Encontro Revista de Psicologia Vol. 17, Nº. 26, Ano 2014

VIDAS SECAS Uma análise fenomenológica hermenêutica do personagem Fabiano RESUMO

Priscilla Andrea Glaser Universidade Anhanguera de São Paulo [email protected]

Kate Nascimento da Silva Universidade Anhanguera de São Paulo [email protected]

Neste trabalho busca-se compreender, por meio da fenomenologia hermenêutica de Heidegger, de que maneira se dá o sentido de ser-nomundo-com-os-outros para o personagem Fabiano, personagem de “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. É possível observar em alguns momentos da existência de Fabiano que o seu modo de ser se aproxima, nem que brevemente, da propriedade, mas logo decai na impropriedade do impessoal. A maior parte do tempo, Fabiano concebe seu mundo como pronto, os homens como opressores, e si-mesmo como um ser destinado a seguir um caminho pré-estabelecido a ele, mesmo antes dele nascer. Essa compreensão mediana que Fabiano tem de mundo é a compreensão que quase sempre dita e regula suas possibilidades de ser, dificultando-o de realizar-se de modo mais autêntica. Desta forma Fabiano acaba assumindo-se como um ente simplesmente dado, como se o seu ser já estivesse estabelecido, não realizando o seu caráter de poder-ser de maneira mais própria. Palavras-Chave: Vidas Secas, Fenomenologia Existencial, Dasein, Heidegger.

ABSTRACT The present research aims the study the meaning of the being-in-theworld of the character Fabiano from de book “Barren Lives" of Graciliano Ramos. Through this study it becomes evident that the way of Fabiano´s living approximates of authenticity, but soon he falls in inauthenticity of the “they-self”. Most of the time Fabiano conceives the world as finished, the human beings as oppressors, and himself as an destined being to follow a finished way. This understanding that Fabiano has of the world makes it difficult of accomplishing in a more inauthentic way. Thereby Fabiano assumes himself as his being were already established, not accomplishing his potentiality-for-being in a more authentic manner Keywords: Barren Lives; hermeneutic phenomenology; Dasein; Heidegger.

Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 4266 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 [email protected] Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 30/11/2013 Avaliado em: 23/02/2014 Publicação: 10 de julho de 2014

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1.

INTRODUÇÃO Convido o leitor a passear pelo sertão de “Vidas Secas”, obra literária de Graciliano Ramos, a fim de observarmos mais de perto e compreendermos como se dá a existência do Dasein Fabiano. Dasein é um termo proposto por Martin Heidegger, filósofo alemão (1889-1976) para indicar o caráter peculiar e distinto da existência humana. O termo ser-aí (Dasein) designa a impossibilidade de se definir, determinar o ser do homem (como uma essência com propriedades quiditativas). O modo de ser fundamental do homem, que o distingue dos outros entes, é o de abertura para a experiência. Logo, o homem é o único ente que se pergunta sobre o ser das coisas e sobre seu próprio ser (GLASER, 2012, p. 29). Acredito que as questões expostas neste livro nos trazem mais que um problema de ordem social e econômica. É possível, através da fenomenologia hermenêutica, visualizar nesta obra uma questão de ordem existencial, que nos revela que o protagonista está distanciado de si-mesmo; vive sua vida de forma mais imprópria, uma vida seca de afetividade, praticamente sem sentido de pertencimento, sem acolhimento, estreitada em suas possibilidades de ser, em busca de algo que não consegue com clareza compreender.

2.

PROBLEMA DE PESQUISA Busco, neste trabalho, por meio da fenomenologia existencial, compreender o sentido de ser do personagem Fabiano, o qual se faz presente na obra “Vidas Secas” de Graciliano Ramos. Por sentido compreende-se, citando Sodelli (2006, p.141) “por um lado, uma direção para a qual estamos nos dirigindo, um ponto no qual queremos chegar, um destino, um rumo e, por outro, o modo como nos direcionamos para este horizonte, o modo como nos sentimos nesta direção”. O Dasein é ontologicamente indeterminado; é um ser indelimitável, inacabado, mutável. Desta forma, a análise sobre a existência de Fabiano é inesgotável. Junto a isso, faz-se relevante explanar que o que viso aqui não é fragmentar Fabiano, pois isto seria inclusive um erro metodológico, e nem priorizar alguma dimensão ontológica em detrimento de outras, uma vez todas as dimensões ontológicas se dão simultaneamente e em igual intensidade. A questão norteadora neste trabalho é, portanto: “Qual é o sentido do ser-nomundo-com-os-outros para o personagem Fabiano na obra Vidas Secas?”

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MÉTODO Com base na fenomenologia existencial busco analisar a existência do personagem Fabiano. A finalidade deste trabalho não é a de ser uma crítica literária, tampouco uma análise definitiva ou conclusiva sobre o sentido de ser do ser-aí Fabiano. Embora o personagem Fabiano seja fictício, ele é um Dasein, de modo que é constituído por condições ontológicas presentes em qualquer Dasein. Seus pensamentos, sentimentos, sensações, enfim, toda a complexidade que se dá no ser do Fabiano vai se desvelando ao longo da obra literária “Vidas Secas”. Viso, portanto, através da ontologia proposta por Martin Heidegger, aproximar-me do caminho existencial percorrido por Fabiano no mundo ôntico.

4.

