alguna referencia en torno al origen divino de los derechos humanos, tal y como figuraba en las Declaraciones del siglo XVIII. La propuesta más insistente vino de la mano de Brasil, apoyado en este punto por Argentina y por Charles Malik, el representante del Líbano. El Gobierno brasileño propuso que en el artículo 1 de la Declaración se insertase la expresión «creados a imagen y semejanza de Dios». Finalmente, ante la certeza de que dicha proposición no tenía muchos visos de prosperar, Brasil optó por su retirada. La Unión Soviética, como justificación de su negativa a que se insertase en la Declaración cualquier mención a la divinidad, señaló que es un hecho que muchos hombres no creen en Dios y que la Declaración debe dirigirse al conjunto de la humanidade. Muchas delegaciones criticaron esta secularización de la Declaración Universal, pero hay que admitir, con René Cassin, que “la Declaración no hubiera podido ser universal si se hubiera querido imponer una única doctrina oficial” Asistimos así a la defintiva “desacralización” de los derechos humanos; em un mundo en el cual no todos creen en el mismo Dios, y muchos ni siquiera creen en él, toda invocación divina desaparece. Se trata de un documento humano, hecho por los hombres y para ellos (ISA, 1999, p. 46). Artigo 2º 1. Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.

O Artigo 2º vem firmar o conceito de igualdade introduzido no Artigo anterior. Traz princípios gerais relacionados a seu contexto histórico mais próximo, no qual pessoas foram dizimadas durante a Segunda Guerra Mundial em virtude de suas características identitárias particulares, como religião, etnia, nacionalidade, posição política, condição física (deficientes) e sexualidade. “Os redatores da Declaração quiseram ressaltar a importância da igualdade como base de todos os direitos humanos, aplicável a qualquer pessoa[...] um direito particular em si mesmo” (POOLE, 2007, p. 107). Na lei dos direitos humanos, igualdade significa que as pessoas, mesmo sendo muito diferentes, têm valor igual. Uma sociedade baseada nos direitos humanos é aquela em que as diferenças entre os indivíduos não querem dizer que fazem jus a direitos diferentes. Não se deve fazer qualquer “distinção”

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entre pessoas com base em aspectos arbitrários de sua identidade. Em outras palavras, quando se tomam decisões que afetam os direitos das pessoas, não se deve fazer escolhas entre determinados grupos da sociedade, impedindo que alguns outros tenham as mesmas oportunidades que os demais. Deve haver “oportunidade igual”. (POOLE, 2007, p. 107).

Não importa quão plurais e heterogêneas sejam as sociedades. Os aspectos particulares que evidenciam a diversidade sejam eles o gênero, a religião, a posição política, ou a identidade de grupo não podem resultar em distinções no acesso aos direitos que devem ser, e são, comuns a todos os seres humanos. Nenhuma distinção quanto a isso se justifica. Por outro lado, é patente que existem razões para algum tipo de distinção positiva, por exemplo, na condição da criança e do adolescente, cujo desenvolvimento ainda não se completou (daí restrições quanto ao consumo de álcool, direção de veículos, casamento, voto, etc.). Porém tais particularidades ainda têm como foco a proteção dos indivíduos em desenvolvimento, não o cerceamento.

Artigo 3º Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. O Artigo 3º define as três principais áreas dos direitos no campo da integridade pessoal (o direito físico sobre o próprio corpo). Essa é área clássica onde o Estado deve assegurar que ele e outras entidades não interfiram no indivíduo; é o ponto de partida para a proteção da dignidade e dos direitos individuais num sentido prático. (POOLE, 2007, p. 109).

Direito à vida é o direito que o indivíduo tem de não ser morto e de ter os meios necessários para manter-se vivo. O direito à liberdade é mais uma vez anunciado. Outros Artigos na Declaração definem algumas dessas liberdades, como as já mencionadas liberdades de opinião e expressão (Artigo 19) e a liberdade de religião (Artigo 18). A restrição à liberdade, nas suas excepcionalidades legais, vem indicada no Artigo 9º: “Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”. O direito à segurança refere-se ao direito de não sofrer qualquer tipo de agravo ou interferência física. Encontra-se no direito à vida o mais fundamental dos direitos. Pode-se indagar, então, o porquê de na Declaração o direito à vida ter sido redigido de forma tão breve e simples, e ainda dividindo o Artigo com os direitos à liberdade e à segurança pessoal. De fato algumas escolhas foram feitas durante o processo redacional, e documentos posteriores procuraram

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desenvolver os elementos que estão implícitos neste Artigo 3º, como, a título de exemplo, o Artigo 6º do Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos12. Possivelmente esperava-se mais na definição dos componentes que compõe o direito à vida. “No entanto, as tentativas de definir ‘vida’ e examinar se é possível limitá-la envolvem complexas questões éticas e religiosas que não são passíveis de uma solução simples e direta” (POOLE, 2007, p. 110). A dimensão vertical envolve a proteção da vida nas diferentes fases do desenvolvimento humano (da fecundação à morte). Algumas definições sobre o direito à vida refletem essa dimensão, pois esse direito consistiria no “direito a não interrupção dos processos vitais do titular mediante intervenção de terceiros e, principalmente, das autoridades estatais” (PTERKE, 2010, p. 223).

Com efeito, a opção adotada foi atribuir uma função propedêutica ao enunciado do direito à vida. E isso após serem discutidos, sobretudo, três aspectos ligados à integridade do indivíduo: “la pena de muerte, el aborto y la inclusión de elementos de carácter material en la definición del derecho a la vida” (ISA, 1999, p. 56). Com respeito à espinhosa questão do aborto, tema de interesse imediato desta pesquisa, na qual se misturam aspectos éticos, religiosos e jurídicos, a Declaração guardou silêncio. Ante a ausência de consenso quanto à inclusão da proibição expressa do aborto no Artigo 3º, as delegações que a defendiam, tiveram que desistir de seu intento (ISA, 1999, p. 57). A definição de vida, seu início e término continuam enfrentando questionamentos complexos e não consensuais na seara dos direitos humanos. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), de 196913, por exemplo, ratificada pelo Brasil em 1992 (Decreto n. 678), em seu Artigo 4º estabelece que a vida deve ser protegida, em geral, desde o momento da concepção: “1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção”. O acréscimo da expressão, em geral, vem permitir que exceções sejam normatizadas. De todo modo, o que o Artigo vem reafirmar é que ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Como em outras questões do direito, muitos pontos afirmados pelos direitos humanos envolvem mais de um direito, esse é o caso da gravidez.

12

Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos. Disponível em: . Acesso em 21/08/2015. 13 Convenção Americana de Direitos Humanos. Disponível em: . Acesso em 21/08/2015

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Defensores “pró-vida”, para embasar sua tentativa de proibir o aborto, invocam o direito de “manifestar (sua) religião do Artigo 18, bem como o Artigo 3º. Os ativistas “pró-escolha” citam o direito das mulheres de não serem sujeitas à “interferência em (sua) vida privada”, reiterando que o Artigo 3º não abrange o feto ou, de qualquer modo, os direitos do embrião não podem ser antepostos aos direitos da mãe (POOLE, 2007, p. 110).

Seguem-se atualmente discussões quanto à indisponibilidade da vida e obrigações estatais quanto à sua garantia. O tema do aborto voluntário também prossegue sem conclusões em diversos Estados14, nos quais borbulham ponderações quanto ao direito à vida do feto e direito à autonomia da mulher na seara da reprodução humana. As diversas soluções possíveis, que vão desde a criminalização quase que sem exceção do aborto, passando pelo critério temporal para a sua licitude (alguns meses de gestação, em geral três, quando se considera que não há viabilidade fora do útero), mostram a dificuldade de se fixarem deveres universais de proteção ao Estado[...] Tais perspectivas mostram a complexidade dos debates sobre a vida no futuro. A proteção internacional do direito à vida deve aproveitar a riqueza das experimentações nacionais, para aprofundar os argumentos e contrastálos com maior rigor e precisão. (PTERKE, 2010, p. 252).

Outros aspectos relativos ao direito à vida incluem situações de proteção à própria vida ou de terceiros, condição de guerra, supressão de motins, etc., nas quais imperam pontuais exceções. O que se deve destacar é que a linguagem dos direitos humanos é utilizada amplamente por grupos que se colocam em posições de antagonismo perante questões várias, das quais não escapa a problemática do aborto de fetos anencéfalos. Deter-se-á então nessa abordagem que visa apresentar a temática das múltiplas linguagens possíveis dos direitos humanos, sublinhando o papel ambíguo da religião, que com seus precedentes históricos e concretizações modernas tanto coopera para o desenvolvimento quanto para as dificuldades no sentido de uma cultura plenamente preenchida pela defesa da sacralidade da vida humana.

2.2 – A GRAMÁTICA DOS DIREITOS HUMANOS E A QUESTÃO DA RELIGIÃO A necessidade de desenvolver a educação em direitos humanos é ressaltada em inúmeras resoluções adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas, pelo Conselho Econômico e Social (ECOSOC), pela Comissão de Direitos 14

Como é o caso do México, do Brasil, do Chile e do Paraguai. Salientando-se, ainda, que países que contam com leis liberais em relação ao aborto continuam enfrentando intensos debates e reivindicações para a revisão de tais legislações, como ocorre nos Estados Unidos da América. Vide o mapa interativo produzido pela Pew Research Center, disponível em < http://www.pewresearch.org/interactives/global-abortion/>. Acesso em 23/12/2015.

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Humanos, pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e por outros organismos e agências especializadas da Organização das Nações Unidas (ONU). O documento final da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, junho de 1993) destacou a importância crucial da educação, da formação e da informação pública sobre direitos humanos e recomendou a proclamação de uma década especial das Nações Unidas. De acordo com essa sugestão, a Assembleia Geral declarou a Década das Nações Unidas de Educação para os Direitos Humanos (19952004). O Plano de Ação para a Década enfatizou a preparação de instrumentos de ensino de direitos humanos destinados aos diversos níveis de educação e grupos-alvo (SYMONIDES, 2003, p. 13).

Anteriormente mencionou-se que o propósito dos redatores da Declaração foi também o de promover a educação em direitos humanos. Talvez a melhor forma de se garantir o livre gozo e exercício dos direitos humanos seja tendo-os como elemento cultural em toda e qualquer sociedade. Chega-se então à região da pluralidade. Pluralidade tida como conceito e princípio presente no campo dos direitos humanos, garantindo-se, inclusive, o direito de autodeterminação não apenas de indivíduos, mas dos povos igualmente. Consta do Artigo 1º, tanto no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, como no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, a seguinte afirmação: "Todos os povos têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente seu estatuto político e asseguram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”. A pluralidade dos povos, e nos povos, naturalmente há de produzir diferentes linguagens e gramáticas de direitos humanos, contextualizando e avançando por sobre as lacunas deixadas pelos redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A diversidade na qual se almeja a universalidade dos direitos humanos é encarada como desafio pelos organismos internacionais de direitos humanos. Manuais são produzidos procurando “mostrar a universalidade dos direitos e da dignidade humana, apontando ao mesmo tempo para a dificuldade de se harmonizarem esses conceitos no contexto da diversidade cultural criadora” (SYMONIDES, 2003, p. 18). Não só isso. Em um mundo composto por Estados-nações livres e soberanos, os esforços para que sejam reconhecidos e respeitados os direitos humanos nem sempre resultaram em processos pacíficos. Nessa dinâmica retomamos os conceitos anteriormente visitados de secularização e laicidade – sublinhando que o desenvolvimento da secularização e o estabelecimento da laicidade estatal ocorreram, sobretudo, em Estados modernos e paralelamente aos processos de democratização – para destacar que se extrai da Declaração

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um assentamento que aponta para a interdependência fortalecedora existente entre democracia e direitos humanos. Não há dúvida de que somente a democracia pode garantir os direitos humanos na realidade. Trata-se do sistema político que melhor permite o livre exercício dos direitos individuais. Entretanto, existe um outro (sic) lado da relação entre esses fenômenos: a democracia não se firma sem o respeito pelos direitos humanos[...] os direitos humanos constituem parte intrínseca da democracia, porque a garantia de liberdades básicas é condição essencial para que a voz do povo seja efetiva nos assuntos públicos e para que seja garantido o controle popular sobre o governo (SYMONIDES, 2013, p. 25).

Desta necessidade recíproca entre democracia e direitos humanos emergem desafios. Não se pretende enveredar pelos questionamentos que se podem fazer à própria democracia, mas ao menos uma questão crucial pede reflexão: toda sociedade democrática garante efetivamente que todas as pessoas tenham plena posse e gozo de todos os direitos humanos? A democracia é tida como um objetivo em construção, ideal a ser alcançado, como os direitos humanos. E acreditamos que seu desenvolvimento recíproco depende da disposição em se escutar às muitas vozes que se manifestam com cada vez maior interação entre povos e culturas geograficamente distantes, mas tão próximos quanto as modernas tecnologias podem torná-los, e entre os diversos grupos que compõem uma mesma sociedade, não por mera tolerância, mas por valores éticos e equitativos amadurecidos que contemplem a atual diversidade. Não é, evidentemente, o caso de que o mundo tenha se tornado pluralista de repente[...] mas que a consciência direta de outras culturas, tradições, costumes, moralidades, ordens sociais e religiões, tenham sido trazidos a nós pelos modernos meios de comunicação, transporte, urbanização e imigração, que fizeram o mundo pluralista mais presente para nós (STACKHOUSE, 2005, p. 31).

E

assim,

nas

modernas

sociedades

plurais,

democráticas,

multiculturais,

multissemânticas, permanece um apelo pela tolerância. Mas considera-se que tolerância não seja, atualmente, atitude-conceito suficiente para o estabelecimento de genuíno e produtivo diálogo entre as linguagens e gramáticas pertinentes ao caleidoscópio de mundividências presentes em nossos dias, incluindo-se a dos direitos humanos, apesar do respeito e esforço pela tolerância ao longo da história, e de seu reconhecimento no âmbito dos direitos humanos. A Declaração de Princípios sobre a Tolerância, prevista em resolução da Assembléia Geral, foi adotada pela Conferência Geral da Unesco na 28ª sessão em 1995. Seu artigo 1º esclarece que: Tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço pela rica diversidade das culturas do nosso mundo, nossas formas de expressão e modos de sermos humanos[...] Tolerância é a harmonia na diferença. Não é apenas um dever moral, mas também uma exigência política e jurídica (SYMONIDES, 2013, p. 39).

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Entretanto, tolerar nas já citadas palavras de Rabaud Saint-Etienne, pode não significar desfrute pleno de liberdade, e não implica obrigatoriamente em equidade nos relacionamentos. A igualdade valorativa de todos os seres humanos, anunciada pela Declaração prevê, obviamente, o direito à diferença, o direito de não ser obrigado a conformar-se a quaisquer preceitos filosóficos, políticos, religiosos, enfim, ideológicos em geral. E nessa busca por igualdade nas diferenças o estandarte da tolerância pode apenas mascarar o esnobismo de quem suporta sem se importar de fato. Tolerar é submeter o Outro às minhas próprias regras e leis rigidamente estabelecidas. É considerar que eu o aceito sob condições impostas minimamente aos meus princípios, preceitos éticos, políticos, sociais e culturais, ou seja, tolerar é impor condições ao estranho com quem me deparo. Não há uma tolerância incondicionalmente. A tolerância incondicional é algo desejável, porém, impossível. Nenhuma sociedade, nenhum grupo social ou comunidade, nenhum ser humano em lugar algum do mundo pode ser totalmente tolerante para com seu “irmão em humanidade”. Não somos capazes de aceitar incondicionalmente o outro, porque, em um dado momento, seremos mais tolerantes com determinados indivíduos ou grupos de indivíduos do que com outros. Essa é a incondicional contingência do sujeito no mundo (SILVA, 2010, p. 90).

Mário Sérgio Cortella, em seu livro-diálogo com o educador francês e especialista em psicologia moral, Yves de La Taille, faz a seguinte consideração acerca da tolerância: [...]eu me rebelo porque acho que a palavra tolerância produz quase um sequestro semântico, pois quando alguém a usa está querendo dizer que suporta o outro. Afinal, tolerar é suportar[...] Eu o suporto, aguento. Você não é como eu, aceito isso, mas continuo sendo eu mesmo. Não quero ter contato, só respeito a sua individualidade. Em vez de utilizar a palavra tolerância, tenho preferido outra: acolhimento. Há uma diferença entre tolerar que você não tenha as mesmas convicções que eu – sejam religiosas, políticas ou outras – e acolher suas convicções. Porque acolher significa que eu o recebo na qualidade de alguém como eu (CORTELLA; LA TAILLE, 2007, p. 29).

No âmbito das sociedades democráticas não deveria haver qualquer cerceamento de direitos. Não deveriam existir tentativas de silenciar sumariamente o outro, que pensa e fala diferente, seja nas esferas públicas, civis, jurídicas ou políticas nas quais se dê o diálogo. Tampouco deveria se adotar a mera condescendência em permitir que alguém fale, pouco importando o quê se fala, se não há interesse verdadeiro na escuta. Assim, as gramáticas de direitos humanos precisam ter espaço de acolhimento para sua manifestação. A igualdade que conduza à equidade entre diferentes precisa da manutenção saudável dessas diferenças. Talvez a única exigência que se possa fazer é a de que toda linguagem seja expressa, ou ao menos traduzida, em termos de razão pública, para

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não se incorrer no perigo de imposições ideológicas e morais particulares e no excesso de ruídos que poderiam macular a comunicação. Nesse entroncamento entre as diferentes perspectivas e objetivos é que a pretensão de universalidade dos direitos humanos não pode avançar sem encarar dialogicamente o desafio e sem responder substancialmente às críticas. “A cultura vai se tornar a linha divisória do debate sobre a liberdade e os direitos humanos. Todos nós estamos familiarizados com o argumento cultural. Ele rejeita a noção de direitos humanos inalienáveis com base no fato de que essa noção apenas reflete uma perspectiva ocidental bastante provinciana”[...] [a quem considere] que o relativismo cultural no tocante aos direitos humanos e à democracia é autoderrotado, provinciano e simplesmente equivocado. (SYMONIDES, 2003, p. 55).

Tendo em conta a ampla diversidade de culturas, modos, costumes, interesses, e perspectivas, estariam os direitos humanos realmente destinados ao insucesso, a tatear às escuras e caminhar em tropeções ao adentrar o nevoeiro do relativismo cultural? A Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento em seu relatório “Nossa Diversidade Criativa” concluiu que a dificuldade lógica e ética do relativismo é que ele também deve apoiar o absolutismo e o dogmatismo. O relativismo cognitivo não faz sentido, o relativismo moral é trágico. O estabelecimento de normas absolutas é condição sine qua non para um discurso racional a respeito de um código de conduta ou de comportamento (SYMONIDES, 2003, p. 55).

A gramática é possível apenas quando há linguagem estruturada. O mesmo se dá em relação aos direitos humanos. A profusão de gramáticas não implica em confusão ou negação, antes aponta para uma linguagem concreta. Pode-se estabelecer comunicação por diferentes vozes, pois a fonte do diálogo é comum: a sacralidade da vida humana. E ao menos neste ponto é preciso haver universalidade, ou não haveria base alguma para estruturar sistemas e reclamos relativos à dignidade humana e seus direitos fundamentais. A universalidade dos direitos humanos foi alvo de discussões em conferências internacionais sobre o tema. Pontua-se que nas diversas manifestações havidas prevalece a rejeição ao relativismo cultural quanto à essência dos direitos humanos, reafirmando-se sua universalidade, e a afirmação da pluralidade e, portanto, da diversidade de modelos para a promoção dos direitos humanos. Na Declaração de Túnis, adotada em novembro de 1992, os Estados africanos destacaram que “a natureza universal dos direitos humanos está fora de questão”, acrescentando, entretanto, que “nenhum modelo preestabelecido pode ser apresentado na esfera universal, uma vez que as realidades históricas e culturais de cada nação e as tradições, os padrões e valores de cada povo não podem ser desconsiderados”. Os Estados asiáticos, na Declaração de Bangladesh, de abril de 1993, afirmaram que: Embora os direitos humanos sejam universais por natureza,

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eles devem ser considerados no contexto de um processo dinâmico e evolutivo de estabelecimento de normas internacionais, tendo em vista a importância das particularidades nacionais e regionais e dos vários cenários históricos, culturais e religiosos (SYMONIDES, 2003, p. 56).

A Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993, em Viena, culminou com a redação da Declaração e Programação de Ação de Viena 15, que visa afirmar o caráter universal dos direitos humanos em seu Artigo 1º: A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o compromisso solene de todos os Estados de promover o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todas as pessoas, em conformidade com Carta das Nações Unidas, outros instrumentos relacionados aos direitos humanos e o direito internacional. A natureza universal desses direitos e liberdades está fora de questão. Nesse contexto, o fortalecimento da cooperação internacional na área dos direitos humanos é essencial à plena realização dos propósitos das Nações

Unidas. A afirmação de universalidade dos direitos humanos, com a consequente rejeição do relativismo cultural, fez também parte do discurso de delegações da África, Ásia e Oriente Médio. A delegação da Tunísia, reconhecendo os valores universais dos direitos humanos, qualificou-os como uma herança comum de diferentes religiões e culturas da humanidade. Como observou o Kuwait, todos os humanos são iguais em sua humanidade. [...]a Indonésia afirmou: “nós não viemos à Viena ([...]) para defender um conceito alternativo de direitos humanos, baseado em alguma noção nebulosa de ‘relativismo cultural’, como falsamente acreditam alguns”. Posição semelhante tomou o Irã: Os direitos humanos, sem sombra de dúvida, são universais. Eles são inerentes aos seres humanos e foram doados a eles pelo Criador único. Sendo assim, eles não podem estar sujeitos ao relativismo cultural. No entanto, a riqueza e a experiência de todas as culturas, particularmente daquelas baseadas em religiões divinas ([...]) serviriam, apenas, para enriquecer o conceito de direitos humanos. Já a delegação do Vietnã observou que: Os direitos humanos são, ao mesmo tempo, um padrão absoluto de natureza universal e uma síntese resultante de um longo processo histórico ([...]) universalidade e especificidade são dois aspectos orgânicos dos direitos humanos interrelacionados, que não se excluem, mas coexistem e interagem (SYMONIDES, 2003, p. 57).

Monólogos jamais comporão um diálogo. A diversidade cultural entre os povos, a pluralidade dentro das sociedades não precisam ser cacofonias. Podem sim serem fatores que enriquecem a convivência dialogal. As culturas não estão isoladas, nem em suas expressões regionais e nem globalmente, há interação e influência mútua, sobretudo pelas dinâmicas da

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Declaração e Programa de Ação de Viena (1993). Disponível em: . Acesso em 22/08/2015.

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globalização, da internet e de outros meios mundiais de comunicação e troca de informações e experiências. Essa abertura, quando associada à autocrítica e autoanálise, pode se concretizar no acolhimento, que não se identifica com submissão a ou imposição de visões e ideais indesejados a qualquer grupo ou cultura, afinal, “qualquer cultura relacionada ou comparada a outras culturas pode encontrar suas próprias idiossincrasias e peculiaridades, seus pontos fortes e fracos” (SYMONIDES, 2003, p. 56). “O reconhecimento de incompletudes mútuas é condição sine qua non de um diálogo intercultural” (SANTOS, 1997, p. 26). Chega-se, então, ao que é chamado de concepção multicultural de direitos humanos (CAMATI, 2014; SANTOS, 1997). Ante todas as possibilidades e potencialidades para as gramáticas dos direitos humanos, ou de qualquer outra esfera que lida com diversidades, com a unidade na diversidade, com a convivência democrática da pluralidade, há de se encarar serena, mas decididamente as exigências de esforços e de superação de desafios que se apresentam. A concepção multiculturalista para os direitos humanos, portanto, é antes um propósito que um fato (CAMATI, 2014, p. 174), e isso não parece estar em discussão, embora permaneça como reflexão. A política dos direitos humanos é, basicamente, uma política cultural. Tanto assim é que poderemos mesmo pensar os direitos humanos como sinal do regresso do cultural, e até mesmo do religioso, em finais do século. Ora, falar de cultura e de religião é falar de diferença, de fronteiras de particularismos. Como poderão os direitos humanos ser uma política simultaneamente cultural e global? (SANTOS, 1997, p. 13).

