UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA ANDERSON CLAUDINO BITENCOURT

UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA ANDERSON CLAUDINO BITENCOURT A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA RAZOÁVEL EM DECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA S...
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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA ANDERSON CLAUDINO BITENCOURT

A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA RAZOÁVEL EM DECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA SOFRIDA PELOS FILHOS MENORES

Tubarão 2011

ANDERSON CLAUDINO BITENCOURT

A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA RAZOÁVEL EM DECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA SOFRIDA PELOS FILHOS MENORES

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina, como requisito parcial para a obtenção do título de Bacharel em Direito.

Linha de Pesquisa: Justiça e Sociedade

Tubarão 2011

2 ANDERSON CLAUDINO BITTENCOURT

A DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA RAZOÁVEL EM DECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA SOFRIDA PELOS FILHOS MENORES

Esta monografia foi julgada adequada à obtenção do título de Bacharel em Direito e aprovada em sua forma final pelo Curso de Graduação em Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Tubarão, 17 de junho de 2011.

______________________________________________________ Prof. Vilson Leonel, Esp. Universidade do Sul de Santa Catarina ______________________________________________________ Prof. Léo Rosa de Andrade, Dr. Universidade do Sul de Santa Catarina ______________________________________________________ Prof ª. Sandra L. Nunes Angelo Mendonça Fileti, Esp. Universidade do Sul de Santa Catarina

3

Dedico este trabalho a minha madrinha, Marilda dos Santos Bitencourt, e aos meus avós, Iva dos Santos Bitencourt e Luiz Álvaro de Bitencourt, pelo apoio e encorajamento contínuos no decorrer da minha vida acadêmica.

4 AGRADECIMENTOS

Esta monografia é o resultado de uma caminhada de longos anos, e muitos contribuíram para que eu chegasse até aqui. Ao agradecer, involuntariamente poderei cometer injustiças, portanto desde já agradeço a todos que me acompanharam nessa trajetória. A toda minha família, agradeço pelo companheirismo e união. A você, Dilton dos Santos Bitencourt, meu pai, que, do seu jeito especial, sempre me apoiou. A você, Marinalda Claudino, minha mãe, que, com toda sua coragem de mulher e fragilidade humana, soube, acima de tudo, me amar. Amores eternos. Aos meus avós, Luiz Álvaro de Bitencourt e Iva dos Santos Bitencourt, por terem me dado todo o apoio de que precisei durante esses anos e por terem feito parte dos meus sonhos. A minha madrinha, Marilda dos Santos Bitencourt (minha terceira mãe), pois sem o seu apoio eu não teria chegado até aqui. Eterna gratidão. A minhas irmãs, Andresa, Vanessa e Isabela, pelo carinho e compreensão nos momentos mais difíceis. Amor incondicional. A minha namorada, Maria Karoline de Andrade, pelos momentos de incentivo, amor e dedicação. Amor que eu encontrei e que me faz acreditar que nada é por acaso. Ao pessoal da Vara Criminal da Comarca de Laguna, por todo o apoio e amizade, especialmente a ela que, tanto quanto possível, me orientou neste trabalho, Suyan de Melo. A todo o corpo docente e aos servidores do curso de Direito da UNISUL. A todos os professores, pela admiração profissional que lhes devoto. Ser professor é uma arte, e nela vocês preenchem todos os requisitos. Aos colegas e amigos que conheci durante o curso. A Deus, razão de tudo, eu agradeço.

5

“Educai as crianças e não será preciso punir os homens.” (PITÁGORAS)

6 RESUMO

Este trabalho tem por objetivo geral analisar se a destituição do poder familiar afigura-se como medida razoável para prevenir e cessar a violência sofrida por filhos menores no meio familiar. O método utilizado é o dedutivo. O procedimento é o monográfico. Quanto aos objetivos, a pesquisa é do tipo exploratória. O procedimento técnico é o bibliográfico, utilizando-se como fonte de pesquisa, publicações em livros e artigos da internet. No decorrer do trabalho, analisou-se que poucos institutos têm sido tão presentes ao longo da história do homem civilizado quanto o do poder familiar. Por poder familiar entende-se o conjunto de atribuições/obrigações dos pais em relação aos filhos menores, que devem ser respeitados como seres humanos e sociais. O poder familiar passou por várias transformações desde quando a autoridade era a patriarcal até a atual concepção de família. Assim, o poder familiar veio se transmudando num ritmo tal, que hoje é considerado um poder-dever de proteção aos filhos. Apesar disso, a violência doméstica contra filhos também acompanha esse instituto ao longo da história, apresentando-se de várias formas, destacando-se a física, a sexual, a psicológica e a decorrente de negligência. As várias formas de violência possuem efeito devastador e muitas vezes irremediável na criança e no adolescente, prejudicando seu desempenho físico e psicológico, violando diretamente o direito ao respeito, à dignidade, à integridade física, psíquica e moral, aspectos, como se sabe, fundamentais para o seu pleno desenvolvimento. A violência provocada pelos pais é injustificável sob qualquer aspecto, constituindo, muitas vezes, atos verdadeiramente desumanos, e ainda ferindo o ordenamento jurídico, tanto na legislação específica de proteção a tais vítimas quanto no que se refere aos princípios constitucionais que norteiam o poder familiar. Portanto, quando a conduta dos pais em relação aos filhos menores se pauta pela violência a ponto de ensejar, de conformidade com a lei, a destituição do poder familiar, esta medida, apesar de drástica, deve ser entendida como justa e razoável para proteger suas vítimas, porque também drásticos são os efeitos da violência sofrida por crianças e adolescentes no âmbito familiar.

Palavras-chave: Direito de Família. Violência familiar. Responsabilidade dos pais. Destituição do poder familiar.

7 ABSTRACT

This paperwork aims to analyze if the familiar power dismissal might be a reasonable move to prevent and to cease the violence suffered by underage children in family environment. The used method is the deductive. The procedure is the monographic. About the purpose, the search is exploratory. The technical procedure is the bibliographic, used as source of search, publications in books and articles from internet. In the curse of work, was analyzed that few institutes has been as presents across civilized men history as the familiar power.

Familiar power is the set of

assignment/duty from parent‟s to minor children, which must be respected as social and human beings. The familiar power has gone through several transformations ever since the patriarchal authority until these days family concept. Those transformations brought familiar power to be considered today as a power-duty of protection of those children. Despite all that, domestic violence against children also come along with this institute across history, presenting itself in many forms, standing out the physic, the sexual, the psychological and the one that comes from negligence. The many forms of violence has such a devastator and, many times, incurable effect on child and adolescent, damaging their physical and psychological performance, violating their right of respect, dignity, physical, mental and moral integrity, fundamental aspects for their full development. Paternal violence has no justification, constituting, often, truly inhumane acts and wounding the legal system both in victim‟s protection legislation and constitutional principles that guide the family power. Therefore, when parent‟s behavior to their underage children bases itself by violence to the point of cause the dismissal of paternal power, this measure, despite drastic, should be seen as fair and reasonable to protect the victims, because also drastic are the effects of the violence experienced by children and adolescents in familiar environment. Keywords: Family law. Family violence. Parent‟s responsibility. Family power dismissal.

8 SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 10 1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA E FORMULAÇÃO DO PROBLEMA .......................... 10 1.2 JUSTIFICATIVA .................................................................................................. 11 1.3 OBJETIVOS ........................................................................................................ 12 1.3.1 Objetivo geral ................................................................................................. 12 1.3.2 Objetivos específicos..................................................................................... 12 1.4 HIPÓTESE .......................................................................................................... 12 1.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................ 13 1.6 ESTRUTURAÇÃO DOS CAPÍTULOS ................................................................. 13 2 PODER FAMILIAR ................................................................................................ 15 2.1 DELINEAMENTO HISTÓRICO ........................................................................... 15 2.2 CONCEITO ......................................................................................................... 18 2.3 CARACTERÍSTICAS DO PODER FAMILIAR ..................................................... 20 2.4 PÁTRIO PODER VERSUS PODER FAMILIAR .................................................. 21 2.5 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PODER FAMILIAR...................................... 22 2.5.1 Princípio da dignidade da pessoa humana .................................................. 23 2.5.2 Princípio da afetividade ................................................................................. 24 2.5.3 Princípio do melhor interesse da criança .................................................... 24 2.5.4 Princípio da solidariedade familiar ............................................................... 25 2.5.5 Princípio da igualdade entre cônjuges/companheiros ............................... 26 2.5.6 Princípio da igualdade na chefia familiar ..................................................... 26 2.5.7 Princípio da função social da família ........................................................... 26 2.5.8 Princípio da igualdade jurídica de todos os filhos ...................................... 27 2.5.9 Princípio da não intervenção ou da liberdade ............................................. 27 2.6 TITULARIDADE DO PODER FAMILIAR ............................................................. 28 2.7 O PODER FAMILIAR E OS FILHOS ................................................................... 30 3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES................ 33 3.1 CONCEITO DE VIOLÊNCIA ............................................................................... 33 3.2 ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA FAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE........................................................................................................ 34 3.3 TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ................................................................. 38

9 3.3.1 Violência física doméstica ............................................................................. 38 3.3.2 Violência sexual doméstica ........................................................................... 39 3.3.3 Violência psicológica doméstica .................................................................. 40 3.3.4 Negligência doméstica................................................................................... 41 3.4 CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ............................................. 41 3.5 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A VIOLÊNCIA INFANTIL E JUVENIL ................................................................................................................ 43 4 EXTINÇÃO DO PODER FAMILIAR ....................................................................... 47 4.1 SUSPENSÃO DO PODER FAMILIAR ................................................................ 48 4.2 PERDA DO PODER FAMILIAR .......................................................................... 51 4.3 DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA RAZOÁVEL EM DECORRENCIA DA VIOLÊNCIA SOFRIDA PELOS FILHOS MENORES ............... 55 5 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 61 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 64

10 1 INTRODUÇÃO

Este trabalho monográfico visa efetuar uma abordagem a respeito da destituição do poder familiar por decisão judicial, especificamente no que se refere à razoabilidade da medida no caso de violência sofrida por filhos menores – crianças e adolescentes.

1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA E FORMULAÇÃO DO PROBLEMA

O tema é a destituição do poder familiar como medida razoável em decorrência da violência contra os filhos menores. A importância da família na vida do ser humano é essencial, uma vez que é a partir dela que o filho adquire os primeiros conceitos que formarão ao longo do tempo o seu caráter, servindo de orientação para os inúmeros caminhos que a vida imporá durante sua trajetória na sociedade. Sendo assim, cabe estudar a importância desse instituto para o individuo e a sociedade. É de se questionar, inclusive, o processo evolutivo do anterior para o atual código civil em relação à visão da família. No passado remoto, o pai era considerado o dono dos filhos, tendo essencialmente poder sobre eles. Com o evoluir dos costumes das sociedades, no entanto, essa noção foi-se modificando até chegar ao que é hoje. Na sociedade contemporânea, a instituição familiar igualmente sofreu mutações, e para acompanhá-las a lei teve que se moldar de forma a ir suprindo as novas necessidades conforme estas surgiam, para que as famílias pudessem ir se reestruturando nesse mesmo ritmo, pois muito se percorreu até chegarmos aos dias atuais, onde os dois, pai e mãe, possuem de forma igualitária a administração da família. Essa evolução acabou propiciando, de certa forma, a violência contra os filhos, por fatores tais como a cultura (em relação a usar-se de violência para educar e corrigir os filhos, casos em que o abuso dessa violência não raro compromete o desenvolvimento e a integridade física e psicológica da vítima), a má distribuição de renda e a desigualdade social, o uso de álcool e drogas e outros.

11 Quando se fala em violência, esta pode ser verificada de várias formas, das quais podem-se destacar, embora de certo modo se entrelacem, a física, a sexual, a psicológica e a decorrente de negligência. Diante dessa realidade de situações de violência familiar, qual a medida razoável e suficiente em termos de prevenção e proteção dos filhos? Quais ferramentas jurídicas podem coibir a violência experimentada por essas crianças dentro de suas próprias casas? Em tais casos, há que se invocar, primeiramente, a suspensão do poder familiar, que perdura até que a situação no caso concreto esteja favorável à criança ou adolescente, ou seja, desaparecendo os fatos a ocasionaram, o poder familiar poderá ser restituído aos pais. De outro modo, persistindo a situação abusiva, os pais poderão ser destituídos do poder familiar, por decisão judicial. A destituição do poder familiar, portanto, é medida razoável em decorrência da violência sofrida pelos filhos menores?