COMPREENSÃO FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL A Fenomenologia Existencial constata que não podemos compreender o Homem da mesma forma como fazemos com outros seres vivos e objetos (entes intramundanos), por exemplo: cachorro, cadeira, água, etc. Pode-se perceber duas condições fundamentais diferentes entre esses entes (todas as coisas e seres vivos/objetos) e o Dasein, termo cunhado por Heidegger (2007) para indicar o caráter peculiar e distinto da existência humana. Uma das condições fundamentais do Dasein é saber-se finito, compreender que um dia sua vida vai terminar, compreender que ele é um ser mortal. Para a fenomenologia este saber-se finito diferencia o Dasein dos outros entes e marca um modo distinto do ser do Dasein se dar, uma vez que é o único ser que tem de conviver com o seu-ser-para-amorte e é livre para realizar uma opção entre viver ou morrer, muito diferente dos outros entes. Desta condição ontológica, ser-para-a-morte, origina-se no Dasein o sentimento de angústia. A fonte da angústia primordial do Dasein é a ameaça do não-ser, ou seja, a morte, a qual vivenciamos por meio do combate entre a necessidade de realização das nossas possibilidades e o risco de não poder realizá-las. O homem nasce com o seu ser-livre, e esta é a segunda condição fundamental que quero expor aqui. Ele (Dasein) é por essência livre, isto é, ele é ontologicamente indeterminado, o que significa ele é abertura de possibilidade, no sentido de lhe ser possível realizar escolhas e tomar decisões, decisões estas que terão como resultado o significado da sua existência. Casanova corrobora essa ideia (2009, p. 122):

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O Dasein não possui originalmente nenhuma determinação própria, mas todas as determinações de seu ser são alcançadas apenas de maneira existencial a partir dos comportamentos que ele leva a termo em relação aos entes intramundanos, aos outros seres-aí e a si mesmo.

Já os outros animais, diferentemente do homem, nascem destinados a serem eles mesmos. Qualquer animal, desde que nasce só pode ser aquilo que ele já é, só pode experimentar a condição de sua espécie. O homem, por sua vez, constitui-se Dasein somente na sua relação de ser-com-os-outros (humanos). (SODELLI, 2006). A respeito do modo de ser da abertura do Dasein, Glaser (2012) discorre: O modo de ser da abertura do homem é constituído pela compreensão e disposição. Dizer que ser humano é abertura, significa que ele está no mundo (no seu “aí”) sempre via compreensão, isto é, ele está aberto para o ôntico, como um lugar de desvelamento do sentido dos entes que lhe vêm ao encontro, e não como uma estrutura externa a ele com sentidos já dados (GLASER, 2012, p. 30).

Cabe deixar claro que a compreensão aqui mencionada não se refere à compreensão no seu sentido ordinário, ou seja, compreensão não se refere ao entendimento racional, intelectual, conceitual. Critelli (2007) expõe que os significados não estão nas coisas (o ser não está no ente), mas sim os sentidos de ser dos entes se desvelam ao Dasein por meio da compreensão. E que a partir desta – a compreensão uma trama de significações vão sendo tecidas pelos homens entre si mesmos e por meio desta trama se referem e lidam com as coisas. Assim, fica evidente que sentido de mundo só se manifesta ao Dasein via compreensão. E por ser abertura de compreensão dispositiva é que se possibilita ao Dasein realizar seu poder-ser dentro das possibilidades fáticas. Em verdade, a compreensão projeta o campo existencial do ser-aí, abrindo-o para um em-virtude-de e para a significância fática. Jogado em um mundo, o ser-aí encontra a partir de sua própria dinâmica compreensiva, aquilo em virtude de que ele pode realizar o poder-ser que é, ao mesmo tempo em que recebe dos campos de uso com os quais está familiarizado as orientações significativas necessárias para que possa desempenhar a sua competência existencial (CASANOVA, 2009, p. 125-126)

É importante frisar que não existe um compreender que não abarque uma disposição afetiva. Sobre isto comenta Casanova (2009, p. 118) Como é sempre através de uma tonalidade afetiva específica que se dá o descerramento do aí fático, no qual o ser-aí ininterruptamente se movimenta enquanto um existente, cabe às tonalidade afetivas o modo como um tal descerramento se dá.

Pelo fato do Dasein ser abertura de compreensão e disposição é que, conforme aponta Sodelli (2006), “o homem não é uma simples „coisa‟ no meio de outras coisas, nem uma interioridade fechada dentro de si mesmo.” Isso quer dizer que o Dasein não existe isoladamente sem o mundo que habita que, por sua vez, também não existe separado do Dasein. Heidegger (2007) pontua que “não existe anterioridade entre esses dois movimentos homem e mundo.” A partir disto torna-se então importante compreender a

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expressão fenomenológica “ser-no-mundo” que aponta primeiramente para um fenômeno de unidade. Na mesma direção, complementa Sá (2013): A expressão “ser-no-mundo” nomeia a unidade estrutural ontológica do Dasein. A análise desta estrutura nos remete aos três momentos constitutivos da totalidade deste fenômeno: a idéia de mundanidade do mundo, o modo de ser-com e ser-próprio que se revelam de início como a impessoalidade cotidiana e o ser-em como tal, cuja estrutura se desdobra em compreensão e disposição.

Em relação ao modo como o Dasein cuida de sua existência, de seu ser-nomundo-com-os-outros, Casanova (2009) nos ensina que existem modulações de ser, chamadas de impropriedade (inautenticidade) e propriedade (autenticidade), que determinam o modo de cuidar: Jogado em mundo fático específico, o ser-aí já é sempre a partir da possibilidade da propriedade e da impropriedade: a partir de uma plena absorção no mundo fático e de uma desoneração do caráter de cuidado que é o seu ou a partir de uma assunção de um tal caráter de cuidado e de uma escuta ao seu poder-ser mais próprio (p. 133).

O modo de ser da impropriedade e da propriedade são possibilidades constitutivas de todo homem; seria um equívoco achar possível eliminar da existência de qualquer Dasein um modo de ser mais impróprio. Portanto, não se trata de valorar um modo em detrimento do outro. Em outras palavras, propriedade e impropriedade não são categorias com as quais podemos operar de maneira a construir algum modelo específico de existência. A propriedade não é o bem para o qual devemos tender, assim como a impropriedade não é o mal do qual devemos escapar. Elas são possibilidades constitutivas de todo ser-aí, possibilidades nas quais já nos encontramos desde o principio jogados (CASANOVA, 2009, p. 123).

