SVEVA CASATI MODIGNANI

UM DIA NAQUELE INVERNO Tradução de Regina Valente

Oo

VILLANOVA Hoje

1

Léonie abrandou a corrida e estacou perante a perspetiva da villa que surgia ao fundo da alameda, imponente e silenciosa, envolvida numa neblina flutuante. Vinha ofegante e o ar frio das primeiras horas da manhã transformava o seu hálito em pequenos sopros de vapor. Inclinou-se para a frente e ficou naquela posição para recuperar o fôlego. Havia muitos anos, desde que tinha dado à luz o quinto filho, que acordava todas as manhãs às sete horas, vestia o fato de treino e ia correr no parque, durante meia hora, com qualquer tempo e em todas as estações do ano. Quando a respiração retomou o ritmo normal, endireitou-se e secou o suor que lhe molhava o rosto com a toalha que trazia consigo. Depois, dirigiu-se em passo cadenciado para o majestoso edifício de finais do século XIX. A villa, no centro de um jardim circundado por um parque de dois hectares, parecia um gigante domesticado a repousar com elegância. Os primeiros raios de sol dispersavam a neblina e, ao aproximar-se, Léonie viu os arcos do pórtico que corriam ao longo da fachada cor de palha, depois distinguiu os canteiros bordejados de urze violácea, os arbustos de camélias já em botão, as bagas incandescentes do azevinho. A visão, no seu conjunto, transmitia uma sensação de serenidade e de paz, mas Léonie sabia que aquela residência encobria inquietudes, perturbações e segredos.

11

Ela própria guardava ciosamente para si os seus segredos, pensou, enquanto transpunha a entrada da casa. Desceu à cave onde, num espaço imenso, iluminado por uma luz acolhedora, ficava a piscina. Despiu-se, ficando apenas com as cuecas, e atirou-se à água. Fez três piscinas e, quando saiu, tinha à sua espera a fisioterapeuta, que lhe entregou um roupão, silenciosa e eficiente como sempre. Léonie seguiu-a até à cabina forrada a madeira de bétula, estendeu-se em cima da pequena cama aquecida e abandonou-se àquelas mãos sapientes que, com hábeis pressões dos dedos, lhe derretiam a tensão dos músculos. A terapeuta fez-lhe uma massagem tonificante, espalhando-lhe sobre o corpo óleos essenciais perfumados. Com quarenta e oito anos e depois de cinco gravidezes, Léonie tinha ainda um corpo quase perfeito. A fisioterapeuta asseverava que «a senhora» estaria perfeita mesmo sem aqueles cuidados diários, mas «a senhora» deixava-a falar e persistia nos seus hábitos. Terminada a massagem, Léonie vestiu o macio roupão de chenille e dirigiu-se ao elevador para subir até aos seus aposentos. Quando a porta de correr se abriu, surgiu o sogro, envolvido num roupão negro. – Bonjour, pai – cumprimentou-o. – Bom-dia, pequena feiticeira – respondeu o cavaliere Renzo Cantoni, enquanto se dirigia para a piscina. Léonie sorriu. Aquela troca de cumprimentos repetia-se todos os dias, sempre igual. O elevador tinha sido instalado, anos atrás, para facilitar as deslocações de Celina, a sogra, que sofria de uma obesidade devastadora e morrera há bastante tempo já. Agora toda a gente o utilizava. Nos seus aposentos, Léonie vestiu-se e, às oito e meia em ponto, entrou no jardim de inverno onde estava a ser servido o pequeno-almoço. Guido Cantoni, o marido, encontrava-se diante do aparador de madeira lacada, onde estava exposto um rico buffet, a servir-se

12

de uma fatia de tarte de maçã acabada de sair do forno e que difundia um aroma delicioso a manteiga e canela. Naquela casa cozinhavam-se desde sempre iguarias deliciosas mas muito ricas em gorduras, que já tinham contribuído para causar dois enfartes ao patriarca e um ataque fatal à consorte. Só Léonie as evitava, para seguir uma dieta mais leve e mais saudável. O marido viu-a e perguntou: – Corto também uma fatia para ti? – Não, obrigada – respondeu Léonie. Aproximou-se dele e deu-lhe um beijo na face pálida, encheu uma taça com iogurte feito em casa e juntou-lhe uma colher de salada de fruta fresca. Depois sentou-se à mesa, em frente daquele cinquentão de olhar melancólico. Era o dia vinte e dois de dezembro e através dos vidros perfilava-se, para lá do jardim, o parque de azinheiras e carvalhos tendo como fundo um céu onde se adensavam grandes nuvens brancas. Um criado idoso, de fraque vermelho escuro, entrou no aposento transportando os jarros do leite e do café, que pousou em cima da mesa. – Bom-dia, senhora. Bom-dia, senhor – disse num tom baixo. Guido retribuiu o cumprimento e Léonie sorriu-lhe. Tinha muita afeição pelo velho Nesto, que servia aquela família há muitos anos. Quando ela entrou pela primeira vez naquela grande villa, ele recebera-a com uma atitude quase paternal, como que para a encorajar a não se deixar intimidar pelo luxo daquele local. Assim que o empregado se eclipsou, Guido disse à mulher: – Estás muito elegante, esta manhã. Ela vestia uma velha camisola preta de gola alta e umas calças de flanela cinzenta. – Obrigada, querido – respondeu. – E estás particularmente luminosa – prosseguiu ele, com uma nota de desapontamento na voz. Léonie olhou para ele, desorientada.