1.2 JUSTIFICATIVA

Entende-se que o tema deste trabalho é de grande relevância, sobretudo por seu cunho social. É fundamental, nesse momento histórico da legislação pátria, conhecer melhor o instituto do poder familiar, dada a atual igualdade de responsabilidades dos pais. Também, verificar as possíveis formas de violência sofrida pelos filhos, os fatores que favorecem esse quadro e suas conseqüências, tanto físicas quanto psicológicas. A justificativa maior, certamente, é a importância de verificar se a destituição do poder familiar é medida razoável para prevenir e combater a violência contra os filhos, para, a partir daí, ter condições de corroborar ou não essa medida prevista em lei, quiçá advindo daí um enriquecimento da discussão do tema. Como acadêmico que visa trabalhar na área social, mostra-se de extrema importância saber quais transformações seguem o direito de família, sobretudo em relação ao seu bem-estar social.

12 1.3 OBJETIVOS

1.3.1 Objetivo geral

Analisar se a destituição do poder familiar é medida razoável em razão da violência sofrida pelos filhos menores.

1.3.2 Objetivos específicos

Conceituar poder familiar. Apresentar o histórico do poder familiar na sociedade. Estudar a evolução do poder de família no Direito, antes e a partir do atual Código Civil. Verificar as características e o conteúdo do poder familiar. Conceituar a violência em geral e a violência doméstica contra os filhos. Analisar as formas de violência que os filhos podem sofrer e os fatores que contribuem para tal situação. Abordar as consequências físicas e psicológicas dessa violência. Analisar a razoabilidade da extinção do poder familiar sob a justificativa da violência contra filhos crianças ou adolescentes.

1.4 HIPÓTESE

A hipótese consiste em analisar a destituição do poder familiar como medida razoável em virtude da violência sofrida pelos filhos menores, verificando as mudanças que ocorreram no instituto do poder familiar, as particularidades da violência contra os filhos e suas consequências, para ao final se concluir se a destituição do poder familiar em casos de violência afigura-se como medida

13 razoável, fundamentando-se o estudo na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente.

1.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Para estudar o instituto da destituição do poder familiar em decorrência de violência sofrida pelos filhos menores, afigura-se como método mais adequado o dedutivo, analisando-se a partir de um ponto geral para se chegar a um ponto específico. O procedimento escolhido é o monográfico, constituindo-se em estudo minucioso e contextualizado. O tipo de pesquisa é a exploratória, tencionando-se descrever as mudanças que ocorreram no instituto do poder familiar, as formas de violência sofrida pelos filhos, e, por fim, confirmar se a destituição do poder familiar é medida razoável para combater e prevenir as violências domésticas contra crianças e adolescentes. O procedimento para a coleta de dados adotado nesta pesquisa é o bibliográfico, utilizando-se livros, artigos publicados na internet e jurisprudência como fontes de pesquisa.

1.6 ESTRUTURAÇÃO DOS CAPÍTULOS

Neste trabalho, utilizou-se como base de estudo a Constituição Federal brasileira, o Código Civil, o Estatuto da Criança e do Adolescente e doutrinas referentes ao Direito de Família e à questão da violência infantil, sendo a divisão em três capítulos. No primeiro capítulo encontra-se uma abordagem do poder familiar, passando por a sua história, conceito, implicações jurídicas e benefícios para a sociedade, e as várias conotações que esse ramo do Direito teve até a atualidade.

14 O segundo capítulo abarca as formas de violência praticada contra os filhos menores, bem como suas consequências no plano físico e psicológico. No terceiro capítulo, faz-se uma análise acerca da razoabilidade da destituição do poder familiar em decorrência de violência doméstica praticada por pais contra filhos.

15 2 PODER FAMILIAR

Neste primeiro capítulo, estudar-se-ão aspectos tais como delineamento histórico, conceito, pontuações entre os termos pátrio poder e poder familiar, os princípios norteadores, os sujeitos do poder familiar, a titularidade, o poder familiar em relação aos filhos, as características, o exercício e o conteúdo do poder familiar, para só depois se proceder ao devido aprofundamento na questão do poder familiar versus violência praticada contra filhos.

2.1 DELINEAMENTO HISTÓRICO

Pode-se

afirmar que

o

instituto

do

poder familiar passou

por

transformações importantes ao longo dos tempos, acompanhando as mudanças e redefinições que foram ocorrendo na estrutura da família. Na Roma antiga, o poder familiar tinha como objetivo os interesses do chefe da família, conhecido como patria potestas1, onde o pai era o dono e tinha total poder sobre os membros da família, numa época em que nem o estado tinha poder para intervir. A família era vista como unidade política, jurídica, econômica e religiosa, sendo comandada pelo pai. Este conduzia a religião dos filhos, sendo muito rigoroso com eles. Pelo pater sui juris2, o pai tinha o direito de punir, vender e até mesmo matar seus filhos. Ele tinha, ainda, total poder em relação ao patrimônio da família, sendo os bens integralmente dele, já os filhos não os possuíam. Em razão de sua autoridade, a família se mantinha unida. Em síntese, e nas palavras de Venosa, “no direito romano, a patria potestas representava um poder incontrastável do chefe de família”3.

1

Patria potestas: pátrio poder. Cf. RAVANELLI, Antonio. Latim vivo: aforismos jurídicos, expressões consagradas, frases célebres, provérbios, curiosidades. São Paulo: Univap, 1997. p. 165. 2 Sui juris: de seu direito; senhor de si. Locução jurídica. Cf. RAVANELLI, 1997, p. 199. 3 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito de família. In: ______. Direito civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. v. 6. p. 299.

16 Todavia, com o tempo tal visão romana da figura do pai foi sofrendo modificações. Justiniano já não aceitava mais o jus4 vitae et necis (direito de vida e morte), como ilustra Rodrigues: “fora do campo patrimonial essa tendência igualmente é nítida e, à época de Justiniano, já não se admite o jus vitae et necis nem o jus exponendi, sendo que só aos pobres se confere a prerrogativa de vender os filhos”5. Segundo Monteiro, Com o decorrer do tempo, entretanto, restringiram-se os poderes outorgados ao chefe de família. Assim, sob o aspecto pessoal, reduziu-se o absolutismo opressivo dos pais a simples direito de correção. Ao tempo de Justiniano, o jus vitae et necis, o direito de expor e o jus noxae dandi não 6 passavam de meras recordações históricas . (grifo do autor)

Enquanto isso, vale mencionar, mesmo brevemente, que no direito germânico a autoridade do pai cessava com a capacidade dos filhos. Desse tempo remoto para cá, recebendo influências do cristianismo, o poder familiar sofreu várias transformações, ganhando aspecto mais social e protetivo em relação aos filhos. Nas palavras de Rodrigues, “essa concepção rigorosa do pátrio poder se abranda com o tempo, não sendo indiferente a esse abrandamento a influência do estoicismo e do cristianismo”7. Na lição de Monteiro, Modernamente, o poder familiar despiu-se inteiramente do caráter egoístico de que se impregnava. Seu conceito, na atualidade, graças à influência do cristianismo, é profundamente diverso. Ele constitui presentemente um 8 conjunto de deveres, cuja base é nitidamente altruística .

Pode-se verificar, por outro lado, que esse patria potestas chegou também até nós, como leciona Venosa: “o patriarcalismo vem até nós pelo direito

4

Jus: “A palavra jus provinha do sânscrito iu, que significa ou dá a ideia de salvação, proteção, de vínculo ou ordem, já entre os romanos era fundamentalmente tida no mesmo sentido em que se tem o direito: como lei (norma agendi) ou como poder (faculta agendi). [...] na linguagem do direito, é a palavra latina correntemente empregada em várias expressões”. Cf. SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 27. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 811. 5 RODRIGUES, Silvio. Direito de família. In: ______. Direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. v. 6. p. 397. 6 MONTEIRO, Washington de Barros. Direito de família. In: ______. Curso de direito civil. 37. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 2. p. 346. 7 RODRIGUES, op. cit., p. 396. 8 MONTEIRO, op. cit., p. 346.

17 português e encontra exemplos nos senhores de engenho e barões do café, que deixaram marcas indeléveis em nossa história”9. Na mesma linha, Rodrigues acrescenta que O antigo direito lusitano se inspira na orientação romana, mas as Ordenações já acolhem o instituto após os importantes abrandamentos que, através dos tempos, sofre em seu rigor. De modo que ao lado de direitos concedidos ao chefe de família, impõem-se-lhe muitos e variados deveres 10 para com seus descendentes .

A cultura das sociedades rurais tinha como base o poder patriarcal, onde o chefe da família era o pai, a quem todos deviam obediência e respeito. Com o desenvolvimento urbano, porém, a mulher começou a buscar seu espaço, e com isso a idéia de poder patriarcal começou a cair e os conceitos de família se alteraram, pois a mulher já trabalhava, ajudava no sustento da casa e opinava sobre assuntos referentes à família. É como reforça Venosa: A sociedade rural, em nosso país, incentivava a manutenção do poder patriarcal de forma quase incontrastável. Com a urbanização, a industrialização, a nova posição assumida pela mulher no mundo ocidental, o avanço das telecomunicações e a globalização da sociedade, modificouse irremediavelmente esse comportamento, fazendo realçar no pátrio poder os deveres dos pais com relação aos filhos, bem como os interesses 11 destes, colocando em plano secundário os respectivos direitos dos pais .

No Brasil, em 31 de outubro de 1831, através de uma resolução, foi fixada a maioridade dos filhos, que então passaram a exercer sua capacidade civil tão logo completassem 21 anos. Depois, a partir de 24 de janeiro de 1890, invocando o Decreto 181, a viúva podia exercer o pátrio poder sobre os filhos do casal extinto, mas se ela contraísse novas núpcias, cessava tal direito. O Código Civil de 1916, em seu art. 380, assegurava e conferia o pátrio poder ao pai, que assim tinha o poder de decisão na família: Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendoo o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores passará o outro a exercê-lo com exclusividade.

9

VENOSA, 2009, p. 301. RODRIGUES, 2002, p. 397. 11 VENOSA, op. cit., p. 300. 10

18 Parágrafo único. Divergindo os progenitores, quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer 12 ao juiz para solução da divergência .

Numa perspectiva positiva, a Constituição Federal de 1988, em seu art. 226, § 5º13, veio fortalecer a igualdade de direitos entre homem e mulher, bem como entre os pais, para que possam proteger e direcionar os filhos e os interesses destes. Em 2002, por sua vez, o atual Código Civil, ressaltando essa isonomia de poderes-deveres do pai e da mãe, veio modificar o termo pátrio poder para poder familiar.

2.2 CONCEITO

O poder de família pode ser conceituado como o conjunto de direitos e deveres, em relação aos filhos, exercido em condições de igualdade pelos pais, visando o interesse e a proteção dos filhos. Poder este conferido aos pais, que surge de uma necessidade natural, pois todo ser humano precisa de alguém que o crie, para que tenha uma formação, uma educação, para que cuide de seus interesses, guiando e defendendo sua pessoa e seus bens. Para Diniz, O pátrio poder pode ser definido como um conjunto de direitos e obrigações, quanto à pessoa e os bens do filho menor não emancipado, exercido em igualdade de condições, por ambos os pais, para que possam desempenhar os encargos que a norma jurídica lhes impõe, tendo em vista o interesse e a 14 proteção do filho .

12

BRASIL. Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916. Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2011. 13 “Art. 226. [...] § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 25 maio 2011. 14 DINIZ, Maria Helena. Direito de família. In: ______. Curso de direito civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 5. p. 378.

19 Na sucinta lição de Monteiro, “o poder familiar pode ser conceituado como o conjunto de obrigações, a cargo dos pais, no tocante à pessoa e bens dos filhos menores”15. Na mesma linha, nas palavras de Gonçalves, o ente humano necessita, durante sua infância, de quem o crie e eduque, ampare e defenda, guarde e cuide dos seus interesses, em suma, tenha a regência de sua pessoa e seus bens. As pessoas naturalmente indicadas 16 para o exercício dessa missão são os pais .

Este pátrio poder muito se modificou na história, a começar pelo termo “pátrio poder” em si, que era o poder do pai, e que passou a se chamar “poder familiar”, igualando pai e mãe nos poderes-deveres de proteção e cuidados dos filhos, deixando para trás o poder patriarcal, priorizando os cuidados para com os filhos, valendo lembrar que nos dias atuais aquele poder do pai se transformou em dever do pai e da mãe de cuidar, educar e dar condições para o pleno desenvolvimento físico e mental de sua prole. No entender de Rodrigues, O novo Código optou por designar esse instituto como poder familiar, pecando gravemente ao mais se preocupar em retirar da expressão a palavra „pátrio‟, por relacioná-la impropriamente ao pai (quando recentemente já lhe foi atribuído aos pais e não exclusivamente ao genitor), do que cuidar para incluir na identificação o seu real conteúdo, que, antes de poder, como visto, representa uma obrigação dos pais, e não da família, 17 como sugere o nome proposto .

