UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO EACH – ESCOLA DE ARTES, CIÊNCIAS E HUMANIDADES PROGRAMA DE MESTRADO ACADÊMICO EM ESTUDOS CULTURAIS

ROSMARI PEREIRA DE OLIVEIRA

ENTRE A FRALDA E A LOUSA: UM ESTUDO SOBRE IDENTIDADES DOCENTES EM BERÇÁRIOS

SÃO PAULO 2014

ROSMARI PEREIRA DE OLIVEIRA

ENTRE A FRALDA E A LOUSA: UM ESTUDO SOBRE IDENTIDADES DOCENTES EM BERÇÁRIOS

Dissertação apresentada à Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais. Versão corrigida contendo as alterações sugeridas pela comissão julgadora em 04 de dezembro de 2013. A versão original encontra-se em acervo reservado na Biblioteca da EACH/USP e na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP (BDTD), de acordo com a Resolução CoPGr 6018, de 13 de outubro de 2011.

Área de Concentração: Estudos Culturais Orientadora: Profa. Dra. Luciana Maria Viviani

SÃO PAULO 2014

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

CATALOGAÇÃO-NA-PUBLICAÇÃO Biblioteca Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo

Oliveira, Rosmari Pereira de Entre a fralda e a lousa : um estudo sobre identidades docentes em berçários / Rosmari Pereira de Oliveira ; orientadora, Luciana Maria Viviani. – São Paulo, 2014. 172 f. : il. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais, Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, em 2013. Versão corrigida. 1. Educação infantil. 2. Identidade profissional. 3. Bebês. 4. Professores de educação infantil – Pesquisa. 5. Estudos culturais. I. Viviani, Luciana Maria, orient. II. Título. CDD 22.ed. – 372.21

OLIVEIRA, Rosmari Pereira de Entre a fralda e a lousa: um estudo sobre identidades docentes em berçários

Dissertação apresentada à Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais (PEC).

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr.:_____________________________ Instituição: _____________________________ Julgamento:__________________________ Assinatura: ______________________________

Prof. Dr.:_____________________________ Instituição: _____________________________ Julgamento:__________________________ Assinatura: ______________________________

Prof. Dr.:_____________________________ Instituição: _____________________________ Julgamento:__________________________ Assinatura: ______________________________

Dedico este trabalho com muito amor aos meus filhos Kim Pereira e Matheo Angelo, minhas eternas fontes de carinho, inspiração e aprendizagens.

AGRADECIMENTOS Às professoras e ao professor de educação infantil que participaram desta pesquisa e compartilharam, com muita generosidade, suas experiências, memórias, sonhos, angústias e expectativas de sua profissão. À Secretaria Municipal de Educação da cidade de São Paulo, por me permitir realizar este estudo em uma de suas unidades. À minha mãe, Madalena Pereira de Oliveira, pelos “cuidados” que dedicou a mim durante toda a sua vida e aos meus filhos nos momentos em que elaborava este trabalho, e ao meu pai Waldemar Lisbôa de Oliveira (in memoriam), por deixar como herança o desejo de “ir além”. Às minhas queridas amigas Jane Abreu, Beatriz Milke, Celina Sales, Célia Assumpção e Lurdes Akiko, pelos ombros, mãos, carinho e cumplicidade em todos os momentos de conquistas e de aflições. Ao meu querido amigo André Luiz Mendes da Costa, por ter sempre acreditado na viabilidade deste projeto e permanecer ao meu lado, até nos momentos em que eu mesma duvidava. À minha querida amiga, educadora e aluna Profa. Ana Lúcia de Holanda Gambôa (in memoriam), por tudo que aprendi com o seu compromisso com a infância e pela sua presença inspiradora e acolhedora nas experiências que compartilhamos na educação infantil. A todos os professores do Programa de Mestrado Acadêmico em Estudos Culturais da EACH, por me introduzirem nesse campo de conhecimento tão fecundo, em especial ao Prof. Dr. Carlos Henrique Barbosa Gonçalves, à Profa. Dra. Ana Laura Godinho Lima e ao Prof. Dr. Rogério Monteiro de Siqueira, por suas contribuições nas discussões iniciais desta pesquisa e à Profa. Dra. Mônica Pinazza (FEUSP) por suas valiosas contribuições em minha qualificação. À minha querida amiga Profa. Dra. Elizabete Franco Cruz do Programa de Mestrado em Mudança Social e Participação Política da EACH, por tudo o que trocamos nesses quase 25 anos de amizade e, recentemente, também nos bancos da universidade. E, finalmente, à Profa. Dra. Luciana Maria Viviani, por ter apostado neste projeto, suportando a minha ansiedade e avidez em trazer para a discussão acadêmica a minha experiência profissional; por todo o respeito, dedicação, amizade e “cuidado” com que me orientou na elaboração deste trabalho e por tudo que pude aprender durante a nossa convivência nesses últimos dois anos.

Era rosa, era malva, era leite, As amigas de minha mãe vaticinando: Vai ser muito feliz, vai ser formosa. Eram rendas, pano branco, estrela dalva, Benza-te a cruz, no ouvido, na testa. Sobre tua boca e teus olhos O nome da Trindade te proteja. Em ponto de marca no vestidinho: navios. Todos à vela. A viagem que eu faria Em roda de mim Adélia Prado

RESUMO OLIVEIRA, R. P. Entre a fralda e a lousa: um estudo sobre identidades docentes em berçários. 2014. 172 f. Dissertação (Mestrado) – Escola de Artes, Ciências e Humanidades, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Neste trabalho, apresento uma pesquisa sobre identidades docentes em berçários desenvolvida em um Centro de Educação Infantil (CEI) na cidade de São Paulo. Inspirada em abordagens biográficas e num enfoque qualitativo, realizei um estudo empírico por meio de entrevistas, do qual participaram sete professoras e um professor de educação infantil, que atuavam com crianças de 0 a 2 anos de idade. Com base no histórico da instituição nas últimas décadas, destacando-se a passagem das creches (hoje CEIs) do âmbito de órgãos assistenciais para a Secretaria Municipal de Educação em 2001, e a partir da análise das narrativas das docentes e do docente, procurei identificar aspectos relevantes para a compreensão do processo de constituição de suas identidades profissionais diante das demandas do trabalho específico com bebês no contexto de uma rede pública de ensino. Buscando aproximar a abordagem dos estudos culturais ao campo da educação infantil, a investigação teve como pressupostos teóricos algumas concepções de Stuart Hall, Nestor Canclini, Michel Foucault, entre outros, para tecer relações entre identidade, cultura, gênero e poder, em um enfoque interdisciplinar. Os dados obtidos apontaram a existência de especificidades na prática docente em berçários, sobretudo as atividades envolvendo os cuidados dos bebês, que foram naturalizados como atributos femininos e que, hoje, não são valorizados em contextos escolares. Tendo em vista a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual que permeia a carreira do magistério e a sociedade de um modo geral, verifiquei que esse mesmo antagonismo se expressava nos embates sobre o enunciado “cuidar e educar”, um dos atuais paradigmas da educação infantil, e também nas relações de poder no âmbito da instituição. Assim, para justificar a sua permanência como docentes em berçários ou valorizar a sua profissão, os sujeitos encontravam diferentes estratégias identitárias, buscando ajustar a sua atividade concreta com os bebês às suas representações de um modelo ideal de docência. As análises indicaram também que o atendimento de bebês demandava a articulação de múltiplos aspectos (saberes passados de geração em geração, crenças, conhecimentos científicos, diretrizes pedagógicas etc.), evidenciando que as práticas nos berçários se desenvolviam a partir de um processo de hibridação de culturas, embora os discursos dos sujeitos assumissem formas binárias ao procurar ajustar as suas experiências ao enunciado “cuidar e educar”, numa oposição em que o cuidar associava-se a práticas do passado e o educar ao novo ideal de seu papel como docentes. Desse modo, a aproximação entre os estudos culturais e o campo da educação infantil contribuiu para que se evidenciassem os entre-lugares em que tais identidades docentes se constituíam, mostrando-se como um caminho a ser percorrido em futuras pesquisas sobre esse campo de atuação profissional. Palavras-chave: Identidades docentes. Bebês. Educação infantil. Culturas institucionais. Estudos culturais.

ABSTRACT OLIVEIRA, R. P. Between diapers and the blackboard: a study about teachers' identities in nurseries. 2014. 172 p. Dissertation (Master´s Degree) – Arts, Science and Humanity School, University of São Paulo, São Paulo, 2013. In this essay I present a research about teachers’ identities in nurseries, developed in a educational center for children (CEI) in the city of São Paulo. Inspired by biographical approaches and a qualitative focus, I ran an empirical study through interviews with seven female teachers and one male teacher of early childhood education, all of them working with children from zero to two years of age. On the basis of the history of the institution in the last decades, highlighting the passage of daycare centers (today called CEIs) the scope of charitable bodies to the Municipal Secretary of Education in 2001, and from the analysis of the narratives from the teachers, I have tried to identify aspects which were relevant to the understanding of the constitution process of their professional identities in front of the demands of the specific work with babies in the context of a public school network. Seeking to bring the approach of cultural studies to the field of early childhood education, the research had theoretical assumptions based on some concepts of Stuart Hall, Nestor Canclini, Michel Foucault, and others, to weave relationships between identity, culture, gender and power, through an interdisciplinary approach. The data obtained indicated the existence of specifications on teaching practice, inside nurseries. Especially those activities involving the handle of babies, which naturally appears as female attributes and that, today, are not valued in school contexts. Having in sight the segregation between intellectual work and manual labor that permeates the career of the magisterial, and the society in general, I have noticed that this same antagonism is expressed in debates on "caring and educating", one of the current paradigms of child education, and also in the relations of power within the institution. Thus, to justify their permanence as teachers in nurseries or revalue their profession, the subjects found different identities strategies, trying to adjust their concrete dealing with the babies to the speech about an ideal model of educating. The analysis also indicated that the care of babies demanded the linkage of multiple aspects (knowledge passed from generation to generation, beliefs, scientific knowledge, pedagogical guidelines etc) evidencing that the practices in nurseries developed from a process of hybridization of cultures, although the subjects' discourse changed to binary forms, when adjusting their experiences to the enunciated “caring and educating”, in a turning table game, where caring was associated to practices of the past and educating was the new ideal mold of their role as teachers. In This way, the closeness between the cultural studies and the field of early childhood education, has contributed to highlight the between-places in which such teachers' identities were constituted, showing that is a path to be taken in future research on this field of professional practice. Keywords: Teachers’ identities. Babies. Early childhood education. Institutional cultures. Cultural studies.

LISTA DE SIGLAS ADI

Auxiliar de Desenvolvimento Infantil

B1

Berçário 1 (turmas de crianças de 0 a 1 ano)

B2

Berçário 2 (turmas de crianças de 1 a 2 anos)

CEFAM

Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério

CEI

Centro de Educação Infantil

CME

Conselho Municipal de Educação

DRE

Diretoria Regional de Educação

EaD

Educação a Distância

ECA

Estatuto da Criança e do Adolescente

EMEF

Escola Municipal de Ensino Fundamental

EMEI

Escola Municipal de Educação Infantil

FABES

Secretaria da Família e do Bem-Estar Social

IPAI

Instituto de Proteção e Amparo à Infância

LDB

Lei de Diretrizes e Bases da Educação

MEC

Ministério da Educação

MOVA

Movimento de Alfabetização de Adultos

OSEM

Núcleo de Orientação Socioeducativa do Menor

PDI

Professor de Desenvolvimento Infantil

PEI

Professor de Educação Infantil

PMSP

Prefeitura do Município de São Paulo

SAS

Secretaria Municipal de Assistência Social

SEBES

Secretaria do Bem-Estar Social

SME

Secretaria Municipal de Educação

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................................... 12 1.1 A HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL .................................. 13 1.2 PROBLEMATIZANDO A QUESTÃO DAS IDENTIDADES PROFISSIONAIS NO TRABALHO COM BEBÊS

...................................................................................................................... 21

2 IDENTIDADE, CULTURA, GÊNERO E PODER: APROXIMANDO ESTUDOS CULTURAIS E EDUCAÇÃO INFANTIL ............................................................................................................ 27 3 CONSTRUINDO UM PERCURSO METODOLÓGICO .................................................................. 41 4 SETE PROFESSORAS, UM PROFESSOR, MUITAS HISTÓRIAS E UM LUGAR COMUM: O BERÇÁRIO .............................................................................................................................. 50 4.1 TRAJETÓRIAS DE VIDAS .................................................................................................... 51 4.1.1 PROFESSORA JOYCE ................................................................................................ 51 4.1.2 PROFESSORA LUIZA ................................................................................................ 52 4.1.3 PROFESSORA ISABEL ............................................................................................... 53 4.1.4 PROFESSORA MARIA CECÍLIA.................................................................................. 54 4.1.5 PROFESSORA LAURA ............................................................................................... 56 4.1.6 PROFESSOR JÚLIO.................................................................................................... 58 4.1.7 PROFESSORA LILA................................................................................................... 59 4.1.8 PROFESSORA MONIQUE ........................................................................................... 61 4.2 SEMELHANÇAS, DIFERENÇAS E INTERSEÇÕES NOS PERCURSOS PROFISSIONAIS ................... 62 5 QUESTÕES DE GÊNERO E A PRÁTICA DOCENTE COM BEBÊS ................................................ 68 5.1 CUIDAR DA INFÂNCIA COMO PAPEL SOCIAL FEMININO ....................................................... 69 5.2 FEMINILIDADES E MASCULINIDADES: O JOGO BINÁRIO NO TRABALHO DOCENTE EM BERÇÁRIOS....................................................................................................................... 74

5.3 “CUIDADO, TEM UM PROFESSOR NO BANHEIRO!”: A PRESENÇA MASCULINA EM BERÇÁRIOS....................................................................................................................... 81

6 FAZERES, SABERES E PODERES NAS RELAÇÕES PROFISSIONAIS COM BEBÊS....................... 93 6.1 MEMÓRIAS DA INSTITUIÇÃO E A GÊNESE DA DOCÊNCIA EM BERÇÁRIOS ............................. 94 6.2 FAZERES E SABERES NO COTIDIANO DE BERÇÁRIOS E A “EXPERIÊNCIA” DO CEI FREIREANO .................................................................................................................... 105 6.3 CUIDAR DE BEBÊS E DE SEUS EXCREMENTOS EM ESPAÇOS ESCOLARES: MAPEANDO RELAÇÕES DE PODER ...................................................................................................... 122

7 A DOCÊNCIA EM BERÇÁRIOS: TRANSITANDO PELAS FRONTEIRAS DAS IDENTIDADES PROFISSIONAIS..................................................................................................................... 130 7.1 REPRESENTAÇÕES DA PROFISSÃO DOCENTE .................................................................... 131 7.2 ESTRATÉGIAS IDENTITÁRIAS NA DOCÊNCIA EM BERÇÁRIOS ............................................. 137 7.3 IDENTIDADES DOCENTES E CULTURAS HÍBRIDAS NO TRABALHO COM BEBÊS .................... 144 8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................................... 152 REFERÊNCIAS ......................................................................................................................... 162 APÊNDICES ............................................................................................................................ 169 APÊNDICE A: ROTEIRO DAS ENTREVISTAS.................................................................................169 APÊNDICE B: AUTORIZAÇÃO PARA A

REALIZAÇAO DA PESQUISA NA INSTITUIÇÃO.................. 171

APÊNDICE C: TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ........................................... 172

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1 INTRODUÇÃO Nas últimas décadas, na cidade de São Paulo, muitas transformações ocorreram no âmbito das creches públicas, atualmente denominadas Centros de Educação Infantil (CEIs), no que se refere ao caráter da instituição, ao cunho assistencialista e/ou educacional a ela conferidos e a tantas outras questões que envolvem o atendimento de crianças pequenas, como aspectos pedagógicos, sociais, culturais, políticos, econômicos, entre outros. Esse processo suscitou também mudanças estruturais quanto aos pré-requisitos exigidos, às competências necessárias e aos papéis a serem desempenhados pelos(as) profissionais que hoje trabalham nessas unidades de educação infantil. Tendo atuado como pedagoga, diretora de equipamento social e até recentemente como diretora de escola em creches e centros de educação infantil na cidade de São Paulo durante os últimos 20 anos, tive a oportunidade de acompanhar de perto tais mudanças estruturais ocorridas nesse período, especialmente as transformações no quadro de pessoal que culminaram, como será visto a seguir, com o surgimento dessa nova categoria de profissionais, as professoras de educação infantil. A motivação para a proposição desta pesquisa deve-se, sobremaneira, à escuta cotidiana dessas profissionais ao longo desses anos, de suas expectativas, interesses, incertezas, dúvidas, frustrações, medos, resistências, idealizações, e tantos outros sentidos e significados que permeiam o processo de se tornar uma professora de crianças pequenas e, particularmente, de bebês. Desse modo, a presente pesquisa propõe uma análise do processo de construção de identidades de professoras1 de educação infantil que atuam em berçários em um CEI na cidade de São Paulo. A fralda, nesse contexto, surge como um símbolo quase emblemático no que se refere aos cuidados de um bebê. Por outro lado, a lousa é comumente associada, em nossa cultura, ao ofício de uma professora. Ao utilizar essa expressão “entre a fralda e a lousa”, apresento a abordagem que pretendo perseguir nesta investigação, qual seja, a busca de significados, representações e identificações implicados nesse novo campo do magistério e os muitos sentidos atribuídos aos fazeres de uma professora que atua com bebês, considerando o seu percurso profissional e as transformações ocorridas recentemente na instituição.

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Embora no contexto a ser pesquisado também atuem professores do sexo masculino, os centros de educação infantil, de uma maneira geral, são ambientes onde a presença feminina é predominante, como será visto e analisado posteriormente. Por esse motivo, já que o debate em torno das questões de gênero é um eixo central deste trabalho, ao longo do texto, optei, deliberadamente, por me referir à designação da profissão docente no modo feminino, com exceção dos momentos em que se tratar efetivamente de um profissional do sexo masculino.

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Delimitando para esse estudo as práticas docentes desenvolvidas com crianças de 0 a 2 anos de idade2, pretendo, assim, conduzir a presente pesquisa por meio dessa trama que se estabelece entre os cuidados de bebês e os diferentes saberes, concepções e culturas que permeiam o cotidiano um centro de educação infantil. Para melhor compreender o contexto em que se situam os centros de educação infantil e as mudanças ocorridas na carreira das profissionais que compõem o seu quadro, bem como as implicações dessas transformações no processo de identificação profissional das atuais professoras de educação infantil, temática abordada nesta pesquisa, proponho a seguir um breve panorama acerca da história do atendimento institucional de crianças pequenas no Brasil. 1.1 A HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO INFANTIL NO BRASIL O período que compreende as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX foi marcado por grandes transformações no país, conforme descreve Hilsdorf (2003) em sua abordagem histórica da educação brasileira. Ideias abolicionistas e escravocratas, monarquistas e republicanas, conservadoras e liberais coexistiam, por vezes se confrontando, outras em cooperação. Nesse cenário de mudanças, destaco os seguintes acontecimentos como fatores decisivos para as mudanças sociais, políticas e econômicas e consequentemente para os rumos que a educação tomaria no país: a remodelação das relações do trabalho com a abolição da escravatura e o início do trabalho livre e assalariado, como também a iniciativa do governo brasileiro em atrair imigrantes (italianos, portugueses, espanhóis, alemães, russos e australianos) a fim de substituir a mão de obra escrava na agricultura; o início da industrialização (especialmente a têxtil), o crescimento das camadas médias e o surgimento de um proletariado urbano formado principalmente por migrantes que abandonavam a zona rural; a forte presença do capital estrangeiro, primeiramente o inglês e depois o americano; a grande circulação de novas tendências, com forte influência de ideias vindas da Europa, como o positivismo que colocava a ciência, o sentimento cívico e o princípio do bem comum como a base para o progresso; o industrialismo em oposição ao ruralismo e o fim da monarquia, caracterizado por um movimento liderado por representantes das classes dominantes, como cafeicultores e militares, sem a participação popular. 2

A delimitação da faixa etária aqui não segue nenhum critério referente a etapas do desenvolvimento infantil, mas se baseia na organização de turmas de crianças nos CEIs da cidade de São Paulo, que, atualmente, atendem a crianças de 0 a 1 ano no Berçário 1 e crianças de 1 a 2 anos no Berçário 2 (SÃO PAULO, 2010a).

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Todos esses acontecimentos, de uma forma ou de outra, interferiram na organização social tanto das classes abastadas quanto das camadas populares, influenciando também a forma como a infância passaria a ser tratada nas famílias, nas políticas públicas, nas corporações religiosas e filantrópicas, no meio científico e nas diferentes instituições que foram surgindo para atender às demandas desse contexto. Nesse período, o processo de colonização portuguesa, a escravidão, a chegada dos imigrantes, associando-se ainda ao início do processo de industrialização, deixaram como saldo social um grande contingente de crianças em situação de miséria ou abandono – crianças escravas (principalmente aquelas libertas pela Lei do Ventre Livre em 1871), crianças rejeitadas e entregues à roda de expostos, filhos dos imigrantes, entre outras –, o que impunha à sociedade daquela época a necessidade de manter instituições que abrigassem essa infância marginalizada. Esses estabelecimentos de atendimento à infância, nessa época, eram mantidos por instituições de cunho filantrópico e religioso, sobretudo a Igreja Católica, que teve, assim, forte influência nas origens da educação infantil na sociedade brasileira, conforme discutem Kuhlmann Junior (2004) e Kishimoto (1988). Kishimoto (1988) descreve o trabalho realizado, nesse período, em estabelecimentos chamados, à época, de asilos infantis. Esses asilos funcionavam num sistema de internato, havendo aqueles voltados para o atendimento de órfãos – ou orfanatos –, outros para crianças entregues nas rodas dos expostos e ainda aqueles que abrigavam crianças abandonadas ou delinquentes. A autora explica que essas três modalidades, em alguns casos, coexistiam numa mesma instituição. Entretanto, a maioria tinha como características instalações precárias de higiene, superlotação de crianças em grandes dormitórios, unidades separadas para meninas e meninos – todos devidamente uniformizados – e pátios cercados por altos muros – nos moldes de um quartel –, situação essa que viria a ser severamente criticada por médicos do movimento higienista, como veremos mais adiante. Tanto Kuhlmann Junior (2004) quanto Tizuko Kishimoto (1988) destacam, entre outras instituições filantrópicas, a relevância do trabalho educativo e assistencial realizado por Anália Franco no estado de São Paulo. Anália Franco era uma educadora sensível às condições desumanas a que estavam submetidas as crianças pobres no fim do Império, especialmente os bebês escravos libertos pela Lei do Ventre Livre, que, na sua maioria, eram abandonados na roda dos expostos, já que deixavam de ter um valor econômico e utilitário para os proprietários de seus pais. Anália Franco foi a primeira a utilizar, no Brasil, os termos ‘creche’ (termo de origem francesa cujo significado é “manjedoura”) e ‘escolas maternais’, embora esses

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estabelecimentos criados pela educadora fossem mantidos por donativos e parecessem mais com asilos infantis. A educadora se inspirava em experiências europeias, já que na França a expansão das escolas maternais e da creche se deu já na segunda metade do século XX, a princípio atendendo aos filhos da classe operária e, posteriormente, passando a serem frequentadas por todas as classes sociais. Já as creches implantadas por Anália Franco funcionavam em regime de internato, ou no período diurno, de acordo com as necessidades das mães. Todavia, o grande diferencial das instituições criadas por Anália Franco era a existência de propostas pedagógicas, com a utilização de materiais didáticos produzidos pela própria educadora, com influência das concepções educacionais europeias. Desse modo, por meio dessas experiências de atendimento de crianças pobres no início do século passado, sejam em asilos infantis, creches ou escolas maternais, fica notório como a filantropia e o assistencialismo fizeram parte da própria gênese das instituições de educação infantil na sociedade brasileira, deixando marcas visíveis nessas unidades infantis até os dias de hoje. Outra tendência importante que influenciou, ou mesmo sustentou, os destinos da educação infantil no Brasil, e especialmente o atendimento de bebês, tanto na esfera pública quanto na privada, foi o movimento higienista, liderado por médicos brasileiros influenciados por ideais europeus que propunham o uso racional do conhecimento científico como solução para os problemas sociais. O higienismo, de acordo com Gondra (2002) e Kuhlmann Junior (2004), teve seu auge no Brasil no final do século XIX e início do século XX, defendendo como projeto social a modelação higiênica dos sujeitos e da sociedade, numa perspectiva patriótica de melhoria da raça, em alguns momentos, associada aos ideais do eugenismo, amplamente difundido na sociedade europeia. Para os higienistas, a vida de cada homem representava uma unidade do capital social das nações. Para além de uma dimensão humanitária, nas ações dos higienistas estava em jogo um projeto de nação preocupada com a esfera econômica e social. A infância era, pois, um tema caro para a medicina, conforme explica Gondra (2002) e, por esse motivo, a proposta de higienização da infância, com base nessa ótica da racionalidade médica, influenciava não só os serviços de saúde, mas também vários outros segmentos da sociedade, dando, ainda, as diretrizes das políticas públicas naquele período histórico. Entre outras iniciativas, os higienistas combatiam a mortalidade infantil, o aborto, o infanticídio, o alcoolismo e o analfabetismo, fazendo, também, uma intensa oposição ao regime de asilo, devido às precárias condições dos estabelecimentos destinados à guarda das crianças naquele momento, pautando-se, também, em referências de atendimento à criança na Europa.