A pergunta é retórica. Boaventura de Souza Santos identifica e discorre no sentido de reforçar o potencial emancipatório dos direitos humanos, justificando uma política progressista de direitos humanos em âmbito global e legitimidade local. Todavia, a potencialidade emancipatória dos direitos humanos, segundo a tese do autor, precisa operar pelo conceito de multiculturalidade. Isso porque na prática, em sua aplicação e concretização, os direitos humanos não são universais, têm características regionais, por conseguinte, culturais, distintas. Ou seja, ainda que as nações integrantes das Nações Unidas tenham afirmado a existência de uma base comum que permite proclamar a universalidade dos direitos humanos, como demonstrado até agora, a efetivação ampla de direitos vem desafiada por questões ligadas a peculiaridades regionais e à ausência de mecanismos que efetivamente sejam capazes de garantir direitos humanos fundamentais internacionalmente e independentemente de nacionalidade ou condição legal de cidadania.

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Ainda assim, insiste-se, é preciso haver uma condição universal para os direitos humanos, que agreguem suas múltiplas linguagens e gramáticas, e tal é a própria condição humana, sua dignidade inerente e o valor sacro de sua vida. Concorda-se, portanto, com Lucas (2009), quando ele sustenta que as diferentes carências, positivações e materialidades históricas podem conviver tranquilamente com um mínimo axiológico que represente a universalidade dos direitos humanos. A universalidade atribuída aos direitos humanos não nega as diferenças que constituem as diversas possibilidades de manifestação concreta/histórica da existência humana e mesmo das identidades particulares ou comunitárias. Mas, ao contrário, reconhece que existem elementos valorativos comuns que podem ser compartilhados por todos os homens, individuais ou coletivamente, a ponto de as distintas ações e conceitos que povoam a vida histórica poderem configurar a diferença como um valor, acontecimento e característica de individualização universalizável (é possível se universalizar a liberdade de religião sem universalizar uma religião, mas todas em particular e no exato limite de seu alcance). Não há como negar a diferença sem negar a humanidade. Por outro lado, não há como sustentar a diferença fora da humanidade. Ou seja, é a humanidade a condição mesma para a diferença. Os direitos humanos, na posição de universais nãohomogeneizadores, precisam justamente reconhecer que existe uma moralidade que impõe uma reciprocidade de comportamentos a todos os indivíduos e instituições como condição de possibilidade para serem freadas as diferenças que conduzem à desigualdade excludente ou mesmo à homogeneização que inviabiliza o aparecimento das diferenças comuns à humanidade do homem, diferenças que devem ser garantidas por fazerem do homem o que ele é em razão também de sua individualidade, mas desde que sejam susceptíveis de uma proteção universal. Afastar a diferença, portanto, é o mesmo que negar as possibilidades do entendimento humano tratar daquilo que, por sua moralidade, pode ser universalizado. Quando a diferença é uma marca distintiva do homem em sua humanidade, uma condição para o exercício da própria dimensão humana, não se pode confrontar diferenças com igualdades, mas aproximá-las na exata extensão de sua complementaridade (LUCAS, 2009, p. 140-141).

Em suas elaborações acerca dos direitos humanos em multiculturalidade, Souza Santos apresenta algumas premissas interessantes para a concretização de tal proposta, e relevantes para a identificação de linguagens acerca da sacralidade da vida humana em foco neste trabalho. Em uma das premissas ele argumenta que todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas as concebem em termos de direitos humanos[...] Designações, conceitos e Weltanschauungen16 diferentes podem transmitir preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis (SANTOS, 1997, p. 21).

Essa constatação pode ser afunilada para indicar a mesma dinâmica entre grupos de mundividências distintas inseridos em uma mesma cultura local.

16

Visões de mundo, mundividências.

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Outra premissa sustentada por Boaventura é aquela que afirma terem todas as culturas versões diferentes quanto ao conceito de dignidade humana, “algumas mais amplas do que outras, algumas mais abertas a outras culturas do que outras” (SANTOS, 1997, p. 22). E nessas versões diferentes de dignificação humana haveria também a tendência de alocar pessoas e grupos em princípios de pertencimento hierarquizados e competitivos entre si. Esses princípios são o de igualdade – que remete a unidades homogêneas – e o da diferença – realizado pelas identidades e diferenças, como etnia, religião, orientação sexual, etc. Os dois princípios não se sobrepõem necessariamente e, por esse motivo, nem todas as igualdades são idênticas e nem todas as diferenças são desiguais. Estas são as premissas de um diálogo intercultural sobre a dignidade humana que pode levar, eventualmente, a uma concepção mestiça de direitos humanos, uma concepção que, em vez de recorrer a falsos universalismos, se organiza como uma constelação de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, e se constitui em redes de referências normativas capacitantes (SANTOS, 1997, p. 22).

Portanto, uma ação plena no âmbito dos direitos humanos requer agentes que se expressem por meios de linguagens que sejam aptas não apenas a dizer de si mesmos, mas que também conduzam à compreensão mútua. As identidades que se formam no âmbito local, social ou grupal vão invariavelmente deparar-se com outras identidades, a possibilidade que emerge é a de, pelo diálogo inteligível e pelo acolhimento do outro, encontrar a identidade mais ampla: a da família humana. A interação e integração de lutas e linguagens urgem em desenvolver-se. “A desumanidade e a indignidade humana não perdem tempo a escolher entre as lutas para destruir a aspiração humana de humanidade e dignidade. O mesmo deve acontecer com todos que lutam para que tal não aconteça” (SANTOS, CHAUI, 2014, p. 125). Esse compartilhamento de linguagens distintas precisa se escorar na disposição ao acolhimento do outro, que vem depender da opção pelo reconhecimento da humanidade alheia, da sacralidade da vida com a qual se depara. A importância do reconhecimento é agora universalmente reconhecida de uma ou de outra forma; no plano íntimo, todos sabem que a identidade pode ser formada ou mal formada no curso de nosso contato com outros significativos. No plano social, temos uma política contínua de igual reconhecimento. Ambos os planos foram moldados pelo ideal crescente de autenticidade, e o reconhecimento desempenha um papel essencial na cultura que surgiu ao redor desse ideal (TAYLOR, 2000, p. 249).

O ponto que nos interessa no momento é o problema do reconhecimento no nível público, onde se dá o multiculturalismo com seus embates, aproximações e conflitos exasperados. “Nas sociedades democráticas, o reconhecimento igual não é apenas a melhor

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maneira de nos relacionarmos, mas, como já afirmamos, é uma necessidade humana vital” (CAMATI, 2014, p. 178). O reconhecimento igual não é somente a modalidade apropriada a uma sociedade democrática saudável. Sua recusa pode, de acordo com uma disseminada visão moderna, como indiquei no começo, infligir danos àqueles a quem é negado. A projeção de uma imagem inferior ou desprezível sobre outra pessoa pode na verdade distorcer e oprimir na medida em que a imagem é internalizada (TAYLOR, 2000, p. 249).

Ao se estabelecer o conceito de multiculturalidade para os direitos humanos, acolhendo-reconhecendo o outro, sua linguagem e gramática peculiares, não se escapa das tensões advindas dos binômios liberdade-igualdade e autonomia-heteronomia. Mas as dificuldades não podem ser suscitadas para sufocar o diálogo ou para tão somente tolerar a presença da diferença. É necessário prosseguir e lidar com as problemáticas que se colocam quando as liberdades ameaçam a igualdade e quando a autonomia ameaça o coletivo, ou viceversa. A ideia é que se valorize e até mesmo se incentivem as diferenças, no intuito de valorizar o que cada um pode contribuir à sociedade a partir de sua diferença. A diferença também ganha significação moral, é importante que cada sociedade viva de acordo com aquilo que lhe é original. É claro que esse processo gera inúmeras tensões e problemas políticos a sociedade que precisa ao mesmo tempo respeitar as diferenças e a dignidade inerente a todo ser humano (CAMATI, 2014, p. 179).

Assim, seja no âmbito da multiculturalidade global ou da pluralidade local, o cerceamento de expressões que partem de concepções distintas das que temos no momento para a condução da concretização dos direitos humanos e da regulação da vida social, política e econômica não pode prevalecer. Tampouco as regras de acesso devem se arraigar em discursos e métodos pré-estabelecidos e estanques que limitem ou impeçam a participação plena no cenário público. Pedir aos cidadãos democráticos que abandonem suas convicções morais e religiosas ao entrar na esfera pública pode parecer uma forma de garantir a tolerância e o respeito mútuo. Na prática, entretanto, pode acontecer justamente o contrário. Decidir sobre importantes questões públicas fingindo uma neutralidade que não pode ser alcançada é uma receita para o retrocesso e o ressentimento. Uma política sem comprometimento moral substancial resulta em uma vida pública pobre. É também um convite a moralismos limitados e intolerantes. Os fundamentalistas ocupam rapidamente os espaços que os liberais têm receio de explorar. Se nossas discussões sobre justiça invariavelmente nos enredam em questões morais substanciais, restanos perguntar como esses debates podem continuar. É possível discutir publicamente sobre o bem sem resvalar em disputas religiosas? Como seria um discurso público mais comprometido com a moral e como ele se diferenciaria do tipo de argumento político ao qual estamos habituados? Essas não são questões meramente filosóficas. Elas estão no centro de

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qualquer tentativa de revigorar o discurso político e de renovar nossa vida cívica (SANDEL, 2012, p. 296).

Chega-se assim ao ponto no qual se insere em debates públicos o pensamento religioso. O ponto no qual se quer compreender como se dá a presença da religião ante a secularização, a garantia estatal da laicidade e a dinâmica dos direitos humanos concretos e suas linguagens possíveis, especificamente quanto o conceito pétreo da dignidade-sacralidade da vida humana, com vistas à análise proposta do processo que culminou na legalização da antecipação do parto de feto acometido por anencefalia. Antes de penetramos no campo da análise dos conteúdos dos discursos, entretanto, convém marcar o papel, ambíguo, da religião quanto aos direitos humanos.

2.2.1 – AS AMBIGUIDADES DA RELIGIÃO FRENTE AOS DIREITOS HUMANOS Com efeito, se os direitos humanos de fato recorrem a tradições como a cristã, mas pressionam essas tradições na direção de uma nova articulação, então valores como o da dignidade humana são universais e direitos como os direitos humanos não estão trancafiados numa determinada tradição (JOAS, 2012, p.22).

Apresentasse-nos a questão da presença do pensamento e voz da religião no campo dos direitos humanos. Partimos de considerações que enxergam o potencial da religião para tornar-se tanto aliada como opositora aos direitos humanos, já estabelecendo que se toma por religião uma realidade concreta experimentada por fiéis e instituições palpáveis, não a abstração secularista que pensa as religiões como questões meramente privadas, vivenciadas de qualquer maneira e sem quaisquer programas quanto à moral pública e vida política (STACKHOUSE, 2005). O princípio da laicidade estatal, já bem demarcado, serve como garantia não somente à liberdade religiosa como também à não interferência no âmbito da atuação estatal, na qual se inclui a salvaguarda constitucional e política do sistema de direitos humanos. Todavia, os direitos humanos não se restringem a elaborações legislativas e jurídicas, e tampouco ao mero entendimento racionalista de seus conteúdos, é preciso algo mais para sua efetivação. Finalmente, a absolutez dos direitos humanos – o ab-soluto– significa que sua realidade não se pode dissolver, não pode reduzir-se ao discursivo; a origem e a prática dos direitos humanos não está nos discursos nem nas discussões sobre a validade ou não de uma norma, sobre o alcance ou não de um preceito. O absoluto dos direitos humanos está na vida. Nessa ordem de ideias, o fundamento dos direitos humanos está no mundo da vida, na

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possibilidade de uma vida digna, porque a vida é o fundamento absoluto dos direitos humanos (CORREDOR, 2005, p. 7).

Em estando o fundamento dos direitos humanos na vida, vida concreta de seres humanos integrais e reais, quão importante, e ambíguo, pode ser o papel das religiões? Ainda que se não tenha desenvolvido neste trabalho uma discussão sociológica aprofundada quanto ao papel das religiões na estruturação da sociedade e na formação dos indivíduos, ficou suficientemente marcada a constatação de que apesar da secularização a religião, e seus valores, permanecem suficientemente fortes para reivindicar e lograr espaço nas esferas públicas e de poder. Tal presença pode significar tanto possibilidades como dificuldades para a consumação de uma educação e reprodução de direitos humanos. As religiões precisam lidar com os pecados do passado e presente de seus fundamentalismos extremados, quer quando se associam ao terrorismo ou regimes políticos opressores, cujas existências por si só já afrontam a dignidade da vida humana. Assim como quando propagam discriminações várias, até mesmo por motivos religiosos (HENKIN, 2005). Eu não desejo retratar a religião como pura e inocente, nem os poderes do mundo - tais como direito, economia, política, ou cultura - como mal ou pecaminoso. Eu os vejo como igualmente pecaminosos e resgatáveis. O céu sabe que várias religiões têm mostrado cumplicidade no mal e que alguns estão dispostos a fomentar ou legitimar males particulares por causa da maneira como eles são internamente constituídos. Mas o mal brutal está presente em muitas áreas da vida quando esta ou aquela religião não está presente[...] A religião é alta tensão, que pode tanto energizar como eletrocutar a muitos (STACKHOUSE, 2005, p. 27).

Kathlen Luana de Oliveira (2013), em trabalho no qual relaciona teologia e direitos humanos, faz a seguinte observação: Trazer a teologia como uma ferramenta epistemológica de análise da realidade significa, neste ensaio, reconhecer a relevância, a influência, a função desempenhada pela religião na vida das pessoas. Também significa evidenciar que a secularização se demonstrou mais “cheia de fé” na América Latina e esta ainda atravessa valores ou princípios sociais, os quais regem as relações humanas. Outro aspecto seria o fato de que existe uma relação direta entre religião, política e sociedade. E nessa relação existem poderes e saberes que podem ser usados ou não para a promoção de interesses próprios, consolidando hegemonias, ou que podem servir para a promoção da cidadania numa América Latina marcada pela exploração, pelo sofrimento, pelos preconceitos, pela pobreza, pelas injustiças, pelas desigualdades, pela dependência (p. 151).

Ainda que ao lado dessas possibilidades positivas apontadas por Kathlen seja preciso considerar a existência de igual possibilidade para servir de estrutura de manutenção de indignificações ou de muro a dificultar a penetração de dignificações plenas, há que ao menos se considerar sem histerias que o potencial de uma cultura secularizada em promover valores

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sólidos, em encantar em prol da ética da vida humana, ficam aquém das possibilidades da religião. Alguns sustentam, com efeito, que, se o discurso de direitos humanos não tem outros motivos além daqueles que as considerações secularistas aprovam, o movimento pelos direitos humanos deve desaparecer até uma próxima ocasião. A razão é que os direitos humanos devem ser incorporados em uma visão mais ampla da ética, uma visão mais profunda da história social, e uma visão mais elevada de sentidos, para serem realizados em uma rede mais abrangente de direitos, virtudes, compromissos com a justiça, e preocupações com o bem comum. Sem isso, as reivindicações de direitos saem do controle para se tornarem o [teste de] Rorschach17 de cada agenda ideológica. Por este motivo, pode-se dizer que a visão teológica é mais universal, razoável e inclusiva e que a perspectiva secularista é mais particular, irracional, e estreita (STACKHOUSE, 2005, p. 30).

Pelas nuances que envolvem o papel da religião para com os direitos humanos e pela grande influência religiosa na formação da identidade do povo brasileiro entendemos conveniente falar antes em ambiguidades da religião do que em dicotomias, expressão que não se mostra adequada frente a dinâmicas repletas de capilaridades, fluxos e influxos. Boaventura de Souza Santos (2014) ao lidar com o tema identifica essas ambiguidades e as classifica em teologias pluralistas e progressistas e teologias fundamentalistas e conservadoras: Utilizarei, pois, os termos “fundamentalismos” e “fundamentalistas” para me referir a teologias – cristãs e islâmicas – de acordo com as quais a revelação é concebida como o princípio estruturante de organização da sociedade em todas as suas dimensões. Em ambos os casos, a revelação está normalmente ligada ao escrituralismo, o que significa que a organização da vida social e política deve seguir a interpretação literal dos livros sagrados sempre que estes existam (p. 42).

As abordagens fundamentalista, no sentido dado por Souza Santos, dos direitos humanos podem provocar distorções e dificuldades para a efetivação pretendida quanto a tais direitos. Isso se dá pois é inegável que as religiões possuem um componente social, público, não apenas no sentido de amealhar prosélitos, mas também pela inclinação – muito humana, saliente-se – de empenhar-se em influenciar a sociedade circundante a partir da própria cosmovisão. Em se tratando de cosmovisões com estruturas de verdades transcendentais muito enraizadas no proceder intramundo, é de se esperar que surjam dificuldades para com qualquer sistema geral de conduta que pareça ameaçar seu próprio sistema moral. Como observou Paulo Ferreira da Cunha, na palestra de abertura do Seminário Temático Internacional Religião e Educação, na Universidade de São Paulo, em 22 de fevereiro de 2006, 17

O teste de avaliação psicológica comumente conhecido como o teste do borrão de tinta.

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[...] o primeiro problema, o problema de base, na relação entre as religiões mais importantes [...] e o mundo moderno, dominado pela nova religião dos direitos humanos, é uma questão de cor local, de ar do tempo. Haveria, em princípio, mentalidades muito diferentes a impregnar pelo menos os aspectos fanéricos, litúrgicos, e profanos das religiões. Porque elas não vivem só do sancta santorum esotérico – pelo contrário, nelas há uma componente exotérica, social, pública e política profundamente importante 18.

Mas isso não impede que se reconheça na religião a capacidade latente em promover a introjeção e concretude de direitos humanos, não somente pela efetivação dos princípios gerais e universalizados da Declaração, mas também por oferecer gramáticas outras de dignificação da vida humana. Essa interação entre religião e sociedade, ou antes, entre o discurso teológico e a sociedade, pode positivamente avançar em direção à questão dos direitos humanos. Os direitos humanos reclamam por si mesmos a compreensão do horizonte teológico, não porque eles tenham de teologizar-se ou converter-se em categorias teológicas, mas porque se convertem em locus teológico, ou seja, lugar de onde podem ser compreendidos perante o sujeito que está em constante busca de concretizar a proposta do reino de Deus (CORREDOR, 2005, p. 8).

Nesse horizonte se situam as teologias progressistas, que querem participar dos debates públicos com criticismo e em favor de emancipações e superações de desigualdades. E que entendem que “a separação do espaço público e privado funcionou sempre como forma de domesticar ou neutralizar o potencial emancipador da religião, um processo que contou com a cumplicidade e mesmo com a participação ativa das teologias conservadoras” (SANTOS, 2014, p. 51). Essa denúncia de um uso dominador e alienante da separação das esferas pública e privada, não implica em negação da laicidade. As teologias pluralistas, que tem uma concepção da revelação divina como apta a contribuir para a sociedade e a vida pública, anseia participação sem imposições, ou seja, mediante a aceitação da autonomia de ambas as esferas (SANTOS, 2014, p. 42). A aceitação de tal autonomia ao contrário de fixar em lugares estanques e herméticos o discurso teológico e a linguagem dos direitos humanos, permite a experiência dialogal satisfatória exatamente por terem ambos o ser humano como destino de sua fala. [...]o humano não é um acréscimo aos direitos humanos nem um tema recorrente da teologia; ele é per se a essência da teologia e núcleo substancial dos direitos humanos. A vida espiritual e as ações em defesa e reconhecimento dos direitos humanos não podem ser separadas, mas exigem 18

Religião, direitos humanos e educação. Disponível em: < http://www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Repositorio/31/Documentos/Religi%E3o,%20DH%20e%20educa%E7% E3o.pdf>. Acesso em 11/11/2014.

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a realidade da encarnação na própria realidade. Logo, deve abarcar sua espiritualidade e sua opção como uma prática comprometida em coerência com a própria vida. Assim, a aposta e a opção cristã pelos direitos humanos estão em consonância com a teologia e a espiritualidade próprias do cristão, ou seja, encontrar-se com a realidade crua do desconhecimento dos direitos humanos para muitas pessoas e fazer justiça pelo reconhecimento, pela defesa e pela tutela dos direitos do outro, do pobre, do explorado, daquele a quem eles foram negados, violados ou feridos (CORREDOR, 2005, p. 9).

A concepção teológica da vida humana, não obstante os usos simplórios e fundamentalistas dos conceitos, carrega possibilidades de encantar as gramáticas dos direitos humanos em favor de uma opção radical pela dignidade de todo ser humano, pelo reconhecimento de uma inatacável sacralidade da vida humana. Embora não haja acordo entre o secular e o teológico, ou entre as perspectivas tradicionais e modernas sobre os seres humanos e sobre o universo, existe agora um consenso de trabalho, no qual cada homem e mulher, entre o nascimento e a morte, conta e tem uma reivindicação por um núcleo irredutível de integridade e dignidade. Nesse consenso, no mundo que temos e que está sendo moldado, a ideia dos direitos humanos é uma ideia essencial, e as religiões devem apoiá-la totalmente, em todos os sentidos, em todos os lugares. (HENKIN, 2005, p. 155).

2.3 – A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA Já citamos que o êxito tem muitos pais. O valor atribuído hodiernamente à vida humana, aquilo que é entendido como princípio da dignidade humana, que pretende dar sustentação universal às reivindicações por direitos humanos, sejam quais forem as gramáticas e linguagens legitimamente utilizadas, também são objeto de diversas perspectivas, digamos, genealógicas. Ainda que possamos suspeitar do uso da história na comprovação de teses – tendo em conta a alta probabilidade de haver restrições e ideologizações na seleção de amostras – não podemos nos furtar de adotarmos uma abordagem para a análise do desenvolvimento do conceito de sacralidade de vida humana, sob o risco de incorrermos em alguma relativização que nada produziria a não ser a demolição de qualquer estrutura pela qual se pode erigir a dignidade como valor a ser efetivamente garantido. Abordamos assim o desenvolvimento do conceito de sacralidade da vida humana tomando por modelo o caminho que Hans Joas (2010) chamou de genealogia afirmativa, tendo em consideração tradições, religião e razão. Um processo complexo que não foge às

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indagações, mas não rejeita contribuições que demonstram terem agregado elementos ao valor em questão. Retomando alguns pontos do caminho até agora percorrido, destaca-se que foi constatado o quanto a linguagem dos direitos humanos desponta com notável intensidade. O quão é assimilada, defendida, apoderada às vezes por amplos, diversos e antagônicos setores da sociedade humana, que chega a ser indicada como a nova religião civil da humanidade (PINHEIRO, 2012); e o quanto isso tudo exige universalidade, que, de outro lado, faz evidenciar o enfretamento com a multiculturalidade, também direito humano a ser defendido. Entende-se que, apesar dessas tensões sua essência não é relativizada pelos argumentos multiculturalizadores, e isso porque a dignidade humana é a base a partir da qual a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi elaborada. Consideremos então que o peso, ou a reivindicação de universalidade dos direitos humanos tem como estandarte a sacralidade da pessoa humana. Esse valor moral, essa construção com anseios por inexpugnáveis fortalezas da ética pela dignidade da vida humana, cuja negação causa horror e indignação, tem suas raízes onde? Há uma possibilidade de genealogia para os valores morais e princípios éticos? Nietzsche (2009), apenas como exemplo, escreveu um livro intitulado “Genealogia da Moral”, com objetivos distintos dos que aqui se propõe, mas no mesmo ímpeto: Não temos o direito de atuar isoladamente em nada: não podemos errar isolados, nem isolados encontrar a verdade. Mas sim, com a necessidade com que uma árvore tem seus frutos, nascem em nós nossas ideias, nossos valores, nossos sins e nãos e ses e quês — todos relacionados e relativos uns aos outros, e testemunhas de uma vontade, uma saúde, um terreno, um sol (p. 8).

Daí se poderia inferir que é possível ao menos escavar em busca de algumas majestosas edificações, alegrando-nos com quaisquer fragmentos que nos apontem para anterioridades e fontes de nossos princípios éticos fundamentais. Então outra questão se apresenta: essa anterioridade é transcendente ou imanente? Nossos valores mais relevantes, solidificados não apenas em declarações de princípios, mas também em normas e leis, têm uma fonte divina/transcendental ou são produtos do intelecto? E tais considerações são realmente cruciais para a efetivação da ética da vida humana? Longe das possibilidades deste trabalho está a aventura exploratória de uma arqueologia com profundas escavações em busca dos indícios arcanos dos grandes valores morais, ou da sacralidade da vida humana. Pondera-se, então, a possibilidade de delinear uma gênese da ética, com foco naquela que proclama a dignidade da vida humana, tida, como já

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mencionado, como fundamento para demais valores em visões de mundo distintas, que, por vezes, são encontradas em campos opostos nas complexidades da existência.