Como se vê na crítica de Rodrigues, há ponderações a se fazer quanto à mudança na terminologia do pátrio poder para poder familiar, pois o legislador se preocupou em alterar “pátrio”, pois significa pai, para “familiar”, quem vem de família, mantendo-se o termo poder, que representa dominação, mas que deveria representar os direitos e deveres dos pais em relação aos filhos e seus interesses. Para Monteiro, “outrora o pátrio poder representava uma tirania, a tirania do pai sobre o filho; hoje o poder familiar é uma servidão do pai e da mãe para tutelar o filho”18. Ao que Santos acrescenta: “o poder paternal já não é, estrita ou 15

MONTEIRO, 2004, p. 348. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito de família. In: ______. Direito civil brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. v. 6. p. 357. 17 RODRIGUES, 2002, p. 397. 18 MONTEIRO, op. cit., p. 347. 16

20 predominantemente, paternal. É uma função, é um conjunto de poderes-deveres exercidos conjuntamente por ambos os progenitores”19. Como já mencionado, o Código Civil de 2002 preferiu chamar o antigo pátrio poder de poder familiar, no afã de zelar pela igualdade constitucional entre homem e mulher. No art. 1.630 do Código Civil de 200220, verifica-se que os filhos enquanto menores estão sujeitos ao poder familiar. Os pais devem, portanto, exercer o poder familiar de forma a resguardar o interesse no bem-estar dos filhos.

2.3 CARACTERÍSTICAS DO PODER FAMILIAR

Como dispõe Venosa, “cabe aos pais dirigir a educação dos filhos, tendoos sob sua guarda e companhia, sustentando-os e criando-os. O poder familiar é indisponível”21. O poder familiar, em razão de seu caráter de indisponibilidade, não pode ser transferido a terceiros. Assim, quando ocorre a adoção, o poder de família é renunciado, e não transferido. Mas os pais não podem, por simples ato de sua vontade,

renunciá-lo,

cabendo

a

renúncia

apenas

quando

praticam

atos

incompatíveis com o poder familiar. Venosa segue: O poder familiar é indivisível, porém não seu exercício. Quando se trata de pais separados, cinde-se o exercício do poder familiar, dividindo-se as incumbências. O mesmo ocorre, na prática, quando o pai e a mãe em harmonia orientam a vida dos filhos. Ao guardião são atribuídos alguns dos deveres inerentes ao pátrio poder, o qual, no entanto, não se transfere 22 nessa modalidade, quando se tratar de família substituta .

19

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de família. In: ______. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 6. p. 355. 20 “Art. 1.630. Os filhos estão sujeitos ao poder familiar, enquanto menores”. Cf. BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em: 26 maio 2011. 21 VENOSA, 2009, p. 305. 22 Ibid., p. 306.

21 Segundo Diniz, o poder familiar “[...] é incompatível com a tutela. Não se pode, portanto, nomear tutor a menor, cujo pai ou mãe não foi suspenso ou destituído do poder familiar”23. Recorrendo uma vez mais à lição de Venosa, vale acrescentar que “o poder familiar também é imprescritível. Ainda que, por qualquer circunstância, não possa ser exercido pelos titulares, trata-se de estado imprescritível, não se extinguindo pelo desuso. Somente a extinção, dentro das hipóteses legais, poderá terminá-lo”24.

2.4 PÁTRIO PODER VERSUS PODER FAMILIAR

A redação do art. 380 do Código Civil de 1916 deixava claro que o marido exercia com a colaboração da mulher o pátrio poder em relação aos filhos, e que quando um dos pais faltasse ou estivesse impedido, o outro passava a exercê-lo com exclusividade. Seu parágrafo único acrescentava que, na divergência dos pais em relação ao exercício do pátrio poder, prevaleceria a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para ver a questão solucionada. Por sua vez, o Código Civil de 2002 traz a competência do poder familiar exercida em igualdade pelos pais, assegurando a qualquer um deles recorrer em juízo para solucionar a divergência (parágrafo único do art. 1631 do Código Civil de 2002). No Código Civil de 1916, o instituto em questão, como visto, era chamado de pátrio poder. Porém, com as mudanças advindas, e com o alcance que atingiu a isonomia dos direitos entre os homens e as mulheres, ele passou a se chamar poder familiar. Tanto a Carta Magna de 1988 quanto o Código Civil de 2002 não atribuíram exclusividade do poder familiar a um dos pais, enquanto presentes, de forma que o pai e a mãe não podem decidir pela família, sozinhos, mas sim conjuntamente. Não havendo acordo, recorre-se ao poder judiciário para resolver o embate. 23 24

DINIZ, 2006, p. 530. VENOSA, 2009, p. 306.

22 Os filhos menores devem ser sempre representados e assistidos conjuntamente pelos pais, e não apenas por um deles, como prevê o art. 1.690 do CC/02: “Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade, representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los até completarem a maioridade ou serem emancipados”25. De outra feita, por serem o alicerce, abordar-se-ão, em seguida, os princípios que regem a matéria do poder familiar, ainda que de forma breve e sem outra pretensão senão a de facilitar a compreensão do tema em estudo, bem como de sua complexidade e seu alcance.

2.5 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO PODER FAMILIAR

Acerca dos princípios que norteiam o instituto do poder familiar, ensina Diniz: Com o novo milênio surge a esperança de encontrar soluções adequadas aos problemas surgidos na seara do direito de família, marcados por grandes mudanças e inovações, provocadas pela perigosa inversão de valores, pela liberação sexual; pela conquista do poder (empowerment) pela mulher, assumindo papel decisivo em vários setores sociais, escolhendo seu próprio caminho; pela proteção aos conviventes; pela alteração dos padrões de conduta social; pela desbiologização da paternidade; pela rápida desvinculação dos filhos do poder familiar etc. Tais alterações foram acolhidas, de modo a atender à preservação da coesão familiar e dos valores culturais, acompanhando a evolução dos costumes, dando-se à família moderna um tratamento legal mais consentâneo à realidade social, atendendo-se às necessidades da prole e de diálogo entre os cônjuges ou 26 companheiros .

O moderno direito de família sofreu várias alterações em razão das transformações da concepção de família ao longo da história da humanidade, tendo de ir se adequando permanentemente aos novos modelos. Assim, os princípios que norteiam o instituto do poder familiar prestam-se a adequá-lo de forma a sempre resguardar os filhos e seus interesses.

25 26

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. DINIZ, 2006, p. 17.

23 Tais são os princípios, que serão estudados um a um a seguir: princípio da dignidade da pessoa humana, princípio da solidariedade familiar, princípio da igualdade entre cônjuges/companheiros, princípio da igualdade na chefia familiar, princípio do melhor interesse da criança, princípio da não intervenção ou da liberdade, princípio da afetividade e princípio da igualdade jurídica de todos os filhos.

2.5.1 Princípio da dignidade da pessoa humana

Diniz, dissertando sobre o princípio da dignidade da pessoa humana27, assim discorre: “[...] constitui base da comunidade familiar (biológica ou socioafetiva),

garantindo,

tendo

por

parâmetro

a

afetividade,

o

pleno

desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente (CF, art. 227)”28. A esse respeito, cumpre mencionar que a jurisprudência já registra condenações ao pagamento de indenização por abandono de filho, que se vê lesionado no tocante ao aspecto da dignidade humana. O julgado do extinto Tribunal de Alçada Civil de Minas Gerais, cuja ementa segue, é neste sentido: INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS – RELAÇÃO PATERNO-FILIAL – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA – PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. A dor sofrida pelo filho, em virtude do abandono paterno, que o privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa 29 humana .

No caso em apreço, a decisão de primeira instância foi reformada, e o pai foi condenado a pagar indenização de duzentos salários mínimos ao filho, por abandoná-lo. Isto porque, após a separação, e tendo contraído novo matrimônio, o

27

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana” Cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit. 28 DINIZ, 2006, p. 22. 29 MINAS GERAIS. Tribunal de Alçada. Apelação cível 408.555-5. Sétima Câmara de Direito Privado. Belo Horizonte, 1 abr. 2004. Relator: Unias Silva, v.u. Cf. TARTUCE, Flávio. Novos princípios do direito de família brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1069, 5 jun. 2006. Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2011.

24 pai passou a privar o filho de sua convivência. Porém continuou contribuindo para o seu sustento, abandonando-o somente em relação ao afeto, ao amor, lesando-o, portanto, na sua dignidade como pessoa humana.

2.5.2 Princípio da afetividade

Na atualidade, o princípio da afetividade tem se firmado como principal fundamento das relações de família. Cada vez mais o quesito afeto tem guardado relação com a questão da valorização da dignidade humana. No que diz respeito às relações familiares, o peso do afeto na configuração de uma família tem relativizado até mesmo o valor do vínculo biológico. Isto porque a estrutura da família está sendo pautada muito mais pelo amor e pelo afeto do que por outros fatores. Assim, o abandono afetivo dos filhos, considerando que eles têm necessidade de proteção, carinho e cuidados, configura dano moral, o que respalda a condenação sofrida pelo pai que abandonou afetivamente seu filho, mencionada no estudo do princípio da dignidade da pessoa humana, abordado no item anterior30.

2.5.3 Princípio do melhor interesse da criança

Outro princípio que também tem indiscutível valor ao tema do presente estudo é o princípio do melhor interesse da criança. Neste particular, é necessário transcrever o art. 227, caput, da CF/88, que assim dispõe: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, 31 exploração, violência, crueldade e opressão .

30 31

TARTUCE, loc. cit. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit.

25 A proteção daí advinda é regulamentada pelo ECA, que distingue criança e adolescente, sendo criança a pessoa com idade entre zero e doze anos incompletos, e adolescente a pessoa na faixa entre doze e dezoito anos de idade. Reforçando o texto constitucional acima citado, o art. 3º do Estatuto assegura que a criança e o adolescente gozam de todos aqueles direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além de proteção integral, garantindo-lhes, legalmente ou por demais meios, todas as oportunidades e as facilidades, de modo que possam desenvolver-se física, mental, moral, espiritual e socialmente de forma plena, em condições de liberdade e de dignidade32.

2.5.4 Princípio da solidariedade familiar

Segundo Tartuce, o princípio da solidariedade familiar vem reforçar a existência da solidariedade nos relacionamentos pessoais, para a construção de uma sociedade livre, justa e cooperativa com nosso ordenamento jurídico. O modelo almejado é o da família que deixe o individualismo de lado, estabelecendo uma ligação de solidariedade entre seus membros, podendo, assim, ser amparada juridicamente, desde que se constitua num ambiente onde todos possam se desenvolver de forma plenamente digna e justa33. O art. 3º, inc. I, da Constituição Federal de 1988 assim prescreve: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; [...]”34. Com este princípio tem ligação direta o art. 1.694 do Código Civil de 2002, pois verifica-se claramente que uma família deve ser solidária com todos os membros, onde os necessitados, por força deste princípio, deverão ser amparados pelos que tiverem melhores condições, como segue: “Art. 1.694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que

32

TARTUCE, loc. cit. TARTUCE, loc. cit. 34 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit. 33

26 necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação”35.

2.5.5 Princípio da igualdade entre cônjuges/companheiros

Acerca do princípio da igualdade entre cônjuges/companheiros, e na mesma linha do que já se explanou no início deste capítulo, aí se nota o desaparecimento do poder autoritário do marido sobre a mulher, devendo as decisões do casal ser tomadas em comum acordo. A sociedade moderna exige, por força deste princípio, direitos e deveres iguais para os membros do casal, em nome da harmonia da família e da própria sociedade36.

2.5.6 Princípio da igualdade na chefia familiar

Há ainda, e fazendo sentido que apareça nesta ordem, o princípio da igualdade na chefia familiar, que assegura o exercício desta chefia de forma equilibrada pelo homem e pela mulher, democraticamente e com a cooperação de todos, onde inclusive os filhos podem opinar. Verifica-se facilmente a importância deste princípio, que, assegurando igualdade de direitos e deveres no âmbito da família, faz desaparecer a remota figura do modelo patriarcal37.

2.5.7 Princípio da função social da família

35

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. DINIZ, 2006, p. 18. 37 TARTUCE, loc. cit. 36

27 O art. 226, caput, da Constituição Federal de 198838 fundamenta o princípio da função social da família, colocando-a na destacada posição de base da sociedade, e assegurando-lhe, justamente por esta posição de destaque, especial proteção do Estado. Isto é o que mantém a organização social do Estado39.

