UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO SIMONE FRANCO DE SÃO TIAGO HISTÓRIA DA CIÊNCIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: contribuições dos recursos audiovis...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

SIMONE FRANCO DE SÃO TIAGO

HISTÓRIA DA CIÊNCIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: contribuições dos recursos audiovisuais a partir da análise de filmes científicos

Rio de Janeiro 2012

SIMONE FRANCO DE SÃO TIAGO

HISTÓRIA DA CIÊNCIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: contribuições dos recursos audiovisuais a partir da análise de filmes científicos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.

Orientador: Luiz Augusto C. Rezende Filho

Rio de Janeiro 2012

Simone Franco de São Tiago

HISTÓRIA DA CIÊNCIA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES: contribuições dos recursos audiovisuais a partir da análise de filmes científicos

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do Título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.

Aprovado em __________________________________

______________________________________________________

Prof. Dr. Luiz Augusto Coimbra de Rezende Filho – UFRJ

______________________________________________________ Profa. Dra. Andreia Guerra de Moraes – CEFET-RJ

______________________________________________________

Profa. Dra. Guaracira Gouvêa de Sousa – UFRJ

São Tiago, Simone Franco de. História da ciência e formação de professores: contribuições dos recursos audiovisuais a partir da análise de filmes científicos / Simone Franco de São Tiago. – 2012. 160 f.; 30 cm. Orientador: Luiz Augusto C. Rezende Filho. Dissertação (mestrado) -- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, 2012. Bibliografia: f. 145-151. 1. Ciência - História. 2. Formação de professores. 3. Recursos audiovisuais. 4. Ciência – Estudo e ensino. I. Rezende Filho, Luiz Augusto C.. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Nutes, Programa de Pós-graduação em Educação em Ciências e Saúde. III. Título.

Aos meus alunos e colegas de profissão dedico este trabalho.

Agradecimentos

Agradeço ao meu orientador Luiz Rezende por depositar sua confiança nesta pesquisa. Aos colegas do NUTES pelo apoio. Aos meus filhos, marido e familiares pela ajuda, carinho e, principalmente, pela paciência sem a qual não teria sido possível chegar ao fim desta jornada.

Conhecer a natureza faz com que apreciemos sua beleza além do que pode ser visto, apreciamos sua ordem, a harmonia por trás dos fenômenos. (São Tiago, 2011)

RESUMO São Tiago, Simone Franco. História da ciência e formação de professores: contribuições dos recursos audiovisuais a partir da análise de filmes científicos. Dissertação (Mestrado Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

Esta pesquisa pretende refletir sobre a utilização de filmes científicos de arquivo como fontes históricas para o ensino-aprendizagem sobre a natureza e a história da ciência, por professores. Para tanto, será feita uma análise do filme Combate à lepra no Brasil, do gênero documentário de curtametragem, produzido em 1945 pelo INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo). O filme teve como objetivo divulgar a rede de leprosários destinados ao isolamento do portador de lepra/hanseníase, que se instituía no Brasil como medida oficial para o tratamento da doença, naquele período. Esta análise, referenciada por uma metodologia específica de análise fílmica, tem a intenção de subsidiar um olhar historiográfico para o filme que esteja de acordo com a abordagem históricoarqueológica, sugerida por Foucault. Para tanto, nossa análise constará, inicialmente, de uma descrição das imagens e narrativas presentes no filme, para, enfim, confrontá-las com informações a respeito da lepra/hanseníase trazidas por outras fontes documentais. Esperamos, a partir destas informações, compreender se o conhecimento científico abordado pelo filme, tanto implícita como explicitamente, estariam de acordo com o que se tinha disponível para o tratamento da lepra/hanseníase na época em que o filme foi produzido, ou se estaria privilegiando metas de governo. Com isso, desenvolveremos reflexões sobre o potencial destes filmes científicos de arquivo para informar sobre a natureza da ciência a partir de episódios históricos reais.

Palavras-chave: NATUREZA AUDIOVISUAL

DA

CIÊNCIA.

HISTÓRIA

DA

CIÊNCIA.RECURSO

ABSTRACT São Tiago, Simone Franco. História da ciência e formação de professores: contribuições dos recursos audiovisuais a partir da análise de filmes científicos. Dissertação (Mestrado Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

This research aims to reflect on the use of scientific films file as historical sources for teaching and learning about the nature and history of science for teachers. Therefore, there will be an analysis of the film Fight leprosy in Brazil, the genre of documentary short film, produced in 1945 by INCE (National Institute of Educational Cinema). The film aimed to spread the network of leprosy for the isolation of patients with leprosy, which was instituted in Brazil as the official measure for the treatment of the disease in that period. This analysis, referenced by a specific methodology of film analysis, has the intention of subsidizing a historiographical look for the film that is in accordance with the historicalarchaeological approach, suggested by Foucault. Therefore, our analysis will consist initially of a description of the images and narratives in the film, to finally confront them with information about leprosy brought by other documentary sources. Hopefully, from this information, understand the scientific knowledge covered by the film, both implicitly and explicitly, would be consistent with what we had available for the treatment of leprosy at the time the film was produced, or if he was favoring goals of government. With that, we will develop reflections on the scientific potential of these movies file to inform about the nature of science from actual historical episodes.

Key words: NATURE OF SCIENCE. HISTORY OF SCIENCE.AUDIOVISUAL FEATURE

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...........................................................................................................14 1.1 Natureza da ciência – argumentos para sua inclusão no ensino de ciência............................. 17 1.2 A natureza da ciência na concepção de professores de ciências.............................................. 26 1.3 Os objetivos desta pesquisa..................................................................................................... 36 1.4 Linha argumentativa desta pesquisa........................................................................................ 39

2. QUADRO TEÓRICO................................................................................................. 45 2.1 Aspectos consensuais sobre a natureza da ciência................................................................... 48 2.2 Abordagens para a natureza da ciência.................................................................................... 51 2.2.1 A natureza da ciência pela história da ciência – diferentes olhares historiográficos......55 2.2.2 Distorções históricas em materiais didáticos..................................................................58

2.3 Abordagem historiográfica privilegiada por esta pesquisa .................................................61 3. RECURSOS AUDIOVISUAIS E EDUCAÇÃO: ALGUMASCONSIDERAÇÕES................................................................................... 68 4. PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS................................................................... 79 5. ANÁLISE FÍLMICA – A DESCONSTRUÇÃO...................................................... 85 5.1Da lepra à hanseníase: uma trajetória de estigma, omissão e assistencialismo............85 5.1.1A lepra/hanseníase no Brasil: uma trajetória em particular................................ 92 5.2O filme e sua época.....................................................................................................108 5.2.1 Fundação do INCE – contribuições para um projeto nacionalista.....................114 5.3O filme e suas escolhas..........................................................................................

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6. RESULTADOS E DISCUSSÃO – A RECONSTRUÇÃO................................... 126 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 142 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................... 145 ANEXO

Imagens

captadas

do

filme

Combate

à

lepra

no

Brasil

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APRESENTAÇÃO

Inicio este trabalho apresentando os motivos e questionamentos que me impulsionaram a buscar este tipo de formação e “informação”. A opção por esta apresentação inicial se justifica pelo fato de acreditar que alguns dos professores que vierem a se deparar com esta pesquisa, poderão se sentir estimulados a percorrê-la até o fim, possibilidade que, em minha opinião, já torna legítima esta escolha. Esta possibilidade a que me refiro se baseia na crença de que as questões que colocarei agora poderão ser identificadas, por estes professores, como sendo suas também. Estes motivos e questionamentos que me trouxeram até aqui estão relacionados, principalmente, a um aspecto do que tenho visto e vivido desde que me formei e ingressei na carreira do magistério, como professora de ciências/biologia, no ano 2000. Ao longo destes anos meu contato com este universo da escola, do professor e da sala de aula tem sido ininterrupto, seja através da iniciativa particular ou pública. Isto me confere certo conforto para afirmar que um grande número de professores, não apenas de ciências, se dedicam a melhorarem suas aulas, a fim de torná-las mais “atrativas”, “inovadoras”. Mas, também tenho constatado que a principal motivação, agora no caso específico dos professores de ciências, tem sido, de modo geral, à busca de respostas para perguntas do tipo: Quais conteúdos de/em ciências ensinar? Como ensinar estes conteúdos de/em ciências? Para uma reflexão mais aprofundada sobre este cenário, entendo que seria necessária uma análise que considerasse questões sobre educação, de forma geral, e sobre

o

ensino

de

ciências,

mais

especificamente.

Questões

que

passam

obrigatoriamente pela história da educação, das disciplinas, neste caso específico da disciplina ciências, dos currículos, dos fatores não só internos a esses campos como também externos, ou seja, uma análise muito ampla e complexa que não cabe ao escopo deste trabalho. Por isso, irei me restringir a uma questão que considero suficiente a título de demarcar um posicionamento em relação ao papel do professor, pois nada aqui tem a intenção de juízo de valores. A questão se refere a esta motivação apresentada pelos mesmos em busca de mudanças na dinâmica de suas aulas. Embora saibamos das dificuldades encontradas nesta profissão no que diz respeito à remuneração, número de alunos por turma, estrutura física das escolas, entre outras, existe um sentimento de

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compromisso, a meu ver, que faz com que estes profissionais procurem fazer o melhor, a partir do que compreendem ser o melhor. Este movimento por si só me parece relevante, pois sinaliza que existem questionamentos que emergem da prática docente e que impulsionam professores a buscarem novos conhecimentos que, de alguma forma, se farão presentes nas salas de aula. Neste momento, gostaria de voltar para minha trajetória a fim de exemplificar o que acabou de ser dito. Alguns anos depois de ter me formado e já lecionando, precisamente em 2004, senti a necessidade de dar continuidade a meus estudos. Esta necessidade me levou a ingressar em um curso de pós-graduação em Ensino de Ciências de uma universidade pública do Rio de Janeiro. Como era de se esperar, o curso não frustrou minhas expectativas, era composto por um corpo docente qualificado nas variadas disciplinas consideradas fundamentais, acreditava eu, ao corpus de disciplinas determinado para quem procura por este tipo de formação. Desta forma, recebi um grande reforço em relação à bagagem disciplinar que obtive durante a graduação, a partir de aulas repletas de conteúdo em física, química, biologia, geologia, entre outras. Mas o momento mais esperado era a aula de prática de ensino que acontecia em um laboratório no qual uma diversidade de materiais e kits, que tinham a finalidade de tornar as aulas mais “atrativas” e “inovadoras”, nos foi apresentada. Estes kits didáticos faziam parte de uma linha de pesquisa do programa, e podiam ser comprados ou emprestados aos professores, dependendo do que desejassem desenvolver ou implementar em suas aulas. Assim, em 2005 obtive o título de especialista em ensino de ciências e, repleta de kits consegui, por certo tempo, conferir outra dinâmica para minhas aulas, onde os alunos podiam “aprender” determinada quantidade de conceitos e teorias apresentadas pelos livros, a partir de jogos e experiências. Com isso, certa comodidade se instalou em minhas aulas juntamente com um sentimento de estar cumprindo o meu dever, de estar fazendo o melhor a partir do que acreditava ser o melhor. Mas, diante da realidade de que, por exemplo, a grande maioria de seus alunos não irá ingressar no ensino superior ou seguir alguma carreira técnicacientífica, não é difícil para um professor se deparar com outras questões, do tipo: Para que irá servir todo este conteúdo transmitido? Ou mesmo se encontrar afirmando: Ano que vem, na melhor das hipóteses, já terão esquecido tudo. E assim, estes questionamentos e inquietações, me impulsionaram a continuar em busca de algo que parecia estar faltando.

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Foi quando comecei a me deparar, informalmente, com amplos debates que têm ocorrido no campo da educação em ciências. Inicialmente, isso se deu a partir de conversas em encontros de família. Percebia que a física estava sempre presente de forma natural, quase agradável. Atribuo isto a capacidade que meu irmão, professor desta disciplina, sempre demonstrou ao trazer outros componentes para suas explicações, sempre apaixonadas e repletas de elementos da história da física. Hoje pesquisamos sobre os mesmos temas, Natureza e História da Ciência, aos quais retornarei mais a frente. Mas agora, o que quero dizer é que só agora entendo como um professor de física podia ser convidado tantas vezes por turmas de jovens entre 15 e 17 anos para ser paraninfo de formatura. Fato que me leva a outra questão: Quais seriam minhas memórias sobre as aulas de física se a mesma me tivesse sido apresentada da forma como ele propõe em sua pesquisa „Aspectos da Natureza da Ciência num curso de Física do Ensino Médio. Uma abordagem através de casos históricos.‟? Neste momento de despertar para novas possibilidades de ensinar, digamos assim, outra experiência profissional foi determinante para meu aprofundamento em discussões sobre o ensino de ciências, além de ter sido igualmente determinante para o interesse pelo recurso audiovisual como instrumento didático-metodológico. Esta experiência diz respeito ao período em que estive integrando a equipe de produção de conteúdo do programa Salto para o Futuro, da TV Escola/MEC, de 2008 a 2011.Realmente o meu contato com este universo da escola não se interrompeu desde que me formei, como mencionei anteriormente, só que neste período este contato se deu de outra maneira. Não cabe aqui descrever este programa, voltado para a formação continuada de professores, mas uma de suas principais características sempre foi primar pela diversidade, seja de temas ou de vozes. Isto quer dizer que neste período estive em contato com pesquisadores de diferentes áreas, inclusive da área de ensino de ciências, tema recorrente nas séries do Salto, e com professores e escolas de diferentes regiões, uma vez que o programa é nacional e tínhamos que gravar in loco. Esta experiência só veio consolidar o que já observava nos tenros tempos de minha atividade profissional, e falar sobre ela daria certamente outro trabalho. Mas gostaria de ressaltar, a partir desta experiência, a consolidação da minha compreensão sobre o papel da escola como campo de luta, de construção, de transformação, e sobre o papel do professor na significação destes processos.

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Hoje compreendo que são diversas as discussões que emergem da área do ensino de ciências, mas aqui vou me referir especificamente a que tem apontando para a importância, em linhas gerais, de se acrescentar àquelas questões as quais apresentei logo no início como sendo motivadoras na busca de professores por aulas mais atrativas, outras, tais como: Quais conteúdos sobre ciências ensinar? Como ensinar estes conteúdos sobre ciências? Ao iniciarmos um estudo a esse respeito, a partir da literatura da área, constatamos que essas questões emergiram, e emergem, de debates que procuram discutir, pra não dizer determinar, definir, qual a função social do ensino de ciências. Esta é uma discussão complexa, pois resulta da confluência de áreas distintas, que representam interesses distintos também, e discuti-la com profundidade não é nosso objetivo. O que nos interessa neste momento é compreender que a trajetória da disciplina ciências e seu ensino no contexto escolar são “inseparáveis dos processos sociais e políticos” (ARROYO, 1988, p.3). Em linhas gerais, este autor apresenta em seu artigo „A Função Social do Ensino de Ciências‟ que o mesmo encontra-se atrelado historicamente a estes processos, que acabam determinando tendências no campo educacional como, por exemplo, o tecnicismo que surge no final da década de sessenta cuja proposta baseava-se em “um saber moderno, técnico-científico, útil, prático, capaz de formar profissionais e trabalhadores eficientes para uma sociedade produtiva” (ARROYO, 1988, p.5). Ainda nos diz que o ensino centrado unicamente nos conteúdos de/em ciências, tanto na escola básica como nas universidades, é a prova de que a ilusão do tecnicismo desenvolvimentista dos anos sessenta não foi superada. Neste sentido, é importante que se faça uma crítica ao ensino de ciências a partir da qual novas dimensões serão consideradas, como as advindas das ciências humanas. Desta forma, conteúdos sobre ciências serão acrescentados ao ensino, permitindo que os jovens cidadãos compreendam a produção científica como parte de uma “correlação complexa de forças” (ARROYO, 1988, p. 4). Mais uma vez é necessário dizer que aqui não cabem julgamentos, muito menos desqualificar a importância atribuída às disciplinas específicas. A intenção foi tentar criar uma coerência entre diferentes eventos que fazem parte de uma mesma trajetória profissional, e pessoal, a partir da qual surgem questionamentos que podem se transformar em questões de pesquisa. E ao assumirem uma postura reflexiva,

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professores poderão perceber o quanto as mesmas podem se mostrar relevantes quando inseridas em um contexto mais amplo. Hoje, de volta às salas de aula como professora de ciências/biologia da Rede Estadual do Rio de Janeiro, compreendo que a prática docente é fundamentada por diferentes saberes, provenientes de fontes variadas. Pode-se definir o saber docente como um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional, dos saberes das disciplinas, dos currículos e da experiência. (TARDIF, 1991, p. 218)

E terão estes últimos, os saberes da experiência, papel determinante na seleção e significação dos saberes curriculares e disciplinares nos contextos educacionais. Diferente dos médicos, por exemplo, que dependem na maioria das vezes de instrumentos apropriados, equipamentos sofisticados, para fazerem o melhor, nós, professores, não, e isso é o que tenho aprendido, e visto. Sei de todos os problemas e dificuldades que existem nesta profissão, mas aqui optei por falar da beleza. Por isso, esta pesquisa nada mais é do que um convite para refletirmos sobre a importância de se buscar, sempre, um enriquecimento intelectual que nos possibilite enxergar mais claramente o mundo do qual integramos e interferimos, pois, certamente, este será o mundo que levaremos para dentro das salas de aula. Os caminhos trilhados nessa busca podem ser vários, aqui ofereço uma pequena contribuição, apresentando um deles, o que tem sido trilhado por mim.

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Capítulo 1 INTRODUÇÃO

O uso da História da Ciência no Ensino de Ciências tem sido amplamente debatido por estudiosos e pesquisadores de diferentes áreas, interessados tanto no âmbito educacional como social do ensino de ciências, nos últimos anos. As justificativas têm sido muitas para tal abordagem, mas entre elas há um consenso de que nas salas de aula são realizadas simplificações e apenas o resultado de todo um processo de produção do conhecimento científico é apresentado. As incertezas, as controvérsias e as disputas entre os pesquisadores para que um conhecimento seja aceito e estabelecido na comunidade científica, por exemplo, acabam ficando ausentes da sala de aula. Neste cenário, a História da Ciência tem sido apresentada como importante recurso didático-metodológico capaz de informar professores e alunos sobre aspectos relacionados à como se produzem e desenvolvem os conhecimentos científicos, ou seja, informar sobre a Natureza da Ciência (NdC). Esses aspectos, que já vêm sendo recomendados, inclusive, por documentos oficiais de orientações curriculares, encontram-se relacionados

não

somente

a conteúdos de/em ciências,

mas,

principalmente, a conteúdos sobre ciências. (ABD-EL-KHALICK &LEDERMAN, 2000; ALLCHIN, 2004; DELIZOICOV, 2006; FORATO, 2009; GIL PEREZ et al, 2001; MATTHEWS, 1992, 1994, 1995; McCOMASet al, 1998; MARTINS, 2007; SÃO TIAGO, 2011; SUTTON, 1997) Em contrapartida, continua a se propagar pela sociedade uma imagem da ciência e do cientista inadequada e ingênua, desconectada de qualquer contexto histórico, social e cultural. Esta imagem sustentada, sobretudo pela mídia, encontra-se também fortemente enraizada aos processos educacionais, nos quais a escola, principal instituição formal destinada à produção, reprodução e reflexão de/sobre conhecimentos instituídos e legitimados por uma sociedade (TARDIF, 1991), acaba por reproduzir, também, esta imagem desinformada sobre a ciência. A respeito da visão de ciência predominante nas salas de aula, Gil Perez et al. (2001) apontam, entre outras consequências de uma caracterização reduzida e superficial da produção científica, a visão aproblemática e ahistórica, a visão cumulativa

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de crescimento linear, individualista e elitista, e socialmente neutra da ciência. Esta mesma visão considera os cientistas como pessoas absoluta e constantemente objetivas, abertas à comunidade, libertas de pressões sociais e econômicas, supostamente voltadas para a busca de verdades desinteressadas e possuidores de um método infalível. Nesta mesma perspectiva, Mortimer (1998) e Angotti e Auth (2001) apontam para uma desilusão da sociedade em relação à ciência. A explicação para isso seria o fato de todos sermos espectadores, perplexos, de enormes problemas ambientais e sociais causados por um modelo de desenvolvimento científico e tecnológico que, outrora, fora apresentado como sinônimo de progresso. Para Mortimer, o momento atual em que nos encontramos caracteriza-se por uma onda pós-moderna, em que cidadãos comuns cobram da comunidade científica acesso às informações que dizem respeito às consequências das produções científicas na vida de cada um de nós. Em relação ao ensino de ciências, este autor afirma que a escola está muito longe de ser atingida por esta onda pós-moderna, pois continua reproduzindo um modelo de ensino que privilegia a linguagem neutra, fria, atemporal, pretensamente universal, que apresenta modelos como se fosse realidade. E conclui dizendo: Através desse ensino, perpetuamos as relações de poder em nossa sociedade, (...) continuamos a ensinar uma ciência neutra, livre de qualquer compromisso ético com a solução dos problemas da humanidade. Uma ciência desinteressada que, no entanto, produzirá bens e valores segundo a lógica dos poderosos, perpetuando a dominação, a exploração sem limites do homem e do ambiente. (MORTIMER,1998, p. 108)

Numerosos estudos mostram que o ensino transmite visões que se afastam notoriamente da forma como a ciência se desenvolve e opera. Visões empobrecidas e distorcidas que criam o desinteresse, quando não a rejeição, de muitos estudantes e se convertem num obstáculo para a aprendizagem (CARVALHO, 2005; GIL-PEREZ et al, 2001; HARRES, 1999). Diante disso, a inclusão da perspectiva histórica no ensino de ciências é também defendida por Matthews, a partir da premissa de que a História da Ciência pode apresentar algumas respostas à crise mundial da educação científica. Segundo este autor: Podem humanizar as ciências e aproximá-las dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos da comunidade; pode tornar as aulas de ciências mais desafiadoras e reflexivas, permitindo, desse modo, o desenvolvimento do pensamento crítico; podem contribuir para um entendimento mais integral da

17 matéria científica, isto é, podem contribuir para a superação do “mar de falta de significação” que se diz ter inundado as salas de aula de ciências, onde fórmulas e equações são recitadas sem que muitos cheguem a saber o que significam; podem melhorar a formação de professores auxiliando o desenvolvimento de uma epistemologia da ciência mais rica e mais autêntica, ou seja, de uma maior compreensão da estrutura das ciências bem como do espaço que ocupam no sistema intelectual das coisas. (MATTHEWS,1995, p. 165)

Em uma pesquisa cuja proposta foi discutir aspectos da NdC através de casos históricos, direcionada para um curso de física do ensino médio, São Tiago destaca que uma parte importante deste “esforço intelectual” (2011, p. 2) empreendido pela humanidade no sentido de compreender o mundo a sua volta, fica ausente das salas de aula. Para o autor, “além dos conteúdos da ciência em si é preciso tratar de conteúdos sobre (grifo do autor) a ciência. É essencial tratar da natureza da ciência” (grifo do autor) (SÃO TIAGO, 2011, p. 4). O autor ainda nos diz que um número crescente de documentos curriculares oficiais, não só no Brasil como em diversos países, vem inserindo orientações a respeito do uso da história da ciência com a finalidade de discutir NdC, mas sem resultados significativos. As causas prováveis para esta constatação seriam, principalmente, a falta de elementos claros sobre NdC nos cursos de formação de professores, e a existência de versões distorcidas da história da ciência presentes no contexto escolar, principalmente em materiais didáticos (FORATO, 2009; SÃO TIAGO, 2011). Estas questões acima mencionadas, referentes ao ensino de ciências, constituem uma das vertentes de um amplo debate travado na sociedade, que almeja por uma educação científica de qualidade. Isto quer dizer uma educação científica que prepare o cidadão do século XXI para uma apropriação e compreensão crítica a respeito da ciência e da tecnologia no que diz respeito a seus produtos e seus impactos, cada vez mais presentes na vida cotidiana. Neste sentido, muitos estudos têm apontado para a necessidade de esclarecer uma parcela cada vez maior da população, inclusive, e principalmente, aos jovens estudantes, sobre diversos aspectos envolvidos na produção científica, de forma a aproximá-los da natureza desta atividade. O foco da presente pesquisa concentra-se na ciência ensinada nas escolas, ou seja, no ensino de ciências. Por isso, atribuímos relevância estratégica aos processos de formação aos quais professores têm sido submetidos. Embora saibamos que a produção dos saberes escolares sofre influência de seu entorno histórico, social e cultural, por isso

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mesmo deve ser discutida à luz dessa complexidade, também acreditamos que a concepção que professores tem sobre a natureza da ciência irá refletir em suas escolhas sobre conteúdos, abordagens e metodologias empregadas em sala de aula, e grande parte desta concepção é construída ao longo do processo de formação (BEZERRA SILVA & MEDEIROS, 2000; FORATO, 2009; ZIMMERMANN, 2000). Segundo Tardif, ao fim e ao cabo são “os grupos de educadores, os corpos docentes, que efetivamente asseguram esses processos educativos no quadro do sistema de formação em vigor” (1991, p. 215) A partir desta introdução, podemos destacar algumas questões-chave que têm orientado diversos estudos na área do ensino de ciências, e que, da mesma forma, orientarão a presente pesquisa. Algumas destas questões têm sua origem situada em pesquisas de áreas diversas, que discutem sobre uma perspectiva mais ampla de educação científica, que extrapola os muros das escolas. Por isso, para compreendermos o estado do ensino de ciências, e para apresentarmos propostas a ele direcionadas, precisamos inicialmente desenvolver algumas destas questões, a fim de compreender como as mesmas impactam, e são incorporadas pela área do ensino. Com isso, esperamos construir um cenário consolidado, no qual nossa proposta de pesquisa possa se fundamentar. E discutir sobre estas questões, é o que nos propomos a partir de agora. 1.1 Natureza da Ciência– argumentos para sua inclusão no ensino de ciência A Ciência como uma produção humana tem em sua origem, e essência, a intenção de proporcionar à humanidade explicações sobre fenômenos da natureza a partir da construção de modelos representativos destes fenômenos. A respeito destes modelos, existem visões filosóficas que discutem o quanto os mesmos representam a “verdade”, ou seja, discutem a relação entre as afirmações científicas e a realidade. Segundo McComas (1998) há uma corrente que considera que tais representações correspondem à realidade, ou seja, uma corrente que atribui uma visão “realista” a esses modelos (grifo meu). Outra corrente considera que as ideias e modelos produzidos pela ciência são úteis, capazes de fornecer explicações e previsões precisas, embora não correspondam à “verdade”, e atribui aos mesmos uma visão “instrumentalista” (grifo meu). Na opinião de Medeiros e Bezerra Filho, três posições representam o status da ciência em relação à realidade que tentam descrever: “realismo ingênuo” ou científico, para o qual a “a realidade existe independente de nossa cognição e que as afirmações da

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ciência são descrições fiéis de como a realidade é” (2000, p. 109); a posição “idealista”, para a qual a realidade é fruto da construção mental de cada indivíduo, portanto, impossível de ser representada e generalizada a partir de modelos; e a posição do “realismo crítico”, a qual admite a existência de uma realidade de mundo independente do nosso conhecimento sobre esta realidade, mas, por outro lado, assume “que as descrições da ciência são apenas modelos, ou construções metafóricas da mesma” (MEDEIROS & BEZERRA FILHO, 2000, p. 109). Neste trabalho nos posicionamos frente a essa discussão filosófica a respeito das representações construídas pela ciência, assumindo um compromisso com a posição realista crítica. Aqui, partiremos do pressuposto de que “a ciência foi criada, pelo menos em parte, para responder a perguntas sobre o mundo natural, e chegar tão perto da „realidade‟ (grifo do autor) quanto possível” (McCOMAS, 1998, p.66). Neste sentido, cientistas não estão produzindo apenas ideias úteis, mas suas ideias e descrições correspondem a uma determinada realidade. Nesta perspectiva, cientistas vêm produzindo e se apropriando de uma bagagem de conhecimentos específicos sobre determinadas domínios, desde tempos remotos. E este processo tem produzido o fenômeno que assistimos de superespecialização e fragmentação destes saberes em arcabouços de conteúdos e conceitos, definindo áreas especializadas de conhecimento como, por exemplo, a Astronomia, a Geologia, a Botânica, a Genética, etc. Orientados por questões diversas, pesquisadores, filiados a uma dessas áreas específicas do saber, lançam mão deste arcabouço de conteúdos a fim de produzirem e desenvolverem seus modelos explicativos do mundo a sua volta. Por

outro

lado,

outros

tantos

pesquisadores,

em

função

de

uma

“supervalorização dos domínios do conhecimento científico em relação às demais áreas do conhecimento humano” (SANTOS, 2007, p. 474), passam a questionar esta mesma produção de modelos explicativos e seu papel na sociedade. Orientados por uma série de questionamentos, se ocupam em tentar responder, por exemplo, „O que é a Ciência?‟, „Como ela opera?‟, „O que diferencia um saber científico de outros saberes?‟, „Como se constroem e evolucionam os conhecimentos científicos?‟, „ Que fatores influenciam a atividade científica?‟, „O que faz com que estes conhecimentos sejam aceitos na sociedade?‟. Estes pesquisadores vêm relacionando estes questionamentos a causas e consequências diversas. Na opinião de Silva et al, por exemplo, o interesse de

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pesquisadores por este tipo de reflexão tornou-se mais expressivos no século XX como “uma reação às consequências sociais da relação entre Ciência e Tecnologia”(2008, p. 499). Para Santos e Mortimer (2001), o interesse crescente sobre as consequências da produção da ciência e tecnologia na vida da população está relacionado, originalmente, com a produção de armas nucleares, armas químicas e ao agravamento de problemas ambientais. Para os autores, além da discussão sobre estas consequências mencionadas, deve-se discutir também sobre os aspectos éticos envolvidos na atividade dos cientistas. Santos (2007) concorda que mesmo ao tratarem a ciência do seu ponto de vista internalista, com relação às normas de funcionamento e métodos empregados, devem ser também “consideradas as condições sociais de produção e apropriação do conhecimento científico” (SANTOS, 2007, p. 475). Diante deste cenário, assistimos à consolidação de áreas de saberes que se constituem a partir de reflexões sobre a ciência, ou seja, áreas de estudos metacientíficos, tais como: História da Ciência, Filosofia da Ciência, Sociologia da Ciência, etc. Estas reflexões, notadamente, têm influenciado, em alguns aspectos, as propostas da área do Ensino de Ciências, como veremos a diante. Como resultado, encontramos diversos trabalhos criticando, ao menos desde início do século XX, uma imagem ingênua e desinformada da ciência e do cientista, que vem se construindo e disseminando de maneira acrítica, historicamente pelas sociedades. Comumente, estes trabalhos apontam para uma concepção predominante de ciência na qual, “as afirmações da ciência têm status de verdades inquestionáveis” (MEDEIROS & BEZERRA FILHO, 2000, p.109) e o cientista detentor de habilidades raras e inteligência superior. E esta mesma imagem da ciência também se reproduz no contexto escolar. Segundo Delizoicov (2006, p. 266): “a simplificação do conhecimento e a sua descontextualização histórica podem trazer consequências tanto para as concepções dos docentes sobre a natureza do conhecimento científico, como para as concepções dos alunos”. Neste sentido, Sutton (1997)aponta em seu estudo sobre a imagem da ciência produzida na escola, que esta instituição, embora não somente, tem produzido por décadas uma imagem deformada da ciência, contribuindo, desta forma, para a manutenção de uma compreensão pública inadequada a respeito dos processos de produção do conhecimento científico. Para este autor, a maior explicação para este fato constitui-se na ausência do fator humano vinculado à apresentação da ciência e de seus produtos, e nos sugere “que se debe resaltar más em las clases de ciências el fator

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humano que hay detrás de las ideas científicas más importantes y las luchas argumentativas implicadas em su estabelecimiento” (1997, p. 10). Para ele, a humanização da ciência seria imprescindível para a construção de uma imagem que se aproxime da realidade, em que aspectos como controvérsias, interesses, processos pelos quais ideias se transformam em teorias, entre outros, sejam apresentados e debatidos em sala de aula. Orientados por questões como àquelas acima descritas, pesquisadores buscam refletir sobre o conjunto de características que diferenciam esta produção, a ciência, de todas as outras produções humanas, ou seja, buscam refletir sobre a natureza da ciência. Como resultado, encontramos uma ampla literatura especializada a esse respeito, e recomendações oriundas deste debate que têm sido incorporadas pela área do ensino, principalmente por documentos nacionais e internacionais de orientações curriculares. Neste movimento, a expressão „Natureza da Ciência‟ foi cunhada com o objetivo de abarcar todos os aspectos da produção científica, considerados fundamentais para informar professores e estudantes, de forma a aproximá-los da realidade desta produção. (McCOMASet al, 1998) Diante disso, McComas, Clough e Almazroa (1998) apresentam uma definição de NdC, que traz em si mesma a justificativa para sua inclusão no ensino de ciências. Segundo os autores: A expressão "história e filosofia da ciência" (HFC) tem sido utilizada para descrever a interação de disciplinas que informam a educação científica sobre o caráter da própria ciência. No entanto, uma expressão mais abrangente para descrever o empreendimento científico para o ensino da ciência é a NdC. A natureza da ciência é uma arena fértil e híbrida que combina elementos de vários estudos sociais da ciência, incluindo a história, sociologia e filosofia da ciência combinadas com a investigação das ciências cognitivas, tal como a psicologia, em uma rica descrição do que é ciência, como ela funciona, como os cientistas operam como um grupo social e como a própria sociedade tanto dirige como reage ao empreendimento científico. (MCCOMAS; CLOUGH; ALMAZROA, 1998, p. 4)1

Assim, consideramos fundamental compreender a influência dos saberes advindos destas áreas “Humanas” (grifo meu) para a construção do conceito de natureza da ciência por educadores e alunos de ciências. A chamada “Nova Filosofia da Ciência” representada por filósofos e epistemólogos como Kuhn, Popper, Lakatos, Feyerabend, entre outros, trouxe importantes reflexões a esse respeito, que influenciam e orientam 1

Tradução da autora.

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investigações na área do ensino de ciências. (GIL-PÉREZ et al, 2002) Embora relacionadas a aspectos variados, muitas dessas investigações têm apontado para a necessidade de um ensino centrado não apenas em conteúdos especializados de ciência, ou seja, conteúdos de ciências, mas, também, e principalmente, em conteúdos sobre ciências. Estes últimos, oriundos de reflexões das áreas metacientíficas, como mencionamos, seriam conteúdos formativos, responsáveis pela “compreensão contextualizada desses saberes, inscritos na dinâmica e na complexidade da vida humana.” (FORATO, 2009, p. 29) Matthews (1995), em capítulo intitulado A Filosofia da ciência e o ensino de ciências, nos fornece evidências a favor da inclusão de algum conhecimento sobre filosofia da ciência no ensino de ciências. Para tanto, analisou, entre outros documentos, metas curriculares definidas pela Comissão para Políticas Educacionais Americana, apresentadas, em 1966, pelo relatório intitulado O espírito da ciência. O autor pode constatar nestes documentos a prevalência de uma visão da produção científica que já havia sido desqualificada pela nova filosofia da ciência, como expressos pela seguinte passagem: a falta de consciência de que a observação depende da teoria, e suas implicações, ilustram bem a lamentável separação que há entre os filósofos da ciência, os professores de ciências e os organismos consultivos do governo.(...) Naquela época, o indutivismo já havia sido completamente superado na filosofia da ciência: os Padrões da descoberta científica de Hanson tinham aparecido em 1958, a Lógica da descoberta científica de Popper tinha sido traduzida em 1959, a Previsão e compreensão de Toulmin aparecera em 1961, a Estrutura das revoluções científicas de Kuhn, em 1962. Havia abundância de material acessível, para não falar do material disponível do outro lado do Atlântico (Bachelard), além de material antigo (Collingwood, Fleck) que poderiam ter sido usados para melhor embasar as deliberações de um organismo americano de tão elevada ordem, prestes a lançar um relatório importantíssimo sobre o ensino de ciências. Ao invés disso, todo esse material foi ignorado e slogans dúbios foram criados sem qualquer sugestão de que fossem discutíveis, e muito menos de que provavelmente fossem falsos.(MATTHEWS, 1995, p. 186)2

A preocupação crescente por uma educação científica que prepare o cidadão para lidar com a produção científica de forma crítica e informada, é, portanto, resultado de reflexões, a partir de diferentes olhares, sobre o papel e o impacto da ciência na sociedade. Nesta discussão, a concepção de ciência, de educação científica e, consequentemente, de ensino de ciências, vêm sendo relacionada por diversos estudos ao contexto histórico, e a pressupostos ideológicos e filosóficos. Como exemplo, 2

Tradução da autora.

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podemos citar uma tendência do ensino de ciências que marcou a década de 1960, e influenciou de forma determinante as orientações curriculares. Em tempos de “guerra fria” (grifo meu), para garantir a hegemonia norte-americana, as recomendações atribuíam ênfase aos conteúdos de ciências e a metodologia empregada no método científico. O objetivo era incentivar e desenvolver nos jovens, o talento e interesse pelas carreiras científicas. Nesta perspectiva, a Ciência era concebida como uma atividade neutra. (SANTOS,2007; KRASILCHIK,2000) Ao longo das últimas décadas, esta tendência acima descrita foi dando lugar a outras propostas educacionais relacionadas ao ensino de ciências, em função de transformações políticas, econômicas e sociais. Assim, vimos uma demanda crescente por um ensino de ciências que abarque uma análise crítica sobre, por exemplo, implicações sociais da ciência e da tecnologia, a influência do contexto histórico, social e político exercido sobre a construção do fato científico, etc. Diante disso, “alguns autores passaram a defender a compreensão da natureza da atividade científica como aspecto central no ensino de ciências” (SANTOS, 2007, p. 478). Muitos argumentos têm sido apresentados como justificativas para a inclusão da NdC no ensino de ciências. A partir de estudos que se ocuparam em refletir, entre outras questões, sobre as referências que dizem respeito à NdC encontradas tanto na literatura especializada como em documentos oficiais de orientações curriculares, notamos que não existe um consenso em relação a tais argumentos. De qualquer forma, até mesmo em função da recorrência deste assunto em diversos trabalhos, torna-se possível destacarmos alguns dos argumentos mais apresentados (ADÚRIZ-BRAVO & IZQUIERDO-AYMERICH, 2009; DRIVER et al, 1996; EL-HANI, 2006; FORATO, 2009; LEDERMAN, 2007; McCOMAS& OLSON, 1998; MEDEIROS & BEZERRA FILHO, 2000; SÃO TIAGO, 2011): (1) Compreender a NdC possibilitaria gerenciar produtos e processos tecnológicos na vida moderna e cotidiana; desperta o pensamento criativo para a interpretação de dados e promoção de evidências para testar idéias e desenvolver teorias. (2) Compreender a NdC é parte fundamental de uma educação para cidadania, pois prepara cidadãos para tomarem decisões informadas sobre questões sócio científicas.