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Um dos principais representantes do higienismo no Brasil, segundo Gondra (2002), foi o médico Dr. Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo (1871-1944), considerado o pai da pediatria científica brasileira. Posteriormente, seu filho, também médico, Moncorvo Filho, viria a dar continuidade à sua obra, protagonizando movimentos de proteção à infância pobre, defendendo, entre outras ações relacionadas à saúde pública, o investimento na melhoria da qualidade das entidades que naquele momento se dedicavam ao atendimento das crianças pobres. Moncorvo Filho conclamava a classe médica a trabalhar em prol dessa causa, no sentido de promover ações que prevenissem que a infância chegasse à situação indigente. Os higienistas pretendiam atingir a criança a partir dos mais diferentes segmentos sociais. A ideia era vigiar os adultos na intenção de proteger a vida das crianças, seja por meio de serviços de orientação e acompanhamento de gestantes; seja por meio de campanhas educativas; seja influenciando as políticas públicas educacionais e as instituições de ensino, ou, ainda, por meio da implantação e acompanhamento de estabelecimentos de acordo com os ideais higiênicos, entre outras ações. Nesse sentido, segundo Kuhlmann Junior (2004) e Gondra (2002), em 1899, foi criado o Instituto de Proteção e Amparo à Infância (IPAI), com sede no Rio de Janeiro, cuja proposta era subsidiar essas iniciativas de atendimento às crianças pobres. De caráter assistencial e filantrópico, as ações do IPAI causaram grande impacto na sociedade brasileira, tendo apoio de representantes do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, e sendo reconhecido internacionalmente pelos seus projetos. Uma das metas de Moncorvo Filho era humanizar o atendimento prestado às crianças nos asilos infantis, defendendo propostas como a boa escolha e elevação dos salários das amas; a seleção das irmãs de caridade responsáveis pelos estabelecimentos; a divisão das crianças em turmas por idade; e a premiação pelas crianças “efetivamente” criadas. Nesse contexto, no mesmo ano de 1899, conforme relatam Kuhlmann Junior (1990, 2004) e Bruscato (2008), sob a fiscalização do IPAI, foi criada a primeira creche do Brasil destinada a atender a filhos de operários, junto à Companhia de Tecidos e Fiação Corcovado, no Rio de Janeiro. Voltada ao atendimento de crianças com até 5 anos de idade, seu principal objetivo era, com base em rigorosos padrões de saúde, higiene e nutrição, estimular o aleitamento materno entre as mulheres operárias durante a sua jornada de trabalho. De acordo com Viviani e Bueno (2006) e Viviani (2007), o movimento higienista teve também forte influência nas políticas educacionais nas primeiras décadas do século XX. Os higienistas pretendiam, por meio das instituições escolares, disseminar seus preceitos formando a criança em suas dimensões física, intelectual e moral. Segundo as autoras, uma das suas principais influências pode ser observada nos conteúdos disseminados pela disciplina biologia

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educacional, que integrava o currículo das escolas normais paulistas no início do século. As alunas, além dos conteúdos de natureza biológica, recebiam orientações sobre cuidados infantis por meio de manuais de puericultura, além de trabalharem como estagiárias nos Centros de Puericultura, com o atendimento e orientações às mães e mulheres gestantes. Naquele momento histórico, segundo Viviani (2007), esperava-se que as futuras professoras e mães – já que nem sempre as alunas do curso normal seguiam a carreira do magistério – fossem preparadas para a maternidade numa abordagem higienista. Pautando-se nos preceitos da medicina, pretendia-se que a professora disseminasse, tanto no ambiente escolar quanto no doméstico, os saberes científicos sobre aspectos como a importância da amamentação, a higiene dos bebês, o preparo da alimentação, a prevenção de doenças etc., abandonando crendices e padrões de comportamento vinculados ao senso comum. Nota-se, também, como as questões de gênero se interligavam a outras concepções hegemônicas sobre maternidade, criança, família e educação. O magistério, considerado uma profissão feminina, seria mais um canal para a disseminação do ideal higienista, a partir do qual a professora poderia estender seus conhecimentos e cuidados maternais aos alunos, como também às suas famílias. São também integrados às escolas normais, no Brasil, os primeiros jardins de infância. Conforme explica Kishimoto (1988), essa denominação foi primeiramente usada por Frederico Guilherme Froebel para designar a escola infantil – de caráter fundamentalmente educacional – por ele criada em 1840, na Alemanha. O nome jardim de infância, ou kindergarten, está relacionado à metáfora da planta, segundo a qual, assim como cada espécie de flor necessita de cuidados especiais de um jardineiro, as crianças também precisariam de cuidados semelhantes para um desenvolvimento saudável. Nessa simbologia, a professora representaria o papel de “jardineira”. Voltado para o atendimento de crianças de 3 a 7 anos e com ênfase no jogo como recurso pedagógico, o currículo dos jardins de infância era composto por: formação religiosa, cuidados com o corpo, observação da natureza, poesias e cantos, exercícios de linguagem, trabalhos manuais, desenho, lendas, viagens e passeios. A primeira unidade, no Brasil, foi instalada no Colégio Menezes de Vieira, no Rio de Janeiro, em 1875. A implantação dos jardins de infância, no entanto, provocou muitas polêmicas naquele período. Primeiramente, porque se tratava de uma abordagem pedagógica de origem alemã e protestante, o que se chocava com os interesses da igreja católica. Outra discussão que se colocava era se se devia ou não “tirar a criança de casa” tão cedo. Em torno desse debate, havia também muitas disputas políticas, havendo aqueles que se opunham a essa iniciativa, pois um

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país que não conseguia nem disseminar a escola primária não podia se dar ao luxo de manter uma escola para “desmamar bebê”, uma expressão utilizada naquela época. Sem sucesso nas políticas públicas, conforme discute Kishimoto (1988), os jardins da infância assumem, no Brasil, um caráter elitista. Como seu atendimento era oferecido em meio período, apenas crianças das camadas mais abastadas tinham condições de frequentar a escola, acompanhadas por suas mães ou governantas. Para ilustrar esse fato, em São Paulo passaram pelo Jardim de Infância Oficial anexo à Escola Normal da Capital nomes ilustres, como Júlio de Mesquita; Mário de Andrade; Francisco Matarazzo, entre outros da elite paulistana. Cabe aqui destacar que a história da educação infantil, como discute Kuhlmann Junior (2004), é permeada de contradições e alternâncias. Conforme vimos, os muitos movimentos, ações, mudanças sociais, políticas e econômicas e ideologias coexistiam num mesmo período em diferentes arranjos, dando diferentes contornos às instituições que se ocupavam do atendimento à infância. Nesse sentido, diferentes direcionamentos no que se refere a um modelo ideal de sociedade, na época considerados modernos ou não, coexistiam e, consequentemente, também se refletiam no atendimento à infância. Para ilustrar, as rodas dos expostos, onde eram entregues bebês rejeitados – uma prática comum na Europa medieval –, como aponta Marcilio (2001), permaneceram em funcionamento no Brasil até 1950, e, paralelamente, os jardins de infância anexos às escolas normais – cuja referência era um dos mais modernos modelos europeus de educação –, mesmo se tratando de estabelecimentos públicos, só atendiam a membros da elite paulistana. De acordo com Palmen (2007), com a expansão industrial, a crescente inserção das mulheres nas fábricas e, ainda, com a influência das ideias anarquistas trazidas por imigrantes europeus, entram na pauta do movimento operário reivindicações por melhores condições de trabalho para homens e mulheres, tais como a jornada de oito horas e a proibição do trabalho infantil, deflagrando uma série de greves nos anos 1920, configurando um período de grande crise social. O empobrecimento da classe operária, os efeitos da guerra de 1914, as péssimas condições de trabalho, a disciplina rígida e os trabalhos insalubres também se refletem no aumento do número de crianças abandonadas. Além da questão social, o aparecimento de diferentes movimentos político-sociais, como o escolanovismo, e a influência das experiências europeias – jardins de infância, escolas maternais, novas metodologias, como a de Montessori e Decroly –, contribuem para a implementação da educação infantil. Em São Paulo, na gestão de Sampaio Dória como diretorgeral da Instrução Pública nas primeiras décadas do século XX, o ideário escolanovista permite a fixação de um arcabouço legal para a criação e instalação de creches e escolas maternais para

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filhos de operários com a participação do governo paulista. Mais tarde, em 1943, a Consolidação de Leis Trabalhistas (CLT) determinaria a criação de lugares para a guarda de crianças em fábricas com número igual ou superior a 30 mulheres, porém, apenas, algumas poucas fábricas cumpriram essa legislação. Em 1935, inspirados pela proposta pedagógica dos jardins de infância de Froebel e sob a influência do movimento da Escola Nova, que enfatizava a promoção da cultura brasileira, são criados pelo modernista Mário de Andrade, então à frente do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, os três primeiros parques infantis em bairros operários: Brás, Lapa e Ipiranga (SÃO PAULO, 2010b). Os parques infantis atendiam a crianças de 3 a 12 anos, e tinham filhas de operários, com grande predominância de imigrantes, desenvolvendo atividades recreativas, assistenciais, esportivas, recreação, música, dança, trabalhos manuais, bibliotecas, assistência médica e alimentar. Ainda sob a influência do ideal higienista, assim como nas escolas, persistia nos parques um caráter assistencial, sendo desenvolvidas ações como distribuição de copos de leite e frutas, atendimento odontológico, entre outras. Com a necessidade de ampliação da rede, outros espaços públicos foram adequados para a instalação de novas unidades, também denominadas recantos ou recreios infantis, de modo que em 1968 já haviam sido instalados 109 parques infantis, sendo criados os cargos de educadores recreacionistas. Parques, recreios e recantos infantis, mais tarde, em 1975, dariam origem às Escolas Municipais de Educação Infantil (EMEIs). Embora continuasse a ser uma preocupação do universo feminino, e em virtude do reduzido número de unidades de atendimento à infância, as crianças continuavam (ou continuam) a ser cuidadas por mulheres, mas não necessariamente por suas mães biológicas, conforme discute Fonseca (2002): Para melhor entender o que significava ser mãe para mulheres pobres no início do século, é necessário tirar a experiência materna do isolamento da família conjugal e situá-la dentro de redes sociais que perpassam a unidade doméstica. [...] Essa circulação de crianças entre uma casa e outra não era, de forma alguma, excepcional. Para fazermos considerações sobre a maternidade em grupos populares, temos portanto de levar em consideração também avós, criadeiras e mães de criação. (p. 535, grifo da autora).

Após o período da Ditadura Militar, nas décadas de 1970 e 1980, e com o processo de abertura política no país, houve uma grande efervescência de diversos movimentos populares. Nesse cenário político, colocou-se em pauta, conforme discute Fúlvia Rosemberg (1984), a questão dos direitos das mulheres e das crianças, sobretudo pela influência do movimento

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feminista. Em São Paulo, nessa mesma época, considerando a crescente inserção da mulher no mercado de trabalho, desde a década de 1960, ganhou força o Movimento de Lutas por Creches, que viria a desencadear a expansão dessas unidades infantis na rede pública, ainda vinculadas a órgãos de bem-estar social. Em 1988, em meio a esse contexto político e social, é promulgada a nova Constituição Federal. De acordo com Campos, Rosemberg e Ferreira (2006), a Constituição de 1988 foi a primeira a fazer referências a direitos específicos das crianças de 0 a 6 anos de idade e a reconhecer como dever do Estado o seu “atendimento em creche e pré-escola” (BRASIL, 1988, art. 208, inciso IV). Mais tarde, a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) veio a reafirmar essa concepção da criança como sujeito de direitos, indicando também que é dever do Estado assegurar “o atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade.” (BRASIL, 1990, art. 54, inciso IV). Em consonância com tais concepções sobre a infância, em 1996, foi promulgada uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) (BRASIL, 1996), o que promoveu no país, a partir das implicações educacionais contidas nesse documento, um amplo debate por parte de toda a sociedade no sentido de repensar as políticas e ações a serem adotadas no cenário educacional brasileiro. A educação nacional organizou-se, então, em dois níveis: educação básica, composta pela educação infantil, ensino fundamental e médio, e educação superior. Historicamente, no Brasil, é a primeira vez que a educação infantil é reconhecida como etapa da educação básica. Nessa nova organização, as creches, anteriormente vinculadas a órgãos de assistência social, passaram a ser consideradas equipamentos de educação infantil, elevando-se ao patamar de primeira etapa da educação básica, devendo assumir também seu caráter educacional: A educação infantil, primeira etapa da educação básica tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (BRASIL, 1996, art. 29).

Logo em sequência, em seu texto, a LDB de 1996 define que a educação infantil deverá ser oferecida em “creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de idade” (art. 30, inciso I) e em “pré-escolas, para as crianças de quatro a seis anos de idade.” (art. 30, inciso II). Mais à frente, é também estabelecida “como formação mínima para o exercício de magistério na educação infantil [...] a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.” (art. 62). As mudanças que viriam a ocorrer no âmbito da educação infantil e em seu

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quadro de pessoal, especialmente nas creches, passariam pela forma como tais exigências seriam interpretadas pela sociedade de uma maneira geral e pelo modo que seriam implantadas pelas políticas públicas e pelos sistemas de ensino. Cabendo aos municípios a responsabilidade em “oferecer a educação infantil em creches e pré-escolas” (BRASIL, 1996, art. 11, parágrafo 1º, inciso V), em 2001, em São Paulo, as creches da rede pública municipal desvincularam-se da Secretaria Municipal de Assistência Social, passando a integrar a Secretaria Municipal de Educação, e receberam a atual denominação – centros de educação infantil (SÃO PAULO, 2001a, 2001b). Outras iniciativas surgiram, no âmbito do governo federal, no sentido de adequar os sistemas de ensino de acordo com essas novas demandas. Em 1998, o Ministério da Educação (MEC) publicou os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, um vasto documento elaborado em três volumes, nos quais se busca balizar as ações e oferecer subsídios para a criação de uma identidade nacional nessa etapa educacional, apontando metas de qualidade de ensino a serem atingidas no trabalho com crianças pequenas (BRASIL, 1998). Posteriormente, foram lançadas as primeiras Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1999). Em 2006, o MEC elaborou o documento Parâmetros nacionais de qualidade para a educação infantil, propondo, em termos nacionais, referências qualitativas para o funcionamento dessas instituições (BRASIL, 2006). Em 2009, depois de um amplo debate em audiências públicas envolvendo vários segmentos da sociedade brasileira, foram homologadas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (BRASIL, 2010). Atualmente, na rede pública de ensino da cidade de São Paulo, o atendimento de crianças de 0 a 5 anos é realizado apenas em dois diferentes tipos de unidade infantil: CEIs e EMEIs. A delimitação da faixa etária a ser atendida nessas instituições é definida anualmente de acordo com a demanda de alunos. Hoje, os CEIs atendem, prioritariamente, a crianças de 0 a 4 anos e as EMEIs, crianças de 4 e 5 anos (SÃO PAULO, 2010a). 1.2 PROBLEMATIZANDO A QUESTÃO DAS IDENTIDADES PROFISSIONAIS NO TRABALHO COM BEBÊS

Como vimos, essa busca de definições, delimitações, objetivos e funções sociais para o atendimento de crianças pequenas e suas variadas vertentes ao longo da história no país – até os dias de hoje – se reflete também no processo de identificação das profissionais que atuam na educação infantil. Num curto espaço de tempo, muitas mudanças ocorreram no

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contexto das creches na cidade de São Paulo, e consequentemente em seus quadros de profissionais, o que pode ser observado nas próprias mudanças na denominação da função: pajem (SÃO PAULO, 1980) nas primeiras unidades no início da década de 1980, Auxiliar de Desenvolvimento Infantil (ADI) a partir de 1984 (SÃO PAULO, 1984); professora de desenvolvimento infantil em 2003, após o período de transição das creches para a Secretaria Municipal de Educação (SÃO PAULO, 2003); até a recente definição de professora de educação infantil em 2007 (SÃO PAULO, 2007a). Cada uma dessas mudanças trouxe à tona o debate sobre as competências e atribuições esperadas dessas profissionais. Muitas professoras, que ainda hoje trabalham em CEIs, passaram por todas essas fases e, vivenciando os dilemas e expectativas de cada uma delas, continuaram a exercer as suas funções no trabalho com crianças pequenas, tendo como cenário esse transitar entre diferentes concepções e discursos da instituição. Por outro lado, o conjunto de fazeres e saberes de cunho assistencial ou educacional, cuidados, práticas pedagógicas, valores, concepções de infância, organização dos ambientes e dos recursos materiais e didáticos, legislações, diretrizes governamentais, produções científicas, a história específica de cada equipamento etc., desenvolvido ao longo dos anos nas creches e nos CEIs, foi delineando, especificamente no trabalho em berçários, uma cultura própria – ou culturas próprias – da instituição. Essas culturas, ainda que de forma implícita, vão se forjando e se transformando nessa trama que envolve todas as ações e relações que se estabelecem cotidianamente entre cada professora e cada bebê, como também todas as controvérsias, incertezas, mudanças, resistências e expectativas que compõem a história dessas instituições na cidade de São Paulo. Com a passagem dos centros de educação infantil para a rede pública de ensino, várias iniciativas foram empreendidas no sentido de equiparar os CEIs às demais unidades educacionais no que se refere ao investimento de verbas públicas, à reestruturação da carreira dos profissionais, à formação dos professores, ao projeto pedagógico a ser desenvolvido nesses equipamentos entre outras. Em 2003, a Secretaria Municipal de Educação deu início a um programa de formação em exercício para profissionais de CEIs – Programa ADI/Magistério (SÃO PAULO, 2002), visando a oferecer a formação mínima no nível de ensino médio exigida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, conforme visto anteriormente. Nesse contexto se evidenciam, por meio de documentos oficiais, legislações e programas de formação, concepções que demonstram uma preocupação em sistematizar as práticas pedagógicas e conferir maior intencionalidade às ações de cuidado e educação das

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crianças pequenas nos centros de educação infantil. Elementos característicos de culturas escolares aos poucos vão sendo introduzidos na condução dos trabalhos dos CEIs: criação de cargos anteriormente existentes apenas nas escolas, como coordenador pedagógico, inspetores de alunos e agentes escolares; elaboração de documentos oficiais contendo orientações curriculares; programas de formação em exercício; planejamentos; controle da frequência de alunos por meio de diários de classe; definição de objetivos e conteúdos; avaliações sistematizadas; organização dos tempos e dos espaços escolares, entre outros. Assim, o campo de atuação profissional das professoras de educação infantil no âmbito institucional vem se delimitando por meio dessas referências da cultura escolar e das demandas de cuidados da criança pequena, em especial dos bebês, impondo-se como meta a tarefa de integrar o cuidar e o educar, uma ideia que hoje é amplamente difundida em discursos de documentos oficiais, de produções acadêmicas e de abordagens de especialistas no campo da educação infantil. No entanto, em sua prática com bebês, as professoras de educação infantil de “carne e osso” – emprestando a expressão utilizada por Sayão (2005) para se referir a um profissional não idealizado – lidam diariamente com esses questionamentos e contradições acerca do seu papel profissional, das suas atitudes e das suas ações no trabalho em berçários. A construção de suas identidades como docentes se dá em meio a essa trama que envolve, em termos subjetivos e objetivos, todas as representações que sua prática evoca, como também as suas próprias expectativas, as da sociedade, da instituição, das mães, das famílias, das crianças etc., a respeito de quem venha a ser uma professora que trabalha com bebês. Em suas discussões sobre processos identitários, Hall (2005) afirma que todo sujeito necessita sentir-se pertencente a um grupo, uma sociedade, uma classe, compartilhando os significados daquela cultura. Todavia, o autor aponta também como, na atualidade, as identidades não possuem um único núcleo essencial, podendo assumir diferentes posições de acordo com os tempos e os lugares que habitam. Traçando um paralelo com o processo de identificação profissional das professoras que hoje atuam com bebês na rede pública de ensino da cidade de São Paulo, nota-se que elas lidam diariamente com a ambiguidade de sentirem-se fazendo parte da categoria dos professores, com suas representações sobre o universo escolar – alunos, aulas, planejamentos, currículos etc. –, ao mesmo tempo que também se reconhecem como profissionais cuidadoras – em suas tarefas, como trocar fraldas, banhar, alimentar, embalar etc. Nos CEIs, ainda, a grande maioria do quadro de docentes é composta por profissionais do sexo feminino. Considerando que a responsabilidade de cuidar dos filhos tem sido naturalmente atribuída às mulheres em nossa sociedade, isso faz com que as questões de

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gênero atravessem de forma estruturante esse campo profissional, conferindo à relação entre docentes e crianças aspectos da subjetividade feminina e representações sobre a maternidade. Porém, se o cuidado infantil está associado ao papel da mulher na sociedade, conforme discute Carvalho (1999), existem ainda lacunas na produção científica brasileira sobre o(s) significado(s) e a relevância do ato de cuidar no âmbito educacional, o que, para a autora, ultrapassa o aspecto da domesticidade. Associado às questões de gênero feminino e às concepções sobre o papel do cuidado que permeiam a formação da profissão docente de um modo geral, é necessário considerar ainda que o atendimento de crianças pequenas no Brasil seguiu rumos diferentes, conforme foi visto anteriormente, no que se refere ao caráter assistencial ou educacional das instituições, criando certa dicotomia entre abordagens e práticas desenvolvidas em pré-escolas e aquelas utilizadas em creches, de acordo com as políticas públicas vigentes e com a camada da população atendida. Em outras palavras, se a gênese da profissão docente traz em si, tão acentuadamente, aspectos do gênero feminino e do papel que a mulher ocupa na sociedade com relação à maternidade e aos cuidados dos filhos, no que diz respeito às profissionais de creche, hoje centros de educação infantil, existe ainda, no senso comum, uma desvalorização do seu trabalho como em outras funções exercidas por mulheres em funções consideradas de menor valor em nossa sociedade, tais como babás ou empregadas domésticas, ou, ainda, aquelas exercidas em condições subalternas ao longo da história brasileira, como escravas, amas de leite, amas-secas ou criadeiras, como discute Del Priore (2002a, 2002b). No que se refere à profissional que hoje atua com bebês na rede pública de ensino da cidade de São Paulo, ela exerce diariamente inúmeras práticas relacionadas ao cuidar e, ao mesmo tempo, busca equiparar-se ao perfil de uma docente de acordo com o modelo oferecido pelas culturas escolares que perpassam a instituição a que pertence. Mas professoras de educação infantil não ministram aulas para bebês! Seu trabalho não consiste no desenvolvimento de práticas escolares reconhecidas pelo senso comum, mas sim atendem a outras exigências relacionadas aos cuidados, que, por não serem culturalmente valorizadas no ambiente escolar, sugerem certo despreparo técnico. Essa ambiguidade suscita conflitos que permeiam o cotidiano de professoras em sua relação com os bebês, com as famílias, com a instituição, com a sua categoria profissional e com a sociedade de uma maneira geral, e também se faz presente nas relações de poder que se estabelecem nesse contexto específico. Nesse sentido, no âmbito da rede pública de ensino da cidade de São Paulo, o surgimento do cargo de Professora de Educação Infantil (PEI) provocou muitos debates