2.5.8 Princípio da igualdade jurídica de todos os filhos

O princípio da igualdade jurídica de todos os filhos determina que nenhuma distinção poderá ocorrer entre filhos legítimos, naturais e adotivos, quanto ao nome, direitos, poder familiar, alimentação e sucessão. O nosso direito positivo, com base neste princípio, permite o reconhecimento de filhos gerados fora do casamento, proíbe que conste no assento do nascimento qualquer menção a fatores de ilegitimidade e proíbe referências discriminatórias relativas à filiação. Assim, a única distinção “[...] entre as categorias de filiação seria o ingresso, ou não, no mundo jurídico, por meio do reconhecimento; logo só se poderia falar em filho, didaticamente, matrimonial ou não matrimonial reconhecido e não reconhecido”40.

2.5.9 Princípio da não intervenção ou da liberdade

Discorre o princípio da não intervenção ou da liberdade sobre a liberdade e a autonomia que a família possui em relação à sociedade, podendo ela decidir sobre seus interesses, sendo vedado ao Estado intervir de forma coativa nas relações da família, preceito que o Código Civil tratou de abordar expressamente no seu: “Art. 1.513. É defeso a qualquer pessoa de direito público ou direito privado interferir na comunhão de vida instituída pela família”41.

38

“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” Cf. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit. 39 TARTUCE, loc. cit. 40 DINIZ, 2006, p. 21. 41 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit.

28 Por outro lado, e por derradeiro, vale mencionar que o Estado pode incentivar o controle da natalidade e o planejamento familiar, por meio de políticas públicas. Sintetizados os princípios que mais se relacionam com presente estudo, passa-se, agora, à questão da titularidade do poder familiar.

2.6 TITULARIDADE DO PODER FAMILIAR

O Código Civil de 1916 atribuía ao pai a titularidade do pátrio poder, sendo ele considerado o chefe da família. Só na sua falta ou impedimento é que a mãe poderia exercê-lo, sendo tal poder sucessivo e não simultâneo. No caso de conflitos referentes à família, prevalecia a decisão do pai, salvo se esta configurasse abuso de direito. Com o advento do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), esta situação foi se modificando, pois a mulher passou a colaborar nas decisões do marido referentes aos assuntos da família, podendo a mãe recorrer à justiça para a solução de divergências. Mas a igualdade completa quanto à titularidade e ao exercício do poder familiar só chegou com o art. 226, § 5º, da Constituição Federal de 1988, que prescreve que “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e a mulher”42. Neste particular, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA –, no seu artigo 21, assim dispõe: Art. 21. O poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade 43 judiciária competente para a solução da divergência .

42 43

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit. Id., Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 26 maio 2011.

29 É valido lembrar que os pais devem exercer o poder familiar de forma consensual, mas em caso de divergência poderá o tribunal resolver a questão de forma que traga menos prejuízo ao filho, conforme prevê o art. 1631 do CC/02, que alicerça a percepção já possível acerca da evolução do poder familiar, como segue: Art. 1.631. Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade. Parágrafo único. Divergindo os pais quanto ao exercício do poder familiar, é 44 assegurado a qualquer deles recorrer ao juiz para solução do desacordo .

No caso de separação judicial ou divórcio, vale mencionar, nenhum dos genitores perde o exercício do poder familiar, pois este decorre da filiação, e não do casamento. Em tais situações, no que concerne à guarda, esta ficará com o que tiver melhor condições para tal, sempre levando-se em conta o que no caso concreto for melhor para a prole, cabendo ao outro o direito de visita. Há, ainda, a possibilidade de guarda compartilhada, onde o filho mora com os dois pais em casas separadas, ficando certo período com um e depois com o outro, ou podendo intercalar os dias. Apenas como reforço, vale citar a previsão do art. 1632 do CC/02 “Art. 1.632. A separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de terem em sua companhia os segundos45. Conforme Monteiro, Em contrapartida, a guarda obriga à prestação de assistência material, moral e educacional. Note-se que ambos os pais devem contribuir com recursos para o sustento dos filhos, desde que os tenham e na proporção das possibilidades de cada qual (Código Civil de 2002, art. 1703). Assim, caso o genitor guardião não possua meios próprios para sustentar o filho, isto não será motivo de perda da guarda, já que deverá o outro genitor, dentro do alcance de suas possibilidades, prestar pensão alimentícia ao 46 menor .

44

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. 46 MONTEIRO, 2004, p. 352. 45

30 Vindo a falecer um dos cônjuges, exercerá plenamente o poder familiar o outro cônjuge, como sintetiza Venosa: “Com a morte de um dos pais, o sobrevivente exercerá isoladamente, é evidente, o pátrio poder”47. Quando o filho não for reconhecido pelo pai, a mãe terá o exercício do poder familiar; e caso de a mãe ser desconhecida, será constituído tutor ao filho. É o que se depreende claramente da letra da lei “Art. 1.633. O filho, não reconhecido pelo pai, fica sob poder familiar exclusivo da mãe; se a mãe não for conhecida ou capaz de exercê-lo, dar-se-á tutor ao menor”48. Tendo o afeto se tornado a base da relação familiar, o parágrafo único do art. 1584 do CC/02 garante a guarda dos filhos, em caso de separação judicial ou divórcio, à pessoa com maior afetividade em relação ao filho. Se o juiz considerar que não há possibilidade de os filhos ficarem com os pais, sua guarda poderá ser conferida a terceiro da família de qualquer dos cônjuges, podendo ser deferida a guarda para adoção ou tutela. Como fechamento deste capítulo, ver-se-ão, a seguir, os encargos aos quais os pais são obrigados em relação aos filhos, encargos estes que decorrem não só da previsão legal como também da própria relação entre pais e filhos em si mesma.

2.7 O PODER FAMILIAR E OS FILHOS

Este título refere-se às obrigações dos pais quanto à pessoa dos filhos menores. Sobre o tema, o art. 1.634 do CC/02 assim estabelece: Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I – dirigir-lhes a criação e educação; II – tê-los em sua companhia e guarda; III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V – representá-los, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assistilos, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; 47 48

VENOSA, 2009, p. 304. BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit.

31 VI – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; VII – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de 49 sua idade e condição .

Gonçalves, acerca do art. 1634, I do Código civil de 2002, assim discorre: “I – O dever de dirigir a criação e educação dos filhos menores é o mais importante de todos. Incumbe aos pais velar não só pelo sustento dos filhos, como pela sua formação, a fim de torná-los úteis a si, à família e à sociedade”50. Diniz, sobre o inc. II do mesmo artigo, ensina: II – Tê-los na sua companhia e guarda, pois esse direito de guarda é, concomitantemente, um poder-dever dos titulares do poder familiar. Dever porque aos pais, a quem cabe criar, incumbe guardar. Constitui um direito, ou melhor, um poder porque os pais podem reter os filhos no lar, conservando-os junto a si, regendo seu comportamento em relações com terceiros, proibindo sua convivência com certas pessoas ou sua frequência a determinados lugares, por julgar inconveniente aos interesses dos 51 menores .

Rodrigues, sobre o inc. III, ressalva: III – Conceder-lhes, ou negar-lhes consentimento para casarem. Essa prerrogativa conferida aos pais, ao contrário do que se dá em outros sistemas legislativos, em que é absoluta, não tem, no direito brasileiro, uma importância transcendental, porque o consentimento paterno pode ser 52 suprido judicialmente .

Quanto ao inciso seguinte, Monteiro reforça a letra da lei: “IV – Cabe ainda aos pais nomear tutor aos filhos por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar”53. No item seguinte, o entendimento de Venosa: V – A representação dos filhos ocorre até que estes completem 16 anos. Dessa idade, até os 18 anos, os menores são assistidos. A regra é repetida 54 pelo artigo 1690 do presente código. Reporta-se ao que estudamos em nosso Direito Civil: [...] Ato praticado por menor absolutamente incapaz sem

49

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. GONÇALVES, 2005, p. 363. 51 DINIZ, 2006, p. 534. 52 RODRIGUES, 2002, p. 404. 53 MONTEIRO, 2004, p. 352. 54 “Art. 1.690. Compete aos pais, e na falta de um deles ao outro, com exclusividade, representar os filhos menores de dezesseis anos, bem como assisti-los até completarem a maioridade ou serem emancipados.” Cf. BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. 50

32 representação é nulo; ato praticado por menor relativamente incapaz sem 55 assistência é anulável .

Gonçalves, na sequência, assevera: VI – Reclamá-los de quem ilegalmente os detenha, por meio de ação de busca e apreensão, para exercer o direito e dever de ter os filhos em sua companhia e guarda. [...] O Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo em vista a natureza dúplice da aludida ação, reconheceu a possibilidade de se inverter a guarda, independentemente de ação movida pelo réu para modificar o acordo de separação judicial, devendo ser aberta oportunidade 56 às partes de produzirem provas .

Por fim, a lição de Diniz: VII – Exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição, sem prejuízo de sua formação. Os menores deverão não só respeitar e obedecer aos seus pais, mas também prestar-lhes serviços compatíveis com sua situação, participando da mantença da 57 família, preparando-se para os embates da vida .

Feitas

estas

considerações,

o

próximo

capítulo

abordará,

especificamente, as diversas formas de violência contra filhos, para posteriormente analisar-se a razoabilidade da perda do poder familiar em razão dessa violência.

55

VENOSA, 2009, p. 308. GONÇALVES, 2005, p. 366-367. 57 DINIZ, 2006, p. 536. 56

33 3 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES

Para se chegar à análise da razoabilidade da destituição do poder familiar em casos de violência praticada por pais contra filhos, neste capítulo serão vistos alguns aspectos gerais da violência, seu conceito, os tipos possíveis, suas consequências, e ainda algumas pontuações acerca da violência no âmbito da Lei n. 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente.

3.1 CONCEITO DE VIOLÊNCIA

A palavra violência deriva do latim vis, que significa força. A violência é o abuso da força, seja agindo sobre alguém, seja fazendo-o agir contra sua vontade para que essa violência se manifeste, empregando a força ou a intimidação. É coagir, obrigar. É usar de brutalidade para submeter alguém. É o mau-trato, em se tratando de violência psíquica e moral. É considerada uma fúria, quando se trata dos sentimentos1. Assim, a violência pode ser conceituada como a ação ou efeito de violentar, de empregar a força física contra alguém ou algo, ou intimidar moralmente alguém. No aspecto jurídico, define-se violência como o constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém, para obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem; é a coação. Uma conceituação mais ampla de violência, a de Melo, acrescenta: Violência, em seu significado mais frequente, quer dizer uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade. […] É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma violação dos 2 direitos essenciais do ser humano . 1

VERONESE, Josiane Rose Petry; COSTA, Marli Marlene Moraes. Violência doméstica: quando a vítima é criança ou adolescente – uma leitura disciplinar. Florianópolis: OAB/SC, 2006. p. 101-102. 2 TELES; MELO apud GREZOSKI, Ana Cristina. Mito da tutela penal no combate à violência de gênero ocorrida no âmbito doméstico e familiar. 2008. Monografia (Graduação em Direito) – Universidade do Sul de Santa Catarina, Tubarão, 2008.

34 De modo geral, verifica-se como utilização de força física, mas também pode a violência se expressar de forma psicológica, resumindo-se, aí, na forma de humilhação e constrangimento.

3.2 ASPECTOS GERAIS DA VIOLÊNCIA FAMILIAR CONTRA A CRIANÇA E O ADOLESCENTE

Em nossa sociedade, a família, indiscutivelmente, é responsável pelas primeiras formas de socialização da criança e do adolescente, pois é no âmbito familiar que terão seus primeiros aprendizados, onde aprenderão a viver em grupo. É onde recebem amor, carinho e proteção. Nestes primeiros estágios da vida formase a identidade da criança. É quando começará a discernir o certo e o errado. É a base para terem um desenvolvimento sadio, tanto no aspecto físico como no psicológico. É certo afirmar que, de um modo geral, todo ato ou omissão praticado por pais contra crianças ou adolescentes causa danos de ordem física, sexual ou psicológica à vítima, ferindo ou gerando uma transgressão do poder/dever de proteção dos pais, numa negação às crianças e adolescentes de terem condições de pleno desenvolvimento3. Apesar disso, o que se vê normalmente é que as crianças e adolescentes acabam vivenciando seus primeiros casos de violência na própria família, na sua própria casa. A família, neste contexto, passa a ser representada por um espaço de negação de valores, negação de amor, carinho, atenção e proteção. Assim, convivendo com atos de violência no próprio lar, muitas crianças e adolescentes vivem em ambiente muitas vezes bem longe do ideal para sua criação, sendo vitimizadas pelos próprios pais, que deveriam ser os responsáveis por seu pleno desenvolvimento.