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(3) Compreender a NdC desenvolve autonomia intelectual e pensamento crítico. (4) Compreender a NdC é necessário para apreciar o valor da ciência como parte da cultura humana. (5) Compreender a NdC possibilita um entendimento sobre regras e normas assumidas pela comunidade científica. Estas normas fornecem prescrições de ordem ética, as quais são de interesse geral para a sociedade, e cujo valor se estenderia para além da prática da ciência. (6) Compreender a NdC facilita a aprendizagem de assuntos científicos. Podemos, ainda, citar alguns exemplos de como tais argumentos têm se incorporado a documentos que orientam e definem currículos escolares. Embora saibamos da existência de alguns documentos desta natureza, inclusive internacionais3, vamos nos referir aqui a dois documentos nacionais. Nossa escolha se deve pelo fato de entendermos que, uma vez que os argumentos anteriormente apresentados resultaram da compilação realizada por diferentes pesquisadores, a partir de documentos diversos, os documentos aqui referidos podem representar a forma como a NdC tem sido abordada, de maneira geral. Assim sendo, de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e com um documento de orientação curricular da Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro: Elementos da história e da filosofia da Biologia tornam possível aos alunos a compreensão de que há uma ampla rede de relações entre a produção científica e o contexto social, econômico e político. É possível verificar que a formulação, o sucesso ou o fracasso das diferentes teorias científicas estão associados a seu momento histórico. (BRASIL, 1999, p.219). Espera-se que o ensino de Física, na escola média, contribua para a formação de uma cultura científica efetiva, que permita ao indivíduo a interpretação dos fatos, fenômenos e processos naturais, situando e dimensionando a interação do ser humano com a natureza como parte da própria natureza em transformação. Para tanto, é essencial que o conhecimento físico seja explicitado como um processo histórico, objeto de contínua transformação e associado às outras formas de expressão e produção humanas (BRASIL, 1999, p.229). Tão importante quanto conhecer os princípios fundamentais da Física é saber como chegamos a eles, e porque acreditamos neles. Não basta ter conhecimento científico sobre a natureza; também e necessário entender como a ciência funciona, pois só assim as características e limites deste saber podem ser avaliados. O estudo da Física coloca os alunos da escola média frente a situações concretas que podem ajudá-los a compreender a natureza da ciência e do conhecimento científico. Em particular, eles têm a 3

Ver, por exemplo, São Tiago (2011). O autor dedicou um capítulo para analise sobre a inclusão da NdC em documentos de orientações curriculares internacionais.

25 oportunidade de verificar como é fundamental para a aceitação de uma teoria científica que esta seja consistente com evidências experimentais. Isso lhes permitirá distinguir melhor entre ciência e pseudociência, e fazer sua própria avaliação sobre temas como astrologia e criacionismo. Eles poderão também reconhecer as limitações inerentes a investigação científica, percebendo que existem questões fundamentais que não são colocadas nem respondidas pela Ciência. (AGUIAR, GAMA e COSTA, 2006)

Embora seja evidente a importância atribuída, por estes documentos, a aspectos sobre a NdC, El-Hani (2006) sinaliza que este fato por si só não garante que uma abordagem explícita sobre esses elementos esteja ocorrendo em sala de aula. Para que isso ocorra de fato, professores precisam estar convencidos quanto à importância deste tipo de abordagem e, ainda, preparados para explorá-las nos contextos de aprendizagem. Cabe colocar, que algumas das justificativas apresentadas a cerca dos motivos para incluir a NdC no ensino de ciências têm sido questionadas em pesquisas recentes como, por exemplo, a justificativa da compreensão sobre a NdC como parte importante de uma educação para a cidadania, preparando cidadãos para tomada de decisões sobre questões sócio científicas. Este é um tema que tem suscitado debate entre pesquisadores, não se constituindo, assim, em consenso. Como exemplo, Acevedo et al (2005), consideram como mito o argumento de tomada de decisão informada e participação em debates tecno-científicos de interesses sociais. Para os autores, este processo de tomada de decisão envolve outros aspectos que não só os relacionados ao nível de conhecimento científico. Deve-se também considerar “aspectos culturais, sociais, morais e emotivos” (p. 6) de sujeitos em situações que requer tomada de decisões. Segundo estes pesquisadores, este pressuposto encontra-se ancorado por investigações frágeis e inconsistentes. Já na opinião de Praia, Gil-Pérez e Vilches (2007), para se relacionar com/no mundo contemporâneo, permeado por produtos da ciência e da tecnologia, um ensino de ciências que incorpore a NdC torna-se “imperativo estratégico” (p. 142). Para atender às necessidades fundamentais da sua população, deve-se “difundir a alfabetização científica em todas as culturas e em todos os setores da sociedade, (...) a fim de melhorar a participação dos cidadãos na adoção de decisões relativas à aplicação de novos conhecimentos.” (DECLARAÇÃO DE BUDAPESTE apud PRAIA, GIL-PÉREZ E VILCHES, 2007) Além das controvérsias a respeito de alguns argumentos, consideramos menos convincentes justificativas que denotam uma visão utilitarista da NdC, a partir da qual seria possível gerenciar os objetos e processos tecnológicos na vida cotidiana, a partir da

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aquisição de conhecimentos científicos. Consideramos que esta é uma prerrogativa que enfraquece uma de nossas principais premissas, segundo a qual, para se atribuir sentido à ciência e a seus produtos no mundo contemporâneo, fazem-se necessário agregar aos conhecimentos científicos específicos, conhecimentos sobre a ciência. Desta forma, optamos por conferir maior relevância, na presente pesquisa, ao argumento que atribuía necessidade de inclusão da NdC no ensino de ciências, a dimensão de valor cultural. O conhecimento científico é visto aqui como produto da cultura humana, assim como a religião, as artes, os mitos, representam o esforço empreendido pela humanidade para compreender o mundo a sua volta, e a si mesmo. Na opinião de Matthews:“A ciência é uma das maiores conquistas da cultura humana” (1995, p. 197).Consideramos todos os argumentos relevantes, pois compreendemos que os mesmos representam o esforço empreendido por pesquisadores no sentido de: Apresentar a ciência como uma construção humana, histórica e social, desvelar seus métodos e modos de organização, suas relações com a tecnologia, seu poder e seus limites. Com isso, evita-se a propagação de visões mitificadas de uma ciência feita exclusivamente por gênios, infalível, que cresce através de um acúmulo linear de in formações e que é construída a partir da aplicação de um método algoritmo, único e universal. (SÃO TIAGO, 2011, p. 21)

Mas também entendemos que, em função das controvérsias, devem ser realizadas mais pesquisas no sentido de produzir evidências empíricas capazes de fundamentar tais argumentos, para além da intuição (LEDERMAN, 2007). Por isso, neste trabalho queremos ressaltar o valor da ciência como uma herança cultural que deve ser transmitida às presentes e futuras gerações. Levá-los a compreender que como uma atividade humana, a ciência compartilha das possibilidades e limitações daqueles que a produzem. Argumento compartilhado também por São Tiago, o qual considera que: “Apesar de todas as suas limitações, a ciência produziu e produz resultados verdadeiramente extraordinários e úteis. É o que de melhor o homem inventou para conhecer o mundo em que vivemos” (2011, p. 114). A este argumento de herança cultural, que consideramos um aspecto mais amplo da relevância desta pesquisa, pois envolve também uma compreensão sobre o próprio conceito de cultura4 e seu papel nas sociedades, agregamos outros, de caráter mais

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Nesta pesquisa concebemos cultura como a criação de uma ordem simbólica que surge tanto para representar quanto para interpretar a realidade. (CHAUÍ, 1997) Nesta tônica, a ciência deveria ser

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prático. A partir da emergência de “reflexão sobre a produção da ciência, sobre os seus fundamentos e métodos, seus limites de validade, sobre o seu crescimento, sobre a história dos seus contextos de „descoberta‟ (grifo do autor)...” (Praia, Cachapuz e GilPérez, 2002) consideram como consequência desta exigência cultural, a possibilidade de desenvolver autonomia intelectual e pensamento crítico. Portanto, esta é outra justificativa para a inclusão de elementos da NdC no ensino que privilegiamos nesta pesquisa. Neste sentido, concordamos que: A ciência não pode ser ensinada como um dogma inquestionável. Um ensino da ciência que não ensine a pensar, a refletir, a criticar, que substitua a busca de explicações convincentes pela fé na palavra do mestre, pode ser tudo menos um verdadeiro ensino da ciência. É antes de mais nada um ensino de obediência cega incorporado numa cultura repressiva. (MEDEIROS & BEZERRA FILHO, 2000, p.)

Entendemos que o desenvolvimento do pensamento autônomo e crítico estão intimamente relacionados com a inserção dos cidadãos na cultura científica fato que, em última análise, tornam os mesmos aptos a fazerem escolhas, a partir de uma visão própria de mundo. Nesta mesma tônica, São Tiago (2011) traz, em sua dissertação de mestrado defendida recentemente, uma citação que, para a presente pesquisa, consideramos representativa em relação ao papel do ensino de ciências na perspectiva de uma educação científica que desenvolva nos cidadãos uma postura crítica frente às questões colocadas pela ciência, no mundo. O que podemos constatar na passagem a seguir: Para se proteger contra os riscos da produção e do consumo, é preciso que o cidadão se identifique com a cultura científica. Essa identidade não é gratuita e precisa de formação continuada a partir da aquisição das primeiras letras, sendo dependente de aspectos contextuais e estruturais do ambiente onde está se desenvolvendo. A característica da universalidade da ciência a torna um dos grandes elementos globalizadores, e compreendê-la é essencial para que o ser humano assuma seu papel de ator e não de mero espectador dos eventos globais.(SÃO TIAGO, 2011, p.29 apud BARROS & FILIPECKI, 2010)

1.2 A natureza da ciência na concepção de professores de ciências Como vimos diversas pesquisas têm se ocupado em discutir sobre qual concepção de ciência deve orientar uma educação científica adequada. Como resultado deste debate, uma ampla literatura especializada vem apresentando recomendações voltadas para o ensino de ciências, segundo as quais é fundamental incluir elementos da

ensinada como uma parte importante da cultura, uma vez que desenvolve uma poderosa estrutura de idéias para uma compreensão dos fenômenos naturais. (DRIVER et al, 2006)

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NdC nos currículos escolares, como mencionamos. Geralmente, essas recomendações concebem a ciência “como uma construção humana, parcial e falível, contestável, uma construção cultural” (FORATO, 2009, p.1). Em contrapartida, algumas pesquisas têm apontado que nos contextos educacionais ainda prevalecem, permeando as práticas educativas, visões deformadas da ciência e do cientista, que continuam a propagar uma concepção de construção do conhecimento científico, pautadas por uma imagem de ciência: puramente empíricoindutivista, ateórica,

infalível, analítica, acumulativa, de crescimento

linear,

individualista, elitista, descontextualizada e socialmente neutra. A ciência é normalmente concebida como fruto da atividade de gênios, que descobrem verdades inquestionáveis, através de um método infalível, como já apresentamos. Tais práticas têm conferido maior relevância para conteúdos especializados de ciências, e nenhuma para conteúdos sobre ciências. Para estes pesquisadores, essa imagem deformada da produção científica representa um descompasso frente às recomendações enunciadas pela literatura e por documentos oficiais, como fundamentais para a formação de professores e alunos, em direção a uma imagem informada sobre a NdC (ABD-EL KHALICK e LEDERMAN, 2000; ALLCHIN, 2004; ARDURIZ-BRAVO e IZQUIERDO-AYMERICH,2009; FORATO, 2011; GIL-PÉREZ et al, 2001; HARRES, 1999; LEDERMAN, 2007; MATTHEWS, 1992; MCCOMAS et al.,1998; MEDEIROS e BEZERRA-FILHO, 2000; SÃO TIAGO, 2011). Tomaremos como base a pesquisa de Gil-Pérez et al(2001), que se ocupou em investigar sobre as imagens de professores a respeito do trabalho científico. Nossa intenção, a partir do estudo mencionado, é expor o conjunto de ideias imputado inadequado sobre a forma como se constroem e desenvolvem os conhecimentos da ciência. Cabe colocar que uma das estratégias sobre a qual a investigação mencionada se desenvolveu permitiu a evidenciação, por parte dos próprios professores analisados, a respeito de suas imagens, quando postos em “situação de investigação” (GIL-PÉREZ, et al, 2001, p. 128). Outra metodologia utilizada para identificar essas visões inadequadas de professores sobre diferentes aspectos da ciência foi recorrer à análise bibliográfica, na qual foram estudados dezenas de artigos publicados entre 1984 e 1998, relacionados com educação científica e didática das ciências. Desta forma, como resultado, apresentamos, em linhas gerais, um relato sobre as imagens consideradas inadequadas mais destacadas pela pesquisa:

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(1) Visão Empírico-indutivista e ateórica: concebe a ciência como uma atividade neutra; ignora a importância das hipóteses e teorias prévias na orientação do processo de construção dos conhecimentos científicos; propaga a imagem ingênua da ciência baseada unicamente em experimentação. (2) Visão Rígida: ciência concebida como uma atividade exata, infalível, onde a confiabilidade dos resultados reside numa sequencia de etapas definidas, o método científico, seguro e inquestionável. (3) Visão aproblemática e ahistórica: ignoram a existência de problemas que originam os conhecimentos científicos, os mesmos são apresentados prontos, elaborados, desconsiderando sua evolução, limitações e perspectivas. (4) Visão exclusivamente analítica: desconsidera a contribuição de diferentes campos do saber para a construção do conhecimento científico, este normalmente é apresentado de forma limitada, simplificado. (5) Visão acumulativa, de crescimento linear: os conhecimentos científicos se desenvolvem de forma linear, por acumulação. Crises e remodelações são ignoradas. (6) Visão individualista e elitista: ciência concebida como atividade exclusiva de uma minoria especialmente dotada de capacidade e habilidade para exercêla; ignora-se o caráter coletivo e cooperativo das produções científicas. Seus resultados são unicamente operativos. (7) Visão socialmente neutra: ignoram a complexidade das relações entre ciência, tecnologia e meio social; as escolhas dos cientistas não são submetidas a princípios éticos. (GIL-PÉREZ, 2001) Essas visões inadequadas acima descritas, são também constatadas por outros pesquisadores, como mencionamos. Em reflexão a cerca de como surgem os conhecimentos científicos e como os mesmos são validados pela comunidade científica, Medeiros e Bezerra Filho (2000) apontam para a prevalência das posturas denominadas empirista e verificacionista, respectivamente. No tocante a como surgem os conhecimentos, a posição empirista afirma que os mesmos surgem a partir de observações neutras. Em relação à verificação, a mesma ocorre a partir de experimentos

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cujo método principal é baseado na indução. Na opinião dos autores, a junção dessas duas posturas, empirista e verificacionista, determinam uma visão indutivista ingênua da atividade científica, na qual o cientista, a partir de rigoroso controle dos experimentos, assume a função de comprovar as teorias científicas. Alguns autores atribuem a esse descompasso entre as referidas recomendações curriculares e as concepções estereotipadas em sala de aula, algumas causas prováveis, as quais: (1) a falta de elementos claros sobre natureza da ciência nos cursos de formação de professores que os possibilite, inclusive, problematizarem a segunda causa que agora apresentaremos; (2) “carência de materiais instrucionais apropriados para a promoção de concepções mais adequadas” (EL-HANI et al, 2009, p. 531); existência de versões distorcidas da história da ciência presente em livros e materiais didáticos diversos (FORATO, 2009; SÃO TIAGO, 2011). Antes de nos referirmos à primeira causa provável que acabamos de apresentar, será preciso nos remeter a outro assunto, de natureza epistemológica diversa da relacionada aos conhecimentos científicos. Este assunto diz respeito à “produção do saber escolar” (grifo meu). Este é um tema complexo, que envolve instâncias extra e intra-escolares, pois passa necessariamente por uma análise que envolve variáveis como políticas públicas, currículos, seleção de conteúdos, metodologias de ensino, materiais didáticos, etc, cuja análise foge completamente ao escopo deste trabalho. Apenas com a intenção de situar nossa questão de pesquisa em um debate mais amplo, cabe colocar que diferentes estudos na área da Didática da Ciência têm apontado para algumas teorias que buscam compreender este processo de adequação do saber especializado para o contexto escolar. Dentre essas teorias, podemos destacar, por exemplo, as teorias das concepções alternativas 5 e a da transposição didática 6. Esta discussão se pauta, inclusive, em torno do debate sobre a função social desses saberes quando transformados nos contextos educacionais, e comumente se referem que aos mesmos somente são atribuídos significados quando inscritos no contexto sociocultural da comunidade escolar. (FERREIRA et al, 2003; TARDIF, 1991; FERREIRA, 2003). Colaborando com essa premissa, Tardif et al nos dizem que: 5 6

Ver, por exemplo: Forato, 2009; Marandino, 2004. IDEM

SELLES &

31 A atividade docente não se exerce sobre um objeto, sobre um fenômeno a ser conhecido, ou uma obra a ser produzida. Ela se desdobra concretamente numa rede de interações com outras pessoas, num contexto onde o elemento humano é determinante e dominante, e onde intervêm símbolos, valores, sentimentos, atitudes, que constituem matéria de interpretação e decisão, indexadas, na maior parte do tempo, a uma certa urgência.” (1991, p. 228)

Em função da dimensão e complexidade conferida a esta questão da produção de saberes escolares, na qual os professores atuam diretamente, vamos atribuir maior relevância a um aspecto que também tem sido amplamente debatido pela área do ensino de ciências. Este aspecto diz respeito à influência das concepções de ciência dos professores sobre a construção da concepção dos alunos. Embora este seja um assunto que também não se constitui em consenso, encontramos pontos de concordância em um grande número de trabalhos (ABD-El KHALICK & LEDERMAN, 2000; BEZERRA FILHO & MEDEIROS, 2000; FORATO, 2009; GIL-PÉREZ et al, 2001; LEDERMAN, 2007; MATTHEWS,1995;McCOMASet al, 1998; SÃO TIAGO, 2011; SCHNETZLER & ARAGÃO, 2000;ZIMMERMANN, 2000). Desta forma, entendemos que as premissas expostas a seguir são suficientes para justificar a relevância da proposta de pesquisa que apresentaremos adiante, quais sejam: (1) Em certa medida, as representações de NdC dos professores serão levadas para sala de aula e, além de influenciarem a construção das concepções dos alunos, também irão determinar a escolha feita pelos professores a respeito de metodologias e abordagens para ensinar ciência. (2) Quanto maior for à familiaridade de professores com reflexões sobre história e filosofia da ciência, maior será sua capacidade crítica em relação às visões deformadas sobre a ciência, que perpetuam dentro e fora do contexto educacional. Este grau de familiaridade está intimamente relacionado com a relação que aqueles tiverem e/ou têm com essas disciplinas metacientíficas durante sua formação. Isto quer dizer que, neste trabalho, atribuímos grande importância aos processos de formação dos professores, pois, parece-nos razoável admitir que o tipo de abordagem a respeito da NdC em sala de aula, será fruto das próprias concepções daquele que leciona. Agora, em que medida tais representações de professores sobre a NdC serão transformadas em discursos e ações concretas em sala de aula, é uma questão que tem se convertido em uma poderosa linha de investigação, com a finalidade de fundamentar

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ações futuras a partir evidências empíricas mais consistentes.(MEDEIROS & BEZERRA FILHO, 2000). Defendendo uma mudança na concepção epistemológica de professores de ciência como determinante para se evitar a propagação de concepções inadequadas, GilPérez et al concordam que: Torna-se necessário criar espaços e tempos em que o professor deve contatar com as principais concepções de ciência, refletir nelas, discuti-las, confrontálas, aprofundando as suas próprias concepções e daí retirando indicações, orientações e ensinamentos quanto às estratégias, métodos e procedimentos a adotar no seu trabalho docente. (2002, p.129)

Diante disso, podemos retornar àquelas questões anteriormente apresentadas como causas prováveis do descompasso existentes entre orientações curriculares e representações da ciência predominantes em sala de aula. Uma vez que assumimos as premissas expostas acima, torna-se legítimo defender a necessidade de inclusão, nos cursos de formação de professores, de reflexões trazidas pela moderna filosofia da ciência, como mencionamos anteriormente. Acreditamos que este trabalho de reflexão crítica sobre a produção científica poderá enfocá-la fora dos padrões tradicionais do indutivismo ingênuo, permitindo um afastamento das visões deformadas recorrentes no ensino e, consequentemente, possibilitar a aquisição de uma visão adequada sobre o trabalho da ciência e do cientista, expressa em diversas teses de filósofos e epistemólogos responsáveis pela redefinição da ciência na contemporaneidade. Com certo embasamento em relação às questões postas por estas reflexões, advindas principalmente da história e da filosofia da ciência, sobre o conhecimento científico, professores podem vir a desenvolver em sala de aula metodologias que estejam mais de acordo com esta visão de NdC, considerada adequada para o ensino de ciências. Estarão mais aptos, inclusive, a problematizar as distorções históricas sobre a NdC, recorrentes no ambiente escolar principalmente através dos livros didáticos. Desta forma, acreditamos que: o conjunto de conhecimentos produzidos por diferentes disciplinas (filosofia, história, sociologia e psicologia da ciência), tem a finalidade de contribuir para que os educadores em ciências possam oferecer aos seus alunos uma caracterização mais clara e precisa da atividade científica ( SÃO TIAGO, 2011, p. 18).

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Em pesquisa cuja proposta foi revisar e avaliar a “eficácia” (grifo do autor) das tentativas empreendidas para melhorar as concepções de NdC de professores de ciências, a partir de ampla revisão de literatura, Abd-El-Khalick e Lederman (2000) observam que “uma diversidade de propostas metodológicas para a instrução sobre a natureza da ciência foi desenvolvida e testada em diferentes contextos” (EL-HANIet al, 2009, p. 532). A partir desta constatação, estabelecem dois grupos de categorização para tais investidas. O primeiro, eles caracterizam como propostas segundo uma abordagem “implícita” (grifo do autor) da NdC. Neste caso, a ênfase reside em e instruir sobre habilidades necessárias para a prática científica, a partir da apresentação do método científico como fundamental para o engajamento em atividades investigativas. O segundo, eles caracterizam como propostas que enfatizam uma abordagem “explícita” (grifo do autor) da NdC. Neste tipo de investida, a proposta reside em apresentar conteúdos de ciências relacionando-os a conteúdos epistemológicos e a elementos da história e filosofia da ciência. A partir desta revisão, os autores concluem que esta última proposta obteve resultados mais satisfatórios em relação a melhorias nas concepções de professores sobre a NdC. Eles ainda apontam que propostas com este objetivo deve apresentar caráter explícito e reflexivo, tendo em vista oferecerem aos professores a oportunidade de refletirem sobre suas próprias experiências (EL-HANI et al, 2009, p. 689). Neste mesmo estudo, Abd-El- Khalick& Lederman (2000) apontam para alterações na concepção de NdC na área do ensino de ciências no século XX, fundamentadas, principalmente, por trabalhos no campo da filosofia da ciência, informadas de forma mais expressiva pelas teses de Kuhn (1975). Considerado um marco na construção da imagem contemporânea de ciência, em A estrutura das revoluções científicas, Kuhn procurou demonstrar que o desenvolvimento de uma ciência dá-se tanto por fatores internos à própria ciência quanto por fatores externos, ou extras científicos. Ao propor uma nova visão da ciência, Kuhn supera o modelo baseado no positivismo lógico, em que a produção do conhecimento científico se inicia com observações neutras, se dá por indução, é cumulativo, linear e definitivo (OSTERMANN, 1996). Ao contrário, Kuhn encara a observação como antecedida por teorias, portanto não neutra, acredita que não há justificativa lógica para o “método indutivo” e reconhece o caráter “construtivo, inventivo e não definitivo do conhecimento” (OSTERMANN, 1996, p. 184). E, principalmente, a ciência é vista

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como uma produção do seu tempo, o que se opõe a um caráter atemporal e ahistórico comumente disseminado. De acordo com a pesquisa citada, podemos resumir as mudanças na compreensão dos educadores ao longo do século XX, em linhas gerais, da seguinte forma: (1) Antes da década de 70, a concepção predominante da NdC era estreitamente vinculada à compreensão do método científico, como um “passo-a-passo” (grifo meu), visto como infalível e universal. Os cientistas, únicos capazes de realizá-lo, são vistos como verdadeiros “gênios”, seres “iluminados” (grifo meu) que praticam uma ciência desinteressada, ou seja, uma ciência neutra. (2) Após a década de 70, o conhecimento científico começa a ser compreendido como provisório, histórico, temporal, como uma produção humana; observações passam a ser vistas como carregadas de teoria; já é possível observar uma compreensão sobre a necessidade de considerar a interação entre crenças pessoais, sociais e culturais na produção científica. Esta pesquisa que acabamos de mencionar é apenas um exemplo entre tantos outros que poderíamos destacar, de estudos que têm se ocupado em refletir sobre as concepções de ciência produzidas e reproduzidas na sociedade. Mas nossa escolha se justifica a partir de três argumentos principais: (1) O fato de considerarmos a pesquisa suficiente para representar, em linhas gerais, as transformações que vêm ocorrendo, a partir da confluência de vários saberes, nestas concepções, principalmente no que se refere ao ensino de ciências. (2) Possibilitar-nos assumir um compromisso claro com tais transformações. (3) O fato de a pesquisa reforçar umas das premissas deste trabalho. Esta premissa diz respeito à importância de se incluir na formação de professores aspectos que os levem a refletir sobre a produção científica de forma a ultrapassar os padrões tradicionais do indutivismo e do realismo ingênuo. Esses aspectos, normalmente ausentes na formação de professores, segundo

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apontam diversas pesquisas, Abd-El- Khalick& Lederman (2000); Bezerra Filho e Medeiros(2000); Forato(2009); Gil-Pérez et al(2001); Harres(2011); Martins(2005);McComas, Clough e Almazroa (1998); São Tiago (2011); Silva et al (2008) são informados, principalmente, pelas ciências humanas.

Tendo em vista procurar compreender os diferentes aspectos relacionados à construção de imagens a respeito da atividade científica, entre professores e alunos, constatamos duas linhas de investigação proeminentes. Estes aspectos dizem respeito tanto a prováveis causas como a possíveis consequências da construção de imagens inadequadas da ciência. A partir de nossa revisão nesta área, observamos grande incidência de trabalhos que, preocupados em promover concepções mais adequadas, se ocupam, principalmente em: (1)discutir sobre a importância da inclusão das disciplinas de História e Filosofia das Ciências, nos processos de formação de professores. Pois creditam a essa ausência, principalmente, a existência de visões distorcidas no contexto escolar; e /ou (2) apresentar uma prática metodológica para inclusão da história e filosofia da ciência nos contextos escolares. Elegemos a primeira como uma das linhas de investigação na qual a presente pesquisa se insere. Pois partimos da premissa de que os cursos de formação inicial reduziram-se basicamente à apresentação de conhecimentos já elaborados, sem dar aos estudantes, futuros professores, a oportunidade de se aproximarem das atividades características do trabalho científico, sua natureza e, principalmente, dos diversos fatores que influenciam tais atividades assim como seus produtos (ARROYO, 1988; BIZZO, 1992; CARNEIRO e GASTAL, 2005; CARVALHO e VIANNA, 2007; FORATO, 2009; GATTI et al, 2004; HARRES, 2011; HULSENDEGER, 2007; SÃO TIAGO,

2011;

SILVA,

2006;

SILVA

et

al,

2008;

SILVEIRA,

1992;

ZIMMERMANN, 2000). Embora nossa proposta de investigação não seja direcionada à educação básica, acreditamos que a mesma poderá auxiliar professores a desenvolverem metodologias mais apropriadas em sala de aula, fato que, de certo modo, nos inclui também na segunda linha de investigação apresentada. Sobre nossa proposta de pesquisa, discutiremos na seção a seguir. Neste trabalho, partimos do pressuposto segundo o qual a formação tem peso considerável no processo de inserção de um sujeito em um determinado campo do

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conhecimento. Desta forma, o pensar e o agir dos professores estão ligados, embora não só, a aspectos da própria formação acadêmica. Conforme Delizoicov, “pode-se supor que uma das origens das concepções dos professores quanto à natureza do conhecimento científico pode advir de uma aproximação descontextualizada historicamente com o conhecimento sistematizado, durante o processo de formação inicial” (2006, p. 266). Em pesquisa, cujo objetivo foi compreender de que forma as noções de ensino, aprendizagem e natureza da ciência, de professores, se convertem em atividades e discursos em sala de aula, Zimmermann (2000) conclui, entre outras afirmativas, que a maioria dos professores estudada no referido trabalhado, não obtiveram em seus cursos de formação, conhecimento de pano de fundo para lecionar ciências. Isto surge da constatação de que alguns professores apresentaram incoerências entre seus modelos de ciências e de pedagogia. A autora considera como conhecimento de pano de fundo, o estudo formal de História, Sociologia e Filosofia da Ciência, segundo o qual os futuros professores serão capazes de relacionar a ciência com outros campos do conhecimento. Desta forma, Zimmermann aponta que: “Esses cursos parecem ter sido superficiais e irrelevantes, com pouca ou nenhuma consequência intelectual” (2010, p. 164). Outra consideração apontada pela pesquisa mencionada é a de que um estudo que privilegie uma abordagem histórica, filosófica e sociológica da ciência seria capaz de “fazer com que futuros professores fiquem criticamente conscientes da natureza da ciência (...)” (2000, p. 166). Desta forma, conclui Zimmermann, professores poderiam vir a adotar modelos pedagógicos mais coerentes em sala de aula. Jimenez (1994)aponta para a necessidade de haver coerência entre a forma como se produz os saberes científicos e como os mesmos são reconstruídos nos contextos escolares. O autor vai além e destaca que reflexões sobre História e Filosofia da Ciência que, para o autor, possibilita uma autoanálise de concepções epistemológicas e, consequentemente, uma mudança na concepção de construção do conhecimento científico, estão ausentes não somente nos cursos de formação de professores, mas também nos cursos de formação de carreiras científicas. Baseado em resultados de estudos empíricos de investigação em educação em ciências, que apontam para implicações das concepções de ciências dos professores sobre o modo como ensinam, Praia et al nos diz que se torna necessária a criação de

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espaços/tempos voltados à pesquisa, nos quais o professor terá contato com as principais concepções de ciência para, então, “refletir sobre elas, discuti-las, confrontálas, aprofundando as suas próprias concepções e daí retirando indicações, orientações e ensinamentos quanto às estratégias, métodos e procedimentos a adotar (2002, p.129). Ainda no âmbito da formação de professores, Carvalho e Vianna (2007), no intuito de compreender a dinâmica entre os diferentes saberes envolvidos no processo de ensinar ciências, concordam que a concepção de professores a respeito do trabalho científico será determinante para a construção desta concepção por parte dos alunos. Nesta perspectiva, apontam para a importância de episódios de pesquisa orientados na formação de professores, como importante estratégia para a formação de uma concepção informada sobre a natureza do trabalho científico. A relevância do referido trabalho justifica-se, como mencionado, na crença de que há um relacionamento significante entre concepções de ciência de alunos e de professores, uma vez que “os alunos poderão moldar as suas representações sobre natureza da ciência de acordo com seus professores” (CARVALHO & VIANNA, 2007, p. 4). Observando mudanças no discurso de professores de ciência/biologia frente à noção de ciência e a prática docente, após curso de formação continuada, organizado pela Fundação Oswaldo Cruz, Carvalho e Vianna consideram como determinante o fato do curso ter proporcionado aos cursistas episódios de pesquisa que os levaram a refletir criticamente sobre: fatores tidos como não oficiais, ou seja, não reconhecidos pela comunidade científica, como: a influência do meio social, as comunicações informais, os fatores históricos diversos, as descobertas ocasionais, (...) os conflitos existentes, tanto de ordem econômica (as vultosas somas utilizadas nas pesquisas), como de ordem trabalhista, assim como os de ordem pessoal e humana. (...) disputa entre laboratórios e pesquisadores. (...) Enfatizam a relevância de a atividade científica ser vista como um trabalho coletivo e não individual.(2007, p. 9)

1.3 Objetivos Neste cenário exposto, muitos trabalhos têm se dedicado a apresentar possibilidades para a inclusão da história da ciência no ensino de ciência, como já mencionado. Aqui, optamos por refletir sobre trabalhos que apontam para a possibilidade de se explorar outras potencialidades dos recursos audiovisuais, principalmente como fonte histórica, por serem pouco utilizados com esse objetivo. Assim sendo, nossa intenção será refletir sobre as possibilidades de utilização de filmes antigos, de arquivo, como fontes para a discussão/aprendizagem sobre a natureza

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e a história da ciência na formação de professores, utilizando para este fim o filme Combate à lepra no Brasil. Do gênero documentário de curta metragem, produzido em 1945 pelo INCE (Instituto Nacional de Cinema Educativo), tem como tema central o isolamento dos doentes em instituições asilares denominadas leprosários, amplamente apresentadas e divulgadas pelo filme. Nosso filme-objeto situa problemas científicos tratados em sua época de produção, aspecto que se mostra mais relevante no âmbito desta pesquisa porque considera os filmes, principalmente os produzidos há várias décadas, como fontes importantes para a compreensão da História da Ciência em uma diversidade maior de sentidos. Filmes antigos situam os problemas e conceitos científicos em suas respectivas épocas e podem, por isso, ser considerados, em certa medida, fontes de determinadas visões ou estágios do desenvolvimento/entendimento da ciência em diferentes épocas (REZENDE, 2011). Outra premissa da qual compartilhamos, e que se constitui em justificativa para nossa escolha, é a de que a ciência apresentada nos filmes também é vítima da mesma simplificação ingênua outrora apresentada. Como já explicitamos, esta concepção desinformada sobre a natureza da ciência vem sendo propagada historicamente por diversas instâncias de produção de conhecimento e de informação. Por isso, um olhar crítico sobre a ciência apresentada nesses filmes, poderia representar um caminho para a compreensão de aspectos relacionados à NdC. Para que esta discussão/reflexão sobre aspectos inerentes a NdC, subsidiadas por episódios históricos, ocorra de forma coerente e fundamentada, acreditamos que inicialmente será importante assumirmos um posicionamento claro em relação a: (1) que concepção de ciência e/ou quais aspectos da NdC iremos privilegiar em nossa análise. Neste trabalho, optamos por considerar os aspectos consensuais sobre a NdC, estabelecidos por pesquisadores da área do ensino de ciência. A referência clara a estes aspectos nos contextos de ensino têm sido recomendada, por estes estudiosos, como fundamental para a construção de uma imagem da ciência que se aproxime da realidade deste tipo de produção.

39 (2) qual abordagem historiográfica iremos adotar. Optamos por trabalhar com a

abordagem histórico-arqueológica, a partir de recomendações advindas da historiografia contemporânea da ciência. Sobre essas questões, centrais para o desenvolvimento desta pesquisa, iremos esclarecer e discutir no capítulo a seguir. Assim sendo, podemos resumir nossos objetivos da seguinte forma:

1- Objetivo Geral: refletir sobre a possibilidade de utilização de filmes científicos de arquivo para o ensino e aprendizagem da natureza e da história da ciência.

2- Objetivos Específicos: (i)situar de que forma a história e historiografia da ciência se constituem em recursos didático-metodológicos que permitem abordar aspectos sobre a NdC; (ii) proceder à análise histórico-arqueológica do filme-objeto desta pesquisa; (iii) refletir sobre as possibilidades dos recursos audiovisuais em contextos educativos, a partir de metodologia específica, que permita explorar estes recursos sob diferentes olhares; (iv) disponibilizar dados para que professores possam refletir sobre a importância de incluírem a história e da historiografia da ciência em sala de aula, e sobre a possibilidade dessa inclusão ser mediada por recursos audiovisuais. Consideramos que filmes antigos podem ser importantes fontes historiográficas para a compreensão, discussão e ensino de diferentes abordagens para a história da ciência, como mencionamos. Contribuir para saber como isto pode ocorrer concretamente nestes filmes é o objetivo principal desta pesquisa. Segundo Rezende (2008), a compreensão sobre as diferentes abordagens historiográficas irá influenciar a forma de apropriação, utilização e análise, por parte dos usuários, de filmes de arquivo como fonte para o ensino sobre a natureza e a história da ciência.