Embora ambas sejam possibilidades constitutivas do Dasein, de início e na maioria das vezes este se encontra na impropriedade do impessoal. Compreendamos que a impropriedade é umas das possibilidades do modo-de-ser do Dasein, que designa quando este se entrega a um sentido que já esta dado. Vale ressaltar que a impropriedade nos distancia da árdua tarefa de ter-de-ser. Tarefa no sentido de cada Dasein ter de ser, já que seu ser não está dado, isto é, ter que responder à indeterminação ontológica do seu existir. Quando o Dasein encontra-se mais na impropriedade do impessoal, sua linguagem e compreensão também estão imersos na impropriedade. A linguagem impessoal e a compreensão mediana restringem o desvelamento do ser e transforma a abertura em fechamento, de modo a manter o homem distante da sua principal tarefa de cuidar do seu poder-ser de modo mais próprio (GLASER, 2012). Ainda que na cotidianidade o Dasein tenda a se diluir no impessoal, segundo Heidegger (2007), o homem é passageiro, é lançado em um mundo e está sempre entregue

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à responsabilidade de si mesmo. Dasein tem que dar conta de sua existência; isto está sob sua responsabilidade. Em outras palavras, Dasein tem que “cuidar de ser”. Com base nesta sintética apresentação sobre os aspectos fundamentais do Dasein, iniciaremos uma compreensão sobre o sentido de ser-no-mundo-com-os-outros para o Dasein Fabiano.

5.

FABIANO: SER-COM-OS-OUTROS Vivia longe dos homens, só se dava bem com os animais, os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes Fabiano utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. [...] Um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo (RAMOS, 2007, p. 19-22).

Na maior parte do tempo Fabiano mostra-se uma pessoa tão rústica que chega a se confundir com os animais. Os detalhes dos pés de Fabiano faz claramente alusão a um casco de algum animal, tão duro que já não sentia mais o calor da terra e a força dos espinhos, talvez estes pés duros não sejam apenas alusão a um casco, mas também a demonstração do quanto a vida que Fabiano levava o endurecera e o deixara menos sensível. O ressequido parece não ser só no âmbito físico, mas também no seu contato com as pessoas. Ao observarmos o autor dizer que ao montar no cavalo se confundia com o mesmo, e que as palavras e linguagens que usavam eram entendidas muito mais pelo cavalo do que pelos homens nos mostra que ele não tinha com os homens muito contato, deixando explícito o quanto Fabiano não se relaciona bem com os outros Daseins. Talvez ele próprio se considere bruto e com isso o seu ser-com-os-outros se dê de maneira precária. Apesar de admirar as palavras bonitas que os homens da cidade usavam, achava que aquilo não era para ele. Sentia-se muito mais à vontade com os animais (entes intramundanos) do que com os seres humanos (entes Daseins). Talvez o que o perturbe ou o incomode seja a compreensão dele próprio como ser deslocado e ferido por uma realidade, um mundo que diz muito, mas é um dizer que Fabiano não compreende. Vemos que embora Fabiano tente sempre manter-se distanciado dos outros Daseins, não existe uma total falta de contato, mesmo porque o Dasein só existe a partir do outro. Sem o outro, não poderia se ganhar como Dasein, ou seja, como um si-mesmo. “É por meio dos outros e da interação com os outros que o Dasein conhece o mundo. Ele chega lançado a um mundo que não lhe pertence, de que nada sabe, nada compreende.

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Esta compreensão de mundo se dá por intermédio do outro que lhe apresenta” (ROMANATO, 2011, p.29). A partir de alguns trechos aqui colocados, acompanhemos, pois, Fabiano na relação com alguns personagens que aparecem no decorrer da história.

5.1. Fabiano e o Soldado Amarelo Neste ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu familiarmente no ombro de Fabiano: - Como é camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro? [...] Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia [...] Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade que em pouco tempo se enroscou. Fabiano encalacrou-se também. Sinhá Vitória ia danar-se, e com razão. – Bem feito. Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo. – Espera aí, paisano, gritou o amarelo. [...] Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignação. Na catinga ele às vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se. [...] A autoridade rondou por ali um instante, desejosa de puxar questão. Não achando pretexto avizinhou-se e plantou o salto da reiúna em cima da alpercata do vaqueiro. - Isso não se faz moço, protestou Fabiano. Estou quieto. Veja que mole e quente é pé de gente. O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos o destacamento da cidade rodeava o jatobá. –Toca pra frente, berrou o cabo. Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem compreender uma acusação medonha e não se defendeu (RAMOS, 2007, p. 28-30).

Para melhor compreendermos, vejamos mais um trecho: [...] deu de cara com o soldado amarelo que um ano antes o levara para a cadeia, onde ele agüentara surra e passara a noite. [...] O soldado magrinho, enfezadinho, tremia. [...] Nunca vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira? Não botara gente na cadeia? Sem vergonha, mofino [...] O soldado encolhia-se por detrás da árvore. E Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar cego outra vez. Impossível readquirir aquele instante de inconsciência. Repetia que a arma era desnecessária, mas tinha certeza de que não conseguiria utilizá-la – e apenas queria enganar-se. Durante um minuto a cólera que sentia por se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força e avançou para o inimigo. [...] Afastou-se inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro. – Governo é governo. Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo (RAMOS, 2007, p.102-107).

No primeiro trecho Fabiano vai à cidade para comprar o solicitado por Sinhá Vitória e acaba sendo intimado pelo soldado amarelo a participar de uma partida de baralho. Fabiano novamente se sente inferior e por não saber usar as palavras, acaba se sujeitando ao convite. Ambos perdem a aposta e Fabiano sai transtornado por não saber o que dizer a Sinhá Vitória sobre o valor gasto em jogatina. Ao vê-lo sair, o soldado se enfurece e desaforado vai ao encontro de Fabiano até forçar com ele um desentendimento. Neste momento, Fabiano sente-se afrontado e revida com um xingamento à mãe do soldado. Este, por sua vez, só esperava aquele estopim para prender Fabiano. Mesmo inconformado e dentro da razão, Fabiano novamente submete-se às ordens do policial e segue para a cadeia onde passa a noite.