3

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. A violência doméstica na infância e na adolescência. São Paulo: Robe, 1995. p. 36.

35 A transgressão do poder/dever de proteção significa que esse fenômeno é a exacerbação do poder dos pais em relação aos filhos na estrutura da família, enquanto instituição de socialização. Portanto, as diferentes formas de violência contra criança e adolescente configuram o abuso deste poder/dever de proteção familiar, que é essencial para o desenvolvimento deles4. A violência familiar expressa-se pelo abuso do poder do adulto sobre a criança ou o adolescente, vale dizer, essas crianças deixam de ser vistas como pessoas em formação, e apesar de possuírem uma série de direitos, passam a ser vistas como meros objetos. Segundo cartilha do Centro Crescer Sem Violência, “a criança ou adolescente é visto como objeto, com suas necessidades não percebidas, submetido aos desejos dos pais desde a mais tenra idade, e quando manifesta anseios de autonomia sofre agressões”5. Não é difícil compreender que esse uso incorreto de poder pelos pais, consequentemente acarretará violência física contra os filhos, na tentativa daqueles de impor limites a estes. Quanto à coisificação da infância, trata-se da negação dos direitos que a criança e o adolescente possuem de ser tratados justamente como sujeitos de direito, sempre levando-se em conta as suas necessidades de condição de desenvolvimento. É, em última análise, a dominação, traduzida no poder dos pais sobre os filhos submissos6. Os pais, muitas vezes, achando que estão ensinando os filhos, utilizam de forma errada seus conhecimentos de disciplina e educação, e, seja consciente ou inconscientemente, abusam de sua autoridade, vitimizando seus filhos. Assim, em razão de uma idéia errada sobre suas responsabilidades, ocorre em tais situações o exercício indevido do poder familiar7. Nesse caso, o uso indevido do poder familiar pode derivar da falta de preparo e orientação dos pais para entender e educar seus filhos, pois poderiam e até mesmo deveriam orientar as crianças e os adolescentes de forma correta, im-

4

AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 37. CRESCER SEM VIOLÊNCIA. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: Apostila do curso de capacitação para conselhos tutelares e de direitos de Santa Catarina. Florianópolis: [s.n.], 1999. p. 21. 6 AZEVEDO; GUERRA, op. cit., p. 38. 7 Ibid., p. 45. 5

36 pondo os limites cabíveis, mas sem violência. O poder familiar é identificado como uma relação de autoridade pelos pais, e esse poder é visto como forma de disciplina. Tal relação de autoridade pode ser vista como “[...] uma forma de aprisionar a vontade e o desejo da criança, de submetê-la, portanto, ao poder do adulto, a fim de coagi-la a satisfazer os interesses, as expectativas ou paixões deste”8. Nas relações com os filhos, de certa forma hierarquicamente, os pais buscam transformar e socializar as crianças para que sejam sua imagem e semelhança. É o fenômeno da repetição, encarregado da transmissão dos padrões de conduta adultos às novas gerações9. A superioridade dos adultos no meio familiar é um conceito que vem se afirmando na história e na cultura, com base na dependência física e psicológica que os filhos têm quando menores, e também por terem de se adaptar à autoridade social dos adultos. Os filhos devem submeter-se aos pais porque estes são naturalmente superiores. Os pais, que assumem tal função por um fato natural, têm direitos prioritários sobre a criança. A dependência social da criança se torna dependência natural. A obediência se torna um dever para a criança, e suas revoltas e divergências são vistas pelo adulto como uma violação aos próprios direitos do adulto. Pode-se afirmar que é inerente à cultura humana, de um modo geral, que no meio familiar a criança e o adolescente ocupem a posição de observadores e aprendizes, o que estabelece e fortalece o aspecto de superioridade e autoridade natural dos adultos. A partir da hierarquia estabelecida no meio familiar, cria-se uma estrutura em que crianças e adolescentes têm pouca participação em suas observações e questionamentos, o que acaba reafirmando um ambiente de violência. Apesar de se tratar de uma das formas de violência mais frequentes na vida das crianças e dos adolescentes, a violência familiar ainda é caracterizada por ser menos visível na sociedade. Isso se dá em razão das agressões ocorrerem na

8

AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Vitimação e vitimização: questões conceituais. In: ______. (Org.). Crianças vitimizadas: a síndrome do pequeno poder. 2. ed. São Paulo: Iglu, 2000. p. 35. 9 SAFFIOTI, Heleieth. Introdução: A síndrome do pequeno poder. In: AZEVEDO; GUERRA, 2000, p. 17.

37 intimidade da família. Em outras palavras: por ser de difícil acesso, esse tipo de violência só é descoberto quando atinge níveis extremos. Para Ferreira, essa difícil visibilidade ocorre porque “[...] as vítimas desse tipo de violência parecem ficar aprisionadas no desejo do adulto, uma vez que sob ameaça e medo, mantêm um „pacto de silêncio‟ com o agressor, num processo perverso instalado na intimidade de sua família”10. A este respeito, vale mencionar também a lição de Ribeiro e Martins: “A criança vítima da violência doméstica não é tratada como sujeito pleno, e tanto sua ação quanto sua reação são restringidas pelo medo e por ameaças. Só lhe resta permanecer calada frente ao poder disciplinador/repressor do adulto”11. Como se deduz claramente, em relação à violência familiar as crianças e os adolescentes possuem limitada ou nula possibilidade de se proteger. Outro fator que colabora para o silêncio da criança e do adolescente frente à violência sofrida são os sentimentos de amor e de medo, que os confundem. Em razão disso, é comum que acabem se culpando pela agressão sofrida, por se depararem com a explicação de que tudo que os pais fazem é apenas para o bem dos filhos, e que se receberam algum castigo é porque mereceram, porque desobedeceram as ordens dos pais. Há, ainda, agravando o caso da violência familiar, a questão da cumplicidade entre os cônjuges, pois raramente um denuncia ou revela a alguém a agressão do outro. Entre as razões para esse silêncio estão o medo, as ameaças, a dependência financeira ou emocional, a falta de conhecimento sobre o fato e até mesmo a acomodação. Nas palavras de Guerra, ainda sobre essa cumplicidade, [...] há o estabelecimento de um tipo de „aliança solidária‟ entre os cônjuges pela qual um dificilmente exerce este tipo de violência sem a cumplicidade silenciada do outro, sendo raro que o parceiro não agressor revele o 12 problema a terceiros .

10

FERREIRA apud SONEGO, Cristiane; MUNHOZ, Divanir Eulália Naréssi. Violência familiar contra crianças e adolescentes: conceitos, expressões e características. Revista Emancipação, Ponta Grossa, n. 1, v. 7, 2007. Disponível em: . Acesso em: 11 maio 2011. 11 RIBEIRO, Marisa Marques; MARTINS, Rosilda Baron. Violência doméstica contra a criança e o adolescente: a realidade velada e desvelada no ambiente escolar. Curitiba: Juruá, 2008. p. 76. 12 GUERRA apud SONEGO; MUNHOZ, loc. cit.

38 De um modo geral, a omissão das pessoas em relação à violência familiar é baseada na preocupação de não invadir a privacidade da família, e também no medo de represálias. Em última análise, o medo é a palavra-chave para explicar o fato de as pessoas não denunciarem os casos de agressão, tanto por parte dos filhos quanto por parte de terceiros que têm conhecimento. Esse verdadeiro pacto de silêncio envolvendo a família e a sociedade acaba fazendo com que as crianças e os adolescentes passem [...] a viver uma situação típica de estado de sítio, em que sua liberdade – enquanto autonomia pessoal – é inteiramente cerceada e da qual só se resgatará, via de regra, recuperando o poder da própria palavra, isto é, 13 tornando pública a violência privada de que foi vítima .

Como se percebe, para que essa violência seja combatida, há a necessidade de quebrar esse pacto de silêncio entre as pessoas envolvidas.

3.3 TIPOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

A violência pode se concretizar de várias formas. Para fins didáticos do presente estudo, abordar-se-á a violência por quatro enfoques diferentes: a física, a psicológica, a sexual e a decorrente de negligência, embora seja fácil compreender que na prática muitas vezes estes aspectos acabam sendo cumulativos, interagindo entre si.

3.3.1 Violência física doméstica

Nesse contexto, a violência física é caracterizada pelo uso da força ou ainda por outros atos praticados pelos pais ou responsáveis, com o objetivo de ferir

13

AZEVEDO; GUERRA apud SONEGO; MUNHOZ, loc. cit.

39 ou não, deixando ou não marcas evidentes. São frequentes casos de tapas, agressões com diversos objetos e queimaduras por objetos ou líquidos quentes. Neste tipo de violência, verifica-se a chamada síndrome do bebê sacudido, que se caracteriza por lesões graves, que ocorrem quando uma criança, geralmente recém-nascida, é sacudida com violência, o que pode levá-la à cegueira ou a lesões oftalmológicas, a atraso no desenvolvimento, a convulsões, lesões na espinha, lesões cerebrais e até mesmo a óbito14. Segundo a lição de Veronese e Costa, Incontestável é que a maior parte das vítimas desse tipo de violência apresenta frequentes retardos escolares, tais como inadaptação ao convívio com outras crianças, dificuldade de expressão (retardo de linguagem), e em sua própria concepção do ambiente escolar, uma vez que tendem a ver nele, não um lugar de aprendizado, mas somente um refúgio para aplacar 15 sua situação, o que não deixa de ser totalmente compreensível .

Nas famílias onde existe violência física, as relações dos pais com os filhos se caracterizam pela superioridade dos pais e inferioridade dos filhos, que são vistos como objetos, tendo estes o dever de satisfazer as necessidades dos pais. Isso gera expectativas superiores à capacidade dos filhos, num ambiente onde a disciplina severa é considerada método de educação16. Em relação aos pais nesse meio, pode-se dizer que na maioria das vezes eles ocultam as lesões da criança ou adolescente ou as justificam de forma não convincente; colocam a culpa no comportamento desobediente da criança; muitos são viciados em álcool e/ou em outras drogas; possuem expectativas irreais da criança ou adolescente; foram maltratados quando criança, ou possuem como cultura familiar a disciplina rígida e severa17.

3.3.2 Violência sexual doméstica

14

RIBEIRO; MARTINS, 2008, p. 115. VERONESE; COSTA, 2006, p. 108. 16 AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 48. 17 Ibid., p. 49. 15

40 A violência sexual doméstica mostra-se como um ato ou jogo sexual, onde pode haver relação hetero ou homossexual, entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, que tem por fim estimular a sexualidade da criança ou adolescente, ou utilizá-lo para obtenção de estímulos sexuais para si ou de outra pessoa. Destaca-se que nas ocorrências a criança sempre figurará como vítima, e não poderá ser transformada em ré. A intenção da violência sexual é a obtenção do prazer, de forma direta ou indireta, em benefício do adulto, anotando-se que a participação da criança sempre se dá mediante coerção exercida pelo adulto18. A lição de Faleiros destaca alguns pontos de enorme importância quanto à dimensão da violência sexual doméstica: O segredo familiar, pois está em segredo e tem o envolvimento de outros familiares; há a reincidência por parte dos agressores, pois tendem a repetir a violência com outras pessoas; as pessoas que cometem a agressão tendem a ter sido agredidas quando criança; este tipo de violência está presente em todas as classes sociais; as crianças abusadas podem ser vitimizadas em qualquer idade, sendo que os traumas sofridos são diferenciados de acordo com a idade; o agressor muitas vezes é perdoado pela família, por razões culturais e autoritárias; por não aguentar mais as violências sofridas, a criança ou adolescente acaba fugindo de casa; há a necessidade de acompanhamento terapêutico com a criança abusada, pois 19 as marcas da violência são profundas .

3.3.3 Violência psicológica doméstica

A violência psicológica, também conhecida como tortura psicológica, transpassa todos os demais tipos de violência, e ocorre quando a criança é depreciada constantemente pelo adulto, que bloqueia os esforços de auto-aceitação da criança, causando-lhe grande sofrimento mental. Essa exposição da criança ou adolescente a constantes situações de humilhação e/ou constrangimento, gerada por agressões verbais, faz com que a vítima se sinta rejeitada, sem valor, o que a impede de ter relações de confiança com outros adultos20.

18

AZEVEDO; GUERRA, 1995, p. 53. CRESCER SEM VIOLÊNCIA, 1999, p. 30-31. 20 VERONESE; COSTA, 2006, p. 116. 19

41 A violência psicológica doméstica pode se manifestar em forma de rejeição, depreciação, discriminação e desrespeito, por parte dos pais, com as crianças e adolescentes. A ocorrência mais comum desse tipo de violência se dá em forma de punições exageradas, que não deixam marcas visíveis, mas as marcas que ficam podem durar para toda a vida21.