1.4 Linha argumentativa

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Após a apresentação de nossos objetivos, nosso esforço será no sentido de desenvolver uma linha argumentativa à luz de arcabouço teórico advindo de diferentes campos do conhecimento. A fim de atingirmos nossos objetivos, a partir de uma narrativa coerente e fundamentada, precisamos esclarecer de que forma os saberes privilegiados nesta pesquisa estarão dispostos e articulados ao longo dos capítulos e seções que desenvolveremos a seguir. Neste primeiro capítulo, que se constitui em introdução do trabalho, procuramos assinalar um contexto no campo da educação em ciências a fim de situar e justificar nosso problema de pesquisa: buscar refletir sobre a possibilidade de utilização de filmes científicos de arquivo para o ensino/aprendizagem da natureza e história da ciência. Nesse sentido, procuramos incorporar alguns pressupostos que resultaram de pesquisas já consolidadas no campo, e que orientam a construção deste trabalho. Apresentados a partir das referências deste primeiro capítulo, podemos definir estes pressupostos, em linhas gerais, como: (1) uma visão deformada da ciência e do cientista, produzida historicamente pelas sociedades, vem sendo criticada por diversos estudiosos como filósofos, sociólogos e historiadores da ciência, pelo menos desde o início do século XX; (2) as reflexões destes estudiosos têm exercido grande influência sobre pesquisas que se ocupam em apontar qual concepção de ciência deve orientar uma educação científica adequada. Nesta mesma perspectiva, estas reflexões têm exercido relevante influência sobre orientações para o ensino de ciências, especialmente por assinalarem que as ciências exatas e humanas não devam ser vistas como áreas antagônicas. Recomendação que vem sendo incorporada por diversos documentos curriculares oficiais nacionais e internacionais como, por exemplo, os PCNs (1999), Science for all Americans (AAAS 1989) 7e Benchmarks for Science literacy (AAAS 1993)8; (3) apesar disso, muitas pesquisas que procuram compreender as concepções de ciência que predominam nos contextos educacionais, apontam que ainda prevalece uma visão ingênua e desinformada sobre a produção científica e sobre o trabalho do cientista. Neste sentido, a expressão „natureza da ciência‟ foi cunhada com o objetivo de informar professores e alunos sobre os diferentes aspectos da atividade científica, abarcando questões não apenas de ciências, mas também sobre ciências; (4) isto se deve, entre outros fatores, a uma apresentação da ciência de maneira descontextualizada, ahistórica

7 8

Ver São Tiago (2011). IDEM

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e atemporal ao longo da formação dos futuros professores; (5) a concepção de ciência de professores irá influenciar, em certa medida, a construção da concepção de ciência dos alunos; (6)a história e a historiografia da ciência têm sido recomendadas como importantes recursos didático-metodológicos para um ensino de ciências que almeje informar sobre a natureza da ciência; (7) recursos audiovisuais, especialmente filmes científicos de arquivo, devem ser mais explorados em suas potencialidades, uma vez que os mesmos têm sido utilizados apenas para transmitir informações, apresentar conceitos, datas, biografias. Uma proposta a ser investigada é que estes recursos poderiam ser vistos como fonte para o ensino da natureza e história da ciência. No segundo capítulo, apresentaremos o quadro teórico no qual a pesquisase ancora e desenvolve. Sendo assim, neste momento, devemos esclarecer algumas questões fundamentais, as quais: (1)apesar da falta de consenso entre diferentes áreas do conhecimento, como a filosofia e a história da ciência, a respeito da natureza do trabalho científico, podemos destacar alguns aspectos consensuais sobre a NdC, advindos de reflexões dessas mesmas áreas, para serem incorporados pelo ensino de ciências. Estes aspectos têm sido considerados suficientes por alguns pesquisadores, para informar professores e alunos de forma a produzirem concepções informadas sobre a NdC. Portanto, estes aspectos devem permear os contextos de formação, seja de professores, seja das escolas de educação básica. Assim sendo, neste momento, esclareceremos quais destes aspectos consensuais a respeito da NdC serão privilegiados na presente pesquisa. Para desenvolver essas questões e fundamentar nossa análise, recorremos a referenciais específicos que, ao nosso entender, apresentam esta discussão de forma consistente, mas, ao mesmo tempo, objetiva e apropriada tendo em vista nossos objetivos. São eles: Lederman (2007) e McComas et al (1998). (2) de que maneira a história e a historiografia da ciência podem contribuir para a construção de uma visão informada, por alunos e professores, a respeito do trabalho científico, de forma a abarcar os aspectos consensuais da NdC? Que abordagem historiográfica será adotada por esta pesquisa? Para fundamentar estas questões, elegemos alguns estudos específicos, pois, entendemos que os mesmos se debruçaram em ampla revisão bibliográfica a respeito das questões mencionadas, aportando recomendações oriundas da historiografia contemporânea da ciência. Assim sendo,

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nesta seção, apresentaremos a metodologia necessária quando se pretende produzir texto historiográfico a partir da história da ciência, discutidas e apresentadas pelas seguintes referências:Allchin(2004), Machado(2006), Martins (2004), Martins (2005), Osborneet al (2001) e Rezende (2008). No terceiro capítulo, buscaremos refletir sobre as formas como os recursos audiovisuais têm sido utilizados em contextos de aprendizagem. Levar professores a refletirem sobre outras possibilidades de apropriação destes recursos também é um de nossos objetivos. Por isso, buscamos em literatura especializada argumentos que nos permitam traçar uma trajetória desta relação recurso audiovisual/educação. Como não é objetivo deste trabalho apresentar esta temática a partir de uma abordagem quantitativa e sim, qualitativa, optamos por destacar alguns pontos de uma história em particular, que podemos considerar relevante para esta discussão aqui no Brasil. A história a que nos referimos é a que esclarece o caráter educativo que marcou os debates em torno da fundação, em 1936, e trajetória, do INCE. A partir de trabalhos que, embora com objetivos diversos, se debruçaram em ampla pesquisa documental, incluindo fontes primárias e depoimentos orais, sobre essa história, tentaremos construir uma narrativa que identifique os pontos principais desta trajetória, a fim de criarmos um contexto que aponte questões importantes para a compreensão do atual estado desta relação entre recurso audiovisual / educação. São estes: Carvalhal (2009), Galvão (2004) e Moraes (2007). É importante ressaltar que retomaremos a história deste instituto mais a frente. Neste momento, o que nos interessa é destacar os pontos que nos permitem situá-lo na trajetória e, consequentemente, no contexto atual, da utilização do cinema/vídeo como recurso didático-metodológico em situações de aprendizagem. Esperamos com isso não só fundamentar nossa justificativa, como fortalecer a relevância desta pesquisa. Como nosso objeto de pesquisa se trata de um filme, mais especificamente um documentário, no quarto capítulo apresentaremos uma metodologia específica de análise fílmica, apresentada pelo estudo intitulado „Ensaio sobre a análise fílmica‟, de Vanoye&Goliot-Lété (1994). No referido trabalho, os autores apontam alguns procedimentos considerados fundamentais quando se deseja analisar um filme. Tais procedimentos devem sempre partir de uma hipótese de trabalho, segundo a qual todas as outras etapas, que os autores chamam de desconstrução/ reconstrução do filme, terão

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o objetivo de justificá-la. Nesta pesquisa iremos procederá análise do filme Combate à Lepra no Brasil, a partir de nossa hipótese de trabalho, ou seja, a partir da possibilidade de um olhar historiográfico em direção a uma análise histórico-arqueológica. Mas, para, além disso, o que esperamos a partir desta experiência é produzir dados suficientes que levem professores a rever suas práticas e a elas incorporar esta metodologia. Acreditamos que isso possibilitará uma diversidade de olhares para as produções audiovisuais. No quinto capítulo, apresentaremos texto historiográfico produzido à partir da pesquisa bibliográfica que realizamos relacionada à trajetória das pesquisas médicocientíficas sobre a lepra/hanseníase no que diz respeito, principalmente, às suas formas de tratamento. Para tanto, será preciso retornar a tempos passados a fim de compreendermos os diferentes fatores que contribuíram para a construção de uma imagem de doença, e como estes fatores exerceram influência sobre as formas de tratamento. Esta pesquisa histórica foi realizada tendo em vista dois objetivos principais, os quais: (1) procurar elementos que subsidiem uma discussão/reflexão a respeito dos aspectos consensuais sobre a natureza da ciência, que apresentamos e discutimos no segundo capítulo deste trabalho; (2) construir uma narrativa historiográfica que esteja de acordo com os pressupostos indicados pela abordagem escolhida por esta pesquisa, abordagem histórico-arqueológica, que será discutida à frente. É importante lembrar que esta pesquisa documental e histórica encontra-se inserida em uma metodologia mais ampla de análise fílmica, como citamos, constituindo-se, desta forma, em procedimento necessário em direção à confirmação, ou não, de nossa hipótese de pesquisa. Para esta pesquisa documental, recorremos a fontes historiográficas secundárias, que se dedicaram a estudos aprofundados sobre três aspectos principais, que consideramos de maior relevância no âmbito desta pesquisa: (1) esclarecer o contexto social, político e econômico da época em que o filme foi produzido, o ano de 1945, relacionando este contexto às políticas públicas de saúde direcionadas, especialmente, ao tratamento da lepra/hanseníase: Andrade (2007),Cunha (2005, 2011), Curi(2002), Ducatti (2008), Hochman (2005), Pandolfi (1999),Santos (2006), Santos et al (2009), Vicente &Dorigo (2011); (2) compreender como um estigma, tão fortemente vinculado à doença, foi produzido e disseminado historicamente nas sociedades;(3) esclarecer como se deu o desenvolvimento das pesquisas médico-científicas relacionadas aos

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diversos aspectos da lepra/hanseníase, como formas de transmissão e contágio, agente etiológico, formas de tratamento, classificação, entre outros: Barbosa et al (2008),Boechati & Pinheiro (2012), Cunha (2002),Curi (2010), Maciel (2007), Mattos &Fornazari (2005, 2007),Opromolla (1997),Pachá (2008), Poorman (2008), SouzaAraújo (1954). O sexto capítulo será dedicado ao tratamento dos dados e à apresentação dos resultados e discussão sobre nossa análise. Neste momento, buscaremos construir uma argumentação coerente com nossas escolhas e posicionamentos assumidos, frente às questões postas por diferentes áreas de estudo e pesquisa, referenciados por este trabalho. Desta forma, acreditamos, por exemplo, que a abordagem historiográfica escolhida irá nos propiciar um olhar para esses episódios históricos que nos leve a compreender os aspectos consensuais sobre a natureza da ciência privilegiados por esta pesquisa, e sua relevância para o ensino de ciências. Além do mais, acreditamos que a relevância desta proposta de investigação justifica-se pela crença de que existe um valor cultural intrínseco a importância de se conhecer a NdC.Assim, o que esperamos, é que este caminho escolhido por nós possibilite uma compreensão da ciência como produção humana, e que por isso mesmo compartilha das limitações inerentes a esta condição. Para tanto, buscaremos exaltar a influência de aspectos extra científicos na produção dos conhecimentos da ciência assim como em suas aplicações, como fatores sociais, econômicos, políticos, assim como também os riscos e controvérsias envolvidos neste processo de produção coletiva de conhecimentos. Aspectos que, por tudo que refletimos até aqui, consideramos fundamental para a construção de uma imagem informada sobre a NdC. Devemos ressaltar que o caminho indicado por esta pesquisa não pretende ser o único, nem tão pouco definitivo. Da mesma forma, não pretende se constituir em metodologia prescritiva, como um passo-a-passo a ser seguido por professores que buscam por “inovações” em suas salas de aula, muito menos em se apresentar como “solução” para possíveis “problemas”, muitas vezes apontados por pesquisas da área de ensino de ciências, como mencionamos. O que pretendemos aqui é proporcionar aos professores uma reflexão sobre a natureza da ciência. A partir da concepção de ciência implícita no filme, acreditamos que os mesmos podem refletir sobre a possibilidade de incluir a história da ciência no ensino de ciências a fim de levarem uma concepção de natureza da ciência mais informada para as salas de aulas. Em última instância,

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pretendemos com este trabalho levar professores a refletir não somente sobre suas práticas, mas principalmente, sobre os discursos que as permeiam. Diante disso, é importante exaltarmos uma das premissas adotadas pela pesquisa, e que acreditamos contribuir substancialmente para a relevância da mesma. Aqui, concordamos com o fato de que o processo de formação de professores ocorre ao longo de toda a sua trajetória profissional, se não de vida. Sustentamos esta opinião nas palavras de Schnetzler& Aragão (2000) que, por mais de 20 anos trabalhando com formação de professores, nos dizem que este é um processo complexo e único, no qual cada professor irá construir sua identidade a partir da apropriação de sua história pessoal e profissional. Assim, assumindo esse sentido, acreditamos que as possibilidades de experienciar contextos que os levem a situações de pesquisa e reflexão só teriam a enriquecer e aprofundar a “bagagem” de conhecimento desses profissionais seja no aspecto intelectual, cultural ou do conteúdo específico. Assim sendo, acreditamos que essas vivências certamente irão refletir na construção de suas práticas e de seus discursos, nos diversos contextos de aprendizagem no qual estarão inseridos.

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Capítulo 2 QUADRO TEÓRICO

A investigação histórica do desenvolvimento da ciência é extremamente necessária a fim de que os princípios que guarda como tesouros não se tornem um sistema de preceitos apenas parcialmente compreendidos ou, o que é pior, um sistema de pré-conceitos. A investigação histórica não somente promove a compreensão daquilo que existe agora, mas também nos apresenta novas possibilidades. (Mach,1960)

Diante do que foi exposto até aqui, apresentaremos, neste capítulo, os referenciais teóricos sobre os quais nossa pesquisa irá se ancorar e desenvolver. Nossa intenção é apresentar argumentos que possam fundamentar e orientar a análise posterior, assim como a discussão sobre os resultados obtidos por esta análise. Em função de nosso objetivo, devemos esclarecer a quais pressupostos teóricos nos filiamos, a fim de fundamentar as seguintes questões que orientam nossa reflexão: (1) qual concepção de ciência e/ou quais aspectos da natureza da ciência iremos privilegiar em nossa análise. Existem diferentes linhas de pesquisa que se dedicam a refletir sobre a NdC. Algumas, inclusive, sob a alegação de que as ciências diferem muito entre si, consideram inviável definir um conjunto de aspectos consensuais sobre a NdC. Estes trabalhos normalmente recomendam uma abordagem que privilegie semelhanças familiares entre as ciências.9 Mas esta é uma linha da qual não nos ocuparemos. O presente trabalho se fundamenta a partir da linha que, embora reconheça que existem pontos de desacordo entre diferentes pesquisadores (historiadores da ciência, filósofos da ciência, educadores em ciências, etc.), apontam para a existência, nestes mesmos trabalhos advindos dessas áreas diversas do conhecimento, de alguns aspectos consensuais em relação à NdC. Para estes estudiosos filiados a este linha de investigação, estes aspectos devem estar claramente presentes no ensino de ciências (McCOMAS et al, 1998; LEDERMAN, 2007). Apresentaremos esses aspectos consensuais para a NdC na primeira seção do presente capítulo. 9

Ver, por exemplo: Irzik (2011).

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(2) qual será a abordagem historiográfica adotada por esta pesquisa. Cabe ressaltar que existem variadas abordagens historiográficas com que se pode trabalhar, e que a historiografia define tipos diferentes de história da ciência. Segundo Forato, “qualquer narrativa historiográfica encerra uma visão de ciência e dos processos de sua construção” (2011, p. 29). Por isso, quando se pretende discutir aspectos da Natureza da Ciência a partir de episódios históricos deve-se, primeiro, ter claro que aspectos deverão ser privilegiados na narrativa historiográfica para, então, reconstruir, cuidadosamente, episódios da história da ciência, a fim de transmitir a concepção de ciência que se deseja. Tomar conhecimento de tal metodologia para a construção de narrativas da história da ciência vem sendo apontado por diversos estudiosos como fundamental para se evitarem distorções históricas, recorrentes nos ambientes educacionais, que resultam em visões equivocadas sobre a natureza da ciência (ALLCHIN, 2004; FORATO, 2011; MARTINS, 2004; MARTINS, 2005). Desta forma, apresentamos a abordagem para a História da Ciência com a qual pretendemos trabalhar, segundo Machado (2006): a abordagem histórico-arqueológica, de que nos ocuparemos na segunda seção deste capítulo. No presente trabalho, pretendemos construir uma narrativa a partir de levantamento documental que nos revele episódios históricos relacionados à pesquisa médica/científica sobre o tratamento da lepra/hanseníase, principalmente no que diz respeito ao isolamento dos doentes em instituições asilares, questão central do filmeobjeto desta pesquisa. Este levantamento tem a finalidade de gerar dados que subsidiem uma narrativa historiográfica referenciada pela abordagem histórico-arqueológica. Ao confrontarmos estes dados com as informações trazidas pelo filme, pretendemos, por um lado, identificar como estes filmes podem subsidiar discussões sobre a modalidade de história da ciência apresentada, e por outro, como eles podem ser relevantes para compreendermos historicamente certas dimensões da ciência. Neste caso, estas dimensões correspondem aos parâmetros consensuais sobre a natureza da ciência, que apresentaremos neste capítulo. Diante do exposto, podemos concluir que quando recorremos à História da Ciência a fim de refletirmos sobre a NdC, o tipo de abordagem historiográfica privilegiada carrega em si uma concepção de ciência. Uma narrativa historiográfica segundo uma abordagem histórico-factual, por exemplo, se constitui basicamente pela descrição de fatos, datas, biografias, teorias, conceitos. Ou seja, este tipo de abordagem

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preocupa-se mais em expor os resultados da atividade científica, a partir de um repertório de procedimentos teóricos e práticos reconhecidos como corretos pela comunidade científica, ao passo que comumente atribuem a um único cientista os méritos pelos mesmos (MACHADO, 2006). Este tipo de narrativa deve ser utilizado com cuidado, pois, normalmente, reforça alguns mitos sobre o trabalho científico, como citamos anteriormente, e vem sendo associada à transmissão de uma visão ultrapassada da ciência. Por isso, pretendemos privilegiar nesta pesquisa uma abordagem historiográfica que considere aspectos fundamentais sobre a NdC, que não devem estar ausentes em narrativas que pretendem transmitir uma visão contemporânea de ciência. Acreditamos que uma compreensão sobre o que nos trazem estes referenciais, irá nos aproximar de um entendimento sobre a forma como a ciência se constitui e opera. Mais especificamente, a partir de nosso filme-objeto, tentaremos perceber de que forma a ciência esteve presente nos discursos que orientaram as políticas públicas de tratamento e prevenção da lepra/hanseníase no período delimitado por esta pesquisa. Esperamos, a partir deste esclarecimento, compreender questões como, por exemplo, se a ciência pode se tornar legitimadora de interesses políticos e ideológicos; privilegiar determinada classe social em detrimentos de outras; os fatores que justificam a morosidade para que recomendações, uma vez legitimadas pela ciência, em função do conhecimento de seus benefícios para a população, sejam aderidas por determinada comunidade científica; entre outras questões que certamente irão emergir a partir da pesquisa histórica que nos propomos. Nossa suspeita é de que na época em que o filme foi produzido, em 1945, o isolamento dos doentes já não era mais necessário da forma como estava sendo recomendado aqui no Brasil. Apesar de nosso filme-objeto ser claramente um veículo para exaltar ações do poder público, ou seja, propaganda governamental tem como principal objetivo divulgar o isolamento dos portadores da lepra/hanseníase como a principal medida profilática recomendada pelo governo. Portanto, diante da magnitude e abrangência desta recomendação, é natural considerarmos que a comunidade médico-científica vigente naquele momento estaria de acordo com tais propósitos.

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2.1- Aspectos consensuais sobre a natureza da ciência Ao contrário do consenso estabelecido em relação aos conteúdos de ciência presentes em documentos curriculares e materiais didáticos, uma matriz de idéias coerentes a respeito da NdC, adequada ao ensino de ciências, ainda se constitui em controvérsia (OSBORNE, et al, 2003). Como exposto, investigações na área de educação em ciências têm revelado visões equivocadas da NdC no ensino de ciências, tanto de alunos como de professores. Uma das causas para esta constatação reside na falta de elementos claros sobre NdC que definem e orientam programas de formação de professores, documentos curriculares e, consequentemente, as abordagens realizadas em sala de aula. Diante desta urgência em se estabelecer um conjunto claro e coerente de aspectos inerentes ao trabalho científico, que seja ao mesmo tempo consensual entre especialistas de áreas variadas, como a história e a filosofia da ciência, e adequado para o ensino de ciências, vários pesquisadores têm recorrido a fontes diversas, a partir de diferentes metodologias, a fim de estabelecerem alguns parâmetros que atendam a esta demanda. De fato, se nos debruçarmos nas teses de alguns dos filósofos mais expressivos do século XX, que contribuíram significativamente para a redefinição de ciência na contemporaneidade, como Kuhn, Popper, Lakatos e Feyerabend,veremos que as mesmas configuram visões próprias destes pensadores sobre a ciência e o cientista, apresentando entre si pontos de desacordo. Não nos cabe aqui discutir sobre essas diferenças, até porque emergem de reflexões que concebem a NdC a partir de enfoques variados. Nosso objetivo é procurar ressaltar o que tem sido consenso entre estas áreas de conhecimento e quais suas implicações para o ensino de ciências. Nesta perspectiva, estes filósofos, apesar de suas divergências, “constituíram um bloco que rejeitava as teses positivistas de que o desenvolvimento da ciência é explicado fundamentalmente pela obtenção de dados experimentais mais refinados e pela elaboração de teorias mais abrangentes” (VLLLANI, 2001, p. 169). Este autor concorda que no campo do ensino de ciências, estas reflexões deflagraram um movimento que passou a questionar a filosofia positivista que, para educação, se pautava pelo pressuposto de que “o avanço do ensino de ciências seria essencialmente um problema de conteúdo claro e correto e

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metodologia apropriada” (VILLANI, 2001, p. 169). Diante disso, podemos admitir que o posicionamento destes filósofos, de modo geral, se opunha a uma visão empíricoindutivista-ingênua da ciência. Em função desses desacordos, ao se tentar definir e caracterizar a NdC a partir das reflexões oriundas dessas áreas metacientíficas, alguns pesquisadores seguem uma linha que considera inviável uma definição clara de aspectos consensuais sobre a NdC, que possam ser generalizados, como mencionamos no início deste capítulo. Mas, no presente trabalho, tentaremos esclarecer as propostas de concordância destas pesquisas que influenciaram de maneira significativa propostas visando à educação científica, mais especificamente ao ensino de ciências. A esse respeito, Gil-Pérez et al nos dizem que: “Faz-se notar que tal consenso decorre da necessidade da sua apropriação pela educação em ciências” (2002, p.127). Portanto, seguimos a linha de investigação que, apoiada por educadores, filósofos, historiadores da ciência, acredita que se existe um consenso a respeito de um conjunto de imagens imputado deformadas, inconsistentes a respeito da atividade científica, que não deve permanecer nos ambientes de formação, parece razoável supor que exista um conjunto considerado adequado, à luz do qual o primeiro fora avaliado. Desta forma, vamos nos referir aqui a trabalhos que, a respeito de aspectos da NdC que devem permear o ensino, consideram que “há um nível aceitável de generalidade, sobre o qual há mais consenso do que desacordo” (SÃO TIAGO, 2011, p. 44). Como não é de nosso interesse uma demonstração exaustiva sobre essas pesquisas, nossa escolha recai sobre dois trabalhos que consideramos consistentes pela metodologia empregada, e representativos por seus resultados. São eles: McComas et al (1998) e Lederman (2007). Ambos buscaram definir aspectos da NdC importantes para a formação de uma sociedade letrada cientificamente e que, por isso mesmo, não devem estar

ausentes

do

ensino

de

ciências.

A

partir

de

ampla

revisão

de

literatura10empreendida por estes pesquisadores, torna-se possível relacionar um conjunto de caracteres inerentes ao trabalho científico que devem ser confrontados com àquelas visões distorcidas outrora apresentadas. De maneira sucinta, podemos descrevêlo a partir dos seguintes elementos: 10

Lederman (2007) analisou mais de 150 artigos publicados em um período maior que 50 anos. McComaset al (2008) analisaram 8 livros sobre filosofia da ciência, que encontram-se em anexo em São Tiago (2011).

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(1) A ciência cria métodos experimentais para testar ideias. (2) Os métodos e abordagens utilizados para este fim são muitos. Não existe um método único e universal. (3) Leis e teorias desempenham funções distintas na produção

dos

conhecimentos científicos. (4) A ciência possui caráter inventivo, criativo e tentativo. (5) A ciência apresenta determinada subjetividade (envolve posições pessoais, preconceitos e as observações carregam em si teoria). (6) A atividade científica se desenvolve em determinado contexto histórico, social e cultural, com o qual interage e do qual sofre influência. (7) O conhecimento científico é provisório. (8) A ciência é uma produção humana, fruto da cooperação de grupos de cientistas. (9) A ciência tem limitações e trabalha segundo princípios éticos. Diante disso, torna-se necessário nos posicionarmos em relação a quais aspectos consensuais da NdC, apontados pelas pesquisas mencionadas, iremos privilegiar em nossa análise. Concordamos que todos os aspectos acima relacionados são de extrema relevância para a compreensão da atividade científica, de forma a se construir uma imagem informada sobre a NdC, como vem sendo recomendada. Mas, nesta pesquisa, até mesmo por sua natureza e consequentes limitações, optamos por discutir sobre os aspectos que dizem respeito às questões extras científicas envolvidas nos processos de produção da ciência. Por isso, nosso foco de análise recairá sobre o consenso de que a atividade científica se dá num contexto histórico, social e cultural com o qual interage e do qual sofre influência. Embora exaltar este aspecto seja nosso principal interesse, acreditamos que, ao fazermos, outros aspectos acima descritos estarão implícitos a este escolhido por nós, fato que, consequentemente, nos permitirá discuti-los também. Possibilitar uma melhor compreensão sobre o trabalho científico por parte dos professores, a fim de enriquecer seus discursos e suas práticas docentes, é nosso objetivo maior. O que esperamos é que os mesmos possam abandonar o factual, o episódico em suas aulas de ciências a partir de contribuições das áreas humanas que lhes propiciem um melhor entendimento da complexidade da construção do conhecimento científico. Mas entendemos que este é um debate que não reside apenas em campo teórico, mas também prático. Por isso, vamos apresentar agora a abordagem eleita por

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esta pesquisa, segundo a qual pretendemos construir uma narrativa que abarque todos aqueles aspectos que consideramos necessários para se evitar visões reduzidas, simplistas e ingênuas da ciência. 2.2Abordagens para natureza da ciência A ciência não pode ser ensinada como um dogma inquestionável. Um ensino de ciências que não ensine a pensar, refletir, a criticar, que substitua a busca de explicações convincentes pela fé na palavra do mestre, pode ser tudo menos um verdadeiro ensino de ciências. É antes de mais nada um ensino de obediência cega incorporado numa cultura repressiva. (BEZERRA FILHO & MEDEIROS, 2000, p.108 apud SCHATZMAN, 1973)

Esta opinião, compartilhada por vários pesquisadores, emerge da necessidade de uma educação científica que propicie, entre outros fatores, uma aproximação de cidadãos desta produção cultural humana que é a ciência, de forma a conhecerem um pouco melhor seus caminhos e motivações. Nesta tônica, a NdC tem sido destacada como algo a ser incorporado, explicitamente, nos conteúdos curriculares de ciências. Uma vez justificado e recomendado que aqueles aspectos consensuais sobre a NdC devem estar presentes, de forma clara, nos diversos contextos de formação, tanto de professores como da educação básica, é importante esclarecermos qual será o tipo de abordagem para a NdC privilegiada por esta pesquisa. Diferentes áreas de conhecimento têm se ocupado em responder a alguns questionamentos que emergem a partir de maneiras diversas de olhar para a ciência, como discutimos. Juntamente a esses questionamentos, surgem também metodologias variadas para se alcançar as respostas, ou para apontarem alguns caminhos. É o que temos constatado a partir de estudos em áreas como a Filosofia, a Sociologia, a Psicologia e a História da Ciência, por exemplo. E é exatamente o conhecimento dessa multiplicidade de olhares que tem possibilitado hoje uma (re) aproximação entre ciência e humanidade. Sobre o reflexo destas perspectivas no ensino, Matthews concorda que é possível constatar que informações advindas da história e da filosofia da ciência têm enriquecido aulas de ciência tanto no que diz respeito à teoria quanto à prática, e nos diz que: Há muitos elementos envolvidos nessa reaproximação. Porém, o mais importante deles é a inclusão de componentes de história e de filosofia da ciência em vários currículos nacionais (...) trata-se de uma incorporação mais abrangentede temas de história, filosofia e sociologia da ciência na abordagem do programa e do ensino dos currículos de ciências que

53 geralmente incluíam um item chamado ciência‟.(MATTHEWS, 1995, p. 165)

de

„A

natureza

da

Desta forma, optamos por trazer alguns elementos da NdC a partir de um desses olhares, o da História da Ciência, com todas as possibilidades que esta área tem oferecido de nos aproximarmos destes elementos a partir de episódios históricocientíficos reais. Como apresentamos logo no início deste trabalho, a inclusão de uma abordagem histórica sobre a ciência nos currículos e aulas de ciência, tem sido amplamente reivindicada tanto pela literatura especializada como por documentos oficiais de orientações curriculares. Existem muitas justificativas para tal reivindicação, mas, notadamente, sobressaem as que defendem uma melhor compreensão sobre aspectos da NdC a partir de episódios históricos fornecidos pela História da Ciência. Ou seja, o que se defende é que os diferentes aspectos inerentes à produção científica, a maior parte deles desconhecida pelos cidadãos, podem ser revelados pelo contexto histórico no qual tenham se desenvolvido (ABD-EL-KHALICK & LEDERMAN, 2000; ALLCHIN, 2004; CLOUGH, 2010; DELIZOICOV, 2006; FORATO, 2009; GIL PEREZ et al, 2001; LEDERMAN, 2000; MARTINS, 1990, 2004; MARTINS 2005; MARTINS, 2007; MATTHEWS, 1994, 1995; McCOMAS et al, 1998; MEDEIROS & BEZERRA FILHO, 2000; SÃO TIAGO, 2011; SUTTON, 1997 ). Na verdade, esta é uma reivindicação que já vem de longa data ocupando pesquisas e estudos na área, seja por meio de escritos, ou até mesmo por propostas práticas. São Tiago (2011), em pesquisa recente a cerca das possibilidades educacionais entre Natureza da Ciência, História da Ciência e Física, dedicou parte do seu estudo a desenvolver uma linha cronológica apontando algumas iniciativas consistentes em relação a materiais e cursos de ciências, produzidos e ministrados segundo orientações históricas. O autor aponta como precursor, um curso de ciências realizado na Universidade de Chicago, em 1957, baseado em textos históricos, segundo o qual teria inspirado iniciativas que se estenderam para o ensino médio. Mas o caso mais expressivo fora o Harvard Project Physics, em 1970, que, segundo o autor: foi desenvolvido por um grupo interdisciplinar do qual participaram professores de ensino médio, psicólogos e historiadores e teve como objetivo principal fazer um contraponto humanista ao PSSC ( PhysicalStudies Science Committee – 1960), considerado como cientificista. (SÃO TIAGO, 2011, p. 58)

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Outras iniciativas internacionais foram citadas pelo referido estudo, inclusive mais recentes. Não apenas em relação a cursos ministrados, mas também em relação a alguns documentos que orientam a estrutura curricular para o ensino de ciências. Mas nosso objetivo foi apenas procurar datar esta discussão a partir de registros conhecidos. Cabe dizer que o autor admite que no Brasil este processo foi mais tardio, e aponta algumas iniciativas11 empreendidas por pesquisadores brasileiros para incorporar a história da ciência seja em diretrizes curriculares, seja na produção de materiais instrucionais e didáticos. Na opinião de Martins (1990), a História das Artes, da Filosofia, dos costumes, das instituições e das leis, da Ciência constituem a História da Humanidade, por isso conhecê-las torna-se fundamental quando se almeja uma formação cultural ampla. A História da Ciência e da Filosofia devem coexistir naturalmente nos cursos universitários tanto na formação de áreas específicas, como nos cursos de formação de professores. O autor atribui papel relevante a isto e argumenta que, antes de assumir finalidades diversificadas, o conhecimento sobre a história da ciência e da filosofia assume a função principal de possibilitar compreender nossa própria formação cultural, a origem de nossas concepções sobre o mundo que nos cerca, a relação das pesquisas científicas com áreas culturais diversas, com pensamentos diversos, etc. Colaborando com esta premissa, Silva considera que a perspectiva histórica da ciência contribuiria, na formação destes profissionais: para uma visão mais ampla a respeito das questões envolvidas em debates históricos. Nem sempre há apenas uma única resposta possível para as perguntas que podem ser formuladas, e a validade de tais respostas, não depende apenas de bons argumentos teóricos e experimentais; há também que se considerarem fatores sociais, políticos e culturais envolvidos nas disputas entre teorias. Com isso, o estudo da história da ciência contribuiria para evitar a crença generalizada do mito dos “grandes gênios” como Galileu, Darwin, Lavoisier ou Einstein, que teriam descoberto a verdade através de um método infalível, corrigindo os erros dos ignorantes de épocas anteriores e a visão de que o conhecimento científico é um produto acabado e que não resta mais nenhum problema significativo a resolver. (2006, p. ix)

Matthews (1994), que se encarregou de ampla revisão de literatura a fim determinar as principais razões apontadas por pesquisadores para a inclusão de componentes da historia da ciência no ensino de ciências, conclui que as mesmas podem ser resumidas como: 11

Ver, por exemplo: Grupo Teknê (Guerra et al, 1997, 1999; Braga, Guerra & Reis, 2003, 2004).

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(1) A história promove melhor compreensão de conceitos e métodos científicos. (2) Abordagens históricas conectam o desenvolvimento do pensamento individual com o desenvolvimento de idéias científicas. (3) A história da ciência é intrinsecamente valiosa. Episódios importantes da história da ciência e cultura - a Revolução Científica, o darwinismo, a descoberta da penicilina e assim por diante - devem ser familiares a todo estudante. (4) A história é necessária para compreender a natureza da ciência. (5) A história neutraliza o cientificismo e o dogmatismo que são encontrados frequentemente em manuais de ensino de ciências e nas aulas. (6) A história, pelo exame da vida e da época dos pesquisadores individuais, humaniza a matéria científica, tornando-a menos abstrata e mais interessasnte aos alunos. (7) A história favorece conexões a serem feitas dentro de tópicos e disciplinas científicas, assim como com outras disciplinas acadêmicas; a históriaexpõea natureza integrativainterdependentedas aquisições humanas (apud SÃO TIAGO, 2011, P.60). Em outro estudo, o mesmo autor cita o relatório Ciências para todos os americanos que contém 12 capítulos onde são apresentadas as recomendações do Conselho Nacional de Educação em Ciências e Tecnologia para o ensino de Ciências nos cursos de primeiro e segundo graus (no Brasil, ensino fundamental e ensino médio). Apontando para a necessidade de que os cursos de ciência sejam mais contextualizados, históricos, filosóficos e reflexivos a fim de transmitirem uma visão informada sobre a NdC, este relatório apresenta na introdução de seu capítulo dez “Perspectivas Históricas” (grifo do autor), duas razões para a inclusão de algum conhecimento sobre a história da ciência nos currículos de ciência: Uma delas é o fato de que generalizações sobre o funcionamento dos empreendimentos científicos não têm sentido se não forem fornecidos exemplos concretos. A segunda razão é o fato de que alguns episódios na história das buscas científicas são bastante significativos para a nossa herança

56 cultural; por exemplo, o papel de Galileu na mudança de percepção de nossa posição no universo. (MATTHEWS, 1995, p. 168)

Reforçando a opinião de alguns pesquisadores, apresentadas pelo presente trabalho em capítulo anterior, Matthews (1995) acredita que tais necessidades referentes ao ensino de ciência têm implicação direta com os processos de formação de professores, pois “algum conhecimento de história e filosofia da ciência deveria ser parte da bagagem intelectual de todo professor de ciências de escola secundária” (THOMPSON, 1918, p.3 apud MATTHEWS, 1995, p.188). O argumento advogado por Matthews (1995) para justificar a necessidade de inclusão da História e Filosofia da ciência nos cursos de formação de professores é o de que estes devem ter como objetivo não apenas treinar professores, mas, sobretudo, instruí-los. Isto quer dizer oferecer além do conhecimento de dimensão conceitual sobre a disciplina que lecionam, também, e principalmente, conhecimento sobre a dimensão histórica e cultural das mesmas. Desta forma, sem perder de vista nosso alvo principal, os professores, esperamos, com a proposta a seguir, lhes apresentar um ponto de vista, entre tantos que poderíamos escolher. A intenção é contribuir para que eles possam identificar e problematizar concepções ingênuas sobre a NdC que permeiam o cotidiano, assim como considerar certos aspectos da NdC “enquanto fato histórico, social e cultural” (FORATO, 2009, p. 12).E a partir de agora nos ocuparemos em esclarecer de que forma esta proposta irá se materializar na presente pesquisa. 2.2.1A natureza da ciência pela história da ciência – diferentes olhares historiográficos O propósito de lidar com a história da ciência como recurso didático-pedagógico para abordar aspectos da NdC requer tomar alguns cuidados e seguir algumas orientações. Comumente vem sendo referenciado pela literatura especializada pontos de dificuldade encontrados no cenário educacional quando se almeja estabelecer uma relação prática/reflexiva entre a ciência e sua história. Segundo Forato (2009), estas barreiras, digamos assim, podem ser definidas como, principalmente: (1) a existência de distorções históricas sobre a ciência nos livros e materiais didáticos em geral;

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(2) carência de uma formação adequada de professores, que os prepare para trabalharem com a história da ciência; (3) falta de material didático-metodológico apropriado para este fim. Com base nestes apontamentos, apresentaremos algumas considerações e orientações metodológicas divulgadas pela área. O objetivo é contribuir para que professores dispostos a assumirem um compromisso com a história da ciência em sua trajetória profissional possam identificaras distorções históricas tão recorrentes nos contextos educacionais e, até mesmo, produzirem seu próprio material historiográfico. Para tanto, escolhemos alguns referenciais que consideramos relevantes para esta discussão, por apresentarem propostas ao mesmo tempo consistentes, coerentes e com um elevado grau de esclarecimento. Estes trabalhos são: Allchin, 2004; Martins, 1990, 2004 e Martins, 2005. Inicialmente, devemos esclarecer algumas distinções conceituais entre “História” e “Historiografia”. Pode-se chamar de “historiografia” a produção dos historiadores, para diferenciá-la da “história” – entendida como um conjunto de situações e acontecimentos pertencentes uma época e a uma região – que é o objeto de estudo dos historiadores. Temos, assim, dois níveis distintos. A história é algo que se pode considerar como existente independentemente da existência dos historiadores (a menos que se adote uma postura filosófica idealista).(MARTINS, 2004, p.1)

Desta forma, a historiografia, produto final do trabalho de historiadores, enuncia-nos a respeito de fatos, acontecimentos, atividade e produção de cientistas inseridos em determinado contexto, através de, principalmente, textos escritos. As reflexões sobre fatos obtidos pela história da ciência não têm como objeto de análise o estudo dos fenômenos naturais e sim o “pensar” e o “agir” dos que neste processo de estudo estão envolvidos. Assim, para a historiografia da história da ciência passa a ter grande relevância o contexto histórico, social e cultural no qual se encontram imersos produções científicas e cientistas. O que confere a historiografia caráter de ciências humanas. Segundo Martins:

Ela é constituída essencialmente por textos escritos. Ela reflete sobre os acontecimentos históricos, mas agrega-lhe um caráter discursivo novo. Ela procura desvendar aspectos da história, mas não é uma mera descrição da realidade histórica. (MARTINS, 2004, p.1)

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Isto quer dizer que o trabalho historiográfico sofre também influência do contexto vivenciado pelo historiador, que irá refletir em suas motivações, suas escolhas, sua forma de interpretar os acontecimentos oriundos da história, a forma de relatá-los. Como qualquer área de saberes produzidos pela humanidade, a historiografia se desenvolve em determinado contexto cultural, sendo influenciada e transformada pelo mesmo, o que determina diferentes tendências ao longo dos tempos. As transformações e reflexões ocorridas ao longo do século XX em relação à concepção de ciência na contemporaneidade,

oriundas

de

estudos

metacientíficos,

como

discutimos

anteriormente, ocorreram igualmente em relação à historiografia. Como uma relação de causa e conseqüência, ao se atribuírem novos aspectos à forma de se conceber a ciência, como uma produção humana, cultural, esta nova concepção também passa a permear novas abordagens historiográficas. Se antes as narrativas priorizavam apenas fatores internos (abordagem conceitual) como as produções científicas no que diz respeito a seus métodos e conceitos, ou apenas os fatores externos (abordagem não conceitual), como o cientista e seu contexto histórico, hoje, compreende-se que para uma narrativa completa, esses dois aspectos devem coexistir e, principalmente, serem lidos à luz das contribuições da nova filosofia da ciência.(MARTINS, 1990; MARTINS, 2005; SÃO TIAGO, 2011). Consideramos que o trabalho realizado por historiadores requer tempo, estudo e dedicação, pois envolve diversos aspectos, como: conhecimento sobre o objeto analisado a partir de diferentes vertentes; conhecimento dos métodos empregados em pesquisas em História da Ciência; conhecimento do contexto histórico-social do período analisado. Por outro lado, tomando-se como base a historiografia atual, podemos destacar alguns pontos de concordância entre pesquisadores da área, a respeito de orientações metodológicas gerais para a construção de narrativas historiográficas sobre a história da ciência, orientadas por uma visão informada sobre a NdC. Para estes autores, tais orientações se destinam, preferencialmente, aos não especialistas que pretendem iniciar estudos sobre a História da Ciência, entre eles os professores. A intenção é que os mesmos sejam capazes de identificar versões distorcidas da história da ciência presente em materiais didáticos, e problematizá-las a partir de sólida fundamentação. Da mesma forma, espera-se que a partir de tais orientações professores sejam capazes também de produzirem, eles próprios, materiais didáticos adequados, como sugerimos anteriormente.(ALLCHIN, 2004; MARTINS, 2005)

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2.2.2 Distorções históricas em materiais didáticos As distorções sobre a história da ciência que permeiam os cotidianos educacionais, principalmente através dos livros didáticos, têm sido tema recorrente em inúmeras pesquisas. Para alguns especialistas da área de história e historiografia da ciência, esta se constitui em uma das principais causas para a dificuldade estabelecida em se trabalhar com estas áreas de conhecimento, nos contextos escolares. Eles concordam que estas visões predominantes, também denominadas Pseudohistória, além de estarem presentes no ensino, são também recorrentes no cotidiano do cidadão, principalmente através dos meios de comunicação, e produzem o chamado “senso comum” sobre a produção da ciência, e do cientista, ou seja, produzem o que alguns especialistas denominam de Pseudociência (ALLCHIN, 2004; MARTINS, 2004). O problema recorrente dessas visões distorcidas é o impacto que isso fatalmente tem na formação dos alunos. Ainda que não intencionalmente, uma falsa história transmite uma falsa visão sobre a natureza da ciência. (FORATO, 2009, p. 18)

Tendo em vistas alertar os não especialistas quanto a essas distorções históricas ou Pseudohistória, alguns estudos vêm apresentando as versões mais recorrentes, a partir de uma classificação, que agora apresentaremos.(ALLCHIN, 2004; MARTINS, 2005) O fenômeno do Anacronismo é o mais relatado, pois, segundo as pesquisas, procura compreender a dinâmica da ciência a partir de um “julgamento” do que se considerava verdade no passado, segundo normas do que se considera verdade no presente. Neste caso o contexto da época é ignorado e o que se pretende é apenas encontrar precursores de um saber atual, mais desenvolvido, mas que teria sua origem em conceitos do passado. Daí o caráter normativo e “preconceituoso” deste tipo de abordagem. Neste caso, ainda podem apresentar particularidades segundo as quais recebem outras classificações, tais como (ALLCHINN, 2004; MARTINS, 2005): 1- Whigguismo. Este tipo de narrativa é normalmente factual, cheia de datas e nomes, cuja principal finalidade é enaltecer personalidades de alguns pensadores. Segundo pesquisas da área, esta modalidade surgiu a partir de motivações políticas, com o objetivo de legitimação de autoridade. Cientistas são vistos como gênios, heróis, e seu trabalho é desvinculado de qualquer