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Um ano depois do acontecido Fabiano depara-se com o soldado em uma situação que o permitira estar em posição favorável. Mesmo sendo maior, mais forte e estando em melhor posição, Fabiano coloca-se em lugar de submissão; acaba curvando-se perante o soldado que percebendo a diminuição do outro, se impõe e passa por ele ileso. Os trechos acima nos trazem um Fabiano que se porta de forma mais imprópria no impessoal. Cabe colocar que o Dasein está sempre no impessoal e que é inclusive a partir deste que o Dasein se constitui; seja por meio da apresentação do mundo, por meio da linguagem, por meio da cultura e da historicidade (ROMANATO, 2011). O que se faz necessário dizer é que estando o Dasein total e constantemente diluído no impessoal, acaba por delegar a responsabilidade de suas escolhas ao “todo mundo”/“a gente”. Lançados num mundo desde nosso nascimento, somos chamados, convocados e pressionados para sermos um qualquer dos outros; convocados a ser o que e como os outros são. Convocados a aprender a ser impessoais. (...) Esta impessoalidade não é uma entidade, uma pessoa ou uma coletividade, uma coisa, mas um modo de se cuidar da vida inautenticamente (ou impropriamente) (CRITELLI 1996, p. 122).

Apesar de Fabiano viver na maior parte do tempo de forma mais imprópria no impessoal, acatando e aceitando ordens e mandos, sentindo-se sempre inferior, vivendo de forma a aceitar tudo que lhe é imposto, podemos visualizar neste episódio Fabiano tendo um lampejo de autoria. Ou seja, por um momento, ele se compreende como um ser digno de ser respeitado, considerado, visto em sua singularidade e de modo ético, o que nos revela um modo mais próprio de ser, mesmo que este modo pouco se sustente. Em se seguida, Fabiano volta a ficar mergulhado na impropriedade do impessoal. E este é o Dasein em sua condição de movimentação entre as modulações de ser chamadas de propriedade e impropriedade.

5.2. O Patrão Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado, arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e foi consultar a mulher [...]. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao fechar o negócio notou que as operações de Sinhá Vitória como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a explicação habitual: a diferença era proveniente de juros. Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco. Não se descobriu o erro e Fabiano perdeu os estribos. Passar a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria! O Patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda. Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem, não era preciso barulho não. Se havia dito palavras à-toa, pedia desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica? (RAMOS, 2007, p. 94).

É possível observar também neste trecho o incômodo de Fabiano ao rebelar-se frente à situação, a vontade de posicionar-se diante da agressão verbal, o que revela um movimento em busca de tornar-se mais autoral, mais próprio, mas nessa relação de

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opressão e de poder com o chefe, acaba novamente por se submeter. Talvez essa submissão aconteça em decorrência de duas possibilidades: 1. A forma com que foi criado pelos pais e como estes o ensinaram que se deve se relacionar com figuras de poder. Por exemplo: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo” - um ditado popular que reflete um pensamento pertencente ao impessoal. 2. Por temer enfrentar o patrão e sofrer represálias por parte deste, como perder o emprego. Dado que Fabiano sente-se estreitado de possibilidades, como poderia ele arrumar outro emprego? O que faria de sua vida? Como cuidaria da família se não tivesse um “bondoso” patrão que o concedesse um emprego? Em outras palavras, ele não vislumbra outro horizonte de possibilidades (outras formas de ser, outros lugares pra morar, entre outros). Assim, podemos presumir que ele compreende esse modo de ser (se submeter a quem manda) como o único modo de ser-no-mundo-comos-outros. Olhando então para Fabiano nos deparamos com um ser vivendo em um mundo distanciado, de forma a não encontrar neste um pertencimento. Por não termos aqui maiores informações sobre a criação e o convívio passado de Fabiano, nos deteremos então à compreensão de que apesar do Dasein Fabiano se dar no mundo desta forma distanciada, possivelmente ele não era o que queria ser, o que gostaria de ser. Talvez Fabiano fosse o que os pais foram, seguisse o que nos pais via como o padrão do que se deve ser, por haver compreendido esses valores e modos de ser (dos pais) como verdade absoluta. Ou por não se abrir a ele outras perspectivas de vida, preferisse não afrontar os superiores. Essa compreensão “mediana” que Fabiano tem de mundo é a compreensão que quase sempre dita e regula suas possibilidades de ser, dificultando-o de realizar-se de modo mais próprio e pessoal, colocando-se de maneira opaca a ponto de encobrir o desvelamento das possibilidades de sentido de si-mesmo e dos entes que lhe vêm ao encontro no mundo. Desta forma Fabiano acaba assumindo-se como um ente simplesmente dado, como se o seu ser já estivesse estabelecido, não realizando o seu caráter de poder-ser de maneira mais própria.

5.3. Fabiano e a festa na cidade [...] Fabiano estava silencioso...constrangido na roupa nova. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-lo. Olhou as caras ao redor. Sentia-se rodeado de inimigos [...] Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversa. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Todos lhe davam prejuízo, os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas tropeçando (RAMOS, 2007, p. 7576).

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Aqui Fabiano encontra-se com a família na cidade para participar de uma festa, como se fosse uma quermesse. Novamente vemos aqui que ele sente-se subjugado pelos outros Daseins e que de fato esses Daseins não respeitam a singularidade dele e o tratam como sendo um ente intramundano, vetado de possibilidades, impulsionando-o a lidar com a sua existência de modo mais impróprio. Fabiano sente-se inferior, coisificado, risível; vê as pessoas zombarem dele ao passar e esta condição o coloca em lugar de desabrigo. É possível perceber a partir daí o quanto a vida de Fabiano vai se dando de maneira hostil, desabrigada, sem pertencimento e por conta disto praticamente não encontra pessoas que compartilhem do mesmo sentido de mundo dele. Sabemos que não nascemos abrigados/pertencentes a um mundo e aos outros. Ao contrário, nos familiarizamos ao passar do tempo e é com o passar do tempo que o sentido de ser-no-mundo-com-os-outros vai se dando. É notável que o fato de Fabiano sempre estar mudando de lugar, sempre uma nova cidade, novos Daseins, dificulta que ele tenha com os outros Daseins e com o seu mundo uma relação de familiaridade, isto é, um sentido de pertencimento. A mudança contínua acaba gerando em Fabiano um lugar de desabrigo, tornando o novo ambiente sempre um ambiente hostil, pois nunca há tempo em demorar-se na experiência ao ponto desse novo lugar/mundo se tornar sua morada. Está sempre de mudança, constantemente de passagem.