13

Naquele jardim de inverno de atmosfera aconchegante e temperatura agradável, as palavras de Guido Cantoni ressoaram quase como uma acusação. No rosto do homem desenhou-se a sombra de um sorriso amargo, ao mesmo tempo que ele acrescentava: – Diz-se que as mulheres reflorescem na primavera. Tu, pelo contrário, ficas mais bonita quando o Natal se aproxima. Tem sido assim desde sempre. O que quereria dar-lhe a entender aquele marido habitualmente tão parco em palavras, que apenas quando escrevia se exprimia com uma linguagem rica e cintilante? – Sentes-te bem? – perguntou-lhe. Teria Guido descoberto alguma coisa? Impossível! Provavelmente, como fazia às vezes, estava a ensaiar falas de um diálogo para algum novo guião. Guido deixara de trabalhar na empresa familiar antes de se casarem e, à produção de torneiras, tinha preferido a profissão de escritor. Se a família devia a sua opulência à Fábrica de Torneiras Cantoni, Guido vivia do rendimento que lhe garantia a sua atividade de guionista. – Eu sinto. E tu? – perguntou por sua vez, num tom quase agressivo. Naquele momento, Renzo Cantoni fez a sua entrada envolvido no perfume dos óleos essenciais com que a fisioterapeuta o massajara. Vestia um elegante roupão azul-escuro e chinelos de veludo da mesma cor. Guido foi ao encontro dele e afastou a cadeira estofada onde o pai se instalou, ostentando a sua habitual expressão amuada: de manhã estava sempre de mau humor. Agarrou na sineta de prata pousada ao lado do seu prato e fê-la tilintar até que Nesto apareceu. – Estou muito bem, querido – prosseguiu Léonie, retomando o diálogo com o marido, e acrescentou: – De resto, tu já o disseste: próximo do Natal refloresço como se fosse primavera. – É esse o ponto – disse Guido entre dentes, ao mesmo tempo que se levantava para se dirigir ao aparador e se servir.

14

2

Léonie corou como se tivesse sentido uma onda de calor e não replicou. Nesto chegou trazendo numa mão uma colher de prata, que continha uma gema de ovo afogada em sumo de limão, e na outra um pratinho para recolher eventuais pingas. Renzo Cantoni devorou o ovo com evidente satisfação e depois dirigiu à nora um sorriso malicioso. – Este é o meu elixir da longa vida, para o caso de alguém aspirar à minha poltrona de presidente da fábrica – declarou. Léonie sorriu e não respondeu à provocação. Tinha-se tornado oficialmente vice-presidente da empresa familiar havia quatro anos, quando o sogro sofrera um segundo enfarte e os médicos sentenciaram que nunca mais estaria em condições de conduzir os destinos da empresa. Levara vários meses a restabelecer-se e, na sua ausência, Léonie dirigira a fábrica com atitude firme e grande profissionalismo. Renzo Cantoni tinha reconhecido o seu mérito nomeando-a vice-presidente e esclarecendo: – Mas lembra-te de que, enquanto eu estiver capaz de entender e de querer, o patrão sou eu. Pronunciara aquelas palavras com um tom altivo, mas na realidade tinha dado um suspiro de alívio. Finalmente, tinha um sucessor digno de tomar o seu lugar. Nas mãos de Léonie, a empresa