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contexto sócio-histórico-cultural. A dimensão coletiva da ciência é desconsiderada, assim como seus riscos e controvérsias. 2- Hagiografia: considerada uma modalidade de Whiggismo, que romantiza e santifica a vida dos cientistas. Suas contribuições são sobrevalorizadas ao passo que contribuições de seus antecessores são desconsideradas. Opositores passam a “vilões” e a atividade científica idealizada. 3- Reconstrução Racional: são retirados do passado apenas fatos que possam construir uma cronologia da produção científica. Ou seja, são selecionados apenas conceitos aceitos pela contemporaneidade, a fim de ensinar a “evolução dos conceitos científicos”, como se o mesmo ocorresse de forma linear, previsível e infalível. Uma vez apontadas às principais visões distorcidas da história da ciência, apresentaremos algumas orientações consideradas relevantes para quem pretende produzir uma narrativa historiográfica a partir da história da ciência. Segundo Martins (2005), existe um nível de generalidade no trabalho de um historiador que pode ser apropriado por professores de ciências em seu fazer docente. E este nível de generalidade pode ser assim descrito: 1- Inicialmente faz-se necessário a escolha do tema que será investigado. Este não deve ser muito amplo nem muito restrito. A questão a ser investigada dentro de determinado assunto, dependerá do enfoque, da linha de trabalho adotada. É importante que se tenha algum conhecimento prévio sobre o assunto. A pesquisa deverá ser orientada por uma hipótese de pesquisa. No caso de professores de ciência, devem-se escolher temas pertinentes à idade e ao grau de escolaridade dos alunos. Um bom caminho é aproveitar referências à história da ciência presente nos livros a fim de questioná-las e problematizá-las. 2- De acordo com as definições das questões acima, serão determinadas as fontes para a pesquisa. Estas fontes podem ser: Primárias (material original da época estudada); Secundárias (estudos historiográficos a respeito do tema pesquisado). Além de textos, livros, documentos, a historiografia contemporânea da ciência também tem utilizado material audiovisual,

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iconográfico, entre outros instrumentos. A escolha das fontes consultadas e pesquisadas dependerá em grande parte da questão posta inicialmente como motivadora da pesquisa histórica. 3- Todas as etapas do trabalho do historiador devem ser pautadas por princípios éticos, como a imparcialidade. “Toda narração histórica é uma seleção ou recorte da história.” (MARTINS, 2005, p. 315) Ao fazer suas escolhas, o historiador deve ter cuidado para não construir uma narrativa tendenciosa, omissa, transmitindo uma versão falsa da história. Não temos aqui a intenção de produzir um manual metodológico para a produção de narrativas historiográficas. O que pretendemos é apontar um primeiro passo para quem escolhe trilhar por este caminho, pois acreditamos que para o mesmo, muito estudo ainda será necessário. Diante disso, entendemos que conhecer um pouco sobre riscos e possibilidades ao se eleger a história da ciência como recurso pedagógico para abordar a NdC, pode ser um primeiro passo nesta direção. Assim sendo, torna-se fundamental aos professores compreenderem que ao mesmo tempo em que “a História da Ciência pode ser um instrumento eficiente para veicular imagens adequadas da NdC, ela é igualmente poderosa para criar e promover imagens míticas e distorcidas da ciência” (SÃO TIAGO, 2011, p. 65). Embora não seja proposta aqui que o professor de ciência se torne um historiador da ciência, quando se almeja levar uma visão informada sobre a produção científica para a sala de aula através da história da ciência o risco em de se produzir e/ou utilizar uma pseudo-história e, portanto, uma pseudociência, é grande. Pensando nisso, Allchin (2004) destaca alguns elementos mais recorrentes em narrativas pseudo-históricas, a fim de levar os não especialistas a questionar e avaliar a confiabilidade de suas fontes. Assim sendo, segundo o autor, os principais elementos deste tipo de narrativa que produz uma falsa história da ciência são: relatos romantizados; personalidades sem defeito; descobertas monumentais e individuais; insight tipo eureca; apenas experimentos cruciais; senso de inevitável; retórica da verdade versus ignorância; ausência de qualquer erro; interpretação aproblemática de evidências; simplificação generalizada ou idealização; conclusões carregadas de ideologia. O autor ainda salienta que, em uma narrativa pseudo-histórica normalmente encontra-se ausente o cenário social e cultural em que a atividade científica se desenvolve; as contingências humanas inerentes a este tipo de produção; as ideias

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antecedentes e as ideias alternativas. (ALLCHIN, 2004; FORATO, 2011; SÃO TIAGO, 2011) São vários os benefícios didáticos que podem emergir da relação entre História da Ciência e NdC. Acreditamos que ao se apropriarem destas orientações metodológicas iniciais, juntando a elas um suporte filosófico contemporâneo sobre a Ciência, professores estarão instrumentalizados para estabeleceram em suas salas de aula uma relação duradoura e comprometida com uma concepção adequada sobre a construção dos conhecimentos científicos. Concepção esta que vem sendo amplamente recomendada por diferentes áreas de saber para uma educação científica adequada, e que encontra na História da Ciência importante instrumento metodológico em direção a estes propósitos educacionais. De acordo com Matthews: Sabe-se que objetividade em história é, num certo nível, impossível: a história não se apresenta simplesmente aos olhos do espectador; ela tem que ser fabricada. Fontes e materiais têm que ser selecionados; perguntas devem ser construídas; decisões sobre a relevância das contribuições de fatores internos e externos para a mudança científica devem ser tomadas. Todas essas questões, por sua vez, sofrem influência das visões sociais, nacionais, psicológicas e religiosas do historiador. Num grau ainda maior, sofrem influência da teoria da ciência, ou da filosofia da ciência, em que o historiador acredita. Do mesmo modo como a teoria abraçada pelo cientista determina seu modo de ver, selecionar e trabalhar o objeto de estudo, também a teoria abraçada pelo historiador afetará seu modo de ver, selecionar e trabalhar o material de que dispõe. Como se diz por aí, se a filosofia da ciência é vazia sem a história, então a história da ciência, sem a filosofia, é cega. (1995, p.174)

2.3Abordagem historiográfica privilegiada por esta pesquisa Um importante aspecto que Martins (2004) traz para a discussão a respeito das possibilidades de abordagens historiográficas, é o que se refere aos modismos e tendências oriundos dessa área. O autor nos diz que alguns historiadores, vítimas de imediatismos, quando chegam a publicar algum trabalho orientado por determinada tendência, a mesma já se encontra, muitas vezes, ultrapassada. Sobre isso, o autor alerta que:

Em vez de seguir modismos, é melhor perceber a constante mutabilidade das tendências, experimentar diversos caminhos (tanto as novidades quanto os que parecem “fora de moda”) e também tentar inventar e explorar novas abordagens. (MARTINS, 2004, p. 14)

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Neste trabalho, optamos por adotar a abordagem sugerida por Roberto Machado em seu livro Foucault, a ciência e o saber, a qual, abordagem histórico-arqueológica. Inicialmente, a intenção era refletir sobre uma perspectiva historiográfica da qual não encontramos precedentes conhecidos. Apesar do pouco conhecimento sobre seus fundamentos, já era possível um desenho básico sobre o qual nos ancorar e desenvolver. Desta forma, buscamos incorporara presente pesquisa alguns pressupostos identificados, fruto de uma primeira leitura e interpretação, que tentaremos esclarecer agora. Este livro a que nos referimos é resultado de um processo no qual o autor procurou esclarecer o procedimento metodológico que Foucault

denominou

“Arqueologia”, a partir da trajetória deste conceito desenvolvida ao longo de quatro de suas obras: História da loucura, Nascimento da clínica, As palavras e as coisas e Arqueologia do saber. Ao dimensionar a epistemologia como “reflexão sobre a produção de conhecimentos científicos que tem por objetivo avaliar a ciência do ponto de vista de sua cientificidade”, o projeto epistemológico assume “a história como instrumento privilegiado de análise”(Machado, 2006, p. 7). Desse modo, sem intenção de uma exposição geral sobre a epistemologia, Foucault toma como referência uns dos principais representantes desse tipo de abordagem filosófica e histórica da ciência, a história epistemológica de Georges Canguilhem e Gaston Bachelard. Segundo Machado: Ao retomar alguns princípios da epistemologia histórica de Bachelard e Canguilhem-interessadas nas ciências da natureza e da vida-, a filosofia de Foucault produziu uma série de deslocamentos metodológicos para explicar o aparecimento das ciências do homem da modernidade. (...) se Foucault fez isso de diferentes maneiras, foi sempre com uma exigência de radicalidade teórica e política capaz de esclarecer saberes a respeito dos quais o método epistemológico tem se mostrado ineficaz e insuficiente. (MACHADO, 2006)

Aí reside uma das relevâncias desta nova abordagem historiográfica proposta, e justificativa de nossa escolha, uma vez que será na direção de esclarecer a posição que ocupam as ciências humanas entre os saberes da modernidade que a arqueologia seguirá sua trajetória. Como será impossível retratá-la aqui em todas as suas nuances e complexidade, o que propomos é assumirmos uma visão simplificada, mas não simplista, deste conceito a fim de tomarmos alguns pressupostos que consideramos pertinentes e adequados ao nosso estudo. Isto quer dizer que embora saibamos que a ausência de

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unidade metodológica se constitui em uma característica marcante desta abordagem de Foucault, pois, em cada obra a mesma foi se modificando em função do objeto estudado (MACHADO, 2006), podemos extrair da trajetória da arqueologia uma argumentação filosófica que, em muitos aspectos, vem fortalecer a própria argumentação da presente pesquisa. É importante esclarecer que esta se constitui em uma primeira tentativa de análise da referida abordagem, e uma primeira interpretação. Assim, para apresentarmos as principais reflexões trazidas pelo estudo no que diz respeito à abordagem histórico-arqueológica, devemos, inicialmente, procurar compreender as concepções do autor sobre a abordagem histórico-epistemológica. Ou seja, para melhor compreendermos a história arqueológica de Foucault é preciso entender como a mesma procurou se situar em relação à história epistemológica de Canguilhem e Bachelard, pelo menos no que diz respeito a alguns pontos fundamentais. Ocupando a história da ciência o lugar de metodologia de análise sobre a produção do conhecimento científico, vemos uma série de deslocamentos e afastamentos que marcam o surgimento de uma nova abordagem para a história da ciência. O que propomos aqui é analisar, em linhas gerais, o que pretendeu este projeto hisrórico-arqueológico a partir da reflexão sobre o primeiro importante deslocamento que identificamos, e que é determinado pela relação entre o objeto de estudo e a metodologia de análise. Assim sendo, podemos definir este deslocamento como o “desaparecimento, portanto, das categorias de ciência e epistemologia que tem como correlato o aparecimento de um novo objeto, o saber, e um novo método, a arqueologia.” (MACHADO, 2006, p. 10) Desta forma, podemos observar, grosso modo, o desaparecimento de análises centradas nas “ciências da natureza” e nas “ciências da vida”, no caso da epistemologia de Bachelard e Canguilhem, interessadas na física e na química, e na biologia, anatomia e fisiologia, respectivamente, dando lugar a uma análise centrada nas “ciências do homem”, a arqueologia de Foucault, interessada na história dos saberes. Será, portanto, no sentido de compreender o que significa este afastamento da perspectiva histórico-arqueológica em relação à perspectiva históricoepistemológica da ciência que caminharemos a partir de agora. Segundo Machado: Para a epistemologia a ciência, discurso normatizado e normativo, é o lugar próprio do conhecimento e da verdade e, como tal, é instauradora de

65 racionalidade. E se a razão tem uma história, só a história da ciência é capaz de demonstrá-la e indicar o seu itinerário. (2006, p.7)

E será exatamente esta questão da racionalidade posta pela epistemologia que irá conferir à história epistemológica da ciência um caráter filosófico sem o qual não seria possível realizar seu objetivo, ou seja, determinar a historicidade da ciência. Desta forma: “A epistemologia é, portanto, uma filosofia que tematiza a questão da racionalidade através da ciência, considerada por ela a atividade racionalista por excelência” (MACHADO, 2006, p.8). A fim de garantir maior rigor à sua análise, Foucault buscou, a partir de um exemplo que considera representativo de história epistemológica, estudá-la de modo sistemático a partir de seus conceitos fundamentais. Assim, apresentou em seu estudo discussões sobre diversos pontos, tanto de contato como de afastamento, que caracterizam o projeto arqueológico em relação ao epistemológico. Para tanto, buscou na filosofia histórico-epistemológica de Bachelard e Canguilhem relacionar os componentes mais essenciais a fim de compreendê-los e questioná-los. Como já mencionamos, não cabe ao escopo deste trabalho apresentar e discutir igualmente todos esses pontos, tanto em função do nível de complexidade exigido para isso, como em função de nossos objetivos. Sendo assim, o que nos interessa é demarcar um posicionamento clarosobre a história epistemológica da ciência em relação a questões que consideramos fundamentais para nossa análise, pois, nossa intenção é também definirmos alguns procedimentos metodológicos em relação à abordagem histórico-arqueológica, a partir do que ela difere em relação à metodologia histórico-epistemológica. Portanto, na perspectiva epistemológica analisada por Foucault,a ciência é compreendida como “uma produção cultural, um objeto construído, produzido. (...) um tipo específico de discurso: um discurso que tem pretensão de verdade” (MACHADO, 2006, p.18). E ainda, para que a história epistemológica possa dar conta da dimensão do processo científico, será preciso, obrigatoriamente, investigar a produção de conhecimentos a partir de um estudo sobre normas e regras internas, métodos e procedimentos estabelecidos pela ciência, considerados pela epistemologia como únicos capazes de produzir verdade, conhecimento e razão. E residirá nesta perspectiva de compreender a ciência como processo, a crítica da história epistemológica a uma história factual da ciência, ou seja, uma história da ciência puramente descritiva, “que apenas expõe resultados, celebra

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datas, relata descobertas, traça biografias ou procura precursores das teorias atuais” (MACHADO, 2006, p. 17). Outro ponto discutido por Machado a respeito da concepção de epistemologia expressa por Foucault em suas obras, diz respeito à relação entre ciência e progresso.Na mesma tônica de ciência como processo, Foucault entende que na concepção epistemológica de Bachelard e Canguilhem este processo é marcado pelo progresso, visto como componente essencial da/para a dinâmica da cultura científica. Sobre isso, Machado ainda considera que: “A ideia de progresso aplicada à ciência assinala o fato de o conhecimento científico se desenvolver no sentido de uma verdade e de uma racionalidade cada vez maiores.” (MACHADO, 2006, p. 27) Isso significa que, para a história epistemológica compreender a produção científica terá que buscar compreender a própria dinâmica deste progresso. A história da ciência deverá ser a narrativa desse crescimento em direção a um conhecimento cada vez mais verdadeiro, a determinação dos sucessivos valores de progresso do pensamento científico. A história epistemológica é, antes de tudo, uma história conceitual, ou seja, uma história que considera o conceito o mais fundamental entre os elementos do discurso científico. Considerando que cada conceito tem sua própria história, caberá, então, à história epistemológica, compreender e descrever a elaboração progressiva de um conceito científico. Assim, considerando a ciência como em constante progresso, o que cabe à história epistemológica é buscar, dessa forma, compreender a dinâmica deste progresso a partir de um “julgamento” do que se considerava verdade no passado, segundo normas do que se considera verdade no presente. Daí o caráter normativo deste tipo de abordagem(MACHADO, 2006; REZENDE, 2008). Embora não se constitua em foco para esta pesquisa, apenas a título de reflexão, podemos supor que em relação à análise histórico-epistemológica de recursos audiovisuais, a contribuição desta abordagem seria ainda com Machado (2006) apud Rezende (2008): confrontar o passado com o presente para revelar a atualidade ou a “defasagem” do conhecimento expresso nos filmes ou vídeos trabalhados. Estes podem ser analisados em relação à sua conformidade ou adequação aos conceitos, técnicas e teorias atuais. Pode-se discutir, por exemplo, como filmes mais antigos apresentam o conhecimento científico de sua época, e compará-lo com o conhecimento atual. (2008: 4)

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Em relação à arqueologia, como mencionamos anteriormente, seu objetivo maior reside em procurar compreender o surgimento das ciências humanas na modernidade. Para tanto, Foucault situa essa discussão filosófica de forma a neutralizar a questão da cientificidade que habitualmente orienta os projetos históricos. Se assim o fez, isso teve um sentido claro. Segundo Machado: “Foucault pretende dar conta, de um modo geral – e não mais se restringindo a uma ciência -, da problemática que sempre esteve no âmago de seu pensamento: a constituição histórica dos saberes sobre o homem” (MACHADO, 2006, p.111). Empenhado em descrever a configuração dos saberes modernos, recorreu a uma análise profunda sobre saberes clássicos a fim de compreender a ruptura que se instaurou entre estes e os primeiros. Sua tese é de que estes saberes oriundos da modernidade são compostos por três dimensões distintas: as ciências matemáticas e físicas, as ciências empíricas (ciências da vida, do trabalho e da linguagem) e a filosofia. Seu objetivo, segundo Machado foi situar a física e a matemática em uma região de saber que não a das ciências empíricas. Segundo Machado: evidenciando que o desaparecimento de uma „ciência universal da ordem‟, característica dos séculos XVII e XVIII, dará lugar tanto a uma matematização, caso da física, quanto a uma „desmatematização‟, caso das ciências empíricas e das próprias ciências humanas, ciências que só podem ser compreendidas a partir da relação que estabelecem com a temática da vida, do trabalho e da linguagem. Desse modo, o estudo dos saberes constituintes das ciências humanas leva Foucault a analisar suas relações, por um lado, com as ciências empíricas, por outro, com a filosofia moderna. (2006, p.112)

Como resultado, assistimos ao surgimento de uma nova abordagem para a história da ciência, considerada por ele ambiciosa, mas original. Considerada como o ponto de chegada de um processo, a arqueologia inscreve-se em uma trajetória da qual podemos extrair alguns pontos determinantes para nossa análise. A abordagem histórico-arqueológica se aproxima da abordagem histórico-epistemológica ao criticar uma história factual, que se limita a exposição de teorias, datas, precursores, etc. Por outro lado, ao invés de sua análise centrar-se nos conceitos, a história-arqueológica elege as formações discursivas como elemento privilegiado de análise. Ao fazê-lo, considera fundamental para uma compreensão de como as “ciências humanas têm nesses saberes empíricos e filosóficos sobre o homem suas condições de possibilidade” (MACHADO,2006, p. 158), promover articulações discursivas. Tomemos como exemplo as análises de Foucault, consideradas como o primeiro momento da trajetória da arqueologia, que tiveram a intenção de esclarecer a situação da loucura na modernidade, tendo na psiquiatria seu alvo principal. Para tanto, recorre aos saberes

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clássicos e conclui que o estatuto de louco era mais fruto de uma percepção social do que do conhecimento médico-científico. Foi analisando os saberes teóricos, mas, sobretudo as práticas de enclausuramento e as instâncias sociais – família, igreja, justiça, medicina – com elas relacionadas, e, finalmente, generalizando a análise até as causas econômicas e sociais das modificações institucionais que História da loucura foi capaz de explicitar as condições de possibilidades históricas da psiquiatria. (MACHADO, 2006, p. 53)

A abordagem histórico-arqueológica não parte do pressuposto da preeminência do progresso no desenvolvimento científico e, portanto, não pretende julgar as ciências tomando como norma a cientificidade definida pelo presente, ou seja, a abordagem arqueológica abandona os critérios de verdade definidos pela atualidade de uma ciência. O que importa procurar compreender nesta perspectiva são as condições de existência de discursos produzidos em determinada época, e como estes se articulam com saberes que lhes eram contemporâneos, científicos ou não. Neste sentido, entende-se que para a história arqueológica das ciências as dimensões extra científicas que influenciam as produções científicas são consideradas, procurando mostrar a ciência como uma produção do seu tempo(MACHADO, 2006; REZENDE, 2008). Os territórios arqueológicos podem atravessar textos literários ou filosóficos, bem como os científicos. Os “saberes”, objetos da pesquisa arqueológica, também podem estar contidos em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos etc., o que nos permite considerar os filmes como fontes ou materiais de investigação para a pesquisa histórico-arqueológica das ciências. Podemos, finalmente, afirmar que a arqueologia tem no saber seu campo próprio de análise, o que permite compreender em que sentido a ciência não é propriamente seu objeto de estudo. O saber não é uma exclusividade da ciência. O saber não está investido apenas em demonstrações, ele também pode estar em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais, decisões políticas.(...) Para a arqueologia a questão da cientificidade ou não de um discurso não tem importância (MACHADO, 2006, p. 154).

Diante do exposto, acreditamos que nossa opção historiográfica apresenta-se de acordo com o objetivo desta pesquisa, o qual discutir sobre aspectos consensuais daNdC que, em linhas gerais, apresentem a ciência como uma produção cultural e humana, que intervém e se relaciona com o meio social no qual se desenvolve.

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Capítulo 3 RECURSO AUDIOVISUAL E EDUCAÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Muitas pesquisas, nos dias de hoje, tem se dedicado a tentar compreender os fenômenos que exercem influência sobrea relação cinema/vídeo/educação. Estes estudos, consensualmente, vêm apontando para constatações segundo as quais a utilização destes recursos audiovisuais com finalidade educativa não ultrapassa a simples reprodução de modelos tradicionais de ensino-aprendizagem, que privilegiam a transmissão de informações descontextualizadas e sem metodologia apropriada, muito menos objetivos pedagógicos claros que orientem a utilização desta ferramenta por professores. (REZENDE & STRUCHNNER, 2009). Colaborando com essa discussão, Rezende (2008), especificamente a respeito dos materiais audiovisuais que abordam tema de ciências, acredita que a maior parte destes, produzidos no último século, não tem sido utilizada de forma a explorar outras potencialidades. Ficam restritos a ilustrar, apresentar ideias e conceitos científicos e, normalmente, mostrar os cientistas como seres dotados de uma inteligência superior, “donos da verdade” e da razão. Rezende ainda aponta uma possibilidade de uso desse acervo, ainda pouco explorado: discutir e ensinar a natureza e a história das ciências. Na tentativa de compreender o cenário acima descrito, e justificar a relevância da nossa pesquisa, nos voltaremos para uma história que consideramos representativa para uma análise que envolve a discussão a respeito da utilização de recurso audiovisual na educação, aqui no Brasil. Para tanto, retomaremos alguns pontos relevantes sobre este assunto, extraídos da trajetória histórica na qual se insere a fundação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE). Fundado em 1936, no governo Getúlio Vargas, o INCE, originalmente, esteve vinculado ao Ministério da Educação e Saúde Pública, cujo ministro era Gustavo Capanema. Fruto de intensos debates e articulações entre representantes de diversas instâncias da sociedade, como políticas, educacionais, culturais e até religiosas, foi o primeiro órgão estatal brasileiro com a função de sistematizar o cinema nacional, organizando, assim, sua produção, exibição e importação (GALVÃO, 2004; CARVALHAL, 2009).

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Sem dúvida, a fundação deste instituto encontra-se fortemente relacionada a um cenário político no qual se almejava o fortalecimento de uma ideologia nacionalista e centralizadora, que caracterizaram a mentalidade vigente no Estado Novo. Com isso, o INCE surgia como importante instrumento de difusão desta ideologia através de propaganda das ações de governo, nas quais eram exaltados seus propósitos políticos e ideológicos, mesmo que implicitamente. Mas, se assim se deu, não podemos negar que foi também e, sobretudo, resultado “de um processo que vinha sendo gestado, há bastante tempo, por vários educadores brasileiros”(GALVÃO, 2004, p.31), que tiveram na figura do antropólogo, médico e radialista Roquette-Pinto o seu mais expressivo militante. Esta confluência de interesses políticos e educativos pode ser claramente observada no Artigo 40 da Lei12 378 de 13 de janeiro de 1937, a partir da qual o INCE passava a existir oficialmente. Segundo o referido Artigo: Fica criado o Instituto Nacional de Cinema Educativo, destinado a promover e orientara utilização da cinematografia, especialmente como processo auxiliar do ensino, e ainda como meio de educação popular em geral. (CARVALHAL, 2009, p. 2)

Tendo em Roquette Pinto seu principal idealizador, muitos outros educadores e intelectuais, alguns deles formuladores também do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova de 1932, estiveram envolvidos nos debates que culminaram com a fundação do INCE, entre eles: Fernando de Azevedo, Joaquim Canuto Mendes de Almeida, Anísio Spínola Teixeira, Francisco Venâncio Filho, entre outros. Enunciando a transformação da sociedade a partir da reforma no ensino, estes idealistas viam na técnica cinematográfica um forte instrumento didático capaz de disseminar a cultura nacional e informar sobre conhecimentos necessários para a formação intelectual (CARVALHAL, 2009; GALVÃO, 2004; MORAES, 2007). E será sobre este caráter educativo entorno da fundação deste instituto que, por hora, nos ocuparemos. Não é recente o interesse pelo recurso audiovisual como instrumento didáticometodológico em contextos educacionais. A partir das pesquisas utilizadas como fonte por este trabalho (CARVALHAL, 2009; GALVÃO, 2004; MORAES, 2007) podemos observar que a inclusão de imagens em movimento em sala de aula não é privilégio das gerações recentes, que já nascem imersas numa cibercultura. Segundo Galvão:

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Para maiores detalhes, esta Lei encontra-se em Anexo em Galvão (2004).

71 o emprego do cinema como auxiliar na pesquisa científica e no ensino encontra seus registros em 1910, quando foi iniciada, por Roquette, a filmoteca do Museu Nacional, com o objetivo de fazer registros científicos e divulgação da ciência (...) Os documentários científicos produzidos durante a expedição Rondon, em 1912, ano em que a filmoteca do Museu Nacional já abrigava produções próprias, são considerados os primeiros filmes científicos nacionais. (2004, p.32)

Seria a partir destas experiências, então, que diversos educadores passariam a pensar de forma mais consistente sobre as potencialidades do cinema como ferramenta estratégica para os processos educativos. Nesta perspectiva, podemos destacar o educador carioca Venerando Graça, considerado pioneiro em experiências com cinema em sala de aula, fato que lhe rendeu alguns artigos sobre suas reflexões entre 1916 e 1918, na revista A Escola Primária. Registraram também suas experiências Lourenço Filho, na revista Educação, de 1927 a 1930 e Sérgio Barreto Filho, na revista Cinearte, que circulou de 1926 a 1942. Esta última, dedicando grande espaço ao cinema brasileiro, ao cinema educativo e às técnicas cinematográficas, “foi também um instrumento fundamental na estratégia de implantação da indústria cinematográfica no Brasil” (MORAES, 2004, p. 44). Mas o acontecimento mais expressivo, considerado responsável pelo grande impulso ao cinema educativo brasileiro foi a Primeira Exposição de Cinematografia Educativa, ocorrida em 1929, no Rio de Janeiro, e organizada pelos educadores Jonathas Serrano e Venâncio Filho. Realizando um apanhado histórico da trajetória do cinema, e de sua técnica, no mundo, a partir de exposição de maquinários, palestras, projeções, o evento atraiu grande público, entre ele, um grande número de educadores. A fim de criar um ambiente de acordo com as propostas que ganhavam força à época, a exposição ocorreu, intencionalmente, na Escola José Alencar, no Largo do Machado, e deflagrou uma série de referências a esta causa, por parte da Educação Pública, como podemos constatar na passagem descrita: No Boletim de Educação Pública de 1930 as implicações da exposição foram analisadas: A Exposição de Cinematografia Educativa deve marcar o início da real introdução do cinema em nosso meio pedagógico. De ora avante já não é lícito objetar que não há películas, nem aparelhos adequados e acessíveis, nem recursos fáceis para a execução de um plano sistemático de utilização das projeções animadas no ensino. O que urge, agora, é não deixar que esfrie o entusiasmo. Com boa vontade e método, poderemos ter em breve o cinema educativo em nossa capital, e porventura em todo o Brasil, em crescente êxito e de modo relativamente fácil. Tudo depende apenas de uma inteligente conjugação de esforços, em que são indispensáveis a iniciativa particular, a propaganda pela imprensa e a projeção da causa pelos poderes públicos. (GALVÃO, 2004, p.34)

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Ainda segundo Galvão (2004), impulsionado por um entusiasmo que se instaurava em relação ao cinema e suas potencialidades, em 1930, um ano após a exposição, foi decretada pelo Departamento de Educação do Distrito Federal, a utilização do cinema em todas as escolas primárias, como importante instrumento para a renovação dos processos de ensino, e para a qual instituía regulamentação pelo Decreto 2.940. Podemos destacar também, como resultado deste debate, os primeiros livros sobre cinema educativo, publicados por autores brasileiros. Em 1930 e 1931 ocorreram, respectivamente, as publicações de Cinema e Educação, cujos autores foram Serrano e Fransisco Venâncio Filho, e de Cinema Contra Cinema, cuja autoria atribui-se a Joaquim Canuto Mendes de Almeida. Em relação ao primeiro, “vemos que o projeto dos educadores não era apenas o de implantar o cinema educativo no país, mas também valorizar a produção nacional e educar os professores, que exibiam certa resistência e desprezo pelo cinema” (GALVÃO, 2004, p.39). Por esta passagem é possível constatarmos que a introdução do cinema não foi tão consensual assim no ambiente educacional e, principalmente, que já havia por parte dos autores uma preocupação com uma adequada formação para que o professorado pudesse fazer uso dos recursos de forma a explorarem suas potencialidades. Sobre o segundo livro que mencionamos, embora apresente uma abordagem diferente do primeiro, na qual seu principal argumento reside na “tese de que o cinema deve curar-se com o próprio cinema, ou seja, que o cinema educativo deve se contrapor às exibições de efeito moral que são prejudiciais a crianças e adolescentes” (GALVÃO, 2004, p.38), observamos também, por parte dos envolvidos nesta obra, a preocupação com a formação dos que farão proveito dos recursos audiovisuais com fins educativos. Preocupação que fica evidente na passagem de Lourenço Filho, educador responsável pelo prefácio do livro. Segundo ele: “Certamente, o cinema não é, na escola, um fim, mas um meio, e meio delicado, que exige aplicação cuidadosa”. Este autor ainda destaca como uma das possibilidades educacionais do recurso audiovisual retratar “o aspecto verdadeiramente humano dos episódios, a vida de outras épocas. Com isso, fornece elementos para a verdadeira compreensão histórica” (LOURENÇO FILHO, 1931 apud GALVÃO, 2004, p.38).

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Outra importante conquista nesta trajetória foi a unificação nacional da censura, que passava a adquirir caráter cultural, e não mais policial e localizado, com o Decreto 13

21.240, de 4 de abril de 1932.Com essa medida, além da centralização da censura em

órgão estatal, foi criada uma “taxa cinematográfica para educação popular” (GALVÃO, 2004, p. 46). Para os educadores, em contrapartida aos interesses da indústria mercantil cinematográfica, que produziam o “mal” cinema (grifo do autor), era fundamental, para o emprego do “bom” cinema (grifo do autor) que o estado se transformasse também em produtor. A partir daí, foi criada a Secretaria da Comissão de Censura, subordinada ao Ministério da Educação e Saúde Pública, instalada no Museu Nacional, presidida por Roquette Pinto. Com o Decreto, dois direcionamentos foram determinados: O primeiro afirmava que o documentário, seja ele de caráter científico, histórico, artístico, literário ou industrial, representava, naquele momento, um instrumento de inigualável vantagem, para instrução do público e propaganda nacional, dentro e fora do país. No segundo, os filmes educativos eram considerados materiais de ensino, visto que permitiam a assistência cultural, com vantagens especiais de atuação direta sobre as grandes massas populares e, mesmo, sobre analfabetos. Foi também graças a essa lei que muitos filmes nacionais puderam ser produzidos com a aquisição de novos aparelhos, a indústria exibidora teve o seu desenvolvimento facilitado e foi incrementado o número de salas de exibição no país.(GALVÃO, 2004, p.46)

Graças às taxas cinematográficas, diversas iniciativas foram financiadas, como a Revista Nacional de Educação (RNE), a Filmoteca Nacional do Ministério da Educação e Saúde Pública, o Serviço de Filmes Técnicos, na Secção de Assistência ao ensino do Museu Nacional, e muitas outras produções nacionais. Foi neste clima de otimismo em torno do cinema como recurso didático e de sua crescente institucionalização que: Com base no movimento dos educadores e no decreto 21.240 de 1932, que previa também a necessidade de se criar um órgão para o cinema educativo, abrangendo ao mesmo tempo os processos técnicos modernos aplicáveis ao ensino e à educação do povo, Roquette- Pinto elaborou, em 1936, o projeto 14 de lei que organizou o Instituto Nacional do Cinema Educativo. (GALVÃO, 2004, p.51)

Assumindo uma posição estratégica tanto para a educação brasileira como para consolidação do cinema brasileiro, a história do INCE pode ser dividida em duas fases relevantes e distintas. Segundo Carvalhal (2009), a primeira corresponde aos dez primeiros anos do Instituto, nos quais Roquette- Pinto esteve na direção, que durou de 13 14

Para maiores detalhes, este Decreto encontra-se em Anexo em Galvão (2004). Para maiores detalhes, este Projeto de Lei encontra-se em Anexo em Galvão (2004).

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1936 a 1946 e a esta fase atribui-se a tentativa de consolidar o caráter educativo do Instituto, e será sobre ela que nossa análise recairá. A segunda, de 1947 a 1966, ano de extinção do Instituto, após várias transformações, foi marcada, entre outras questões, pelo caráter comercial atribuído às produções, em detrimento do apelo educativo. Embora, nesta fase, tenha sido extremamente relevante a influência de Humberto Mauro nas produções, pois, após a saída de Roquette, Humberto pode, com mais autonomia, imprimir sua marca. Assim, os temas científicos foram dando lugar ao homem rural, à diversidade cultural, à regionalidade, marcando um tempo conhecido como Brasil “ordinário” (grifo da autora) (CARVALHAL, 2009, p.4). De qualquer forma, o que compreendemos é que gradativamente o INCE foi perdendo força no cenário educativo em detrimento de um caráter mais comercial, industrial, que vinha sendo atribuído às produções. Em entrevista concedida em 1997à pesquisadora Sheila Schvarzman, e transcrita por Carvalhal (2009), podemos perceber uma descrença no potencial educativo dos filmes a partir de um trecho do depoimento de Paschoal Leme, responsável pela elaboração dos roteiros dos filmes nessa segunda fase. Segundo Leme: “a boa educação se dá na sala de aula, com professores bem preparados e remunerados, e alunos bem alimentados” (SCHVARZMAN, 2004, p. 108 apud CARVALHAL, 2009). Pelo fato de nossa pesquisa apresentar limites de temporalidade, não nos ocuparemos em discutir a trajetória do INCE após 1946, mesmo considerando esta segunda fase determinante para esta compreensão em sua totalidade. Marcado pela mentalidade progressista de Roquette, que via na educação o único caminho para a transformação do homem, e grande entusiasta de temas relacionados à medicina, fisiologia, antropologia e etnografia, nos primeiros dez anos preponderaram as produções que abordavam temas científicos dirigidos, em sua maioria, por Humberto Mauro. Em relação a essas produções, podemos classificá-las como: (1) Documentários Oficiais, que se dedicavam a divulgar ações sanitárias do governo; (2) Documentários relacionados à produção industrial voltada para a saúde; (3) Documentários científicos, mais voltados para o público universitário. Estes, normalmente, recebiam consultoria de pesquisadores renomados, como Carlos Chagas Filho, Miguel Osório de Almeida, Evandro Chagas, entre outros. Sobre este período, Carvalhal destaca que: A recorrência desses temas procurava ressaltar a contribuição dos cientistas, a variedade das espécies da fauna e flora, os grandes heróis da nação, as soluções técnicas. Através do INCE, o Ministério da educação e Saúde

75 afirmava o quanto era moderno. As atividades do órgão eram divulgadas na hora do Brasil e em publicações destinadas aos professores. A estrutura fílmica era quase sempre a mesma: introdução, desenvolvimento e conclusão, com uma narração didática, de cunho histórico, ilustrada com mapas, bustos, retratos e monumentos, editados com música clássica e folclórica. A locução dos primeiros filmes foi realizada pelo próprio Roquette. Os roteiros apresentam um país harmonioso. A história era inquestionável e a ciência estava aliada ao civismo. (CARVALHAL, 2009, p.5)

Esta primeira fase foi considerada o auge do Instituto que, além da influência e credibilidade de Roquette, contava com a mobilização de diversos educadores, intelectuais e cientistas em torno da causa. Estima-se que neste período foram produzidos 252 filmes, fora os que eram importados. Como mencionamos anteriormente, os temas eram variados, mas sempre com o objetivo de exaltar a nacionalidade, mostrar o Brasil e suas riquezas, o homem primitivo como marca da identidade nacional, as descobertas científicas, a diversidade cultural. Segundo Schvarzman (apud Carvalhal 2009, p.4) esta fase foi chamada Brasil “extraordinário” (grifo da autora) e chamou a atenção de produtores cinematográficos internacionais para os quais o Brasil enviou muito das suas produções, como: Veneza, Chile, Uruguai, França, Japão, Estados Unidos, Dinamarca, Colômbia, Portugal, Suíça, Paraguai, Argentina e alguns países da Ásia, sendo assinado, inclusive, um acordo15para reduzir as taxas alfandegárias e facilitar o intercâmbio entre eles desde que os filmes fossem educativos ou de propaganda (CARVALHAL, 2009; GALVÃO, 2004). Desde o início, em sua estrutura, o INCE, além das ações responsáveis pela organização técnica e administrativa, era constituído também por uma seção voltada para instrução e apresentação para professores. Além da entrada em diversas feiras, congressos, inclusive internacionais, universidades, ilustrar palestras, muitas ações e estratégias foram desenvolvidas com o intuito de incluir o recurso audiovisual na educação básica. Ocorriam seções diárias de exibição voltadas para os professores e para o público escolar, onde, em sua maioria, eram de escolas públicas. Marcadas pelo ideal de Roquette-Pinto, também compartilhado por Humberto Mauro, essas produções não eram compatíveis com o currículo escolar formal, pois, ambos concebiam a educação de forma mais ampla, relacionando-a a uma cultura letrada que só a partir da inserção dos sujeitos nas artes, na música, no conhecimento de sua própria cultura, poderiam evoluir na sociedade. Para Roquette “o educativo não era apenas didático e pragmático, mas um saber cultural elevado através das artes, da ciência e das letras” 15

Para maiores detalhes sobre os termos deste acordo, ver Anexo em Galvão (2004).