3.3.4 Negligência doméstica

A negligência, nos termos delimitados do presente estudo, consiste na omissão em termos de prover as necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente. Ela guarda relação direta com o grau de disponibilidade dos pais em relação aos filhos e seus interesses22. Esse tipo de violência fica configurado quando os pais cometem falhas em questões como alimentação, vestuário, educação e orientação, e quando tais falhas atingem as necessidades básicas e fundamentais de sobrevivência. A negligência pode se apresentar de forma moderada ou severa. Isso depende, como já mencionado, da disponibilidade dos pais para com seus filhos. Assim, por exemplo, é evidente que em ambientes onde os pais negligenciam seus filhos severamente, pela falta de cuidados básicos para que estes se desenvolvam de forma saudável, pode-se dizer que as crianças e adolescentes vivem praticamente em estado de abandono, mesmo que este se dê (e muitas vezes se dá) no seu próprio lar23.

3.4 CONSEQUÊNCIAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

21

RIBEIRO; MARTINS, 2008, p. 83. VERONESE; COSTA, 2006, p. 120. 23 CRESCER SEM VIOLÊNCIA, 1999, p. 55. 22

42 Como forma de reforço, além do já explanado nos itens anteriores, vale trazer à tona, neste tópico, mais informações, agora específicas, com relação às consequências que a violência doméstica pode causar em suas vítimas crianças e adolescentes. Segundo a cartilha do Centro Crescer Sem Violência, sobre a questão da violência física: Quanto ao comportamento, as crianças ou adolescentes podem apresentarse muito agressivos ou apáticos. Há hiperatividade extrema ou depressão; se assustam facilmente e mostram-se com temor; em algumas situações podem apresentar tendências autodestrutivas e temem aos pais, pois sofrem agressão dos mesmos; apresentam causas pouco prováveis às suas lesões; apresentam baixa estima; fogem com frequência de casa; têm dificuldades para aprender; [...] podem ser caracterizadas como „maus24 tratos‟ .

O mencionado crime de maus-tratos é tipificado no Código Penal, como segue: Art. 136 - Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena - detenção, de dois meses a um ano, ou multa. § 1º - Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de um a quatro anos. § 2º - Se resulta a morte: Pena - reclusão, de quatro a doze anos. § 3º - Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa 25 menor de 14 (catorze) anos .

Por outro lado, em relação às consequências de violência sexual: As crianças apresentam traumas físicos, lacerações vaginais e anais, infecções e doenças venéreas, menstruação desregulada, insônia e falta de apetite, dificuldades de aprendizagem, sentimentos de ódio em relação ao agressor, vivem fugindo de casa e fazem uso de bebidas e drogas, além da 26 prostituição juvenil .

24

CRESCER SEM VIOLÊNCIA, 1999, p. 22. BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em: 11 maio 2011. 26 VERONESE; COSTA, 2006, p. 108. 25

43 No âmbito psicológico, essas crianças tendem a se sentir desvalorizadas, com sentimento de culpa, depressão, evitando relacionamento com homens, apresentando incapacidade de distinguir sexo de afeto, negação ao relacionamento sexual (e quando têm relações sexuais, estas geralmente são insatisfatórias), distúrbios na sexualidade, tendência ao suicídio, problemas de personalidade, além da agressividade27. Como se percebe, as consequências da violência psicológica são igualmente desastrosas, gerando na vítima sentimentos de rejeição e insegurança, impedindo-a de estabelecer relações de confiança com outras pessoas28. Como

reforço

da

explanação,

Ribeiro

e

Martins

sintetizam

o

comportamento da criança e do adolescente, quando vítimas de violência psicológica: A criança ou adolescente apresenta problemas na aprendizagem, comportamento extremamente agressivo, tímido, destrutivo ou autodestrutivo, problemas com insônia, baixo conceito de si, apresenta 29 depressão, apatia e tendência ao suicídio .

Com referência à negligência experimentada pela criança ou adolescente, as consequências apresentam-se da seguinte forma: O crescimento da criança é deficiente, pois não há um cuidado especial em relação à alimentação da criança; por não ter um cuidado e higiene pode apresentar problemas em relação à saúde; fadigas constantes; apresenta desvios de conduta, pois não há um cuidado especial com a educação da mesma; privação cultural; se sente rejeitado e sem valor; e depressão, pois 30 foi abandonada afetivamente .

3.5 O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE E A VIOLÊNCIA INFANTIL E JUVENIL

Pode-se afirmar, em síntese, que o Estatuto da Criança e do Adolescente tem por finalidade primordial proteger os interesses do menor. 27

CRESCER SEM VIOLÊNCIA, 1999, p. 38-40. VERONESE; COSTA, 2006, p. 116. 29 RIBEIRO; MARTINS, 2008, p. 83. 30 CRESCER SEM VIOLÊNCIA, op. cit., p. 56-57. 28

44 Para tanto, o ECA apresenta dispositivos que coíbem a prática de violência doméstica, prevendo, neste particular, a prevenção, a fiscalização, e até mesmo, em situações extremas, o afastamento da criança do ambiente violento31. Com o advento do Estatuto, foram criados, por expressa previsão legal deste, os Conselhos Tutelares, para a tarefa de fiscalizar e zelar pelos interesses das crianças e adolescentes. Tais Conselhos são organizados no âmbito municipal, onde promovem atendimento em casos de violações e/ou ameaças aos menores32. Não é demais mencionar que a partir desse Estatuto, e de certa maneira só a partir dele, a criança e o adolescente passaram a ser vistos como sujeitos de direitos e pessoas em condições de desenvolvimento, razão pela qual o seu art. 70 prevê que: “É dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente”33. Nos termos deste artigo, pode-se entender que qualquer tipo de violência contra criança e adolescente significa a violação aos seus direitos essenciais. De acordo com o art. 5º do Estatuto da Criança e do Adolescente: Art. 5° Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus 34 direitos fundamentais .

O que foi previsto pelo ECA deve ser cumprido em nome de uma efetiva proteção às crianças e aos adolescentes, sem contar que, desrespeitando este artigo, poderá o agressor ser punido na forma da lei. Mister mencionar, a respeito disso, as medidas de proteção previstas no Estatuto, no âmbito exato em que interessam ao tema do presente estudo: Art. 98. As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados: [...]

31

VERONESE; COSTA, 2006, p. 120. CRESCER SEM VIOLÊNCIA, op. cit., p. 132-133. 32 VERONESE; COSTA, op. cit., p. 120. 32 CRESCER SEM VIOLÊNCIA, op. cit., p. 133. 33 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 11 maio 2011. 34 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 31

45 II – por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; 35 [...] .

E, na sequência, o art. 101 do ECA, no que tem correspondência com o tema em estudo, guardando ligação direta com o artigo transcrito acima: Art. 101. Verificada qualquer das hipóteses previstas no art. 98, a autoridade competente poderá determinar, dentre outras, as seguintes medidas: [...] VII – acolhimento institucional; VIII – inclusão em programa de acolhimento familiar; IX – colocação em família substituta. 36 [...]

Depois, no art. 129 do Estatuto, aparecem as medidas aplicáveis aos pais ou responsável, sendo relevantes a este trabalho as três últimas: perda da guarda, destituição da tutela e suspensão ou destituição do poder familiar37. Na sequência, o ECA traz ainda a previsão de uma medida cautelar a ser utilizada em determinados casos, como segue: Art. 130. Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsáveis, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia 38 comum .

Assim, uma vez configurada a violência nas formas acima especificadas, os responsáveis (sejam os pais ou não) poderão ser afastados do lar, embora essa ocorrência se dê muito raramente. Isso porque, na prática, geralmente quando a criança ou o adolescente não possuem parentes próximos para assumir a responsabilidade, eles são encaminhados para algum abrigo ou casa-lar. Muito brevemente, já de antemão é de se mencionar que, no âmbito do ECA, com relação à colocação da vítima em família substituta, os institutos cabíveis são os da tutela e da adoção, sempre preservando os interesses da criança e do adolescente. Para sua inserção na família substituta, entre outros fatores analisam-

35

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 37 Art. 129, incisos VIII a X. Cf. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 38 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 36

46 se o grau de parentesco e a afinidade/afetividade entre o protegido e os que desejam protegê-lo39. Vale reforçar que a criança e o adolescente, com o advento do mencionado Estatuto, passaram a ser considerados sujeitos de direitos, não mais cabendo serem vistas como objeto. Mas foi ainda antes disso, em 1988, com o advento da atual Constituição Federal, que se deu um avanço sem precedentes em relação ao tema do poder familiar. Isso porque os pais, homens e mulheres, foram submetidos ao princípio da igualdade. Depois, em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 21, ratificou expressamente essa igualdade de condições entre eles, pai e mãe, que legalmente passaram a atuar em comum acordo em relação aos filhos e aos assuntos de família40. Feitas tais abordagens, o presente trabalho passará, agora, ao estudo das possibilidades de destituição do poder familiar em razão de violência doméstica praticada contra crianças e adolescentes, para, ao final, analisar-se a razoabilidade de tal medida, certamente drástica, em virtude da violência no âmbito mencionado.

39

VERONESE; COSTA, 2006, p. 120. CRESCER SEM VIOLÊNCIA, 1999, p. 134. 40 VERONESE; COSTA, op. cit., p. 120. 40 CRESCER SEM VIOLÊNCIA, op. cit., p. 135. 39

47 4 EXTINÇÃO DO PODER FAMILIAR

Na antiguidade, no Direito romano, como visto anteriormente o patria potestas era absoluto, tinha caráter perpétuo, só se extinguindo com a morte dos pais. Mas com os abrandamentos sofridos por esse poder, e com as mudanças ocorridas no instituto da família, o poder familiar passou a apresentar outras formas de extinção1. Com a evolução do poder familiar, que passou a ter função de proteção integral e garantia dos interesses da criança e do adolescente, este poder revestiuse de questão de ordem pública, passando a merecer e receber, portanto, ampla fiscalização do Estado. A esse respeito, ensina Carvalho: “O Estado interfere na família para fiscalizar a criação e educação da prole pelos pais, com o propósito de evitar que o exercício do poder familiar possa ser nocivo aos filhos”2. Assim, nos casos em que os pais deixam de realizar adequadamente sua função protetora para com os filhos, abusando do poder familiar, o Estado deve se insurgir contra eles, através dos mecanismos de suspensão ou perda do poder familiar, conforme a situação, ambos previstos em nosso ordenamento jurídico3. As formas de extinção do poder familiar estão definidas no art. 1635 do Código Civil: Art. 1635. Extingue-se o poder familiar: I – pela morte dos pais ou do filho; II – pela emancipação, nos termos do art. 5º, parágrafo único; III – pela maioridade; IV – pela adoção; 4 V – por decisão judicial, na forma do art. 1638 (original sem grifo) .

Sobre as formas de extinção previstas do inc. I ao IV acima transcritas não se fará maiores considerações, tendo sido transcritas apenas ilustrativamente, uma vez que o foco do presente estudo é a extinção do poder familiar por decisão

1

ATAÍDE JÚNIOR, Vicente de Paula. Destituição do poder familiar. Curitiba: Juruá, 2009. p. 43. CARVALHO, Dimas Messias de. Direito de família. In: ______. Direito civil. 2. ed. rev. ampl. e atual. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 382. 3 ATAÍDE JÚNIOR, op. cit., p. 43. 4 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . Acesso em 30 maio 2011. 2

48 judicial, de acordo com o art. 1638 do Código Civil (inc. V acima), artigo este que trata das hipóteses de perda do poder familiar por via judicial, o que doravante se verá de forma mais detalhada5.

4.1 SUSPENSÃO DO PODER FAMILIAR

Por ser uma medida menos grave que a perda, a situação da suspensão do poder familiar pode ser revertida. Em outras palavras: sanadas as “inconveniências” que autorizaram a suspensão, esta tem caráter temporário. O instituto da suspensão do poder familiar possibilita que a abrangência dessa suspensão em si possa ser direcionada a determinados assuntos. Por exemplo: no caso de um pai que é violento e autoritário com seu filho, mas, por outro lado, garante plenamente as condições econômicas para o seu desenvolvimento, ele poderá ser suspenso apenas em relação à educação de seu filho, devendo arcar com a mantença das outras necessidades que lhe caibam6. Se apenas um dos pais for suspenso no poder familiar, o outro o exercerá com exclusividade. Por outro lado, se os dois forem suspensos, o juiz nomeará tutor ao menor7. Como a suspensão é cabível em casos, relativamente, de menor gravidade (se comparados aos mais graves, que justificam a perda), o juiz não está obrigado a aplicá-la diretamente, como primeira opção, podendo/devendo ele, dentre várias medidas, adotar as que lhe pareçam mais adequadas para cada situação8. Prevê o caput do art. 1.637 do Código Civil: Art. 1637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até 9 suspendendo o poder familiar, quando convenha .