5.4. Fabiano e a família Pobre de Sinhá Vitoria inquieta e sossegando os meninos. Baleia vigiando, perto da trempe. Se não fossem eles... Agora Fabiano conseguia arranjar as ideias. O que o segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo (RAMOS, 2007, p. 37).

Durante os capítulos podemos visualizar a preocupação de Fabiano com a sua família e é neste trecho que percebemos que sua família favorece com que a existência de Fabiano tenha sentido e a sua vida se torne digna de ser vivida. Fabiano tem por eles grande preocupação e esta preocupação para Fabiano é valorosa. Apesar de dizer que vivia preso como um novilho amarrado, ele não se sente preso à família, mas sim a escolhe, uma vez que ela favorece a tessitura de sentido de seu ser-no-mundo e dá abrigo à sua existência; é com ela que ele se sente pertencente ao mundo. Pode-se observar que nas outras relações, seu modo de ser-com-os-outros se dá de maneira mais imprópria, diferente do modo de ser-com a família, que se dá de forma mais própria. É com a família que ele acha acolhimento, é junto deles que Fabiano tem a Encontro: Revista de Psicologia  Vol. 17, Nº. 26, Ano 2014  p. 65-84

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sensação de pertencimento, em decorrência de ser enxergado em sua singularidade, isto é, de modo autêntico. Acompanhemos então os próximos trechos.

Os filhos Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aio a tira colo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás. Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão. – Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai. Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou, deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isso não acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando baixo. – Anda, excomungado. O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. [...] Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a ideia de abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas ossadas, coçou a barba suja e ruiva irresoluto, examinou os arredores. Sinhá Vitória estirou o beiço indicando vagamente uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia, os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato (RAMOS, 2007, p. 9-11).

Como de costume, mais uma vez a família de retirantes está fugindo da seca, em meio à caatinga, debaixo do sol escaldante. O filho mais velho põe-se cansado, chora, não consegue mais caminhar e Fabiano, também cansado da andança, se irrita com o garoto pela parada que julga desnecessária, porque isto atrasaria a viagem. Fabiano esbraveja, xinga, cutuca a criança com o cabo da faca, a fim de fazê-lo continuar caminhando. Nada resolve; Fabiano é tomado por uma irritação imensa, chega a ter vontade de deixar a criança para trás e continuar em frente, mas ao ver os urubus rodeando, repensa a situação. Sente pena e mesmo cansado, pega o menino no colo. Fabiano é rústico, seco e por ser assim, ou melhor, por ter aprendido a ser assim, é o que sabe expressar, é a forma que sabe agir. É acostumado a lidar com animais, e com animais não há muita conversa. Quando empacam, é chicotada no lombo que resolve. E essa era a forma que tratava os filhos, conduzindo-os da mesma maneira que conduz as reses. Vale

acrescentar

que,

dependendo

da

maneira

como

um

Dasein

é

cuidado/criado, é provável que ele venha a cuidar dos outros Daseins da mesma forma. Glaser (2012) comenta que na infância, usualmente, os sentidos de ser dos entes intramundanos (animais, plantas, coisas) e do próprio homem são apresentados à criança por seus cuidadores como uma verdade absoluta, definitiva, imutável, restando a ela corresponder às representações que lhe são apresentadas e aos modelos de ser humano (estabelecidos pelo impessoal).

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Os sentidos de ser dos entes se desvelam, à criança, por meio do cuidado dos seus cuidadores e de outras pessoas, “que lhe apresentam o mundo, sempre de algum determinado modo e em uma dada direção” (GLASER, 2012, p. 34). Mas é importante ressalvar que o Dasein nunca recebe alguma verdade sedimentada sobre algo passivamente. Junto ao modo como a criança é cuidada, é também por meio da sua compreensão dispositiva que se manifesta a criança o seu sentido de ser-no-mundo. Vidas Secas pouco fala da criação e contatos afetivos que Fabiano teve em sua infância pelos seus cuidadores (pais) e pelas outras pessoas que faziam parte do seu mundo, mas temos os relatos do tratamento atual, e por estes relatos pode-se notar que Fabiano é tratado pelos outros Daseins como um ente simplesmente dado (como se o sentido de seu ser já estivesse dado, determinado), tolhendo assim sua condição existencial de poder-ser, dificultando que a existência se desenrole na direção de uma maior apropriação de si mesmo. Dessa maneira, Fabiano vai levando uma vida inóspita, na qual o seu modo de ser e seu tempo (Kairós1) não são respeitados e Fabiano, por sua vez, sem perceber faz a mesma coisa com o filho, estreitando o poder-ser deste. Fabiano se considerava bruto, dizia não ter o dom da palavra. Por ser assim, palavras ou conversas desconhecidas o atordoavam. Vemos isso neste trecho seguinte, em que Fabiano fica boquiaberto esperando a repetição da palavra, ou talvez boquiaberto com a articulação do filho e sua abertura frente ao desconhecido. Uma das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta a repetição da pergunta. Não percebendo o que o filho desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o que não era da conta dele, como iria acabar: Repeliu-o vexado: - Esses capetas tem ideias (RAMOS, 2007 p. 20).