Genealogia afirmativa de valores A concepção de genealogia afirmativa passa pela observação da conexão entre argumentos fundamentadores e reflexão histórica. De tal modo, a metodologia utilizada pelo filósofo alemão Hans Joas (2012) talvez possa ser resumida da seguinte maneira: uma sociologia de orientação histórica para a superação do fosso existente entre filosofia – enquanto validade argumentativa – e história. Essa espécie de trabalho arqueológico, ou arqueogenealógico, como observa Ruiz (2013, p. 59), “não pretende achar o princípio originário, único ou universal das verdades, neste caso da sacralidade da vida humana, mas as condições históricas que constituíram seu sentido filosófico”. Enfim, elementos norteadores para valores tornados valiosos a ponto de serem tidos como bens pelos quais se engajar e militar. Hans Joas afirma não crer na possibilidade de uma fundamentação puramente racional de valores últimos, como o seria a ética, ou conceito, da dignidade humana, base para os direitos humanos. Isso não implica em defender também uma origem puramente derivada de fatos meramente ocorridos, que fatalmente decairia em relativismos históricos e culturais, e complicaria sobremaneira a solução do problema da validade universal de valores morais como a dignidade humana. Se, no caso dos valores, as questões de gênese e validade não devem ser separadas com tanto rigor, então já é possível formular em termos positivos o nosso objetivo. Nesse caso, com efeito, a própria história da gênese e da disseminação dos valores pode ser configurada de tal maneira que, nela, a narrativa e a fundamentação estão imbricadas de modo específico. Sendo narrativa, essa exposição nos torna consciente de que nossa ligação a valores e nossa representação do que é valioso brotam de experiências e de seu processamento (JOAS, 2012, p. 15).

Afirmar que existe um contingenciamento, que aquilo que chamamos de nossos valores são, na verdade, individualidades históricas, entretanto, não nos desvinculariam deles. Nessa perspectiva acolhe-se o entendimento de que os valores em questão não seriam apenas passíveis de serem descobertos ou restaurados, a “partir de um reino preexistente de valores ou de um direito natural objetivamente dado”. Tampouco se deveriam entender os valores como puramente construídos, produto de uma elaboração voluntarista, da qual “dificilmente emanariam efeitos vinculantes” (JOAS, 2012, p. 16). O conceito da gênese, em contraposição, visa caracterizar a inovação histórica autêntica representada pelos direitos humanos como inovação,

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preservando simultaneamente o caráter de evidência que tal inovação também pode ter para os envolvidos. Para as pessoas que se sentem ligadas a valores, é evidente que esses valores representam o bem, e não porque tenham decidido isso ou porque tivessem chegado a um consenso a esse respeito (JOAS, 2012, p. 17).

A vida, em sua sacralidade, dignidade ou inviolabilidade, precisa estar além do direito, mas não prescinde deste, afinal, “não é o direito que define a vida, mas a vida que supera qualquer direito” (RUIZ, 2013, p. 61). Não obstante, a negação de dispositivos jurídicos, racionalmente redigidos, deslocaria a vida humana para alguma espécie de estado natural, aproximado da crueza inegável do estado selvagem. Mas a positivação de normas que declarem, de qualquer modo, a sacra dignidade da vida humana, não parece suficiente para o enraizamento de valores que precisam compor a já mencionada ética da vida humana. A discussão em torno da sacralidade da vida não é apenas uma discussão jurídica, no sentido estrito, mas percebemos que toda a intervenção na vida é uma questão ética. Normas jurídicas também expressam reflexões éticas. Por outro lado, não se devem distanciar reflexões éticas das influências jurídicas e sociais (ZILLES, 2007, p. 345).

Portanto, a

abordagem genealógica nessa ação de reconstrução do passado,

exatamente por ser efetuada com consciência de sua contingência, deve ser chamada de afirmativa. Posto que o retrocesso àqueles processos formativos de ideais, à gênese dos valores, não serve para desvincular-nos daqueles, mas antes para nos tornar aptos à receptividade de um chamamento para o sentido historicamente concretizado. A justificação universalista necessária à validação (introjeção, recepção, projeção, etc.) de valores morais universais, implica, sem dúvidas, em considerar o problema da temporalidade, não obstante, tal universalidade quanto aos valores éticos relacionados à sacralidade da vida humana

não é invalidada pela questão da temporalidade, pois se

considera que [...]toda busca por validade atemporal nunca deixará de ser um fenômeno temporal[...] Quando experimentamos um valor, nós justamente o experimentamos como válido por si só e, ao experimentá-lo como tal, passa a ser nossa obrigação reconhecê-lo. A individualidade no sentido histórico não é subjetividade no sentido de oposição à objetividade e à validade universal (JOAS, 2012, p. 189).

Ou seja, o momento histórico no qual o indivíduo passa a possuir e ser possuído por esses valores, que mesmo sendo identificados como surgidos e efetivados em épocas históricas anteriores, não anula o sentimento de universalidade e atemporalidade que tais valores éticos e morais têm para e sobre o sujeito que os têm como sublimes e invioláveis. Por isso, ainda que se possa afirmar que

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Não existe uma verdade formal abstrata, nem para a dignidade humana, nem para os direitos humanos, nem para a sacralidade da vida [...] essas verdades não estão despossuídas de sentido em si mesmas como verdades válidas com potencialidade de proteção da vida humana. Os desdobramentos éticos e políticos dessas categorias, como de qualquer outra verdade, são correlativos (sempre relativos) ao contexto histórico que os produz e aos efeitos de poder que eles produzem (RUIZ, 2013, p. 69).

A genealogia afirmativa precisa ser entendida como tentativa de fundamentação de valores repercutida em termos históricos, socialmente considerados, e com os devidos cuidados para não convertê-la em construção ideológica. Porém, esse cuidado não deve conduzir a um subestimar o papel das instituições nos processos de deslocamento dos valores, entendidos como processos de sacralização. Os valores não devem permanecer simples valores. Eles só viverão se forem defendidos argumentativamente enquanto valores, mas, sobretudo se forem sustentados por instituições e corporificados em práticas. Assim, uma genealogia afirmativa dos direitos humanos deve levar em consideração, na análise histórica, as dimensões dos valores, das instituições e das práticas, bem como a interação dessas dimensões; mas ela também deve estar orientada para as chances e os perigos da realização em todas essas dimensões e em sua interação (JOAS, 2012, p. 200).

Disso emergem problemáticas que devem ser consideradas, outra vez relacionadas à universalidade pretendida pela moderna concepção de Direitos Humanos. Heloísa Ferreira Câmara (2011) observa que esse modelo, por ter caráter abstrato e considerar os seres humanos como seres absolutos, “no sentido de um ser único – e desprovidos de qualquer história” (p. 103), ao tê-los como justificação para o sistema de proteção de direitos, eliminando todo “fundamento divino”, acabou por deslocar para os Estados a obrigação de normatizar tais proteções. Assim, como observado anteriormente, sem cidadania os indivíduos encontram dificuldades para verem satisfeitos os direitos que deveriam acompanhar sua dignidade humana sejam quais forem suas condições. A superação de lacunas assim podem ser supridas por intervenções institucionais positivas, inclusive, ou, sobretudo, talvez pelas de caráter religioso, objetivando que os direitos advindos da sacralidade da vida humana não estejam limitados pela ausência de condições jurídicas para o reconhecimento da cidadania dentro dos Estados. Então, apresentados métodos e concepção da genealogia afirmativa, é preciso prosseguir e observar que o nascimento, a gênese dos valores éticos fundamentais é objeto de debates e reivindicações por parte de cosmovisões em disputa. Um dos debates mais frequentes, “mas também um dos mais infrutíferos, gira em torno da questão se os direitos humanos remontam a origens religiosas ou, antes, a origens humanistas seculares” (JOAS,

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2012, p. 17). Perspectivas excludentes, neste caso, não nos são úteis ou recomendáveis, cabendo o alerta de Max Stackhouse (2005, p. 36): Não confiem em teólogos, filósofos, ou críticos sociais que repudiam os princípios primeiros ou que defendam posições ou políticas que incentivem a humanidade a ignorá-los em favor de uma visão com acentos somente na concretude da experiência histórica. Da mesma forma, não confie nos filósofos ou líderes religiosos que não tomam em consideração as matrizes complexas de experiência que as pessoas têm nos contextos concretos da vida.

Portanto, qualquer visão secularizada que assuma a origem dos direitos humanos como resultado exclusivo da ação racionalista da Revolução Francesa, ou visões que atribuam os direitos humanos como resultado da influência de tradições religiosas de longo prazo, como o cristianismo, com sua compreensão da pessoa humana a partir dos evangelhos e da elaboração filosófica consequente, com a atribuição da imagem de Deus ao ser humano, terminariam em enquadramentos por demais reduzidos da questão. Além de que, não seriam esses os únicos quadros históricos possíveis, havendo, inclusive, uma posição intermediária que afirma o Iluminismo como detentor de profundos motivos que são “consequência da ênfase cristã na individualidade, na retidão e no amor ao próximo (ou na compaixão)” (JOAS, 2012, p. 18). Entretanto, a narrativa humanista secular convencional, ou a matriz confessional ou ainda a posição intermediária não seriam, isoladamente, suficientes para a solução do problema da origem dos valores morais. [...] há uma alternativa fundamental para toda essa mixórdia de narrativas. A palavra-chave para essa alternativa é “sacralidade/santidade”. Proponho conceber a crença nos direitos humanos e na dignidade humana universal como resultado de um processo específico de sacralização – processo durante o qual cada ser humano individual, gradativamente e com motivação e sensibilização cada vez mais intensas, foi passando a ser entendido como sagrado, e essa compreensão foi institucionalizada como direito (JOAS, 2012, p. 19).

O conceito de sacralização não deve ser entendido como que fazendo exclusivamente referência a conteúdos e significados religiosos. Significações e sentidos seculares “podem assumir as qualidades características da sacralidade: evidência objetiva e intensidade afetiva” (JOAS, 2012, p. 19). Nesse sentido Dworkin (2009, p. 108) afirma que “a essência do sagrado encontra-se no valor que atribuímos a um processo, empreendimento ou projeto, e não a seus resultados considerados independentemente do modo como foram obtidos”. Dessa maneira, a abordagem genealógica precisa ser específica se pretende alcançar fundamentações que sejam adequadas ao fenômeno da sacralidade.

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Nesta busca pelo conceito de sacralidade da pessoa humana tendo como referencial a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,

localizou-se na Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, produto da Revolução Francesa, a concretização histórico-jurídica de valores reconhecidos, como aqueles que remetem à dignidade humana. Tal concretização não ignora contribuições anteriores, vindas da Declaração de Independência Norte-americana de 1776, posto que Thomas Jefferson, inclusive, foi consultado para um esboço da Declaração dos Direitos do Homem. Ou antes, pelo reclamo de liberdade religiosa do pregador puritano Roger Williams, que em 1636, na colônia de “Rhode Island assegurou liberdade religiosa não só para todo tipo de cristão, mas também para judeus, pagãos e turcos” (JOAS. 2012, p. 46). Enfim, a tese-chave das linhas de raciocínio expostas até aqui é a afirmação de que: “a ascensão dos direitos humanos e da ideia da dignidade humana universal deve ser entendida como um processo de sacralização da pessoa” (JOAS, 2012, p. 201). [...] as reformas do direito e da práxis penais, assim como, por exemplo, a gênese dos direitos humanos no final do século XVIII, são expressões de um deslocamento cultural de grande alcance, mediante o qual a própria pessoa humana se transforma em objeto sagrado (JOAS, 2012, p. 79).

Brustolin (2006) lembra-nos de que a vida sempre tem valor, em todo e qualquer tempo e situação, e que mesmo sendo um bem pré-moral, por existir independentemente do querer e fazer humanos, “a vida necessita de valorização ética a ser dada pela intencionalidade do agir humano” (p. 446). Os valores construídos por esses processos de sacralização da vida humana foram então normatizados e incluídos em sistema de proteção, como o é o dos direitos humanos. Durkheim teria sido o primeiro a pensar desta forma, quando de suas intervenções e denúncias das injustiças no caso Dreyfus. Em 1898, ele teria escrito sentenças “que contêm a expressão contundente da ideia básica de argumentação segundo a qual a crença nos direitos humanos e na dignidade humana universal deveria ser concebida como a ‘religião da Era Moderna’” (JOAS, 2012, p. 80). Essa crença precisa ser tida como valor, bem e agir que se apliquem convenientemente a todos os seres humanos. A sacralidade da vida humana nunca deve ser uma apropriação egocêntrica, uma divinização de si mesmo, o bem-estar de cada indivíduo precisa se desdobrar no bem-estar da humanidade como tal. Esse ideal ultrapassa tanto o nível dos fins utilitários que parece, às consciências que anseiam por isso, como que impregnado de religiosidade. Essa pessoa humana, cuja definição é como a pedra-de toque a partir da qual

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o bem deve se distinguir do mal, é considerada como sagrada, como se diz, no sentido ritual da palavra. Ela tem algo dessa majestade transcendente que as Igrejas de todos os tempos emprestam aos seus Deuses; é concebida como investida dessa propriedade misteriosa que produz vazio em volta das coisas santas, que as subtrai aos contatos vulgares e as retira da circulação comum. E é precisamente daí que vem o respeito da qual faz objeto. Quem quer que atente contra a uma vida de um homem, à liberdade de um homem, à honra de um homem, nos inspira um sentimento de horror, análogo àquele sentido pelo crente que vê profanarem seu ídolo (DURKHEIM, 2007, p. 301).

E ainda Hans Joas (2012), no mesmo sentido, faz destacar que De minha parte, falo da sacralidade da pessoa e não do indivíduo para garantir, sem ambiguidades que a crença na dignidade irredutível de cada ser humano, circunscrita com essa expressão, não seja imediatamente confundida com uma autossacralização inescrupulosamente egocêntrica do indivíduo e, desse modo, com uma incapacidade narcisista de livrar-se da autorreferencialidade (p.84).

A sacralidade da vida humana, assim entendida, ainda que tenha cada indivíduo como objeto a ser resguardado, diz respeito antes à humanidade como um todo. É a condição de ser humano que atribui dignidade à pessoa. Seus subjetivismos, particularidades, reclamos e desejos devem ser garantidos apenas quando não afrontem a humanidade alheia. Sem dúvida, se a dignidade do indivíduo proviesse de suas constituições individuais, das particularidades que o distinguem de outrem, poder-se-ia temer que ele se tranque em uma espécie de egoísmo moral que tornaria impossível qualquer solidariedade. Mas, na realidade, ele a recebe de uma fonte mais alta e comum a todos os homens. Se tem direito a esse respeito religioso, é porque tem em si algo da humanidade. É a humanidade que é respeitável e sagrada; ora, não está toda nele. Ela está dispersa em todos seus semelhantes; assim, ele não pode tomá-la como finalidade de sua conduta sem ser obrigado a sair de si mesmo e a se dispersar para fora (DURKHEIM, 2007, p. 303).

Durkheim (2007) tem a condição humana como aquela que permite a convivência em sociedades altamente pluralizadas. Sustentou que apesar das diversidades de cambiantes opiniões particulares, o sentimento que floresce a partir da ideia de pessoa humana, com seus atributos e dignidades, pode ser encontrado em todos os corações, por conseguinte, “não resta mais nada que os homens possam amar e honrar em comum, a não ser o próprio homem” (p. 306). Não há, como se conclui, que considerar fracassada a marcha dos direitos humanos, como pretendem interpretações reducionistas que declaram a modernidade e a presente época sob o estandarte da decadência e da perda de valores comuns. E apesar de haverem cerceamentos particularistas nas principais religiões chamadas mundiais, estas “de fato

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comportam enunciados a favor da santidade da vida humana, de um ethos do amor e da reverência universal” (JOAS, 2012, p. 24).

Sacralidade da vida, cristianismo e aborto Adentrando no conceito de sacralidade da vida humana é preciso considerar a questão da imagem de Deus, da imago Dei, e da filiação divina presentes no cristianismo. Pela abordagem feita quanto à genealogia do conceito de sacralidade da vida humana entendemos que o processo não poderia ser concebido como produto de uma única determinada tradição, ainda que seja inevitável que tenha emergido, ou “brotado dos germes da tradição em algum ponto da história”. “Decisivo mesmo é o modo de sua apropriação pelos atores contemporâneos nas condições específicas em que vivem e no campo de tensão de práticas, valores e instituições em que se encontram” (JOAS, 2012, p. 201). Dessa maneira podem ser observados afastamentos e aproximações do cristianismo em relação aos direitos humanos, pois ainda “que as tradições não produzam nada, elas precisam adotar uma postura em relação a uma inovação” (JOAS, 2012, p. 202). Em sua intenção de compor uma genealogia afirmativa, demonstrando a inutilidade de pretensões exclusivistas para a origem dos direitos humanos, ele cita o exemplo do iluminista e representante do utilitarismo, Jeremy Bentham, que no contexto mesmo da Revolução Francesa, “designou os direitos humanos originalmente de ‘bobagem sobre pernas de pau’” (JOAS, 2012, p. 204). Então, na formação afirmativa do conceito mediante contribuições várias, precisamos considerar o desafio da ascensão dos direitos humanos em relação aos princípios cristão acima citados, a imago Dei e a filiação divina. Para Brustolin (2006), a vida humana possui uma dignidade sagrada, porque emerge da vontade e do poder criador desse Absoluto. Todas as explicações e teses não conseguem manipulá-lo e nem dominá-lo, muito menos apreendê-lo. Deus é sempre um mistério que transpõe toda habilidade humana. Sendo ele o autor da vida e considerando que ninguém consegue produzir vida sem o princípio original, conclui-se que a vida humana é puro dom. Oferta de amor que não cobra e nem reclama, apenas pede preservação e cuidado (p. 447).

Hans Joas (2012) garante que a análise desses princípios não é uma análise pela visão de teólogos e filósofos cristãos sobre o assunto, mas sim de uma articulação com as condições do pensamento contemporâneo. Trata-se antes de uma nova articulação dessas ideias que tem importância tanto para crentes quanto para descrentes. Nesse processo, o caráter de imagem fiel de Deus se transforma na ideia de um cerne divino essencial de todo e qualquer ser humano: a sua alma imortal. A filiação divina se transforma na ideia de que a nossa vida é um dom, do qual decorrem, como de todo e qualquer dom, obrigações que restringem a disponibilidade que temos de nós mesmos[...] trata-se da

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apropriação crítica da riqueza de uma tradição, sem qualquer triunfalismo, mas também sem ressentimento contra ela. (p. 207).

A ideia da imagem de Deus – imago Dei – remete ao conceito de um “cerne divino essencial a todo e qualquer ser humano” (JOAS, 2012, p. 206), que resulta nas considerações acerca da existência de uma alma imortal. A tradição judaico-cristã não considera a vida como um fato simples da existência, uma facticidade, mais um fato constatável, ao contrário, considera-a um dom, uma doação de Deus. A transformação da lógica do dom divino na sociedade secular moderna coloca a questão de “como se poderia pensar e articular de maneira nova, sob as condições da individualidade expressiva ou moral altamente desenvolvida, uma ideia tão central para o cristianismo como a da vida como dom” (JOAS, 2012, p. 234). Por que as pessoas vivenciam determinadas coisas como sagradas? E como acontece que se chega a uma sacralização de todas as pessoas e não só daquelas que dispõem de certas capacidades (como razão ou autoconsciência)? A resposta a essas perguntas reside numa teoria da gênese de valores, numa investigação de experiências, das quais pode surgir um vínculo afetivo com valores do universalismo moral (JOAS, 2012, p. 221).

Na compreensão religiosa, em sendo a vida um dom, dela não se pode, ou não se deveria dispor de qualquer maneira, tampouco dela abdicar ou permitir que seja tomada de outrem. Ao passo que todos os dons geram compromissos de reciprocidade mais ou menos difusos, o dom da vida é de tal enormidade que é impossível ser recíproco com uma única ação; nesse caso, só uma vida inteira em sua plenitude constitui uma retribuição plena ao dom original da vida (JOAS, 2012, p. 241).

De tal maneira, qualquer reformulação hodierna da ideia da vida como dom, para ser adequada, deve acolher o significado integral do conceito cristão não apenas do amor, mas também da relação entre amor e justiça, apto a “estabilizar nossa ligação com a moral, possibilitar graça, generosidade e humildade, impedir um retorno à reciprocidade calculistautilitarista” (JOAS, 2012, p. 243), enfim, impedir a instrumentalização e mercantilização do ser humano. A meu ver, a crença na vida como dom e numa alma imortal não representa uma dissimulação ilusória da dura e simples facticidade na nossa existência, mas permite aos que creem com base na confiança em Deus um engajamento em prol da dignidade de todos os seres humanos e a participação arriscada em processos criativos que dependem de tal crença. Quem não compartilha dessa crença deve mostrar, com os seus recursos intelectuais, como se pode justificar a ideia de indisponibilidade e torna-la motivadora (JOAS, 2012, p. 245).

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Não se pondera que esse valor tenha sido desconsiderado, ao contrário, está marcadamente presente no conceito de dignidade humana presente na Declaração Universal dos Direitos Humanos, com replicações na Carta Magna brasileira, atribuindo um elevado valor à vida humana. Daí poder tratar do conceito, tanto da perspectiva religiosa quanto da perspectiva secularizada, como sacralização da vida humana, respeitadas as devidas atribuições de valor correspondentes a cada setor. O que nos interessa ressaltar aqui a respeito de um quadro complexo e fascinante de correlações entre a nova ordem da Pessoa e o novo mundo público é que este último se articula em direção ao ideal individualista, consubstanciado nas "Declarações de Direitos do Homem". Essa universalização do "respeito à pessoa humana" tradicionalmente desenvolvido no seio do Cristianismo é um bom exemplo final de uma continuidade principial que justifica a identidade mesma de nossa cultura. Essa é provavelmente a única área em que o discurso das Igrejas cristãs estabelecidas contemporâneas não parece antagônico aos desenvolvimentos laicos de seus antigos princípios. A respeito da própria ética pessoal, a preservação da dimensão "transcendental" do espírito (na alma divina) impõe a esse pensamento uma atitude de desconfiança e franca oposição aos sentidos que veio a assumir o mandamento de composição entre vontade, interioridade e verdade, em sua progressiva afirmação laica (DUARTE; GIUMBELLI, 1995, p. 108).

Entretanto, essa atribuição de elevado valor moral à vida humana não implica em plena intocabilidade. Como exemplos podemos citar as exceções jurídicas, como a que prevê aplicação de pena de morte em situações de guerra 19. O princípio da sacralidade da vida assegura o valor moral da existência humana e fundamenta diferentes mecanismos sociais que garantem o direito de estar vivo. Esse é um princípio laico, também presente em diferentes códigos religiosos, mas não é o mesmo que o princípio da santidade da vida. Reconhecer o valor moral da existência humana não é o mesmo que supor sua intocabilidade. O princípio da santidade da vida é de fundamento dogmático e religioso, pois pressupõe o caráter heterônomo da vida humana. Em um Estado laico como é o Brasil, o que está expresso em nosso ordenamento jurídico público é o princípio da sacralidade da vida humana e não o princípio da santidade da vida humana. O valor moral compartilhado é o que reconhece a vida humana como um bem, mas não como um bem intocável por razões religiosas (DINIZ, 2006, p. 1742).