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(CARVALHAL, 2009, p.11).Nesta ótica, a fim de disseminar este ideal, muitos filmes eram copiados gratuitamente para as escolas com o objetivo de serem utilizados de forma a complementar o ensino, e não substituí-lo, “sendo visto como produto de cultura, de instrução e apreensão da realidade”(CARVALHAL, 2009, p.6). Embora esta fase tenha sido marcada por grande motivação a respeito dos benefícios do recurso para a educação, parece que este interesse pelo filme se consolidou apenas nas classes de intelectuais, políticos, cineastas, pois, passada a euforia, professores continuavam a apresentar uma postura de desconfiança e desinteresse pelo recurso como instrumento metodológico. Ao analisar a pesquisa de Carvalhal (2009), que se debruçou em diversas fontes primárias e depoimentos orais de pessoas que estiveram ligadas ao INCE neste primeiro período, podemos apreender, em linhas gerais, algumas questões que nos sugerem as causas deste desinteresse anteriormente descrito. Podemos, então, dividir estes fatores em duas categorias: uma, de natureza objetiva, tem nas questões orçamentária e organizacional o cerne do problema; outra, de natureza subjetiva, diz respeito à forma de conceber a metodologia de utilização dos recursos em prol de ideais pedagógicos. O que fica claro na seguinte passagem do estudo que nos serviu de referência: Apesar de o ideário do INCE fosse levar uma imagem moderna do Brasil, na realidade, o país tinha muitos obstáculos a enfrentar, o que gerou uma série de dificuldades e contradições para a efetivação dos resultados que se esperava do órgão. Com todo o prestígio que gozava no Ministério da Educação e Saúde Pública nos primeiros anos de funcionamento, e mesmo prolongando sua existência por trinta anos, muitos foram os problemas de comunicação, investimento, diferenciação cultural e regional, falta de recursos econômicos e humanos, além das dúvidas sobre a eficácia do cinema na educação. (CARVALHAL, 2009, p.7)

De fato, ao analisar registros da época, principalmente documentos do Arquivo Gustavo Capanema, Carvalhal (2009) nos traz algumas informações importantes sobre estas questões. Apesar de bem aparelhado no que se refere às instalações e equipamentos cinematográficos, pois à época de sua fundação o “governo destinou quatrocentos mil réis para cobrir as despesas do Instituto” (GALVÃO, 2004, p.61), não tardou a perceberem que, para a manutenção do vultoso projeto que almejavam, a verba seria insuficiente. Portanto, a trajetória do INCE foi marcada também pela escassez orçamentária em função do alto custo exigido por parte de suas produções. Um dos exemplos era o preço elevado dos filmes virgens importados. Isso dificultava o acesso principalmente pelas escolas, pois, apesar de algumas terem recebido projetores, pelo

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menos no início, teriam que comprar os filmes virgens para solicitarem as cópias. Situação que só se agravou, pois, mais tarde, já em 1944, para que uma escola adquirisse um projetor teria, ela mesma, que efetuar o pagamento, mesmo que parceladamente (CARVALHAL, 2009). Outro fato apontado pela pesquisadora sobre a relação do INCE com as escolas, foi que não havia uma boa comunicação entre Secretarias e escolas com o Instituto, o que dificultava uma análise da situação real das escolas e do impacto dos filmes nas mesmas. Segundo Carvalhal, “as Secretarias de Ensino não respondiam aos questionários sobre as condições e quantidade de equipamentos cinematográficos disponíveis” (2009, p.7). Por outro lado, a mesma autora também aponta que alguns dos profissionais do Instituto não tinham a mesma crença no potencial educativo dos recursos audiovisuais, o que acabou também prejudicando o atendimento e atenção oferecidos às escolas e professores. A questão regional também foi mencionada na perspectiva de que a região sudeste era privilegiada em relação às atividades do INCE, tendo o norte e nordeste pouquíssimo acesso às mesmas. A segunda categoria de fatores que podem explicar a indiferença muitas vezes apresentada por professores diante da novidade diz respeito à forma como foi tratada a metodologia para apropriação dos recursos pelos professores, por aqueles que os produziam, exibiam e distribuíam. Era de se esperar que esta introdução da imagem em movimento nos contextos educacionais, até então permeados apenas por imagens estáticas, como nos livros didáticos, marcasse também uma mudança na metodologia pedagógica empregada. Mas, de fato, isto não ocorreu. Neste sentido, o que se via era a predominância de uma mentalidade que concebia os alunos como receptores passivos de mensagens as quais não tinha “capacidade de discernimento, captando toda a carga emocional e ideológica da mensagem do emissor” (CARVALHAL, 2009, p.8), neste caso, o professor. Para os organizadores do INCE, bastava que entregassem junto ao filme um roteiro, um resumo com as principais ideias que deveriam ser literalmente transmitidas pelo professor. Desta forma, Os filmes do INCE eram passados aos alunos como “encarnação de verdades científicas”, sem abrir espaços para interrogações, pensamento comum às teorias da época. Isso sugere que não havia, portanto, um manual de orientação pedagógica sobre os assuntos exibidos, tampouco formação docente ao uso. (CARVALHAL, 2009, p.8 apud FRANCO, 2004)

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De certa forma, esta constatação reflete, também, a ideologia de Roquette-Pinto que, durante os dez anos que esteve à frente do Instituto, predominou. Nesta ótica, aos meios de comunicação era atribuída a incumbência de “moldar a mente dos educandos” (CARVALHAL, 2009, p.10), intervindo, assim, no meio educacional como transmissores da modernidade. Ao passo que, atualmente, as teorias de comunicação e educação tendem a atribuir mais ao uso e apropriação adequados destes recursos a possibilidade de transformação social. Além das questões mencionadas, havia a falta de habilidade de professores para manusearem os equipamentos, havendo pouca assistência técnica disponível para orientá-los quanto a isso. Assim sendo, segundo um dos depoentes da pesquisa de Carvalhal (2009) que vivenciaram este período, muitas escolas mantinham seus projetores guardados sem nunca terem sido utilizados. Pela confluência de todos estes fatores, grosso modo, podemos supor que para o INCE seria impossível realizar as transformações na educação como idealizaram, a partir do uso do filme como um fim em si só. Pois, “projetar um filme como ilustração e utilizá-lo apropriando-se de seu conteúdo e linguagem são coisas completamente distintas” (CARVALHAL, 2009, p.9). Diante disso, voltamos ao cenário inicialmente descrito, e a ele incluímos uma reflexão trazida por Carvalhal, a qual podemos atribuir sua motivação em investigar “por que o cinema educativo não consolidou seu papel funcional para que fora criado? Até que ponto a herança cultural proveniente do passado contribuiu para a formação de uma cultura áudio-imagética escolar?” (CARVALHAL, 2009, p.2) .Segundo a pesquisadora: o cinema na escola, atualmente, é inadequadamente utilizado, potencializado, muitas vezes, de forma ilustrativa para preencher „espaços vazios‟ (grifo da autora), sem realizar reflexão sobre a herança cultural proveniente do passado. (2009, p.1)

Assim, sem intenção de apontar erros e acertos, o que buscamos é tentar compreender uma dinâmica complexa, muitas vezes contraditória, pois, envolve interesses distintos, inseridos em contextos sociais também distintos. Se por um lado produções são influenciadas por determinados fatores, demandas sociais e culturais são frutos de outros. Como exemplo podemos citar a colocação de Franco (1987) apud Carvalhal (2009) segundo a qual a prioridade de uma reforma educacional nas décadas

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de 1930 e 1940 deveria ser, antes de tudo, construir escolas e aumentar o índice de escolaridade que, neste período, era em torno de 25%, onde os mais beneficiados faziam parte da elite urbana. Portanto, na opinião de Franco, “a inserção do cinema nas décadas de 1930 e 40 foi um recurso sofisticado demais” (FRANCO, 1987, p. 32 apud CARVALHAL, 2009, p.9). Assim sendo, acreditamos que para uma análise ampla de imagens devam ser considerados diversos aspectos envolvidos tanto em sua produção quanto relacionados aos contextos sociais nos quais são utilizadas. E uma formação de professores voltada para a “educação do olhar” sobre esses recursos, considerando esses diferentes aspectos, pode ser um caminho para a inclusão dos mesmos no meio educativo de forma a superar o modelo inadequado que vem sendo apontado por diversas pesquisas e, assim, “potencializar esta comunicação emancipatória.” (CARVALHAL, 2009, p. 12) Neste momento, não nos preocupamos em discutir as questões políticas que estiveram presentes nesta trajetória até aqui apresentada. Nosso interesse foi mais em datar esta discussão a partir de uma demanda educacional em relação à utilização do recurso audiovisual em ambientes educativos, no Brasil. Para tanto, nos limitamos em apresentar alguns acontecimentos relevantes antes da fundação do INCE, e a discutir sobre os primeiros dez anos do Instituto, conscientes de que muito sobre essa trajetória não foi apreendido pela nossa pesquisa. Embora saibamos que não há como dissociar as motivações políticas e o caráter educativo que o INCE procurou privilegiar nesta primeira fase, optamos por tecer maiores comentários sobre este aspecto político, intrinsecamente relacionado à fundação do INCE, no capítulo dedicado à contextualização da época em que o filme-objeto desta pesquisa foi produzido, o ano de 1945.

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Capítulo 4 PERSPECTIVAS METODOLÓGICAS

Esta pesquisa consiste, basicamente, em submeter à análise fílmica um documentário, produzido em 1945, pelo INCE. A partir da análise de seus enunciados, pretendemos elaborar reflexões a cerca das contribuições de filmes científicos de arquivo ao ensino-aprendizagem da história e da natureza da ciência. Nossos procedimentos serão no sentido de desenvolver algumas condutas consideradas básicas no que diz respeito a uma proposta de análise fílmica. Estas condutas estão relacionadas a uma pesquisa ampla que envolve o filme e seu contexto de produção, em direção a uma hipótese de trabalho, previamente estipulada pelo analista. Consideramos que estes procedimentos vão de encontro a uma das premissas desta pesquisa, segundo a qual “analisar um filme é também situá-lo num contexto, numa história” (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.23). Nossa hipótese de trabalho, ou seja, o eixo da nossa pesquisa é a possibilidade de desenvolver um olhar historiográfico para o filme, que nos possibilite analisá-lo de acordo com a abordagem histórico-arqueológica. Em função deste eixo, desenvolveremos as etapas necessárias para o desenvolvimento da pesquisa tais como, pesquisa documental sobre a história da Lepra/Hanseníase a partir de questões e informações colocadas pelo filme que, neste caso, nos serve como “filtro” disparador de questionamentos. A partir desta pesquisa, teremos subsídios para proceder à análise historiográfica proposta. “Combate à Lepra no Brasil”, tem como objetivo divulgar a rede de leprosários, dispensários e preventórios que surgiam no país como as principais instituições responsáveis pelo isolamento dos acometidos pela doença, com finalidade de tratamento e prevenção. Este fato pode ser claramente observado ao assistirmos o filme, pois este propósito é assumido tanto na narrativa quanto nas imagens que a acompanham. Desta forma, o que pretendemos, inicialmente, é proceder a uma análise geral, que procure compreender de que forma as escolhas estéticas e narrativas, observadas no filme, pretendem produzir determinados efeitos no espectador. Não temos a pretensão de esgotar essa direção de análise, mas buscar alguns elementos que possam iluminar a análise historiográfica. Nosso eixo de análise, ou seja, nossa hipótese de pesquisa, é que tais escolhas têm a finalidade de convencimento, de persuasão, de disseminar uma ideia

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que, inclusive, e principalmente, sabemos que já era motivo, naquela época, de discussões e controvérsias na comunidade científica. Nossa análise geral irá proceder à luz de referencial específico, sendo este aportado principalmente pelo livro “Ensaio Sobre Análise Fílmica”, de Francis Vanoye e Anne Goliot-Lété (1994). Escolhemos este estudo pelo fato do mesmo apresentar condutas consideradas básicas para qualquer atividade de análise fílmica, como já mencionamos, pois, segundo os autores, este processo está sempre vinculado a uma demanda, a um contexto, que irá definir seus eixos e suas hipóteses de trabalho. Assim, considerando a análise fílmica fruto de uma demanda específica de um contexto, normalmente institucional, torna-se fundamental para o produto final, delimitá-lo, pois isso “permite esboçar, pelo menos em parte, seus limites, suas formas e seus suportes, seus eixos” (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.10). O analista, em função desta demanda, então, não se comporta como um “espectador comum” (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p.11), pois, diante do filme, sua intenção será estabelecer critérios para suas observações e organizá-las de modo a confirmar ou desconsiderar sua hipótese de pesquisa. Diante disso, iremos definir nossas etapas de trabalho a partir de alguns princípios expostos no estudo referido, que tentaremos descrever a partir de agora. Primeiramente, os autores consideram fundamental a delimitação clara e objetiva, por parte do analista, do eixo, da hipótese da pesquisa. A partir desta definição, todo o trabalho que se segue será no sentido de desenvolver duas tarefas consideradas obrigatórias pelos estudiosos citados, e que as denominam como Desconstrução e Reconstrução do filme. Ao ato de desconstruir, eles definem como sendo o esforço do analista em descrever o filme em seus recursos específicos, seja do visual, do sonoro, do audiovisual, do conteúdo, do contexto de produção. Assim, ao analista será possível examinar o filme, a fim de “estender seu registro perceptivo” (VANOYE e GOLIOTLÉTÉ, 1994, p. 12), a partir de um processo de decomposição deste. Segundo os autores: Analisar um filme ou fragmento é, antes de mais nada, no sentido científico do termo, assim como se analisa, por exemplo, a composição química da água, decompô-lo em seus elementos constitutivos. É despedaçar, descosturar, desunir, extrair, separar, destacar e denominar materiais que não se percebem isoladamente “a olho nu”, pois se é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto, do texto fílmico para “desconstruí-lo” e obter um conjunto

82 de elementos distintos do próprio filme. Através dessa etapa, o analista adquire um certo distanciamento do filme. Essa desconstrução pode naturalmente ser mais ou menos aprofundada, mais ou menos seletiva segundo os desígnios da análise. (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 15)

Já a reconstrução seria a interpretação, por parte do analista, atribuindo um novo significado ao filme, à luz de sua hipótese de pesquisa. Essa etapa consiste, basicamente em “estabelecer elos entre esses elementos isolados, em compreender como eles se associam e se tornam cúmplices para fazer surgir um todo significante (...). O analista traz algo ao filme; por sua atividade, a sua maneira, faz com que o filme exista” (VANOYE e GOLIOT-LÉTÉ, 1994, p. 15). Assim sendo, nossa metodologia de trabalho pode ser definida da seguinte forma:

inicialmente

devemos

delimitar

nosso

eixo

de

análise,

ou

seja,

nossa(s)hipótese(s) de trabalho, o que, segundo Vanoye e Goliot-Lété (1994), é indispensável para o enquadramento da análise, pois, todas as observações realizadas ao longo deste processo serão organizadas em função dos eixos privilegiados pelo trabalho. Após esta delimitação, partiremos para o que os autores chamam de Desconstrução/Reconstrução do filme, um importante processo de análise com o objetivo de confirmar ou reconsiderar a hipótese de trabalho. Nossa intenção aqui é tecer uma rede de significados entre o conteúdo apresentado pelo filme, os recursos audiovisuais escolhidos e os dados obtidos em nosso levantamento documental, em direção a nossa hipótese de pesquisa, ou seja, em direção a uma análise historiográfica segundo a abordagem histórico-arqueológica. Acreditamos que isso será possível a partir da descrição do filme em suas especificidades como, tipo de imagens, de narração, de som, entre outras, paralelamente a uma interpretação sobre as intenções e os motivos para tais escolhas. Diante disso, precisamos esclarecer, e delimitar, alguns procedimentos metodológicos fundamentais para o desenvolvimento da análise historiográfica proposta, tendo em vista nossos referenciais teóricos, pois, estes procedimentos constituem a etapa de desconstrução do filme. Para tanto, resgatamos aqui um dos objetivos deste trabalho: proceder à análise histórico-arqueológica do filme Combate à Lepra no Brasil. Assim sendo, iremos descrever a pesquisa histórica necessária a esse tipo de abordagem da História da Ciência.

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Para uma análise histórico-arqueológica, devemos partir do princípio segundo o qual o progresso não é pressuposto para a ciência. O mais importante para procedermos a este tipo de análise, como já mencionamos, é procurar entender as condições de possibilidades (MACHADO, 2006) do filme, o que o tornou possível na época em que foi produzido, que discursos científicos ou extra científicos orientaram os enunciados presentes no filme, o que existia na época em que o filme foi feito e que o informou, condicionou, a que saberes “extra científicos” se articulava, como, por exemplo, projetos estatais, governamentais ou institucionais. Para proceder a esta análise precisamos olhar a contemporaneidade do filme, seu contexto de produção, os saberes que lhe são contemporâneos. Assim sendo, nossa pesquisa documental também terá a função de elucidar esses aspectos inerentes à época em que a produção ocorreu como aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais. Neste sentido, Rezende considera que: Uma análise arqueológica dos filmes de divulgação científica do INCE, por exemplo, apontaria como essa produção se articulava a projetos “extra científicos” estatais, ou como estes filmes não são meramente “versões” cinematográficas do conhecimento científico, uma vez que expressam dimensões sociais da produção científica que são importantes para compreender como a ciência se relaciona com a política, a sociedade, a cultura e o poder na contemporaneidade que lhe é própria (2008, p. 5).

É importante ressaltar que consideramos a importância de se trabalhar com filmes ou vídeos de arquivo para além do que normalmente os mesmos vêm sendo utilizado, segundo Rezende (2011),apenas para ilustrar fatos e transmitir conhecimento. Neste trabalho concebemos filmes antigos como documentos históricos, registros de determinado momento, segundo determinada maneira de entendê-lo. E é este caráter reconstitutivo de filmes de arquivo que pretendemos explorar e analisar neste trabalho. De acordo com Ferro (1992) apud Rezende (2011): Filmes não são “matérias inertes”, neutras, mas discursos em que podem ser identificados aspectos relativos, por exemplo, às normas internas de produção científica de uma época. Isso implica tanto em um trabalho analítico sobre as “versões” da história presentes nos filmes, como na definição clara do contexto, das perspectivas e dos pressupostos que se articulam para a construção do filme e do que nele é visível ou não. Tais cuidados visam à evidenciação de que nunca se trabalha com a História como um todo, mas com recortes e análises que dependem dos objetivos e das ferramentas do analista, seja ele pesquisador ou professor de ciências. (p.2)

Essas considerações permitem pensar que métodos análogos aos desenvolvidos pelos historiadores para a escrita da história podem ser incorporados ao uso de filmes e

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vídeos no ensino de história da ciência. Ainda que não caiba aqui uma discussão sobre as especificidades do trabalho do historiador, podemos dizer que este é marcado por uma atividade de análise, de montagem e desmontagem dos documentos fontes da história, inclusive quando estes são documentos audiovisuais. Ainda que não seja viável que o professor de ciências seja também um historiador das ciências, o conhecimento de alguns desses métodos é pertinente para que o ensino da história da ciência não ocorra apenas de forma a reproduzir os conteúdos dos livros. Os filmes científicos de arquivo são fontes vivas no que diz respeito a este ponto, se considerarmos que uma análise historiográfica que os utilize como fonte deve proceder pela sua desmontagem e remontagem, pela pesquisa de fontes exteriores ao filme que iluminem seus próprios pressupostos. Sem uma pesquisa de tal natureza, fica difícil levar a análise para além daquilo que o próprio filme apresenta e, portanto, fazer surgir dados e discussões sobre a natureza da ciência, sobre os conteúdos da história da ciência considerados relevantes ou sobre a maneira como ela é escrita e ensinada, por exemplo. Diante do exposto, iremos apresentar a pesquisa documental necessária para procedermos às análises propostas por este trabalho, nos três capítulos a seguir: No primeiro capítulo, intitulado Da Lepra à Hanseníase: uma trajetória de estigma, omissão e assistencialismo, iremos desenvolver uma pesquisa histórica, a partir de diversas fontes documentais, que nos leve a compreender as razões da produção de um estigma, vinculado historicamente à doença, assim como a trajetória da pesquisa médica em relação à doença, principalmente no que diz respeito à prevenção e ao tratamento da lepra/hanseníase. Este é o tema central do filme e esperamos, com esta pesquisa documental, discutir sobre as questões propostas por este trabalho, tais como, compreender se tais medidas pronunciadas estariam de acordo com a atualidade do conhecimento científico para o tratamento da lepra/hanseníase, disponível na época de produção do filme, ou estaria priorizando metas do governo. Em última análise, discutir sobre a natureza da ciência a partir de elementos que nos levem a compreender a influência dos contextos nos quais as produções de divulgação científica são realizadas. Após este momento, em capítulo intitulado O Filme e sua época, desenvolveremos uma pesquisa histórica que nos possibilite compreender, levando em

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conta diferentes aspectos, a época em que o filme foi produzido. O objetivo desta etapa da pesquisa será contextualizar o filme, a partir de sua inserção em um cenário mais amplo, onde aspectos sociais, econômicos e políticos, por exemplo, são considerados. Será relevante, neste momento, considerarmos algumas questões de caráter político envolvidas na fundação do INCE. Finalizando a apresentação de nossa pesquisa documental, no capítulo intitulado O Filme e suas escolhas partiremos para a descrição do filme, propriamente. Assim, nossa conduta será no sentido de descrever o filme em relação aos seus recursos estéticos e/ou narrativos, assim como sua linha argumentativa, ou seja, descrevê-lo também em relação ao seu conteúdo, seus enunciados. O objetivo desta descrição, em última instância, é fornecer dados que subsidiem a compreensão de como todos esses fatores que fazem parte da produção fílmica se organizam, e até mesmo se complementam, tendo em vista uma demanda específica, intencional. Acreditamos que esta pesquisa documental será capaz de subsidiar a análise proposta, uma vez que nos fornecerá dados sobre aspectos científicos relacionados ao tratamento da lepra/hanseníase na época da produção do filme e, ainda, dados relacionados a aspectos extra científicos envolvidos no tratamento da lepra/hanseníase, tais como a produção histórica de estigma, motivações religiosas, políticas, interesse econômico de grupos em detrimento de outros, aspectos considerados por este trabalho suficientes para procedermos à análise historiográfica e, consequentemente, para refletirmos sobre a natureza do trabalho científico.

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Capítulo 5 ANÁLISE FÍLMICA – A DESCONSTRUÇÃO

5.1- Da lepra à hanseníase: uma trajetória de estigma, omissão e assistencialismo Neste capítulo pretendemos traçar uma trajetória da doença em relação à evolução do tratamento e das pesquisas médicas. Como parte do processo de desconstrução do filme, a intenção é confrontar os dados provenientes desta pesquisa documental com as medidas enunciadas pelo filme. Em suma, este levantamento documental pretende gerar dados suficientes para procedermos a uma análise historiográfica seguindo a abordagem arqueológica, que esteja de acordo com nossos referenciais teóricos e com nossas perspectivas metodológicas, ambos apresentados e discutidos anteriormente. Diante do exposto, inicialmente, será preciso voltar a um período bem anterior ao da produção do filme, a fim de situarmos algumas questões consideradas importantes para compreendermos o cenário apresentado à época do filme. É importante ressaltar que uma das questões a que nos referimos, diz respeito à produção de um estigma que esteve atrelado à doença durante toda sua trajetória, não só em relação às pesquisas médico científicas, mas, principalmente, em relação às medidas adotadas visando um tratamento adequado. Em trabalho que procura descrever historicamente aspectos da evolução do diagnóstico, tratamento e controle da lepra/hanseníase, da Antiguidade ao século XX, Cunha (2002) aponta que as primeiras referências, a partir de descrições da doença, datam do século sete a.C., na Índia e Egito. Outra importante constatação sobre antecedentes na história da doença, mencionada pela autora, diz respeito às citações bíblicas, nas quais a “lepra” está sempre relacionada a problemas de pele, e como sendo algo anormal e ameaçador. Em relação ao tratamento da lepra/hanseníase na Antiguidade, o que podemos observar é que o mesmo ficava sempre sob responsabilidade de sacerdotes e instituições religiosas. Esta realidade pode ser explicada pelo fato da doença, por muito tempo, ter sido considerada fruto de pecados, de mazelas morais, fraquezas de caráter, da mesma forma que outras patologias, como

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exemplos, a sífilis e a loucura. Nestes casos, o tratamento era da alma, que necessitava ser purificada por meio de sacrifícios. Segundo a autora, para que houvesse esta necessária purificação, normalmente ocorriam “rituais que incluíam desde a queima de objetos pessoais até o contato direto do doente com o que se julgava puro, assim como um pássaro, a manjerona, a água ou a madeira de cedro” (CUNHA, 2002 apud CHUORAQUI, 1978, p. 236). Na opinião de Maciel (2007), defendida em sua tese de doutoramento, na qual seu foco, embora estivesse centrado nas políticas públicas de combate à lepra no Brasil entre 1941 e 1962, desenvolveu um rico trabalho de pesquisa em torno da história da doença, a origem do apelo social e estigmatizante, que acompanham os doentes até os dias de hoje, estaria vinculada a estes episódios da trajetória histórica da doença, em que a moléstia esteve relacionada a aspectos de religiosidade. Sobre isso, ela nos diz que “parte da construção que vê no leproso objeto de exclusão e, ao mesmo tempo, de piedade está ligada à tradução da Bíblia da língua hebraica para o grego e, consequentemente, à herança judaico-cristã recebida pelo Ocidente” (MACIEL, 2007, p. 28). Em relação ao tratamento da lepra na Antiguidade, Monteiro (1995) reafirma que todas as medidas que visavam livrar o doente das manifestações da doença, ou ao menos amenizá-las, eram baseadas, unicamente, no argumento da punição divina. Argumento que resistiu por centenas de anos e que determinou de maneira significativa a principal medida de tratamento da doença, baseada na exclusão dos doentes em instituições denominadas lazaretos. Podemos observar o fortalecimento desta medida já na Idade Média, período em que ocorreu um grande aumento no número de casos da doença, chegando a ser considerada uma endemia. Cabe ressaltar que o nome da instituição provém de ritual religioso bastante comum em épocas passadas, o qual consistia na prática de invocar “santos” para atuarem na cura das enfermidades que, muitas vezes, recebiam o nome destes santos. Assim, a lepra recebeu, entre outras designações, a de “mal de São Lázaro”, e as instituições para o tratamento dos enfermos, lazaretos. Sobre este aumento significativo de casos na Idade Média, em que a doença teria se tornado uma endemia, Cunha (2002) atribui, principalmente, à disseminação da lepra/hanseníase na Europa, e nos aponta duas questões que foram determinantes. Uma

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refere-se às más condições de higiene e alimentação, fruto do rápido crescimento das cidades medievais. Outra, diz respeito ao movimento das Cruzadas: ao permanecerem por décadas no Oriente Médio, onde muitos casos da doença eram identificados na época, os cruzados retornavam para casa trazendo consigo a lepra. Compartilhando essa ideia, Maciel (2007) aponta que o horror existente em torno da doença, teria sido ampliado pelas cruzadas, que contribuiu definitivamente para a solidificação da lepra/hanseníase na Europa Ocidental. Ainda afirma terem existido cerca de 19 mil leprosários na Europa, durante a época medieval até início da época moderna. Outro argumento coincidente entre as autoras, sobre a ocorrência desta proliferação da doença, diz respeito ao fato de que a lepra/hanseníase, embora já existisse nesses dois períodos destacados, Antiguidade e Idade Média, era comumente confundida com outras doenças de pele, como escarlatina, sífilis, dermatoses, entre outras. Atribui-se, também, a essa dificuldade dos médicos medievais em identificar aspectos peculiares e determinantes da doença, como sintomas, etiologia e transmissibilidade, o grande aumento dos casos ocorrido neste período medieval. De acordo com Mizzuno (2008), um dos principais argumentos de transmissão da doença na Idade Média era o da hereditariedade, baseado unicamente em observações simples, uma vez que muitos filhos de leprosos acabavam acometidos pela doença. Para a autora, este foi mais um argumento que surgia a partir da construção simbólica cristã sobre a lepra, reforçando a ideia de impureza não só espiritual, como material, na qual os filhos dos doentes também seriam objetos de castigo e redenção. A medicina da época considerava relevante apenas as questões relacionadas às condições de higiene, desconsiderando a transmissibilidade a partir de migrações, atividades de comércio, cruzados. Desta forma, nesta época, era normal encontrar referências a uma cura espontânea da doença, associada a melhorias das condições de higiene e moradia. Existiam, inclusive, duas classificações da doença, uma referia-se a “lepra verdadeira”, outra, a “lepra falsa”. Atribui-se a um abade alemão, Santo Hildegardo, o mérito de descrever a doença com maiores detalhes, o que, mais tarde, tornou possível o diagnóstico diferenciado da moléstia em relação a outras enfermidades como, por exemplo, a sífilis. Coube a este detalhamento especificar formas diferenciadas de manifestação da doença. Em suas

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anotações encontraram-se referências a formas denominadas “ulcerosa”, “rubra” e “alba”. De qualquer forma, a lepra era fortemente vinculada a questões religiosas, considerada prova corporal do pecado, e mesmo estas especificações eram associadas a males, como “embriaguez”, “cólera”, “gula”, “desequilíbrios sexuais”, e a gravidade da manifestação da doença, assim como a dificuldade em combatê-la, seria determinada pela gravidade do “vício moral”. Aos médicos medievais, só interessava identificar algumas características básicas, a fim de encaminhar os doentes para o isolamento, longe da cidade. Estes, por sua vez, aceitavam seu destino com resignação, pois se tratava de castigo de Deus, ou, como muitos que não aceitavam o isolamento, viviam na mendicância, sobrevivendo com esmolas. Ainda sobre a exclusão dos doentes, foi a partir de 1179, que esta prática se intensificou e os doentes deveriam, inclusive, ser identificados para circularem pelas cidades. Esta identificação se dava a partir de vestimenta específica e, até mesmo, por meio de instrumento sonoro, como uma espécie de chocalho, que os doentes carregavam a fim de anunciarem a sua presença (CUNHA, 2002). Diante do exposto até aqui, podemos apreender algumas questões importantes no que diz respeito às pesquisas e ao tratamento da lepra nestas duas épocas mencionadas, que correspondem a, no mínimo, mil anos desde nosso marco inicial (século VII a.C.). Neste sentido, observamos que pouco se avançou em relação ao diagnóstico da doença, e nada em relação ao tratamento. As medidas continuaram as mesmas ao longo de séculos, nas quais o único objetivo era minimizar o sofrimento dos doentes, a partir de procedimentos com pomadas, cataplasmas, banhos de ervas, sangrias, rezas, entre outros que, inclusive, eram praticados nas instituições destinadas à exclusão do enfermo. A comunidade médica/científica neste período não apresentava nenhuma intenção em pesquisar de forma mais aprofundada as questões relacionadas à transmissão, etiologia e tratamento. E toda a responsabilidade em relação ao tratamento ficava a cargo das instituições religiosas que, por atribuir a lepra à vontade de Deus, propunham “uma posição passiva frente à doença, sem interferência na resposta do próprio organismo e, também, sem uma busca de soluções para os problemas que se apresentavam em relação ao diagnóstico e tratamento” (CUNHA, 2002, p. 239). Ainda com Cunha (2002), seu trabalho também nos aponta que apesar de existirem poucos registros médicos sobre a doença na Idade Média, que nos levem a compreender o real estado do conhecimento científico sobre aspectos específicos da

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lepra/hanseníase, é interessante observarmos como a sintomatologia da moléstia era representada pela arte, principalmente a partir da pintura e escultura. Nestas obras podemos encontrar sinais que indicam claramente o “medo” que nossos antepassados revelavam de sintomas que, hoje sabemos e que discutiremos mais a frente, se desenvolvem a partir do alojamento do bacilo causador da doença nos nervos periféricos, tais como nódulos, manchas, queda de cabelo, mutilações. Isto nos leva a acreditar que mesmo apresentando diagnóstico impreciso muitas vezes confundido com outras doenças, a lepra/hanseníase, tal como conhecemos hoje, já se fazia presente nas civilizações em tempos que remontam, pelo menos, à Antiguidade. O interesse pela hanseníase se intensificou na Europa a partir do século XVII, quando observamos um aumento significativo do número de leprosários. Virchow (1897) apud Cunha (2002) relaciona este fato com o desenvolvimento da cultura cristã, em nome da qual se aumenta também o número de hospitais e hospedarias para miseráveis. O doente e o pobre, segundo a cristandade, tornam-se “eleitos de Deus” (CUNHA, 2002, p.238). Poderíamos explorar aqui diferentes vertentes como causas e/ou consequências da disseminação do Cristianismo nas civilizações. Mas optamos por trazer para este trabalho uma em particular, entendendo sua relevância na construção de significados em torno da lepra/hanseníase, e que se constitui em princípio explicativo baseado no pensamento simbólico da cultura cristã. Esta vertente diz respeito ao deslocamento produzido na concepção de corpo, a partir do advento do Cristianismo no Ocidente. Se havia na Antiguidade uma exaltação ao físico, muito retratada, inclusive, pelas artes deste período histórico, a mentalidade cristã que ganhava força foi convertendo este culto ao corpo à concepção de entendê-lo como prisão da alma. “Ele devia ser negado na medida em que se queria alcançar a perfeição espiritual” (MINUZZO, 2008, p. 22). E é neste cenário, onde a medicina submete-se à religião e onde a moral eclesiástica passa a ditar regras de moralidade, assumindo caráter normativo para a população, que o isolamento do doente de lepra/hanseníase em instituições asilares se consolida e torna-se a principal prática de tratamento da doença em quase toda a Europa durante os séculos XVIII e XIX. Segundo Minuzzo (2008), tais práticas e medidas direcionadas ao combate da lepra, na verdade se apresentavam muito mais como medidas de combate ao leproso. O fato é que neste período foi possível observar uma

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diminuição do número de casos no Ocidente, ao mesmo tempo em que ocorre um fortalecimento das instituições religiosas na administração dessas casas para hansenianos (CUNHA, 2000). “Para ingressar nos leprosários, os doentes precisavam de uma autorização da Igreja (...) além de fazer uma doação de todos os bens e rendas ao hospital” (CUNHA, 2002, p. 238). Em relação a este declínio do número de casos da doença na Europa, Minuzzo (2008) aponta três hipóteses a se considerar: uma, diz respeito ao fato de uma grande parcela da população ter sido dizimada pela peste, incluindo aí grande número de leprosos; outra, diz respeito a uma provável competição biológica proveniente do surgimento de uma micro bactéria, causadora da tuberculose; e outra, que considera uma melhoria nas condições de higiene das cidades como fator decisivo para este declínio. Sobre estas hipóteses retomaremos adiante, o fato é que, independente desta diminuição de casos no continente europeu, a construção social em torno da lepra/hanseníase sobreviveu e marcou a mentalidade “dos povos americanos recémdescobertos” (MINUZZO, 2008, p.30). Desta forma, colonizadores europeus, em especial os portugueses, chegam à América trazendo consigo não só a doença como as representações simbólicas a seu respeito. Em relação à introdução da lepra no Brasil, Ducatti (2007) e Minuzzo (2008) acreditam ter se dado a partir da chegada destes colonizadores. O primeiro registro da doença é datado de 1600, quando rapidamente teria se transformado em epidemia, fato que Minuzzo (2008) atribui, principalmente, à falta de imunidade da população contra o bacilo causador da moléstia. Apesar de a doença ser conhecida, pelo menos, desde a Antiguidade, como vimos, foi somente no final do século XIX que seu agente etiológico foi descoberto. Atribui-se ao médico norueguês Gerhard Henrik Armaurer Hansen o mérito da descoberta, que de suas pesquisas entre 1870 e 1874, nas quais examinava células leprosas de nódulos encontrados na pele dos doentes, pode observar pequenos bastões e chegar à classificação que conhecemos hoje, na qual o bacilo causador da lepra é designado como Mycobacterium leprae. Hansen apoiou suas pesquisas em trabalho anterior realizado por dois leprologistas considerados pelo primeiro como responsáveis pela publicação, em 1847,

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do principal tratado científico sobre a doença até então, intitulado Sobre a Lepra. Apesar de atribuírem à doença um caráter hereditário, por falta de conhecimentos clínico-imunológicos, Daniel C. Danielssen e Carl W. Boeck foram também responsáveis pela classificação da doença em dois tipos distintos: uma considerada maligna, designada lepromatosa; e outra, considerada benigna, designada nervosa ou tuberculóide. Classificações estas que iluminaram o trabalho do médico norueguês, que desenvolveu suas pesquisas nos anos que atuou como assistente de Danielssen no Hospital Lungegaard, em Bergen. No mesmo ano em que concluiu seu trabalho, 1874, Hansen apresentou um relatório de pesquisa à Sociedade Médica de Christiania, apresentando o bacilo como agente infeccioso causador da lepra. (SANTOS et al, 2008; MACIEL, 2007). O século XIX se caracterizou, no campo da ciência, por grandes avanços e descobertas que contribuíram de forma definitiva para o advento da chamada Ciência Moderna. Neste trabalho consideramos uma em especial que se refere à descoberta que, mais tarde, possibilitou o desenvolvimento da microbiologia. Se no século XVIII a descoberta do universo dos microrganismos caminhava lentamente, foi no século XIX e início do século XX, que a evolução de técnicas laboratoriais, possibilitou à microbiologia reconhecimento, fundamentando-se como ciência. Podemos destacar, neste cenário, os nomes de Robert Hooke (1635-1703) e Antonie Van Leeuwenhoek (1632-1723) como precursores desta ciência que se originava, pois a eles atribuímos, respectivamente, a invenção do microscópio, e seu aperfeiçoamento. A partir daí, outros nomes se destacaram neste ramo como de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910), cujas contribuições foram determinantes para a compreensão do universo dos

microrganismos e

consequentes aplicações nas pesquisas,

indústria

e,

principalmente, para a medicina. Ambos acreditavam que muitas doenças com causa aparentemente desconhecida, na verdade eram provocadas por “seres invisíveis”, microscópicos. Suas pesquisas conseguiram comprovar não só esta hipótese, como provar que existiam bactérias específicas para doenças específicas. Coube a Robert Koch, também, desvendar a bactéria causadora da tuberculose, a qual recebeu seu nome, bacilo de Koch (MURRAY et al, 2010). Outro nome igualmente relevante para o desenvolvimento e consolidação deste ramo da ciência que se instituía (microbiologia), principalmente no que diz respeito às contribuições para a medicina, foi o do escocês Alexander Fleming (1881-1955).

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Através de suas experiências com culturas de bactérias descobriu, quase acidentalmente, que uma contaminação por fungos do gênero Peniccilium nas placas de cultura acabava por inibir a proliferação das bactérias do gênero Staphylococcus, cultivadas por este pesquisador. A partir da substância liberada por estes fungos, Fleming desenvolveu a penicilina que, mais tarde, iria revolucionar não só o tratamento de enfermidades causadas por bactérias, como a própria indústria farmacêutica através dos antibióticos. Apesar da descoberta da penicilina remontar a 1923, nesta época não recebeu a atenção esperada da comunidade científica, que só se interessou pela descoberta em 1940, quando as experiências foram retomadas, por conta da Segunda Guerra Mundial. Esta substância teve papel fundamental no desfecho da guerra, uma vez que passou a ser administrada às tropas aliadas, enquanto o exército alemão continuava a sofrer pesadas baixas no campo de batalha. (MURRAY et al, 2010) 5.1.1 - A lepra/hanseníase no Brasil: uma trajetória em particular Após situarmos aspectos relevantes na trajetória histórica da lepra/hanseníase no mundo, tais como a produção de um estigma, descoberta do agente etiológico, primeiras medidas de tratamento e profilaxia, e seus respectivos contextos, voltaremos nossa atenção a aspectos particulares desta trajetória no Brasil. Nossa intenção é tentar compreender a relação entre o conhecimento médico-científico que se tinha até aquele momento sobre à lepra/hanseníase, com as políticas públicas de saúde. Para tanto, adotaremos como parâmetro, principalmente, as deliberações aprovadas nas principais Conferências Internacionais e Nacionais de Lepra. Esta escolha se justifica por acreditarmos que tais conferências se constituíram em “fóruns de decisão nacionais e internacionais” (MACIEL, 2007, p.20), representando, em certa medida, o estado do conhecimento científico disponível em determinadas épocas. Outra questão relevante em nossa escolha refere-se ao fato segundo o qual, ao recomendarem formas específicas de combate e tratamento da doença, as deliberações oriundas destas conferências contribuíram para orientação e definição de políticas públicas de saúde em diversos países, inclusive no Brasil. Como já mencionamos, a lepra/hanseníase teria chegado ao Brasil por intermédio dos colonizadores. Apesar do rápido alastramento da doença pela colônia, e das intensas notificações a Portugal, por parte da comunidade médica, sobre a gravidade da situação, foi somente com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, no

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século XIX, que medidas efetivas foram realizadas. Neste momento, a doença passou a ser vista como problema político e social, ameaça à integridade da população, tendo suas medidas realizadas no bojo de uma política mais ampla, que visava à higienização e medicalização do espaço urbano. Assim como na Europa, a principal medida adotada foi também fundamentada na reclusão do doente em instituições, o que determinou um aumento significativo dos leprosários neste período, também vinculados a instituições religiosas. Anteriormente à chegada da corte real na colônia, observamos ações isoladas, como, por exemplo, o surgimento do primeiro local destinado ao isolamento do paciente na Bahia, em 1640, conhecido como Campo dos Lázaros, e fruto de iniciativa da Igreja. Como ação da corte portuguesa, temos registro do primeiro leprosário brasileiro, Hospital dos Lázaros, construído apenas em 1741, no Rio de Janeiro. Este mesmo registro aponta que a população da capital em 1739, somava vinte mil habitantes, dos quais 400 eram leprosos (MINUZZO, 2008). No Brasil, a medicina terapêutica, desde a colonização, passou a sofrer, além da influência indígena, influências dos jesuítas e africanos. A cultura medicinal desses povos tinha em comum o fato de se consistirem, basicamente, na utilização de plantas nativas. Somente com a chegada dos portugueses, um número limitado e reduzido de medicamentos importados foi introduzido, por isso mesmo representaram um empecilho para a prática da medicina europeia no Brasil Colonial. Esta fusão cultural caracterizou as práticas medicinais adotadas no Brasil até início do século XIX, e o tratamento disponível para a hanseníase também se inclui nesta lógica, para o qual eram utilizados banhos, emplastros e, até, picadas de cobra (CUNHA, 2002). Também no século XIX, ano de 1897, em Berlim, foi realizada a primeira Conferência Internacional de Lepra. Segundo Maciel (2007), foi a primeira vez que o isolamento dos doentes em instituições asilares foi proposto oficialmente como medida médica, profilática, entre a comunidade médico-científica. A proposta partiu do próprio Hansen, baseado no emprego desta medida no seu país de origem, a Noruega, segundo o qual obtivera resultados animadores. Para justificar esta proposta, Hansen teria se apoiado em dois argumentos principais: o primeiro apontava para a incerteza sobre a transmissão da doença e, o segundo, para a diminuição dos casos de doentes na Noruega que, segundo Hansen, estaria associada ao emprego rigoroso do isolamento como medida profilática.