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quanto às atribuições dessa profissional na sua prática com crianças pequenas em comparação às atribuições dos demais docentes de outros níveis. Se, por um lado, as professoras de educação infantil vêm conquistando direitos – mudanças na jornada de trabalho, melhorias salariais, formação continuada etc., por outro, as especificidades relacionadas principalmente às tarefas de cuidados estabelecem diferenças significativas com relação à prática dos demais professores em outros níveis de ensino, sugerindo, ainda que de forma indireta, um antagonismo entre o trabalho de natureza intelectual e o de natureza manual. O fato de uma professora, inserida em um sistema público de ensino, ter como atribuição a troca de fraldas, entre outras tarefas relacionadas aos cuidados dos bebês, suscita certo estranhamento e põe em cheque a legitimidade do caráter profissional de suas funções, gerando, por vezes, condutas discriminatórias. Tais manifestações controversas, bem como a forma como cada professora reage a elas, são fatores que, mesmo implicitamente, estão presentes no processo de construção identitária dessas docentes. Com base nessa contextualização, proponho nesta pesquisa uma análise sobre esse processo de rupturas, descontinuidades e permanências na carreira de profissionais vinculadas aos centros de educação infantil, hoje denominadas professoras de educação infantil. O problema central a ser tratado refere-se à maneira pela qual vem ocorrendo o processo de construção das identidades docentes dessas profissionais, tendo por foco a sua atuação com bebês de 0 a 2 anos de idade em berçários e todas as demandas desse campo de trabalho, considerando a atual configuração institucional dessas unidades infantis no âmbito da rede pública de ensino na cidade de São Paulo. O objetivo principal da investigação foi explicitar os diferentes significados atribuídos à prática de professoras que atuam em berçários, pelas próprias profissionais, pelo meio cultural em que estão inseridas e pela instituição a que pertencem no que se refere às tarefas de cuidados e às demais exigências educacionais ou outras atribuições de seu cargo. Com essa finalidade, pretendi analisar diferentes aspectos que circulam no contexto específico de berçários em um centro de educação infantil e que permeiam essa instituição na atualidade, principalmente no que se refere a questões de gênero, cuidados e culturas próprias da instituição, de modo a perceber de que forma tais configurações estão relacionadas com o processo de construção das identidades docentes dessas profissionais. No desenvolvimento da pesquisa busquei levantar possíveis respostas para as seguintes questões:

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1. Como se dá, hoje, o processo de identificação da professora de educação infantil que atua com bebês? Pretendo considerar: a) o histórico e as culturas da instituição e de sua carreira; b) a percepção subjetiva e objetiva com relação ao seu papel profissional; c) os significados que atribui à sua prática cotidiana de cuidados como trocar fraldas, alimentar, acalentar, higienizar etc.; d) as suas representações acerca do que venha a ser trabalho docente; e) as relações de poder que permeiam sua prática na instituição. 2. Como as questões de gênero perpassam o trabalho desenvolvido por professoras em berçários e de que modo influenciam as suas relações com os bebês, com as famílias e com a instituição a que pertencem? 3. De que maneira os diferentes saberes, concepções e culturas referentes ao atendimento de bebês, como os que estão relacionados ao senso comum ou ao conhecimento especializado, se inserem e se manifestam na prática docente em berçários de um centro de educação infantil e nas relações de poder que permeiam o cotidiano da instituição? Tendo por principal referência teórica, entre outras contribuições, a abordagem dos estudos culturais, sobretudo as proposições de Stuart Hall e Néstor Garcia Canclini, a investigação buscou promover a discussão de temas que ajudassem a elucidar o problema proposto, tais como: as trajetórias de vida e os processos de identificação e significação cultural da profissão docente; as questões de gênero que perpassam a prática de professoras no âmbito da educação; a questão das culturas escolares e os múltiplos saberes envolvidos no processo de cuidado de bebês, entre outros. Para a discussão desses assuntos, tive ainda como fio condutor a análise das relações de poder e dos discursos que permeiam o contexto investigado com base em algumas formulações de Michel Foucault. A pesquisa segue um enfoque qualitativo e a parte empírica da investigação foi desenvolvida em um centro de educação infantil situado na cidade de São Paulo, aqui denominado CEI Freireano, vinculado à Secretaria Municipal de Educação, onde também atuei durante nove anos como diretora de escola. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, de caráter biográfico, com sete professoras e um professor de educação infantil, sendo que a escolha dos sujeitos que participaram da pesquisa foi realizada mediante a manifestação de interesse. De acordo com os assuntos mencionados nos depoimentos das docentes e do docente que participaram da pesquisa, alguns documentos normativos e legislações também foram analisados, no sentido de melhor compreender a organização administrativa e pedagógica da instituição.

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2 IDENTIDADE, CULTURA, GÊNERO E PODER: APROXIMANDO ESTUDOS CULTURAIS E EDUCAÇÃO INFANTIL Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma ‘chegada’ sempre adiada. Stuart Hall (2009a, p. 415)

Considerando a multiplicidade de aspectos que se colocam diante da temática que procurei abordar nesse estudo – as identidades de docentes que atuam com bebês em um centro de educação infantil –, foi preciso enfrentar o grande desafio de articular, ou tentar aproximar, diferentes referenciais teóricos que pudessem me guiar nessa investigação. Para esse fim, tive que percorrer vários caminhos e transitar pelas fronteiras de distintas áreas de conhecimento, procurando identificar os elementos que pudessem me ajudar a compor esse arcabouço teórico. Ao falar de profissionais que atuam com bebês no contexto específico de uma unidade infantil da rede municipal de ensino na cidade de São Paulo, evidentemente estaria enveredando pelos atuais debates no campo da educação infantil, conforme a contextualização que apresentei na introdução deste trabalho. Todavia, com base na minha própria experiência profissional nessa área e nos muitos questionamentos que trazia para a minha formação acadêmica, sentia a necessidade de buscar novas interlocuções. Intencionalmente, procurei me afastar de concepções que pudessem vir a limitar as discussões que pretendia propor neste estudo ou ajustá-las a um único referencial teórico. Dessa forma, mesmo reconhecendo os riscos que estaria correndo, ao lidar com tantos aspectos a um só tempo, no que se refere à preservação do rigor científico da pesquisa, escolhi deliberadamente o caminho da multiplicidade. Nesse sentido, fazendo uma analogia com o texto de Stuart Hall (2009a) em epígrafe, em que o autor se refere às incertezas enfrentadas por um sujeito que deixa a sua terra de origem para viver em outro lugar, partindo do campo de estudos em que eu atuava há mais de 20 anos – a educação infantil – elegi como fio condutor desta investigação uma abordagem até então desconhecida para mim: os estudos culturais. Acreditava que, partindo desse enfoque interdisciplinar, poderia também dialogar com diferentes áreas do conhecimento, como: educação, sociologia, filosofia, pedagogia, entre outras, de modo a buscar novas referências

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para os debates que hoje se travam no campo particular da educação infantil, como também para a temática específica que iria tratar na pesquisa. Por se tratar de uma nova área de conhecimento, ter como referência os estudos culturais já era por si só um grande investimento. Buscar aproximá-los de discussões no campo da educação infantil, considerando-se ainda a escassez de produções científicas que articulassem esses dois referenciais teóricos, como também as limitações desse breve estudo, representava para mim, como pesquisadora, um grande desafio. Nesse sentido, as proposições teóricas que fiz ao longo desta investigação refletem os esforços que empreendi ao buscar situar, em torno do mesmo debate sobre identidades docentes no trabalho em berçários, o pensamento de autores que são referências no campo dos estudos culturais como Stuart Hall, Nestor Canclini e Michel Foucault ao lado de formulações de pesquisadores brasileiros que, na atualidade, discutem os rumos da educação infantil, como Sônia Kramer, Kuhlmman Junior, Fúlvia Rosemberg, entre outras contribuições. Mesmo tendo feito a opção pelo caminho da multiplicidade teórica, no decorrer da pesquisa e com base nos conteúdos que foram emergindo a partir da análise dos dados do estudo empírico, alguns grandes eixos foram se evidenciando como estruturantes nessa investigação. Desse modo, para discutir assuntos relacionados a identidades de docentes que atuam em berçários no contexto da educação infantil por meio do enfoque dos estudos culturais, transitei por diferentes ideias referentes à: identidade, cultura, gênero e poder. A seguir, após uma breve contextualização acerca dos estudos culturais, passo a apresentar, sucintamente, as principais discussões teóricas que deram embasamento a este estudo. Os estudos culturais, que se originaram dos estudos literários e históricos, de acordo com Mattelart e Neveu (2004), surgiram no pós-guerra na década de 1950 na Inglaterra, organizando-se a partir de um movimento deflagrado por intelectuais da nova esquerda britânica (New Left), a partir do qual se passou a questionar o papel da cultura com relação à manutenção ou contestação da ordem social. Essas novas elaborações conceituais colocavam em debate as oposições entre cultura legítima e cultura de massa ou entre alta e baixa cultura, ou ainda, entre cultura nacional e os modos de viver de determinados grupos sociais. Com raízes filosóficas, políticas e epistemológicas pautadas no marxismo, os estudos culturais propunham, em sua origem, um processo de desconstrução de uma visão hierarquizada de cultura, dando ênfase e visibilidade às práticas culturais das classes populares e ao seu papel de resistência frente à ideologia da classe dominante.

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Essa primeira fase dos estudos culturais recebia uma forte influência do pensamento marxista. Buscava-se, entre outros aspectos, compreender a formação social e histórica dos produtos artísticos e culturais, com base na premissa marxista que explicava o funcionamento da sociedade em termos de uma base econômica que determina a sua superestrutura. De acordo com Schulman (2006), nesse debate intelectual recorria-se às ideias de Althusser, que considerava a cultura como um aparelho ideológico de reprodução do status quo, ao qual a classe trabalhadora estaria submetida, sem poder reagir a essa força implacável. Todavia, esse determinismo econômico defendido por alguns marxistas passou a ser questionado por autores como Richard Hoggart e Raymond Williams, que reconheciam o reflexo da estrutura política, econômica e social nas manifestações culturais da sociedade capitalista, mas que também buscavam investigar os movimentos de mudança e resistência que emergiam das muitas interações entre as culturas populares e as da elite em contextos específicos. Esse questionamento se pautava nas concepções de Gramsci sobre hegemonia, a partir das quais o panorama cultural poderia ser concebido como um campo de batalha em que os diferentes grupos sociais interagem, lutam e definem novos significados. A partir dessa perspectiva, os efeitos da ideologia podiam ser localizados e examinados mais pontualmente nos diversos contextos. Assim, como explica Escosteguy (2006), os estudos culturais que iniciaram seu projeto intelectual propondo uma crítica à visão elitista de cultura, bem como investigando as manifestações culturais da classe operária inglesa, foram se expandindo para os Estados Unidos e América Latina, como também ampliando seus objetos de estudos. Desse modo, passaram a abordar temas como etnicidade, consumo, a recepção da mídia pelas classes populares, entre outros, surgindo nesse contexto também as discussões em torno das questões envolvendo identidade, cultura, gênero e poder. No que se refere à questão da constituição da identidade, Stuart Hall (2009a), um dos principais intelectuais contemporâneos empenhados em sistematizar um corpo teórico para o campo dos estudos culturais, afirma que na pós-modernidade muitos campos de saber têm se ocupado da discussão desse assunto – filosofia, teorias do discurso, psicanálise, feminismo etc. – e, de acordo com o autor, trata-se de um fenômeno de difícil delimitação, principalmente quando se pretende desconstruir uma visão integral, originária e unificada de identidade. Desse modo, o autor defende que o conceito de identidade não é essencialista, não parte de um “núcleo essencial”, mas sim estratégico, posicional e “radicalmente” historicizado, em outras palavras, a identidade de um sujeito está intimamente relacionada à cultura da qual ele participa em determinado tempo e lugar.

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Contrapondo-se à ideia iluminista de que a pessoa teria ao nascer um núcleo imutável, Hall (2005) afirma que a partir das novas formas de organização social da pós-modernidade emergiu uma concepção de sujeito que não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente, mas que é composto por várias identidades, por vezes contraditórias, que se formam e se transformam continuamente. Sua definição não é mais biológica, mas sim histórica, já que a pessoa assume diferentes identidades em diferentes momentos e contextos, de acordo com os múltiplos sistemas de significação e representação cultural com que interage. Devido a esse caráter plural, o autor defende que se use o termo no plural – identidades –, assim como o fiz ao longo desta investigação, para referir-me à questão das identidades docentes no trabalho em berçários. De acordo com o pensamento do autor, um mesmo sujeito pode se identificar, ou ser identificado, por diferentes aspectos. A título de ilustração, uma mesma pessoa que atua com bebês poderia reconhecer-se como professora, como mãe, como cuidadora, entre outros papéis, de acordo com as situações que vivencia. Analisando os vários arranjos identitários possíveis em determinados contextos, Hall chega ao seu conceito de jogo de identidades, afirmando que aquilo que hoje se define por “crise de identidade” nada mais é do que a tentativa do sujeito de se ajustar a um ideal de identidade, unificado, fixo e estável. Segundo o autor, de acordo com os significados e representações que constrói em diferentes contextos, o sujeito se desloca de um papel a outro. Com base em pressupostos da psicanálise, Hall (2005) explica que a imagem do “eu”, inteira e unificada, é algo que a criança aprende apenas gradualmente, com dificuldades, e o seu desenvolvimento natural não parte de um núcleo interior, mas sim é configurado a partir do “olhar” do outro, ou a partir “do exterior que a constitui” (HALL, 2009a, p. 106). Essa tentativa de moldagem de acordo com o outro, fundada na projeção e na idealização, é carregada de ambivalência e de sentimentos de amor e ódio. Hall constata, assim, que o sentimento de pertencimento a determinado grupo sempre tem sua origem no imaginário, em um processo simbólico. Baseado em conceitos da linguística, Hall (2005) enfatiza ainda o papel da linguagem no processo de constituição das identidades. Segundo explica o autor, nenhum indivíduo é realmente autor das suas afirmações nem dos significados que expressam, já que só se podem produzir significados a partir das regras da língua e dos sistemas de significados da cultura, incluindo-se aí o significado de sua identidade. Por esse motivo, a questão da análise dos discursos torna-se central na investigação dos processos de constituição das identidades, já que as práticas discursivas legitimam as muitas posições que o sujeito ocupa, o que poderemos observar na análise das narrativas das docentes e do docente que participaram da pesquisa.

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A questão do hibridismo é, também, um aspecto central no pensamento de Hall (2005, 2009b), principalmente no que se refere à formação das identidades culturais nas situações de diáspora. Esse termo, historicamente, teve sua origem na retirada dos judeus de Israel com uma conotação de exclusão, expulsão e isolamento de um povo. Hall (2009b) problematiza o mito diaspórico e as representações culturais que se manifestam acerca desse fenômeno social. Para o autor, nesse processo, ao mesmo tempo que a pessoa mantém laços com sua terra de origem, por outro lado, ela passa a ter como referência aspectos de uma nova cultura. Dessa forma, Hall afirma que as identidades se tornam múltiplas, e, mesmo quando o indivíduo sente o desejo de “voltar para casa”, isso já não é possível, pois ele passa a habitar esse entre-lugar na fronteira entre a sua realidade presente e a de sua origem. Hall (2005) afirma que o que ocorre no processo da diáspora é a formação de novas identidades que, mesmo mantendo fortes vínculos com seu lugar de origem, não sonham mais em voltar e passam a atravessar e intersectar as fronteiras da nova cultura. Para o autor, esse caráter híbrido, a partir do qual se configuram as identidades culturais na situação de diáspora, não pode ser facilmente desagregado, nem retornar aos elementos de origem. Essas pessoas aprendem a habitar no mínimo duas identidades e não conseguem mais sentirem-se unificadas, pois, em suas palavras, “estão irrevogavelmente traduzidas” (HALL, 2005, p. 89). Neste trabalho, procurei estabelecer uma analogia entre as concepções de Hall sobre o mito diaspórico e o processo de transição das creches do âmbito de órgãos assistenciais para a rede municipal de ensino da cidade de São Paulo, propondo a análise do encontro dessas diferentes culturas institucionais no que diz respeito à constituição das identidades profissionais. Desse modo, foi possível também inferir que a hibridação seria um aspecto decisivo para a discussão desse processo de constituição identitária – tanto da instituição quanto dos sujeitos nela implicados. Para discutir a questão específica das identidades profissionais, baseei-me nas proposições de Dubar (2005), que, partindo de um enfoque sociológico sobre os processos identitários, assim como Hall (2005), também procura estabelecer essa relação existente entre o eu e o outro no processo de constituição das identidades, como explica: A divisão interna à identidade deve enfim e sobretudo ser esclarecida pela dualidade de sua própria definição: identidade para si e identidade para o outro são ao mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática [...] Ora, todas as nossas comunicações com os outros são marcadas pela incerteza: posso tentar adivinhar o que pensam de mim, até mesmo imaginar o que eles acham que penso deles etc. Não posso estar na pele deles. Eu nunca posso ter certeza de que minha identidade para mim mesmo coincide com minha

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identidade para o Outro. A identidade nunca é dada, ela sempre é construída e deverá ser (re)construída em uma incerteza maior ou menor e mais ou menos duradoura. (DUBAR, 2005, p. 135).

O autor utiliza ainda o conceito de atos de atribuição para explicar as definições sociais a respeito daquilo que o sujeito é (identidade para o outro) e de atos de pertencimento, que estão relacionados com aquilo que a pessoa quer ser (identidade para si). Nem sempre essas duas identidades coincidem, e, nesse caso, ocorre o que o autor denomina de negociação identitária, um processo em que o sujeito busca maneiras para aproximar a identidade que lhe foi atribuída à outra que aceita (ou recusa). Nessa perspectiva, Dubar (2005) enfatiza que a identidade não se forja à revelia do sujeito, porém ela também prescinde do outro. Como veremos no decorrer deste estudo, o entendimento desse processo contribui para as discussões acerca das estratégias identitárias utilizadas pelos sujeitos envolvidos na pesquisa para justificarem a sua permanência na profissão docente em berçários, ajustando as suas representações sobre docência ao trabalho concreto que realizavam com os bebês. Assim, tanto Hall (2005) quanto Dubar (2005) concordam ao afirmarem que a relação que o indivíduo estabelece com o seu meio, em um determinado tempo e lugar, tem um papel estruturante na constituição de suas identidades. Outro aspecto que se mostrou central no debate proposto nesta pesquisa refere-se à forma como as múltiplas questões relacionadas à cultura se imbricam em tais processos identitários. Por este motivo, neste trabalho utilizei, intencionalmente, esse termo em sua forma plural – culturas. Diante da pluralidade de saberes, concepções, costumes e crenças que permeavam o trabalho de atendimento a bebês, identificar as diferentes culturas que coexistiam naquela instituição evidenciou-se como uma peça-chave na investigação do tema proposto. Tendo em vista que o estudo empírico foi desenvolvido em uma unidade infantil pertencente a uma rede de ensino, propus-me a investigar, particularmente, o impacto das culturas escolares no trabalho específico em berçários. Nesse propósito, analisei algumas concepções que discutem o conceito de culturas escolares de um modo geral, elegendo aquelas que pudessem vir a contribuir na discussão do caso específico dos centros de educação infantil. Para esse fim, apoiei-me nos estudos de Vidal (2005, 2009) a respeito de abordagens que tratam dessa temática, como as de Juliá (2001); Viñao Frago e Escolano (2001); Vincent, Lahire e Thin (2001); entre outros, que a partir da década de 1990, segundo a autora, passaram também a despertar o interesse da pesquisa educacional brasileira. De acordo com o que discute Vidal (2005), especialmente nos campos da história da educação, da sociologia e da antropologia, começou a surgir um crescente empenho em

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investigar problemáticas a partir do interior da escola, mediante a análise das práticas e das relações que se estabelecem no cotidiano escolar. Esse novo enfoque se contrapunha

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concepções que evidenciavam apenas o caráter da escola como reprodutora da estrutura social, lançando um olhar para todas as circunstâncias e elementos que pudessem vir a caracterizar uma cultura específica – ou culturas – nessa instituição. Seja nas relações que se estabelecem entre aluno e professor na sala de aula, entre crianças no pátio ou entre docentes, seja nas normas que regem o funcionamento das escolas ou nas diferentes formas de organização da vida escolar com relação a ambientes, conteúdos, materiais, distribuição do tempo e de atividades, tais abordagens passaram a identificar, in loco, as permanências e descontinuidades dessa(s) cultura(s) escolar(es) em relação aos diferentes contextos históricos, políticos e sociais. Nessa perspectiva, Juliá (2001), usando como metáfora uma expressão da aeronáutica, afirma que é necessário abrir a caixa preta da escola, definindo cultura escolar como: um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação de comportamentos; normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou simplesmente de socialização). [...] Mas, para além dos limites da escola, pode-se buscar identificar em um sentido mais amplo, modos de pensar e de agir largamente difundidos no interior de nossas sociedades, modos que não concebem a aquisição de conhecimento e de habilidades senão por intermédio de processos formais de escolarização. (p. 10-11).