Fabiano não se envolvia com o que lhe era desconhecido; só ia até onde sabia ir. E como a pergunta do filho solicitava uma resposta, exigia-lhe uma compreensão o qual para ele estava velada, acabou ralhando com o filho, ao invés de responder-lhe a questão ou até mesmo expressar com sinceridade o não conhecimento da resposta. Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história bastante confusa, mas como só estavam iluminadas as alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino mais velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do pai, compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no escuro a dificuldade era grande. Levantou-se foi a um canto da cozinha, trouxe de lá uma braçada de lenha. Sinhá Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou a interrupção, achou que o procedimento do filho revelava falta de respeito e estirou o braço para castigá-lo. O pequeno escapuliu-se, e foi

“Os gregos antigos empregavam duas palavras para se referir a tempo. Chronos, o tempo objetivo, medido, o tempo cronológico. E Kairós, o tempo existencial, vivido, o momento oportuno para uma possibilidade se realizar. Segundo Heidegger (2007), o tempo é o horizonte da compreensão do ser, isto é, é no tempo (Kairós) que o ser se desvela” (GLASER, 2012, p.39). 1

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enrolar-se na saia da mãe, que se pôs francamente do lado dele. – Hum! hum! Que brabeza! Aquele homem era assim mesmo tinha o coração perto da goela. – Estourado (RAMOS, 2007, p. 64).

Fabiano mostrava-se um pai distante, era de pouco contato, e o pouco contato que tinha com os filhos era extremamente seco. Só falam o necessário, era uma relação rudimentar, distanciada, fria. As crianças, no entanto, buscavam atenção e contato com o pai, mas na maioria das vezes eram repelidas como mostra o trecho acima. Contudo, a mediação entre a braveza do pai e as curiosidades dos filhos se dava através de Sinhá Vitória, que sempre tentava de alguma forma apaziguar ou amenizar os ânimos entre eles. Mais uma vez vemos aqui neste trecho o quanto Fabiano estreita o poder-ser dos filhos, assim como fazem com ele. Entretanto, Fabiano não aprendeu a se posicionar firmemente frente às afrontas e estreitamentos que lhe impuseram; por conta das experiências vividas ele acaba por embrutecer-se, se tornando seco, rude, no intuito de suportar tudo que lhe era imposto, pois não sabia lidar com aquele sofrimento. E agora poderia compreender os questionamentos dos filhos se nem ao menos compreendia os seus? Sobre essa dificuldade de compreensão da fala e dos acontecimentos Romanato (2011) comenta: “há sempre uma dificuldade em traduzir acontecimento, sensações, questões em palavras pelo simples motivo que aquilo se torna palpável, se torna presente, se torna real” (p. 52). Para Fabiano é impossível dar para o filho aquilo que ele talvez nunca tenha recebido: um carinho, uma proximidade, um cuidado autêntico. Ele aprendera a ser bravo, aguentar chumbo no lombo, “pensava pouco, desejava pouco e obedecia” (RAMOS, 2007, p. 28). De que forma então ele poderia acolher e compreender as necessidades dos filhos, se de fato a vida que levava era inóspita? É esse estreitamento de possibilidades que ele repassa para os filhos. Em alguns momentos durante o texto nos deparamos com Fabiano tentando se colocar de forma mais própria, mas acaba se submetendo, pois acredita que se não obedecer, pode perder seu emprego, sua moradia ou acabar preso, ou seja, sua vida pode piorar. E por conta disto, acaba por ficar na posição em que está, posição esta que já lhe é conhecida, e ainda que precária, lhe fornece um sentido de segurança. Optar por mudar seu posicionamento implicaria em se lançar por novos caminhos que podem oferecer riscos, colocando-o frente ao que não controla, ao que desconhece (a falta de segurança).

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Esse modo de sempre se submeter é um modelo que leva aos filhos, não enxergando-os em sua singularidade (ou de modo mais autêntico), estreitando assim as possibilidades de existências dos mesmos.

Sinhá Vitória – A esposa Fabiano sente grande admiração pela esposa, Sinhá Vitória, pois comparada a ele ela tinha mais manejo não só com as palavras, mas com as pessoas e, diferente dele, se permite sonhar. Fabiano idealizava que, se soubesse se expressar melhor, não estaria naquela situação cativa, sempre à mercê de um superior. Fabiano acreditava que com a linguagem verbal mais articulada agiria melhor frente aos outros. Acredita que talvez, se tivesse uma linguagem como a de “seu Tomaz da Bolandeira”, poderia se entender com os outros, não seria enganado pelo patrão, nem tomaria surra de um soldado de polícia. É possível perceber que apesar das poucas palavras trocadas entre eles existia um companheirismo, uma admiração mútua. Talvez fosse com Sinhá Vitória que Fabiano se sentisse mais amparado e compreendido. Diferente dos outros habitantes da cidade. Vejamos: Sinhá Vitória fraquejou, uma ternura imensa encheu-lhe o coração. Reanimou-se, tentou libertar-se dos pensamentos tristes e conversar como marido por monossílabos. Apesar de ter boa ponta de língua, sentia um aperto na garganta e não poderia explicar-se. Mas achava-se desamparada e miúda na solidão, necessitava um apoio, alguém que lhe desse coragem. Indispensável ouvir qualquer som. A manhã sem pássaros, sem folhas e sem vento, progredia num silêncio de morte [...] Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se, esqueceu os objetos próximos, os espinhos, as arribações, os urubus que farejavam carniça (RAMOS, 2007, p. 120).

Em um trecho mais adiante vemos Fabiano impressionado, ao mesmo tempo confuso, com a desenvoltura da esposa ao metaforizar os urubus no céu matando o gado. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado. Sinhá Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a testa, achando a frase extravagante. Aves matariam bois e cabras, que lembrança! Olhou a mulher, desconfiado julgou que ela tivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do copiar, examinou o céu limpo, cheio de claridades de mau agouro, que a sombra das arribações cortava. Um bicho de penas, matar o gado! Provavelmente Sinhá Vitória não estava regulando. Como era que Sinhá Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria. Muito bem. As arribações matavam o gado. Estava certo. Matutando a gente via que era assim, mas Sinhá Vitória largava tiradas embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela queria dizer. Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se encantado coma esperteza de Sinhá Vitória. Uma pessoa como aquela valia ouro. Tinha ideias, sim senhor, tinha muita coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída. Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam (RAMOS, 2007, p. 109110).