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Embora tenha sido aprovado pela maioria dos representantes da comunidade científica, pois à época desta Conferência a lepra/hanseníase era considerada incurável e responsável por danos individuais e sociais irreparáveis, o isolamento foi tema de controvérsias. Para a Academia Francesa de Medicina, representada pelo dermatologista Ernst Besnier, isolar não garantia necessariamente o controle da doença. Ernst, utilizando a experiência francesa como argumento, ressaltou que: “A doença era contagiosa, mas na França, os leprosos não representavam uma ameaça, portanto, não era preciso medidas legais e impositivas para tratá-los”(MACIEL 2007, p. 204). Outra manifestação contrária à medida do isolamento proposta por Hansen foi do leprologista colombiano Juan de Dios Carrasquila, defensor do princípio de transmissão bacteriológica em detrimento da transmissão hereditária. Na Conferência, Carrasquila argumentou contra a obrigatoriedade do isolamento que, para ele, mais parecia uma política de exterminação, a partir da seguinte premissa: “se as políticas de segregação tivessem realmente uma base científica, elas deveriam ser aplicadas a todas as doenças infecciosas, como a tuberculose e a sífilis, por exemplo.” (MACIEL, 2007, p.204) Cabe ressaltar que, em relação ao isolamento dos doentes proposto com tanta veemência por Hansen, esta prática, originalmente, apresentava algumas recomendações importantes, mas que, segundo algumas fontes documentais, foram desconsideradas aqui no Brasil. Na opinião de Ducatti, o declínio da hanseníase na Noruega deve-se mais a adoção de medidas profiláticas com caráter educativo. O autor, ao estudar a história da doença neste país, nos diz que: As medidas educativas, que incluíam higiene pessoal, separação de talheres, roupas de cama e, se possível, um quarto separado para o doente demonstraram declínio da hanseníase na Noruega no período de 1855-1885. Vale destacar que estas medidas profiláticas foram resultados de “Comitês de Saúde” daquele país, mas distorcidas como isolamento compulsório aqui no Brasil. (2007, p. 307)

Ainda sobre esta medida, Cunha afirma que Hansen apontava, entre outras recomendações, que: 1) O isolamento dos doentes em sua própria casa contribuirá para um combate mais eficaz à doença; 2) Cada caso deve ser examinado individualmente e então se decidir pelo isolamento facultativo ou obrigatório (2007, p. 239).

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Em relação à primeira Conferência, de acordo com Maciel (2007), houve a tentativa do Brasil em participar através da apresentação de um trabalho de autoria do Dr. José Jerônimo Azevedo Lima, desenvolvido pelo Instituto Bacteriológico de São Paulo, do qual o Dr. Adolpho Lutz era diretor, mas, por causas desconhecidas, o trabalho não chegou a ser publicado. Apesar de no final do século XVIII todo tratamento ser realizado em instituições especializadas, os lazaretos, não havia ainda uma normatização em relação aos procedimentos para combater a doença, apesar de a mesma ter se apresentado como uma endemia na maior parte do Brasil, alastrando-se de forma descontrolada até, pelo menos, início do século XX. Na Europa, a doença já havia sido controlada desde o final do século XIX, quando da descoberta do bacilo causador e das devidas medidas profiláticas e de tratamento, com caráter educativo (MENEZES et al, 2008; CUNHA, 2002). Segundo esses autores, existem algumas hipóteses que justificam este alastramento descontrolado da doença no Brasil, enquanto a mesma já havia sido controlada em outras partes do mundo, como descritas a seguir: 1) A crença, que perdurou por muito tempo, de que a doença não era transmitida de uma pessoa a outra, e sim de forma hereditária, pode ter contribuído para a disseminação da doença em grande escala. 2) A dificuldade da comunidade médica em identificar a enfermidade em sua fase inicial, principalmente por apresentar quadros clínicos variados. 3) Mesmo quando a comunidade científica se mostrou consciente da situação, procurando, inclusive, curso no exterior, trazendo mais informações sobre tratamento e profilaxia, esbarrou em problemas como falta de vontade política, desinteresse de autoridades estatais, morosidade na liberação de verbas. 4) A ausência de regras e normas para a segregação levou portadores de hanseníase a conviverem com portadores de outras enfermidades, os quais acabavam por adquirir a hanseníase e vice-versa. O fato é que os hansenianos brasileiros adentraram o século XX sobrevivendo como os enfermos da Europa Medieval, na mendicância, pedindo esmolas, dependendo

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de doações, fato que os colocava “na mesma situação social que os miseráveis, desempregados, prostitutas e criminosos.” (Cunha, 2002, p. 241) Comumente eram tratados pelo poder público como caso de polícia, muitas vezes com violência, a fim de expulsá-los da cidade. A partir da Primeira República (1889-1930), é possível observar uma redefinição na relação do Estado com a saúde pública, que passa a desempenhar papel relevante na construção e fortalecimento do Estado brasileiro. Na opinião de Hochman (1998) apud Pachá (2008), a saúde deixa de ser entendida como de responsabilidade voluntária e individual e torna-se responsabilidade do Estado, sob a lógica da coletividade. “É através do aumento das responsabilidades estatais, e a saúde é um grande passo nessa direção, que o Estado de fato ganha sentido.” (HOCHMAN, 1998, apud PACHÁ, 2008, p.330) Neste cenário da Primeira República, reformas na saúde pública foram empreendidas, em vistas da construção de uma ideologia de nacionalidade. Neste período, podemos destacar duas correntes que representavam a mentalidade em torno do projeto de construção de identidade nacional. O movimento pelo “Sanitarismo Urbano” e o movimento pelo “Sanitarismo Rural.” (HOCHMAN e FONSECA, 1999) O movimento “Sanitarista Urbano”, que marcou os primeiros tempos de República, tinha suas ações limitadas às capitais e principais centros urbanos. A lógica era a da “Modernização” das cidades, através da chegada de imigrantes europeus, e pensar a situação sanitária das cidades e portos era fundamental para atraí-los. Cabe destacar que, entre 1900 e 1904, a febre amarela foi responsável pela diminuição de mais de cinquenta por cento na chegada destes imigrantes em território brasileiro (Hochman e Fonseca,1999). Outro ponto importante relacionado à mentalidade vigente neste período refere-se a certo “racismo científico” por trás deste discurso de modernização, que atribuía à herança africana, a falta de resistência da população às doenças tropicais. Nascia, assim, um discurso de modernização baseado no “processo de branqueamento do país”, segundo o qual: Só a imigração estrangeira-estritamente branca e europeia – poderia limpar os brasileiros da nódoa do passado escravocrata e dos efeitos perniciosos da miscigenação. O sangue novo – “sangue bom” – permitiria ao brasileiro redimir-se e purificar-se da contaminação de raças supostamente inferiores. (SANTOS, 1985, p.2)

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Já o movimento em prol do “Saneamento Rural” acreditava que a construção da identidade nacional só seria possível a partir da recuperação do interior do país e, consequentemente, das raízes da nacionalidade. Nesta lógica, cuidar das doenças que assolavam esta parcela da população, buscando integrar o sertanejo ao projeto de construção nacional, seria fundamental. De acordo com Santos (1985), esta mentalidade ganhou força, mais especificamente, a partir de 1915. A partir do exposto, nosso esforço agora será no sentido de compreender de que forma a formulação e difusão de políticas públicas relacionadas ao combate e tratamento da lepra/hanseníase se deram neste cenário. Portanto, nossa atenção recairá, primeiramente, sobre a fase em que Oswaldo Cruz esteve à frente dos serviços de saúde (1903 – 1909), a fim de identificar as principais mudanças que atribuíram ao Estado a organização e o controle, neste caso, na área da saúde. Embora tenha se constituído em doença endêmica desde épocas que remontam à colonização, a lepra/hanseníase só se tornou doença de notificação compulsória em 1904, com Oswaldo Cruz à frente da Diretoria Geral de Saúde Pública (DGSP), passando a constituir os programas de governo que visavam combater as doenças transmissíveis. De acordo com as disposições normativas, a hanseníase passava a ser vista como um problema de saúde pública, em função do qual o poder público: “Acionou seus mecanismos de controle e se utilizou de todas as formas possíveis para identificar, no seio da sociedade, aqueles que eram considerados prejudiciais, a fim de isolá-los” (GOMIDE, 1991 apud CUNHA, 2002, p.241). Este fato se deu a partir de relatório feito por Oswaldo Cruz ao ministro da Justiça e Negócios Interiores – ministério ao qual a DGSP se vinculava – no qual reconhecia que o contágio da doença se dava a partir do contato com o doente, embora ainda desconhecesse as vias pelas quais o bacilo penetrava no organismo humano (CUNHA, 2002). Cabe ressaltar que, apesar das medidas de combate à lepra/hanseníase encontrarem-se, a partir deste momento, regulamentadas por meio do decreto 5.156, de 8 de março de 1904, a atuação da DGSP mostrava-se limitada. Isso se deve ao fato da maioria das instituições destinadas ao tratamento do doente existentes até então não funcionarem sob responsabilidade dos estados, e sim das iniciativas religiosa e privada,

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como a história nos aponta. Em contrapartida, a constituição de 1891 determina que a saúde pública esteja a cargo dos estados e que a União estaria ativa apenas “no controle dos portos, nas ações sanitárias na capital federal e nos casos de epidemia” (MACIEL, 2007, p.36). Fato que acabou por determinar um desequilíbrio na atenção à saúde, que esteve mais presente nos estados mais ricos, como o exemplo de São Paulo que, segundo Maciel (2007), foi o primeiro a instituir o isolamento dos doentes como política e a investir em pesquisas científicas e formação profissional. A DGSP, como vimos, limitava-se aos surtos epidêmicos. Posteriormente, nas décadas de 1910 e 1920, descortinou-se um Brasil cuja realidade social mostrava-se muito distante daquela idealizada pelo projeto de modernização, a partir das reformas urbanas e sanitárias pretendidas. Ao descobrir os sertões, abandonados pelo poder público, combater as endemias como ancilostomose, malária e mal de chagas torna-se prioridade, a fim de agregar esta parcela da população a este projeto de nação. Como mencionado em capítulo anterior, a Higiene passa a ser o principal instrumento para esta reforma sanitária que pretendia incluir o interior do país. Como consequência desta intensa campanha sanitarista que ganhava vulto, surge em 1915 a Comissão de Profilaxia da Lepra, constituída por representantes das principais sociedades médicas, cujo objetivo principal era “propor alternativas para o poder público no sentido de eleger o combate à doença como uma prioridade nacional” (MACIEL, 2007, p. 37). E a lepra/hanseníase fazia parte das doenças apontadas pela comissão, como merecedora de combate rigoroso. Cabe ressaltar que um dos temas recorrentes nos debates realizados por esta comissão, dizia respeito à transmissibilidade da doença, tema ainda controverso. Na opinião de Adolpho Lutz, grande estudioso da lepra, a doença era transmitida ao modo da febre amarela, ou seja, a partir de um vetor. Em 1919 esta comissão encerra sua atuação, mas entrega ao governo um documento contendo suas considerações, que foram a base para o projeto de criação, posteriormente, de inspetorias de profilaxia por meio das quais o estado poderia assumir maior controle no combate às doenças. Como resultado deste processo, em 1920, foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP),mais abrangente e centralizador do que a anterior DGSP, e subordinadas a ele várias inspetorias de profilaxia, dentre elas a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas.

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Este período é considerado o início do processo de normatização e ordenamento burocrático deste setor, que passava a se responsabilizar pelas ações de combate à lepra/hanseníase. Segundo Maciel (2007), à Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas cabia, principalmente, assegurar que os estados respeitassem a legislação sanitária federal, realizar censos nesses estados, assim como desenvolver estudos sobre os diferentes casos clínicos encontrados e, finalmente, apontar possibilidades para a construção de leprosários e colônias para o isolamento dos doentes. A partir do novo regulamento sanitário instituído pelo Departamento Nacional de Saúde Pública, elaborado por Carlos Chagas, o isolamento dos doentes torna-se a medida oficial de combate à lepra/hanseníase no país. Este regulamento foi decretado em 1923, e sobreviveu até 1934. Em relação às principais medidas de combate a esta doença, o sistema adotado consistia-se em três pilares: notificação obrigatória; exame periódico dos comunicantes, ou seja, pessoas que conviviam com os doentes, normalmente familiares; e exclusão em leprosários. Em alguns casos, raros, a exclusão em domicílio era permitida, mas sob intenso policiamento e vigilância aos doentes e seus familiares. Entretanto, apesar da evolução na organização normativa para o tratamento da enfermidade, o mesmo foi prejudicado em função de questões políticas e financeiras. Havia um número reduzido de leprosários para os 12 mil doentes identificados pelo censo em 1927. (DUCATTI, 2007; MACIEL, 2007; MENEZES etal, 2008; PACHÁ, 2008) Em relação ao posicionamento da comunidade científica frente ao isolamento, a mesma se mostrava dividida. Alguns consideravam o isolamento ineficaz e apontavam para as más condições dos leprosários, retratadas desde os tempos monárquicos. Outros defendiam o isolamento, mas ponderavam que o mesmo deveria ser aprimorado e modernizado, contendo, inclusive, escolas para as crianças portadoras. O que havia de consenso era que, a partir das pesquisas epidemiológicas e bacteriológicas, novas terapias eram necessárias para dar conta dos diversos tipos da doença que estavam sendo identificados. De qualquer forma, na opinião de Santos etal(2008), era marcante nos discursos da comunidade médica e higienista, a presença de: ...argumentos científicos dosados por fortes conotações raciais, diante dos comportamentos e hábitos da população pobre latino-americana. Essas enfermidades sociais, de certo modo, mais ainda do que as populações pobres representavam grandes entraves à modernização. (2008, p.171)

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Voltaremos, mais uma vez, nossa atenção para as Conferências sobre a Lepra, a fim de traçarmos um paralelo entre as medidas adotadas no Brasil, com as recomendações expressas pela comunidade científica, nacional e internacional, nestes fóruns de decisões. Acreditamos que este procedimento nos permitirá discutir sobre as questões norteadoras deste trabalho, apresentadas anteriormente. Em 1909, acontecia na cidade de Bergen, na Noruega, a 2ª Conferência Internacional de Lepra, dez anos após a realização da primeira, e presidida por Hansen. As deliberações finais desta conferência também reforçaram a necessidade de isolamento do doente, mas já apontavam para uma possível curabilidade, ao contrário da primeira. Como principais recomendações oriundas da 2ª Conferência, identificamos a necessidade de prosseguimento das pesquisas científicas, a fim de esclarecer questões como a transmissibilidade a partir de insetos, e de contribuir para a busca por medicamentos. Outra importante recomendação que emergiu das discussões desta conferência foi, uma vez que se admitiu que a doença é contagiosa, que seria necessário cuidar dos „comunicantes‟ a partir de exames periódicos, e separar os filhos dos pais doentes logo após o nascimento. Neste momento, é importante ressaltar que, no que diz respeito à existência de medicamentos, o único conhecido por seus resultados satisfatórios como terapêutica, desde meados do século XIX até, pelo menos, 1940, foi o óleo de chaulmoogra. Originário da Índia, extraído das sementes da árvore que leva o mesmo nome, chamou atenção da comunidade científica por ser bastante utilizado, em seu país de origem, para tratamento de doenças de pele. Por seus resultados satisfatórios, foi muito utilizado na Europa e, aqui no Brasil, tornou-se um importante objeto de pesquisas científicas entre as décadas de 1920 e 1950, a partir das quais foi possível, inclusive, descobrir uma espécie similar que ficou conhecida como a chaulmoogra brasileira (Carpotroche brasiliensis), vulgo Sapucainha. (SOUZA, 2009) Ainda sobre medicamentos disponíveis para o tratamento da lepra/hanseníase, Maciel (2007) chama atenção para um artigo publicado em 1912, no periódico Archivos Brasileiros de Medicina, pelo cientista brasileiro Waldemar de Almeida. Neste artigo, Almeida faria menção a um componente químico, Nastina, que vinha sendo experimentado desde 1907, por um cientista da cidade de Hamburgo. Este componente

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seria derivado de culturas de bactérias do gênero Streptothrixleproides. Almeida aponta que a pomada obtida seria bactericida, capaz de eliminar o bacilo da lepra. Ainda

com

Maciel

(2007),

no

Brasil

teria

sido

disponibilizada,

experimentalmente, e utilizada, entre outros casos, pelo leprologista Fernando Terra no Hospital dos Lázaros. Segundo relatos deste especialista, embora apresente, inicialmente, resultados satisfatórios como desaparecimento de manchas e retorno da sensibilidade, pesquisas posteriores demonstraram que a Nastina não se constituía em medicamento eficaz, pois os resultados satisfatórios eram temporários. Desta forma, o óleo de chaulmoogra continuava a ser o principal medicamento para o tratamento da lepra/hanseníase, caindo em desuso apenas na década de 50, “anos após o tratamento com as sulfonas.” (MACIEL, 2007, p. 207) Sobre a questão dos medicamentos, voltaremos mais à frente. Em 1923, em Estrasburgo, acontecia a 3ª Conferência Internacional de Lepra, 20 anos após a segunda. De acordo com Maciel (2007), houve uma grande participação de pesquisadores de vários países nesta conferência, o que se deve, provavelmente, ao crescimento desta área de atuação especializada no que diz respeito a pesquisas e formação de profissionais. No caso do Brasil, podemos citar, entre outros, os cursos e pesquisas oferecidos no Instituto Oswaldo Cruz. Em um desses cursos teria sido aluno, em 1913, Heraclides César de Souza-Araújo, que veio a publicar, em 1956, História da Lepra no Brasil. No referido curso, Heraclides conheceu o “primeiro grande estudioso da lepra em Manguinhos” (MACIEL, 2007, p. 46), Adolpho Lutz, seu professor, que se dedicou a pesquisas na Instituição de 1908 até 1940, ano da sua morte. As deliberações desta 3ª Conferência, de modo geral, ratificaram as das duas anteriores no que diz respeito ao isolamento do paciente. Mas pela primeira vez, o discurso parece menos rigoroso, uma vez que apontam que o isolamento deve ocorrer apenas em casos extremos, em regiões endêmicas e, mesmo assim, deve ter um caráter humanitário, mantendo a família sempre próxima ao doente, para que não se quebrem os laços afetivos. Mas o ponto principal da Conferência foi a recomendação de uma necessária educação sanitária, apontada pela comunidade científica como fundamental para o esclarecimento da população leiga no que diz respeito à transmissão e contágio. Cabe destacar que uma das grandes preocupações demonstradas pelos médicos era a de combater a ideia da transmissão por hereditariedade, disseminada desde o século XIX e

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que, ainda nesta época, era bastante comum entre a população leiga. Embora veremos à frente que, ainda hoje, existem referências a um desenvolvimento de uma maior suscetibilidade por parte de filhos de hansenianos. Um ponto importante a se destacar é o que chama atenção para a participação do Brasil nesta conferência. De acordo com Souza-Araújo (1956) apud Maciel (2007), o país foi representado pelo Dr. Eduardo Rabello, então diretor da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas, o qual apresentou trabalhos relatando a experiência brasileira no que diz respeito a estatísticas, legislação, profilaxia, uso da chaulmoogra e derivados. Na opinião de Souza-Araújo, relatada em seu livro História da Lepra no Brasil, estes trabalhos apresentaram uma realidade idealizada, bem distante do que realmente estava acontecendo. Para o leprologista, questões como corte de verba, dimensões continentais, diferenças regionais e o foco principal da Inspetoria na sífilis, eram as causas que dificultavam colocar em prática a política de profilaxia da lepra/hanseníase no Brasil. E foi nestas condições, anteriormente descritas, que o Brasil adentra a década de 1930, iniciando um período conhecido como Era Vargas. Neste momento o mundo já havia presenciado a solidificação do capitalismo em países como Inglaterra, França e Estados Unidos e, nesses casos, ações de saúde, especificamente, estiveram orientadas ao poder produtivo. No Brasil, agora com Vargas no poder, é o momento em que as estruturas administrativas deverão se adaptar às novas exigências da economia. Segundo Ducatti: “O Estado se expande por intermédio de uma máquina administrativa e se fortalece pela militarização” (2008, p.22). De certo, o que observamos é que as medidas adotadas, especialmente para o tratamento da lepra/hanseníase, apresentaram caráter de polícia-médica, normatizante e centralista (DUCATTI, 2008; MACIEL, 2007; SANTOS, 2006). E sobre isto discutiremos agora. Diversas instituições foram criadas neste período, com o objetivo de regulamentar as ações e centralizar o poder da União. A primeira criação que destacamos é a do Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP), em 1930. Mas, neste primeiro momento da Era Vargas, de 1930 a 1934, pouco se avançou em termos de políticas públicas, devido à instabilidade nacional, ainda como consequência da Revolução de 30. Ações mais expressivas puderam ser observadas a partir de 1934, e em relação à saúde especificamente, quando Gustavo Capanema assume o MESP. Neste

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mesmo ano foi criada a Diretoria Nacional de Saúde e Assistência Social, dirigida por João de Barros Barreto e que, após revisão do Regulamento Sanitário de 1923, passaria a se responsabilizar, entre outras coisas, pelas medidas de combate à lepra, uma vez que a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas fora extinta com esta revisão. Neste período as ações foram bem mais abrangentes, alcançando diversos estados, nos quais se instalaram centros de saúde, a fim de executarem as medidas recomendadas pela União. Com a formulação do Plano Nacional de Combate à Lepra, em 1934, encabeçada pelo médico João de Barros, o isolamento do portador de hanseníase tornava-se obrigatório, abarcado por um tratamento denominado na literatura médica como „modelo tripé‟, já mencionado anteriormente. Com isso, o cerco se formava em torno da doença, do doente e dos que com ele viviam. (MACIEL, 2007) A partir de uma nova reforma, em 1941, o Departamento Nacional de Saúde aumentaria, efetivamente, sua atuação nos estados, onde estaria representado pelas Delegacias Federais de Saúde. Estas instituições deveriam fiscalizar e inspecionar a execução das medidas determinadas pela União, nestes estados. Foram criados também, no bojo desta política de saúde, os Serviços Nacionais, dentre eles, o da Lepra. Estes órgãos passariam a pensar estratégias de controle de diversas doenças como tuberculose, febre amarela, malária, entre outras, uma vez que contariam com profissionais especializados. Mesmo assim, na opinião de Santos (2006), o tratamento para a lepra/hanseníase ainda seguiria o modelo orientado pelo Plano Nacional de 1935. Com isso, prosseguem a manutenção e construção de diversos leprosários, dispensários e preventórios. Segundo o autor, este foi o cenário até o fim da Era Vargas. Em 1938, comunidades científicas se reuniam na 4ª Conferência Internacional de Lepra, que aconteceu no Cairo. Suas resoluções finais reforçaram a importância do isolamento, de modo mais humano, como na conferência anterior, assim como a necessidade de educação sanitária efetiva. Por se tratar de doença infecciosa, de contágio direto, apontaram para a importância de concentrarem esforços na identificação de casos o mais precocemente possível, o que reforçou a atenção aos comunicantes, especialmente crianças em idade escolar. Sobre medicamentos, apontou o óleo de chaulmoogra como o único disponível e eficaz. O diferencial desta Conferência foi o grande debate no que tange a questão da classificação, considerada insuficiente para abarcar todos os tipos de manifestações da doença observados. Desde 1897

a

doença

é

classificada

como

do

tipo

lepromatosa

(maligna)

e

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tuberculóide(benigna). Por falta de entendimento, a classificação continuou a mesma, mas coube aos cientistas brasileiros apresentarem outra proposta que, mais tarde, voltaria a ser seriamente analisada. O que ocorreu na II Conferência Pan-Americana de Lepra, no Rio de Janeiro, em 1946, onde foi confirmada a proposta feita pelos brasileiros no Cairo, na qual deveria existir uma terceira classificação para casos que não se enquadram nas outras duas, esta terceira classificação, então, ficou definida como a forma „Indiferenciada‟ de manifestação da doença. Os pesquisadores também apontaram como uma das principais causas para o atraso das pesquisas a dificuldade em se isolar o bacilo fora do organismo humano. Neste momento, as sulfonas já estavam sendo utilizadas nos leprosários, experimentalmente, por isso seus resultados eram ainda inconclusivos, embora animadores. As sulfas são compostos de substâncias que apresentam ação bacteriostática, ou seja, inibem a reprodução e o metabolismo das bactérias. Segundo Opromolla (1997), a primeira experiência com este medicamento ocorreu no início da década de 1940, nos EUA, com uma sulfona denominada Promin, apresentando bons resultados. O isolamento não foi discutido neste momento, o que, segundo Maciel (2007), demonstrava a aprovação a esta prática. Na Conferência Internacional seguinte, realizada em 1948, em Havana, as sulfas já foram altamente recomendadas e, inclusive, especialistas já indicavam a necessidade deste medicamento ser oferecido pelos governos a baixo custo. Mas reforçaram que a chaulmoogra não deveria ser abandonada, pois ainda desconheciam o efeito exato das sulfas sobre o bacilo, o que se constitui em uma das justificativas para o incentivo às pesquisas continuarem. Sobre esse assunto, foi a primeira vez que se levantou a questão da bioética, preocupação que culminou com a determinação de critérios para o desenvolvimento das pesquisas com seres humanos, descritos no relatório final da conferência. Outro ponto que serviu como forte incentivo à continuidade de pesquisas científicas foi a descoberta de que os pacientes podem ser contagiantes por um longo período, uma vez que foi dito que o tempo entre a detecção dos primeiros sintomas e a instalação definitiva da doença pode levar até quinze anos. Podemos identificar como um avanço, no qual os pesquisadores brasileiros tiveram grande mérito, o que diz respeito à classificação. Nesta conferência foi considerada, pela comunidade científica internacional, satisfatória a classificação

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sugerida pelo Prof. Rabelo, dez anos antes. Desta forma ficou determinado, mais especificamente, que o terceiro tipo sugerido por ele refere-se aos pacientes que apresentam bacilos escassos e manifestações clínicas apenas cutâneas. Esta classificação teve grande importância quando, posteriormente, foram criados critérios para a alta dos pacientes. Quanto às medidas de controle, as mesmas deveriam acontecer a partir de três aspectos, conjuntamente: médico (manutenção do modelo tripé), legal (leis que regulem a vida do doente) e educativo (educação sanitária destinada ao público leigo e aos comunicantes). Ficou clara também, a partir dos relatórios de deliberações, a preocupação com o bem estar social e psicológico do paciente e de seus familiares, e que caberia ao Estado garanti-los. Neste congresso, o Brasil foi representado por 27 delegados. (MACIEL, 2007) Cinco anos após o Congresso de Havana, em 1953, cientistas brasileiros se reuniam na V Reunião dos Leprólogos Brasileiros, em Curitiba. O objetivo foi aprovar recomendações do contexto nacional a fim de representá-las na 6ª Conferência Internacional de Lepra, que ocorreu no mesmo ano, em Madri. De acordo com Maciel (2007), em pesquisa em que um dos objetivos foi compreender a trajetória do desmantelamento da política isolacionista, principalmente no Brasil, este foi o encontro que teria tornado mais evidente o fracasso deste modelo de tratamento e prevenção. O ônus dos leprosários preponderou em detrimento da melhora significativa da população enferma. Os esforços agora seriam em prol do desenvolvimento de campanhas epidemiológicas tendo como fortes aliados a „Moderna Profilaxia‟ e a „Educação Sanitária‟ (grifo meu). Este Congresso se organizou em torno dos comitês de Classificação, Imunologia (presente pela primeira vez), Epidemiologia e Profilaxia, Terapêutica e Assistência Social, dos quais os 28 delegados teriam participado de todos, com exceção do último. Quanto às principais deliberações e avanços alcançados por estes comitês, segundo Maciel (2007), podemos destacar: 

Comitê de Classificação: Seria necessário acrescentar ao grupo cuja manifestação é do tipo Indeterminada, um subgrupo denominado Dimorfo ou Borderline, proposta apresentada pela delegação brasileira e aceita, por considerar formas anteriormente não consideradas de manifestação da doença;

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Comitê de Terapêutica: Em função dos resultados satisfatórios, deve-se continuar com o uso das sulfas, embora necessitando de mais pesquisas por drogas que combatam de maneira eficiente todas as formas existentes da doença. Foi informado uso da chalmoogra havia sido abandonado em quase todos os países. Foi relatado resultado positivo no uso experimental com as substâncias Hidrasida e Cortisona, apontados como método quimioterápico, assim como sinalizaram para a utilização da vacina BCG, no combate à doença.

Em relação a este uso, é importante ressaltar que o Comitê de Imunologia assinalou que as pesquisas ainda eram inconclusivas, não devendo, por isso, a vacina BCG ser considerada medida profilática contra a lepra/hanseníase. Em relação ao isolamento, recomendaram que o mesmo devesse ter caráter seletivo, indicado apenas em caso contagiante, por tempo determinado e, ao término deste período de reclusão, havendo melhoras, o paciente daria continuidade ao tratamento nos preventórios, recebendo medicação adequada. Ressaltaram que o tratamento ideal deveria se constituir pelo conjunto de medidas tais como, “educação e propaganda sanitária; proteção e controle dos comunicantes; tratamento ambulatorial; investigações científicas e assistência social” (MACIEL, 2007, 238). A este conjunto de ações denominaram “Moderna Profilaxia” (grifo meu). Do ponto de vista social, retomaram a discussão do estigma existente em torno das palavras lepra e apontaram para a necessidade de revisão da legislação como forma de proteção social ao doente, tanto no que diz respeito à internação, alta e transferência, como no que diz respeito à reinserção social do mesmo. Neste momento é importante mencionarmos que, neste mesmo ano, 1953, houve a separação das pastas da Educação e Saúde no Brasil, com a criação do Ministério da Saúde. Na opinião de Hochman (2005), não desconsiderando as intensas campanhas sanitaristas que elevaram a saúde pública no patamar das prioridades de governo, questões políticas não devem ficar de fora desta análise. Neste segundo governo, Vargas teria que se relacionar com diferentes partidos, com interesses igualmente distintos, que teriam o apoiado em 1950. Desta forma, as negociações para cargos e direções passavam pela questão de equilibrar forças políticas e interesses partidários em seu

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governo. Este cenário passa a ser indicativo de interferências políticas na gestão da Saúde, ou seja, passará a ser necessária uma adequação entre deliberações provenientes de conhecimento técnico e especializado e interesses político-partidários. Outro ponto importante que devemos ressaltar diz respeito à educação e propaganda sanitárias, tão recomendadas por estas conferências. Nos anos 1940, o Serviço Nacional de Lepra (SNL) “transmitia palestras radiofônicas, fazia filmes educativos e palestras em clubes e associações de classe, como forte estratégia de educação sanitária” (MACIEL, 2007, p.249). O que teria caído em desuso em meados da década de 1950. A última conferência analisada neste trabalho, segundo Maciel (2007), foi realizada em 1958, no Japão. Participaram deste congresso cerca de 40 países, incluindo o Brasil, que teve como principal representante o Dr. Orestes Diniz, então diretor do SNL. Em linhas gerais, as deliberações oriundas deste encontro reforçaram as anteriores, mas com uma diferença considerada determinante para os rumos do tratamento da lepra, daquele momento em diante. Pela primeira vez o isolamento foi considerado anacrônico, devendo ser abolido. A principal justificativa foi o sucesso com o tratamento com as sulfonas e quimioterápicos associados às campanhas profiláticas de cunho educativo que se disseminavam pelas sociedades mundo a fora. Com essa resolução, o tratamento baseado no isolamento do doente em instituições asilares encontrava-se completamente desqualificado perante a comunidade científica. Destacamos como principal controvérsia desta reunião, a discussão que diz respeito à classificação da doença. Devido à falta de entendimento entre os grupos divergentes, atribui-se a Organização Mundial de Saúde (OMS) a incumbência de determinar esta classificação. (MACIEL, 2007) No Brasil, a chamada „Profilaxia Moderna‟, tão comemorada em algumas conferências que analisamos, foi propulsora para a realização, na década de 50, da Campanha Nacional contra a Lepra. Neste momento, aliados aos novos remédios estiveram a descentralização das unidades de trabalho e a união de Governos Federal, Estadual e Municipal. Na medida do que se era possível em função do contexto nacional, o SNL, com Orestes Diniz à frente, procurou atualizar as medidas adotadas no país em relação às recomendadas na última Conferência. Mesmo assim, somente em

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1962, pelo Decreto 968, estaria oficializado o término do isolamento do paciente portador da lepra/hanseníase, no Brasil, embora não tivesse deixado claro a quem caberia determinadas atribuições. Isto teria levado alguns estados a não seguir esta determinação, o que só foi abarcado pela totalidade do país em 1968, a partir da Lei 5511, na qual o “isolamento foi totalmente abolido por força de uma Lei Federal” (MACIEL, 2007). Em relação ao termo lepra, apesar de sua abolição ter sido sugerida nos anos 1940, no Brasil isso só foi possível na década de 1970, quando o termo lepra foi substituído por hanseníase. 5.2 O filme e sua época O filme Combate à lepra no Brasil foi produzido em 1945 pelo INCE em parceria com o SNL (Serviço Nacional de Lepra), órgão vinculado ao MES (Ministério da Educação e Saúde) e criado em 1941 após ampla reforma nos serviços de saúde, empreendidas pelo então ministro desta pasta Gustavo Capanema. Ao assistirmos o filme, percebemos que seu objetivo é divulgar a rede de leprosários, dispensários e preventórios que se destinavam à principal prática profilática oficial para os portadores de lepra/hanseníase: a obrigatoriedade do isolamento dos doentes nestas instituições que, segundo Maciel (2010), vigorou no Brasil de 1923 a1962. Por se tornar visível a preocupação do filme em mostrar as dependências dessas instituições, assim como os benefícios que nelas os doentes podem usufruir, em detrimento de características e informações sobre a própria doença, fica claro que o filme é instrumento de uma orientação de política pública, com a intenção de enaltecer ações do governo. Embora já tenhamos assinalado algumas considerações sobre o cenário político brasileiro na seção anterior, a partir de agora nos aprofundaremos mais nesta análise. Para tanto, será importante retomarmos alguns pontos que marcaram a História do Brasil, num período ainda anterior à produção do filme. Nosso interesse é encontrar, através da narrativa historiográfica apresentada e discutida em nossos referenciais, algumas indicações que subsidiem as questões que trataremos mais adiante com a análise do filme. Desta forma, iremos nos concentrar em alguns fatos que levaram Getúlio Vargas ao poder, pela primeira vez, em 1930, e de seu governo até 1945. Acreditamos que esta retrospectiva poderá iluminar a reflexão e análise das questões norteadoras desta pesquisa. É preciso salientar que não temos aqui a pretensão de descrever todos os acontecimentos em seus pormenores, porque não é necessário a este

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trabalho. O que pretendemos aqui é produzir um cenário, fruto da descrição de alguns fatos, e de certa dose de interpretação, a fim de que possamos ancorar a análise proposta por este estudo. Em outubro de 1930, o alto comando das Forças Armadas no Rio de Janeiro liderou o movimento que depôs Washington Luís e impediu a posse de Júlio Prestes, sucessor presidencial indicado pelo primeiro, contrariando, assim, os princípios estabelecidos pela Política do Café com Leite, nos quais grupos, representantes das oligarquias de São Paulo e Minas Gerais, se revezavam no poder. Foi neste período de crise interna das oligarquias (datada pelo menos desde 1914), que uma sucessão de movimentos com caráter revolucionário, levou, em 1930, Getúlio Vargas ao poder, quando foi empossado presidente provisório da República. Segundo Vicente e Dorigo (2010), este seria o primeiro governo a representar interesses de grupos distintos, entre os quais oligarquias dissidentes, setores urbanos e militares (representados pelo movimento tenentista). Diante disso, manter esta aliança que havia possibilitado sua ascensão ao poder seria um grande desafio, pois, com o espírito revolucionário ainda latente, qualquer desagrado por parte de um desses grupos, poderia representar, para Getúlio, a perda do poder, o que claramente não desejava. Dessa forma, seu governo foi marcado por grandes tensões, seja por parte de grupos que outrora detinham o poder, e perderam, seja por parte de grupos que surgiam no cenário econômico, e que vinham expressivamente se fortalecendo. E, neste último caso, podemos dizer que Vargas soube atender, estrategicamente, às demandas dessa parcela da população que emergia dos contextos sociais urbanos. Não podemos esquecer que o mundo já havia assistido a Primeira Grande Guerra, que para o Brasil significou, entre outras coisas, o aumento da sua industrialização, propiciado pela queda das importações, e o crescimento do seu contingente populacional como resultado da grande imigração europeia. Estaria aí a origem da classe urbana que mais tarde se constituiria como um forte grupo de pressão política e econômica. Dessa forma, seus interesses não poderiam estar fora das prioridades do governo (VICENTE e DORIGO, 2010). E foi o que aconteceu. O governo de Vargas foi marcado por tentativas de agradar cafeicultores, militares, mas, principalmente, a nova burguesia industrial, o operariado e a classe média que surgiam. Podemos exemplificar essa tentativa com o fato do governo ter comprado toda a produção de café no momento da crise de 29, que

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teve reflexos na economia do Brasil pelo declínio das exportações; por ter nomeado tenentes como interventores nos estados, destituindo os governadores; mas, principalmente, por ter tomado várias medidas que incentivaram à industrialização no país, assim como a regularização da situação dos trabalhadores. Entre outras ações, Vargas instituiu a representação classista, criou o Tribunal do Trabalho e legislação trabalhista, assim como o Código Eleitoral, por meio do qual foi introduzido o voto secreto, o voto feminino e a justiça eleitoral. Mas, mesmo com essas medidas, a pressão se tornava crescente, vinda de diferentes setores. Fato que levou o governo a se tornar cada vez mais forte e centralizador (VICENTE e DORIGO, 2010). Após o Golpe do Estado Novo, em 1937, inicia-se a fase mais autoritária do governo. No mundo, em vias da Segunda Grande Guerra, o nazi-fascismo ganhava força, disseminando a ideia da pureza das raças, através de um discurso totalitário e nacionalista, pregando o autoritarismo, o anticomunismo e o militarismo. Em relação à guerra, o governo estava indefinido, mas tendeu definitivamente para os Aliados, entre outras motivações políticas, após empréstimo de 20 milhões de dólares concedido pelos Estados Unidos para iniciar a construção da usina siderúrgica de Volta Redonda. Aqui no Brasil, a ideologia nazista encontrou eco no movimento integralista que, segundo nossa fonte historiográfica, aplaudiu o golpe de 37, afinal, feito em nome do combate ao comunismo. Curiosamente, partiu dos integralistas a maior tentativa de derrubar o Estado Novo (VICENTE e DORIGO, 2010). Diante da imensa crise política que se acentuava no País, agora não só insufladas por ideias que emergiam de terreno nacional, mas também internacional, como a ameaça comunista, e diante das pretensões continuístas de Vargas, ele encontrou no exército forte aliado para o fortalecimento do poder do Estado. Sobre isso, Vicentino e Dorigo (2010, p.635) nos dizem que: Nacionalista, anticomunista e, obviamente, preocupada com questões relativas à segurança nacional, a alta cúpula militar foi lentamente sendo atraída por uma solução autoritária para a crise política brasileira. A ideia de uma ditadura sustentada na atuação e influência do Exército poderia garantir a manutenção de políticas firmes no combate às esquerdas.