Juliá (2001) sugere assim que, embora produzida no âmbito da escola, a cultura escolar também ultrapassa os seus muros e se incorpora ao contexto social e cultural a que pertence, refletindo-se nas relações de poder que permeiam as sociedades. Buscando delimitar essa especificidade da cultura escolar, conforme apontam as pesquisas de Vidal (2005), vários outros autores propuseram diferentes ideias e concepções sobre o que de fato ocorre no interior das escolas em diferentes contextos, analisando aspectos invariáveis e aqueles que sugerem processos de transformação. Antonio Viñao Frago, como explica Vidal (2005), propõe um conceito mais amplo de cultura escolar, preferindo o termo “culturas escolares” (no plural, assim como utilizo neste estudo), isso porque, para esse autor, cada escola possui uma singularidade, assim como cada grupo de profissionais que nela atuam também apresenta suas especificidades, podendo, nessa ótica, haver tantas culturas escolares quantas forem as instituições de ensino. Para esse autor, as culturas escolares, transitando entre professores e alunos, normas e teorias, englobam tudo o que acontece no interior da escola: atos e ideias, mentes e corpos, objetos e condutas, modos de

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pensar, dizer e fazer, práticas discursivas etc. Viñao Frago e Escolano (2001) destacam ainda como aspecto central na caracterização das diferentes culturas escolares a forma como os tempos e os espaços são organizados nas escolas e como esses aspectos materiais se relacionam com a corporeidade dos sujeitos que aí convivem, como foi possível observar nos relatos das docentes e do docente acerca da rotina de cuidados dos bebês. Outra abordagem importante para a compreensão do conceito de culturas escolares, e da temática que propunha – a relação entre cuidado de bebês e cultura escolar –, é a proposta por Vincent, Lahire e Thin (2001), com relação à categoria forma escolar. Os autores afirmam que, somente a partir de uma análise sócio-histórica, é possível abandonar essa visão da forma escolar como natural, universal – e eterna –, e compreendê-la como uma configuração histórica singular que foi inventada nas sociedades europeias com o objetivo de atender a um determinado modelo de socialização da criança. Desse modo, Vincent, Lahire e Thin (2001) demonstram como a forma escolar se relaciona com as demais formas sociais, principalmente as políticas. Da mesma maneira que a forma escolar não se limita aos muros da escola, influenciando o meio social em que está inserida, ela também é atravessada por diferentes formas sociais, já que, além de possibilitar a transmissão de saberes e conhecimentos, a escola é, fundamentalmente, um lugar de exercício de relações de poder. Os autores constatam que a forma escolar, nos tempos atuais, configura-se como um modelo escolar de socialização que extrapola as fronteiras da escola, estando presente mesmo em domínios além do currículo, num processo de escolarização da sociedade. Constituindo-se como um modo de socialização legítimo e dominante, para os autores, a forma escolar influencia várias esferas sociais, como, por exemplo, as práticas esportivas, as atividades relacionadas à música ou à dança – por meio de sequências sucessivas, exercícios repetitivos e codificação dos saberes. Os autores alertam que todas essas atividades desenvolvidas a partir da forma escolar em diferentes contextos sociais têm um caráter disciplinador, que visa à aquisição de hábitos, de regularidade, de repetição, de respeito às regras, e têm como pano de fundo uma concepção da infância que considera crianças como sujeitos sociais separados dos demais sujeitos e que, portanto, estão suscetíveis a um tratamento específico: a educação. Se, ao longo da história, tornou-se um consenso em diversas abordagens educacionais o fato de que os rumos da escola são guiados por interesses sociais, econômicos, políticos e culturais em um determinado contexto, o conceito de forma escolar vem a demonstrar que, inversamente, na atualidade, as sociedades também estão atravessadas por essa tendência escolarizante, que se investe de grande poder nas relações que permeiam as diversas práticas

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sociais, e que também está na atualidade influenciando as práticas de cuidados de bebês no âmbito institucional, como nos centros de educação infantil. Embora as culturas escolares estejam, hoje, visivelmente presentes nas formas de organização dos centros de educação infantil e, por conseguinte, dos berçários, conforme pude observar nas narrativas das professoras e do professor que participaram da pesquisa, outros traços culturais coexistiam nesse mesmo contexto, como mencionei anteriormente. Essa multiplicidade de saberes, crenças, ideologias, costumes, legislações, diretrizes, currículos, que envolviam a todos no âmbito da instituição deram indícios de que para que eu pudesse me aproximar dos sujeitos concretos que lá atuavam, conhecer a origem de seus saberes e fazeres, as influências que sofriam em suas condutas profissionais junto aos bebês, seria necessário buscar formas mais abrangentes para interpretar esse contexto. Nesse sentido, passei a analisar as diferentes situações relatadas nas entrevistas com base nas concepções de Canclini (2008), no que se refere às culturas híbridas. Canclini (2008), a partir de uma análise do processo de modernização dos países na América Latina, confrontando o que é tradicional e o que é moderno, o que é culto e o que é popular, o que é arte e o que é folclore, o que é autoritário e o que é democrático, entre outros dualismos, nos conduz a uma percepção, assim como Hall (2005), de que um traço característico da modernidade é justamente a pluralidade. Segundo o autor, os cruzamentos socioculturais dão origem ao processo de hibridização das culturas, como, por exemplo, a forma como a memória – ou tradição – se relaciona com o novo na paisagem dos grandes centros urbanos em que se misturam “grafites, cartazes comerciais, manifestações sociais e políticas, monumentos: linguagens que representam as principais forças que atuam na cidade.” (CANCLINI, 2008, p. 301). Desse modo, o autor explica que a própria expansão cultural é uma das causas que intensificam a hibridação cultural, já que diferentes costumes e hábitos, como, por exemplo, as vidas no campo e na cidade grande, se encontram por meio das mídias eletrônicas (e, hoje, por meio dos recursos digitais). Canclini (2008) define ainda que no processo de hibridação das culturas há uma espécie de reorganização cultural do poder, em que, “obliquamente”, tais poderes se atravessam – ou se revezam – e dão origem a novos arranjos heterogêneos. Entre outras interpretações que foram possíveis ao longo da investigação a partir desse enfoque dos poderes oblíquos, foi possível destacar os poderes exercidos pelas professoras mais antigas na profissão docente em berçários. Em paralelo às orientações curriculares (SÃO PAULO, 2007b) que referendavam as atividades pedagógicas nos centros de educação infantil, ficou perceptível que em determinadas situações os saberes daquelas professoras advindos de suas experiências como mulheres e de seu

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conhecimento prático revestiam-se de poderes diante dos desafios cotidianos no que se referia aos cuidados dos bebês. Dessa maneira, outro aspecto central para a discussão do tema proposto se evidenciava: as questões de gênero. De acordo com Foucault (1993), no Ocidente, a partir do Cristianismo, o sexo tornou-se um aspecto central na constituição da identidade do sujeito. Para o autor, o reconhecimento de si como homem ou mulher seria o núcleo em que se aloja a nossa verdade como humanos. Hall (2009b), do mesmo modo, localiza a questão de gênero como um dos aspectos constitutivos nos processos de formações identitárias. Scott (1995), numa abordagem histórica, discute ainda como o gênero é um elemento que constitui as relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos: símbolos, conceitos normativos, concepções de política, identidade subjetiva etc. Segundo a autora, o gênero seria uma forma de dar significado às relações de poder, configurando uma categoria que define as relações sociais em diferentes contextos históricos. Em outras palavras, é possível pensar, por exemplo, sobre como diferentes instituições sociais, carreiras profissionais, regimes de governo etc. assumem aspectos femininos ou masculinos em diferentes momentos da história, como no caso do magistério que passou a ser reconhecido socialmente como uma profissão de mulheres, como discute Carvalho (1999), característica essa que se acentua em se tratando do campo específico da educação infantil. Criticando algumas tendências do movimento feminista, Nicholson (2000) alerta, porém, que a busca por uma identidade sexual comum para todos os homens e todas as mulheres da população humana, embora tenha representado um marco histórico para os movimentos feministas em sua luta por igualdade de direitos para as mulheres, também deu origem a concepções binárias. Essa contraposição homem/mulher não considera as diferenças existentes entre as próprias mulheres, entre os homens e as mulheres e entre as distintas formas de compreender o corpo em diferentes contextos. Nessa perspectiva, ao criticar o modelo hegemônico de masculinidade, Connell (1995) também aponta que o gênero e a sexualidade são constructos sociais e discursivos, opondo-se a abordagens deterministas que discutem esses conceitos com base exclusivamente em fatores sociais e biológicos, sem considerar outros aspectos, como relações de classes, etnias, culturas etc. Nesse sentido, a autora3 defende a existência de diferentes masculinidades e feminilidades. Nessa perspectiva, ao discutir como a 3

Ao me referir à autora o fiz no feminino porque atualmente Connell possui a identidade de gênero feminina, chamando-se Raewnyn Connell. No entanto, nas referências bibliográficas consta o nome que ela possuía à época da publicação da obra citada, Robert Connell, por ser uma obra já publicada.

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questão de gênero atravessava o processo de constituição das identidades docentes no trabalho com bebês, pude inferir que diferentes concepções de feminilidades e masculinidades (também no plural) coexistiam naquele contexto específico de um centro de educação infantil. Butler (2003a, 2003b, 2006) reconhece também o gênero como uma construção histórica e cultural, mas vai além. A autora defende ainda que o sexo é uma construção do gênero, tendo um caráter de performatividade, isto é, não se trata somente de um discurso, mas representa a materialização das normas do gênero, incidindo diretamente sobre os corpos dos sujeitos. Butler define como heteronormatividade as construções discursivas que, a partir de normas de condutas constantemente repetidas em várias instâncias sociais, políticas e culturais, controlam o sexo dos indivíduos sempre numa perspectiva heterossexual e imutável, reforçando o sistema binário homem/mulher. Nesse sentido, pois, o ‘sexo’ não apenas funciona como uma norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir – demarcar, fazer, circular, diferenciar – os corpos que ela controla. (BUTLER, 2003b, p. 153-154).

Ainda sob o enfoque dos estudos de gênero, outra importante dimensão que foi abordada no decorrer desta investigação referiu-se às reflexões sobre como o cuidado tornou-se culturalmente reconhecido como uma atividade feminina.4 Com base nos estudos de Ariès (2006) sobre o surgimento do conceito de infância e de Badinter (1985) a respeito do mito do amor materno, entre outros referenciais, situei como esse aspecto do cuidado como atributo das mulheres tornou-se naturalizado ao longo dos tempos na sociedade moderna, influenciando também a constituição da profissão docente, como discute Carvalho (1999) e Louro (2002). Atravessando todas as discussões propostas ao longo da investigação acerca da constituição das identidades das docentes que atuavam em berçários em meio às diferentes culturas coexistentes no âmbito de um centro de educação infantil, e o papel central que as questões de gênero ocupavam nesse processo, outro aspecto central foi evidenciado no que se refere à configuração das relações de poder no contexto em que se desenvolvia a pesquisa. Para essa discussão apoiei-me, sobremaneira, em algumas concepções de Michel Foucault. Para Foucault (1987, 1993), o poder não é apenas uma força controladora que a partir de um ponto central atua sobre os sujeitos numa relação vertical. Para o autor, o controle e a 4

Embora a questão do cuidado possa ser analisada sob vários outros enfoques no que se refere a aspectos éticos, filantrópicos ou à forma como também está relacionada à área da saúde, nesta investigação, dada a temática da pesquisa, optei por situá-la apenas no âmbito das discussões dos estudos de gênero.

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sujeição de um indivíduo pelo outro, assim como as resistências a essa condição, atravessam todas as relações cotidianas na vida em sociedade. O autor dedicou grande parte de seus estudos às relações de poder e à formação dos sujeitos nas sociedades modernas. Em seu livro Vigiar e punir (1987), por meio da análise de instituições como presídios, manicômios e escolas, Foucault demonstra como o poder incide sobre os corpos dos sujeitos no sentido de torná-los dóceis e eficientes – para a manutenção do sistema –, produzindo condutas, comportamentos e uma visão de mundo coerente com as normas e os saberes constituídos. Em outras palavras, o poder produz os sujeitos. Não se trata, porém, de uma visão determinista, pois Foucault defende que toda relação de poder traz em si mesma a possibilidade de resistência. Considerando a discussão de Vicent, Lahire e Thin (2001) acerca da tendência escolarizante que, hoje, perpassa a sociedade, bem como os debates que se travam na atualidade em torno do papel educacional dos centros de educação infantil e das profissionais que nele atuam, no decorrer desta pesquisa, o pensamento de Foucault, em relação ao poder disciplinador nas escolas, balizou as questões sobre como as culturas escolares se interpunham, ou não, nas práticas desenvolvidas com os bebês. No que se refere à análise sobre como o poder disciplinar é exercido nas escolas, Foucault (1987) examina vários aspectos que podem, ainda que indiretamente, contribuir para essa discussão específica sobre o trabalho em berçários. Para o autor, assim como nos conventos, quartéis, prisões e fábricas, a arquitetura das escolas também expressa a forma como é exercida a disciplina. Alguns prédios escolares são locais diferenciados dos demais e fechados em si mesmos. Os altos muros garantem o isolamento dos sujeitos e impedem o contato com outros indivíduos, a troca de ideias e de informações com o mundo. Os alunos são distribuídos de forma organizada pelos espaços em salas de aulas. O tempo escolar é meticulosamente estipulado ou quadriculado. O calendário escolar define as atividades a serem realizadas ao longo do ano letivo, um horário determina as aulas da semana e cada aula, por sua vez, é planejada passo a passo, de modo que o tempo seja completamente preenchido, havendo tempos curtos e determinados para os intervalos. A exemplo da marcha de uma tropa de soldados, crianças são colocadas em fila, precisam manter uma determinada postura ao sentar-se em sua carteira; gestos e movimentos corporais são controlados no sentido de otimizar o uso do tempo escolar, gerando eficiência, como, por exemplo, a correta postura exigida dos alunos para que consigam produzir uma boa caligrafia. A disciplina define ainda como cada corpo deve se posicionar com eficiência em relação aos objetos – lápis, caderno, borracha, carteira etc. –, e assim, segundo Foucault, o

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próprio corpo vai adquirindo um caráter de objeto, sempre a trabalhar e produzir até esgotar os seus limites. A constante vigilância dos espaços escolares e as sanções, seja por meio de punições leves ou humilhações para os que fogem ao padrão, seja na premiação dos que se sobressaem, controlam e produzem condutas e comportamentos. Dessa forma, vai se estabelecendo uma classificação hierárquica entre os indivíduos, de acordo com a sua capacidade de submeter-se a esse sistema disciplinar. O lugar que ocupa nessa classificação – como bom aluno ou aluno problema, na fileira dos fracos ou dos fortes – também funciona como recompensa ou punição. A constante avaliação – ou o exame – das aprendizagens e dos comportamentos por meio de provas, notas, boletins, registros dos alunos etc. ocupa um lugar central no disciplinamento escolar que, segundo o autor, se impõe de maneira sutil e invisível. Para Foucault (1987), é o fato de perceber-se sempre visto sem cessar que garante a sujeição à disciplina. Embora a realidade atual dos centros de educação infantil se distancie dessa forma de organização escolar analisada por Foucault, essa interpretação acerca da forma disciplinadora que rege as instituições escolares proposta pelo autor, em vários momentos da pesquisa, serviu como um aporte para as análises sobre a maneira como o poder disciplinar era exercido no interior dos centros de educação infantil, especialmente por meio da maneira como se organizavam os tempos, os espaços, os grupos de crianças, as rotinas de trabalho, bem como pela forma que assumiam as relações entre os sujeitos envolvidos naquele contexto. Lima (2007), ao analisar manuais de puericultura, demonstra que o conjunto dessas práticas, sob a influência da ciência médica, também se constitui, na acepção de Foucault (1987), como um dispositivo de poder. Esse disciplinamento da rotina de cuidados dos bebês exerce um rigoroso controle sobre os corpos das crianças por meio da prescrição de maneiras adequadas com relação à: amamentação, introdução de dietas de acordo com a idade; maneiras corretas de higienizar, banhar, vestir etc.; condutas com relação ao sono e atividades como banho de sol; controle do peso e do crescimento por meio de registros periódicos; brincadeiras e brinquedos adequados de acordo com a faixa etária; entre outras orientações. A exemplo do controle do tempo escolar, também os bebês são submetidos a uma intensa vigilância com relação aos horários destinados a cada uma dessas atividades, seja no âmbito doméstico ou institucional. Outra contribuição importante do pensamento de Foucault (2004) para o desenvolvimento desta pesquisa refere-se às suas concepções acerca da análise do discurso como meio de compreender a constituição do sujeito, bem como a maneira como diferentes práticas discursivas regulam a vida dos indivíduos em sociedade. No entanto, segundo explica

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Fischer (2001), para Foucault analisar um discurso não significa procurar o que está oculto por trás das palavras, mas sim procurar entender as relações que se estabelecem entre os próprios elementos que o compõem, pois, para o autor, a linguagem também constitui práticas. Entre tais elementos, um conceito central na teoria de discurso de Foucault, segundo Fischer, refere-se aos enunciados que estariam relacionados a conteúdos discursivos que irrompem em determinados tempos e lugares. Nessa linha de raciocínio, é possível identificar, por meio da origem de um determinado enunciado, a forma como historicamente tais ideias adquirem o estatuto de verdade e de controle – ou interdição – dos sujeitos. Por meio das narrativas das professoras e do professor que participaram da pesquisa foi possível identificar vários aspectos que contribuiriam para o entendimento de como tais profissionais se situavam e se reconheciam ao atuarem como docentes em berçários e como o discurso da instituição também se incorporava em suas falas. Nesse sentido, um dos enunciados que se manifestou de forma recorrente em seus discursos, assim como em documentos normativos que regem o funcionamento da instituição, em legislações, como também na literatura científica, diz respeito à crença na indissociabilidade entre o cuidar e o educar, a qual foi se constituindo ao longo do tempo como um ideal a ser atingindo nos projetos de educação infantil, expressando as ambiguidades entre concepções assistenciais e educacionais que circulam na instituição. As proposições de Foucault (1980) sobre a estreita ligação existente entre saber e poder contribuíram ainda para examinarmos os muitos saberes que são evocados no atendimento de bebês no contexto institucional e o jogo de poderes que se estabelece entre quem detém conhecimentos oriundos da experiência, verdades científicas, normas legais etc. Neste capítulo, procurei apresentar de forma sucinta os principais referenciais teóricos que deram embasamento a este trabalho. No entanto, no decorrer da investigação, outros conteúdos e contribuições teóricas, aqui não mencionados, também foram se agregando na busca de elucidação das questões que surgiam a partir da pesquisa empírica. No desenvolvimento das análises, tais concepções foram se entrecruzando, de modo que as discussões em torno dos quatro eixos aqui elencados – identidade, cultura, gênero e poder – estiveram presentes, em diferentes combinações, em vários momentos deste estudo.

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3 CONSTRUINDO UM PERCURSO METODOLÓGICO Ei-nos de novo face à pessoa e ao profissional, ao ser e ao ensinar. Aqui estamos. Nós e a profissão. E as opções que cada um de nós tem de fazer como professor, as quais cruzam a nossa maneira de ser com a nossa maneira de ensinar e desvendam na nossa maneira de ensinar a nossa maneira de ser. É impossível separar o eu profissional do eu pessoal. Antônio Nóvoa (2007, p. 17)

A multiplicidade de realidades e aspectos a serem considerados na condução da presente pesquisa, bem como o fato de sua fundamentação ter como principal referencial teórico o campo dos estudos culturais, levou-me à escolha de um enfoque qualitativo para o desenvolvimento do trabalho. A parte empírica da investigação foi realizada em um centro de educação infantil situado na cidade de São Paulo, aqui denominado CEI Freireano, vinculado à Secretaria Municipal de Educação, onde também atuei durante nove anos como diretora de escola. Nessa etapa da pesquisa, entrevistei sete professoras e um professor de educação infantil que atuam ou atuaram recentemente em berçários com crianças de 0 a 2 anos, conforme expus anteriormente. Convém destacar também que, como eu estive inserida no contexto investigado, na qualidade de pesquisadora e de diretora de escola, embora procurando preservar o caráter científico da pesquisa, não intencionei, em nenhuma etapa da investigação, uma pretensa neutralidade, mas sim procurei inserir as percepções objetivas e subjetivas que surgiram no transitar dessas fronteiras entre o meu papel acadêmico e de gestora escolar, como elementos a serem considerados na elaboração deste estudo. González Rey (2005), analisando a questão da subjetividade na pesquisa qualitativa, afirma que, de um modo geral, essa abordagem envolve a imersão do pesquisador no campo de pesquisa, que, além de passar a constituir o cenário social em que tem lugar o fenômeno estudado, por sua vez, também é constituído por ele. Bodgan e Biklen (1994) indicam também que o diálogo entre os sujeitos da investigação e o pesquisador nunca é neutro. Para os autores, uma das características principais do enfoque qualitativo é a preocupação com o contexto em que ocorre a pesquisa. Por esse motivo, tudo interessa ao pesquisador: o ambiente, os gestos, as expressões, as opiniões, a história das instituições, a origem de determinados termos e rótulos, como também, nas palavras dos autores, os próprios “sentimentos” experimentados pelo pesquisador durante a sua inserção no campo em que se desenvolve a investigação empírica.

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Ao contextualizar a história recente dos centros de educação infantil, não pude deixar de usar como fonte de informações a minha própria vivência pessoal e profissional com relação a essas instituições durante os últimos 30 anos. Como nos anos 1980 participei de movimentos sociais que, naquela época, reivindicavam melhores condições de vida para os moradores do mesmo bairro em que, hoje, atuo como diretora de escola, especialmente o movimento de luta por creches, as reflexões sobre o atendimento da infância e sobre o papel dos profissionais que atuam nesse campo sempre estiveram presentes em minhas buscas práticas e teóricas, conforme discuti anteriormente em outras produções acadêmicas (OLIVEIRA, 2000, 2009a, 2009b). Por outro lado, as mudanças estruturais que ocorreram na organização dessas instituições, no decorrer desse período, também incidiram diretamente sobre a minha própria trajetória profissional. Tendo ingressado em 1991 como pedagoga em uma creche municipal vinculada à Secretaria Municipal de Bem-Estar Social da cidade de São Paulo, assumi, em 1998, em outra unidade e por meio de concurso público, o cargo de diretora de equipamento social (denominação utilizada naquela época para a função da direção em creches). Em 2004, em paralelo às minhas atividades na direção, atuei também como docente no Programa ADI/Magistério (SÃO PAULO, 2002), uma proposta de formação em exercício para profissionais de centros de educação infantil, conforme relata Capestrani (2007). E, finalmente, em 2006, já no âmbito da Secretaria Municipal de Educação, obtive a transformação do cargo, tornando-me diretora de escola e ingressando, então, na carreira do magistério público municipal. Dessa maneira, todas essas vivências objetivas e subjetivas, por mim experimentadas em minha trajetória profissional, também estiveram presentes na condução dessa investigação e na pesquisa empírica desenvolvida no CEI Freireano, seja na formulação de questões abordadas nas entrevistas, seja em discussões teóricas ou ainda na análise de documentos oficiais da instituição. Assim, considerando as discussões de Bodgan e Biklen (1994) sobre o uso da abordagem qualitativa na pesquisa educacional, ao eleger esse enfoque no presente estudo, tive como intenção utilizar uma metodologia que me auxiliasse na busca de significados e sentidos que professoras de educação infantil vêm construindo em sua prática no atendimento de bebês no contexto institucional, tendo como ponto de partida as suas próprias vivências e as formas como interpretam as suas experiências profissionais. Interessava-me também, apoiada nos debates levantados no campo dos estudos culturais, situar como essa experiência profissional de atendimento à infância se constitui como processo identitário no que se refere às diferentes culturas e às relações de poder que permeiam a instituição num determinado tempo e lugar. Por tais razões, na escolha dos instrumentos metodológicos e na forma como pretendia conduzir a