5

CARVALHO, 2009, p. 381. Ibid., p. 382. 7 Ibid., p. 382. 8 Ibid., p. 382. 9 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. 6

49 Assim, se os pais abusarem do poder familiar, algum parente ou o Ministério Público serão partes legítimas para requerer ao juiz a imposição de medidas que garantam a segurança do filho, sendo uma das medidas possíveis, como visto, a suspensão do poder familiar em relação aos pais. No caput do artigo 1637, portanto, encontram-se os casos em que se autoriza a suspensão temporária, mediante decreto judicial, em processo contencioso. Pois, se caracterizado o abuso excessivo, o caso concreto poderá se enquadrar na hipótese, bem mais extrema, de perda do poder familiar10. No caso de pais que deixem de exercer seus deveres de proteção e cuidado dos filhos, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu art. 129, prevê as medidas a serem tomadas: Art. 129. São medidas aplicáveis aos pais ou responsável: I – encaminhamento a programa oficial ou comunitário de proteção à família; II – inclusão em programa oficial ou comunitário de auxílio, orientação e tratamento a alcoólatras e toxicômanos; III – encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico; IV – encaminhamento a cursos ou programas de orientação; V – obrigação de matricular o filho ou pupilo e acompanhar sua frequência e aproveitamento escolar; VI – obrigação de encaminhar a criança ou adolescente a tratamento especializado; VII – advertência; VIII – perda da guarda; IX – destituição da tutela; 11 X – suspensão ou destituição do pátrio poder . (original sem grifo)

Como se vê, são várias as possibilidades de medidas aplicáveis, numa escala que vai, por assim dizer, da menos até a mais gravosa. Ao juiz cabe pesar cada caso a fim de escolher a medida mais adequada, e é de se entender que quando ele opta pela suspensão ou destituição do poder familiar (inc. X acima), é porque a situação fática, por grave que é, pede uma solução à altura de sua gravidade, a fim de ver cessado o abuso sofrido pelas vítimas. Os abusos no poder familiar podem se traduzir em maus-tratos, privação de alimentos, exploração, perversidade, omissão (esta última nos casos em que se deixam os filhos na ociosidade, sem estudo, sem cuidados necessários, de forma

10 11

ATAÍDE JÚNIOR, 2009, p. 46. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2011.

50 que se comprometa sua saúde e segurança), exigência de que trabalhem em situações incompatíveis com a condição do menor, ou se arruinarem os bens dos filhos, por má administração ou dilapidação desses bens12. A suspensão perdurará enquanto houver necessidade, tendo seu tempo estabelecido e limitado por lei. Após esse lapso temporal, e não havendo mais indícios da causa que motivou a suspensão, os pais retornarão ao exercício do poder familiar. Verifica-se, assim, que a suspensão exclui apenas o exercício do poder familiar. Um exemplo disso é quando os pais têm suspenso o direito ao usufruto dos bens dos filhos, mas ainda assim continuam obrigados a prestar-lhes alimentos13. Um fato importante a ser mencionado é que a suspensão poderá servir como medida liminar nas ações de destituição do poder familiar, segundo o art. 157 do ECA14: Art. 157. Havendo motivo grave, poderá a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, decretar a suspensão do pátrio poder, liminarmente ou incidentalmente, até o julgamento definitivo da causa, ficando a criança ou adolescente confiado a pessoa idônea, mediante termo de 15. responsabilidade

Cabe ressalvar, por pertinente, que a situação de condição econômica desfavorável dos pais, por si só não constitui motivo para a perda ou suspensão do poder familiar. Vale dizer: a falta de recursos para criação dos filhos, o motivo de pobreza, não poderá acarretar, por si só, a perda ou a suspensão do poder familiar dos pais. Para que a decisão judicial se dê pela perda ou suspensão, o comportamento dos pais há de demonstrar, efetivamente, negligência e/ou abusos que justifiquem tal medida16. Vale reforçar: verifica-se, portanto, que para que ocorra a suspensão do poder familiar é preciso que os pais, através de comportamentos imoderados, venham a cometer abusos contra seus filhos, prejudicando seus interesses, de forma que essa suspensão se torne estritamente necessária para se reverter a

12

CARVALHO, 2009, p. 383. Ibid., p. 383. 14 ATAÍDE JÚNIOR, 2009, p. 48. 15 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 16 ATAÍDE JÚNIOR, op. cit., p. 48. 13

51 situação de abuso no caso concreto.

4.2 PERDA DO PODER FAMILIAR

De início, pode-se afirmar que a diferença fundamental entre a perda e a suspensão do poder familiar reside na gravidade da sanção, pois a perda, sendo sanção mais grave, tem caráter permanente, enquanto a suspensão, sendo sanção mais leve, tem caráter temporário17. Cabe relembrar: na suspensão, decorrido o prazo ou desaparecendo suas causas, restabelece-se o exercício do poder familiar. Mas no caso de perda do poder familiar, seu exercício só será restabelecido em processo judicial contencioso, se comprovada a regeneração dos pais e o desaparecimento das causas que determinaram a perda18. Segundo Venosa, a “[...] perda ou destituição do poder familiar é a mais grave sanção imposta aos pais que faltarem com os deveres em relação aos filhos”19. A esse respeito, prevê o art. 1.638 do Código Civil: Art. 1638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I – castigar imoderadamente o filho; II – deixar o filho em abandono; III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; 20 IV – incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente .

Vale observar que quando o Código Civil prevê que o pai que castiga imoderadamente o filho perderá o poder familiar (inc. I), ele não está dizendo que os pais não têm direito a correção em relação aos atos dos filhos, mesmo no caso de resultarem leves escoriações e/ou hematomas, desde que justificados em determinadas situações de correção necessárias e educacionais. Mas ele se refere, isso sim, ao abuso nesses atos corretivos, sem nenhuma justificação; ele se refere a

17

CARVALHO, 2009, p. 384. Ibid., p. 384. 19 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito de família. In: ______. Direito civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2009. v. 6. p. 315. 20 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit. 18

52 maus-tratos, violência desproporcional ao ato praticado pelo filho, espancamentos, o que pode até mesmo configurar crime21. A propósito, o Código Penal tipifica, da forma que segue, o crime de maus-tratos: Art. 136. Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina: Pena – detenção, de dois meses a um ano, ou multa. § 1º Se do fato resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a quatro anos. § 2º Se resulta a morte: Pena – reclusão, de quatro a doze anos. § 3º Aumenta-se a pena de um terço, se o crime é praticado contra pessoa 22 menor de 14 (catorze) anos .

Já o abandono de filho (CC, art. 1.638, II) não significa apenas abandono do lar ou de assistência material, configurando-se também em relação a privações que comprometam a sobrevivência, saúde e educação, devendo-se colacionar, ainda, que o Código Penal tipifica tal conduta como crime de abandono de incapaz, em seu art. 13323: Art. 133. Abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono: Pena – detenção, de seis meses a três anos. § 1º Se do abandono resulta lesão corporal de natureza grave: Pena – reclusão, de um a cinco anos. § 2º Se resulta a morte: 24 Pena – reclusão, de quatro a doze anos .

Para além, o abandono ou omissão dos pais em relação aos filhos configura o crime de abandono material do art. 244 do Código Penal: Art. 244. Deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de

21

CARVALHO, 2009, p. 384. BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: . Acesso em 30 maio 2011. 23 CARVALHO, 2009, p. 384. 24 BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, loc. cit. 22

53 pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada; deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo: Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País. Parágrafo único – Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, 25 fixada ou majorada .

Por outro lado, com referência ao crime de abandono intelectual, prevê o art. 246 do Código Penal: “Art. 246. Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa”26. Assim, vê-se que o ato de contribuir para que o filho não frequente a escola, e/ou mesmo o abandono em si, de forma a deixá-lo sem orientação nesse sentido, é considerado crime. Carvalho, para frisar o que já se abordou anteriormente, afirma que: “A ausência de recursos para fornecer sustento adequado aos filhos não é motivo para perda do poder familiar”27, em conformidade com o art. 23 do ECA: “Art. 23. A falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar”28. Nesse particular, é de se entender que cabe ao Estado, quando for o caso, incluir as famílias necessitadas em programas oficiais de assistência, conforme seja o tipo de necessidade, que nem sempre é de cunho econômico. Pode, por exemplo, advir da imaturidade dos pais, notadamente no caso de mães adolescentes com dificuldades, que merecem ser acolhidas pelo Estado a fim de reunirem condições de exercer bem a maternidade, podendo ser acompanhadas e orientadas pelos conselhos tutelares29. Disso se pode colher que o abandono capaz de ensejar a destituição do poder familiar é aquele relacionado ao amor, afeto, atenção, cuidado e responsabilidade dos pais, que são fatores fundamentais para o desenvolvimento

25

BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, loc. cit. BRASIL. Decreto-lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940, loc. cit. 27 CARVALHO, 2009, p. 384. 28 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 29 CARVALHO, op. cit., p. 384. 26

54 das crianças e adolescentes. Isso porque, privados disso tudo, eles restarão prejudicados nesse processo de desenvolvimento como sujeitos de direitos, de forma a configurar claramente, inclusive, o desrespeito aos seus direitos fundamentais e constitucionais assegurados pelos princípios da dignidade humana e da afetividade, conforme abordado anteriormente no capítulo próprio 30. No que se refere à perda do poder familiar por ato judicial em razão da prática de atos contrários a moral e aos bons costumes (CC, art. 1.638, III), fala-se, na prática, em situações onde os pais acabam, por seus atos, contaminando a formação moral e influenciando de forma negativa a personalidade do filho. Por exemplo, pais que se entregam ao uso de drogas e bebidas, que obrigam os filhos a pedir esmola para sustento da família, que vivem em ambiente sem regras, ou, até mesmo, que abusem sexualmente dos filhos (como visto nas hipóteses de violência doméstica contra filhos, no capítulo anterior), devendo-se observar os fatos e as consequências geradas na vítima criança ou adolescente31. Pode-se entender, assim, que a possibilidade jurídica de perda do poder familiar é de suma importância nos casos em que os filhos sofram violência constante dos pais, seja de que tipo for, desde que essa seja a medida adequada ao caso concreto. Não se deve esquecer que a perda é uma medida extrema e drástica, requerendo, portanto, o máximo de seriedade, correção e até mesmo sensibilidade por parte dos profissionais envolvidos no seu processo. Acrescenta-se, ainda, que por mais gravosa que seja a perda do poder familiar, permitir que as vítimas mencionadas continuem crescendo num ambiente avesso ao desenvolvimento sadio, vítimas dos tipos de violência estudados, é totalmente inaceitável, e o conhecimento empírico mostra que isso contribui, em regra, para que se tornem adultos violentos e até mesmo omissos para com seus próprios filhos. Antes de se abordar, finalmente, a questão da razoabilidade da destituição do poder familiar em razão de violência doméstica contra filhos menores, é de se acrescentar, apenas de passagem, por escapar ao foco deste estudo, que o procedimento para a suspensão ou perda do poder familiar encontra-se previsto nos arts. 155 a 163 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

30 31

CARVALHO, 2009, p. 385. Ibid., p. 385.

55 4.3 DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA RAZOÁVEL EM DECORRÊNCIA DA VIOLÊNCIA SOFRIDA PELOS FILHOS MENORES

No decorrer deste trabalho, apurou-se que o poder familiar passou por várias transformações desde o tempo em que era regido pela autoridade patriarcal, e que com a evolução da família, esse instituto também se modificou, passando a ser um poder-dever de proteção aos filhos. O auge desse processo foi o advento da Constituição Federal de 1988, que contemplou a isonomia entre homem e mulher, entre pai e mãe, que na família exercem este dever de proteção e equilíbrio em relação aos filhos e seus interesses, sendo a isonomia quanto à titularidade e ao exercício do poder familiar. Nessa linha, o art. 226, § 5º, da CF/88, prescreve claramente: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e a mulher”32. Reforçando essa isonomia em relação ao poder familiar, dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente: O pátrio poder será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária 33 competente para a solução da divergência .

Essa evolução se confirmou no ano de dois mil e dois, com o atual Código Civil, onde o antigo termo pátrio poder passou a poder familiar, com vistas a amenizar a terminologia, que sugeria o poder e autoridade do pai sobre os filhos. Nesse âmbito, vale lembrar, define-se poder familiar como o conjunto de direitos e deveres em relação aos filhos, exercido em condições de igualdade pelos pais, visando o interesse e a proteção dos filhos. O Estatuto da Criança e do Adolescente veio para reger e auxiliar as previsões constitucionais no que tangem aos direitos e deveres da criança e do adolescente, considerando-os sujeitos de direitos que devem ter proteção integral.