Na citação acima desponta a expressão de uma abordagem que pretende distinguir santidade de sacralidade da vida, atribuindo valor moral à vida humana, mas não admitindo intocabilidade daquela por razões religiosas. Há na questão complexidades em direção a diversas esferas, a começar pelos questionamentos quanto ao significado de intocabilidade por razões religiosas, quanto à ideia de indisponibilidade e ao caráter irrenunciável da vida, e do

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Art. 5º, inc. XLVII da Constituição Federal brasileira de 1988

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quanto tais conceitos não seriam fruto de entranhados valores e moralidades de cunho religioso. Mas a argumentação é assaz pertinente ao se acrescentar a problemática do aborto às considerações acerca da sacralidade da pessoa humana, em especial quando um dos elementos a ser considerado é aquele que pretende estabelecer parâmetros para o início e o término da vida. Tal se dá por mecanismos complexos e diversos por crenças distintas de cada grupo social. Mas é possível identificar um ponto em comum na determinação dos limites da vida e da morte, ao menos para boa parcela da sociedade Ocidental: “vida e morte podem ser concebidas segundo posicionamentos religiosos, fundamentalmente pautados pela tradição judaico-cristã” (GOMES; MENEZES, 2008, p. 79). O jusfilósofo Ronald Dworkin (2009) defendia essa mesma perspectiva afirmando que os temas da eutanásia e do aborto são questões essencialmente religiosas, e que é preciso alterar a percepção não apenas de quais questões são predominantemente religiosas, mas também acerca da abrangência e do porquê a liberdade de consciência religiosa ser tão crucial. Contudo, a esse ponto comum de compreensão valorativa da vida e da morte, ou seja, do início e do fim da vida humana biológica a partir de éticas e cosmovisões religiosas, somam-se as tensões surgidas pela laicidade estatal, que requer seja o tema posto em termos de razões públicas, deslocando, portanto, a determinação dos limites em tela, da esfera da compreensão religiosa para as definições científicas dadas pela biologia e pela medicina, cujo aparato é aquele que termina sendo utilizado em decisões jurídicas, como é o caso da que legalizou a antecipação do parto de fetos anencéfalos. Na polêmica, duas posições se destacam: da sociedade laica e da religião. A gestão social, médica e jurídica em torno da determinação dos limites da vida sofre influências de vertentes religiosas e da sociedade civil, representada especialmente pelas organizações não-governamentais e movimentos sociais voltados aos direitos humanos, sexuais e reprodutivos (GOMES; MENEZES, 2008, p. 80).

Os embates irrompem desse encontro de esferas distintas, porém permeáveis, redundando em críticas como as de Ivanildo Santos (2011, p. 18): O aborto é um dos temas que está no centro das discussões éticas, teológicas, políticas e jurídicas. De um lado, tem-se a Igreja e entidades de direitos humanos que lutam pela dignidade da vida e, por conseguinte, para garantir o direito do nascituro. Do outro lado, tem-se uma série de organizações, grupos de pressão política e posições ideológicas que, nem sempre tendo consciência do teor da discussão, defendem a legalização do aborto. Dentro dessa discussão emerge, entre outros, o argumento que a sociedade contemporânea é secular e leiga, logo é uma sociedade que abandonou ou

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rejeitou o princípio da sacralidade da vida. E, sem esse princípio, é possível se pensar na legalização da prática abortiva.

Mas a sociedade contemporânea, secular e laica não abandonou com desdém o princípio da sacralidade da vida, ao contrário, ao soerguer o estandarte dos direitos humanos, ao tê-los como a nova religião civil da humanidade, não poderia deixar de sustentar o princípio da sacralidade da vida humana, mesmo que não o faça, ou pense não fazer, a partir de visões religiosas. Como observa, ainda, Hannah Arendt (2007, p. 327): O motivo pelo qual a vida se afirmou como ponto último de referência na era moderna e permaneceu como bem supremo para a sociedade foi que a moderna inversão de posições ocorreu dentro da textura de uma sociedade cristã, cuja crença fundamental na sacrossantidade da vida sobrevivera à secularização e ao declínio geral da fé cristã, que nem mesmo chegaram a abalá-la. Em outras palavras, a moderna inversão imitou, sem questionar, a mais significativa viravolta com a qual o cristianismo irrompera no cenário do mundo antigo, viravolta politicamente mais importante e, pelo menos historicamente, mais duradoura que qualquer conteúdo dogmático ou crença específica.

O resultado da análise do conceito de sacralidade da vida humana, para utilizar termos comuns às ciências sociais, evidencia um processo recheado de bricolagens e aproveitamentos mútuos na formação do valor, ou bem, denominado sacralidade da vida humana. O uso do conceito na forma das diversas linguagens, gramáticas e apropriações dos direitos humanos demonstra sua força e eficácia. Como afirmaram os pragmáticos, A verdade corresponde ao que é vantajoso ao pensamento ou àquilo que gera uma relação satisfatória com a realidade, de tal forma que a vantagem e a satisfação estejam vinculadas ao que é útil, ao prático. Em outras palavras, a verdade corresponde ao que é bom. A verdade deve ser útil se considerada em termos práticos, os seus efeitos são as sensações que devemos esperar e as reações que devemos preparar (NASCIMENTO, 2011, p. 47).

Além de uma indisposição à escuta, ao outro, às perspectivas e valores alheios, as pessoas talvez, e é o que se verifica a seguir neste trabalho, ainda compreendam mal suas próprias convicções e estejam inconscientes de um possível núcleo comum a partir do qual irradiam suas crenças. O encontro a partir desse núcleo compartilhado de valor e significado poderia despontar como facilitador de diálogos. Afinal, segundo Dworkin (2009), mesmo as pessoas que se posicionam no campo chamado liberal (aquele no qual os indivíduos se posicionam favoravelmente ao aborto) aceitam tranquilamente ideia do valor intrínseco da vida humana, ou seja, de sua sacralidade, restando compreender a extensão e alcance que têm essa crença e valor.

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CAPÍTULO III

3 - A SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS HAVIDOS NA ADPF Nº 54 No ano de 2012 o tema da anencefalia ocupou considerável espaço na mídia brasileira. Encaminhava-se para o deslinde da ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, distribuída perante o Supremo Tribunal Federal como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54. A exposição na mídia, naturalmente, não propiciou a elucidação adequada de tudo que estava em questão. Após as provocações repletas de palavras de ordem restou, além do desinteresse, a persistente desinformação. Bons e maus, mocinhos e bandidos, morais e imorais, reducionismos, enfim, podem pautar opiniões e posturas, tanto de espectadores quanto de atores. Relevante é ter em conta que a problemática não trata de mecanismos e engrenagens, mas de seres humanos, seus anseios, crenças e sofrimentos. Portanto, considerou-se indispensável, antes da apresentação dos resultados obtidos quanto à análise dos discursos havidos no âmbito da ação em tela, trazer apontamentos acerca das considerações médicas, jurídicas e religiosas quanto à condição do feto ou bebê acometido pela anencefalia, interlocutores no processo relativo à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54, cuja decisão legalizou a antecipação do parto de feto anencéfalo.

3.1 – A CONDIÇÃO DO FETO ANENCÉFALO ANTE A CIÊNCIA, O DIREITO E A RELIGIÃO

O aspecto médico Discussões acerca do aborto invariavelmente passam por temas como o início da vida, o direito à vida, a inviolabilidade da vida, os direitos do nascituro, a dignidade humana, etc. Assim sendo torna-se indispensável que se apreenda o que estiver disponível quanto às condições biológica e médica do feto acometido por anencefalia, sem as quais ficariam relevantemente prejudicados quaisquer debates.

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O órgão atingido drasticamente pela má-formação denominada anencefalia é o encéfalo, que consiste na “parte do sistema nervoso central que se encontra alojada na caixa craniana, e que abrange o cérebro (ou córtex cerebral), cerebelo, ponte (ou protuberância) e bulbo raquiano. Inclui ainda o corpo caloso, o tálamo e o hipotálamo”20. Devido à complexidade de seu desenvolvimento embriológico, não é incomum seu desenvolvimento anormal na espécie humana. As malformações do sistema nervoso central – centro propulsor e coordenador de todas as manifestações vitais, quais sejam, as intelectivas, as sensitivas e as vegetativas – geram inúmeras doenças A anencefalia configura uma das malformações do encéfalo (LIMA, 2012, p. 75).

No anencéfalo está ausente grande parte do sistema nervoso central. Pela permanência de parte do tronco encefálico algumas funções básicas como a cardiorrespiratória e reações a determinados estímulos, como a manutenção da temperatura corporal e movimentos de sugação são mantidos. “No entanto, as reações são exclusivamente reflexas e, assim, típicas do estado vegetativo” (LIMA, 2012, p. 76). Não há possibilidade de funções relativas à cognição, percepção, consciência, emotividade ou comunicação. A incidência dessa má-formação estaria relacionada a fatores genéticos e ambientais que vão de localização geográfica à classe social passando por outros elementos como a época do ano. “As causas da anencefalia são variadas, mas a carência de ácido fólico após o parto é uma das mais comuns” (DINIZ, 2009, p. 1620). É mais comum no sexo feminino, com ocorrência superior em duas a quatro vezes em relação ao sexo masculino. É uma má-formação letal, a sobrevida extrauterina, quando ocorre, é por período de tempo muito pequeno. Aproximadamente 75% dos conceptos nascem mortos, e o restante, salvo raríssimas exceções, falece no período neonatal. Assim, apesar de os anencéfalos que nascem com vida sobreviverem geralmente poucas horas ou dias após o parto, há alguns registros de sobrevivência durante meses. Nos casos de sobrevivência após o parto, o prognóstico é certo. Há progressiva deterioração do organismo, até seu perecimento. Por ser um quadro irreversível, a manutenção da vida extrauterina de crianças nascidas com anencefalia é praticamente impossível (LIMA, 2012, p. 78).

Diante disso faz-se igualmente necessário discorrer quanto ao conceito médico de morte como cessação da vida. Como ocorre em relação à determinação do início da vida, a determinação de seu término também é alvo de controvérsias nas ciências médica e biológica. 20

ENCÉFALO: In: Dicionário Aulete Digital. . Acesso em 29/12/2014.

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“A realidade empírica demonstra e as ciências médicas comprovam que a morte não é, em geral, fenômeno instantâneo, mas um processo que se alonga no tempo[...] Não é, em geral, a parada total e instantânea da vida” (LIMA, 2012, p. 79). De todo modo, ainda que haja conceituações mais ou menos elaboradas quanto à definição de morte é preciso que se definam critérios para constatá-la. Até meados do século passado o fim das atividades respiratória e cardíaca bastavam para a afirmação do evento morte. Os desenvolvimentos das ciências médicas com novas técnicas e drogas para a reanimação, bem como o surgimento de aparelhos capazes de complementar ou substituir as atividades cardiorrespiratórias, impuseram a necessidade de outros critérios. Por meio de novos estudos e pesquisas na área, as ciências médicas passaram a adotar o critério da morte encefálica. Os primeiros estudos datam de 1959, realizados pelos médicos Mollaret e Goulon, que introduziram o termo coma dépassé, ou seja, o coma irreversível. Eles descreveram a situação de vários enfermos em coma, cujas funções cardiorrespiratórias eram mantidas artificialmente, mas sem nenhuma evidência de função cerebral (LIMA, 2012, p. 80).

Seguiram-se avanços quanto à detecção da morte encefálica, e os protocolos atualmente empregados originam-se de duas vertentes majoritárias. Uma delas, a americana, definiu a “morte encefálica como a cessação irreversível de todas as funções do encéfalo, incluindo as do tronco encefálico” (LIMA, 2012, p. 80). Essa vertente estabeleceu que todos os métodos disponíveis seriam empregados para a constatação dessa cessação, reconhecendo também que “a atividade celular elétrica, mesmo presente em um grupo restrito de células, somente seria considerada em funcionamento se fosse de forma organizada e direcionada” (LIMA, 2012, p. 80). A outra vertente, de origem britânica, defendeu a suficiência do diagnóstico clínico de morte irreversível do tronco encefálico para a decretação da morte encefálica. A realização de exames subsidiários não era necessária, nem tampouco obrigatória. Assim, definiu-se a morte como a perda completa e irreversível das funções do tronco cerebral[...] Atualmente a comunidade científica mundial aceita a constatação da morte encefálica como morte humana. Entretanto, o que vem gerando importante polêmica nas ciências médicas é que os critérios para diagnosticar-se a morte encefálica nem sempre são os mesmos. Não há unanimidade entre os estudiosos e pesquisadores na área das ciências médicas, quanto ao modo de averiguar-se a morte encefálica. Apesar das divergências, segundo Getúlio Daré Rabello: “É de larga aceitação atual o conceito de que a confirmação da morte encefálica deve se basear em três princípios fundamentais: irreversibilidade do estado de coma,

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ausência de reflexos do tronco encefálico e ausência de atividade cerebral cortical” (LIMA, 2012, p. 81).

A ciência médica constata que com a ocorrência da morte encefálica as funções vitais do corpo não permanecem operando além de um período de duas semanas, independentemente de quaisquer medidas médicas adotadas. Com a constatação da morte encefálica “há a possibilidade de removerem-se órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento” (LIMA, 2012, p. 81). Observa-se que na esfera jurídica, com importantes e numerosas consequências legais, o conceito estabelecido para a afirmação da morte é obtido das ciências médicas. Expostas definições e procedimentos para a constatação da morte encefálica cabe agora averiguar sobre a possibilidade de aplicação desses critérios quanto à condição da anencefalia. As ciências médicas reconhecem “que não há consenso quanto à aplicação de critérios atuais para diagnosticar a morte encefálica em crianças menores de sete dias e prematuros, o que incide em todos os casos de anencefalia” (LIMA, 2012, p. 84). A controvérsia parece se aprofundar diante do entendimento de alguns doutrinadores ao afirmarem axiologicamente “que o anencéfalo é um natimorto. Entretanto, se entender-se que ele já é um natimorto, não há que se comprovar sua morte, uma vez que já está morto” (LIMA, 2012, p. 85). O Conselho Federal de Medicina pela já revogada resolução n. 1752/2004, equiparava o anencéfalo ao natimorto cerebral e, pela resolução n. 1949/2010 definiu “que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica”21. Com a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de n,. 54, que decidiu pela constitucionalidade da antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo – demonstrando a já mencionada interação entre diferentes esferas – o Conselho Federal de Medicina publicou a resolução n. 1989/2012, definiu critérios para a constatação da má-formação e demais procedimentos para a interrupção da gravidez de anencéfalo. Porém, as controvérsias permanecem. Carolina Alves de Souza Lima (2012) postula que o “anencéfalo, contudo, tem vida e não pode ser equiparado ao natimorto” (p. 90), e ainda 21

Resolução CFM nº 1949/2010. Disponível em: . Acesso em: 03/01/2015.

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que o termo anencefalia (sem encéfalo) não se aplicaria adequadamente, posto que “um tronco cerebral rudimentar[...] está presente. Por esse motivo, o termo meroanencefalia (do grego meros, parte) é mais adequado para essa má-formação (p. 89). Conclui-se, portanto, que o anencéfalo tem vida, como demonstrado neste capítulo, uma vez que ele preserva o tronco encefálico, ou parte dele, e que é responsável pelas funções vitais vegetativas. Trata-se, todavia, de vida precária, porque a ausência de grande parte de encéfalo faz com que ele não apresente qualquer grau de consciência, bem como capacidade de percepção, de cognição, de comunicação, de afetividade e de emotividade. A precariedade da vida leva à sua efemeridade, porquanto o anencéfalo, quando não morre no período gestacional, falece geralmente nas primeiras horas após o parto (LIMA, 2012, p. 92).

De todo modo não constam questionamentos consistentes quanto à possibilidade de vida prolongada fora do útero do bebê acometido por anencefalia. O aspecto jurídico As discussões jurídicas quanto à condição do anencéfalo assumiram caráter retórico ou reverberativo após a decisão proferida na já mencionada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Todavia, o caminho trilhado até tal decisão está longe de ser plaino. Importantes juristas brasileiros posicionaram-se em polos divergentes quanto ao tratamento do tema da descriminalização do aborto de fetos anencéfalos. Apenas alguns desses posicionamentos, cujos argumentos seguiram-se à decisão liminar proferida nos autos da ADPF n. 54 pelo ministro Marco Aurélio Melo, que reconheceu o direito de as gestantes optarem pela interrupção da gravidez de feto anencéfalo, podem ser abordados nas dimensões deste trabalho. Para o então advogado Luís Roberto Barroso, representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, autora da ADPF n. 54, posteriormente nomeado para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal em 26/06/2013, a decisão que concedeu a liminar foi histórica em tema tão delicado. Barroso defendeu a constitucionalidade da antecipação terapêutica do parto de anencéfalo recorrendo, essencialmente, ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que, no conjunto da Constituição Federal de 1988, representaria a reaproximação entre direito e ética. [...]obrigar uma mulher a conservar no ventre, por longos meses, o filho que não poderá ter, impõe a ela sofrimento inútil e cruel. Adiar o parto, que não será uma

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celebração da vida, mas um ritual de morte, viola a integridade física e psicológica da gestante, em situação análoga à da tortura (BARROSO et. al, 2009, p. 22). Não há na ciência ou no direito consenso acerca do momento exato em que tem início a vida: esta é uma questão de fé. Mas há clara definição legal do momento em que ela termina: é pela morte cerebral, ocasião em que podem ser desligados os aparelhos e realizados os transplantes de órgãos. O feto anencefálico, tragicamente, sequer chega a ter vida cerebral. Resistem a esta conclusão inexorável setores religiosos minoritários, mas influentes. Os pontos de vista por eles respeitados merecem atenção e respeito. São dogmas da fé, veiculados por quem tem legitimidade para fazê-lo. Mas ciência, religião e Estado não compõem uma boa mistura, de Sócrates a Giordano Bruno, de Torquemada aos aiatolás iranianos. São planos diferentes da vida (BARROSO, et. al., 2009, p. 28).

O jurista Ives Gandra Martins coloca-se em oposição ao entendimento de Barroso e ao do ministro Marco Aurélio Melo, assim como ao que prevaleceu no Supremo Tribunal Federal. Estou convencido – apesar de ser eu um modesto advogado de província e ele, brilhante guardião da Constituição – de que a decisão [a liminar concedida] é manifestamente inconstitucional. Macula o artigo 5º da lei suprema, que considera inviolável o direito à vida. Fere o §2º do mesmo artigo, que oferta aos tratados internacionais que cuidam de direitos humanos a condição de cláusula imodificável da Constituição. Viola o artigo 4º do Pacto de São José, tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o Brasil aderiu, e que declara que a vida começa na concepção. Juridicamente, a antecipação, pelo aborto, da morte do anencéfalo é vedada pelo texto maior brasileiro (BARROSO, et. al., 2009, p. 33).

Para Ives Gandra Martins a permissão para o abortamento de anencéfalo, por estar condenado à morte, abriria as portas para a eutanásia de todos os doentes terminais ou afetados por doenças incuráveis. Martins também procura sustentar seu argumento mostrando duas decisões da Suprema Corte Americana em uma tentativa de afirmar uma analogia nos argumentos decisórios. Assim, Ives Gandra Martins faz alusão a uma decisão de 1857, que legitimava a escravidão e permitia ao proprietário do escravo mata-lo sem sanções penais, sob o argumento de não ser pessoa humana e pertencer a seu dono. E a outra, de 1973, conhecida como caso Roe x Wade, que teria permitido a prática do aborto optativo ao considerar que o nascituro não é pessoa e pertence à sua mãe. “Como se percebe, a corte americana usou os mesmos argumentos para justificar a escravidão e o aborto” (BARROSO et. al., 2009, p. 34). Outro conhecido jurista, Luiz Flávio Gomes, afirmou que não seria possível falar em delito em se tratando de feto anencéfalo, cuja vida resta completamente inviabilizada pela máformação. Em sua argumentação favorável à descriminalização da antecipação do parto de feto anencéfalo, Gomes afirma não ser possível conceber um aborto

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sem a verificação certa e indiscutível da inviabilidade vital do feto[...] Sem certeza científica, claro que não se deve admitir o aborto. Mas havendo certeza científica, não há dúvida que convicções ou crenças religiosas não constituem razões suficientes para se negar a possibilidade desse incomum aborto. O STF, em sua decisão sobre o assunto, certamente apoiará (por voto de maioria) o aborto anencefálico, condicionando-o (entretanto) à imprescindibilidade de que se trata efetivamente de um feto anencefálico, com perspectiva inviabilizada (ou seja: deve ser exigida a constatação médica fidedigna de duas coisas: feto anencefálico e inviabilidade da vida). Pois somente nessas circunstâncias justifica-se o abortamento, isto é, nessas circunstâncias a morte não é desarrazoada (arbitrária). Não se pode, destarte, falar em violação ao art. 4º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (BARROSO, et. al., 2009, p. 39).

No seguimento de sua argumentação Luiz Flávio Gomes defende a completa separação entre Direito e religião (grafado em letras minúsculas em seu texto), apelando para as elaborações do Iluminismo. Ciência é ciência, crença é crença. Razão é razão, tradição é tradição. Delito é delito, pecado é pecado (Beccaria). A religião não pode contaminar o Direito. As crenças não podem ditar regras superiores à ciência. Do Renascimento ao Iluminismo, de Erasmo a Rousseau, consolidou-se (entre os séculos XVII e XIX) a absoluta separação das instituições do Estado frente às tradições religiosas. O Estado tornou-se laico (ou secular). A Justiça e o Direito, desse modo, também são seculares (laicos) (BARROSO, et. al., 2009, p. 40).

Desconsiderando-se a equiparação feita pelo jurista entre os conceitos secular e laico, ele quer, de fato, afirmar que “não parece correto conceber que um juiz (que é juiz de direito) possa ditar sentenças segundo a dogmática cristã, de acordo com suas convicções religiosas, etc”. (BARROSO et. al., 2009, p. 40). Para o jurista não reconhecer a legalidade do aborto de anencéfalo seria um atraso civilizatório. Gomes entendeu que o pedido endereçado ao STF, pela interposição da ADPF n. 54, não se tratou de um pedido pelo reconhecimento de mais uma hipótese de aborto permitido, mas que se admitisse a normatividade da antecipação terapêutica do parto de anencéfalo, que não colidiria com qualquer norma vigente. “Ele não é, portanto, nem moralmente, nem juridicamente contra o Direito. Ao contrário, é por respeito à dignidade humana que ele deve ser admitido” (BARROSO et. al., 2009, p. 41). Nunca, entretanto, esse aborto poderá ser imposto, porque ninguém é obrigado a abortar. Toda gestante tem liberdade para fazê-lo ou não (de acordo com suas convicções pessoais e religiosas). Mas a que delibera sua realização não pode jamais ficar sujeita a qualquer tipo de sanção (ou de reprovação) (BARROSO et. al., 2009, p. 42).

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Em 12 de abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal proferiu sentença nos autos da ADPF n. 54. Tal sentença resultou na publicação de um documento de 433 laudas22, contendo relatório, explicações e votos dos ministros. Por maioria de votos o STF julgou procedente a ação movida pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O Acórdão foi publicado assim: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal, nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas.

Em suma, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a antecipação terapêutica do parto de anencéfalo não pode ser incluída na tipificação penal do aborto. “O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico e não patológico” (p. 3). Diante da inviabilidade da vida do feto anencéfalo não haveria outra questão em tela a não ser a autodeterminação da gestante. Nos documentos, votos, explicações, ementário, etc., os ministros do STF reafirmam a laicidade do estado brasileiro. Fazendo contraste com o termo laicismo, reafirmam o estado brasileiro como tolerante e democrático, mas que deve ser conduzido nos termos da razão pública. Isso não quer dizer, porém, que a oitiva de entidades religiosas tenha sido em vão. Como bem enfatizado no parecer da Procuradoria Geral da República relativamente ao mérito desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, “numa democracia, não é legítimo excluir qualquer ator da arena de definição do sentido da Constituição. Contudo, para tornarem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas” (folhas 1026 e 1027), ou seja, os argumentos devem ser expostos em termos cuja adesão independa dessa ou daquela crença (Acórdão, p. 12).

O aspecto religioso Segue-se a abordagem dos argumentos religiosos principais do campo religioso brasileiro quanto à condição do feto anencéfalo. Para tal são apresentados os argumentos presentes no cristianismo e no espiritismo, posto serem os segmentos com resposta positiva para o tema quando do levantamento bibliográfico. Salienta-se desde agora que existem posições divergentes dentro de instituições e de grupos com afirmação de identidade religiosa cristã – como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus e da organização Católicas pelo 22

Acórdão e demais peças processuais. Disponível em: . Acesso em: 17/05/2014.