15

continuaria a prosperar. Aquele homem brusco e cortante nutria pela nora uma estima e uma ternura que não revelava, receando parecer sentimental. – Quer vir comigo para a fábrica agora de manhã, pai? – perguntou Léonie. – Para quê? De qualquer maneira já vou ter de lá ir para os votos natalícios. E depois tu vais logo pôr-te a andar. Ou não? – replicou com o habitual sorriso malicioso. Era um facto mais que conhecido em casa e na empresa: no dia vinte e dois de dezembro, dia do solstício de inverno, Léonie metia-se no carro e ia-se embora. Regressava a casa de tarde. Ninguém sabia onde passava o dia. Toda a gente, incluindo o marido, aceitara aquela extravagância sem indagar, nem fazer comentários. Mas naquela manhã, pela primeira vez, Guido tinha atirado uma pedra. Nesto, impassível, serviu o pequeno-almoço ao patrão e colocou-se atrás dele, pronto para intervir a um gesto seu. – A Giuditta chega logo à tarde. Quem vai buscá-la ao aeroporto? – perguntou Guido à mulher. Era a filha mais nova. Estudava num colégio suíço muito seleto e, tal como os outros filhos dispersos pelo mundo, ia passar as festas com os pais. – Eu não, já sabes – replicou Léonie. – A questão é que eu hoje tenho de me encontrar com um realizador… mas se não podes mesmo… Léonie pousou o guardanapo na mesa, fitou o marido nos olhos e com uma extrema calma perguntou: – O que é que estás a tentar dizer-me, Guido? Ele pareceu retirar-se para dentro da casca, como uma tartaruga. Depois sorriu, pousou uma mão na da mulher e respondeu: – Nada, querida. Está tudo bem. – Mas ela não devia chegar no dia vinte e quatro, como os outros? – perguntou Léonie. – Desde quando é que os filhos fazem aquilo que esperamos deles? – resmungou o velho, ao mesmo tempo que lançava a Guido um olhar carregado de alusões.

16

Ao fim de trinta anos, ainda não tinha conseguido perdoar ao filho único ter deixado a empresa familiar. E acrescentou: – Na véspera de Natal vai levantar-se a cortina sobre o cenário habitual. Eu tenciono passar o serão no clube. Vamos ser poucos, mas bons. Referia-se ao Clubino, um conhecido círculo de Milão do qual era conselheiro. – Já sabemos, pai. Dizes sempre isso e depois acabas por ficar em casa, feliz por te deixares tiranizar pelos teus netos – replicou Guido. Léonie levantou-se da mesa, aproximou-se do sogro e beijou-o na face. – Um bom dia, pai. E cuide-se – disse, com um sorriso radioso. – Tu também, pequena feiticeira – murmurou o velho, enternecido. No dia em que ele regressara à fábrica depois do segundo enfarte, Léonie organizara uma pequena festa: os operários ofereceram-lhe um ramo de flores e brindaram ao seu retorno. Ele fizera um discurso combinado com a nora. Poucas palavras para dizer que Léonie Cantoni tinha assumido uma tarefa nada leve enquanto ele estava doente: conduzir a empresa sozinha e num período em que se manifestavam os primeiros sinais de uma recessão. Depois nomeara-a vice-presidente da Fábrica de Torneiras Cantoni. Uma vez que Léonie conquistara a estima e o respeito de todos, o anúncio do patrão fora aplaudido durante muito tempo. De facto, aquela passagem de testemunho já se tinha consumado, porque Léonie tomara as rédeas da empresa desde os tempos do primeiro enfarte do sogro e promovera iniciativas frutuosas na programação do trabalho. Depois do aplauso, o cavaliere retomara a palavra e, voltado para a nora, perguntara-lhe: – Era isto que querias? Nada intimidada, Léonie replicara: – A coisa mais bonita da nossa relação, pai, é que nós os dois queremos as mesmas coisas. Mas o senhor é o presidente e eu sou apenas a sua vice. Tinha havido uma nova salva de palmas e surgira também um ramo de flores para «a senhora».

UDNI_02

17

Agora o velho Cantoni sussurrou-lhe ao ouvido: – Será que antes de eu morrer vou conseguir fazer-te dizer onde vais, todos os anos, no dia vinte e dois de dezembro? – Se tiver muita paciência, porque ainda vai demorar muitos anos até chegar esse dia – disse ela, divertida. – Já acabaram de trocar os vossos segredos? – interrompeu Guido. – Não inventes um ciúme que não tem nada a ver contigo – respondeu a mulher com um sorriso. Aproximou-se dele e deu-lhe um beijo repenicado na face. Depois disse: – Vemo-nos logo à noite. E peçam à Giuditta para explicar por que razão se apresentou com dois dias de antecedência. Quando chegou ao vestíbulo, veio ao encontro dela uma empregada que lhe entregou um casacão acolchoado, as luvas e a pasta. Léonie agradeceu e saiu. Alguém providenciara para que o carro se encontrasse à porta de casa. Entrou para o lugar do condutor, apertou o cinto de segurança e arrancou. Atravessou o parque, percorrendo a longa alameda até chegar ao imponente portão de ferro forjado que se abriu automaticamente. Nada nem ninguém, nem sequer os filhos, poderiam tirar-lhe aquele dia que, desde que se tinha casado, lhe pertencia só a ela.

18