Interessante observar como Fabiano presta atenção na fala da esposa e na forma com que ela utiliza as palavras, que embora uma linguagem simples, era poética. Intrigado e calado passa a observar as aves, matutando, sem conseguir decifrar o que para ele é um enigma. Depois de tanto refletir sobre o sentido da fala de Sinhá, Fabiano enfim o

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compreende e fica maravilhado, falando consigo mesmo sobre a admiração que sente pela mulher, por sua inteligência. Neste momento Fabiano sente-se um homem feliz por tê-la como esposa e companheira, talvez até mais que isto, sinta feliz por poder ser com ela uma pessoa mais aberta, mais autoral, mais próximo de si. E provavelmente gostaria também de ter a mesma compreensão de mundo que Sinhá Vitória tinha. Acho cabível ressaltar também que, embora Fabiano e Sinhá Vitória vivam no mesmo mundo fático, pelo fato do Dasein ser abertura de compreensão, a cada Dasein o sentido de ser-no-mundo-com-os-outros se desvela numa dada direção. Observemos o trecho a seguir: Falou no passado, confundiu-o com o futuro. [...] E talvez este lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado. Fabiano estirou o beiço duvidando. Sinhá Vitória combateu a dúvida. Porque não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual a de seu Tomaz da Bolandeira? Fabiano franziu a testa: lá vinham os despropósitos. Sinhá Vitória insistiu e dominou-o. Porque haveriam de ser sempre desgraçados fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. [...] olharam os meninos que olhavam os montes distantes, onde havia seres misteriosos. Em que estariam pensando? Zumbiu Sinhá Vitória. Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é bicho miúdo, não pensa. Mas Sinhá Vitória renovou a pergunta – e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão tinha sempre razão. Agora desejava saber o que iriam ser os filhos quando crescessem. – Vaquejar, opinou Fabiano. Sinhá Vitória com uma careta enjoada balou a cabeça negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que ideia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes baixos, cascalho, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo (RAMOS, 2007, p. 120-123).

Sinhá Vitória habita o mesmo mundo fático que Fabiano, mas por ser abertura de compreensão-dispositiva como todo Dasein, o sentido de sua existência se manifesta de modo um tanto distinto em relação ao de Fabiano. Podemos notar isso na vida que cada um dos dois, sinhá Vitória e Fabiano, esperam para os filhos. Sinhá Vitória almeja uma vida melhor para estes. Embora a situação atual seja desfavorável, ela acredita que um dia esta possa ser mudada e deseja esta mudança para seus filhos e também para ela. Já Fabiano não consegue conceber que o futuro dos filhos possa ser diferente do dele, o que revela que a existência de Fabiano está se dando de modo estreitado, mais impróprio. Expliquemos: assim como Fabiano compreende seu futuro destituído, estéril de novas possibilidades, é a mesma vida - repetição – que ele compreende ser possível para seus filhos. É praticamente impossível para Fabiano vislumbrar seus filhos sendo autores de novas histórias – frisemos: autores de suas próprias existências. Resta aos seus filhos, para Fabiano, reproduzir o que já está aí, o “destino ruim” que lhes foi imposto, colocado desde que caíram na terra.

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Fabiano não compreende que é necessário estar mais aberto para que algo novo lhe chegue. Por estar fechado, fincado numa posição, como que blindado para novos riscos, blindado para não se sentir mais vulnerável do que já se sente, pois desta forma nada o chega, nada o acontece, nada o toca. Só estando aberto poderá ser afetado, tocado. Fabiano vive de forma estreitada, e não compreende que é necessário estar aberto para que algo lhe chegue, pois estando fechado, fincado numa posição, no sentido de se blindar de qualquer risco e vulnerabilidade, nada o chega, nada o acontece, nada o toca. Só estando aberto poderá ser afetado, tocado. A partir do momento que Fabiano deixar-se tocar, poderá enxergar que não é sujeito fechado é sim um ser aberto a possibilidades.

5.5. Fabiano: si-mesmo Neste subcapítulo nos delimitaremos no si-mesmo de Fabiano. Para esta compreensão, seguem alguns trechos que foram de suma importância para a observação. Acompanhemos: [...] A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô, e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir o gesto hereditário. Fabiano ia satisfeito, Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura pareciam ratos – a lembrança do sofrimento passado esmorecera. Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aio um pedaço de fumo, picou-o fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o a binga, pôs-se a fumar regalado. - Fabiano você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se o ouvindo falar só. E pensando bem ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis a barba e o cabelo ruivo; mas como vivia em terra alheia cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. - você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha. [...] Entristeceuse. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. A sina dele era correr mundo, andar pra cima e pra baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede (RAMOS, 2007, p. 17-19).

Como em outros capítulos, novamente vemos em Fabiano características que lembram a postura de um animal. Aqui a alusão nos lembra do andar de um macaco, a cabeça baixa, o espinhaço curvo, os braços balançando de um lado para o outro. Para Fabiano esta postura lhe era mais que familiar, pois era assim que via seu pai e seu avô. Estes eram suas referências de pessoas, pois fora com eles que aprendera instruções para a vida, inclusive, a separação de veredas. Por compreender estas referências como verdade absoluta, a manifestação destes gestos lhe parecia natural, de forma a repeti-los sem nenhuma recriminação. Os mesmos gestos já eram até mesmo copiados pelos seus filhos.