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Direito de Decidir, que serão trazidos à presente discussão quando da análise dos respectivos discursos nas audiências públicas da ADPF n. 54. Ainda que o entendimento cristão prevalecente quanto à condição física e espiritual do feto anencéfalo tenha sido analisado a partir de considerações do segmento católico, não existe razão para considerar que o segmento evangélico não partilhe essencialmente da mesma acepção. Assim, o posicionamento oficial do Magistério Católico atende aos propósitos da pesquisa. O ser humano é tido como uma unidade complexa. Corpo e alma, ou corpo, alma e espírito, enfim, o espiritual e o biológico são realidades constitutivas do ser humano. “A alma está unida ao corpo não de uma maneira acidental, mas de uma forma substancial, isto é, o homem e a mulher participam de suas realidades pessoais graças ao espírito” (Questões de bioética, 2010, p. 14). A unidade formada por corpo e alma é substancial. O corpo humano não existira como unidade biológica se não tivesse antes sido (in)formado pela alma. E esta, criada por Deus no momento em que se compõe com o corpo. Jamais, então, qualquer intervenção no corpo humano deixa de ser uma intervenção no eu, no sujeito humano. “Participando da condição humana e da dignidade da pessoa, o corpo humano deve ser respeitado como um bem valioso, não por que vale para fins úteis, ainda que nobres, mas sim por seu valor individual” (Questões de bioética, 2010, p. 16). Essa composição sempre conferiria dignidade à pessoa desde as fases embrionárias e fetais. O ser humano assim compreendido é pessoa desde a concepção, ou não é jamais. A questão da identidade do embrião humano, do ponto de vista científico, é inquestionável, uma vez que não há nenhuma dúvida científica a respeito do zigoto, que é distinto da pessoa da mãe – não uma parte dela –, pelo programa genérico original que possui. A partir da fecundação, inicia-se o processo constitutivo autônomo de um novo indivíduo vivo, ainda que dependente do organismo materno; assim se dá na primeira, na segunda infância, até chegar à fase juvenil e adulta, quando a independência filial é quase total (Questões de bioética, 2010, p. 19).

A fim de estabelecer um estatuto do embrião, que possa definir a identidade humana do embrião e do feto, a Igreja Católica busca contribuições em diversas áreas do saber, sobretudo biologia e filosofia, mas também jurídica. Entretanto, importa que se destaquem os argumentos propriamente religiosos.

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A carta encíclica Evangelium Vitae (1995) ensina que a vida humana requer, por sua natureza, a não instrumentalização da pessoa e que entre os seres humanos haja uma relação de amor benevolente, que se realize na busca e na realização um do outro. Então, a vida humana é um bem a ser tutelado por todos (Questões de bioética, 2010, p. 47).

A vida humana é tida na referida encíclica como um valor seguramente sagrado, mas que não interpela apenas a crentes, posto ser um valor visível a todo ser humano pelas luzes da razão. E tal valor precisaria ser defendido, especialmente, em seu período de maior fragilidade, qual seja, a fase embrionária e fetal. Nenhum argumento teórico ou prático pode “justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente” (EV, n.58)[...] Reafirma-se que o embrião humano deve ser respeitado e tratado como um ser humano desde a sua fecundação e, por isso, desde esse momento deve-lhe ser reconhecido o direito inviolável de cada ser humano à vida (Questões de bioética, 2010, p. 48).

O valor absoluto da vida humana poderia ser comprovado pela simples presença de um ser humano, assim, qualquer ação ou intervenção no sentido de eliminar um embrião humano deveria ser alvo da “mais categórica proibição” (Questões de bioética, 2010, p. 49). Desse modo, diagnósticos pré-natais com perspectivas selecionadoras, “com a consequente destruição de embriões considerados descartáveis”, nutririam uma “mentalidade eugênica” (Questões de bioética, 2010, p. 42). Apesar de não tratar diretamente da condição do feto anencéfalo, a questão da anencefalia é citada na apresentação do documento (p. 5), e as prerrogativas atribuídas genericamente ao embrião são por extensão atribuídas ao feto anencéfalo: trata-se de um ser humano, desde a concepção, cuja vida, ainda que inviável em curtíssimo prazo, deve ser defendida. A perspectiva espírita para a condição do feto anencéfalo também trata do tema a partir da união entre alma e corpo, com suas particularidades, é claro, assume a crença na condição cármica como justificativa para a anomalia. Nesse momento, nunca é tarde para recordarmos Kardec em O livro dos espíritos, questão 334: Há predestinação na união da alma com tal ou tal corpo, ou só à ultima é feita a escolha do corpo que ela tomará? Resposta: “O espírito é sempre, de antemão, designado. Tendo escolhido a prova a que queira submeter-se, pede para encarnar. Ora, Deus, que tudo sabe e vê, já antecipadamente sabia e vira que tal espirito se uniria a tal corpo” (PRADA e outros, 2009, p. 187).

Pelas doutrinas espíritas tais pontos de vista biológicos, ou físicos estão submetidos a inteligências espirituais especializadas, que, em suas especificidades morais, deliberariam segundo as consciências dos espíritos encaminhados para o renascimento.

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Que tal sabermos a opinião de Emmanuel sobre o assunto, através do médium Francisco Cândido Xavier, em O Consolador, questão 39? Vamos a ela: Quais as causas do nascimento de monstruosidades entre os homens e entre os animais? Resposta: Entre os homens esses fenômenos dolorosos decorrem do quadro de provações purificadoras e constituem luta expiatória, não só para os pais sensíveis, como também para o espírito encarnado (PRADA e outros, 2009, p. 188).

A má-formação, qualquer uma, inclusive a anencefalia, seria assim resultado de uma questão cármica, de faltas cometidas na vida anterior, e o espírito reencarnado é quem dirige a formação do corpo nas condições necessárias a seu próprio aprimoramento. “Não podemos nos esquecer de que só o espírito tem capacidade de agregar matéria. Se não tivesse um espírito no comando não poderia formar os próprios órgãos” (PRADA e outros, 2009, p. 188). Situada a problemática da situação do feto anencéfalo em seus diversos eixos, tornase, assim se espera, mais nítido o trabalho de averiguação dos discursos laicos e religiosos tidos na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, suscitada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde perante o Supremo Tribunal Federal. 3.2 – ANÁLISE DO CONCEITO DE SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS QUE INTEGRAM A ADPF N. 54 Defrontamo-nos, evidentemente, com verdadeiro caleidoscópio ante as visões sobre o tema – Min. Marco Aurélio Melo (Audiência do dia 26/08/2008, p. 23).

A análise se desdobra, para fins de comparação, em dois eixos principais: o laico/secular e o religioso. Não se entende que as categorias sejam suficientemente estanques, mas se aceita que sejam representativas de dinâmicas e posicionamentos sociais reais. Além de que, não se discorda de Saulo de Tarso Cerqueira Baptista (2013), ao contrário, reconhecese também que lidaremos com definições do fenômeno religioso, em perspectivas que nos permitam abordá-lo no papel que exerce na sociedade, sem, contudo, isolá-lo da dimensão da experiência religiosa, posto que esta apresenta rebatimentos na ética de indivíduos em sociedade. O ser humano é um ser religioso. O homo sapiens é um homo religiosus. Não se conhece sociedade que ignore o sobrenatural, o transcendente, o além da matéria, e sobreviva na dimensão exclusiva de uma estreita racionalidade material (p. 139/140)

Assim, cientes de que o lugar determinado para os atores dos discursos é repleto de permeabilidades, escolhemos partir da proposta feita pelo Supremo Tribunal Federal para a disposição dos participantes das audiências públicas, e situamos o secular/laico e o religioso, a partir dos lugares (institucional, científico, religioso, etc.) de onde partiram suas falas.

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Foi por decisão do Ministro Marco Aurélio, datada de 31 de julho de 2008 que se definiu o ditame para a realização das audiências públicas, a fim de [...]ouvir entidades e técnicos não só quanto à matéria de fundo, mas também no tocante a conhecimentos específicos a extravasarem os limites do próprio Direito[...] Então, tenho como oportuno ouvir, em audiência pública, não só as entidades que requereram a admissão no processo como amicus curiae, a saber: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Católicas pelo Direito de Decidir, Associação Nacional Pró-vida e Pró-família e Associação de Desenvolvimento da Família, como também as seguintes entidades: Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, Sociedade Brasileira de Genética Clínica, Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, Conselho Federal de Medicina, Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sociais e Direitos Representativos, Escola de Gente, Igreja Universal, Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero bem como o hoje deputado federal José Aristodemo Pinotti, este último em razão da especialização em pediatria, ginecologia, cirurgia e obstetrícia e na qualidade de ex-Reitor da Unicamp, onde fundou e presidiu o Centro de Pesquisas Materno-Infantis de Campinas – CEMICAMP. Já agora incluo, no rol de entidades, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC23.

Para a efetivação das audiências públicas o Supremo Tribunal Federal estabeleceu três blocos com a ideia de aglutinar argumentos, “considerados os blocos religioso, comunitário e científico” (Audiência Pública do dia 28/08/2008, p. 92). Na audiência realizada no dia 26/08/2008, o bloco considerado religioso foi formado pela participação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, representada pelo padre Luiz Antônio Bento; da Igreja Universal, representada pelo bispo Carlos Macedo de Oliveira; pela Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, representada pelo dr. Rodolfo Acatauassú Nunes; pela organização Católicas pelo Direito de Decidir, representada pela professora Maria José Fontelas Rosado Nunes e pela Associação Médico-Espírita do Brasil, representada pela dra. Marlene Rossi Severino Nobre. Como se nota o segmento chamado evangélico foi representado apenas pela Igreja Universal – sem participação das chamadas igrejas históricas (presbiteriana, metodista, batista, etc.) – , que, ironicamente tem sua constituição como organização plenamente evangélica questionada por igrejas cristãs históricas, posto representar um afastamento das crenças, práticas e valores tradicionais das igrejas cristãs24.

23

Decisão, 31/07/2008. Disponível em: . Acesso em 24/11/2015. 24 Julgai Todas as Coisas. Uma Avaliação das Principais Crenças e Práticas da Igreja Universal do Reino de Deus. Disponível em: . Acesso em: 20/08/2015.

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O bloco destinado às argumentações médico-científicas ficou designado para o dia 28/08/2008, e contou com a participação do Conselho Federal de Medicina, representado pelo dr. Roberto Luiz D’Avila; Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, representada pelo dr. Jorge Andalaft Neto; Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, representada pelo dr. Heverton Neves Pettersen; Sociedade Brasileira de Genética Médica, representada pelo dr. Salmo Raskin; Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, representado pelo dr. Thomaz Rafael Gollop; Deputado Federal José Aristodemo Pinotti; Deputado Federal Luiz Bassuma; professora Lenise Aparecida Martins Garcia e Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero – ANIS, representada pela dra. Débora Diniz, integrante da equipe da organização Católicas pelo Direito de Decidir. Por fim, o bloco comunitário foi ouvido nos dias 04 e 16 de setembro de 2008. Desse grande bloco participaram o então Ministro da Saúde, sr. José Gomes Temporão; Associação de Desenvolvimento da Família, representada por Ieda Therezinha do Nascimento Verreschi; Escola de Gente, representada por Claudia Werneck; Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, representada pela dra. Lia Zanotta Machado; dra. Cinthia Macedo Specian; dr. Dernival Da Silva Brandão; Conselho Federal de Direitos da Mulher, representado pela dra. Jacqueline Pitanguy; dra. Elizabeth Kipman Cerqueira; Conectas Direitos Humanos e Centro de Direitos Humanos, representado por Eleonora Menecucci de Oliveira; Conselho Nacional de Direitos da Mulher, representado por Nilcéia Freire e Associação Brasileira de Psiquiatria, representada pelo dr. Talvane Marins de Moraes. Todas as audiências foram acompanhadas e tiveram manifestação do representante da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, a autora da ação, o então advogado Luís Roberto Barroso, hoje ministro do STF e de representante da Procuradoria-Geral da República. Desse modo temos um bloco destinado ao segmento religioso e outros destinados ao mundo científico e à sociedade civil, além do produto judicial entregue ao final do julgamento, o Acórdão, que serão identificados como o bloco laico dos discursos.

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3.2.1

– ANÁLISES INTRODUTÓRIAS25

Mediante a elaboração de um léxico apropriado aos objetivos pretendidos, obtivemos resultados quanto à frequência de palavras, suas ocorrências e o lugar ocupado na árvore de significações e as nuvens de palavras. Figura 1 - Nuvem de palavras (bloco religioso)

Figura 2 – Nuvem de palavras (bloco médico)

Figura 3 – Nuvem de palavras (bloco comunitário)

Figura 4 – Nuvem de palavras (Acórdão)

Dentre as 1.000 palavras com três letras ou mais de maior frequência/permanência destaca-se a palavra vida, que foi utilizada 1.050 vezes, assim distribuída: no bloco religioso 56 vezes e no bloco laico outras 994 vezes (88 no bloco médico, 146 no bloco comunitário e 760 vezes no Acórdão). Seguida pelo vocábulo direito, utilizado 687 vezes: 25 no bloco religioso., 42 no bloco médico, 71 no bloco da sociedade civil e 549 no Acórdão. Não devemos perder de vista no presente percurso a proporção entre os materiais em análise. A transcrição da audiência relativa ao bloco religioso ocupa 58 laudas, a relativa ao

25

Para auxílio na análise dos discursos utilizou-se ferramenta digital, o programa NVivo10 for Windows, da empresa QSR Internacional. Trata-se de ferramental robusto para a análise quantitativa e qualitativa de texto e outras mídias.

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bloco médico-científico 113 laudas, o bloco da sociedade civil 179 e o Acórdão possui 433 laudas. Assim, é de se esperar uma ocorrência maior de termos à medida que se amplia a quantidade de material relativo a cada segmento. A proximidade entre as ocorrências ou a inversão proporcional das ocorrências é indicativa da importância do conceito e da mensagem para o segmento com menos material discursivo. A afirmação da laicidade e da secularização A análise dos termos compilados para indicar nos discursos abordados a pluralidade da sociedade, seu grau de maturação democrática, laicidade e secularização aproximam-se das elaborações desenvolvidas no primeiro capítulo desta pesquisa. A referência à democracia e aos processos democráticos ocorrem 14 vezes nos três blocos de audiências públicas. São cinco ocorrências no bloco religioso e no médicocientífico, e mais quatro no bloco destinado à sociedade civil. No imenso Acórdão proferido a referência à democracia e aos processos democráticos foi encontrada 54 vezes. Majoritariamente as expressões referem-se ao contexto mesmo das audiências públicas, tidas como marco democrático ao permitir a manifestação de amplos e diversos setores da sociedade, como na manifestação de Maria Rosado Nunes, representando a organização Católicas pelo Direito de Decidir: Em um contexto democrático, é de pleno direito que a Igreja Católica, assim como todos os outros grupos religiosos, como parte legítima da sociedade civil brasileira que são, expressem publicamente o seu pensamento. É desejável que haja a mais ampla manifestação da sociedade a respeito de questões sobre as quais ainda não se constituiu um consenso (Audiência Pública do dia 26/08/2008, p. 40).

Mas também serviram para afirmar a laicidade do Estado brasileiro, como na fala de Thomaz Rafael Gollop, representando a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, “Finalmente os cientistas brasileiros defendem a democracia plural e laica” (Audiência Pública do dia 28/08/2008, p. 99) e na de Jacqueline Pitanguy, pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher: Essa mulher é cidadã de um país democrático, plural e regido por um estado laico. A separação entre igreja e estado é um pilar da nossa República e a sua defesa é fundamental para que os direitos civis, políticos, sexuais e reprodutivos de todos os brasileiros e brasileiras que, com crenças religiosas e filosóficas diversas, convivem como cidadãos e cidadãs com igualdade de direitos e deveres (Audiência Pública do dia 04/09/2008, p. 96).

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Os vocábulos laico(a), laicidade e laicismo foram utilizados em 82 oportunidades. No bloco médico-científico, além da menção ao estado laico na citação imediatamente acima, há apenas outra referência direta à laicidade, na fala da dra. Débora Diniz, representando o Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero: Afirmar a laicidade do Estado brasileiro não significa ignorar a importância das religiões para a vida privada das pessoas e de nossas comunidades morais. Significa reconhecer que, para a vida pública, a neutralidade do Estado é um instrumento de segurança e, nesse caso, de proteção à saúde e à dignidade das mulheres.

Nos vários discursos da sociedade civil o vocábulo laico está presente em apenas dois momentos, naquele que acompanha a referência ao aparato democrático na fala de Jacqueline Pitanguy, já citada anteriormente, e no discurso do Subprocurador-Geral da República, sr. Mário José Gisi: Reivindicou-se reiteradamente, e diria mais, perpassou na grande maioria das exposições aqui feitas a necessidade de lembrarmos que o Estado é laico, da mesma forma a palavra respeito permeou o evento como um todo; respeito parece ser o elemento chave para deliberar-se a propósito de um tema que envolve perspectivas sociais, culturais e religiosas diversas (Audiência Pública do dia 16/09/2008, p. 74).

O binômio democracia-laicidade esteve marcadamente presente para indicar e enaltecer a pluralidade promovida nas audiências públicas, no encerramento das audiências, Luís Roberto Barroso, advogando em favor da autora da ação frisou: Em primeiro lugar, é muito importante agradecer às diferentes entidades religiosas, científicas, médicas e da sociedade civil que aqui acorreram. Gostaria de agradecer com muita sinceridade quer aos que se manifestaram favoravelmente à tese que postulamos, quer aos que se manifestaram em sentido diverso. Como já disse aqui – e sei que Vossa Excelência concorda com esse entendimento –, quem pensa diferente de mim não é meu inimigo ou adversário, é meu parceiro na construção de uma sociedade plural, em que as pessoas devem ter o direito de viver os seus valores, de viver as suas crenças e de viver as suas escolhas (Audiência Pública do dia 16/09/2008, p. 67/68).

Assim como para reafirmar a independência estatal quanto a quaisquer crenças específicas, como na fala de Maria José Fontelas Rosado Nunes, representante da organização Católicas pelo Direito de Decidir, única participante do bloco religioso que utilizou os termos laico e laicidade, sempre no sentido abaixo: O caráter laico do Estado é uma condição imprescindível para o pleno exercício da cidadania de todas as pessoas e para a proteção dos direitos constitucionais, a liberdade e a autodeterminação. Por isso, não se pode impor a toda sociedade, cada dia mais diversa em suas adesões religiosas –

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como já foi dito aqui pelo bispo Edir Macedo [sic] -, a agenda moral das religiões, traduzindo-as em políticas públicas destinadas a todas as cidadãs e cidadãos do País. Seria um desrespeito à própria Constituição (Audiência Pública do dia 26/08/2008, p. 39).

O vocábulo laicismo foi utilizado, uma única vez, pelo bispo Carlos Macedo de Oliveira, representando a Igreja Universal do Reino de Deus, em descompasso com o sentido essencial já apresentado no primeiro capítulo desta pesquisa, e com o uso dado pela Suprema Corte, como se verá adiante. Em primeiro lugar, pontuamos que a Igreja Universal do Reino de Deus compreende o laicismo do Estado, o respeita e o defende conforme determinado por nossa Carta Magna, assim como a garantia da liberdade de culto. Se fosse diferente, a promoção da justiça social ficaria comprometida (Audiência Pública do dia 26/08/2008, p. 19).

No Acórdão, a referência ao Estado laico e à laicidade foi contada 66 vezes. Trazemos alguns trechos dos diversos votos que compõe o Acórdão, aptos a sintetizar o norteamento da Corte quanto à laicidade, e consequentemente à democracia e à pluralidade. Da lavra do Ministro Marco Aurélio Melo: Conclui-se que, a despeito do preâmbulo, destituído de força normativa – e não poderia ser diferente, especialmente no tocante à proteção divina, a qual jamais poderia ser judicialmente exigida –, o Brasil é um Estado secular tolerante, em razão dos artigos 19, inciso I, e 5º, inciso VI, da Constituição da República. Deuses e césares têm espaços apartados. O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro (Acórdão, p. 39). Se, de um lado, a Constituição, ao consagrar a laicidade, impede que o Estado intervenha em assuntos religiosos, seja como árbitro, seja como censor, seja como defensor, de outro, a garantia do Estado laico obsta que dogmas da fé determinem o conteúdo de atos estatais. Vale dizer: concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada. A crença religiosa e espiritual – ou a ausência dela, o ateísmo – serve precipuamente para ditar a conduta e a vida privada do indivíduo que a possui ou não a possui. Paixões religiosas de toda ordem hão de ser colocadas à parte na condução do Estado. Não podem a fé e as orientações morais dela decorrentes ser impostas a quem quer que seja e por quem quer que seja. Caso contrário, de uma democracia laica com liberdade religiosa não se tratará, ante a ausência de respeito àqueles que não professem o credo inspirador da decisão oficial ou àqueles que um dia desejem rever a posição até então assumida (Acórdão, p. 42)

No voto da Ministra Carmem Lúcia:

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Estado laico é aquele que respeita a diversidade de pontos de vista dos diversos credos sem, contudo, deixar-se influenciar por algum deles em específico (Acórdão, p. 229)

E ainda no voto do Ministro Gilmar Mendes: O amplo debate ético e moral que a presente discussão envolve despertou a manifestação de diversas organizações da sociedade, inclusive as de caráter religioso. Nesse contexto, é importante refutar a compreensão de que o Estado laico previsto na CF/1988 impede a manifestação e a participação de organizações religiosas nos debates públicos. Os argumentos de entidades e organizações religiosas podem e devem ser considerados pelo Estado, pela Administração, pelo Legislativo e pelo Judiciário, porque também se relacionam a razões públicas e não somente a razões religiosas. A propósito, o Conselho Nacional de Justiça organizou recentementeSeminário Internacional sobre o Estado Laico e a Liberdade Religiosa acentuando o caráter de separação, mas também de cooperação mútuaentre Estado e Confissões Religiosas (Acórdão, p. 271). Este julgamento, que é efetivamente histórico, eis que nele estamos a discutir o alcance e o sentido da vida e da morte, revela que o Direito, em nosso País, estruturado sob a égide de um Estado laico, secular e democrático, é capaz de conferir dignidade às experiências da vida e aos mistérios insondáveis da morte, possibilitando, assim, que esta Suprema Corte supere os graves desafios representados pelos dilemas éticos e jurídicos resultantes do litígio ora em debate, o que permitirá, ao Tribunal, no caso em análise, proferir decisão impregnada da mais elevada transcendência, porque motivada pelo exame de temas instigantes que nos estimulam a julgar esta controvérsia a partir da perspectiva emancipatória dos direitos humanos. (Acórdão, p. 314). O conteúdo material da liberdade religiosa compreende, na abrangência de seu significado, a liberdade de crença (que traduz uma das projeções da liberdade de consciência), a liberdade de culto e a liberdade de organização religiosa, que representam valores intrinsecamente vinculados e necessários à própria configuração da ideia de democracia, cuja noção se alimenta, continuamente, dentre outros fatores relevantes, do respeito ao pluralismo[...] impõe-se, como elemento viabilizador da liberdade religiosa, a separação institucional entre Estado e Igreja, a significar, portanto, que, no Estado laico, como o é o Estado brasileiro, haverá, sempre, uma clara e precisa demarcação de domínios próprios de atuação[...] de tal modo que a escolha, ou não, de uma fé religiosa revele-se questão de ordem estritamente privada, vedada, no ponto, qualquer interferência estatal, proibido, ainda, ao Estado, o exercício de sua atividade com apoio em princípios teológicos, ou em razões de ordem confessional (p. 333/334).

Diante das alegações do STF quanto à laicidade e a postura por ela imposta ao Estado e seus agentes, poderíamos discorrer extensamente quanto ao inevitável papel da moral na política e no direito, e quanto à possibilidade de haver, de fato, sustentação de valores absolutos, como aquele que estabelece o direito à vida e à dignidade humana tão somente em termos radicalmente autônomos de racionalidade materialista, naturalista e empírica,

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entretanto, por não ser objeto imediato da pesquisa, apenas cita-se que existem considerações densas e interessantes sobre o tema26. Prosseguindo, é relevante trazer ao texto a menção ao vocábulo laicismo, efetuado conceitualmente em uma única ocasião no Acórdão, para sublinhar a distinção entre laicidade e laicismo, no voto do relator, Ministro Marco Aurélio, que se vale de uma citação extraída de Jonatas Eduardo Mendes Machado, na obra Liberdade religiosa numa comunidade inclusiva (Coimbra Editora, 1996, p. 306/307): “Laicidade significa uma atitude de neutralidade do Estado, ao passo que laicismo designa uma atitude hostil do Estado para com a religião” (Acórdão, p. 36 e 71). Encontram-se nos discursos analisados ecos às constatações anteriormente elaboradas quanto à laicidade. Há uma separação legal, constitucional, entre Estado e religiões, mas as interações provocam tensões ao mesmo tempo em que sugerem cooperação, escuta e participação, contanto que tal se dê em termos de razões públicas. Vejamos as considerações explicitadas no texto do relator, Ministro Marco Aurélio: A questão posta neste processo – inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual configura crime a interrupção de gravidez de feto anencéfalo – não pode ser examinada sob os influxos de orientações morais religiosas. Essa premissa é essencial à análise da controvérsia. Isso não quer dizer, porém, que a oitiva de entidades religiosas tenha sido em vão. Como bem enfatizado no parecer da Procuradoria Geral da República relativamente ao mérito desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, “numa democracia, não é legítimo excluir qualquer ator da arena de definição do sentido da Constituição. Contudo, para tornarem-se aceitáveis no debate jurídico, os argumentos provenientes dos grupos religiosos devem ser devidamente ‘traduzidos’ em termos de razões públicas” (folhas 1026 e 1027), ou seja, os argumentos devem ser expostos em termos cuja adesão independa dessa ou daquela crença (Acórdão, p. 43).