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presente investigação, tive como preocupação a busca da “intersecção entre a estrutura social e acção humana” (BODGAN; BIKLEN, 1994, p. 61). Assim, ao analisar a prática de docentes que atuam com bebês em um centro de educação infantil, sem ter a pretensão de generalizar ou universalizar os aspectos que viessem a ser evidenciados, intencionei localizar as possíveis relações entre a experiência concreta desses sujeitos e os contextos em que estão inseridos – institucional, social, cultural, histórico ou outros que se apresentem no desenvolvimento da pesquisa. O CEI Freireano, conforme dados do projeto de gestão referente ao ano letivo de 2011 (acervo pessoal), foi inaugurado em 2003, e está localizado em um bairro de periferia da cidade. Com outras duas unidades escolares, Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) e Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF), e, ainda, ao lado de outros serviços públicos, como telecentro, teatro, biblioteca, departamento cultural e de esportes, o CEI está inserido em um programa educacional desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação (SME), que é supervisionado por uma Diretoria Regional de Educação (DRE). À época da realização da pesquisa de campo, o CEI atendia a 330 crianças na idade de 0 a 4 anos, organizadas em 14 salas de aula, distribuídas em dois pavimentos distintos – um piso térreo e um prédio anexo –, contando com uma equipe composta por 64 funcionários, sendo 54 professores de educação infantil, 5 auxiliares técnicos de educação, 3 agentes escolares, 1 coordenadora pedagógica e 1 diretora de escola, além de funcionários de serviços terceirizados (limpeza, cozinha, lavanderia e vigilância). O grande porte do CEI e o fato de estar localizado em um complexo educacional que oferece outros serviços públicos à população conferem a essa unidade infantil características diferentes em relação aos demais centros de educação infantil. Embora a região em que se situa o CEI fique distante do centro da cidade e apresente vários problemas sociais, econômicos e estruturais, o CEI Freireano está localizado na avenida principal do bairro, em um lugar privilegiado em termos de acesso ao transporte público e a várias outras localidades. Além de crianças provenientes de famílias pobres moradoras em locais mais distantes, também pessoas da classe média baixa local trocaram as escolas particulares por essa unidade pública, havendo uma grande disputa por vagas especificamente para esse CEI. Tal contexto faz com que a comunidade escolar apresente uma grande diversidade em suas características sociais e culturais. De acordo com legislações específicas da SME, anualmente, as turmas de crianças são organizadas, sendo respeitadas as diferentes faixas etárias atendidas pelo CEI e a proporção adulto/criança, ou seja, o número de alunos pelo qual cada docente ficará responsável naquele

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ano letivo. Na época em que foi realizada a pesquisa de campo, a proporção adulto/criança no Berçário 1 (crianças de 6 meses a 1 ano de idade) era de 7 bebês por professora e no Berçário 2 (crianças de 1 a 2 anos de idade) era de 9 crianças para cada docente (SÃO PAULO, 2010a). A proposta da pesquisa de campo foi apresentada para todas as professoras de Berçário 1 e Berçário 2 do CEI Freireano, durante uma reunião pedagógica no mês de agosto de 2011. Nesse encontro, toda a equipe docente, organizada em subgrupos, de acordo com a idade das crianças das turmas pelas quais eram responsáveis, realizava a avaliação do trabalho pedagógico desenvolvido na unidade durante o primeiro semestre, bem como o planejamento das ações para os meses seguintes. Participei, então, das discussões em dois desses subgrupos – professoras de Berçário 1 (0 a 1 ano) e professoras de Berçário 2 (1 a 2 anos), comunicando a elas que eu estava fazendo uma pesquisa sobre a identidade de docentes que atuavam com bebês e sobre o trabalho desenvolvido com essa faixa etária. Expliquei, ainda, que estava ali para convidá-las para participar dessa investigação por meio de entrevistas sobre as suas experiências profissionais. Ao contextualizar a temática por mim investigada, a questão da identidade de professoras de bebês e o trabalho desenvolvido nos berçários, muitas docentes manifestaram sua concordância com a importância do tema, relatando suas impressões sobre como sua prática ainda é pouco conhecida e valorizada na sociedade de um modo geral: “parece que a educação infantil começa aos 5 anos de idade”, concluiu o Professor Júlio, único docente do sexo masculino que atualmente trabalha em uma turma de berçário no CEI Freireano. Justifiquei a minha escolha em pesquisar essa temática, devido a pouca produção acadêmica que existe nesse campo, bem como às muitas controvérsias que permeiam o trabalho com bebês no âmbito dos CEIs, o que tem suscitado questionamentos e inquietações em minhas experiências profissionais na educação infantil, seja como diretora, pedagoga ou formadora de professores. A proposta suscitou ainda discussões sobre os preconceitos enfrentados pelas professoras de bebês e sobre os grandes avanços que os docentes percebem no desenvolvimento das crianças a partir de sua prática – o que era assunto da pauta naquele momento da reunião. Num dos grupos, uma docente levantou uma questão que possibilitou que eu delimitasse o meu papel como pesquisadora. A educadora manifestou a sua insatisfação pela falta de valorização de seu trabalho dentro do próprio ambiente de trabalho, devido à falta de apoio de outros profissionais, nos momentos em que, por exemplo, todas as crianças choram de fome ao mesmo tempo. Esclareci, então, que elas teriam plena liberdade nas entrevistas para expressar todas as suas impressões, mas que, porém, nenhuma intervenção direta de ordem pedagógica ou administrativa seria encaminhada a partir dos relatos, pois eu estaria, naquele momento,

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exercendo o papel de pesquisadora e não de gestora, mesmo sabendo que o fato de ser diretora da unidade e elas funcionárias da equipe a mim subordinada, também, seriam aspectos a serem enfrentados nesse processo por ambas as partes. Esclareci aos grupos que a participação se daria por adesão espontânea, comprometendo-me a tratar de forma ética e criteriosa as informações a mim confidenciadas, usando pseudônimos para identificar suas narrativas; e também não utilizando os conteúdos abordados durante a entrevista em minhas ações como diretora da unidade. Do mesmo modo, solicitei aos docentes que estivessem dispostos a participar da pesquisa que evitassem tratar de assuntos específicos da organização da unidade durante os nossos encontros. Para algumas professoras presentes, não seria a primeira vez em que experimentariam estar ao lado da diretora da unidade num outro papel, pois, também, em paralelo à nossa convivência profissional no CEI, já haviam sido minhas alunas no curso ADI/Magistério (SÃO PAULO, 2002). O único critério que propus ao grupo para a participação na pesquisa era que estivessem preferencialmente atuando em berçário no momento da entrevista ou que já tivessem atuado anteriormente com bebês por períodos significativos no CEI Freireano. Busquei, durante esse nosso primeiro diálogo, incentivar a participação de diferentes profissionais, visando a garantir que o grupo de entrevistados se constituísse de forma heterogênea no que se refere a sexo, idade, diferentes percursos profissionais, escolaridade, entre outros aspectos. Nesse sentido, posteriormente, convidei para participar da investigação uma professora – Laura – que se encontrava afastada por problemas de saúde, dada a sua vasta experiência na unidade no trabalho com bebês. Partindo, então, da manifestação de interesse das demais docentes, foram realizadas entrevistas com sete professoras e um professor de educação infantil. Na condução desse estudo empírico, inspirei-me, sobretudo, em abordagens biográficas – ou histórias de vida – amplamente utilizadas na atualidade em pesquisas educacionais como defende Moita (2007): Esta abordagem permite compreender de um modo global e dinâmico as interacções que foram acontecendo entre as diversas dimensões de uma vida. Só uma história de vida permite captar o modo como cada pessoa, permanecendo ela própria, se transforma. Só uma história de vida põe em evidência o modo como cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com os seus contextos. Numa história de vida podem identificar-se as continuidades e as rupturas, as coincidências no tempo e no espaço, as ‘transferências’ de preocupações e de interesses, os quadros de referência presentes nos vários espaços do quotidiano. (p. 116-117).

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Nóvoa (2007) ressalta que, na atualidade, a atenção concedida às abordagens biográficas – ou (auto) biográficas – no campo científico é reflexo de um movimento social mais amplo e de uma mutação cultural, a partir dos quais se faz “reaparecer os sujeitos face às estruturas e aos sistemas, a qualidade face à quantidade, a vivência face ao instituído” (NÓVOA, 2007, p. 18). Bueno (2002) explica que nessa “viragem”, sobretudo nas ciências da educação, a subjetividade passa a se constituir na questão central das novas formulações teóricas e propostas no campo educacional. Segundo a autora, o método biográfico – também denominado autobiográfico ou histórias de vida – é um recurso metodológico que foi amplamente utilizado nas décadas de 1920 e 1930 pelos sociólogos americanos da Escola de Chicago, caindo posteriormente em desuso. Somente a partir da década de 1980, o método é retomado no campo da sociologia, sendo também usado largamente, a partir dessa época, em pesquisas educacionais e em projetos de formação contínua do professor, despertando, no meio acadêmico, inúmeras discussões quanto aos procedimentos e aspectos epistemológicos dessa abordagem. Bueno (2002), partindo das ideias do sociólogo italiano Franco Ferrarotti (1991), um dos autores que mais tem se destacado na discussão sobre a especificidade do método (auto)biográfico, explica que nesse tipo de recurso metodológico podem ser utilizados dois tipos de material: os materiais biográficos primários, obtidos por meio de narrativas ou relatos (auto)biográficos; e os materiais biográficos secundários, como correspondências, diários, narrativas diversas; documentos oficiais; fotografias etc.; cuja produção não teve como objetivo o uso na pesquisa. Todavia, Nóvoa (2007) alerta-nos quanto às críticas que essa abordagem vem recebendo, especialmente de algumas correntes da psicologia e da sociologia. Tais questionamentos referem-se à sua frágil consistência metodológica, especialmente pela ausência de validade científica ou pela excessiva referência a aspectos individuais, ou ainda pela sua incapacidade de apreender as dinâmicas coletivas de mudança social, apontando, assim, o autor, para a necessidade de se conseguir uma integração teórica, que seja capaz de melhor traduzir a complexidade das práticas docentes. Para explicar como a subjetividade contida nas narrativas autobiográficas pode ser usada como objeto de conhecimento científico, Ferrarotti (1991) recorre a argumentações que vão de Marx a Sartre, afirmando que toda a práxis humana revela as apropriações que o indivíduo, por meio de suas relações, faz das estruturas sociais. Nesse sentido, Ferrarotti (1991) enfatiza a importância dos aspectos biográficos dos grupos primários a que os indivíduos pertencem, como a família, grupos de pares, colegas de trabalho, vizinhos, parceiros de escola ou amigos.

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Localizando uma progressão simultânea da biografia para a sociedade e da sociedade para a biografia, Ferrarotti (1991) afirma: Cada indivíduo não totaliza directamente a sociedade inteira, ele totaliza-a por meio de seu contexto social imediato, os pequenos grupos de que faz parte; nestes grupos são, por seu turno, agentes sociais activos que totalizam o seu contexto, etc. De modo similar, a sociedade totaliza cada individualidade específica por meio das instituições mediadoras que focalizam esta sociedade no indivíduo com crescente especificidade. (p. 174).

Por outro lado, Goodson (2007) declara que estudos, com base na história de vida dos professores, associados às “histórias de vida” das escolas, das disciplinas e da profissão docente podem contribuir sobremaneira para uma reconceitualização da investigação educacional, na medida em que, conforme expressa o autor, essa abordagem dá voz ao professor. Goodson (2001), em suas discussões, sustenta ainda que, assim como o professor promove o desenvolvimento do currículo, por sua vez, o currículo também influencia o desenvolvimento do professor. Pode-se depreender a partir dessa reflexão que a abordagem biográfica permite não só o conhecimento das experiências específicas dos docentes, mas também do contexto institucional em que estão inseridos. Bueno (2002), apoiada nas ideias de Ferrarotti, alerta, porém, que essa relação entre a história individual e a história social não se dá de forma linear, nem determinista, pois cada indivíduo é um sujeito ativo que se reapropria constantemente e de forma singular de seu universo social e histórico. Nessa perspectiva metodológica, ao utilizar alguns aspectos biográficos dos sujeitos que foram entrevistados, procurei conhecer a realidade desse grupo específico de docentes, como também situar essas informações – apoiada em outros dados obtidos por meio de pesquisas bibliográficas e documentais – em relação a diferentes contextos sociais, históricos e culturais em que está inserido o CEI Freireano. Adotando uma estrutura semiestruturada de entrevista, conforme define Haguette (2003), e sem ter a pretensão de esgotar todos os aspectos da biografia de cada uma das docentes e do docente entrevistados, o roteiro por mim elaborado (Apêndice 1) baseou-se em quatro grandes eixos temáticos, a saber: 1. A história de vida das professoras, sobretudo sua trajetória profissional; 2. Representações e expectativas sobre sua identidade profissional como docente;

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3. Opiniões sobre as questões de gênero que perpassam a atividade profissional com bebês; 4. Percepções sobre as práticas desenvolvidas em berçários, especialmente as suas concepções sobre currículo. Intencionalmente, em vez de propor um questionário com questões fechadas sobre os dados pessoais de cada docente, optei por possibilitar que cada uma das professoras e o professor entrevistados se apresentassem a partir dos aspectos que julgassem mais relevantes. As demais questões propostas no roteiro também foram apresentadas de modo a permitir a manifestação de outros temas ou assuntos que surgissem durante a entrevista, procurando estabelecer entre mim, como pesquisadora, e a(o) entrevistada(o) o que González Rey (2005, p. 126) define como “dinâmica conversacional”, processo que, segundo o autor, possibilita “conduzir a pessoa estudada a campos significativos de sua experiência pessoal”. Bodgan e Biklen (1994) destacam, ainda, em sua discussão sobre a investigação qualitativa, a importância do conhecimento do ambiente habitual em que ocorrem as ações investigadas. Na opinião dos autores, os locais onde são desenvolvidas as pesquisas, num enfoque qualitativo, têm um papel de grande relevância em termos de contextualização da história das instituições a que pertencem. Com exceção da entrevista realizada na residência da professora Laura – em virtude de encontrar-se afastada do trabalho por problemas de saúde –, todas as demais entrevistas foram realizadas no próprio CEI que, na ocasião da pesquisa de campo, não dispunha de sala de professores, coexistindo num só ambiente a sala de direção, da coordenação pedagógica e a secretaria, não havendo, pois, como garantir privacidade também nesses ambientes. Nesse sentido, a cada encontro procurávamos espaços alternativos para a realização das entrevistas, como refeitório de funcionários, biblioteca ou sala administrativa do complexo educacional onde a unidade está inserida. De acordo com a necessidade manifestada por cada docente , as entrevistas tiveram diferentes durações. Algumas foram realizadas em dois encontros de, aproximadamente, uma hora e meia, outras em apenas um período num mesmo dia, as quais foram gravadas e posteriormente transcritas por mim. A pesquisa foi realizada mediante autorização emitida pela Diretoria Regional de Educação a qual estava subordinado o CEI Freireano, com base nas orientações previstas pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos – CEP

da Escola de Artes, Ciências e

Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP). Cada participante assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, em que foram explicitados os objetivos do trabalho, como também garantido o sigilo das informações prestadas. Tive, ainda, o cuidado de

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solicitar a cada uma das docentes, ao final de cada entrevista, que escolhesse o pseudônimo a ser utilizado para identificar a sua narrativa, a fim de que pudesse, assim, atribuir ao nome fictício significados que fossem relevantes em sua história pessoal, conforme veremos no capítulo seguinte, em que apresentarei uma breve caracterização dos sujeitos da pesquisa.

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4 SETE PROFESSORAS, UM PROFESSOR, MUITAS HISTÓRIAS E UM LUGAR COMUM: O BERÇÁRIO Ah! Berçário pra mim teria rede, uma delícia! Teria rede ao invés daqueles quadradinhos. Redinha pra balançar criança, pra acalentar... Professora Laura

O costume de dormir em rede, comum em algumas regiões do Nordeste do país, surge na narrativa da professora Laura como uma memória prazerosa da infância, que ela relembra ao refletir sobre as condições ideais de trabalho em um berçário. Esse fato ilustra os caminhos que procurei trilhar nesta pesquisa, buscando, a partir do relato das histórias de vidas das docentes e do docente que dela participaram, tecer uma trama de significados envolvendo aspectos sociais, culturais, históricos, subjetivos, de gênero, entre outros, que nos permitissem conhecê-las por meio de diferentes enfoques. Essa escolha metodológica, como vimos anteriormente, teve como intenção trazer para a discussão da constituição de suas identidades profissionais as suas próprias narrativas acerca das trajetórias que cada um dos sujeitos percorreu até que se tornasse professora – e professor – de educação infantil – no trabalho com bebês em um contexto específico, qual seja, um berçário em um centro de educação infantil na cidade de São Paulo, aqui denominado CEI Freireano. Como afirma Nóvoa (2007), é impossível dissociar o eu-pessoal do eu-profissional. Falar sobre a constituição da identidade profissional de uma pessoa, como discute Moita (2007), demanda reconhecer o desenho que se estabelece entre o universo profissional e outros universos socioculturais. Nesse sentido, conhecer suas histórias, suas origens, sua organização familiar, seus projetos de vida, as marcas da sua infância, seus sonhos, conquistas, decepções, entre tantos outros aspectos presentes nas trajetórias de vida dessas docentes, é também uma tentativa de buscar uma maior aproximação dos sujeitos concretos que hoje realizam esse trabalho. Por esse motivo, nessa breve incursão em suas biografias, não me propus a identificar um perfil único que pudesse caracterizar as profissionais dessa área, embora reconheça algumas semelhanças e diferenças que as levaram a esse lugar comum: a docência em berçários. Com base no pensamento de Hall (2005), de acordo com o que discuti anteriormente, busquei analisar a constituição dessas “identidades profissionais” numa visão plural, múltipla e que não pretende localizar um “núcleo essencial” do sujeito, mas sim reconhecer as suas diferentes configurações e estratégias em diferentes tempos, lugares e posições. Da mesma maneira, não

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procurei caracterizar tipos de identidade, como o faz Dubar (2005), mesmo porque o universo de sujeitos que participaram da pesquisa era pequeno. Desse modo, neste capítulo, apresento de forma sucinta as professoras e o professor que participaram desta pesquisa, cujos nomes fictícios foram escolhidos por elas e por ele mesmos. Buscando um melhor entendimento do contexto histórico da instituição, os sujeitos foram aqui apresentados de acordo com a ordem cronológica em que ingressaram na carreira. Pretendo, assim, que suas histórias, percepções, subjetividades, opiniões – e também as suas vozes, na concepção de Goodson (2007) –, acompanhem as demais discussões teóricas propostas ao longo desta investigação. 4.1 TRAJETÓRIAS DE VIDAS 4.1.1 PROFESSORA JOYCE Joyce, que na ocasião da entrevista tinha 51 anos, nasceu em São Paulo (capital). Os pais eram baianos; ela era casada, sendo mãe de dois filhos com 29 e 31 anos de idade. A docente referiu-se à separação dos seus pais e ao segundo casamento da sua mãe, afirmando que também “amava” seu padrasto e que a união era um traço característico que vinha atravessando as gerações em sua família: E a gente é uma família muito unida. Eu e minha irmã, as pessoas invejam, é igual meus filhos. As pessoas falam que eles dois puxaram a nós duas, porque eles não se largam pra nada, e eu e minha irmã também é uma ligação muito forte. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

O trabalho em creche surgiu como uma oportunidade de trabalhar fora e, ao mesmo tempo, conciliar o cuidado dos filhos, que, quando crianças, frequentaram a mesma unidade infantil em que ela trabalhava: praticamente eu criei meus filhos em CEI. Quando eu entrei na prefeitura eu estava grávida bem de pouquinho e meu filho mais velho tinha 1 ano e 8 meses. [...] Foi muito gratificante porque na época pra mulher trabalhar era muito difícil. Quem iria olhar duas crianças pequenas? Se eu fosse pagar não compensaria o salário. A prefeitura pra mim foi uma bênção. Um lugar que você vai, trabalha, cuida de outras crianças e sabe que seus filhos também estão sendo cuidados. Eu agradeço todos os dias que eu levanto. Deus foi muito bom comigo. E a creche quando eu comecei a trabalhar era bem pertinho de casa. Acho que só tinham umas cinco creches no bairro. Quando estavam construindo eu passava em frente e eu pensava ‘Ai que sonho, que

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desejo de trabalhar nessa creche!’. Quando abriram o concurso eu fui rapidinho. Quando eu vi que passei... Todas as experiências de creche foram muito boas pra mim. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

Ela está há 30 anos na instituição, tendo ingressado em creche como pajem contratada e se efetivado em concurso público, em 1990, como ADI. Quando ingressou na creche, possuía apenas o “ginásio completo”. Em 2003, participou do Programa ADI/Magistério, curso de formação em exercício em nível médio promovido pela rede municipal, e, então, transformou seu cargo em Professora de Desenvolvimento Infantil (PDI) (SÃO PAULO, 2003), que, posteriormente, teve sua denominação mudada para Professora de Educação Infantil (PEI) (SÃO PAULO, 2007a). Desse modo, Joyce passou por todas as fases e mudanças da carreira das profissionais de creches públicas da rede municipal de São Paulo e a sua trajetória profissional reflete a própria trajetória da instituição: “Foram quatro nomes: pajem, ADI, PDI e PEI e acho que vai parar por aí!” (PROFESSORA JOYCE, 2011). Em 2007, concluiu o curso normal superior, modalidade Ensino a Distância (EaD) semipresencial. No CEI Freireano, na época da entrevista, era responsável por uma turma de Berçário 2. Joyce afirmou ter preferência em trabalhar com os bebês, mas, também, sempre que possível procurava acompanhar a mesma turma do Berçário 1 até o Mini Grupo 2, momento em que a criança deixava o CEI. Em paralelo às suas atividades na creche, trabalhou com educação de adultos no Movimento de Alfabetização de Adultos (MOVA) durante três anos. 4.1.2 PROFESSORA LUIZA Com 55 anos de idade, Luiza apresentou-se como “separada” e mãe de duas filhas. A história de Luiza atravessava três diferentes regiões brasileiras: os pais eram pernambucanos (Nordeste), ela nasceu em Adamantina, no interior de São Paulo (Sudeste) e foi “criada” e viveu no Paraná (Sul) durante 20 e poucos anos, onde os pais eram lavradores. Lá no Paraná fez o “ginásio” e, aos 19 anos, com essa escolaridade, começou a lecionar em escolas rurais para crianças de 1ª a 4ª série, como relata em sua entrevista: A gente tinha quatro turmas, 1ª até 4ª série. Mas lá a gente com a 8ª série a gente já podia lecionar porque era uma falta de professores, porque nem todo mundo queria ir pros sítios dar aula. E a gente tinha que fazer a merenda e no final de semana a gente tinha que limpar a escola, fazia mutirão. E eu gostava, é tanto que partir para fazer o magistério aqui em São Paulo, porque era o meu fraco, criança. [...] Só que como lá era pela prefeitura, a gente não era registrada, não era nada. Era um tipo de contrato. A gente tinha um livro de chamada, tudo como manda o figurino. Tinha a supervisora que dava visto e

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eu tenho um caderno guardado até hoje. Foi gratificante, foi muito bom. A minha família morava na cidadezinha e de manhã eles buscavam a gente pra dar aula nas fazendas e nos sítios. (PROFESSORA LUIZA, 2011).

Luiza mudou-se com os irmãos para São Paulo e veio morar na casa de tios. Em 1981, há 30 anos, começou a trabalhar em creche como pajem, sendo aprovada em um processo de seleção que exigia a 4ª série primária e experiência com crianças. Luiza explica que, como tinha cuidado de seu irmão adotivo desde bebê, essa experiência teria servido para que fosse contratada. Logo depois, cursou o magistério, porém, mesmo com essa formação, não conseguiu ser aprovada no primeiro concurso público para ADI, ressaltando que, naquela época, isso “não valia”, vindo a se efetivar nesse cargo apenas em 1992. Em 2003 (SÃO PAULO, 2001b), quando as creches já haviam mudado da Secretaria Municipal de Assistência Social (SAS) para a Secretaria Municipal de Educação (SME), como ela já possuía habilitação em magistério, foi uma das primeiras a transformar o cargo para PDI, que, em 2007, passou a ser denominado PEI. A docente está há oito anos no CEI Freireano e, com exceção apenas de um dos anos letivos, durante todo esse período trabalhou em turmas de Berçário 1 por escolha, já que é uma das primeiras na classificação das professoras da unidade. Luiza afirmou estar aguardando completar o tempo necessário no cargo de professora para solicitar a aposentadoria, justificando que, embora conheça e saiba trabalhar com os maiores, prefere os bebês, pois ela “já está um pouco cansada, né?” (PROFESSORA LUIZA, 2011). 4.1.3 PROFESSORA ISABEL Isabel, à época da entrevista, tinha 45 anos de idade. Ela também se apresentou como “separada” e mãe de dois filhos, sendo que o mais velho estava cursando a faculdade e o mais novo a 7ª série do ensino fundamental. Isabel é paulistana e vem de uma família grande composta por nove irmãos. É negra e afirma que adora a sua cor. A creche foi a primeira e única experiência profissional de sua vida. Isabel contou que, como na sua família ela era a única a se interessar pelos estudos, sua mãe não deixava que ela trabalhasse: Ela achava que se eu fosse trabalhar eu ia perder o bom que era o estudo e ela dizia: ‘Sem estudo vocês não vão ser nada, então estude!’ Minhas irmãs tinham um pouco de ciúmes, mas eu era a queridinha da mamãe! Quando eu entrei, ali ao meu redor, quando eu fiz os exames, tinham muitas pessoas assim novinhas, da minha idade. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

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Isabel relatou que até os 18 anos idade ela se dedicou exclusivamente aos cuidados das crianças da sua família, porém, também, nutria sonhos com relação ao seu futuro profissional, como explica: Na verdade quando eu era menor ou eu queria ser médica pediátrica [sic] ou queria ser professora mesmo. Tinha paixão! Tanto é que eu olhava meus sobrinhos e minhas sobrinhas. Só que foi indo, foi indo e o destino me trouxe pra ser professora mesmo. Estou na prefeitura desde 1985, já tô quase virando, como se diz na prefeitura, ‘patrimônio’! (PROFESSORA ISABEL, 2011).