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Embora pareça que Fabiano, ao ser aproximado ao modo de ser de um animal, esteja sendo diminuído, o que vemos é que Fabiano está satisfeito por conseguir um novo lugar para se alojar com sua família. Acredita que vencera todas as dificuldades. A família chegara ali passando fome, comendo raízes, mas chegara. E agora se punha a fumar, batendo firme o pé no chão. Ressalta-se Homem, fala em voz alta e na mesma hora repreende-se por medo que as crianças o ouçam e de repente o interpretem mal. Entendam que o interpretar mal aqui não soa apenas como tom de loucura, mas sim o desentendimento da comemoração. Ou ainda soe como tom de reprovação, pois como poderia o pai comemorar por uma terra que não é sua e que num futuro bem próximo terá que novamente retirar-se e procurar novamente um novo lugar para morar? Então na mesma hora em que há a comemoração, há também o descontentamento com tal situação. Achar-se ali mais uma vez de passagem sendo hóspede, servo, à mercê da vontade alheia, só esperando a próxima seca para bater em retirada. Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomaz da Bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes poderiam ter luxo? Estavam ali de passagem qualquer dia o patrão os botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada, dormiriam bem debaixo de um pau. Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se. Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que ele se entendera. E antes de entender, antes de nascer, sucedera o mesmo [...] Virou o rosto para fugir da curiosidade dos filhos, benzeu-se, não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver terras, conhecer gente importante. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la. Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro, lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a cabeça levantada, seria homem. - Um Homem, Fabiano. Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não, provavelmente não seria homem; seria aquilo mesmo a vida inteira, cabra, governado pelos brancos, quase um rês na fazenda alheia (RAMOS, 2007, p. 23-24).

A esposa de Fabiano vislumbrava um dia poder ter uma vida como a de seu antigo patrão, Tomaz da Bolandeira e se imaginava deitada em uma cama tão boa quanto a de Tomaz, bem diferente da cama de varas que possuía. Fabiano achava aquilo um devaneio, um absurdo: onde já se vira sonhar ter tais coisas se nem ao menos tinham onde morar? Fabiano considerava-se nômade, um hóspede, sempre de passagem, com o risco de a qualquer momento ser despejado pelo patrão ou empurrado pela seca. Julgava-se um ser intramundano, um tatu, um bicho do mato, sempre se escondendo se diminuindo diante os outros. Fabiano não tinha por aquele lugar um sentimento de pertencimento. Embora não acreditasse muito em uma mudança de vida, às vezes ele também se encontrava

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envolto em pensamentos que o levavam a caminhos diferentes, a uma vida melhor, considerava-se Homem. Fabiano expressa uma ira, uma vontade de querer brigar. Brigar com a situação que lhe foi dada, brigar com a mesmice, com a falta de perspectiva, com a desesperança. Não queria mais se esconder feito um animal em um buraco escuro, queria ser gente, ser Homem. Mas novamente retrocede e conforma-se em ter uma sorte ruim, em ter que ser servo a vida inteira, governado por brancos. É possível observar que Fabiano até tenta ser autor, ser mais próprio, mas pouco se sustenta essa compreensão de si-mesmo como autor de sua vida, isto é, logo decai na impropriedade do impessoal. Os trechos acima demonstram o sentido de existência que se desvelou para Fabiano. Um sentido de ser-no-mundo-com-os-outros, cujo mundo é compreendido como um lugar inóspito, hostil, e pior, um mundo pronto, acabado, determinado, ao qual cabe a ele unicamente se submeter e acatar o seu “destino ruim”. Um mundo (ou vida), na qual ele teve o “azar” de não ter alternativa a não ser se submeter a quem tenha mais poder do que ele. Fabiano de algum modo se aproxima de sua condição de ser-para-a-morte, ou seja, compreende sua finitude. Essa compreensão (a de ser-para-a-morte) gera em Fabiano a disposição afetiva chamada de Angústia Existencial, a qual resgata (promove) a ele o seu caráter de poder-ser. Porém, a angústia, embora seja um momento de rompimento com a familiaridade do impessoal, um momento em que a cegueira do cotidiano, dos padrões, dos ditados seja desmanchada, - após ser interpelado pela angústia existencial e ter posto em xeque suas verdades sedimentadas e sentidos impróprios - não garante que o Dasein não volte à vida que já levava que ele decida por continuar nas velhas escolhas, nos desgastados modos de ser. E isso podemos perceber no Dasein Fabiano. Embora em alguns momentos ele se aproxime, ainda que sutilmente, da sua condição de finitude, vindo a ser convocado pela angústia, novamente ele decai em um modo mais impróprio de ser.

6.

CONCLUSÃO Através da análise feita sobre a trajetória de Fabiano foi possível perceber que na maior parte do tempo este Dasein vive de forma mais imprópria (mais na impropriedade do

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impessoal), distanciado do seu poder-ser, hóspede em um mundo que ele não reconhece como seu. É possível observar em alguns momentos da existência de Fabiano que o seu modo de ser se aproxima, nem que brevemente, da propriedade, mas pouco se sustenta essa compreensão de si-mesmo como autor de sua vida, isto é, logo decai na impropriedade do impessoal. A maior parte do tempo, Fabiano concebe seu mundo como pronto, acabado (serno-mundo de modo mais impróprio), os homens como opressores (ser-com-os-outros de maneira mais imprópria), e si-mesmo como um ser destinado a seguir um caminho préestabelecido a ele mesmo antes dele nascer (modo impróprio de lidar com si-mesmo). Essa compreensão “mediana” que Fabiano tem de mundo é a compreensão que quase sempre dita e regula suas possibilidades de ser, dificultando-o de realizar-se de modo mais próprio e pessoal, colocando-se de maneira opaca a ponto de encobrir o desvelamento das possibilidades de sentido de si-mesmo e dos entes que lhe vêm ao encontro no mundo. Desta forma Fabiano acaba assumindo-se como um ente simplesmente dado, como se o seu ser já estivesse estabelecido, não realizando o seu caráter de poder-ser de maneira mais própria. Mesmo sendo Fabiano um personagem fictício, creio ser possível ver refletida em sua vida a existência de muitos outros Daseins, em que a abertura de compreensão se nivelou aos sentidos sedimentados do impessoal - tão imersos no “a gente” , estreitando o seu poder-ser e lhes empurrando a um lugar de alheio ao seu próprio existir.

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SODELLI. M. Aproximando sentidos: Formação de Professores, Educação Drogas e Ações Redutoras de Vulnerabilidade 2006. 250 f. Tese (Doutorado em Educação) – Pontífica Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.

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