E no voto do ministro Gilmar Mendes: O amplo debate ético e moral que a presente discussão envolve despertou a manifestação de diversas organizações da sociedade, inclusive as de caráter religioso. Nesse contexto, é importante refutar a compreensão de que o Estado laico previsto na CF/1988 impede a manifestação e a participação de organizações religiosas nos debates públicos. Os argumentos de entidades e organizações religiosas podem e devem ser considerados pelo Estado, pela Administração, pelo Legislativo e 26

Vide, por exemplo, Uma ética laica, de Richard Rorty (Editora Martins Fontes, 2010); A unidade do conhecimento: Consiliência, do entomologista Edward Wilson (Campus, 1999); O nascimento da lei moderna, de Michel Bastit (Martins Fontes, 2010); Direito e moral, de Jürgen Habermas (Instituto Piaget, 1999); O combate moral, de Heidi M. Hurd, (Martins Fontes, 2003) e Os fundamentos morais da política, de Ian Shapiro (Martins Fontes, 2006).

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pelo Judiciário, porque também se relacionam a razões públicas e não somente a razões religiosas. A propósito, o Conselho Nacional de Justiça organizou recentemente Seminário Internacional sobre o Estado Laico e a Liberdade Religiosa, acentuando o caráter de separação, mas também de cooperação mútua entre Estado e Confissões Religiosas (Acórdão, p. 271/272).

A acolhida institucional promovida e declarada pelo Supremo Tribunal Federal, entretanto, não, minimiza que as razões públicas buscadas pela Suprema Corte brasileira pairavam ao redor de questões médico-científicas, indicativo de secularização de nossa sociedade. As definições que pautaram a decisão vieram maciçamente das argumentações médico-científicas. Tanto assim que soou muito peculiar que a extrema cordialidade, respeito e acolhida de Luís Roberto Barroso quanto a argumentos contrários aos que defendeu tenha restado maculada em uma única ocasião, e não foi nas falas da CNBB, da Associação Nacional PróVida e Pró-Família ou da Associação Médico-Espírita do Brasil no bloco religioso das audiências, mas na última das audiências públicas, destinada ao bloco comunitário, ou da sociedade civil, após a fala da Dra. Elizabeth Kipman Cerqueira, especialista em Ginecologia e Obstetrícia. A Dra. Elizabeth Kipman apresentou argumentos médicos contrários àqueles que apontam para a ausência de atividade encefálica do feto anencéfalo, que corresponde à morte cerebral, suficiente para a afirmação de óbito; assim como contrários aos argumentos que apresentaram informações quanto aos maiores riscos em levar adiante a gravidez ao invés de interrompê-la. Trazemos alguns trechos do debate que se desenrolou: O SR. LUÍS ROBERTO BARROSO – [...] A senhora, repetidamente, utilizou o termo aborto, e essa é uma questão sensível para nós, gostaria de ter clara a sua posição. A senhora acha que a interrupção da gestação de um feto anencéfalo - cuja probabilidade de morte é de cem por cento em curto prazo - é a mesma situação de um feto com potencialidade de vida extrauterina normal? A senhora acha que o emprego do mesmo termo é cientificamente adequado? A SRA. ELIZABETH KIPMAN CERQUEIRA – Dr. Barroso, eu não acho, isto é, isto está nos livros, isto está na definição. Desculpe-me falar com um atrevimentozinho: o senhor chegou atrasado. Então, no comecinho, eu coloquei claramente que é impossível determinar a morte encefálica de um nenê intra-útero, assim como não foi possível determinar a morte encefálica das crianças que nasceram vivas com anencefalia. Portanto, interromper a gravidez após vinte e quatro semanas é realmente provocar a morte antecipada dos fetos.

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O SR. LUÍS ROBERTO BARROSO – Eu entendo. O mundo em que eu habito, Drª Elizabeth, tem menos verdades plenas e menos certezas absolutas, mas respeito o mundo em que a senhora habita (Audiência do dia 16/09/2008, p. 16-17) [...] O SR. LUÍS ROBERTO BARROSO - Gostaria que a senhora só respondesse o que perguntei. A dúvida é: é crime ou não? Se a senhora acha que é crime, a senhora acha que esta mulher deve ser presa; se acha que não, essa mulher não deve ser presa. Não há meio termo. A SRA. ELIZABETH KIPMAN CERQUEIRA – Dá licença, deixe-me responder. O senhor, como advogado, pode me falar de situações em que não há punição, no Direito? Por exemplo, um filho que rouba os pais. Há situações, no Direito, em que esse crime não é punido[...] O SR. LUÍS ROBERTO BARROSO – Estou satisfeito, senhor Presidente (Audiência do dia 16/09/2008, p. 20).

Expressões que contiveram termos como médico, médica, medicina, ciência, cientista e científico foram utilizadas no Acórdão 391 vezes, no bloco comunitário 124 vezes, no bloco médico-científico125 vezes e no bloco religioso 50 vezes. Mesmo nas falas presentes no bloco religioso a ciência foi citada para firmar, autorizar, ou para trazer posicionamentos morais em termos de aceitáveis razões públicas. O SR. PAULO SILVEIRA MARTINS [representando a CNBB] – Primeiramente, as crianças todas que estavam com touquinhas, ali, eram anencéfalas mesmo e esse documento do Comitê Nacional de Bioética da Itália está subscrito por dezenas de expoentes na ciência internacional, que dizem, com toda clareza, que a anencefalia não é algo certo e determinado, mas é algo contínuo que vai de formas menos graves a formas mais graves. Esse é um dado estabilizado na ciência e não há de ser retrucado (Audiência do dia 26/08/2008, p. 18).

As argumentações científicas, norteadoras majoritárias da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, demonstram que a secularização da sociedade segue nos termos suscitados anteriormente. A forte presença das religiões no cenário público brasileiro, com todas as tensões e expectativas de ameaças de direitos e liberdades que estão na percepção de determinados segmentos,

não significa necessariamente que estas tenham crucial força

normativa ampla e multidirecional nos processos sociais, e nas escolhas pessoais, haja vista posicionamentos contrários de integrantes do bloco religioso das audiências quanto à legalização ou não da antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos e mesmo na escolha de antecipação do parto feita por gestante declarada evangélica (Audiência do dia 04/09/2008, p. 66). Enfim, argumentos de cunho estritamente religioso e dogmático não tiveram ou teriam impacto sobre a decisão técnica adotada pelo STF.

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Pontuamos também falas nas quais se procurou demonstrar que é preciso moralizar a ciência, torná-la sensível às subjetividades e nuances humanas, fazê-la operar em sentidos para além do empirismo e do pragmatismo, afastá-la de conclusões que possam soar e se desdobrar em possíveis e temerárias concretizações consideradas indignificantes. Envolvê-la no apelo ao sentimento do caráter sacro da vida. Como, por exemplo, na fala do então deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, sr. Luiz Bassuma, contrário à legalização da antecipação do parto de anencéfalos: Poderemos chegar, então, um dia, onde uma criança de seis, sete, oito, dez anos, por ter sido queimada, por ter perdido alguns membros alguém falar: estamos diante de um monstro e, portanto, vamos eliminá-la, por que ela passou a ser chocante, feia. A ciência, Senhor Presidente, a Justiça e nós legisladores temos que trabalhar pela vida para garantir a qualidade de vida, nunca matar para evitar um problema. Nunca! E podemos ir mais longe, porque o aborto está intimamente ligado à eutanásia. Sem dúvida está. É a eliminação de uma vida que incomoda, que é cara. Ora, poderemos chegar a um ponto, utilizando do pressuposto de que já aceitamos o aborto para os anencéfalos; então, que um cidadão de idade, um homem com setenta anos, oitenta anos, de repente, é acometido do Mal de Alzheimer e passa a ser um incômodo, um estorvo, incomoda muito, vamos eliminá-lo também, por que não? É o mesmo princípio (Audiência do dia 28/08/2008, p. 46).

E também no discurso do padre Luiz Antônio Bento, também representando a CNBB: Quanto ao sofrimento da gestante e da família, este sofrimento a todos sensibiliza. Não podemos ser indiferentes a essa dor e angústia. Não significa que nós somos insensíveis ao sofrimento da mãe, ao sofrimento do pai, ao sofrimento de toda a família, daqueles que convivem com essa realidade. Mas esse sofrimento não justifica nem autoriza o sacrifício da vida do filho que se carrega no ventre. Mas esse sofrimento, portanto, precisa ser acolhido por todos, porque, quando a Medicina não pode curar, ela ainda pode fazer muita coisa, pode aliviar o sofrimento, pode confortar, pode estar presente na vida desses pacientes. E, neste caso, são dois os pacientes: a mãe e o filho que precisam dos cuidados.

A prática médica e seu instrumental tecnológico, mesmo sendo o corpo argumentativo principal para a formação do juízo sobre os fatos que culminou na decisão que legalizou a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos, também foi incluída em aspectos de respeito à individualidade, consciência e dignidade humana de todos os atores envolvidos na problemática da anencefalia, como na fala do dr. Roberto Luiz D´Ávila, representando o Conselho Federal de Medicina, favorável ao pleito da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde: Não conseguimos fazer Medicina impondo a nossa vontade, ou a vontade pura da ciência, ou as nossas convicções religiosas que devem ser respeitadas também. Sempre que um médico encontra-se diante de um dilema, mesmo que permitido legalmente, ele poderá manifestar a sua objeção de consciência; se respeitamos a autonomia dos pacientes, também

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queremos ser respeitados em nossa autonomia (Audiência do dia 28/08/2008, p. 5/6).

Buscando significações que remetam à laicidade, pluralidade, democracia e secularização, foi possível obter na árvore de palavras (fig. 5 – miniatura) resultado que aponta para a centralidade do termo medicina nos votos e sentença proferidas no Acórdão (fig. 7, p. 135). Figura 5 (árvore de palavras) - miniatura

A Bíblia foi citada apenas duas vezes. Uma vez no Acórdão, no voto do Ministro Celso de Mello O único critério a ser utilizado, portanto, na solução da controvérsia ora em exame é aquele que se fundamenta nos textos da Constituição, dos tratados e convenções internacionais e das leis da República e que se revela informado por razões de caráter eminentemente social e de natureza pública[...] este Supremo Tribunal Federal deve sustentar o seu julgamento em razões eminentemente não religiosas[...] considerada a realidade de o Estado brasileiro, fundado no pluralismo de ideias e apoiado em bases democráticas, qualificar-se como uma República essencialmente laica e não confessional, para não se repetir, uma vez mais, o gravíssimo erro histórico em que incidiu, em 1633, o Tribunal do Santo Ofício, quando constrangeu Galileu Galilei (“eppur si muove!”), sob pena de condenação à morte na fogueira, a repudiar as suas afirmações (cientificamente corretas) a propósito do sistema heliocêntrico, reputadas incompatíveis com a Bíblia pelas autoridades e teólogos da Igreja de Roma (Acórdão, p. 339).

E outra no bloco religioso, na fala do representante da Igreja Universal do Reino de Deus, Bispo Carlos Macedo de Oliveira, em sua defesa pela legalização do aborto: A Bíblia Sagrada faz menção, no livro de Eclesiastes: Se alguém gerar cem filhos e viver muitos anos, até avançada idade, e se a sua alma não se fartar do bem, e além disso não tiver sepultura, digo que um aborto é mais feliz do

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que ele. Lembrando que a definição para “bem”, dentre outras coisas, é tudo aquilo que possa satisfazer uma necessidade. Vejam que essa passagem bíblica nos remete à triste realidade em que muitas pessoas espalhadas por todo o Brasil e pelo mundo afora se encontram. Essa exclusão já é uma tipificação da prática abortiva (Audiência do dia 26/08/2008, p. 20).

A palavra pecado foi citada uma única vez, no bloco da sociedade civil, pelo SubProcurador Geral da República, Mario José Gisi, [...] respeito parece ser o elemento chave para deliberar-se a propósito de um tema que envolve perspectivas sociais, culturais e religiosas diversas; respeito que devemos ter às convicções religiosas que, dentro de seu contexto, consideram pecado contra a vida e contra Deus a interrupção da gravidez e, portanto, há de proibir a seus fiéis tal prática, da mesma forma respeito àqueles que professam religiões que condenam a transfusão de sangue, mesmo com risco de morte; (Audiência do dia 16/09/2008, p. 74).

Cristianismo foi citado apenas quatro vezes, e todas no Acórdão, uma vez para associá-lo à dominação masculina (p. 232), outra para afirmar que o entendimento de que o feto é sim portador de vida é anterior ao cristianismo (p. 343) e outras duas na secção denominada Explicação, cujo excerto trazemos a seguir: O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Senhor Presidente, estou fazendo essas observações porque a presença no debate das entidades religiosas faz com que, às vezes, essas entidades sejam quase que colocadas nesse julgamento no banco de réus, como se estivessem a fazer algo de indevido. E é bom que se diga que elas não estão fazendo algo de indevido, ao apresentarem as advertências que lhes incumbe enquanto missão institucional. Por outro lado, Presidente, é preciso tratar dessa temática de forma “desemocionalizada”. A herança religiosa, que se reflete inclusive nos feriados nacionais, pode se revelar em fontes racionais e emocionais de consenso de que necessita o estado constitucional, no dizer de Peter Häberle. Eu, recentemente, acompanhava esse célebre caso dos crucifixos, agora referidos, a partir da decisão do Conselho Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul, e ficava preocupado com esse tipo de desenvolvimento. Talvez, daqui a pouco, nós tenhamos a supressão do Natal em nosso calendário – para isso chama a atenção Häberle –, ou, sei lá, a revisão do calendário gregoriano. Quer dizer, toda a cultura cristã. O domingo – embora o texto constitucional até diga que o descanso há de se fazer, preferencialmente, aos domingos – já foi objeto até de discussão. Ou, sei lá se alguma figura inspirada, numa ação civil pública, não vai pedir a supressão do Cristo ou a demolição do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Em suma, é preciso ter muito cuidado com esse tipo de delírio, com esses faniquitos anticlericais. O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO - A figura de Cristo está muito acima do vínculo entre Cristo e cristianismo, por exemplo. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Sim. O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO - E é um fenômeno eminentemente[...] O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Tanto é que marca uma civilização.

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O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO - Toda uma civilização. O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES - Tanto é que marca um tempo. Então, é preciso ter muito cuidado. O SENHOR MINISTRO AYRES BRITTO - E, culturalmente, tão significante a presença de Cristo, tão plasmadora, digamos assim, do nosso modo de conceber a vida, de praticá-la, que foi ele o único ser humano que, no mundo ocidental, rachou a história da humanidade em dois períodos, antes e depois dele. Quer dizer, isso justifica, sim, o culto à liderança exercida por Cristo no mundo inteiro, independentemente do cristianismo. O SENHOR MINISTRO LUIZ FUX - Ministro Ayres, se Vossa Excelência me permite: ontem, eu acho que a tônica do debate foi exatamente o respeito ao pluralismo. Isto ficou bem patente aqui, tanto que foi destacado que se respeitava a posição daqueles que entendiam que deveriam levar a cabo o parto segundo as suas convicções. Todas as convicções foram aqui respeitadas, não houve nenhum movimento extremo de repúdio a qualquer tipo de ideologia. Houve um respeito ao pluralismo, que é um dever de ofício desta Casa (p. 310/311).

Deus foi citado 25 vezes, sendo 2 vezes no bloco religioso, uma vez no bloco médico, 6 no bloco comunitário e 16 no Acórdão. No bloco religioso Deus esteve presente na fala do Bispo Carlos Macedo de Oliveira, reportando à concessão do livre-arbítrio e à acolhida da diversidade. No bloco médico foi utilizada como interjeição (se Deus quiser) pelo médico José Aristodemo Pinotti (p. 75). No bloco da sociedade civil surge quatro vezes em falas populares envolvendo situações vividas por gestantes de fetos anencéfalos, uma vez na fala do especialista em ginecologia e obstetrícia, dr. Dernival da Silva Brandão, também como interjeição: “nos casos que estiveram em minhas mãos – graças a Deus –, nenhuma fez o aborto” (p. 80) e a outra na fala já citada do Sub-Procurador Geral da República junto ao termo pecado. No Acórdão Deus é citado 10 vezes em contexto de reafirmação da laicidade estatal e outras 6 em contextos mais peculiares. Hoje de manhã, acordei e agradeci a Deus por poder contribuir com a humanidade por meio de uma decisão que pode conjurar tristezas, angústias, dores, aflições e, ao mesmo tempo, pedi a Deus que a razão e a paixão me acompanhassem no exercício desse mais alto apostolado que um ser humano pode se dedicar nesse mundo de Deus: a magistratura [Min. Luiz Fux] (p. 154/155). Qualquer pessoa (não precisa nem de ter lido literatura jurídica), quem tiver tido a oportunidade de ler "Manuelzão e Miguilim", de Guimarães Rosa, haverá de saber que talvez o grande exemplo de dignidade humana que Deus tenha deixado tenha sido exatamente o da mãe - e olha que eu tenho um super pai! A dignidade da mãe vai além dela mesma, além do seu corpo [Minª. Carmem Lúcia] (p. 174).

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E ainda outra vez no voto da Ministra Carmem Lúcia, no contexto de uma tentativa de diferenciação entre o conceito cristão de dignidade humana, que remete à criação do ser humano à imagem e semelhança de Deus e o kantiano, que se funda no lugar que o ser humano ocupa na natureza e seu valor que possui em si mesmo (p. 224). Nas duas ocasiões restantes, Deus emerge no voto do Ministro Ayres Brito, no seguinte trecho: [...]apenas um embrião de vida humana, pois somente se torna vida humana embrionária depois de passar por uma metamorfose, e essa metamorfose constitutiva da vida humana não se dá fora do útero, porque o embrião, cientificamente, não é autoconstitutivo. A constitutividade vital do embrião está nessa entidade mágica chamada útero. É nesse ponto que a mulher se assemelha, para quem acredita em Deus, ao próprio Deus, porque somente ela pode gerar dentro de si uma criatura verdadeiramente humana. Ela, enquanto criadora, e o produto da concepção, depois de uma certa metamorfose, como criatura igualmente humana (p. 259).

Evidenciou-se que mesmo a fala dos representantes de entidades religiosas pautou-se em termos não herméticos. Afastou-se de termos que se fazem restringir a dogmas religiosos ou citações de livros sagrados. A comunicação de valores tidos como valores morais religiosos procurou estabelecer-se em termos mais amplos, mais secularizados, mais aceitáveis aos destinatários da argumentação.

3.2.2 – O CONCEITO DE SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS LAICOS O capítulo anterior foi dedicado a recolher e tecer considerações acerca do conceito de sacralidade da vida humana. Olhando-se, ainda, para as interações com a sociedade religiosa e laica, ocupa-se igualmente de considerar como o conceito se deu para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e como esta se desdobra em linguagens, de um modo geral, em apropriações diversas e como pressiona a religião destacando suas potencialidades e ambiguidades – não que se desconsidere que haja ambiguidades em outros setores e esferas em relação aos direitos humanos amplos, apenas não se enquadraram no foco proposto. Tais considerações e constatações conduziram à compreensão do lugar crucial que a ideia de dignidade humana teve para a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A afirmação dessa dignidade se apresenta também em declarações negativas – no sentido de negação – que visam coibir violações tanto quanto garantir o exercício de direitos e

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liberdades fundamentais. Apesar disso, verificou-se que ao afirmar o direito à vida os redatores deixaram de tratar de questões como pena de morte e aborto. Seja como for, deu-se a centralização do ser humano no âmbito do direito internacional – positivação legal, evidentemente não implica necessariamente em efetivação, saliente-se – para o que se destaca outra vez a fala de Poole (2007, p. 91) ao afirmar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos “colocou o ser humano no centro do direito internacional”. Essa essencialização do ser humano no direito precisa ser entendida dentro do processo de sacralização da vida humana, afinal, “não é o direito que define a vida, mas a vida que supera qualquer direito” (RUIZ, 2013, p. 61). A concretização do conceito de sacralidade da vida humana na Declaração Universal dos Direitos Humanos pode ser aferida pela linguagem adotada e replicada não apenas pelo direito em âmbito global, mas também pelas reivindicações várias, inclusive as que reclamam por novas visões e aplicações locais de direitos humanos, a partir da ideia fortemente enraizada de valor intrínseco e inviolável da vida humana refletida no sintagma (ou seria um paradigma?) dignidade humana. Nesse sentido recordamos a afirmação de Isa (1999, p. 43): “el fundamento de los derechos humanos consagrados en la Declaración no va a ser otro que la dignidade de la persona humana”. E ainda, quanto à dignidade humana como fundamento para os direitos humanos, Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 21): “todas as culturas possuem concepções de dignidade humana, mas nem todas elas as concebem em termos de direitos humanos”, ou seja, ainda que não se estruturem princípios como na Declaração Universal dos Direitos Humanos ou se positivem em normas jurídicas, as diversas culturas e visões distintas “podem transmitir preocupações ou aspirações semelhantes ou mutuamente inteligíveis”. Essa “nova religião sem Deus” (FONSECA, 2014, p. 327) coloca o indivíduo na posição mais sacra do direito, ainda que o ser humano da cosmovisão cristã, que ocupava lugar privilegiado na Criação por conta da imago Dei, seja tido agora como homo juridicus, seu lugar no Cosmos permanece privilegiado e salvaguardado, ao menos nas aspirações, linguagens, cartas, declarações e normas da contemporaneidade. Nesse sentido, pelo processo que culmina na sacralidade da vida humana emergem valores que são acolhidos, defendidos e afirmados em conceitos como o direito à vida, a autodeterminação, a liberdade, a inviolabilidade. Ou ainda conceitos negativos como o da não violação ou desrespeito de quaisquer valores ligados à dignidade humana.

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Foi elaborado então um léxico com 87 palavras/conceitos abrangendo elementos que pudessem remeter à sacralidade da vida humana, sejam em colocações positivas ou negativas – no sentido de violações a serem suprimidas. Os resultados mais significativos obtidos são apresentados adiante. A árvore de palavras (Fig. 6 – miniatura) gerada a partir do léxico elaborado evidenciou a centralidade da palavra vida e a proximidade do centro de ramificações com o termo dignidade e, com menos intensidade, a palavra valor (Figura 8, p. 136).

Figura 6 – árvore de palavras - miniatura

Os termos com os quais se alimentou o programa (NVIVO) representou uma cobertura nas seguintes proporções: no Acórdão repercutiu em 10,45% do total de palavras, no bloco religioso 7,8%, no bloco médico-científico 4,99% e finalmente no bloco da sociedade civil 5,76%. São porcentagens significativas, em se considerando que são contadas todas as palavras com três letras ou mais. De início destaca-se que a palavra sacralidade teve ocasião apenas no Acórdão, por duas vezes. Sacralidade foi utilizada uma vez no voto do Min. Ayres Brito: “Essa decisão da mulher é mais do que inviolável, é sagrada. A sacralidade está na decisão da mulher gestante de, querendo, interromper esse tipo de gravidez” (p. 265). E no voto do Min. Celso de Mello: Não questiono a sacralidade e a inviolabilidade do direito à vida. Reconheço, por isso mesmo, para além da adesão a quaisquer artigos de fé, que o direito à vida reveste-se, em sua significação mais profunda, de um sentido de inegável fundamentalidade, não importando os modelos políticos, sociais ou jurídicos que disciplinem a organização dos Estados, pois – qualquer que seja o contexto histórico em que nos situemos – “o valor incomparável da

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pessoa humana” representará, sempre, o núcleo fundante e eticamente legitimador dos ordenamentos estatais (p. 326).