32

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em: 30 maio 2011. 33 Id., Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit.

56 Além disso, o ECA aponta direitos fundamentais advindos de princípios que norteiam o poder familiar. Tais princípios são muito importantes no que dizem respeito, em última análise, à própria manutenção da família, como é o caso do princípio da afetividade, que faz a ligação entre pais e filhos através do amor, afeto, garantindo, assim, a sadia relação familiar. O principio da dignidade humana, na mesma esteira, norteia a idéia de base familiar, sendo previsto inclusive no art. 227 da CF: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, 34 exploração, violência, crueldade e opressão .

Vale mencionar também que o art. 229 da Carta Magna prevê que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, ressaltada aí a importância da responsabilidade de ambos os pais no que concerne à proteção integral dos filhos, além do seu sustento até que completem a maioridade35. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente expressa, em seu art. 21, que o poder familiar será exercido, em igualdade de condições, pelo pai e pela mãe, na forma do que dispuser a legislação civil, assegurado a qualquer deles o direito de, em caso de discordância, recorrer à autoridade judiciária competente para a solução da divergência. E ainda, a respeito do dever de sustento, dispõe o art. 22 do ECA: “Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais”36. Em casos de divergência entre os pais, ou ainda estando estes separados, a justiça, quando invocada, apreciará o caso, e de acordo com os direitos e deveres referentes ao poder familiar, resolverá a lide de forma a trazer menos prejuízos à família, principalmente ao filho. Nunca é o bastante reforçar que a violência causada dos pais contra os filhos é injustificável, que além de ser, na prática, um ato desumano com pessoas naturalmente 34

vulneráveis

(pela

peculiaridade

de

serem

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit. 36 Id., Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 35

pessoas

em

57 desenvolvimento), ainda fere amplamente o nosso ordenamento jurídico e os princípios que norteiam a matéria do poder familiar. Quando um pai agride física e imoderadamente seu filho para corrigi-lo, em vez de ensinar, ele está fazendo com que a criança apenas tenha medo de fazer algo para não ser castigada, enquanto poderia conversar e ensinar o que fosse preciso. Quanto à violência sexual, pode-se afirmar que se trata de uma das piores violências, pois ela visa a obtenção de prazer usando a própria criança ou adolescente, podendo traumatizar a vítima para o resto da vida. No caso da negligência, esta traduz, em uma palavra, o abandono em todos os sentidos, que, como visto, está diretamente ligado à violação dos princípios da dignidade humana e da afetividade. Assim é, porque se a criança cresce sem amor, sem afeto, sem disciplina, sem higiene, sem alimentação adequada, ela cresce muito prejudicada em seu desenvolvimento. Por fim, pode-se afirmar que a violência psicológica, por sua vez, está ligada a todos os tipos de violência, pois é aquela interna, que é sentida mas não é vista. Em razão de violência psicológica, é sabido que a vítima, ainda mais se for criança ou adolescente, tende a desenvolver uma série de problemas, dos quais a depressão, a baixa auto-estima e o estresse são apenas alguns exemplos. Recordadas as formas de violência dos pais contra os filhos, estudadas no segundo capítulo deste trabalho, pode-se constatar que para que os direitos da criança e do adolescente sejam respeitados é que o Estado fiscaliza, e, desde que seja realmente necessário no caso concreto (em observância ao princípio da não intervenção, também já estudado, no primeiro capítulo), intervém nas relações familiares, podendo, como já visto, suspender o poder familiar, em casos menos graves de violência contra a criança, como prevê o art. 1.637 do Código Civil: Art. 1637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até 37 suspendendo o poder familiar, quando convenha .

37

BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, loc. cit.

58 Já no caso de ocorrerem abusos extremos, afigura-se como medida suficiente para proteger, garantir, pôr a salvo a integridade física e psicológica da criança ou adolescente, a ruptura dos vínculos biológicos, através da perda do poder familiar, em situações onde não há a mínima condição de a criança ou adolescente crescer e se desenvolver com dignidade. Ainda que na prática não seja a situação ideal, essa ruptura pode representar, para tais vítimas, uma nova chance, seja em instituições, com tutores ou até mesmo através da adoção. Vale reforçar o que prevê o ECA em relação aos direitos dos filhos: Art. 7º A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas 38 de existência . [...] Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na 39 Constituição e nas leis .

Como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais, a criança e o adolescente devem ser respeitados e protegidos por seus pais, recebendo adequadas condições de saúde, liberdade e dignidade, para o seu pleno desenvolvimento, e de forma a serem observados os princípios e as garantias que lhes asseguram o ECA e a Carta Magna. A propósito: Art. 17. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos 40 espaços e objetos pessoais .

Deste artigo, é importante que se frise a relevância do respeito à integridade, sendo imprescindível que a criança não seja acometida de violência física, psicológica e moral, que certamente agregariam um aspecto conturbado a seu desenvolvimento. Assim é que se pode ver na suspensão e mesmo na perda do poder familiar, quando é o caso, formas adequadas de prevenção e proteção, como medidas razoáveis na busca da garantia de uma criação no mínimo digna para a

38

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 40 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit. 39

59 criança e o adolescente. Vale citar uma vez mais o ECA: “Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”41. Cabe aos pais, o que, aliás, não é nenhuma novidade, velar pela dignidade dos filhos, mantendo-os sob cuidados contra todo tipo de violência e situação de risco. Como reforço, é de se dizer que o ato de violar a integridade dos filhos, seja física ou psicológica, pode acarretar a suspensão do poder familiar. No caso concreto, em face dos prejuízos tanto físicos como emocionais gerados na criança e no adolescente em decorrência das citadas agressões, é possível que se constate a possibilidade de uma sanção mais grave prevista no ordenamento jurídico, qual seja, a perda do poder familiar, de forma a se tentar coibir e, pode-se dizer, remediar a situação de violência reiterada contra o filho. Assim, repetindo-se várias vezes a suspensão do poder familiar, ou os motivos que ensejariam essa suspensão, sem, contudo, que se reverta a situação justificadora das suspensões, em nome do bem-estar e do melhor interesse da criança ou adolescente, ante a necessidade de um convívio familiar adequado para a boa criação dos filhos, poderá ocorrer a perda do poder familiar por decisão judicial. Defendendo a proteção plena da criança e do adolescente, esta espécie de desvinculação ou afastamento é justificada nas hipóteses em que há mais prejuízos do que benefícios para o seu desenvolvimento. Portanto, pode-se afirmar que a destituição do poder familiar em casos extremos, onde a violência, de todas as formas possíveis, prejudica o desenvolvimento da criança e do adolescente em sua própria família, dentro de sua própria casa, é medida razoável para que se assegure a tais vítimas uma segunda chance de crescer com amor e dignidade. Neste sentido, em harmonia com o espírito da legislação abordada ao longo deste estudo (sobretudo os princípios fundamentais que norteiam o instituto do poder familiar, essencial para o equilíbrio da família), entende-se que quando os pais são destituídos do poder familiar em função de abuso de autoridade e/ou violência injustificada/imoderada, a medida é razoável, tendo em vista tudo que se explanou até aqui acerca das consequências advindas da violência em questão. Por derradeiro, a Carta Magna prevê, em seu art. 226, § 8º:

41

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990, loc. cit.

60 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de 42 suas relações .

Assim, certo está que o Estado deve assegurar, neste caso, aos filhos, mecanismos eficientes que coíbam a violência no âmbito familiar. Não obstante, portanto, o princípio da não intervenção, cabe ao Estado, quando houver abusos por parte dos pais, intervir de modo a cessar a situação de desrespeito/violência experimentada pelas vítimas crianças e adolescentes, ainda que para isso seja preciso até mesmo a perda do poder familiar. Daí poderá vislumbrar-se, espera-se, a chance de um futuro digno e com amor para as vítimas crianças e adolescentes.

42

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, loc. cit.

61 5 CONCLUSÃO

Durante o estudo do tema do poder familiar, constatou-se a constante transformação por que ele passou desde os primórdios, quando o pai tinha o poder absoluto e autoritário, até os dias atuais, onde ele tem caráter protetivo em relação aos filhos e igualitário quanto aos pais entre si, contando-se, hoje, com a intervenção do Estado, no caso desta se fazer estritamente necessária. Com as mudanças que foram ocorrendo nesse instituto, juntamente com as da própria família, aos poucos foram surgindo leis referentes à proteção da criança, que passou de “coisa” jurídica a sujeito de direito. Isso porque, para se desenvolver e poder se tornar um cidadão, a criança ou adolescente precisa de proteção, cuidados adequados em relação à educação, saúde, higiene, alimentação e moradia, e principalmente fatores que afetam a questão psíquica, como amor e afetividade. Para a criança poder se desenvolver de forma adequada, o instituto do poder familiar teve que se adaptar às mudanças ocorridas na família, onde uma das principais evoluções foi a isonomia dos pais em relação aos cuidados dos filhos, pois o poder patriarcal deu lugar à igualdade, ao equilíbrio dos poderes familiares, afastando aquele caráter autoritário do pai. Essa isonomia foi consagrada com a Constituição de 1988, em seu art. 226, § 5º, que veio para fortalecer a igualdade de direitos entre homem e mulher, bem como entre os pais em relação um ao outro, para que possam proteger e direcionar os filhos e os interesses destes: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”1. Apesar dessa evolução, o instituto do poder familiar esteve sempre à mercê da violência dos pais contra os filhos, podendo esta ser física, sexual, psicológica ou decorrente de negligência. Pode-se identificar uma série de fatores que desencadearam essa violência, tais como o método corretivo de educação, o autoritarismo, e de certa forma como consequência de fatores como desigualdades sociais, má distribuição

1

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: . Acesso em 30 maio 2011.

62 de renda, onde o mais fraco geralmente é oprimido pelo mais forte, sem falar no abuso de álcool e drogas ilícitas por parte de uma boa parcela de pais. Assim, tendo sido necessário criar uma lei de proteção capaz inclusive de coibir os atos de crueldade contra crianças e adolescentes, editou-se o Estatuto da Criança e do Adolescente, e bem depois o atual Código Civil. Tais ordenamentos, aliados à Carta Magna, constituem um meio de coibir a violência contra a criança e o adolescente, prevendo inclusive a suspensão e a perda do poder familiar como consequência do não cumprimento dos deveres a ele inerentes. Nas famílias onde crianças e adolescentes sofrem violência, geralmente essas vítimas são vistas como seres inferiores, limitados, que devem ser punidos pelos erros cometidos (como forma de correção), ou simplesmente por serem os mais fracos, acabam sofrendo pelas frustrações de seus pais, seja pela pobreza, pelo uso de drogas e bebidas ou por vários outros motivos. Vale lembrar que muitos pais ainda não entendem nem ao menos que o poder familiar deve ser exercido em igualdade pelo pai e pela mãe, mas esse é um quadro que aos poucos vai se modificando, cabendo ao Estado fiscalizar e adotar as medidas pertinentes nos casos de violência praticada contra os filhos. No que se refere aos princípios, especialmente os da afetividade e da dignidade humana, pode-se afirmar que aos pais não cabe apenas proporcionar os meios materiais para o desenvolvimento da criança e do adolescente: é preciso que a relação ocorra de forma afetiva, amorosa e atenciosa, pois o afeto é o principal vínculo entre pais e filhos, pode-se dizer, como já abordado, que até mais importante que o vínculo biológico. O Estado, de forma cautelosa e fazendo uso do seu próprio aparato, deve proporcionar condições de a família, como base da sociedade, se manter bem estruturada. Em particular quanto à situação de violência doméstica, deve preparar bem os profissionais que orientarão e intervirão junto aos pais e apoiarão as crianças, para os prejuízos aos interesses destas, se não excluídos, sejam ao menos minimizados. Porém, no caso de se manter a situação de abuso e violência, caberá ao Estado, zelando pela segurança, integridade e bem-estar da criança e do adolescente, suspender e/ou até mesmo destituir os pais do poder familiar. Nesse caso, e desde que observados todos os ditames procedimentais legais, entende-se a destituição do poder familiar como medida que se mostra justa e razoável em

63 razão de violência praticada contra filhos menores, com a qual se busca evitar prejuízos maiores às vítimas. Medida esta, inclusive, em harmonia com o espírito da lei, seja o Código Civil, seja o Estatuto da Criança e do Adolescente, seja, por fim, a nossa Carta Magna, em qualquer caso se levando em conta o melhor interesse da criança e do adolescente.

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