Em 1985, passou por uma seleção para trabalhar na creche e, como já tinha o “ginásio”, foi contratada como ADI e, em 1990, prestou concurso e se efetivou nesse mesmo cargo. Em 2005, assim como Joyce e Laura, após cursar o Programa ADI/Magistério, obteve a transformação de seu cargo para PDI, posteriormente denominado PEI. Em 2007, também ao lado de Joyce e Laura, concluiu o curso normal superior, modalidade EaD semipresencial. No início da sua carreira trabalhou 12 anos com turmas de jardim e pré porque, segundo Isabel, ninguém queria aquelas turmas. Então “se cansou” e de uns anos para cá, no CEI Freireano, sempre escolheu berçário: Eu sempre escolho berçário pra trabalhar porque pra mim eu acho uma fase muito interessante. Não são eles que aprendem com a gente, é a gente que aprende com eles. A gente acaba entendendo o que eles querem, o que eles estão falando mesmo não sabendo, mas só pelo gesto, pela olhada que eles dão, pelo choro. Então a gente acaba aprendendo muito. É uma fase em que eu me divirto muito, porque eles estão aprendendo. Geralmente você acha engraçado o que... o jeito que eles falam, na hora que estão andando dão os passinhos e caem. Aqui neste CEI eu sempre escolhi berçário. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

4.1.4 PROFESSORA MARIA CECÍLIA Com 59 anos de idade, Maria Cecília informou que era solteira e, entre as mulheres entrevistadas, foi a única que afirmou não possuir filhos. Porém, logo no início de seu depoimento, explicou que tinha “seis sobrinhos e cinco sobrinhos netos”. A família era do interior de São Paulo, mas ela e os irmãos nasceram na capital. Segundo destacou Maria Cecília, sua família era muito unida e todos eram católicos praticantes e isso era, para a docente, um motivo de orgulho: A minha família é uma família comum. [...] Naquele tempo não se ganhava nada, se lutava pra tudo. E foi assim. [...] Eu tenho orgulho da minha família,

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que eu tenho uma família unida, nós somos católicos, praticantes. E nós temos essa mania: se alguém está passando um problema já pede oração. E nós somos assim, todo mundo avisa onde vai, mesmo os casados. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Antes de ingressar na creche, trabalhou em uma firma e depois, por conta própria, em um bazar. Começou a cursar pedagogia e a trabalhar como professora eventual na 4ª e 8ª séries, mas logo, em 1990, foi aprovada em concurso público e começou a trabalhar em creche como ADI. Maria Cecília contou que naquela época não havia um processo formal de atribuição de turmas de crianças. Era a diretora da creche quem decidia, de acordo com o perfil da profissional e das necessidades administrativas da unidade, qual grupo seria atribuído às ADIs e pajens. Maria Cecília trabalhou durante três anos com grupos de crianças maiores, porém, quando assumiu o Berçário 1, ela e a diretora ficaram satisfeitas com o seu desempenho com os bebês. Desde lá, há 18 anos, ela só escolhe berçário. Em 2003, Maria Cecília, após a transição dos CEIs para a SME, conseguiu transformar o cargo para PDI, porém, na época, foi necessário enviar uma consulta para o Conselho Municipal de Educação (CME), pois, embora fosse formada em pedagogia, não havia cursado o magistério, que, na época, era um dos critérios para se obter a transformação (SÃO PAULO, 2003). Foi então que eu mais uma colega que estava na mesma situação enviamos uma carta pro Conselho Municipal de Educação. Então em julho foi publicado um caso que a pessoa que tinha magistério, mas não tinha formação, mas tinha experiência em educação infantil e o cargo foi transformado. Então em agosto me chamaram e falaram que se eu tivesse formação em disciplinas pedagógicas poderia transformar o cargo. Nessa carta eu questionava como eu poderia formar professores no magistério e ter experiência na área e não podia transformar o cargo? Nós corremos atrás e conseguimos, mesmo três meses depois. Então eu transformei meu cargo no dia 11 de agosto de 2003. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Em 2007, com a mudança da nomenclatura, tornou-se então PEI. Maria Cecília disse gostar de trabalhar em berçários. Atualmente, no CEI Freireano, é responsável por um grupo de Berçário 2, mas, segundo ela, sua preferência é trabalhar no Berçário 1 com os bebês menores, pois gosta “muito de silêncio e de tranquilidade. Aqui nessa Unidade é mais difícil, mas lá eu tinha minha sala, eu tinha o rádio, sempre trabalhei com música no horário do sono; tinha almofadas, tapete.” (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

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4.1.5 PROFESSORA LAURA Laura tinha 61 anos de idade na época da entrevista. Era natural de Catende, no estado do Pernambuco; era casada, possuindo seis filhos adultos, 14 netos e dois bisnetos. Laura contou em sua entrevista que nem chegou a conhecer o próprio pai, pois ele era caminhoneiro e sofreu um acidente fatal quando sua mãe ainda estava grávida. A mãe se casou novamente e a família mudou-se para São Paulo, quando ela era ainda muito pequena. Ao todo, foram 21 filhos, sendo dois de adoção e, destes, apenas 13 ainda estavam vivos. Laura teve uma infância muito sofrida, relembrando que já aos 5 anos de idade aprendera a “limpar peixes” para ajudar sua mãe no sustento da família. Também, muito cedo, aprendeu a costurar. Sua irmã mais velha, aos 10 anos de idade, foi trabalhar em um frigorífico com sua mãe. Laura, enquanto a mãe trabalhava, ficava sozinha com os irmãos no cortiço em que morava, como relata: Então ela costurava a noite e trabalhava durante o dia, pouco tempo ela tinha pra dormir. E a gente morava num quartinho assim. Não tinha banheiro, tinha banheiro, mas era um cortiço, então era um banheirinho pra toda a vila, então minha mãe, o que ela fazia? Ela deixava uma lata com uma tampa pra gente fazer xixi, as necessidades fisiológicas ali e a gente ficava trancado. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Devido a essa situação de extrema pobreza de sua família e às dificuldades para encontrar uma vaga em uma escola pública na época, Laura só conseguiu ingressar na escola aos 10 anos de idade e para isso foi necessário, ainda, a intervenção do Juizado de Menores. Demonstrando um grande envolvimento afetivo com as professoras que passaram por sua vida naquela época, Laura lembrou o nome de todas elas e de fatos que marcaram a sua vida escolar: era Dona Maria das Dores, uma professora também maravilhosa, e ela me ensinou muito, era ‘mãe’! Sabe aquela professora-mãe que entendia você, que ajudava, fazia tudo pra que você aprendesse? E nas sextas-feiras ela dava aula de... Como que era o nome... ‘prendas domésticas’, a gente tinha porque a maioria das alunas saía e ia trabalhar de empregada doméstica. Então ela dava aula, ela levava na casa dela, ensinava como era lavar o banheiro (porque minha casa tinha privada, não era um banheiro) ensinava como lavar a louça, como limpar um fogão, como limpar o chão, mas ela que fazia a gente só ficava olhando. E depois ela fazia pão num forno que ela tinha no quintal e dava café pra gente. Então pra nós ir pra escola naquela época, era uma festa, era uma alegria porque a gente não tinha isso em casa. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Quando Laura completou a 4ª série primária teve que parar de estudar, pois o “ginásio” era pago e sua mãe não tinha condições de manter seus estudos. Assim, Laura, aos 13 anos,

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mesmo sendo menor de idade, tirou seus documentos e começou a trabalhar como aprendiz numa fábrica de camisa. Em sua entrevista, a docente contou também várias histórias sobre a sua mãe, demonstrando uma forte identificação com o seu jeito de ser, pois, de acordo com Laura, ela era uma mulher guerreira, autêntica, inteligente, trabalhadora, muito severa, mas também muito solidária com o sofrimento das pessoas à sua volta. Enfatizou também a origem étnica da mãe, que, segundo a professora, era descendente de negros e de índios e que por esse motivo, embora gostasse muito de água e fosse muito “limpinha” e “caprichosa” com as roupas que ela mesma costurava, não suportava calçar sapatos e usava apenas chinelos. Com a essa personalidade determinada e mediante as dificuldades enfrentadas em sua vida, a mãe de Laura viria a se aproximar de políticos da época, levando a eles as suas reivindicações pessoais e da comunidade: Eu sou muito fã da minha mãe, mesmo com as surras que ela me dava. E ela se entrosou com o pessoal da política. Na época era o Ademar de Barros [...] Aí ela conseguiu um posto médico volante com o Ademar de Barros. Porque o pessoal ficava muito doente e não tinha socorro. [...] E ela conseguiu um bico de água, uma biquinha. Eles puxaram um cano de água e puseram no centro da favela e todo mundo usufruía daquela água. [...] E aí ela foi conquistando seu espaço. Aí ela conseguiu entrar na Legião Brasileira de Assistência, por causa de tanto filho que ela tinha, ela teve direito. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Mais tarde, a professora Laura também viria a tornar-se militante em movimentos de bairro após o período da Ditadura Militar, destacando a sua atuação como líder comunitária em Clubes de Mães e Associações quando Mário Covas era prefeito da cidade. Nessa época, participou de várias mobilizações populares com o apoio da Igreja Católica, conquistando melhorias para o seu bairro e, entre elas, a construção de um Núcleo de Orientação Socioeducativa do Menor (OSEM) e de uma creche. Laura trabalhou nesse OSEM durante seis anos e, devido à sua facilidade no trato com as crianças, embora tivesse sido contratada como servente, durante todo esse período atuou diretamente com os grupos de adolescentes. Em 1990, durante a gestão da prefeita Luiza Erundina, Laura prestou um concurso promovido pela Secretaria do Bem-Estar Social (SEBES) com o objetivo de ser contratada como “orientadora social” e, assim, efetivar-se na função que de fato assumira no OSEM. Ela foi aprovada, porém, em vez de ser encaminhada para o OSEM, foi enviada para uma creche, sendo, então, contratada como ADI, embora muito insatisfeita, pois a sua verdadeira “paixão” era o trabalho com jovens.

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Nessa creche, Laura afirmou ter sofrido muitas perseguições por parte das colegas de trabalho, pelo fato de ela sempre defender os direitos das crianças e não aceitar posturas autoritárias ou descomprometidas, o que causava transtornos em sua vida profissional, implicando, inclusive, prejuízos salariais. Em 2004, já atuando no CEI Freireano, assim como Joyce e Isabel, fez o curso ADI/Magistério (formação em exercício) e obteve a transformação de seu cargo para PDI, posteriormente denominado PEI. Em 2007, também ao lado de Joyce e Isabel, concluiu o curso normal superior, modalidade EaD semipresencial. No CEI Freireano, Laura trabalhou com turmas de Berçário 1 e 2 por diversas vezes, afirmando gostar de atuar com bebês, devido ao dinamismo dessa faixa etária, porém esteve afastada do CEI por mais de um ano em decorrência de problemas de saúde. Infelizmente, Laura veio a falecer em agosto de 2012. 4.1.6 PROFESSOR JÚLIO Júlio, o único professor do sexo masculino que participou da pesquisa, tinha na época 27 anos de idade e, logo no início de sua entrevista, quando solicitei informações sobre a sua história de vida, espontaneamente, e num tom de confissão, se apresentou como “homem e branco”. Ele era casado e não tinha filhos e, segundo ele, não pensava em tê-los, citando uma frase de Braz Cubas: “O que há de deixar de herança?” Júlio nasceu em São Paulo (capital). Sua mãe era professora aposentada e tanto ela quanto seu pai eram militantes políticos, Júlio destacou em seu relato, aparentemente com orgulho, que os dois haviam se conhecido durante uma manifestação do Partido Comunista. Ele explicou que esta sua identificação com a educação, talvez, se devesse a experiências de sua infância, já que sua mãe sempre trabalhou como professora e que várias pessoas da família também atuavam no magistério. Júlio relatou que, quando era criança, conforme suas palavras, sempre ficava na sala dos professores. É de lá também a lembrança que ele tem de um “professor-diretor” com quem se identificava e de onde surgiu o seu desejo de um dia se tornar diretor de escola: quando eu era pequeno eu estudava numa escola e tinha um diretor que eu não lembro o nome e eu ficava na sala dos professores com a minha mãe. Eu achava ele uma figura incrível. Ele era enorme, gordo, barbudo. Eu via ele na sala dando as orientações e sempre achei muito bacana e tive vontade de ser [...] Ele já é uma imagem de professor que eu sinto que eu pareço mais, que fala alto, está presente, muito sanguíneo, toca muito as pessoas, ele era assim, eu gostava muito dele. Eu nunca falei um ‘oi’ pra ele; eu ficava olhando e

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ficava quieto. Eu lembro que quando ele passava todo mundo ficava quieto, não por medo, mas esperando o que ele ia falar. Muitas vezes era pra dizer que não ia ter aula no dia seguinte, e a gente adorava! (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Ele, assim como a professora Monique, conforme veremos a seguir, fez magistério no Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (CEFAM) e cursou pedagogia. Antes de ingressar na Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP), ele trabalhou em uma creche conveniada e teve também experiências anteriores no campo da informática, porém, conforme afirmou, embora levasse jeito “pra coisa”, era uma atividade que não lhe “encantava”. Júlio prestou concurso em 2004 para o cargo de PDI (posteriormente denominado PEI), já no âmbito da SME, na “época boa”, conforme definiu. Sempre preferiu trabalhar com crianças maiores e, enquanto pôde, evitou os berçários, explicando: “sinceramente eu não tinha a menor vontade, eu tinha paúra! Eu morria de medo, eu tenho medo de pegar a criança no colo até hoje. Porque é muito frágil, é que nem passarinho!” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Porém, devido à sua baixa posição na classificação geral da equipe docente no CEI Freireano, como precisava garantir o horário da tarde, o que lhe permitiria assumir mais um cargo de professor em outra escola no período da manhã, acabou trabalhando nos últimos anos em turmas de Berçário 2 e Berçário 1, nas suas palavras, porque era o que havia sobrado. Júlio, em seus comentários, parecia que encarava aquela experiência no CEI como uma passagem necessária até que ele pudesse concretizar seu sonho de ser diretor de escola, cujo ingresso na rede pública municipal tem como pré-requisito a experiência de cinco anos no magistério. Ele confessou que demorou a assumir que gostava de ser professor e que quem o ajudou a reconhecer isso foi a sua esposa, que começou a enfatizar o seu visível envolvimento e a sua identificação com os bebês. À época da entrevista, no CEI Freireano, ele atuava, naquele momento já por opção, num grupo de Berçário 1 com crianças de 6 meses a 1 ano de idade, afirmando que gostava daquela turma, pois as crianças eram autênticas e era um “pessoalzinho gostoso de pegar no colo” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). 4.1.7 PROFESSORA LILA Na época da entrevista, Lila estava com 50 anos de idade. Ela nasceu em São Paulo (capital), era casada e possuía filhos, embora não tenha entrado em detalhes sobre a sua vida

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particular. Os pais eram nordestinos, sendo, segundo suas palavras, “a mãe de origem italiana e pai de origem africana”. O pai, segundo a docente, valorizava os estudos, aos quais não teve acesso. Contava casos, histórias. Lila atribui a essa influência do seu pai essa sua paixão por leitura e por filosofia, o que a motivou até a organizar e manter, atualmente, uma biblioteca em sua casa. Lila afirma que “ser professora” estaria para ela associado a esse gosto pelo mundo letrado. Como era a filha mais velha e a primeira geração da família a cursar o ensino superior, o pai a ajudou a pagar a faculdade. Durante esse momento de sua entrevista, a docente emocionou-se, explicando que o pai já havia falecido. Lila explicou que fez a faculdade de pedagogia não por amor a essa área, pois era um curso que “não lhe preenchia”, mas que foi até o fim porque queria ser uma professora. Lila relatou que, formada, foi lecionar as disciplinas pedagógicas de história e filosofia da educação no curso de magistério CEFAM (onde Júlio e Monique foram alunos). Em seguida, descobriu, nas suas palavras, a sua disciplina – artes – e foi, então, cursar a sua segunda graduação: “E aí gostei e deixei meu diploma de pedagogia guardado e me realizei como professora de artes.” (PROFESSORA LILA, 2011). A docente começou a trabalhar como “professora de creche” em 1985, ainda pela Secretaria da Família e Bem-Estar Social (FABES). Naquela época, era essa profissional quem exercia as funções de coordenação pedagógica nas creches da rede pública em São Paulo, tendo como principal atribuição a preparação das atividades a serem executadas pelas pajens ou ADIs. Em paralelo, ingressou como professora de artes no estado. Trabalhou durante dez anos como professora de creche, e, depois que o cargo foi extinto, ficou apenas com as aulas de artes na rede estadual. Ela contou que, como na época muitos professores estavam abandonando a profissão para ingressar em carreiras mais atrativas financeiramente e de maior status social – como a de “bancário” –, sobravam aulas de artes e ela teve a sorte de conseguir a carga completa em uma escola estadual, em um município da grande São Paulo. Lila destacou o fato de que, em sua trajetória, sempre encontrou pessoas (amigas, irmãs, chefias etc.) que a ajudaram a tomar decisões com relação à sua vida profissional, como quando acabou voltando para o cenário das creches, nessa época já denominadas Centros de Educação Infantil. Em 2008, a docente se preparava para prestar um concurso para trabalhar na rede municipal de ensino como professora de artes. Como Lila, a convite de uma amiga, havia feito um curso de pós-graduação em educação infantil, ela seguiu os conselhos de sua irmã e, mesmo sem muita motivação, acabou prestando também o concurso para trabalhar como PEI, na PMSP, conforme explicou:

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Eu iria prestar concurso pra artes. A minha irmã me falou pra fazer também o concurso pra CEI. Eu tinha tido uma experiência em creche, mas sem contato com a criança. Eu quase não fui na prova, porque o que eu queria mesmo era artes. Nem dei a mínima pra estudar pra educação infantil. Isso foi em 2008. Coincidentemente eu não passei em artes e passei no de CEI. (PROFESSORA LILA, 2011).

Dessa maneira, Lila fez um percurso diferente das demais docentes entrevistadas, pois, embora não tenha passado pelo processo de transformação do cargo e nem pela transição das creches do âmbito da SAS para a SME, ela vivenciou a história da instituição em dois momentos distintos, e em diferentes posições profissionais – como professora de creche em 1985 e como PEI, em 2008 –, expressando em sua entrevista as percepções e ambiguidades que estava vivenciando nesse processo. A docente enfatizou que houve muitas mudanças estruturais na carreira, relatando que, ao assumir o novo cargo, reencontrou profissionais com quem havia trabalhado na época em que era professora de creche, e respondia pela coordenação das atividades pedagógicas, e que, agora, eram suas colegas que, como ela, atuavam como PEI: Eu peguei duas fases do CEI bem diferentes. Teve as greves, as brigas pra conquistar direitos, pra ser valorizado. [...] Algumas pessoas falaram: agora você vai saber o que a gente passa, porque antes eu só coordenava e não trabalhava direto com a criança. Mas eu não vou deixar de ser a mesma. (PROFESSORA LILA, 2011, grifo nosso).

No CEI, em princípio, atuou como “volante” em algumas unidades, substituindo professores titulares. Na época da entrevista, havia se afastado do cargo de professora de artes e passara a trabalhar exclusivamente no CEI Freireano, onde era responsável por uma turma de Berçário 1 não por opção, mas porque era a vaga disponível, de acordo com a sua classificação no período de atribuição de aulas. No momento da entrevista, porém, Lila alegou estar tranquila com a sua escolha. 4.1.8 PROFESSORA MONIQUE Monique, a mais jovem das entrevistadas, tinha 26 anos de idade e era também a docente que mais recentemente havia ingressado na carreira (seis meses). Ela nasceu em São Paulo (capital); e, como enfatizou, era filha de “pai português e mãe brasileira”. A docente era casada e possuía dois filhos de 5 e 6 anos de idade. Segundo suas próprias palavras, “nasceu, cresceu, constituiu família e ainda é moradora” na mesma região onde trabalhava, afirmando que sua família era “presente”.

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Sendo filha de imigrante português e de mãe microempresária, dona de uma empresa de costura instalada dentro da sua própria casa, Monique contou que vivenciou esse mundo do trabalho, ajudando sua mãe e mesmo costurando. Contou também que ela própria iniciou sua vida escolar na educação infantil, tendo frequentado uma pré-escola municipal e, posteriormente, uma escola particular de educação infantil. Entre as professoras entrevistadas, Monique foi a única a fazer alusão à sua própria passagem pela pré-escola. Como Júlio, ela cursou magistério no CEFAM; pedagogia e, na época da entrevista, estudava pós-graduação em docência do ensino superior. Prestou concurso público e ingressou no cargo de PEI, na PMSP, em abril de 2011. Por esse motivo, a docente não vivenciou o processo de transformação do cargo, nem as mudanças de nomenclatura dessa função, como as demais docentes que trabalhavam há mais tempo na instituição. Monique também trabalhava como professora em uma EMEI desde 2010. A docente afirmou que a sua paixão sempre foi a educação infantil. Ela também teve experiências anteriores como professora em centros de educação infantil mantidos por organizações não governamentais de grande porte. No CEI Freireano, devido ao seu recente ingresso e consequente baixa classificação em relação aos demais docentes, Monique ocupava a vaga de “módulo”, cobrindo ausências de professores titulares, já tendo assumido por várias vezes as turmas de Berçário 1, além dos demais grupos, porém, conforme explicou, sempre que tinha opção de escolha, preferia trabalhar com os bebês: Gosto muito do trabalho com berçário, acho que é um ponto que tem que ser valorizado, a primeira infância, a gente sabe que é a constituição do sujeito enquanto indivíduo social, enquanto participação crítica. É ali que a gente forma a questão moral, os conceitos, gosto, gosto do berçário. Quando posso escolho esta turma. Sempre quis Berçário. (PROFESSORA MONIQUE, 2011).