Também ficou bem evidenciado que nos discursos alocados como laicos para a finalidade da pesquisa, o discurso jurídico, o Acórdão, foi o que apresentou maior permanência de termos que se alinham com a ideia de dignidade humana, com praticamente o dobro da cobertura apresentada nas audiências do bloco da sociedade civil e do bloco médico. As palavras com maior frequência no Acórdão são (excluindo-se o vocábulo direito), vida com 762 ocorrências; aborto com 470; humana (referindo-se essencialmente à dignidade, condição, dimensão e pessoa humana) com 242 ocorrências, das quais 35 formam dignidade humana e 40 fazem dignidade da pessoa humana; liberdade é utilizada 200 vezes, e dignidade 150. São frequentes também termos como valor/valores (221 vezes), proteção (185) e morte encefálica (69). No bloco médico se destacam vida, com 106 ocorrências; aborto com 61 e ética com 54. O bloco comunitário também teve como prevalecente o termo vida, com 239 ocorrências; aborto com 73, morte encefálica 22 e escolha 21. Dignidade surge apenas 04 vezes no bloco médico e 16 vezes no bloco da sociedade civil. O conceito de sacralidade da vida humana se faz presente por diferentes assertivas nos múltiplos discursos. Não apenas por afirmativas de valores, mas também pelas falas que demonstram rejeição e indignação para com o que se entende como violações ou ameaças a tais valores. Nessa percepção o vocábulo vida vem majoritariamente utilizado para tratar da delicada questão em análise; é uma afirmação de valor, de inviolabilidade e santidade. Emerge nas falas e discursos para tratar do valor amplo da vida, seja da gestante ou do feto, e mesmo quando vem falar em impossibilidade de vida extra-uterina do feto anencefálico, está marcando um argumento que visa demonstrar que em relação a este não há que se considerar a indisponibilidade sacra da vida, ante sua ausência e inviabilidade em virtude da anomalia letal. E esse momento em que o prognóstico pré-natal é feito de uma grave deformação, uma grave anomalia incompatível com a vida - e eu não vou nem entrar nesse mérito, porque existem sociedades especializadas para aprofundarem o tema anatômico, morfológico dessa anomalia chamada anencefalia – Roberto Luiz D’Avia, pelo CFM (Audiência do dia 28/08/2008). Em linhas gerais, anencefalia é uma má-formação incompatível com a vida do feto fora do útero – José Gomes Temporão, Min. da Saúde (Audiência do dia 04/09/2008).

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Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto - Relatório do Min. Marco Aurélio Melo (Acórdão, p. 433).

Embora o termo vida se associe nos discursos laicos majoritariamente ao conceito abstrato, à segurança integral (física e psicológica) da vida da gestante, ou para indicar que é inviável no caso da anencefalia, também houve utilização na direção de invocar presença, e, portanto, proteção em relação ao anencéfalo. [...]o respeito com essa vida humana fragilizada não é só o exercício de uma posição religiosa ou humanística; é também uma posição de prudência científica ante a inexistência de profundidade nos estudos sobre essa matéria até o momento”. Nós não temos condição de dizer que um anencéfalo não tem inclusive consciência. Quer dizer, eu posso considerar um anencéfalo como um morto cerebral? Eu nunca vi morto cerebral ter crise epilética – Lenise Aparecida Martins Garcia, (Audiência do dia 28/08/2008, p. 85). Ora, pretender conferir a esse rol, que apenas explicita derivações práticas da extensão da liberdade pessoal da mulher, o sentido de reconhecimento da existência de poder absoluto de eliminar a vida intrauterina, é, com o devido respeito, insustentável demasia, cuja menor consequência fora a completa reificação do concepto, transformado em mero objeto disponível, sem nenhuma dignidade jurídica – Min. Carlos Veloso (Acórdão, p. 39). [...] a interpretação há de ser, antes, ampla e generosa na proteção ao valor supremo do ordenamento jurídico, sobretudo quando, como no caso, eventual mutilação hermenêutica do espectro dessa tutela seria sustentada e imposta para favorecer mero sentimento doloroso doutros seres humanos, como se tal estado psíquico, a que estão sujeitas todas as pessoas, constituísse título jurídico hábil para, sob fundamento de excessiva insuportabilidade, justificar o extermínio da vida de inocentes indefesos – Min. César Peluzo (Acórdão, p. 412).

A complexidade jurídica e moral do tema ficam também demarcadas quando no discurso jurídico é pontuada a questão dos diferentes graus de proteção à vida. No que tange à proteção do feto, foi visto que não é necessário compreenderse que a intervenção do Estado protege o seu direito, pois não se sabe ao certo se este direito está realmente em jogo. Além disso, viu-se que, mesmo em abstrato, a vida tem graus de proteção diferentes no nosso ordenamento, a ponto de o feto saudável não ser protegido contra a liberdade da mulher em caso de estupro. Ou seja, dependendo do grau de desenvolvimento da vida biológica do feto e da situação da gestante, diminui o interesse na proteção do desenvolvimento do primeiro e aumenta o interesse na proteção da liberdade da segunda – Min. Cézar Peluso (Acórdão, p. 132).

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O termo aborto, com notável permanência nos discursos laicos, foi considerado importante na pesquisa em busca da presença do conceito de sacralidade da vida humana ao se verificar que houve grande preocupação em afastar essa tipificação (aborto) no caso da anencefalia, cuja questão, desde a proposição até o deslinde da ADPF n. 54, foi tratada por seus defensores no sentido de estabelecer a descaracterização de prática abortiva. Então, o tema foi persistentemente alvo de argumentos que visaram demonstrar que não há vida autônoma no feto anencéfalo, tido como vítima incontornável de morte encefálica. A tônica da decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal traz relevante esclarecimento: Não está em jogo a vida de outro ser, não podendo o produto da concepção atingir normalmente vida própria, de modo que as consequências dos atos praticados se resolvem unicamente contra a mulher. O feto expulso (para que se caracterize o aborto) deve ser um produto fisiológico e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se (sic) em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto – Min. Marco Aurélio, reportando-se à argumentação da autora (Acórdão, p. 4). Explicitados todos esses pressupostos, é possível buscar aplicá-los agora na espécie, para definir se a interrupção da gestação em caso de anencefalia configura ou não o crime de aborto (Acórdão, p. 129). [...] excluindo, por incompatível com a Lei Maior, a interpretação que enquadra a interrupção da gravidez, ou antecipação terapêutica do parto, em caso de comprovada anencefalia, como crime de aborto (Acórdão, p. 136). Por fim, entendo que a antecipação do parto nesses casos não encontra tipicidade no direito brasileiro. De fato, se a conduta não é típica, sequer há de se cogitar de ilícito penal. Importante frisar, por oportuno, que há uma razão histórica para o equivocadamente denominado “aborto eugênico” não ser considerado lícito. Quando da promulgação do Código Penal, em 1940, não havia tecnologia médica apta a diagnosticar, com certeza, a inviabilidade do desenvolvimento do nascituro pós-parto – Min. Joaquim Barbosa (Acórdão, p. 152).

Nos demais discursos laicos as falas que fizeram referência ao aborto essencialmente pautaram-se em esforços no sentido de configurar a antecipação do parto de anencéfalo como aborto, ou para descaracterizá-la como tal. Se der a sorte de encontrar um juiz sensível aos seus apelos, ele poderá autorizar a antecipação terapêutica do parto; nem sequer falamos na questão do aborto nesses casos – Roberto D’Avila, pelo CFM (Audiência do dia 28/08/2008, p. 7). A ciência, Senhor Presidente, a Justiça e nós legisladores temos que trabalhar pela vida para garantir a qualidade de vida, nunca matar para evitar um problema. Nunca! E podemos ir mais longe, porque o aborto está intimamente ligado à eutanásia. Sem dúvida está. É a eliminação de uma

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vida que incomoda, que é cara – Luiz Bassuma, Dep. Federal pelo PT (Audiência do dia 28/08/2008, p. 46). O SR. LUÍS ROBERTO BARROSO – A última pergunta: do ponto de vista do Senhor, esta é uma questão que deva ser tratada como aborto? O Senhor acha que as escolhas morais envolvidas na interrupção da gestação de um anencéfalo são as mesmas presentes na interrupção da gestação de um feto viável? O SR. JOSÉ GOMES TEMPORÃO (MINISTRO DA SAÚDE) – Absolutamente distintas. Eu diria que é uma situação limite, absolutamente singular, em que a mulher vive uma contradição brutal e cruel de saber, ter consciência, que carrega no seu corpo uma vida que não terá continuidade, que inexoravelmente, inevitavelmente, falecerá logo após o nascimento (Audiência do dia 04/09/2008, p., 11). Baseado nisso, os princípios éticos evocados para suportar o aborto seletivo no caso de fetos anencefálicos - são também válidos para suportar outros casos e ampliar a discussão. E digo mais, é também um trabalho eugênico sim – Elizabeth Cerqueira (Audiência do dia 16/09/2008, p. 9). A interrupção da gravidez aconteceu porque a vida do bebê não era viável e não porque a gravidez era indesejada. Esta é uma grande diferença de situação de aborto, do ponto de vista psicológico. A gravidez indesejada pode levar ao aborto, como leva também ao infanticídio, muitas vezes. Neste caso, ficou claro que a gravidez não era indesejada – Talvane Moraes, psiquiatra forense (Audiência do dia 16/09/2008, p. 52).

Enfim, o direito à vida – citado 63 vezes no Acórdão, e outras 10 nos demais discursos laicos, foi suscitado basicamente para sublinhar uma distinção entre a problemática do aborto e a questão da antecipação terapêutica do parto de feto anencéfalo. [...]a questão posta sob julgamento é única: saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. [...] não é dado invocar o direito à vida dos anencéfalos. Anencefalia e vida são termos antitéticos. Conforme demonstrado, o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida. Trata-se, na expressão adotada pelo Conselho Federal de Medicina e por abalizados especialistas, de um natimorto cerebral. Por ser absolutamente inviável, o anencéfalo não tem a expectativa nem é ou será titular do direito à vida, motivo pelo qual aludi, no início do voto, a um conflito apenas aparente entre direitos fundamentais. Em rigor, no outro lado da balança, em contraposição aos direitos da mulher, não se encontra o direito à vida ou à dignidade humana de quem está por vir, justamente porque não há ninguém por vir, não há viabilidade de vida. Aborto é crime contra a vida. Tutela-se a vida em potencial. No caso do anencéfalo, repito, não existe vida possível – Min. Marco Aurélio (Acórdão, p. 34 e 54). Tivesse um feto com anencefalia expectativa de vida fora do útero, ainda que isso só fosse possível com ajudas múltiplas para superar as incontáveis barreiras e sua relação com o meio, o debate seria outro, e a possibilidade de discriminação em função de deficiência, por meio da negação do direito à vida, aí, sim, poderia estar presente. – Cláudia Werneck (Audiência do dia 04/09/2008, p. 26/27).

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O direito à vida também foi invocado, em menor proporção nos discursos laicos, para marcar posição contrária à legalização da antecipação do parto de feto anencéfalo: “Ora, se nós aqui, brasileiros e brasileiras, tornarmos tão flexível o direito à vida, garantido no artigo 5º da Constituição brasileira, poderemos chegar a um disparate um dia, facilmente” (Dep. Luis Bassuma – Audiência do dia 28/08/2008, p. 45). Se a questão do fim da vida – explicitamente citada apenas em duas ocasiões, mas com muita permanência nas discussões acerca da morte cerebral ou morte encefálica (141 ocorrências) – foi amplamente discutida nos discursos laicos, assim não se deu com o início da vida, objetivamente abordado apenas no Acórdão, com 14 ocorrências. Aludi ainda ao fato de, sob o ângulo biológico, o início da vida pressupor não só a fecundação do óvulo pelo espermatozoide como também a viabilidade, elemento inexistente quando se trata de feto anencéfalo, considerado pela medicina como natimorto cerebral, consoante opinião majoritária – Min. Marco Aurélio (p. 57). [...]sobre o início da vida, a Constituição é de um silêncio de morte; ou seja, nada diz. E, nos anais da Assembleia Nacional Constituinte, houve uma proposta de definir o início da vida na Constituição, mas foi rejeitada. Então, a Constituição não diz quando se inicia a vida. É claro que toda a vida humana começa com a fecundação de um óvulo para a formação do que se tem chamado de zigoto, que é o embrião dos primeiros cinco dias para alguns, dos primeiros quatorze dias para outros. Não há vida humana que não se inicie por essa fecundação[...] – Min. Ayres Brito (p. 258). A atividade cerebral, referência legal para a constatação da existência da vida humana, pode, também, “a contrario sensu”, servir de marco definidor do início da vida, revelando-se critério objetivo para afastar a alegação de que a interrupção da gravidez de feto anencefálico transgrediria o postulado que assegura a inviolabilidade do direito à vida – Min. Celso de Mello 27 (p. 350).

Outros termos afeitos à linguagem dos direitos humanos, os quais, mencionamos mais uma vez, tomam como base o sentido afirmativo de dignidade humana, estiveram presentes nos discursos laicos do Acórdão – e notadamente ausentes nos blocos médico e comunitário – , porém, sem maiores acréscimos ou decréscimos valorativos cruciais ao uso da ideia de sacralidade da vida humana. Destacam-se consciência 52 ocorrências e autodeterminação 3 ocorrências.

.27 Em seu voto o Min. Celso de Mello discorre longamente sobre o início da vida, abordando aspectos médicobiológicos, filosóficos e religiosos.

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3.2.3 - O CONCEITO DE SACRALIDADE DA VIDA HUMANA NOS DISCURSOS RELIGIOSOS Ao se desdobrar a análise que segue convém esclarecer uma vez mais que os discursos laicos ocupam 725 laudas, enquanto os discursos do bloco religioso estão contidos em 58 laudas. Assim, os números absolutos não dão o significativo valorativo dos discursos, antes, a ocorrência localizada dos termos no grupo é de fato o ponto pelo qual se dão as considerações acerca do uso do conceito de sacralidade da vida humana. Como nos discursos laicos as referências à vida apresentam maior frequência para o léxico relativo ao conceito de sacralidade da vida humana; são 65 ocorrências. Desta feita seguida pelo termo consciência, utilizado 40 vezes. A palavra dignidade surge em 14 ocorrências, em uma delas faz dignidade humana. O termo liberdade foi utilizado 7 vezes, decisão/decidir 13 vezes, autodeterminação e escolha 2 e indivíduo 8 vezes. A palavra aborto foi citada 16 vezes, morte 42 vezes, sendo uma para formar morte cerebral e 20 formando morte encefálica. A expressão ser humano conta com 8 ocorrências e o termo humanidade com 4. Referências à sacralidade, santidade, santo(a), sacro ou consagrado não tiveram ocasião. Termos como inviolabilidade, direitos humanos, integridade, início da vida ou fim da vida não encontraram lugar neste bloco de audiências. A expressão direito à vida foi encontrada uma única vez: “Ouço falar de direitos da mulher. Não há direito da mulher quando estamos falando de um direito que sobrepõe, que é o direito à vida” – Sra. Marlene Rossi S. Nobre, representando a Associação Médico Espírita do Brasil (p. 52). Os usos que os discursos fizeram do termo vida demonstraram que a singularidade da existência humana está profundamente arraigada no entendimento dos segmentos sociais ali representados. Tanto os que se colocavam a favor, quanto os que se colocaram contra a legalização da antecipação do parto de feto anencéfalo foram cuidadosos em externar respeito pleno à vida humana. Tanto foi assim que a questão ateve-se à discussão já citada quanto à existência ou inexistência de vida autônoma no feto anencéfalo. Cremos que quando a vida não é respeitada no seu inicio, dificilmente o será em suas outras etapas. Não importando como essa vida se encontra, todos os outros direitos da pessoa humana serão desprezados[...] A vida de cada indivíduo não é apenas um bem pessoal inalienável, mas também um bem social.– Luiz Antônio Bento, pela CNBB (p. 6).

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São elas quem passam pelo habitual desconforto da gravidez, e, talvez, nenhum de nós consiga dimensionar os agravos de uma gravidez acometida por anencefalia e que, por força da lei, a mulher estaria ou está penalizada a carregar durante nove meses alguém que ela não terá a felicidade de ver crescer e de ter vida extra-uterina – Carlos Macedo de Oliveira, pela IURD (p. 21). É um assunto extremamente complexo. É por isso que se faz o benefício da dúvida: quando não se esclarece, por prudência se respeita aquela vida – Rodolfo Acatauassú Nunes, pela Associação Nacional Pró-Vida e PróFamília (p. 36). Embora haja uma divergência se há ou não vida cerebral, há consenso de que se trata de uma doença congênita letal, fatal em cem por cento dos casos. Portanto, penso que seja um ponto importante. – Luís Roberto Barroso, pela autora da ação (p. 32).

O tema relativo à problemática multidirecional da condição do feto anencéfalo foi citado sem argumentação direta pela professora Maria José Fontelas Rosado Nunes, fundadora e dirigente do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, mas com sustentação de valores como autodeterminação e dignidade: Atualmente, o que acontece no caso da gestação de anencéfalos é que um grande número de mulheres tem seu direito à autodeterminação desrespeitado e ferida a sua dignidade. Aquelas, como Cacilda, mãe de Marcela, que decidem manter a gravidez, mesmo sabendo que geram um natimorto – viva ele alguns minutos ou, excepcionalmente, mais tempo -, têm a sua decisão respeitada, mas as mulheres que não desejam manter essa gestação veem os seus direitos negados. Essa é uma situação antidemocrática e eticamente inaceitável (p. 41).

O termo dignidade nos discursos abordados emerge carregado daquele significado e valor próprio da construção afirmativa da sacralidade da vida humana, como na citação acima, e nas que se traz adiante. As pretensões de desqualificação da pessoa humana ferem a dignidade intrínseca e inviolável da pessoa. Só pelo fato de pertencer à espécie humana, esse indivíduo tem uma dignidade; e é essa dignidade que queremos reafirmar, que precisa ser tutelada, que precisa ser respeitada. Assim, o feto anencefálico é um ser humano vivente e sua reduzida expectativa de vida não nega os seus direitos, a sua identidade – Luiz Antônio Bento (p. 6). O fato de uma deficiência, de uma anomalia, não diminui ou nega a dignidade de uma pessoa; portanto, o indivíduo humano vale pelo seu ser, não pelo seu modo de ser, muito menos pelo reconhecimento que pode vir de outros em ordem às qualidades físicas ou psíquicas, quer as possua ou não. Essa dignidade é intrínseca à pessoa. [...]Assim, nós queremos lembrar que o feto com anencefalia não é relativo a nada, a ninguém, não depende de outra ou outras pessoas para poder ter a sua dignidade; a sua dignidade é inerente, assim como é inerente a todos e a cada indivíduo da espécie humana. – Luiz Antônio Bento (p. 7).

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Cacilda foi respeitada, teve sua filha, cuidou dela até sua morte, mas Severina e tantas, tantas outras mulheres que nesses casos optam por interromper o processo gestacional não gozam da mesma prerrogativa. É, portanto, uma questão de isonomia, de realização de um princípio democrático constitucional que está em jogo, pois a dignidade dessas mulheres não é respeitada, e preceitos básicos da nossa Constituição não têm vigência para essas mulheres. Obrigar uma mulher a manter uma gestação desse tipo, não oferecer-lhe a possibilidade da interrupção desse processo, é tratá-la como coisa - Maria José Fontelas Rosado Nunes (p. 42).

A temática da consciência teve importante permanência nos discursos do bloco religioso. Isso se explica pela problemática ligada à vida. Sustentar a existência de consciência, ou sua ausência, implicava em atribuir vida ao feto anencéfalo, com todos os seus valores invioláveis, ou demonstrar sua inviabilidade. Com relação à consciência, nós podíamos perguntar sobre a morte encefálica deste paciente que não tem a formação dos hemisférios superiores. Hoje, há um grupo de cientistas, de médicos que defende a possibilidade de uma consciência primitiva nesses pacientes, nesses indivíduos – Luiz Antônio Bento, pela CNBB (p. 10). [...] alguns afirmam que a criança com anencefalia não tem consciência. A Associação Médica Americana recuou quando afirmou, para efeito de retirada de órgãos, que essas crianças não tinham e não teriam consciência. Ela inicialmente fez a proposta, mas recuou – Rodolfo Acatauassú Nunes (p. 28). [...]muitos indivíduos sem a atuação de córtex, a partir da década de 70, tinham procedimentos quase normais e, do ponto de vista da consciência, eram absolutamente normais. Isso porque a porta de entrada e de saída da consciência é exatamente o tronco cerebral alto, não o córtex cerebral – Dra. Marlene Rossi Severino Nobre, pela Associação Médico Espírita (p. 50).

O termo aborto foi utilizado com os mesmos direcionamentos, ou intenções, verificados nos discursos laicos. Por exemplo, o sr. Luiz Antônio Bento, representante da CNBB não utilizou em nenhum momento a expressão antecipação do parto, escolhendo falar em aborto do feto anencéfalo, aludindo, ainda, às expressões aborto eugênico (p. 7 e 9) e aborto seletivo (p. 9) para referir à situação da interrupção da gravidez de feto anencéfalo. O bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, Carlos Macedo de Oliveira, valeu-se indistintamente dos termos antecipação terapêutica do parto e aborto: A questão a ser enfrentada nesta audiência pública que discute a descriminalização da antecipação terapêutica do parto em caso de gravidez de feto anencefálico se faz, sem nenhuma sombra de dúvidas, histórica na democracia nacional (p. 18). [...]vivemos em uma sociedade tradicionalmente machista, e por mais que o aborto, nos casos de fetos anencefálicos, seja uma situação que requeira a

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participação de todos, isso predominantemente diz respeito à saúde e ao direito da mulher (p. 21).

E corrigido foi pelo advogado da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, Luís Roberto Barroso: Apenas gostaria de fazer um registro terminológico muito importante: a autora da ação, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, não considera a hipótese de interrupção da gestação de feto anencefálico como aborto; portanto, nós não utilizamos esse termo. O aborto pressupõe uma potencialidade de vida, e nós trabalhamos sob o pressuposto de que este não é o caso. Dessa forma, só para não deixar passar, não pensamos que seja a hipótese de aborto (p. 23).

A expressão antecipação terapêutica do parto foi utilizada outras duas vezes, pela professora Maria José Fontelas Rosado Nunes: Finalizando, gostaria aqui de levantar também a questão da justiça social. Considere-se que a concessão de antecipação terapêutica do parto para os casos comprovados de anencefalia constitui-se não só em uma medida de compaixão, atitude tipicamente evangélica, em face do grande sofrimento que significa para mulheres e homens envolvidos nessa situação, para toda a família a continuação dessa gravidez, mas configura-se, também, com uma possibilidade de efetivação à concessão da antecipação terapêutica do parto; configura-se, também, com a possibilidade de efetivação de um elemento básico de justiça social (p. 43-44).

Demais termos afeitos à linguagem dos direitos humanos e ao conceito afirmativo de sacralidade da vida humana não tiveram ocorrências significativas. Verificou-se que nas argumentações havidas a ideia de dignidade da vida humana não se expressou em termos explícitos no que se refere ao conteúdo vocabular mais diretamente ligado à Declaração Universal dos Direitos Humanos, apesar de suas constantes reivindicações e críticas, o que talvez demonstre que apesar de ser ideia recorrente não esteja sendo essencialmente considerada e teorizada para além de estridulosos discursos. Entretanto, o conceito do valor intrínseco do ser humano, ainda que trazido em abstrato, resultante do processo histórico de sacralização da vida humana, encontrou-se bem enraizado nos núcleos argumentativos com suas considerações sobre o valor, dignidade, liberdade e condição da vida humana. Nesse sentido foi interessante constatar que nos discursos dos blocos religioso, médico e comunitário, apesar do contexto judicial em que se deram suas falas, a problemática que se liga às questões quanto a ser o feto detentor ou não de interesses e direitos tenha ocorrido de maneira tão rarefeita. Em uma única fala no bloco comunitário: “Um texto aprovado, por

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unanimidade, pelo Comitê Nacional de Bioética da Itália afirma: ‘O anencéfalo é uma pessoa vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade humana’” (Dr. Dernival da Silva Brandão, médico. Audiência do dia 04/09/2008, p. 85). Outra no bloco médico: Compreendemos esse sofrimento e damos a eles a possibilidade de continuar a gravidez, se ela assim desejar - se respeitamos a autonomia, essa autonomia tem de ser respeitada no seu desejo de progredir a gravidez, por algum motivo, que não importa qual no omento - mas se ela diz: eu não posso carregar comigo esse bebê que não terá pensamento, não será pessoa humana como o Direito protege, no sentido de ter toda potencialidade, e por isso a sua atipicidade no enquadramento penal (Dr. Roberto Luiz D’Ávia, pelo CFM. Audiência do dia 28/08/2008, p. 6-7).