A visão era a de que um governo forte poderia, também, implantar a indústria pesada, considerada importante na visão dos militares para garantir a segurança do país, num momento de grandes tensões internacionais. Aqui no Brasil o governo se mostrava cada vez mais autoritário, embora desgastado, inspirado em ideais fascistas. Neste

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espírito, foi criado, em 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que, segundo Vicentino e Dorigo: responsável por enaltecer os atos do governo, procurando sempre exaltar a figura do presidente e, de alguma maneira, aproximá-lo das camadas populares. O DIP tentava, assim, controlar os meios de comunicação de massa, além de realizar violenta censura e promover eventos culturais que valorizassem a figura de Vargas, identificando-o como o legítimo representante dos interesses nacionais.(2010, p.635)

Além desta medida, o poder policial foi muito fortalecido nesta fase do governo, principalmente a Polícia Especial, em função da centralização do poder no Estado Novo. Diversos órgãos foram criados a fim de executarem a atuação do Estado. No entanto, a principal estratégia de fortalecimento foi à aproximação de Vargas dos trabalhadores urbanos, fenômeno que na História conhecemos como Populismo. Sabemos que os governos de Vargas foram marcados por intensas crises, culminando com sua morte em 1954. Mas, aqui, nosso interesse foi demarcar uma época a fim de criarmos um cenário como contexto para a produção do filme. Neste sentido, e após o exposto, podemos ressaltar alguns pontos importantes para nossa análise. Em 1945, o país sofria um forte processo de desenvolvimento da economia por meio do crescimento da industrialização, e isso em meio a um regime altamente centralizador e autoritário. E para o êxito deste processo nacional, o contingente de trabalhadores operários e a classe urbana eram peças fundamentais, fato que acabou por determinar uma série de medidas em função deste novo contexto social e econômico que se desenhava. De acordo com esta breve análise do período destacado, tentaremos discorrer mais especificamente sobre medidas relacionadas ao campo que nos interessa, ou seja, as políticas públicas de saúde estabelecidas neste período, para, enfim, podermos situar, neste contexto, às ações relacionadas ao combate à lepra/hanseníase. Assim sendo, para um país em profundas transformações em suas bases sociais e econômicas, como exposto, resolver as questões da saúde e do trabalho tornou-se primordial. Segundo Maciel(2007), foi a primeira vez que houve uma pasta responsável pelas determinações de políticas públicas em relação à saúde. Em 1930, o Ministério da Educação e Saúde Pública (MESP) foi criado com a incumbência de “educar e curar o Brasil”.

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Na visão de Hochman e Fonseca (1999), o processo de construção de uma ideologia de nacionalidade teve como um dos principais elementos a reforma da saúde pública, iniciada ainda na Primeira República, e teve impactos relevantes na formação do Estado Brasileiro. Este movimento, segundo os autores, teria tido duas fases distintas. Uma, com Oswaldo Cruz à frente dos serviços federais de saúde (1903 – 1909), na qual as ações estariam mais voltadas para a melhoria das condições sanitárias da então capital federal, a cidade do Rio de Janeiro, e de seu porto, em função da grande importância que representava para o comércio exterior. Nesta gestão também foi prioritário o combate às epidemias de febre amarela, peste e varíola. Num segundo momento da intensa campanha de “Saneamento do Brasil” (décadas de 10 e 20), as ações concentraram-se mais no saneamento rural, sobretudo no combate a endemias como ancilostomose, malária e mal de chagas. Neste período, a Higiene foi considerada como o maior instrumento para uma reforma sanitária no País, e como um dos resultados desta campanha seria criado em 1920 o Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), uma agência mais centralizada e com ações mais abrangentes do que a anterior, a Diretoria Geral de Saúde Pública, na qual as ações eram mais restritas aos portos e à capital da República. Segundo Maciel (2007, p.40), “Com o decreto 3987, de janeiro de 1920, foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública e várias inspetorias de profilaxia de doenças, dentre elas a da Lepra”. A partir daí, novas diretrizes surgiram para a política de saúde. Estados começaram a assumir ações deste setor, inclusive qualificando profissionais para atuarem na melhoria das condições de saúde e do saneamento, para, enfim, colaborarem com um projeto maior de construção do poder público, tendo a integração do interior do Brasil como uma das prioridades. Em outro estudo, com objetivo de apreender a ideologia vigente no período histórico denominado “Primeira República” (1889-1930), e encontrar relações entre esta ideologia e a construção do Leprosário São Roque, no Paraná, Castro (2005) aponta para uma proposta de modernidade/modernização pautada nas ideias de ciência, técnica, razão, progresso, ordem e civilização, na qual estes ideários são fatores que condicionam e justificam as ações do poder político. Para a autora, a política de saúde relacionada ao controle das doenças infectocontagiosas que assolavam o País, baseada nos critérios modernos, racionais e científicos, seria incorporada pelo poder público, e legitimada pela sociedade mais ampla, por meio da segregação do doente em instituições asilares. A autora ainda acrescenta que: “seria somente o domínio total que

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poderia garantir a modernização e o progresso do país e as condições básicas de vida dos trabalhadores assalariados, motor dessa nova estrutura.” (CASTRO, 2005, p. 15). Nesse processo de modernização que, em linhas gerais, pode-se entender como a inserção do país na economia capitalista, garantir a saúde do trabalhador e da elite urbana, considerados “fontes geradoras de riqueza”, era primordial. Neste contexto, o Higienismo passou a dominar o discurso político representado por ações que tinham um caráter assistencialista e de controle da saúde do trabalhador e da população mais pobre, para que, em última instância, fossem reduzidos os riscos para as classes mais ricas e também para as forças de trabalho urbanas e industriais. Dentre essas medidas podemos destacar a vacinação obrigatória e a notificação de doenças contagiosas. Após esta breve análise sobre a República Velha, vamos nos concentrar no período em que Getúlio Vargas governou o Brasil de 1937 a 1945 e que ficou marcado, no campo político, por um governo ditatorial, como visto acima. Em relação às políticas de saúde neste período histórico, podemos observar a ocorrência de um reordenamento na estrutura administrativa da Saúde Pública a partir, principalmente, de uma integração das esferas federal, estadual e municipal. Segundo Hochman (2005), em pesquisa cujo objetivo foi caracterizar a política de saúde pública do Estado Novo, buscando identificar continuidades e inovações em relação à República Velha, e discutir seu impacto sobre as décadas posteriores, podemos atribuir a este cenário, a criação do MESP (Ministério da Educação e Saúde Pública). Para o autor, a criação deste ministério parecia ser também a realização parcial dos anseios do vigoroso movimento sanitarista da Primeira República, pois, por meio do seu Departamento Nacional de Saúde, incorporou o projeto de saúde pública da Primeira República, mantendo como prioridade a sua agenda de combate às principais doenças que se alastravam pelo país. Em função das incertezas políticas e da grave escassez de recursos financeiros, que determinava um momento de crise econômica, os primeiros anos do MESP não representaram mudanças importantes no que diz respeito à clareza em suas linhas de ação, o que nos sugere uma continuidade dos ideais da fase anterior. E que pode ser confirmado com o fato da pasta ministerial ter sido ocupada, entre outros, por Belisário Penna, o mais expressivo e radical expoente do movimento sanitarista da República Velha.

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Mas, foi somente a partir da nomeação de Gustavo Capanema para assumir a pasta ministerial, em 1934, que foram introduzidas medidas importantes na área da saúde. Permanecendo no cargo de 1934 a 1945, as reformas implementadas nesta gestão definiram novos rumos para a política de saúde pública, que passou a refletir as orientações de centralização política e administrativa do governo varguista. Foi a partir dessa reforma que o Ministério passou ase denominar Ministério da Educação e Saúde (MES). De acordo com Hochman (2005), no nível institucional, foram criadas as Delegacias Federais de Saúde, os Serviços Nacionais e a instituição das Conferências Nacionais de Saúde, com a finalidade de garantir a atuação e o controle do governo sobre as ações desenvolvidas e implementadas, assim como verticalizar as campanhas de combate a doenças específicas e às grandes endemias. Em relação a essas reformas, o autor nos diz que: Interiorizar a saúde pública −agenda clássica do sanitarismo parecia ser possível com o incremento da presença do MES nos Estados e o formato institucional escolhido foi verticalizar essas ações que seriam especializadas por enfermidade a ser enfrentada, coordenadas por um núcleo central que residiria no Ministério e implementadas de modo hierárquico nos estados e nos municípios. Com intervenções políticas nos Estados, autoritarismo, e com crescentes limites constitucionais às autonomias estaduais, seriam removidos os obstáculos para a realização do ideal centralizador do movimento sanitarista da década de 20. (HOCHMAN, 2005,p.131)

Desta forma, para o autor, as reformas empreendidas por Gustavo Capanema, apesar de não significarem soluções definitivas para os problemas sanitários do país, tornaram a gestão da saúde pública institucionalmente mais complexa. “Em particular, organizou, centralizou e profissionalizou a saúde pública, mantendo-a fortemente associada ao ideário de construção da nacionalidade por meio deum Estado forte e autoritário” (HOCHMAN, 2005, p. 139). 5.2.1 Fundação do INCE – contribuições para um projeto nacionalista A partir da contextualização da época em que o filme foi produzido, tornou-se possível caracterizar o ideário político do período delimitado por esta pesquisa e destacar algumas questões centrais que justificam a fundação do INCE como instrumento, também, a serviço das demandas de um governo que almejava garantir a atuação e controle de um Estado cada vez mais centralizador, a partir, principalmente, dos interesses do ministério ao qual o Instituto nasceu vinculado. O primeiro exemplo

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que tomaremos neste sentido, diz respeito ao texto encontrado no Artigo 1 do Projeto de Lei elaborado por Roquette-Pinto, em 1936, e apresentado a Getúlio, em que expõe os motivos que justificavam a criação de um órgão sistematizado do cinema educativo. Segundo este artigo: “O Instituto Nacional do Cinema Educativo, autônomo, é diretamente subordinado ao Ministério da Educação”. Ao passo que, uma nota em grafite sobre o segundo Projeto de Regulamento 16, apresenta em seu Artigo 1 o seguinte texto: “O Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), criado pelo Art. 40 da Lei n 378 de 13 de janeiro de 1937, é diretamente subordinado ao Ministério da Educação e Saúde e destinado a promover e orientar a utilização da cinematografia, especialmente com processo auxiliar do ensino, e ainda como meio de educação geral.”

Segundo nossa percepção, a exclusão da palavra “autônomo” observada do primeiro para o segundo documento, nos sugere o compromisso que o INCE deveria assumir, naquele momento, com aspirações políticas do governo. Outra mudança também foi observada nos mesmos documentos, que diz respeito às atribuições do INCE. Enquanto no primeiro existia um item que atribuía ao Instituto papel de examinar e aprovar filmes, ou seja, papel censor, no segundo documento este item foi retirado (GALVÃO, 2004). A respeito de toda a influência exercida pelos educadores que estiveram envolvidos com a idealização e realização do Instituto, principalmente Roquette-Pinto, não podemos dizer que houve duas histórias, distintas e dissociadas. O que observamos é que neste processo que culminou com a fundação e, ao menos, nos primeiro anos de existência do Instituto, existiu uma confluência entre ideais políticos e educativos. Isto não é de se estranhar, visto que em 1934 o governo retirou a censura das mãos do MES, com a criação do Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), vinculado ao Ministério da Justiça e dos Negócios Interiores. Este mesmo Departamento viria, em 1939, a se transformar no DIP que, como já mencionamos, “tinha a finalidade de fiscalizar e censurar os meios de comunicação, divulgar as realizações do governo federal, cultivar a cultura cívica e homenagear os chefes do Estado Novo no Brasil” (GALVÃO, 2004, p.50).

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Para maiores detalhes, esta nota em grafite encontra-se em Anexo em Galvão (2004).

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Para consubstanciar esta premissa que sugerimos, retomamos um cenário político, social e econômico, que já foi descrito anteriormente, mas que podemos resumi-lo assim: com o Golpe que instaurou o Estado Novo em 1937, Vargas torna-se mais autoritário e, com pretensões continuístas, cada vez mais centralizador. Com a economia voltada para a industrialização, cuidar da saúde passa a ser prioridade nas pautas de governo. Desta forma, após reforma na saúde, o MESP, com a função de educar e curar o país assume papel estratégico para a construção de uma ideologia de nacionalidade, que tinha na Higiene e na integração do interior, suas principais bandeiras, pautadas por critérios modernos, racionais e científicos. Assim, interessados em integrar as esferas municipal, estadual e federal, vários órgãos são criados com a função de executar, garantir e divulgar as ações do governo. E, neste cenário, situamos a fundação do INCE. Além das questões inicialmente apontadas, que nos levam a compreender que havia uma motivação política entorno desta fundação que poderia, inclusive, grosso modo, estar acima de ideais educativos, existem outras sugestões para crermos nisso. Voltando para sua linha histórica, constatamos que houveram aspectos relacionados à criação do INCE que ainda não abordamos neste trabalho. Neste momento vamos nos focar em um, particularmente, que diz respeito à influência da cultura europeia nesta trajetória. Segundo Galvão, Na Europa, nos anos 1920/30, foram instituídas agências cinematográficas estatais com base numa justificativa pedagógica do cinema. Na realidade, muitas delas se transformaram também em agências de propaganda estatal como a Cinecittá de Mussolini, na Itália, a Reischsfilmkammer de Paul Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, a Reichaelefürden Unterrichtsfilm do Ministério da Educação da Alemanha (GALVÃO, 2004, p.57).

Além destas, Roquette-Pinto, em viagem pela Europa a pedido de Capanema, em 1936, conheceu também experiências francesas com cinema educativo, principalmente com viés científico. De volta ao Brasil, certamente estas experiências lhe serviram de referência para a concepção do INCE, embora Roquette não admitisse que o Instituto brasileiro teria caráter de propaganda governamental, como, principalmente, os da Alemanha e Itália. De acordo com Galvão, emboraRoquette-Pinto reconhecesse a contribuição das instituições que visitou, insistia em destacar a independência do Instituto brasileiro, que não

118 copiava os modelos vistos, sendo seu objetivo eminentemente educativo e contrário à propaganda (2004, p.59).

Em contrapartida, ao analisarmos as produções do INCE nesses primeiros dez anos, em que prevaleceram temas sobre saúde e divulgação científica, podemos constatar que, mesmo implicitamente, estavam perfeitamente de acordo com os ideais almejados por Getúlio Vargas, dentre os quais disseminar pelo país a mentalidade de higienização e anunciar uma modernização, que seria possível, entre outros fatores, por um desenvolvimento das pesquisas científicas no Brasil. Outra categoria de filmes muito encontrada neste período são os institucionais. Estes apresentam explicitamente orientações de política pública do governo, com a intenção de exaltá-las, e nosso filmeobjeto é um exemplo disso. Em número menor, encontramos produções, neste período, que abordam temas culturais, regionais, exaltando a identidade do país a partir da inclusão do interior e de sua riqueza natural, ideia que, igualmente, conflui para a construção de um projeto de nacionalidade almejado por Vargas. Obviamente, poderíamos explorar e investigar mais sobre a trajetória do INCE, que só se encerrou em 1966. Sabemos que muitas transformações ocorreram neste processo desde a saída de Roquette-Pinto da direção, em 1946. Nos anos seguintes, alguns autores concordam que o Instituto foi perdendo gradativamente seu caráter educativo e, até mesmo, o interesse por parte do governo (CARVALHAL, 2009; GALVÃO, 2004). Mas, em função de nossos limites, priorizamos esta primeira fase. 5.3 - O filme e suas escolhas Nosso esforço, a partir de agora, será no sentido de descrever o filme em relação ao seu conteúdo, seus enunciados, considerados por esta pesquisa determinantes para uma análise historiográfica que siga a abordagem arqueológica, mencionada anteriormente. Vale lembrar que neste trabalho problematizamos a ideia segundo a qual os enunciados presentes no filme são testemunhos sobre um determinado estado de conhecimento científico e, ainda, sobre a relação deste conhecimento com a sociedade e com discursos extra científicos. No caso desta pesquisa, especificamente, de discursos que orientaram e justificaram políticas públicas na área de saúde. Assim, o que pretendemos com esta descrição é confrontar as informações trazidas pelo filme com as informações provenientes de outras fontes que referenciamos nesta pesquisa. Acreditamos que este procedimento nos conduzirá a uma reflexão sobre aspectos da natureza da ciência a partir de episódios históricos que dizem respeito à evolução do

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tratamento da lepra/hanseníase, assim como à evolução das pesquisas médicas a esse respeito para, a partir deste levantamento, discutir a possibilidade de leituras historiográficas de filmes científicos no sentido da abordagem histórico-arqueológica. Pelo fato de nosso objeto de pesquisa se tratar de obra cinematográfica, que possui linguagem e recursos específicos, não podemos deixar de incluir em nossa descrição alguns desses aspectos fundamentais para nossa análise. Embora nosso foco seja nos enunciados proclamados pelo filme, consideramos a descrição e reflexão sobre esses recursos cinematográficos relevantes para uma análise que pretende compreender como um filme se constitui como produto de uma demanda específica. Diante disso, procederemos agora à etapa de descrição do documentário Combate à Lepra no Brasil, a fim de subsidiar nossa análise no sentido de compreendermos de que forma recursos cinematográficos e enunciados se complementam na construção de uma narrativa. E buscaremos com isso confirmar ou desconsiderar nossa hipótese de pesquisa. Produzido em 1945 pelo INCE e sob direção de Humberto Mauro, Combate à lepra no Brasil é um filme do gênero documentário de curta-metragem, em preto e branco, com modo expositivo de representação. No que diz respeito ao gênero, Nichols (2005)identifica seis modos, entre os quais o modo expositivo. Segundo o autor, esse modelo apresenta uma estrutura mais argumentativa, marcada por uma narração em off, normalmente com uma voz masculina, educada mas enfática buscando com isso gerar uma sensação de credibilidade no espectador. Neste caso as imagens desempenham uma função mais no sentido de ilustrar, esclarecer o que está sendo dito. No filme, observamos exatamente essas características. Ao longo dos 14 minutos de duração, a impressão que temos é que o narrador está seguindo um texto com informações lineares, seguindo uma lógica, ao passo

que

podemos

observar

imagens

totalmente

ilustrativas

de

tais

informações(algumas imagens captadas do filme encontram-se em Anexo neste trabalho). Neste caso a montagem, ou seja, a organização dos planos é denominada montagem narrativa. Segundo Martin (1990, p.132), este modo de montagem: “consiste em reunir, numa sequência lógica ou cronológica e tendo em vista contar uma história,

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planos que possuem individualmente um conteúdo factual, e contribui assim para que a ação progrida do ponto de vista dramático e psicológico.” Já mencionamos, em capítulo anterior sobre o INCE, que a produção de documentários sobre atividades nacionais, principalmente na área de saúde, e sobre pesquisas científicas, era grande e destinava-se, inclusive, a exibições em congressos internacionais. Em relação à técnica cinematográfica utilizada, estes documentários, entre outras características, podiam ser mudos ou sonoros. Os sonoros, entre os quais se enquadra nosso filme-objeto, apresentavam uma narração em off que, segundo Moraes (2007), era normalmente realizada pelo próprio Roquette-Pinto. Sobre a técnica cinematográfica privilegiada por este tipo de produção, a autora ainda nos diz que: Nos filmes institucionais, ou seja, nos documentários sobre institutos ligados ao Ministério, o uso do plano geral era comum. Alguns closes eram dados para identificação de detalhes dos prédios, que retratavam, algumas vezes, ações de cautela ou cuidado por parte da administração governamental. (MORAES, 2007)

De fato, o que observamos no filme é a predominância dos planos gerais, abertos, o que, em nossa análise, representa uma preocupação em evidenciar as dependências das instituições divulgadas. Os planos fechados e closes são raros e, quando ocorrem, a ênfase da cena é dada em ações do cotidiano como closes em pessoas lendo, jogando, mulheres tricotando, costurando, ou ao trabalho do médico especialista. Em relação à narrativa, podemos destacar três argumentos principais que se entrelaçam ao longo da trama. Um, diz respeito a informações sobre a fundação de instituições asilares no Brasil; outro, se ocupa em informar sobre benefícios que os doentes podem usufruir nestas instituições, tanto no que diz respeito à infra estrutura como no que diz respeito à qualidade do tratamento médico oferecido; e, por fim, as informações que se destinam a divulgar ações do governo. Em relação a esses pontos destacados, Galvão acrescenta que: O caráter institucional e de propaganda pró-governo do filme é evidenciado não só pelas imagens, mas também pela narração em off. O narrador acrescenta que a constituição brasileira permitia que os leprosos casassem e constituíssem famílias. As crianças que eles geravam ficavam sob a responsabilidade do Estado. Elas ficavam junto com os pais quando nasciam portando a doença, mas se fossem saudáveis ficavam em asilos especiais. Os sujeitos que atuam e que são valorizados no filme são os especialistas e o poder público, que se responsabiliza também por criar e garantir o futuro dos filhos dos doentes. (GALVÃO, 2004, p.120)

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De fato, esta descrição que realizamos, em linhas gerais, pode ser confirmada quando descrevemos mais detalhadamente a narração do filme e as imagens que as acompanham. Em função da qualidade da produção, algumas palavras não foram compreendidas, mas isto não comprometeu o entendimento da pretensão da mensagem. Assim, nos primeiros dois minutos, as primeiras sequências nos remetem à parte da história da doença, trazendo informações sobre a sua introdução no Brasil. Segundo a narrativa: A Lepra, doença mais antiga que se tem notícia na história da humanidade, não existia no Brasil antes da colonização. Os primeiros casos foram verificados em 1600 e foram disseminados, principalmente, pelos escravos africanos. Cobrindo esta narração, que no filme representa a introdução ao tema, podemos ver imagens estáticas, como gravuras de mapas e escravos em navios negreiros, como as que normalmente encontramos em livros de História do Brasil ou História Geral. Após esta introdução, a narrativa ocupa-se em datar, sequencialmente, a fundação do primeiro asilo para leprosos no Brasil, apontar o primeiro Regulamento de Combate à Lepra, assim como divulgar a fundação de asilos em diversas regiões do país, como observamos no trecho a seguir: Em 1714 foi fundado, em Recife, o primeiro asilo para leprosos, pelo padre Antônio Manuel. Em 1741, foi feito o primeiro Regulamento de Combate à Lepra no Brasil e, no mesmo ano, Gomes Freire de Andrade fundou, no Rio de Janeiro, o asilo que deu origem ao antigo Hospital dos Lázaros, hoje denominado Hospital Frei Antônio, em São Cristóvão, sob a administração da Irmandade da Candelária. De 1741 a 1920 foram fundados cinco asilos em diversos pontos do País, ao norte, ao centro e ao sul. Em Sabará, MG, existe um desses velhos asilos que hoje está transformado em manicômio e prisão para leprosos condenados ou indisciplinados. Na cidade mineira há ainda um Sanatório Modelo, único no gênero, destinados a pensionistas doentes. O sanatório de Sabará veio facilitar o isolamento em bases de maior conforto, às pessoas que podem custear o seu internamento. (COMBATE, 1945)

Cobrindo esta narração, se sucedem imagens em movimento, com takes de plano aberto nas fachadas de antigas construções, que seriam os antigos asilos, e imagens do que estes seriam em 1945. Também há imagens panorâmicas da cidade de Sabará, quando a mesma é referenciada pelo filme. Nesta sequencia praticamente não aparecem pessoas, e quando aparecem estão ao longe, entrando ou saindo das instalações, circulando pelo pátio ou nas sacadas. Essas informações apontadas não ocupam mais do que três minutos do filme, ficando os onze minutos restantes encarregados de discorrer sobre ações mais efetivas

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por parte do governo, no tratamento da lepra, nas quais a principal ação se constitui no isolamento dos doentes, assim como de seus familiares, em instituições denominadas leprosários, dispensários e preventórios. Segundo Maciel: Tal tratamento, denominado na literatura médica especializada, „como modelo tripé‟ era amparado no funcionamento conjunto de três instituições que procuravam cercear a doença, o doente e os que com ele se relacionavam: o leprosário visava isolar e tratar o doente; o dispensário tratava dos comunicantes, normalmente familiares e os que com o doente haviam mantido contato; e, por fim, o preventório, que separava desde o nascimento se possível, os filhos dos pacientes isolados. (MACIEL,2007, p.18)

Desta forma, o filme se ocupa, na maior parte do tempo, em divulgar estas instituições, enaltecendo este modelo de tratamento, como vemos a seguir. Após esta breve introdução, a narrativa assume um caráter mais enfático, em que é possível perceber com mais clareza que esse tipo de tratamento faz parte, agora, de uma plataforma nacional de governo. E isto se evidencia a partir da seguinte fala do narrador: Em 1920, quando se iniciou a verdadeira batalha científica no combate ao mal de Hansen no Brasil, foi criada a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas. Foram então instalados, de 1920 a 1935, leprosários em vários Estados e um na Capital, não apenas para abrigar o doente, mas, sobretudo, com caráter profilático. O Hospital Colônia de Curupaití é um exemplo. Abriga 600 pessoas. Apesar de sua pequena área não permitir a constituição de uma verdadeira colônia, já aumentou sua capacidade para abrigar 800 pessoas. Desde 1935, o combate à lepra, orientado pelo governo federal, vem obedecendo a um plano metódico e progressivo. O Brasil tem 37 leprosários, 29 do tipo colônia agrícola, 6 do tipo hospital de asilo e 2 sanatórios, atendendo a cerca de 21 mil doentes.(COMBATE,1945)

Simultaneamente, continuam as imagens de fachadas das instituições, pátios internos, e já começam algumas imagens do interior, com closes em pessoas lendo ou jogando dama. A seguir, são mencionadas as medidas profiláticas e assistenciais. O filme assume que os leprosários, dispensários e preventórios são as peças fundamentais empregadas na profilaxia da lepra. A partir de então, passa a descrever as atividades dos médicos assim como as dependências destas instituições e a principal finalidade de cada uma delas, como no trecho a seguir: As atividades de combate à lepra começam com o cerco aos leprosos, trabalho penoso, realizado por médicos e especialistas que percorrem o país em todas as direções a procura de doentes. O médico preenche uma ficha do

123 doente determinando sua forma clínica para as justas medidas profiláticas e assistenciais. (COMBATE, 1945)

Além de imagens do interior das instituições, vazias, ou closes como os que mencionamos anteriormente, neste trecho assistimos uma sequencia de imagens de duas pessoas andando a cavalo por áreas rurais, vestindo jaleco branco, como médicos, dando a entender que estão em busca de doentes. Param em frente a um casebre, no qual entram e a cena passa a focar o trabalho do médico, abrindo uma maleta sobre a mesa e retirando alguns instrumentos. A seguir, a cena volta-se para um procedimento realizado pelo médico, rapidamente, sem nenhum tipo de informação quanto ao procedimento, que consiste apenas em tocar a pele de uma pessoa, um doente, com um desses instrumentos. A seguir, a narrativa passa a descrever detalhadamente estas instituições e suas dependências, como destacado: O leprosário é destinado a isolar o doente contagiante. O tipo que mais convém ao Brasil é o de colônia agrícola. Normalmente dispõem de grande área e são divididos em duas zonas totalmente distintas, a zona dos sadios e a zona dos doentes. A zona dos sadios é subdividida em residencial para médicos e funcionários, e para a administração. Na zona dos doentes localiza-se a vila residencial onde estão instalados os pavilhões para residência coletiva, residência para casais, isoladas ou geminadas, e pavilhão para crianças e velhos. Também existe o pavilhão de diversão com teatro, cinema, salão de baile, biblioteca, clube recreativo e literário. Possui uma Prefeitura dos doentes internados, onde o prefeito é nomeado e recebe ordenado mensal. O policiamento é feito pelos próprios doentes, existindo um delegado. Há um pavilhão destinado aos serviços médicos, hospital, enfermarias e dispensários para o tratamento da lepra e demais enfermidades. Existem instalações esportistas. É comum jogos entre colônias e os esportistas viajam em conduções especiais.(COMBATE, 1945)

Sequencialmente vemos imagens panorâmicas das colônias, verdadeiras “cidades de leprosos” (grifo meu), com pessoas circulando e utilizando as dependências, principalmente a parte externa. Internamente, vemos apenas alguns closes de médicos realizando exames em doentes, mas os mesmos quase não aparecem, apenas algumas partes do corpo, como as costas e os braços, onde podemos ver algumas manchas na pele. Da mesma forma, não há referências aos procedimentos médicos, nem a determinada forma de tratamento. Aparecem homens sentados em uma espécie de biblioteca, de terno e gravata, lendo jornal, como se fossem os doentes que trabalham na prefeitura da instituição. É dada muita ênfase aos jogos esportivos, aparecendo times de doentes realizando algumas das modalidades mencionadas no filme.

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Além do “conforto” (grifo meu) das dependências que procura exaltar, o filme também aborda a questão de produtividade e da liberdade dos internados. Segundo o filme: em torno da vila residencial dos doentes acha-se a zona rural destinada à cultura e a criação, realizadas pelos próprios doentes. Possuem grande quantidade de gado leiteiro e outros animais. Dos trabalhos da pecuária e da lavoura decorrem grandes proveitos. Benefício moral que é dar trabalho para centenas de doentes inválidos, e benefício de ordem econômica que é obter colheita farta, de qualidade e por preços menores. Todo trabalho realizado pelos doentes internados é remunerado pela administração. Os doentes gozam de certa liberdade de ação dentro das colônias, embora sujeitos a regulamentos disciplinares. Há nas colônias completa liberdade espiritual para a prática de diferentes religiões. (COMBATE, 1945)

Cobrindo este trecho do filme, assistimos imagens de pessoas circulando por grandes áreas de plantações com instrumentos próprios para realizarem atividades diversas, como plantar e colher alimentos, e ordenhar gado leiteiro. Em relação ao trecho sobre a liberdade dos doentes, vemos apenas imagens do exterior de uma igreja da colônia, pessoas rezando dentro dela e um grupo de crianças sentadas em baixo de uma árvore com um senhor usando trajes de padre. Pelas imagens que aparecem na cena, como uma estátua de São Lázaro na entrada da igreja, nos leva a crer que se trata de uma igreja católica. Em relação aos comunicantes, ou seja, pessoas que convivem ou conviveram com leprosos, o filme informa a existência de diversos dispensários em todo o Brasil, com a finalidade de tratamento e vigilância dos mesmos. Estes, segundo o filme, necessitam de exames periódicos, de seis em seis meses, e que podem ser realizados nos dispensários ou em domicílio. Para as crianças que conviveram com leprosos isolados, ou que nasceram em leprosários, o filme informa que existiam, naquela época, 26 preventórios que abrigavam 2.500 crianças, mas tinham capacidade para 5.000. Por fim, o filme menciona o casamento entre leprosos e a segregação de seus filhos, mas, ao mesmo tempo em que relata esta “violência” (grifo meu), o filme enaltece os cuidados que as crianças recebem nas instituições preventoriais, como relatado na seguinte passagem: A Legislação Brasileira permite o casamento entre leprosos, quantos sejam eles, embora advertidos de sua inconveniência. O matrimônio é realizado na própria colônia. A criança, logo que nasce, é separada imediatamente de seus pais e enviada aos preventórios ou entregue aos cuidados de famílias idôneas. Nos preventórios as crianças, desde recém-nascidas até os 18 anos, recebem completa assistência educacional, profissional e médica. O trabalho

125 das crianças internadas, além de educativo, concorre para aliviar as despesas com a sua manutenção. Os preventórios foram, em geral, construídos e instalados pela iniciativa particular, com o auxílio da União, que também construiu e instalaram alguns. São mantidos e administrados pela Sociedade de Assistência aos Lázaros, organizações particulares que prestam relevante serviço à profilaxia da lepra. O Estado auxilia estas Sociedades com subvenções e assistência técnica. Para os meninos que saem do preventório após o período de vigilância, existe um aprendizado técnico profissional que permite a realização de ofícios variados.(COMBATE, 1945)

Esta narração é ilustrada por imagens em movimento das Instituições, como ocorrem ao longo do filme, mas, também, imagens de crianças recém-nascidas no colo de freiras, imagens de berçários, crianças de idades variadas nas dependências de preventórios, algumas sendo submetidas a exames, como os anteriormente relatados. Também vemos imagens de grupos de meninas uniformizadas, aprendendo a costurar, instruídas por uma freira, e meninos trabalhando na lavoura. A seguir, assistimos uma sequencia de imagens em movimento na qual um grupo de meninos recebe instrução e realiza diferentes ofícios como de sapateiro e marceneiro. Ainda sobre os recursos cinematográficos, os únicos efeitos sonoros existentes são a narração em off, que já mencionamos, e a música que acompanha a narração do início ao fim. Neste caso, podemos dizer que a música assumiu um papel lírico, segundo o qual tem a intenção de reforçar a densidade dramática, intensificando a sensibilidade. O filme foi acompanhado por um estilo de música clássica instrumental, como uma orquestra, uma sonata, que se intensificava ou abrandava, de acordo com a necessidade de se enfatizar uma informação trazida tanto pela narração quanto pela imagem que a acompanhava. Em alguns momentos, ao término de algumas informações, as imagens que se sucediam eram acompanhadas apenas por esta música, até que a narração retornava, trazendo outras informações. Sobre a importância da música no filme, apontaremos um exemplo que nos leva a refletir sobre a utilização dos recursos fílmicos em prol de uma demanda. Poderiam ser diversos, pois o filme foi todo construído privilegiando a mesma relação imagem/narrativa/recurso sonoro, mas optamos por um em específico, por entender que o mesmo pode responder pelo filme em sua totalidade. Sobre o trecho selecionado, o mesmo corresponde à cena final, e o momento em que observamos uma maior intensidade e dramaticidade no tom da música. Logo após o último trecho que descrevemos, o narrador diz: “A lepra é evitável. A continuidade das medidas atualmente empregadas em seu combate trará a extinção deste flagelo no Brasil e será uma vitória da Higiene Moderna.” (COMBATE, 1945)Ao longo desta fala há uma sequência em plano aberto, com imagens de crianças aparentemente sadias

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brincando de roda, finalizada com um plano fechado numa única criança, sorrindo e olhando para o horizonte. Em nossa análise, este procedimento representao golpe final da produção fílmica em busca da sensibilização e identificação do espectador em relação à mensagem transmitida. Nos chamou a atenção o fato de não aparecerem pessoas doentes no filme. (SHARTZMAN, 2004 apud MORAES, 2007) As imagens são construídas de forma que possamos acompanhar a rotina dos pensionistas nas instituições que, na verdade, funcionavam como uma espécie de cidade de hansenianos. Estas pessoas não apresentam nenhum indício de doença, ao contrário, se mostram sadias, cheias de vigor, como se desfrutassem de uma espécie de hotel fazenda. Observamos que a forma como a narrativa foi construída nos dá a impressão de que o tratamento do doente através de seu isolamento nas instituições asilares representava o que havia de mais avançado em termos de pesquisa médica/científica sobre esse assunto, naquela época. Inclusive, a presença de médicos é marcante no filme, como se respaldassem as medidas divulgadas. E nosso interesse reside justamente aí. O que buscamos, com esta pesquisa, foi compreender até que ponto os discursos e promessas relacionadas ao tratamento da lepra/hanseníase, que orientaram o filme, estiveram de acordo com o que já se havia conquistado em termos de avanço para o tratamento. Após nossa pesquisa documental, suspeitamos de que prioridades e metas de governo levaram o filme a fazer escolhas que, não necessariamente, representavam o que de melhor havia para a população de leprosos/hansenianos naquele momento. Discutir sobre os motivos que nos levam a pensar assim é o que nos propomos a fazer no capítulo a seguir.

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Capítulo 6 RESULTADOS E DISCUSSÃO – A RECONSTRUÇÃO

Ao assistirmos o filme, percebemos claramente que seu principal objetivo é destacar a ação do Serviço Nacional de Combate à Lepra, do Ministério da Educação e Saúde, na qual a principal intervenção por parte do governo, representado no filme pelas classes médica e científica, se constitui em isolar o doente em instituições asilares, tão largamente divulgadas neta produção. O que não fica claro é que, naquela época, este tratamento baseado no isolamento do doente já estava desqualificado perante a comunidade médica e científica, não só no Brasil como em outros países. Alguns haviam inclusive, se não erradicado a doença, ao menos controlado a partir de novos medicamentos e principalmente, a partir de uma política forte onde a atuação profilática mais efetiva era baseada na adoção de medidas educativas, como foi o caso Noruega (DUCATTI, 2007). Diante das informações que trouxemos ao descrever o filme, buscaremos discutir sobre alguns questionamentos possíveis que dele emergiram. Primeiramente, procuraremos compreender de que forma a comunidade científica se posicionava em relação ao isolamento dos doentes naquelas instituições, até a época em que o filme foi produzido. Neste caso, como já dito, o filme nos serviu como “filtro de questões e nos forneceu as informações que configuraram o ponto de partida da pesquisa” (REZENDE, 2011, p.2), e que agora iluminarão nossa discussão. Uma delas é o fato de que o filme exalta o trabalho dos médicos especialistas, mas, ao mesmo tempo, não menciona nenhuma forma de tratamento para a doença, como as sulfonas e quimioterápicos que, segundo Ducatti (2007), já eram utilizados sem que houvesse a necessidade de isolar o paciente do convívio social e familiar. Apesar de o filme ser visivelmente uma propaganda governamental, seu objetivo central é divulgar ações de tratamento e profilaxia de uma doença, a Lepra. Este fato nos leva a crer que tais medidas divulgadas deveriam estar de acordo com as pesquisas científicas mais recentes sobre este tratamento, principalmente por terem sido tão amplamente divulgadas. Acreditamos que esclarecer estas questões será importante para uma análise que pretende contribuir com a discussão a respeito da natureza da ciência a partir de episódios históricos.

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A fim de garantir aos leitores, que por ventura se disponham a percorrer por estes caminhos, que não se percam pelas trilhas que indicamos, apresentaremos agora um atalho a partir do qual será possível visualizar seus principais pontos de referência. Olhando em retrospectiva os caminhos trilhados por nós, podemos considerar que este trabalho buscou fundamentação em ampla literatura especializada, a partir de estudos que se debruçaram sobre temas diversos. Basta retomarmos nossa proposta de pesquisa para que isto se torne evidente: suscitar reflexões e discussões, mediante um filme científico de arquivo, sobre a NdC a partir de episódios históricos reais, ou seja, tendo a história da ciência como fonte geradora de tais episódios, almejando, com isso, buscar caminhos que contribuam para melhorias na formação docente. Isto quer dizer que para desenvolvermos a proposta desta pesquisa recorremos a estudos que nos trouxeram valiosas contribuições a respeito: (1) da relevância atribuída ao conhecimento de aspectos sobre a NdC, por cidadãos, em geral, e por professores, particularmente; (2) da forma como tais aspectos podem ser abordados tendo a história e historiografia da ciência como instrumentos privilegiados de análise; (3) da utilização de recursos audiovisuais em contextos educativos, e de metodologia específica para este fim, sendo esta uma metodologia de análise fílmica. Assim, diante deste arcabouço teórico, definimos nossas escolhas sobre as quais recairá nossa análise de dados. Portanto, caberá a nós, após esta exposição, apontar de que maneira ametodologia de análise fílmica referendada por este estudo, poderá abarcar as discussões acima descritas e que dizem respeito à relação pedagógica entre Natureza e História da Ciência, de forma a constituírem um corpus articulado e coerente de saberes. Nesta perspectiva, nosso esforço será, a partir de agora, no sentido de reconstruir nosso filme-objeto à luz dos dados obtidos na pesquisa histórica, ou seja, obtidos na etapa de Desconstrução do filme, e privilegiados em nossa narrativa historiográfica. Estas etapas do trabalho, segundo a metodologia de análise fílmica, como apresentamos no capítulo 4, têm a função de validar ou desconsiderar o(s) eixo(s), ou a(s) hipótese(s), de trabalho determinado(s) pela pesquisa. No caso da presente pesquisa, serão no sentido de confirmar ou invalidar a possibilidade de um olhar historiográfico para o filme a partir da abordagem histórico-arqueológica, proposta por Michel Foucault e discutida por Roberto Machado, como apresentamos em nosso capítulo 2.