4.2 SEMELHANÇAS, DIFERENÇAS E INTERSEÇÕES NOS PERCURSOS PROFISSIONAIS Como vimos, as professoras e o professor ouvidos, partindo de diferentes realidades e histórias de vida, chegaram, no momento da pesquisa, a um lugar comum: o trabalho em berçário em um centro de educação infantil da rede municipal de ensino na cidade de São Paulo. Seria possível identificar semelhanças, diferenças, ou mesmo momentos em que suas trajetórias se intersectam nesse caminho de constituição de suas identidades profissionais? A primeira questão que nos salta aos olhos, numa primeira análise dos dados, é como essa profissão foi se constituindo ao longo dos tempos como uma atividade feminina,

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principalmente pelo fato de os cuidados dos filhos e da casa serem culturalmente considerados um atributo natural das mulheres, discussão essa que será aprofundada no próximo capítulo. Do grupo de docentes entrevistados, sete são mulheres e apenas um, Júlio, que ingressou mais recentemente na instituição, aparece de maneira singular, representando a tímida presença masculina no cenário dos CEIs. Outro aspecto que se destaca na análise de suas histórias de vida é o fato de que todas as docentes e o docente são de origem de classes trabalhadoras, como lavradores, operários, domésticas, professores ou outras atividades precárias como a de “limpar peixes”, como foi mencionado por Laura. Apenas uma docente, Monique, refere-se à mãe como “microempresária”, contudo numa oficina de costura instalada em sua própria casa, e Maria Cecília, que, em um determinado período de sua vida, trabalhou como autônoma em um bazar de sua propriedade. Todas as entrevistadas e o entrevistado, considerando-se as diferenças sociais e econômicas de cada uma, vêm de famílias pobres, ou de classe média baixa, algumas em situações de extrema miséria, como Laura; outras buscando melhores condições de vida nos grandes centros urbanos como Lila e Joyce. Embora a maioria tenha nascido na cidade de São Paulo – com exceção de Laura e Luiza –, suas famílias vêm de diferentes procedências: Bahia, Pernambuco, Paraná, Adamantina, outras cidades do interior de São Paulo, com referências também a imigrantes portugueses, italianos e descendências africanas e indígenas. Todas as docentes e o docente, porém, trazendo as vivências dessas diferentes regiões e culturas, se encontram em diferentes momentos históricos, na capital paulistana, num ambiente urbano, para desenvolver uma atividade profissional com crianças pequenas numa instituição pública, a princípio denominada creche, hoje CEI, localizada em bairros periféricos da cidade, próximo às suas residências. As diferentes configurações e vivências familiares das docentes e do docente aparecem também como aspectos que influenciam a sua entrada na profissão: o trabalho que surge para Joyce como forma de conciliar os cuidados dos filhos, da casa e ajudar o marido; o sonho de Lila em ser professora como projeto de ascensão social influenciado pelo pai; a mãe batalhadora e guerreira e as marcas da infância sofrida que inspiraram Laura em sua inserção no trabalho social com crianças; a presença de profissionais da educação na família de Júlio que o aproxima do universo escolar; o empenho da mãe de Isabel para que ela se dedicasse aos estudos; a experiência nos cuidados do irmão adotado que serviu como pré-requisito para o ingresso de Luiza como pajem; a família “presente” de Monique e a família “unida e religiosa” de Maria Cecília que, de acordo com os seus relatos, aparecem como referências para as suas experiências profissionais como professoras.

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A questão da escolaridade das docentes e do docente surge também, por diferentes ângulos, desenhando diferentes perfis sociais e profissionais. De todas as entrevistadas, Monique, a mais jovem, foi a única que iniciou seu processo de escolarização numa pré-escola, talvez porque na sua infância esse nível de ensino começasse a se expandir e a ser valorizado pelas famílias da classe média baixa. No meio familiar de Isabel, ter concluído o “ginásio” fazia com que ela se diferenciasse dos demais membros de sua família, embora esse nível de escolaridade estivesse bem distante do seu sonho de ser médica. As primeiras seleções para pajem, no início da década de 1980, exigiam apenas como pré-requisito o 4º ano primário. Naquela época e naquele contexto da periferia da cidade, onde as creches eram implantadas, Joyce, Isabel e Luiza pertenciam a um grupo da população relativamente privilegiado, já que tiveram vantagens nos processos seletivos por possuírem o “ginásio completo”. Luiza, apenas com o “ginásio completo”, pôde atuar como professora em escolas rurais no Paraná. Por outro lado, mesmo formada no curso de magistério, isso de nada valeu no momento em que exercia suas funções como pajem e tentava se efetivar como ADI. Entretanto, anos mais tarde, o magistério tornou-se um pré-requisito para que ela avançasse em sua carreira e transformasse o seu cargo em PDI. Com exceção de Luiza, que não chegou a cursar a faculdade, e de Júlio, que se referiu a outros membros da família que possuíam formação universitária, as demais docentes pertenciam à primeira geração de suas famílias a concluir o ensino superior, porém, apenas, algumas o fizeram tardiamente, como Joyce, Isabel e Laura. Partindo de diferentes expectativas e necessidades, todas as docentes e o docente chegaram à profissão tendo como ponto comum o surgimento de uma oportunidade de trabalho em um serviço público em expansão: a rede de creches ou CEIs. Conforme apontam Rosemberg (1984) e Rosemberg et al. (1994), esse investimento na ampliação do número de creches em São Paulo ocorreu, entre outros fatores, devido ao crescente desenvolvimento urbano e industrial da cidade, bem como pela inserção das mulheres no mercado de trabalho e também pelas conquistas dos movimentos feministas. Como define Kramer (2005), tratava-se de “uma escolha dentro da não escolha”. De uma maneira geral, todas as professoras, como também o professor Júlio, mostraram em seus relatos que a sua inserção na profissão se deu como forma de abraçar uma oportunidade de ingressar na rede municipal de ensino, que oferecia mais vantagens aos seus profissionais no que se refere à estabilidade no emprego; melhores salários; maior status social, ou ainda que abrisse novas possibilidades para suas carreiras, como o caso de Júlio, que encarava o ingresso na carreira do magistério como uma passagem necessária para realizar o seu sonho de se tornar diretor de escola. A partir de suas diferentes inserções no trabalho como profissionais de creches ou CEIs, cada uma e o professor

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apropriaram-se dessa experiência profissional, de acordo com as suas expectativas, necessidades e possibilidades, como sujeitos e também a partir das diferentes configurações que a instituição foi assumindo ao longo da história. Por outro lado, as narrativas das professoras e do professor expressaram a íntima relação existente entre as políticas públicas em vigência no país e a carreira docente em CEIs, e a sua inserção em berçários. As demandas trazidas por legislações, como a Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), no que se refere aos direitos das crianças e aos prérequisitos exigidos dos profissionais para o trabalho em creches e pré-escolas, bem como pela forma como tais mudanças legais foram sendo implantadas na cidade de São Paulo, se refletiam diretamente nos perfis profissionais que foram se delineando nos cenários de creches e de CEIs. Em determinados momentos de seus relatos, as docentes e o docente, especialmente Laura, mencionaram as diferenças administrativas de cada uma das gestões que passaram pela prefeitura na cidade de São Paulo nas últimas décadas e as marcas – conservadoras ou progressistas – por elas imprimidas em suas práticas e carreiras. Nomes de representantes políticos, como Ademar de Barros, Mário Covas, Luiza Erundina, figuraram entre os demais personagens das histórias contadas pelos docentes, mostrando que a constituição de suas profissões passou também pelo desenho formado pelo entrecruzar de legislações; normatizações; programas de treinamento; concursos públicos ou processos de seleção; incentivos à obtenção de melhores níveis de escolaridade; como também de prejuízos remuneratórios e de perseguições para aquelas que se distanciavam das ideologias dominantes, como denunciou Laura. Isso nos remete ao pensamento de Foucault (1987) e sua discussão sobre como as instituições, por meio de diferentes dispositivos de poder, exercem uma ação disciplinadora sobre os sujeitos. No caso em questão, as políticas públicas de atendimento à infância também regulavam as condutas das docentes e do docente em situações cotidianas vivenciadas no interior das creches e centros de educação infantil, que, por sua vez, também ofereciam, ou não, resistência a esse controle. Ainda nessa ótica foucaultiana, no que se refere ao controle exercido pela instituição sobre os sujeitos, pudemos perceber também, por meio das narrativas das professoras e do professor, que a forma como tais docentes se inseriram no trabalho específico em berçários dava-se por meio de outro processo de organização interna da instituição, pela maneira como era realizada a distribuição dos grupos de crianças. Na época em que as creches estavam vinculadas a órgãos assistenciais, quem tinha o poder de decisão sobre as turmas de crianças onde as pajens ou ADIs iriam exercer as suas funções eram os diretores de creche. Sem ter

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critérios definidos, as turmas eram atribuídas de acordo com a avaliação pessoal da direção sobre o perfil das profissionais, ou, ainda, como meio de controlar o andamento das atividades nos grupos de crianças, conforme relatou Maria Cecília. Após a passagem das creches para a SME, a escolha dos grupos nos CEIs passou a ser realizada a partir de legislações específicas que normatizaram o processo de atribuição de aulas nessas unidades da rede municipal. De uma maneira geral, essa classificação tinha como principais critérios o tipo de vínculo das docentes (efetivas, admitidas, contratadas, estáveis ou não estáveis), o tempo na carreira e o tempo de permanência na mesma unidade de lotação. As portarias de atribuição (SÃO PAULO, 2003) passaram a estabelecer também uma hierarquia entre as diferentes funções exercidas pelas profissionais no âmbito dos CEIs, colocando em primeiro plano as PDIs, posteriormente, as ADIs e, por último, as pajens. Todavia, no cotidiano das creches ou CEIs, as exigências no lidar com turmas de berçários eram bem diferentes das demandas do trabalho com crianças maiores em virtude do maior grau de dependência dos bebês, especialmente no que se refere a rotinas de higiene (como troca de fraldas e banhos), de alimentação (como oferecer mamadeiras e comida individualmente a cada uma das crianças), entre outras. Essas diferenças aparecem nas narrativas das professoras como uma espécie de divisão que se estabelece entre aquelas que, por diferentes motivos, preferem trabalhar nos berçários e aquelas que se identificam mais com os grupos dos maiores. Assim, a partir desse confronto entre as expectativas das docentes e os critérios da instituição, o processo de atribuição realizado no contexto específico de cada unidade infantil determinava posições mais ou menos disputadas e privilegiadas, o que se expressava nas relações de poder entre aquelas que efetivamente escolhiam e aquelas que eram compulsoriamente escolhidas pela falta de opções em sua ordem de classificação. Por esse motivo, entre as professoras entrevistadas, as mais antigas na carreira, como Joyce, Luiza, Isabel, Laura e Maria Cecília, tinham prioridade nos processos de atribuição de aulas, e, ao escolher uma turma de bebês, o faziam por opção pessoal. Já Lila e Júlio chegaram até o berçário por falta de outras opções e Monique, embora preferisse atuar com os bebês, devido ao seu recente ingresso, não tinha uma sala fixa, trabalhando, à época da entrevista, como “volante” em substituição às professoras titulares durante as suas ausências. Júlio batizou os tempos dos CEIs, na SME, como “época boa”, talvez em contraposição a um passado considerado obscuro em que a carreira não era valorizada. Numa outra perspectiva, Joyce, há 30 anos, olhava para uma creche em construção e sonhava em poder trabalhar naquele lugar, que, na sua concepção, era um emprego ideal para ela como mulher. Lila, revendo o seu passado, quando era professora de creche e apenas planejava as ações

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pedagógicas, e o seu presente, em que atua diretamente com bebês, dá indícios de que nutre incertezas sobre o seu papel como docente em um CEI. Partindo dessas diferentes trajetórias, percursos e percepções, para além da transformação de cargos e siglas prescritas pela instituição, foi possível verificar a maneira como as identidades profissionais das professoras e do professor de educação infantil que participaram desta pesquisa, também, foram se transformando em sua prática cotidiana com os bebês, como veremos nos próximos capítulos.

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5 QUESTÕES DE GÊNERO E A PRÁTICA DOCENTE COM BEBÊS Acho que o fato de ser mulher interfere sim no meu trabalho com bebês. Eu acho que se eu não fosse mãe eu não teria tanta segurança em cuidar dos bebês. Eu acho que a experiência como mãe me auxiliou bastante a ser professora de educação infantil de bebês precisamente. Eu acho que sim. Antes de ser mãe eu acho que teria medo de segurar, sabe aqueles ‘conceitos’? Acho que como mãe isso me deu mais segurança, mais suporte pra essa questão, aí já digo mesmo do cuidar e tem a ver um pouco com o pedagógico também. Professora Monique

O texto em epígrafe foi extraído do depoimento da professora Monique, que era, entre as docentes entrevistadas, a mais jovem e a que mais recentemente havia ingressado como professora de educação infantil no CEI Freireano. Esse relato, assim como os das demais docentes que participaram da pesquisa, como veremos a seguir, demonstra a centralidade da questão do gênero feminino no trabalho docente desenvolvido em unidades de educação infantil, em especial em turmas de berçários, dando também indícios de que esse aspecto vem atravessando essa carreira ao longo de sua história até os dias de hoje. Neste capítulo, com base em diferentes formulações no campo dos estudos de gênero, pretendo abrir possibilidades para reconhecer os sentidos que mulheres e homens trazem consigo para a prática com bebês nos CEIs e como esses aspectos se configuram em suas experiências profissionais. Nesse caminho teórico e metodológico, partindo das histórias das professoras e do professor que integraram esta pesquisa, busco aproximar-me de suas “feminilidades” e “masculinidades” (intencionalmente no plural), distanciando-me de interpretações universalistas, binárias ou essencializantes, reconhecendo-os como sujeitos sexuados, cujas percepções sobre corpo, sexo e gênero também participam, e de maneira singular, da construção de suas identidades como docentes. Inicialmente, passo a analisar como os cuidados das crianças tornaram-se, ao longo da história, uma atividade socialmente reconhecida como feminina, para, então, discutir a forma como a trama binária entre papéis masculinos e femininos se insere nas vivências profissionais das docentes no trabalho com bebês e, finalmente, examinar o caso específico da presença de um professor do sexo masculino em berçários.

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5.1 CUIDAR DA INFÂNCIA COMO PAPEL SOCIAL FEMININO Discutindo a filologia da palavra ‘cuidado’, Boff (2008) explica que o termo significa cura em latim, que na sua forma mais antiga era escrito coera, expressão utilizada para definir relações humanas de amor e de amizade. Outra derivação possível é da palavra cogitarecogitatus, que aos poucos foi sofrendo alterações na língua: coyedar, coidar, cuidar. Tanto cura quanto cogitare-cogitatus têm o mesmo sentido e se referem a uma atitude de desvelo, de solicitude, de zelo, de cogitar e pensar no outro, de ter uma preocupação ou uma inquietação por um objeto ou pela pessoa amada. Desse modo, cuidado possui duas significações etimológicas básicas, que, segundo o autor, estão intimamente ligadas entre si: a primeira referente à atitude de cuidar, zelar, ter desvelo pelo outro, a segunda relacionada à preocupação ou ao fato de alguém sentir-se responsável pelo outro a quem está ligado afetivamente. Conforme também analisa Carvalho (1999), as palavras ‘cuidado’ e ‘cuidar’, no inglês caring e to care for, vêm sendo empregadas com múltiplos significados em diversas áreas do conhecimento e campos profissionais, passando pela enfermagem, filosofia, educação infantil, assistência social, psicologia e sociologia do trabalho. No geral, os significados atribuídos nesses diferentes contextos ao termo ‘cuidado’ referem-se à prestação de serviços pessoais a outros, como também à empatia, ao carinho, ao respeito, à atenção, à proteção, à compaixão, ou, ainda, ao compromisso com a comunidade. Entretanto, um dos aspectos centrais na discussão sobre o cuidado, conforme discutem diversos autores, é o processo pelo qual as mulheres, ao longo da história da sociedade humana, tornaram-se responsáveis pelo cuidar no interior da família, como mães, filhas, irmãs, esposas etc. Para entender como o papel social de cuidar das crianças passou a ser considerado ao longo da história como um atributo natural das mulheres, tornando-se um estatuto de verdade – na acepção de Foucault (2004) – na sociedade moderna, faz-se necessário remetermo-nos às concepções de família e de infância que foram se constituindo ao longo dos tempos. Não pretendo, aqui, esgotar a discussão sobre esse assunto, mas apenas abordar alguns aspectos que possam contribuir para elucidar o debate do tema no contexto específico da presente investigação. Ariès (2006), tendo como referência a sociedade francesa, afirma que na Idade Média não havia um sentimento discriminado dos adultos em relação à infância, e, embora existisse algum tipo de afeição, não havia a consciência de alguma particularidade infantil. Já naquele momento histórico, o cuidado das crianças era exclusividade das mulheres, mas, assim que

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saíam da idade de colo, uma fase de maior fragilidade e riscos de vida, elas passavam a conviver socialmente com os adultos. Badinter (1985), embora concorde com a análise de Ariès sobre a indiferença social frente à infância durante a Idade Média, afirma, porém, que, em todas as épocas, houve mulheres que amaram ou não amaram seus filhos, desmitificando o amor materno como um instinto feminino natural. Para a autora, o amor materno é um sentimento humano como outro qualquer, que pode existir, desaparecer, se modificar ou ser seletivo, e que é valorizado ou não em diferentes momentos da história e em diferentes culturas, não podendo as suas formas de manifestação ser consideradas como uma característica universal para todas as mulheres. De acordo com esse detalhado estudo sobre a história da infância e da família de Ariès (2006) e também com as análises propostas por Badinter (1985), era costume, nas classes abastadas, entregar os filhos para que outras famílias ou amas de alguma aldeia vizinha os criassem, devolvendo-os aos 7 anos de idade, quando já estariam aptos para a convivência com os adultos. A dificuldade em amamentar a criança e a falta de higiene no uso do leite de vaca, na opinião de Ariès (2006), talvez justificasse essa prática. Badinter (1985) destaca também a forte influência exercida pela Igreja nas sociedades medievais, no que se refere aos juízos de valor atribuídos à infância. Nessa ótica religiosa, o bebê era concebido como um símbolo do pecado original. Essa concepção da criança como um ser de natureza corrompida por parte da igreja era um dos fatores, conforme explica a autora, que suscitava a desvalorização da infância tanto nas classes mais abastadas quanto entre os mais pobres. Em muitas situações, a criança era considerada, nas palavras da autora, um estorvo. As cansativas rotinas de cuidados dos bebês, o fato de, durante o período em que a mãe estivesse amamentando, não poder manter relações sexuais, de acordo com as crenças da época, entre outros empecilhos, tornavam comum, segundo Badinter (1985), recorrer-se a uma ama de leite. Outra alternativa para as mulheres da elite, que não queriam se separar dos seus filhos, era trazer as amas para morar na própria casa da família, havendo em Paris, desde o século XIII, agências que selecionavam mulheres para essa função. Em princípio, essa prática, que era comum apenas para a aristocracia, aos poucos, porém, foi se alastrando até as demais camadas populares. Era um fato recorrente mulheres camponesas serem contratadas por uma baixa remuneração para serem amas de leite de crianças na cidade, deixando seus próprios filhos com outra ama que cobrasse um preço inferior, lucrando apenas a diferença entre um e outro valor. Desse modo, Badinter (1985) relativiza essa indiferença da mulher para com os filhos, indicando também como fator decisivo, nessas relações, a condição econômica, que, em última análise, explicaria atitudes de desespero, como o abandono da criança na roda dos expostos, ou

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até mesmo o infanticídio, atribuindo esse comportamento não à falta de amor, mas a uma questão de instinto de sobrevivência, que, segundo a autora, se sobrepunha ao suposto instinto maternal. Contudo, é possível questionar, a partir do mesmo raciocínio seguido pela autora para analisar o conceito de instinto materno, se o que ela denominou “instinto de sobrevivência”, não seria também um produto histórico e cultural no que se refere a como cada sujeito reage a situações de privação. Essa mesma ambiguidade também podia ser observada na conduta das mulheres que trabalhavam como amas de leite. Segundo Badinter (1985), aquelas que cuidavam dos bebês em aldeias distantes, por vezes, se recusavam a devolvê-los quando a criança já estava maior. As que abandonavam seus próprios filhos, numa atitude considerada mercenária, para morarem na casa da família que contratava seus serviços, na maioria dos casos, também criavam vínculos afetivos com os bebês, como ilustra Ariès, citando um trecho do livro Le grand propieté de toutes choses, editado no século XVI: A ama se alegra quando a criança fica alegre, e sente pena da criança quando esta fica doente; levanta-a quando cai, enfaixa-a quando se agita e limpa quando se suja... e a ensina falar, pronunciando as palavras como se fosse tatibitate, para ensiná-la melhor e mais depressa... ela carrega a criança nos braços, nos ombros, no colo, para acalmá-la quando chora; mastiga a carne para a criança quando esta ainda não tem dentes, para fazê-la engolir sem perigo e com proveito; nina a criança para fazê-la dormir, e enfaixa seus membros para que não fique com nenhuma rigidez no corpo, e a banha e a unta para nutrir sua pele... (CARBICHON apud ARIÈS, 2006, p. 100).

Alguns autores, porém, discordam dessa visão linear que Ariès propõe acerca de uma total inexistência de um sentimento de infância na Idade Média. Kuhlmann Junior (2004) afirma que outras fontes históricas, como imagens de famílias cuidadosas, roupas e móveis adaptados para crianças pequenas, produção de brinquedos, literatura romanesca, textos jurídicos e médicos, entre outros registros, dão testemunhos de uma relação de atenção de adultos para com as crianças. Del Priore (2002a), em suas pesquisas sobre a história da infância no Brasil, também aponta a dificuldade de aplicar a interpretação de Ariès à realidade brasileira, já que é inviável identificar precisamente o momento de transição do período medieval para a Idade Moderna, como o descrito por Ariès (2006), nas sociedades europeias, sem considerar, entre outras peculiaridades, as implicações sociais do processo da colonização em nosso país. Da mesma forma, Carvalho (1999) atribui essa ausência de registros de vínculos afetivos entre pais e filhos no período medieval a um possível reflexo da ótica masculina sob a qual a história era

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contada, já que as mulheres, responsáveis pelos cuidados das crianças, não dispunham, naquele momento histórico, de meios para expressar socialmente suas experiências e sentimentos. Entretanto, o que parece consenso nas várias abordagens, e o que se mostra relevante para a discussão do tema proposto, é a forma como Ariès (2006), em sua obra, demonstra como o conceito de infância e de família foi sendo construído de diferentes formas ao longo da história e as implicações dessas diferenças nas práticas de cuidados das crianças e no papel social da mulher frente a essas tarefas. Se na Idade Média a vida pública se confundia com a vida privada, o sentimento de família e da casa foi avançando ao mesmo tempo que se constituía a vida privada e a intimidade doméstica. Organiza-se, assim, como novo modelo de estrutura social do sistema capitalista que emergia a família nuclear formada por pai, mãe e filhos. A infância passa também a ser alvo de preocupação do Estado, da Igreja, da lei, surgindo nesse contexto a escola. O novo conceito de infância que surgia em meio a essa nova estrutura social trazia também a exigência de um novo conceito de maternidade e, consequentemente, de uma valorização exacerbada do amor materno, como discute Badinter (1985), já que à mulher caberia o papel “natural” de cuidar dos filhos e da casa, enquanto os homens, por meio da venda de sua força de trabalho, seriam “naturalmente” os provedores da família. Nessa mesma perspectiva, Vega Montiel (2007), ao discutir a condição das donas de casa na sociedade moderna, também concorda que essa naturalização do cuidado como atributo feminino teve sua origem com a Revolução Industrial, a partir da qual o trabalho, que antes era exercido na esfera doméstica, passou a ser realizado na esfera pública. Historicamente, colocava-se aí uma valorização do trabalho vinculado à produção e à retribuição econômica (atividade) e, por outro lado, uma desvalorização do trabalho que não produz bens e que não é remunerado (inatividade). Enquanto os homens seriam os protagonistas do mundo do trabalho, as mulheres ocupariam as funções do espaço doméstico. Segundo a autora, o discurso patriarcal atribuía aos homens qualidades como racionalidade, imparcialidade, independência e desinteresse. Já a natureza feminina teria como características a emoção, a parcialidade, a dependência, o amor aos outros e o altruísmo, o que se materializaria por meio do inquestionável cumprimento da satisfação das necessidades dos outros, sejam elas físicas, materiais, afetivas, morais, cognitivas etc. Emerge daí uma concepção de cuidado associado ao gênero feminino, cujo papel social seria “zelar” pela reprodução da força do trabalho (masculino).