E apenas mais uma ocasião, no bloco religioso: As pretensões de desqualificação da pessoa humana ferem a dignidade intrínseca e inviolável da pessoa. Só pelo fato de pertencer à espécie humana, esse indivíduo tem uma dignidade; e é essa dignidade que queremos reafirmar, que precisa ser tutelada, que precisa ser respeitada. Assim, o feto anencefálico é um ser humano vivente e sua reduzida expectativa de vida não nega os seus direitos, a sua identidade. O fato de ter mais ou menos tempo de existência não faz com que ele deixe de ser sempre um ser humano, que precisa de cuidado, sobretudo neste caso – Sr. Luiz Antônio Bento, CNBB (p. 4).

As poucas falas que envolveram a questão em seu aspecto, senso comum, mais jurídico, evocando a problemática de ser o feto pessoa humana portadora de interesses e direitos, ressalta que a essência da discussão remeteu ao conceito de sacralidade da vida humana, notando-se, inclusive, que a temática da posse de interesses e direitos, quando citada, veio acompanhada, de algum modo, do recurso à figura da dignidade humana. Essa distinção se faz importante ao se considerar que nem toda obviedade é tão óbvia assim. Seria de se esperar nessa discussão promovida pelo STF que os argumentos, contrários ou favoráveis à demanda da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, estariam posicionados em defesa da vida, da gestante, do feto, ou de ambos. Mas, posicionar-se em defesa da vida implica necessariamente em assumir a ideia de sacralidade da vida humana? E que dimensão e alcance têm essa invocada santidade da vida? Pondera-se que apesar das reivindicações a impor que argumentações trazidas à esfera pública se deem em termos de razões pública, apesar do desenvolvimento técnico e positivista do Direito, e ainda das possibilidades seculares de sacralização, a ideia de sacralidade da vida humana está profundamente tomada por valores religiosos.

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[...]as questões sobre a reprodução e a morte, que hoje temos de enfrentar, são questões essencialmente religiosas[...] Teremos de alterar nossa percepção não apenas de quais questões são religiosas, mas também do por que a liberdade de consciência religiosa é tão crucial e do que ela abarca. Se meus argumentos estiverem corretos, teremos de aprender novas lições sobre como levar a responsabilidade individual a sério na esfera política, começando pelo aborto e pela eutanásia e terminando sabe-se lá onde (DWORKIN, 2009, p.VIII)

As implicações, e possibilidades para a discussão específica do aborto, advindas antes da ideia de sacralidade da vida humana que do intrincado tema da posse de interesses e direitos, são mais amplas, e, talvez, mais positivas. Pretender reduzir o assunto às considerações quanto à posse de maiores quantidades de direitos – que vida vale mais, a do feto ou da gestante? – é distinto de sustentar o ideal de sacralidade da vida e enfrentar serenamente situações nas quais existem conflitos envolvendo o complexo tema da inviolabilidade e dignidade da vida humana. Para ilustrar, o Código Penal brasileiro prevê a possibilidade de aborto em caso de estupro e de risco à vida da gestante (artigo 128, incisos I e II28). Porém, nos discursos analisados não se distinguiu uma disputa mais direta, e, portanto, complexa, quanto às sacralidades em conflito. Ou seja, não se constataram elaborações que pudessem colocar de modo mais claro a problemática conflituosa em relação à questão das escolhas na proteção à sacralidade da vida humana, cabendo ao campo laico apenas, no discurso jurídico, pontuar o tema no voto do Ministro Cézar Peluso: Tem-se em jogo os seguintes princípios: vida, que se aplica ao feto, e dignidade, liberdade e saúde da gestante, conforme colocado na inicial e o que vem sendo debatido ao longo da instrução do processo. Veja-se que, se fosse uma questão de decidir por pesos, ou se diria, diante da mesma hierarquia dos direitos fundamentais, que a quantidade faria a balança pender para o lado da mulher, ou se concluiria que, como a vida é o primeiro dos direitos - sem ela os outros não podem sequer existir-, nenhum valor ou direito pode estar acima dela, com a balança a pender para o lado do feto (p. 129/130). Entender que a interrupção da gravidez em caso de feto anencefálico configura aborto é um meio adequado para proteger a vida do feto. Por outro lado, a garantia da saúde, da integridade física e psíquica e da liberdade da mulher pode ser feita por meio da interrupção da gestação. Em relação à necessidade, só é possível proteger plenamente a vida do feto caso ele esteja protegido também contra a gestante. Por outro lado, não há meio menos gravoso para proteger a saúde, a integridade e a liberdade da gestante do que permitir a interrupção da gestação (p.130).

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Código Penal brasileiro. Disponível em: . Acesso em: 05/01/2015.

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No que tange à proteção do feto, foi visto que não é necessário compreenderse que a intervenção do Estado protege o seu direito, pois não se sabe ao certo se este direito está realmente em jogo. Além disso, viu-se que, mesmo em abstrato, a vida tem graus de proteção diferentes no nosso ordenamento [não grifado no original], a ponto de o feto saudável não ser protegido contra a liberdade da mulher em caso de estupro. Ou seja, dependendo do grau de desenvolvimento da vida biológica do feto e da situação da gestante, diminui o interesse na proteção do desenvolvimento do primeiro e aumenta o interesse na proteção da liberdade da segunda (p. 132). Enfim, seja do ponto de vista epistemológico, seja por meio de análise histórica, seja a partir da hermenêutica jurídica, e forte ainda nos direitos reprodutivos da mulher, todos os caminhos levam ao reconhecimento da autonomia da gestante para a escolha, em caso de comprovada anencefalia, entre manter a gestação ou interrompê-la. A postura contrária não se mostra, data venia, sustentável em qualquer dessas perspectivas, o que enseja a procedência da presente ação de descumprimento de preceito fundamental para dar interpretação conforme aos artigos 124 e 126 do Código Penal, excluindo, por incompatível com a Lei Maior, a interpretação que enquadra a interrupção da gravidez, ou antecipação terapêutica do parto, em caso de comprovada anencefalia, como crime de aborto. É como voto (p. 136).

Ainda que apresentada a problemática, o que se constata é que prevaleceu o direcionamento dos argumentos, e a consequente solução jurídica, para a questão da descaracterização da tipificação relativa a aborto no caso concreto da interrupção da gestação de feto anencéfalo. A solução passou pelo entendimento de ausência de possibilidade de vida extrauterina para além de poucas horas, e nessa condição do feto anencéfalo não haveria que se falar em aborto. [...]quando o STF se preocupa em desqualificar o aborto em casos de gestações de anencéfalos, para antecipação terapêutica do parto, verifica-se a preocupação em não gerar um argumento a favor da descriminalização dos abortos em geral (MELLO & BARBOSA, 2015, p. 99).

Assim, a ideia de sacralidade da vida humana não foi objetivamente aprofundada, o que não acarreta em afirmar que inexistiu contribuição e apontamentos para a discussão mais ampla e complexa do tema.

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Figura 7 – Árvore de Palavras (Acórdão)

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Figura 8 – Árvore de Palavras (o conceito de sacralidade)

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Principiou-se por analisar a questão do fenômeno da secularização em nossa sociedade, com o desdobramento encontrado em Estados democráticos quanto à neutralidade e imunidade em questões religiosas – a laicidade –, com o fito de compreensão do papel na participação de sujeitos ligados a tradições religiosas nas audiências públicas realizadas no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 54. Observa-se que o fenômeno da secularização não está em condições de ser entendido, se é que em algum momento o tenha sido, como a inexorável marcha da racionalidade a expurgar quaisquer mundividências e volições religiosas. A permanência da religião, apesar de sua pulverização, individualização, adaptação e relativização é elemento a ser considerado ao se tratar da secularização. De certo que o lugar da religião em nossa contemporaneidade está irremediavelmente distante da posição outrora ocupada, o que não quer dizer que não ocupa lugar algum. É impossível reiterar diagnósticos das ciências sociais para os quais a secularização, a evolução tecnológica, o individualismo e a cibercultura levariam ao declínio da presença pública das religiões. Ao contrário disso, constata-se um enorme avanço de atores políticos para os quais a identidade religiosa é um componente indissociável (GASDA, 2015, p. 48).

Constatou-se o quanto a decisão adotada pela maioria no Supremo Tribunal Federal se pautou em argumentos científicos para firmar compreensão no sentido de que o feto anencéfalo não tem condições de vida e tampouco consciência que lhe atribuam direitos como humano nascituro. Tal se mostrou indispensável para a descaracterização da tipificação de aborto da antecipação de parto de feto anencéfalo. Assim, a discussão enveredou por sustentar que não haveria de fato inviolabilidade em ação, ou sacralidade de vida (dignidade) a ser defendida que não a da gestante. A oitiva de setores que falaram a partir de cosmovisões e valores religiosos pode indicar o quanto a questão, não apenas do feto anencéfalo, ou do aborto voluntário em geral, mas de outras demandas cuja autodeterminação dos sujeitos vem pautada por esses valores. No embate entre autonomia e heterenomia, entre liberdade individual e interesse coletivo, ante a complexidade do tema e consequências de decisões e escolhas, não haveria

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que se impor silêncio a quaisquer cidadãos, cujas vidas, de uma maneira mais direta ou mais subjetiva, acabam por serem impactadas pela autuação político-jurídica do Estado. Nesse espaço, quando genuinamente acolhedor e democrático, quando garantidor de liberdades fundamentais, dar “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” significa também não dar atribuir a Deus o que pertence a César ou dar a César o que é de Deus. A aceitação de que o Estado moderno é composto de césares e dirigido pelo poder secular não redunda na obrigatoriedade de ver compulsoriamente relativizada a própria fé e corrompida a consciência, cuja integridade vem garantida pelos princípios reguladores de direitos humanos e democracias. No mesmo sentido não seria adequado pretender que valores particulares advindos da tal ou qual crença religiosa específica sejam impostos sobre a totalidade da sociedade. As religiões são legítimas expressões da pluralidade das identidades nacionais que compõem a cidadania. Isso é inegável. E, por isso, o Estado só é democrático se é laico. Para que nele caibam todos[...] A religião está convidada a dialogar com a política, aceitando a pluralidade de crenças, de ideologias e de projetos sociais distintos. Dialogar não significa impor uma doutrina ou um código de moralidade. Não se pode impor uma moral de base teológica sobre toda a sociedade (GASDA, 2015, p. 52-53).

O reconhecimento dessas diferenças e a aceitação dessas tensões em nome do acolhimento de outras vidas humanas, forjadas no molde da imago Dei ou sacralizadas pela introjeção e defesa de valores que redundaram na macroideia de dignidade humana, pode propiciar que se dialogue decentemente e se conclua democraticamente, sem que se pretenda silenciar setores e pessoas que defendem e vivem por visões e valores distintos, ou mesmo opostos. A liberdade requer coragem, coragem para conviver com as liberdades alheias. Como bem demarcado ao longo do texto, existe uma condição colocada para a participação dialogal no cenário público. Sejam quais forem os atores, os argumentos e diálogos, tais deveriam dar-se em termos de razões públicas, inteligíveis a partir do traço democrático e sociável comum à participação e condição de cidadania. Quem defende uma posição política ou ética para a vida coletiva, então, deveria traduzir civilmente e humanisticamente a sua motivação (ARAGÃO, 2015, p. 72). A autocompreensão do Estado de direito democrático formou-se no quadro de uma tradição filosófica que apela exclusivamente a uma razão “natural”, ou seja, argumentos públicos que, de acordo com sua pretensão, são acessíveis da mesma maneira a todas as pessoas. Ora, a assunção de uma razão humana comum constitui a base epistêmica para a justificação de um

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poder do Estado secular que independe de razões religiosas (HABERMAS, 2007, p. 135).

Entretanto, o requisito de diálogo em termos de razões públicas não pode servir para impor relativizações às crenças religiosas, a liberdade religiosa como direito fundamental e base para o desenvolvimento de demais liberdades (JOAS, 2012), “não pode ser confundida com relativismo” (FLUCK, 2015, p.86). E tampouco se entendeu que se possa prescindir da compreensão metafísica e transcendente pela qual importante parcela da população percebe, objetivamente ou não, a questão do valor intrínseco ou sagrado da vida humana. Deve ser encarado com naturalidade que pessoas com convicções religiosas firmes pautem suas vidas e decisões nessas convicções. Assim como é natural que entenderão e reivindicarão a sociedade a partir de seu próprio ethos. Haveria indignificação e negação de liberdade se a pessoa crente fosse obrigada a abandonar ou relativizar suas crenças apenas por, no exercício de sua cidadania, adentrar a esfera pública ou política. Considera-se desnecessário, pela obviedade, aludir à regra do respeito à moral e aos bons costumes, à pessoa e coisa alheia ao se sustentar a participação plena de qualquer pessoa no cenário público e político. Nisso, concorda-se com Habermas (2007), quando afirma que [...]o Estado liberal, que protege expressamente tais formas de vida mediante a garantia de liberdade de religião, não pode esperar, ao mesmo tempo, que todos os crentes fundamentem seus posicionamentos políticos deixando inteiramente de lado suas convicções religiosas ou metafísicas sobre o mundo. Tal exigência estrita só pode ser dirigida aos políticos que assumem mandatos públicos ou se candidatam a eles e que, por esse fato, são obrigados a adotar neutralidade no que tange às visões de mundo (p. 145).

O Estado liberal não pode transformar a exigida separação institucional entre religião e política numa sobrecarga mental e psicológica insuportável para os seus cidadãos religiosos. Entretanto, eles devem reconhecer que o princípio do exercício do poder é neutro do ponto de vista das visões de mundo (HABERMAS, 2007, p. 147). Assim, a própria tradução dos discursos desses cidadãos religiosos, igualmente habitantes das cidades terrenas e destinatários de toda a legislação ali elaborada, deveriam contar com a cooperação de seus concidadãos (HABERMAS, 2007). Em especial nas elaborações e usos do conceito de sacralidade da vida humana em análise. Caminha-se, então, para o entendimento de que nesse espaço democrático denota-se a proposição dialética efetuada pela própria laicidade brasileira em relação a múltiplas direções,

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no caso em análise, com ênfase na relação com a religião e com os direitos humanos. Essa interação pressupõe, ou antes, exige que haja criticismo de e para com todos os setores, em especial para com as ações e decisões governamentais, afinal, como constatado, o sistema internacional de direitos humanos prioriza a proteção dos cidadãos frente ao Estado. “O princípio democrático pressupõe a existência da crítica, da resistência e, inclusive, da rebelião frente ao estado” (FLUCK, 2015, p. 85). Ou seja, os princípios laicos e democráticos, assim como os direitos e liberdades afirmados pelas reivindicações de direitos humanos, ao mesmo tempo em que garantem que se possam fazer críticas às religiões, permite que essas igualmente atuem criticamente na sociedade e perante o Estado. A configuração que se dá ao pluralismo nas sociedades modernas precisa necessariamente considerar que a religiosidade dos indivíduos, seja qual for, estará presente ao lado de pessoas sem pertencimento religioso ou sem religião. Nesse caleidoscópio no qual cintilam numerosos sistemas de verdade o desafio concreto é o acolhimento das diferenças. A discussão quanto à legalização da antecipação do parto de fatos anencéfalos não prescinde da miríade de contribuições e valores que compõe a sociedade brasileira, inclusive valores morais, que são pressionados pela complexidade da questão que envolve a sacralidade da vida humana. Não ser o Estado coagido por conjuntos de valores morais específicos não significa que este atue baseado em valor moral algum. Daí a abertura promovida pelo STF para o debate do tema. A neutralidade religiosa do Estado não o impede de fomentar valores de dimensões morais, baseadas em antropologia mínima, que reflitam a visão da sociedade. A liberdade religiosa promove a dignidade humana e a cidadania. A dignidade humana e a liberdade de consciência andam juntas. A liberdade de crença é exercício da liberdade de pensamento. A liberdade religiosa deve vincular-se à promoção de um Estado social que dignifique os seres humanos (FLUCK, 2015, p. 87).

Nesse ambiente político plural, laico e democrático, permeado pela ideia de direitos humanos, questionam-se quanto às potencialidades da religião, suas ambiguidades, a capacidade tanto de “servir como veículo de reintegração da vida” (SCHULTZ, 2015, p. 102), quanto de prejudicar o desenvolvimento e implantação ampla da ética dos direitos humanos (SANTOS, 2014; STACKHOUSE, 2005). Porém, uma vez mais, questionamentos e criticidade não devem redundar em cerceamento.

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Boaventura de Sousa Santos, como já citado nesta pesquisa, compreende e aponta as ambiguidades da religião frente aos direitos humanos, mas considera o potencial proclamador da religião como apta a romper hegemonias e fazer audíveis reivindicações para a concretização da dignidade humana. Pela sua insistência na narrativa concreta do sofrimento das vítimas e da sua luta contra os opressores, as teologias políticas progressistas podem contribuir para tornar o sofrimento injusto numa presença intolerável que desumaniza tanto as vítimas quanto os opressores, quanto ainda aqueles que, não se sentindo nem vítimas nem opressores, veem no sofrimento injusto um problema que não lhes diz respeito (SANTOS, 2014, p. 135-136).

Pelo próprio desenvolvimento da modernidade, do conceito de sacralidade da vida humana e correspondente ética da dignidade humana verifica-se a interação profunda da religião em todo o processo. Como doadora de substratos valorativos e também como pressionada pelos valores concretizados na laicidade e nos sistemas de direitos humanos, “a ideia que compartilhamos é que a vida humana não tem apenas valor intrínseco, mas também sagrado (DWORKIN, 2009, p. 33)”. Assim, existe uma conexão intrínseca entre direitos humanos, laicidade e diversidade religiosa. Toda manifestação religiosa é legítima, mas a preservação da laicidade do Estado garantirá tanto liberdade religiosa quanto os direitos civis fundamentais, tanto os marcadamente constitucionais quanto os definidos por convenções internacionais pautados pelos direitos humanos (STRÖHER, 2015, p. 134).

Tais análises se mostraram importantes para a identificação e estudo do lugar e das falas envolvidas no processo que culminou na legalização da antecipação do parto de feto anencéfalo, tendo o entendimento de que a questão versou essencialmente sobre temas diretamente ligados à dignidade humana e aos sistemas e linguagens de direitos humanos. Constatou-se na análise do conteúdo dos discursos ocorridos no processamento da ADPF n. 54 a afirmação da democracia e da laicidade, bem como os desdobramentos da secularização com a centralização do interesse jurídico na argumentação técnica, crucial para o entendimento da condição do feto anencéfalo, que se concluiu como sem potencialidade para realização como ser humano, teve a antecipação do parto excluída das tipificações penais para o aborto. O objetivo principal da pesquisa, a análise da apropriação do conceito de sacralidade da vida humana, redundou em considerações que precisam ser expandidas em outras direções. Evidentemente o tema mais abrangente, delicado e tenso do aborto poderia ser abordado de

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maneira que o substrato comum da sociedade, ainda que assumido inconscientemente muitas vezes, relativo à sacralidade da vida humana possa ser utilizado de maneira a propiciar análise e diálogo condizente com sociedades plurais, modernas e racionais. Gritos de guerra, frases de efeito e o chamado às armas, neste caso, não cooperam. O problema ético, ainda que não prescinda da elaboração política, vem antes desta29. Evidente que a consolidação do diálogo a partir do respeito à dignidade e santidade da vida humana (santidade no sentido amplo que abarca o secular e o religioso) exige grande disposição e esforço lenitivo. Para alguém que acredita que o aborto viola os interesses mais básicos e os direitos mais preciosos de uma pessoa, um chamado à tolerância ou à transigência equivale a um pedido a que os outros tomem suas próprias decisões com respeito ao estupro, ou a um apelo a que se institua uma cidadania de segunda classe, e não a escravidão ou a igualdade plenas, como uma solução conciliatória equitativa do problema racial. Enquanto o debate for colocado nesses termos polarizados, os dois lados não poderão raciocinar em conjunto, pois nada terão sobre o que raciocinar ou ser razoáveis. Um dos lados acredita que o feto humano já é um sujeito moral, uma criança não nascida, a partir do momento da concepção. O outro acredita que um feto recém-concebido não passa de um aglomerado de células sob o comando não de um cérebro, mas apenas de um código genético, e que, nesse caso, é uma criança tanto um quanto um ovo recémfertilizado é um frango. Nenhum dos dois lados é capaz de oferecer um argumento que o outro possa aceitar – não há nenhum fato biológico à espera de ser descoberto, nenhuma analogia moral à espera de ser inventada que possa resolver o problema (DWORKIN, 2009, p. 11-12).

Em um tema que ameaça a dignidade da própria vida dos envolvidos, respeitar o conjunto de crenças, mundividência e liberdade alheia são um profundo exercício de maturidade e civilidade. E não se considera que a solução pelo protagonismo jurídico seja a melhor e mais definitiva solução, haja vista a realidade norte-americana, onde a legalização do aborto se deu por imposição do Poder Judiciário, sem o debate e sedimentação argumentativa com a sociedade, e que, passados mais de 40 anos, ainda produz intensos confrontos30 entre as alas mais radicais dos chamados conservadores e dos liberais (DWORKIN, 2009).

29

Ver GALVÃO, Pedro. A ética do aborto. Perspectivas e argumentos. Lisboa: Dinalivro, 2005. E as edições de 24/05/2015, 14/06/2015, 28/06/2015, 12/07/2015, 26/07/2015, 09/08/2015, 23/08/2015 e 13/09/2015 de O Jornal Batista, que versam sobre a questão do aborto na secção Observatório Batista. Disponível em < https://www.amazon.com/clouddrive/share/YMLiCZOnD1zxhT5rQDhOJZV0oQ8Y5xoFKFHPtubEclj?_encodi ng=UTF8&mgh=1&ref_=cd_share_link_copy>. Acesso em 23/11/2015. 30 Na corda bamba. Trinta anos depois, o direito ao aborto garantido pela Suprema Corte está ameaçado pelo poder dos conservadores. Disponível em
. Acesso em 05/01/2015.

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ou interesses próprios, e que as leis que proíbem ou regulamentam o aborto só podem ser justificadas com base na premissa de que se considera que tal prática põe em risco o valor inerente da vida humana (DWORKIN, 2009, p. 92).

Compreender “que a opinião liberal, como a conservadora, pressupõe que a vida humana tem em si mesma um significado moral intrínseco, de modo que é um erro, em princípio, por fim a uma vida mesmo quando não estão em jogo os interesses de ninguém” (DWORKIN, 2009, p. 47), assim como que, de modo geral, as pessoas “formulam ideias abstratas, recorrendo à retórica emocional e estridente” (DWORKIN, 2009, p. 27), desconhecendo realmente os trajetos de suas formulações e convicções, poderia ser um norte para o debate sereno e maduro do tema. O fato de ver o debate sobre o aborto sob a nova luz que descrevi não nos levará, por certo, a pôr fim a nossas divergências sobre a moral do aborto, pois essas divergências são de natureza espiritual, isso deveria contribuir para nossa união, pois, como afirmei, habituamo-nos à ideia de que a comunidade real é possível a despeito de tantas e tão profundas divisões religiosas. Poderíamos esperar ainda mais – não apenas por uma tolerância maior, mas por uma conscientização mais positiva e benéfica, ou seja, que aquilo que compartilhamos – nosso compromisso comum com a santidade da vida – é algo precioso em si mesmo, um ideal unificador que podemos resgatar das décadas nas quais imperou o ódio (DWORKIN, p. 139-140).

Chega-se ao fim da empreitada com inúmeras questões passíveis de serem desenvolvidas em pesquisas posteriores, como, a saber, as razões pelas quais igrejas evangélicas históricas ou pentecostais permaneceram ausentes dos desenvolvimentos e debates oficiais da ADPF 54. Dentro da temática principal da pesquisa, verifica-se a possibilidade de expandir e adensar o tema da sacralidade da vida humana, como compreendida pelo processo de sacralização ou genealogia afirmativa de valores, para os complexos temas correlatos, como a eutanásia, bem como em direção às demais demandas ligadas às liberdades individuais, muitas vezes confrontadas pelos chamados interesses da sociedade. E para além do foco imediato da pesquisa, o tema pode ser igualmente proveitoso em relação às considerações acerca das gramáticas de direitos humanos, da efetiva concretização da dignidade humana e do papel da religião, sobretudo o potencial emancipador de teologias públicas pautadas no bem comum, misericórdia e fraternidade.

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