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Assim sendo, para procedermos à análise histórico-arqueológica do filme Combate à Lepra no Brasil, e, portanto, discutir sobre seus resultados, será preciso retomar alguns pressupostos, em linhas gerais, que orientaram nosso estudo, e que igualmente iluminarão esta análise de dados: 1- Atribuindo ao conhecimento sobre NdC dimensão de valor cultural, capaz de desenvolver autonomia intelectual e pensamento crítico, nossa escolha de análise recai sobre os aspectos consensuais da NdC que dizem respeito a questões extra científicas envolvidas na produção de conhecimento pela ciência, entre os quais: a ciência apresenta determinada subjetividade (envolve, por exemplo, posições pessoais, preconceitos); a atividade científica se desenvolve em determinado contexto histórico, social e cultural, com o qual interage e do qual sofre influência. Assim, o que pretendemos com esta análise é apresentar a ciência como atividade humana em uma perspectiva sociocultural. Acreditamos que, também nesta perspectiva, será possível apresentarmos o conhecimento científico como transitório e fruto da cooperação de grupos de cientistas, embora estes não constituam nosso foco principal de análise. 2- A História da Ciência é uma fonte inesgotável de episódios capazes de esclarecer não só estes aspectos privilegiados por nós, como outros aspectos da NdC. Mas para que os mesmos assumam o papel de questionar e transformar concepções equivocadas sobre a ciência, estes episódios precisam ser lidos e reconstruídos à luz de uma perspectiva filosófica contemporânea sobre a forma como a ciência se desenvolve e opera. Acreditamos que a abordagem histórica privilegiada será determinante não só para a escolha dos episódios, como para o tratamento de dados provenientes dos mesmos. Nesta tônica, entendemos que a abordagem histórico-arqueológica traz em seus fundamentos uma concepção de ciência informada por reflexões da chamada Nova Filosofia da ciência contribuindo, desta forma, para os objetivos almejados por esta pesquisa. 3-

Quando falamos em história da ciência e/ou utilização de recurso

audiovisual em contextos de aprendizagem, normalmente vemos os mesmos utilizados a partir de uma abordagem factual, ou seja, descrevendo e ilustrando fatos, teorias, datas, biografias, etc. Acreditamos que este tipo de abordagem da história da ciência não pode vir isolada, pois corre o risco de produzir visões simplificadas e mitificadas tanto da história quanto da ciência e do cientista. Por esta razão, o que pretendemos com esta pesquisa é averiguar a possibilidade de agregarmos a este, outro olhar historiográfico

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em contextos de aprendizagem, que outrora apresentamos e que traz consigo suas especificidades e contribuições. Partimos do pressuposto segundo o qual a compreensão por parte dos professores sobre essas especificidades irá influenciar a maneira segundo a qual os mesmos irão se apropriar dos recursos audiovisuais quando a intenção for discutir a natureza e a história da ciência. Cabe ressaltar que, embora nosso foco resida na utilização do recurso audiovisual para discutir sobre natureza e história da ciência, apresentamos uma metodologia ampla de análise fílmica que acreditamos poder ser aplicada em diversos contextos, sobre temas variados, pois também é nosso objetivo contribuir para que professores utilizem este recurso de forma a explorarem mais suas potencialidades. Objetivo que justificamos e fundamentamos em nosso capítulo 3. Voltando agora para nosso filme-objeto, buscaremos compreender de que forma pode ocorrer uma leitura historiográfica que esteja de acordo com a abordagem histórico-arqueológica. Como mencionamos anteriormente, o conceito de história arqueológica sugerido por Foucault teve como principal referência as histórias epistemológicas. Para Foucault, essas histórias “têm por objetivo investigar a produção de verdade na ciência, que ela considera como processo histórico que define e aperfeiçoa a própria racionalidade” (MACHADO, 2006, p. 9). Foucault toma este tipo de abordagem historiográfica como referência a partir de seus principais fundamentos, a fim de apontar porque a mesma não dá conta de apresentar a atividade científica em sua complexidade. Este autor assinala que a abordagem epistemológica desconsidera a influência de discursos extra científicos sobre a forma como a ciência se desenvolve e apresenta, em contrapartida, a abordagem arqueológica como caminho possível para este fim, como discutimos no capítulo 2.Sendo assim, a título de comparação, para compreendermos melhor a abordagem arqueológica trazida por Foucault, a partir de nosso filme, iremos, em linhas gerais, pontuar algumas questões levantadas pelo autor sobre a abordagem que lhe serviu de referência. Neste sentido, para as histórias epistemológicas a ciência está em constante progresso. E para entender a dinâmica deste progresso é preciso compreender o estado atual de determinado conhecimento, visto pela história epistemológica como a “verdade” (grifo meu), ou seja, o estado mais avançado do conhecimento, a fim de julgar o estado passado deste conhecimento, o “erro” (grifo meu). Diante disso, para uma abordagem epistemológica da história da ciência mediada por um filme científico de arquivo, o mais importante será entender como o filme apresenta determinado

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conhecimento científico em sua época, a fim de confrontar com o estado deste conhecimento na atualidade (REZENDE, 2008). Nosso filme tem como questão central o isolamento do portador da lepra/hanseníase em instituições asilares, os leprosários, como a principal medida profilática naquele período, o ano de 1945. Olhar para o filme a partir de uma abordagem histórico-epistemológica significa, segundo nosso referencial teórico, procurar compreender as questões envolvidas no processo de isolamento do doente. Mas, para a história-epistemológica, as questões que interessam são as que dizem respeito a normas e procedimentos internos à ciência. No filme podemos identificar e analisar essas questões no que diz respeito, por exemplo, às trajetórias de descoberta do agente etiológico da doença, das hipóteses de transmissão e contágio, do desenvolvimento de novos medicamentos, das formas de diagnóstico, etc. Recorrendo à pesquisa historiográfica que desenvolvemos a respeito da trajetória das pesquisas médicas e do tratamento da lepra/hanseníase, observamos que algumas destas questões foram vinculadas à necessidade de isolamento do paciente, atestado e sustentado por muito tempo pela comunidade científica. Desta forma, podemos assinalar alguns episódios que nos permitem proceder a este tipo de abordagem. Tomando o tema da transmissão e contágio, por muito tempo a comunidade médicocientífico atribuiu à doença um caráter unicamente hereditário, por falta de conhecimentos clínico-imunológicos. Na opinião de Adolpho Lutz, grande estudioso da lepra, a doença era transmitida a partir de picada de inseto, apesar da descoberta do agente etiológico datar de 1874. Esses argumentos demonstram as controvérsias que existiam em torno do tema da transmissibilidade e contágio da doença, e era baseado unicamente em observações simples, fato que acabou por contribuir, sabemos hoje, para um significativo aumento do número de casos da doença. Trazendo nossa pesquisa documental até a atualidade, observamos que esta ciência que outrora respaldou ações de tratamento e profilaxia baseadas em observações simples, deu lugar à ciência baseada em pesquisas científicas segundo as quais a lepra/hanseníase passou à infectocontagiosa, de evolução lenta, cujo agente causador é o Mycobacterium leprae, pertencendo ao mesmo gênero que o bacilo de Koch, causador da tuberculose.

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O mesmo podemos analisar sobre a relação dos medicamentos disponíveis e a medida de isolamento do doente. Por muito tempo o discurso científico legitimou esta medida a partir de argumentos como, por exemplo, a falta de medicamento eficaz para o combate à doença. O óleo de chaulmoogra era o único disponível até pelo menos 1940, mas não se mostrava eficaz em todas as manifestações da doença. Somente a partir do desenvolvimento dos quimioterápicos, nos anos 1950, que a medida de isolamento pode ser totalmente abandonada. Para a história epistemológica, estes são exemplos de “julgamento” (grifo meu) de “erros” (grifo meu) do passado, segundo “normas relativas ao estado mais aperfeiçoado” (REZENDE, 2008, p. 4) deste conhecimento, na atualidade. Mas, ao elegermos a proposta de Foucault, o que pretendemos é buscar destacar em nossa análise os fatores extra científicos que influenciam a produção de conhecimento pela ciência e, no caso desta pesquisa, a produção de um filme de divulgação, em detrimento a uma discussão que priorize mostrar a forma como estes conhecimentos se desenvolvem e evolucionam em direção a um estado cada vez mais avançado. Ou ainda em detrimento a uma análise sobre como o filme apresenta o estado do conhecimento científico em sua época de produção. Portanto, em nossa análise, lançamos um olhar para o filme segundo uma abordagem histórico-arqueológica, ou seja, um olhar que busque compreender que existem aspectos externos à atividade científica, que não dizem respeito às normas internas da ciência, que precisam ser considerados quando se almeja produzir uma imagem informada sobre a NdC. Para a história arqueológica o que interessa são as “condições de possibilidades de saberes e discursos” (REZENDE, 2008, p.5), isto quer dizer que, a análise de saberes produzidos pela ciência no passado, segundo esta abordagem, é feita a partir de saberes que lhes foram contemporâneos, e não segundo normas da ciência na atualidade. Se concebemos a ciência como uma atividade que se desenvolve em determinado contexto histórico, social e cultural, com o qual interage e do qual sofre influência, somente apreendendo as particularidades destes contextos será possível uma compreensão da produção científica na complexidade de suas relações com a sociedade. Neste sentido, Rezende considera que: Uma análise arqueológica dos filmes de divulgação científica do INCE, por exemplo, apontaria como essa produção se articulava a projetos “extra científicos” estatais, ou como estes filmes não são meramente “versões”

133 cinematográficas do conhecimento científico, uma vez que expressam dimensões sociais da produção científica que são importantes para compreender como a ciência se relaciona com a política, a sociedade, a cultura e o poder na contemporaneidade que lhe é própria. (2008, P. 5)

Desta forma, com base no que já discutimos e apresentamos sobre a abordagem histórico-arqueológica, o que pretendemos em nossa análise é procurar compreender as condições de possibilidades históricas do filme analisado, sobretudo no que diz respeito ao que ele mostra sobre a prática do isolamento do doente de lepra/hanseníase na época de sua produção. Para tanto, buscaremos estas condições a partir de articulações discursivas que envolvam diferentes instâncias sociais, até discursos econômicos e políticos. Nosso levantamento documental proporcionou um rico episódio de pesquisa uma vez que nos permitiu ampliar nosso olhar para além do que o filme mostra e diz, e são esses os elementos que interessam para uma abordagem arqueológica. Retomando, então, as questões trazidas pelo filme como nosso ponto de partida, para procedermos à análise histórico-arqueológica iremos confrontá-las com informações trazidas por outras fontes historiográficas, como as que aqui foram referenciadas em nosso capítulo 5. Cabe lembrar que o que almejamos ao fim deste procedimento é termos claro, a partir destes episódios históricos, os aspectos consensuais sobre a NdC que optamos por eleger em nossa análise. Nesta perspectiva, iremos agora apresentar nossa discussão e análise de dados. Logo que o filme inicia, o narrador introduz a temática da lepra buscando apresentar uma cronologia historiográfica a partir da seguinte fala: “A lepra, doença mais antiga que se tem notícia na história da humanidade, não existia no Brasil antes da colonização. Os primeiros casos foram verificados em 1600 e foram disseminados, principalmente, pelos escravos africanos.” (COMBATE, 1945)Ao recorrermos a outras fontes historiográficas e documentais constatamos coincidência apenas em relação aos primeiros casos registrados no Brasil, em 1600, pois, em relação aos disseminadores, Ducatti (2007) e Minuzzo (2008) atribuem à chegada dos colonizadores europeus. Esta poderia ser inicialmente, uma questão divergente fruto da dificuldade em diagnosticar a doença, que existiu desde a Antiguidade até início do século XX, acabando por interferir na disponibilidade de registros que buscavam datar sua origem, etc. Mas, após nos aprofundarmos nesta pesquisa, constatamos que todos os trabalhos aqui referenciados que se dedicaram a um movimento historiográfico da lepra/hanseníase, apontam para um alastramento da doença pela Europa na Idade Média, controlada

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apenas no século XIX. Este fato nos sugere que, se os europeus chegaram em solo brasileiro antes dos escravos africanos, teriam sido eles os responsáveis pela introdução da doença no Brasil. Avançando em nossa pesquisa, podemos encontrar um discurso correlato a este que atribui ao escravo africano a “culpa” pela entrada da lepra no país. Este diz respeito a certo “racismo científico” que existia por trás do discurso de modernização das cidades a partir da chegada dos imigrantes europeus. Neste discurso, a modernização seria baseada no processo de “branqueamento do país”, segundo o qual se atribuía a herança africana à falta de resistência da população às doenças tropicais (HOCHMAN e FONSECA, 1999; SANTOS, 1985). Em nossa análise, este é o primeiro ponto que compreende um enunciado do ponto de vista arqueológico, pois, embora as evidências apontassem para a introdução da doença pelos europeus, interesses políticos foram determinantes para a não veiculação desta informação pelo filme.Da mesma forma, era interesse desqualificar a população africana, a partir de um discurso de inferioridade racial. Outra questão a considerar é a que relaciona a cultura cristã com a trajetória da doença. No filme, podemos encontrar enunciados e imagens que nos sugerem uma leitura que vem a confirmar, mesmo que indiretamente, esta dimensão de subjetividade que buscamos atribuir à NdC e que, no caso da lepra/hanseníase, encontra-se intimamente relacionada à difusão do cristianismo no ocidente. Entendemos que esta subjetividade diz respeito a certa dose de posições pessoais como crenças, preconceitos, etc, que também influem sobre a atividade científica. No filme, podemos observar logo no início, quando a narração se ocupa em datar a fundação dos primeiros leprosários e de outros já na atualidade (1945), que os mesmos estavam sempre sob a administração de instituições religiosas. A presença de freiras e de um padre no filme, prestando assistência e tratamento aos doentes, juntamente aos médicos, nos sugere que esta tradição não foi abandonada, mesmo quando o Estado passou a assumir e centralizar as ações na área da saúde. Este é um ponto que se tornou bastante evidente em nossa narrativa historiográfica, que relaciona a Igreja com a representação social da doença. Podemos atribuir a esta instituição a produção de um estigma tão fortemente vinculado, principalmente, à imagem do doente que os acompanha até os dias de hoje. Situando no pecado sua causa, e no sofrimento sua redenção, ao doente só cabia entregar-se à vontade de Deus, imbuído de humildade e resignação. Diante deste discurso enunciado

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pela Igreja, o que assistimos ao longo da Antiguidade e Idade Média foi a submissão da medicina/ciência a esta ordem eclesiástica. Aos médicos cabia apenas realizar o diagnóstico não manifestando, pelo menos em grande proporção, nenhum tipo de resistência as normas impostas pela Igreja. Colaborando ainda mais com nossa análise, o que acabamos de suscitar mostra-se coerente quando posto no âmago de um contexto social, político e econômico que encontrava no poder do discurso moral e espiritual da Igreja o melhor caminho para dominação e imposição da ordem à população. Na Idade Média a Igreja exercia grande poder econômico, social, político e cultural, ditando regras e impondo sua ordem moral (ARRUDA, 2008; DREHER, 2007). Esta dimensão subjetiva foi realmente muito determinante em épocas passadas, mas não podemos ignorá-la mesmo em épocas mais recentes até os dias de hoje, apesar de não termos como mensurá-las. A dúvida que aqui levantamos é até que ponto este discurso religioso, que outrora carregou de subjetividade as formas de tratamento da doença, a partir da crença de que realmente se estava oferecendo o melhor para os enfermos, não se transformou em ações que, oportunamente, teria levado à forma como o filme procurou relacionar a igreja à suas ações no tratamento da doença? Embora esta seja uma questão difícil de mensurar, e que requer um estudo mais complexo que envolva a relação igreja/ciência, podemos considerá-la sob alguns aspectos neste contexto. No filme, além das imagens que nos remetem a questões religiosas, como igrejas, freiras cuidando dos enfermos, pessoas rezando, a narrativa assume que a maioria dos leprosários foi construída, mantida e administrada pela Sociedade de Assistência aos Lázaros cabendo ao Estado auxiliá-los com subvenções e assistência técnica. Por este ponto de vista, entendemos que era interessante associar ao tratamento da lepra/hanseníase este apelo religioso, que normalmente comove a opinião pública, uma vez que o Estado não poderia, ou não se disporia, a assumir este compromisso. Na Época Moderna, o cenário já havia sofrido profundas transformações. Com o advento da industrialização e do capitalismo em alguns países, instaura-se uma nova ordem social pautada, sobretudo pelo desenvolvimento científico (VICENTE e DORIGO, 2010). Em contrapartida, nossa pesquisa apontou que apesar da doença ter sido controlada na Europa desde o final do século XIX, com base principalmente em medidas educativas associadas a uma profilaxia adequada, no Brasil o que assistimos foi um alastramento fora de controle, que adentrou o século XX. Em nossa pesquisa encontramos na falta de prioridade política para tomar as medidas necessárias, entre

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outras, justificativa para este fato. Mas, diante de um projeto de construção e fortalecimento do Estado Brasileiro que teve como um dos principais elementos a reforma da saúde, como vimos no governo Vargas, entendemos que o filme, neste contexto, pretende ser uma resposta à negligência histórica ao controle da lepra. Neste sentido, o que vimos no filme foi à exaltação de medidas enunciadas pelo governo com a intenção de mostrar como à doença estava sendo controlada e os doentes bem tratados. Mas não foi bem isso que nossos dados confirmaram. Se retomarmos a narrativa historiográfica que apresentamos, veremos que desde o século XIX, com a vinda da Família Real, a doença e o doente já eram vistos como ameaça à integridade da população, no bojo de uma política que almejava a medicalização do espaço urbano. Enquanto, neste mesmo século, o isolamento já era associado a medidas educativas que encontravam no Estado seu maior defensor,como no caso da Noruega, por exemplo, aqui no Brasil o isolamento ainda ficava a cargo de instituições religiosas, sem receber maiores investimentos do poder público. Nos períodos subsequentes, analisados por esta pesquisa, vemos o fortalecimento do Estado brasileiro em relação às medidas de saúde, mas as mesmas adquiriram o caráter de medidas legais e impositivas, sem ênfase educativa. Cabe relembrar que, em 1920, foi criado o Departamento Nacional de Saúde Pública, tendo Carlos Chagas em sua direção, com a finalidade de tornar crescente a presença do Estado nos rumos dados às políticas de saúde. Nesta perspectiva, foi instituído novo regulamento sanitário no qual o isolamento dos doentes torna-se a medida oficial de combate à lepra/hanseníase no país, ancorado por três pilares: notificação obrigatória, vigília aos comunicantes e exclusão em leprosários. Podemos considerar que foi a partir desta intensificação estatal da ação pública que, nos anos 40,assistimos à criação de vários serviços nacionais, entre eles, o Serviço Nacional da Lepra. O objetivo era tornar as ações institucionalizadas, em detrimento de uma visão emergencial ou localizada(SANTOS et al, 2008). Neste sentido, podemos atribuir a este cenário, a institucionalização do tratamento da lepra baseada no isolamento do doente em instituições asilares. Em função disto, uma série de ações seriam normatizadas e realizadas, tanto para cercear os doentes e seus familiares, como para oferecer infraestrutura para o isolamento em larga escala, tal como o filme apresenta. Podemos identificar o início deste plano metódico e progressivo de cerco aos leprosos, orientado pelo governo federal, a partir da seguinte fala do narrador:

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As atividades de combate à lepra começam com o cerco aos leprosos, trabalho penoso, realizado por médicos e especialistas que percorrem o país em todas as direções a procura de doentes. O médico preenche uma ficha do doente, determinando sua forma clínica para as justas medidas profiláticas e assistenciais.(COMBATE, 1945) Diante disso, podemos tomar novamente a questão do isolamento do doente de lepra/hanseníase, mas a partir de um discurso que se relaciona não apenas com questões internas ao conhecimento científico, mas também com uma conjuntura social, política e econômica. Segundo Ducatti, o isolamento no Brasil “seguiu orientação de uma elite técnica, sobressaindo os médicos” (2007, p.307). Na tônica de um discurso de modernização do país, o isolamento dos portadores de lepra/hanseníase constitui uma política de saúde pautada por ideais racionais e científicos, como vimos. Discurso que escamoteia, na verdade, uma proposta de isolamento que surge com caráter militar, para a qual os doentes passam a inimigos que devem ser capturados e segregados. Muitas vezes esse cerco ao doente ocorria como uma ação policial, utilizando-se de força bruta, não raro ateando fogo nas residências e nos pertences dos enfermos (DUCATTI, 2008; MACIEL, 2007; MATTOS e FORNAZARI, 2005). Embora esta prática tenha sua origem na Idade Média, associada a representações de impureza espiritual e pecado da cultura cristã, na qual a queima era sinônimo de purificação, aqui no Brasil ela tornou-se sinônimo de subjugação, impureza de raças, feiura, ameaça ao projeto de modernização e em nome destes tornou-se uma prática recorrente principalmente nas décadas de 1940 e 1950, quando foi implantada a Campanha Nacional de Combate à Lepra (HOCHMAN, 2005; MATTOS e FORNAZARI, 2005). Este é um dos exemplos de ações que não são mostradas no filme, pois, em nenhuma das fontes documentais consultadas por esta pesquisa encontramos referências a esta “captura” (grifo meu) aos doentes transcorrendo de forma tranquila e respeitosa, como o filme faz questão de enfatizar. Na época em que o filme foi produzido, 1945, o Brasil passava por profundas mudanças estruturais na economia diante de uma crescente industrialização. E isto acontece no bojo de uma política centralizadora e autoritária, como vimos anteriormente. Neste cenário, se tornara urgente resolver o problema da saúde do trabalhador operário e da classe média urbana, emergentes e fundamentais para o crescimento da economia. Assim sendo, diante de um país em profundas transformações em suas bases sociais e econômicas, mas, notadamente, sem capital para transformações

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realmente efetivas em diversos setores, o caminho mais conveniente seria isolar esses doentes em instituições asilares nas quais, segundo o filme, receberiam todo o atendimento médico e humanitário apropriados para o enfrentamento da enfermidade. Esta obrigatoriedade do isolamento, que resistiu no Brasil pelo menos até 1962 (HOCHMAN, 2005; PACHÁ, 2008) consolidou-se a partir de um discurso de desenvolvimento do país, no qual os doentes representavam um entrave para este desenvolvimento, pois eram vistos como ameaça para a população sadia, ou seja, ameaça para os trabalhadores e a elite, molas propulsoras da economia. Segundo Ducatti: A industrialização emergente requeria uma urbanização com planejamento, para garantir condições sanitárias não ameaçadoras à população, com seus surtos epidêmicos. As elites inquietavam-se com tal situação, pois o alastramento de endemias e epidemias poderia significar também desordem social para aquela camada social. (2007, p.313)

Também não podemos nos esquecer do contexto da Segunda Grande Guerra que acreditamos justificar, em certa medida, a questão do isolamento dos doentes posta pelo filme. Como já mencionamos no capítulo sobre o INCE, houve, neste período, a criação do Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), agência autônoma que funcionou de 1942 a 1960 dentro do Ministério da Educação e Saúde, criada pela Fundação Rockfeller, financiada com capital brasileiro e norte-americano. Esta fundação teve um papel importante no movimento sanitarista entre 1910 e 1920, contribuindo para a propagação dos ideários da Liga Pró-Saneamento no Brasil, que considerava a doença como um problema político. E, neste momento de criação da SESP, concebida no contexto da Segunda Guerra Mundial, a principal preocupação era com a possibilidade de transmissão de doenças às tropas norte-americanas que atuavam nas regiões tropicais. Uma das formas de expandir a educação sanitária, e normativa, encontrada pela agência, diante, inclusive, da barreira do analfabetismo, foi através de programas de rádio e filmes (MORAES, 2007). Diante disso, podemos considerar que a exclusão dos leprosos/hansenianos em leprosários, largamente divulgados pelo filme, tornou-se alvo de interesses políticas nacionais, como também internacionais. E, neste momento, o INCE como único órgão estatal responsável pela produção cinematográfica nacional passou também a atender a estes interesses. Mas, no caso do filme Combate à lepra no Brasil, ele não teve caráter propriamente educativo. Fortalecendo o que falamos anteriormente, ele serviu mais como uma resposta à população e, de certa forma, também a autoridades estrangeiras, sobre os cuidados que o governo estava

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desempenhando para o controle da lepra/hanseníase. Não podemos esquecer que o governo de Vargas foi marcado por uma intensa campanha de divulgação das ações públicas, enaltecendo, desta forma, a figura do presidente. Outro ponto que nos faz pensar a respeito de influências extra científicas sobre o desenvolvimento da ciência, e que reforça o caráter normativo das medidas divulgadas, é o fato de observarmos que em momento algum o filme se ocupou em oferecer informações educativas a respeito de questões importantes como forma de contágio, de transmissão e de tratamento da doença, por exemplo. Ao contrário, apenas apresentou o isolamento como a principal arma profilática contra a doença, divulgando a rede de leprosários e suas dependências como se fossem hotéis. Por outro lado, sabemos que na década de 1940 o tratamento com sulfas já apresentavam resultados satisfatórios, e em muitos países o isolamento já não era necessário da forma ostensiva como continuou se configurando aqui no Brasil (DUCATTI, 2007; HOCHMAN, 2008; MACIEL, 2007; MENEZES et al, 2008; PACHÁ, 2008). Isto nos leva a outra questão que envolve novamente o INCE, que tinha em sua origem a missão de educar o país, conferindo grande relevância à produção científica nacional. Nesta perspectiva, os filmes voltados para o registro de pesquisas científicas e de assuntos relacionados à medicina, produzidos pelo INCE, como vimos anteriormente, divulgavam e mostravam pesquisas e procedimentos científicos atualizados para a época em que os documentários foram produzidos. Para tanto, a fim de conferir rigor científico e credibilidade a suas produções, contaram com a consultoria de inúmeros pesquisadores com trabalhos reconhecidos, como já mencionamos, tendo seus nomes sempre creditados na ficha técnica

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das produções (GALVÃO, 2004), o que não constatamos em relação ao filme

Combate à lepra no Brasil. Quanto a esta ausência de consultoria, não sabemos se a mesma realmente não existiu, ou se teve seu nome elidido da ficha técnica mencionada. O fato é que ambas as alternativas já nos levam a questionar se tais medidas enunciadas pelo filme estariam em consonância com as medidas que vinham sendo recomendadas pela comunidade médica em relação ao tratamento da lepra/hanseníase. Se retomarmos a Conferência Internacional de Lepra de 1938 podemos constatar que nesta ocasião o isolamento ainda foi recomendado, embora de forma mais humana e reafirmando a necessidade de uma educação sanitária efetiva.

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Para maiores detalhes, ver ficha técnica do filme Combate à lepra no Brasil em Galvão (2004).

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O filme prossegue nesta linha e, segundo nossa análise, ao mesmo tempo em que se tem a intenção de reafirmar a necessidade do isolamento, tem-se a preocupação em mostrar que, nestas instituições, os segregados não serão “privados” de dignidade, inclusive com direito ao trabalho remunerado nas colônias agrícolas localizadas em torno da vila residencial. Em uma leitura arqueológica destas medidas, observamos ações que, ao mesmo tempo em que defendem a exclusão, visto que, “O confinamento e a segregação são legitimados em defesa da sociedade” (Rezende et al 2011, p.6),diante da instabilidade que marcou o governo de Vargas, preocupam-se em “agradar” os dois grupos que se mostraram favoráveis ao isolamento no Brasil, os “isolacionistas” e os “humanitários”. Este último se caracterizava por ser favorável a medidas mais brandas de isolamento, inclusive, indicavam esta medida apenas em casos mais graves de manifestação da doença. (HOCHMAN, 2008) É notável como as medidas enunciadas pelo filme encontram-se totalmente de acordo com as medidas que objetivavam o controle e tratamento da doença praticadas pelo governo na época em que o filme foi produzido. Tais medidas, apontadas pela literatura médica como “modelo tripé”, foram referenciadas por todas as fontes documentais que consultamos como sendo o alicerce da política de controle e tratamento da lepra/hanseníase no Brasil até, pelo menos, a década de 1960. Em contrapartida, as mesmas fontes apontam que a prática do isolamento não era consensual quando o filme foi produzido. Aliás, se retomarmos a trajetória das pesquisas médicas sobre a doença, veremos que este nunca foi consenso. Tomando as discussões científicas em torno da doença a partir da Primeira Conferência Internacional da Lepra, ocorrida em Berlim, em 1897, situamos nesta conferência a primeira vez que o isolamento foi recomendado como prática médica e profilática. Partindo de Hansen esta recomendação, vimos que a mesma tinha um caráter mais humanitário e vinha acompanhada de medidas educativas. Mesmo assim foi motivo de controvérsias entre pesquisadores de vários países. Independente disso, conforme nos aprofundamos nesta pesquisa, vimos que a prática do isolamento foi perdendo força perante a comunidade científica na medida em que avançavam nas pesquisas relacionadas à forma de transmissão e contágio, medicamentos e terapêutica, classificação e diagnóstico. Sabemos que na década de 1940 as sulfonas já vinham sendo empregadas, juntamente com uma educação sanitária adequada, sem a necessidade de segregar o doente do convívio social e familiar (DUCATTI, 2007). Mas, no filme, nenhum tipo de tratamento

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é mencionado e a ênfase é dada às instalações e ao “conforto” (grifo meu) que os enfermos poderiam desfrutar. Isto nos leva a analisar um fato marcante no filme, que é a ausência do doente. Para justificá-la, encontramos diferentes explicações. Moraes (2007) atribui a isto a preocupação em poupar o doente e seus familiares de uma exposição constrangedora, visto que a doença constitui-se, entre outros fatores, por uma produção histórica de estigma, já mencionada. Contribuindo para esta análise, Galvão (2004) aponta para um fato considerado determinante para a ausência destes sujeitos, identificado pela autora como o objetivo principal do filme, que é “destacar os núcleos de tratamento financiados pelo governo”. (GALVÃO, 2004, p.123) Sobre estes pontos diz Schvarzman: essa ausência da dor dá ao filme uma irrealidade reconfortante. A imagem mente, mas é reveladora dos mitos que essa assepsia fotográfica, encobre: a separação nítida e asseguradora entre o mundo dos sãos e dos enfermos, o que só revela o estigma da doença, o paternalismo do Estado, e sobretudo a descrença na capacidade do espectador de contribuir para o seu combate. (Schvarzman, 2000, p. 292 apud Galvão, 2004, p.123)

Apesar de não ter sido nosso interesse discutir sobre questões internas à atividade científica, a trajetória das pesquisas médicas a respeito da doença, sob diversos aspectos, que aqui desenvolvemos, nos serviu para mostrar que, no caso do Brasil, sempre houve um descompasso na relação entre os avanços alcançados por estas pesquisas e as medidas recomendadas, e impostas, pelo poder público, como o filme Combate à lepra no Brasil nos permite ver, pelo menos em parte. E ao leitor atento, isto será facilmente observado. Em relação à época da produção fílmica, cabe mencionar um documento produzido em 1958, produzido pelo Dr. Orestes Diniz segundo o qual: dados estatísticos-epidemiológicos referentes ao período 1946-1957, mostravam que a incidência da lepra aumentava sensivelmente (...) Naquele momento o isolamento já era considerado contraproducente e as medidas preconizadas por Combate à lepra no Brasil não levariam à erradicação da doença mesmo que bem aplicadas (REZENDE et al, 2011, p.8).

Embora não tenha sido nosso foco analisar a trajetória da lepra/hanseníase até os dias de hoje, pesquisas recentes nos mostra que apesar de todo o avanço alcançado pela ciência, no Brasil a hanseníase ainda se configura como uma endemia (BOECHAT e PINHEIRO, 2012; MIZZUNO, 2008).

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Na ótica da abordagem histórico-arqueológica adotada por esta pesquisa, não cabem julgamentos à ciência baseados por estas assertivas que discutimos até aqui. O que nos cabe diante delas é compreender que: o trabalho dos homens e mulheres da ciência – como qualquer outra atividade humana – não tem lugar à margem da sociedade em que vivem mas é, necessariamente, influenciado pelos problemas e circunstâncias do momento histórico (GIL-PÉREZ et al, 2001, p.137).

Em vistas disso, acreditamos que a partir da análise desses episódios históricos que aqui desenvolvemos, segundo a abordagem histórico-arqueológica, conseguimos esclarecer os aspectos da NdC que buscamos discutir nesta pesquisa, os quais: a ciência está implicada pela adoção de posições pessoais, políticas, ideológicas e religiosas que podem por vezes assumir o caráter de preconceito (aspectos subjetivos);a atividade científica se desenvolve em determinado contexto histórico, social e cultural, com o qual interage e do qual sofre influência. Embora o filme Combate à lepra no Brasil seja claramente uma propaganda de governo, ele nos informou, através de suas imagens e narrativas, a respeito das orientações de políticas públicas que vigoravam no Brasil naquela época. A pesquisa documental que realizamos foi relevante no sentido de confirmar nossa hipótese de trabalho, segundo a qual os profissionais de saúde estariam legitimando medidas segundo metas do governo e não necessariamente segundo o conhecimento científico disponível até aquele momento. Embora o filme tenha buscado naturalizar o isolamento e suas imagens reforçarem que os doentes eram tratados “com cuidado, paciência, segurança e sob os auspícios do rigor e do conhecimento científico” (REZENDE et al 2011, p.5), tornou-se evidente a influência de fatores políticos e econômicos sobre a aplicação do conhecimento científico que, neste caso específico das medidas de tratamento da lepra/hanseníase no Brasil, mostrou-se enviesada e parcial.

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Capítulo 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora esta tenha sido uma discussão parcial sobre os dados gerados por nossa pesquisa histórica, pois acreditamos que muito ainda pode ser explorado, ela já foi capaz de nos apontar alguns importantes aspectos a respeito da natureza do trabalho científico que podem ser vistos nos filmes científicos e que devem permear o planejamento e as discussões que emergem das salas de aula. Professores devem ser questionados e levados a compreender questões como as que aqui levantamos a fim de confrontá-las com imagens equivocadas tanto da ciência como do trabalho do cientista. Neste sentido, fizemos esforços para mostrar, por meio da análise de um filme científico de arquivo, que os estudos historiográficos propiciados por este recurso, mediante a metodologia de análise fílmica que adotamos, podem colaborar para este propósito. Ao fim desta discussão, nos parece que aqueles questionamentos que levantamos sobre a atividade científica obtiveram algumas indicações de respostas, uma vez que os argumentos apresentados ao longo do trabalho confluem para a desconstrução de uma imagem ingênua tão comumente imputada à ciência. A análise fílmica que desenvolvemos nos permitiu compreender de uma maneira mais concreta e situada algumas questões sobre a NdC como, por exemplo, que a ciência não é uma atividade neutra e desinteressada e cientistas gênios encastelados, nem tão pouco o produto desta atividade é infalível e imutável. Ao contrário, vimos que a ciência é um trabalho de cooperação entre pesquisadores, que dependem diretamente do contexto em que se desenvolvem, e que o conhecimento fruto deste trabalho é provisório. Na análise do filme, de maneira geral, esses aspectos puderam ser conferidos na medida em que nos permitiu enxergar que a construção de uma rede de leprosários se mostrou atrasada, uma vez que representava um modelo de tratamento em vias de ter suas bases científicas totalmente superadas. Embora nosso objetivo não tenha sido nos aspectos internos à evolução das pesquisas médicas, vimos que as mesmas se superavam em alguns assuntos, a cada Conferência, fruto do trabalho de pesquisadores de países diversos. No entanto, o que vimos no Brasil foi à influência das políticas de saúde em defesa deste tratamento baseado no isolamento compulsório do portador de lepra/hanseníase nestas instituições.

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No entanto, em função de nossas limitações, pela natureza e tempo disponível para desenvolvermos esta pesquisa, não foi possível estender nossa análise em todos os pontos que seriam necessários. Aqui, nos limitamos a discutir sobre alguns aspectos externos à ciência e seu impacto nas escolhas realizadas por aqueles que a representam. Também foi fator limitante desta pesquisa a não obtenção de dados oficiais a respeito das políticas de combate à lepra vigente na época em que o filme foi produzido. Nossa pesquisa se fundamentou prioritariamente em pesquisas secundárias sobre esse assunto. Também consideramos fator limitante o fato de não termos tido acesso a nenhuma informação oficial sobre as razões e objetivos que levaram a decisão institucional de realizar o filme. Apesar disso, acreditamos que os dados gerados por este trabalho são suficientes para subsidiarem outras análises igualmente relevantes. Se nos voltarmos para nossa narrativa historiográfica, veremos que a mesma produziu uma quantidade significativa de informações que dizem respeito, por exemplo, às questões relacionadas aos aspectos internos à atividade científica.

Como mencionamos, esta análise que

desenvolvemos a partir do filme nos evidenciou o caráter coletivo e transitório dos conhecimentos produzidos pela ciência, e analisá-los segundo regras e normas internas, que os determinam e condicionam, seria outra possibilidade enriquecedora para a compreensão das diversas dimensões que conferem a esta atividade um caráter propriamente “humano”. Este trabalho foi direcionado àqueles que, em certa medida, são os responsáveis pela imagem de ciência construída por jovens cidadãos. Aos professores que estiverem dispostos a se contraporem aos padrões do indutivismo ingênuo com que a produção científica tem sido abordada, oferecemos a história da ciência como instrumento privilegiado para este fim. No entanto, é preciso estar em alerta diante deste desafio. Ao incorporarem a história da ciência em contextos educativos é preciso, antes de tudo, conhecer seus riscos, limites e possibilidades a fim de garantir seu uso adequado. Por isso, apresentamos algumas recomendações trazidas pela „nova historiografia da ciência‟ com a intenção de iluminar o trabalho de professores que por este caminho resolvam trilhar, sem que para isso precisem se tornar historiadores da ciência. Mas, ao se familiarizarem com esta área de produção poderão se sentir encorajados a produzirem, eles próprios, suas narrativas historiográficas. Neste sentido, elegemos a abordagem histórico-arqueológica como representante, neste trabalho, do olhar que devemos lançar sobre a ciência produzida no passado, a fim de iluminar a imagem que

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construímos dela no presente. Em vista disso, apresentamos nossa análise sobre os episódios relacionados às pesquisas médicas da lepra/hanseníase como um exemplo de como esses episódios ofertados pela história da ciência podem ser tratados quando se almeja construir uma imagem informada sobre a natureza da ciência. Embora existam fontes variadas das quais podemos retirar episódios da história da ciência, optamos por analisá-los a partir de um recurso audiovisual, especificamente um filme científico de arquivo. Isto se deve por entendermos que recursos audiovisuais são, também, grandes aliados dos processos educativos, mas, historicamente subutilizados.

Portanto, apresentar uma metodologia que contribua para que

professores explorem esses recursos para além do que tem sido feito nos contextos educacionais, também foi uma de nossos objetivos. Deste modo, esperamos que a metodologia de análise fílmica aqui apresentada possa também ser incluída nos planejamentos e atividades que permeiam as salas de aula, a fim de contribuir com os processos de aprendizagem de alunos, assim como na formação de professores. E para aqueles que desejarem seguir neste caminho que indicamos, os filmes produzidos pelo INCE constituem um importante acervo de registros históricos sobre determinados conceitos e episódios do desenvolvimento científico e que, por isso mesmo, merecem ser mais pesquisados. Por fim, após este percurso, algumas questões foram aprofundadas, mas outras nos interessam, e precisam ser retomadas como questão de investigação. De qualquer forma, acreditamos que os resultados obtidos por esta pesquisa podem ser considerados indicativos de alguma possibilidade de generalização quando se pretende discutir a natureza da ciência a partir da história da ciência. Ao revermos nossos caminhos podemos tomar algumas referências como orientação para propostas semelhantes. Portanto, entendendo que experiências como estas não são vivenciadas por professores ao longo de sua formação, principalmente inicial, esperamos, que a partir de reflexões como essas que aqui propomos e procuramos compartilhar, professores possam se sentir dispostos e encorajados a percorrer também seus caminhos a fim de rever suas práticas e os discursos que as permeiam.

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8 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANEXO

Cenas captadas de versão digitalizada do filme Combate à lepra no Brasil