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Desse modo, essa naturalização do cuidado da criança, como função social feminina, também seria responsável, ao longo da história, por um processo de feminilização da carreira do magistério, conforme discute Louro (2002). Viviani (2007), ao analisar o manual de puericultura O livro das mamães, de autoria de Almeida Jr. e Mário Mursa, em sua investigação histórica sobre a disciplina biologia educacional que integrava o currículo das escolas normais paulistas nas décadas de 1930 a 1960, conforme vimos anteriormente, discute as representações de maternidade e feminilidades contidas nesse material e seus possíveis significados naquele contexto social. Naquela época, o modelo educacional da elite urbana paulista pautava-se por preceitos higienistas e do ideal de melhoria da raça do movimento eugenista, e, por meio dessa disciplina, as alunas, além dos conteúdos de natureza biológica, recebiam orientações sobre cuidados infantis contidos em manuais de puericultura, além de trabalharem como estagiárias nos centros de puericultura atendendo e orientando gestantes e mães pobres. Naquele momento histórico, segundo a autora, esperava-se que as futuras professoras e mães – já que nem sempre as alunas do curso normal seguiam a carreira do magistério – fossem preparadas para a maternidade. Pautando-se nos preceitos da medicina, pretendia-se que a professora disseminasse, tanto no ambiente escolar quanto no doméstico, os saberes científicos sobre aspectos como a importância da amamentação, a higiene dos bebês, o preparo da alimentação, a prevenção de doenças etc., abandonando crendices e padrões de comportamento vinculados ao senso comum. Partindo dessa contextualização e em concordância com Carvalho (1999), Viviani (2007) demonstra como a própria constituição do perfil profissional da professora primária, em sua origem, esteve diretamente relacionada ao papel social conferido às mulheres com relação aos cuidados das crianças. Carvalho (1999) destaca, ainda, na obra do pedagogo suíço Johann Heinrich Pestalozzi, essa concepção educacional, que já no século XVIII postulava que a escola deveria ser uma extensão do lar e o amor a dimensão básica da relação professora-aluno. Nessa linha de pensamento, a docente representaria o papel de uma segunda mãe, que deveria considerar os seus alunos como se fossem seus “filhos espirituais”, como explica Louro (2002). Para Carvalho (1999), somente com o avanço das ciências da infância – pediatria, psicologia e pedagogia – novos parâmetros educacionais surgiriam levando em consideração a ideia de infância e a relação entre professoras e alunos. Muitas outras formulações no âmbito da filosofia e da educação poderiam aqui ser mencionadas para elucidar a forma como a imagem da mulher e da mãe associou-se à profissão docente ao longo da história. Todavia, para este estudo, importa-nos destacar como a naturalização do cuidado como tarefa feminina vem mantendo-se como estatuto de verdade na sociedade moderna e, particularmente, na educação, através dos

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séculos até a atualidade, como ilustrou o depoimento da professora Monique no início deste capítulo. Essa transposição da naturalização do papel da mulher na sociedade, no que diz respeito à reprodução e aos cuidados dos filhos para o âmbito institucional, nos dá, assim, pistas sobre como essa questão perpassa o processo de identificação das docentes e dos docentes que hoje atuam com bebês, bem como das expectativas que a instituição e a sociedade, de um modo geral, nutrem em relação à atuação dessas profissionais. 5.2 FEMINILIDADES E MASCULINIDADES: O JOGO BINÁRIO NO TRABALHO DOCENTE EM BERÇÁRIOS

Antes mesmo que eu propusesse qualquer discussão referente a gênero, uma das questões a serem abordadas na pesquisa empírica, Laura, a primeira professora que entrevistei, logo ao se apresentar manifestou no seu relato mostras de que suas percepções a respeito da condição feminina estariam ali presentes, mesmo que eu não as evidenciasse: Quando eu nasci, não conheci meu pai porque ele tinha falecido e deixou minha mãe grávida. Ele era caminhoneiro e numa viagem que ele fez de Pernambuco pra São Paulo o caminhão capotou e ele faleceu. E a minha mãe ficou com três filhas pequenas. E aí lá no Norte mulher descasada ou viúva não tinha valor nenhum naquela época. E aí ela foi trabalhar na casa de um usineiro e conheceu meu padrasto e logo em seguida casou. Aí teve um monte de filhos. (PROFESSORA LAURA, 2011).

De uma maneira geral, os depoimentos das docentes deram indícios de que as suas trajetórias profissionais e a constituição dessa carreira se entrecruzam com suas histórias como mulheres: suas relações com o afeto, com o corpo, com a maternidade, com os papéis que ocupam no cuidado das crianças na família ou no próprio ambiente de trabalho, como também expressa o relato de Luiza: A gente abria a creche, fechava a creche. Aí conheci meu ex-marido, tive minha primeira filha, trabalhei até os nove meses. Aí a gente já era ADI, sem concurso, mas já era estável. Eu prestei um primeiro concurso e não passei. Em 1992 em seguida quase, teve outro concurso pra ADI. Aí eu já tinha tido a segunda menina, um ano depois da outra, foi difícil. Elas eram bebes. Só que o ex não pôde me levar de carro. Eu tive que enfrentar ônibus, debaixo de chuva, com os pontos da cesárea (as três foram cesárea), e era uma escadaria na escola, leite espirrando pra tudo quanto é lado, que agonia, mas eu fiz e não é que deu certo? Aí me efetivei... (PROFESSORA LUIZA, 2011).

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Nesse relato, podemos observar como a trajetória profissional da professora Luiza e suas experiências como mulher se entrelaçam, formando uma trama de significados por meio das situações ocorridas no interior da creche e na sua vida privada. Nessa perspectiva, analisar as identidades docentes, que hoje atuam nesse campo profissional, passa necessariamente por trazer para esse debate as diferentes experiências em que essas professoras vivenciam as suas feminilidades e também as formas como as instituições (família, Estado, creche etc.) regulam esse caráter feminino no cotidiano do seu trabalho em berçários. Em sua tese de doutorado, Sayão (2005), apoiada nas ideias de Fúlvia Rosemberg, afirma que o trabalho em creches, e na educação infantil de uma maneira geral, tem um caráter feminino não só porque o número de mulheres é majoritário nessas instituições. Como vimos anteriormente, isso decorre do fato de que a reprodução humana e os cuidados com as crianças pequenas, sobretudo os corporais, têm sido, há séculos, considerados como papéis femininos. Na mesma perspectiva, Connell (1995) afirma que também as instituições são passíveis de generificação de acordo com o modelo hegemônico de masculinidade ou feminilidade que assumem. De acordo com a análise de Carvalho (1999), essa discussão acerca da responsabilidade dos cuidados dos filhos tornou-se uma das principais bandeiras do movimento feminista a partir da década de 1960, colocando em pauta a questão das diferenças e das igualdades entre homens e mulheres. Desse modo, a discussão em torno da exploração do trabalho feminino não remunerado, pautado no cuidado, tornou-se um dos principais objetos de estudos feministas em campos como a psicologia e a sociologia do trabalho. Na visão da autora, esse papel da mulher como “cuidadora” da família tornar-se-ia um modelo referencial para todas as demais relações sociais em que se presta serviços a outros que são incapazes de viver o dia a dia com autonomia, como bebês, crianças, doentes ou idosos, atribuindo um caráter feminino a profissões que se ocupam dessas atividades, sejam elas exercidas por homens ou mulheres, como é o caso da docência em CEIs. Essa condição naturalizada – considerada pelo senso comum como da natureza instintiva das mulheres –, no que se refere aos cuidados das crianças e, particularmente, dos bebês, é um aspecto recorrente nos discursos das professoras e do professor que participaram da pesquisa. Embora cada docente manifeste diferentes formas de vivenciar a sua feminilidade e/ou masculinidade, como também a sua profissão, o caráter feminino atribuído ao cuidado das crianças aparece em seus relatos transitando na tênue fronteira entre suas experiências pessoais e profissionais. Em seus discursos, como veremos ao longo deste capítulo, aparecem impressões e sentimentos contraditórios, que ora reforçam essa crença naturalizada no caráter feminino da

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sua profissão, ora sugerem uma influência das ideias feministas que relativizam essa rigidez dos papéis do homem e da mulher, frente aos cuidados das crianças no interior do CEI. Carvalho (1999) explica que a discussão feminista sobre a igualdade entre homens e mulheres partia do princípio de que ambos têm os mesmos direitos fundamentais e que estes devem ser respeitados, com base na premissa de que este seria um dos principais fundamentos da modernidade. Tal abordagem fundamentava-se em torno das teorias sobre a liberdade individual, os direitos civis e a cidadania. A professora Joyce, ao relatar o seu ingresso como pajem em uma creche há 30 anos, ilustra a forma como a construção dessa carreira, e do perfil de suas profissionais, teve sua gênese nessas mudanças que vinham se processando com relação aos papéis sociais ocupados pelas mulheres naquele contexto histórico: Eu comecei a trabalhar na creche por conta dos meus filhos. Eu precisava trabalhar, eu pagava aluguel. Minha mãe trabalhava e minha sogra morava longe. Eu era sozinha pra cuidar dos meus filhos. Meu marido fala que quando eu tiver netos eu não devo ajudar, porque eu fiz tudo sozinha. Eu carregava todo mundo pra creche. Era um no carrinho e o outro pendurado. Mas eu amava o que eu fazia. Sempre gostei muito do que eu faço. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

O trabalho em creche, na experiência de Joyce, surgia, então, como uma solução para a sua ambígua necessidade de, como mulher, inserir-se no mercado de trabalho, sem, no entanto, deixar de cumprir as exigências do seu papel como mãe. Esse modelo de mulher “que faz tudo sozinha”, como expressou o esposo da docente, simbolicamente, representa o novo lugar que a mulher passava a exercer na sociedade, ocupando um espaço no mundo do trabalho, sem, todavia, abandonar seu papel como responsável pelo cuidado dos filhos e da casa (a chamada dupla jornada de trabalho). Nesse sentido, atuar profissionalmente em uma creche para muitas mulheres, assim como o foi para Joyce, era uma oportunidade privilegiada de conciliar essa dupla demanda num só tempo e lugar: Quando eu entrei na prefeitura eu estava grávida bem de pouquinho e meu filho mais velho tinha 1 ano e 8 meses. [...] Foi muito gratificante porque na época pra mulher trabalhar era muito difícil. Quem iria olhar duas crianças pequenas? Se eu fosse pagar não compensaria o salário. A prefeitura pra mim foi uma bênção. Um lugar que você vai, trabalha, cuida de outras crianças e sabe que seus filhos também estão sendo cuidados. Eu agradeço todos os dias que eu levanto. Deus foi muito bom comigo. E a creche quando eu comecei a trabalhar era bem pertinho de casa. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

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Numa outra perspectiva, conforme explica Carvalho (1999), outra vertente feminista se organizava em torno do debate das diferenças entre homens e mulheres, e, apoiada pelas ideias da psicologia, procurava evidenciar as especificidades do gênero feminino e do gênero masculino. Essa corrente, conhecida como feminismo da diferença, amplamente disseminada nos Estados Unidos, pretendia evidenciar aspectos femininos, defendendo a existência de uma “identidade da mulher”, um jeito próprio de ser mulher que deveria ser respeitado e valorizado. Criticando as concepções naturalizadas dessas abordagens, Carvalho (1999) destaca, porém, as formulações da americana Nel Noddings, que, ao discutir a questão do cuidado no âmbito educacional, defendia a experiência feminina no trato das crianças como um novo modelo ético a ser perseguido na sociedade e, em particular, na escola. Zoboli (2004) explica que, para Noddings, cada indivíduo, por ter sido cuidado por alguém – considerando que esse alguém seria necessariamente uma mulher –, levaria consigo essa tendência universal de cuidar de outros membros da espécie. Dessa forma, a defesa de um “jeito especial de ser mulher”, disseminado pelo feminismo da diferença, tornou-se uma ideia que, aos poucos, foi sendo incorporada aos discursos femininos em nossa cultura, como também no magistério, como podemos observar no depoimento da professora Lila: Por eu ser mulher, eu trago pro meu trabalho a garra, a força da mulher e também o amor. A mulher age muito com a emoção e com o coração. Isso não só em séries com alunos maiores como na educação infantil, que é mais ainda. Porque além de exercer o papel de educadora, da professora, ela também não deixa de existir aquele lado materno, da mãe. (PROFESSORA LILA, 2011).

Mas a história não é algo linear e homens e mulheres não formam grupos homogêneos em diferentes tempos e lugares, conforme apontam as discussões de Badinter (1985) sobre como o amor materno foi um sentimento culturalmente construído e não uma qualidade universal comum a todas as mulheres em diferentes momentos históricos, conforme discutimos anteriormente. Nicholson (2000), numa outra abordagem dos estudos de gênero, alerta que a busca por uma identidade sexual comum para a toda a população humana, embora tenha representado um marco histórico para os movimentos feministas em sua luta por igualdade de direitos para as mulheres, também deu origem a concepções binárias, que, além da contraposição homem/mulher, não consideram as diferenças entre as próprias mulheres, entre os homens e as mulheres e entre as distintas formas de compreender o corpo em diferentes contextos. Nesse sentido, é possível falar de feminilidades e masculinidades (no plural), já que

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diferentes sujeitos, em diferentes contextos, atribuem diferentes sentidos às suas vivências como homens e mulheres, não estando o gênero relacionado apenas a aspectos biológicos. Destoando do conjunto de docentes do sexo feminino que participaram da pesquisa e que afirmavam trazer suas experiências como mães para o trabalho com bebês no CEI, o perfil da professora Maria Cecília fazia um contraponto. A docente, que à época da entrevista estava com 59 anos de idade, era solteira e nunca havia tido filhos. Em sua apresentação, porém, ela enfatizou que possuía 6 sobrinhos e 5 sobrinhos-netos, talvez buscando se ancorar na experiência como tia para de alguma forma legitimar o jeito diferente como vivenciava a sua feminilidade e a sua prática docente. De qualquer maneira, defendendo o respeito por ser igual ou o respeito por ser diferente, os movimentos feministas foram responsáveis por grandes mudanças sociais e pela conquista de direitos para as mulheres. O impacto do Movimento de Luta por Creches, na cidade de São Paulo, nas décadas de 1970 e 1980, conforme discuti na introdução deste trabalho com base nas reflexões de Rosemberg (1984), mostra como as ações desses grupos feministas foram decisivas no sentido de promover mudanças efetivas para a vida das mulheres, envolvendo também o Estado na busca de alternativas para os cuidados dos filhos, considerados, até bem pouco tempo atrás, como tarefa exclusivamente feminina. Os depoimentos das docentes expressam essas mudanças que foram se verificando na sociedade e no interior da instituição no que se refere à divisão de papéis entre homens e mulheres, como explica a professora Joyce: Antigamente era difícil você ver um pai trazer a criança pra creche, o pai ir lá no trocador trocar uma criança. Era muito difícil; quando a gente começou não tinha de jeito nenhum. E hoje em dia é a coisa mais linda, quantos pais nossos que vêm aqui trazer as crianças... Teve uma mudança desde o começo. Naquela época não ia pai. Eu não lembro de pai. Era só as mães, as mães, as mães. E hoje em dia não, muito pai vem trazer ‘ah eu vou lá trocar’. Eu acho muito lindo. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

Entretanto, a constituição da carreira docente em CEIs emerge desse cenário contraditório: ao mesmo tempo que a creche pública representou uma conquista do movimento feminista, criando possibilidades para as mulheres compartilharem os cuidados das crianças com o Estado, no interior da instituição, elas continuariam a ser responsáveis pelos cuidados dos filhos de outras mulheres que assumiam outras funções remuneradas no mercado de trabalho, numa espécie de pacto feminino, como expressa o relato de Isabel: “Aqui na escola, nesse começo de ano, uma mãe falou pra mim: ‘Eu quero que você cuide do meu filho como você

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cuida dos seus.’ Mas ela falou assim ‘de boa’, de mulher pra mulher mesmo!” (PROFESSORA ISABEL, 2011). Nesse contexto, o exercício da profissão docente em CEIs, pelo que se pôde inferir a partir dos relatos das docentes, se dava nesse processo em que ficava salvaguardado o papel ocupado pelas mulheres na sociedade, no que se refere aos cuidados dos filhos e da casa. Ao buscarem o aperfeiçoamento de suas práticas, as professoras esbarravam nessas contradições que o gênero feminino imprimia ao caráter de sua profissão, como comentou a professora Laura a respeito da reação de seu marido e o de sua colega Joyce, quando elas resolveram voltar a estudar: Aí eu fiquei assim em peleja com a família. Ele: ‘Pra que, pra que fazer magistério pra cuidar de bebê, pra trocar fralda?’ Eu falei, mas eu quero fazer, eu quero fazer! A Joyce também. [...] Fiquei eu pelejando com o meu marido e ela pelejando com o marido dela. Aí ela pegou e fez uma jogada: Ai Jairo, a Laura vai fazer! ‘Ah, vai?’ Aí eu: Ah, José, a Joyce vai fazer! ‘Vai?’ Ah! ‘Então tudo bem, vai, faz o que você quiser!’ (PROFESSORA LAURA, 2011).

Louro (2003), em suas pesquisas, vem propondo reflexões sobre como as concepções de gênero também atravessam todas as relações no contexto educacional e, consequentemente, os processos de formação de docentes. Partindo da análise de suas próprias experiências na infância, a autora afirma que o investimento de base do processo de escolarização está voltado para a formação de homens e mulheres “de verdade”, deixando marcas que se expressam na construção de nossas identidades de gênero e sexual, delimitando, ainda que implicitamente, condutas adequadas para comportamentos femininos e masculinos, como sugere o depoimento da professora Maria Cecília: A minha família é uma família comum. Minha mãe não trabalhava fora. Mas ela sempre foi aquela pessoa que levava pra escola, olhava os materiais e apontava os nossos lápis, mandava três, quatro lápis apontados pra gente nem ter que levantar da carteira durante a aula. E ela sempre lutou pra gente andar arrumadinho. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Porém, a escola, segundo Louro, não faz isso sozinha. A autora usa o termo ‘pedagogias da sexualidade’ para definir todos os investimentos sociais e culturais – na família, na igreja, mídia, lei etc. – que atuam no amplo e complexo processo de regulação social do gênero, o que representaria, na acepção de Foucault (1988), um “dispositivo histórico” ou uma invenção social, como exemplifica o relato da professora Isabel:

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É o que eu falei, eu sou mãe, quando era menor olhava os meus sobrinhos de colo, então pra mim só acrescentou o que eu fiz na minha infância pra agora. A gente acaba trazendo essas coisas pro trabalho. Porque tudo o que você aprende lá você vai trazer. Isso ajuda. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

Assim, a definição de códigos sociais que representem homens e mulheres, o que ocorre até mesmo antes do nascimento do bebê (devidamente esperado com suas roupinhas azuis ou rosas), ou a delimitação dos comportamentos aceitáveis para meninos e meninas, ou dos papéis sociais que eles deverão ocupar também se refletem no processo de constituição da identidade profissional dos sujeitos. Desse modo, essa “heteronormatividade”, como define Butler (2003b), atravessa e classifica todas as relações sociais numa ótica binária e essencializante, incidindo sobre os corpos dos sujeitos. Isso explicaria a crença de que, mesmo numa relação homossexual, cada um dos parceiros, necessariamente, precisaria ocupar, de forma estável, um papel feminino ou masculino, ou ainda justificaria a afirmação de que homens são fortes e mulheres são frágeis, o que de fato os tornariam assim: Parece que já vem no sangue, a maternidade na mulher. Eu, do mesmo jeito que eu cuidei das minhas filhas, procuro cuidar das outras crianças com o mesmo carinho, o mesmo amor. Agora eu não vou tirar também o homem sendo professor, mas, não todos, têm uns que já são mais durões, fala mais firme, já traz também no sangue a paternidade. Têm muitas crianças que respeita até mais o professor do que uma professora. É válido. (PROFESSORA LUIZA, 2011).

Carregada de uma simbologia sexuada, a expressão ser “duro” ou ser “mole”, associada no senso comum a modelos de “virilidade” e de “feminilidade”, como aponta Connell (1995), apareceu várias vezes nos depoimentos das docentes e do docente, ao se referirem ao papel do homem e da mulher frente à educação das crianças, como podemos observar também no relato da professora Joyce: No trabalho, a mulher eu acho que é mais carinhosa, mais amorosa do que o homem, a gente foi criado assim. Homem é mais seco, mais durão. Em casa eu que lambo [fazendo uma analogia com o comportamento da fêmea que lambe o seu filhote] que faço tudo e meu marido ali. Tem que ter a parte dura e a parte sensível que afaga, que dá carinho, e aqui na escola também. A mulher já traz consigo da criação mais carinho, mais aconchego. Aqui na escola fica complicado a hora de fazer o ‘duro’. Geralmente, a gente trabalha em duas. Uma é o lado mais enérgico, eu sou aquela que estraga. Na outra escola as

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professoras falavam que as minhas crianças eram ‘estragadas’, eu acho que eu exagero um pouco no carinho. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

Nessa perspectiva heteronormativa, quem exerce o papel masculino – o duro – é aquele ou aquela que dita as regras, que é forte, que domina. Quem exerce o papel feminino – o mole – é aquela ou aquele que é afetuosa(o), fraca(o), submissa(o). O relato da professora Joyce dá indícios de que, na prática docente com crianças pequenas, mesmo num ambiente majoritariamente composto por mulheres, a delimitação heteronormativa dos papéis sexuais que se estabelece na vida privada, também, se manifesta no cotidiano da instituição, seja em situações que envolvam profissionais do sexo feminino ou do sexo masculino, como analisaremos a seguir. 5.3 “CUIDADO, TEM UM PROFESSOR NO BANHEIRO!”: A PRESENÇA MASCULINA EM BERÇÁRIOS No CEI Freireano, onde desenvolvi a parte empírica desta investigação, da equipe composta por 58 docentes, apenas dois professores eram do sexo masculino e apenas um deles, o professor Júlio, trabalhava naquele momento no Berçário 1 – com crianças de 6 meses a 1 ano. Durante a sua entrevista, ele relatou um fato curioso que ocorreu na primeira unidade infantil em que trabalhou: Teve vários fatos engraçados! Eu saía de lá direto para a faculdade, e eu ficava acabado com aquelas crianças! Nas construções antigas de creche tinha um vestiário de funcionários e a diretora me autorizou a tomar banho no final do expediente. Eu trancava a porta e colocava uma plaquinha no banheiro ‘Cuidado, o professor Júlio está tomando banho!’ Teve um dia que uma mãe viu e fez um auê dizendo que havia um professor pelado no CEI, e eu não pude mais tomar banho antes de ir para a faculdade. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Esse fato, considerado engraçado pelo docente, expressa claramente, numa ótica foucaultiana (FOUCAULT, 1988), que as questões de gênero, a sexualidade, o discurso sobre os papéis que cada sujeito deve desempenhar, a natureza das relações nas instituições, bem como a própria organização concreta dos espaços, são imperativos culturais que exercem um poder disciplinar que regula a vida em sociedade e controla os indivíduos e seus corpos. É um exemplo, que diz ainda, de uma forma contundente, que o CEI, como vimos anteriormente, é um território “do feminino”, e que a presença de um professor do sexo masculino representaria, por esse motivo, uma espécie de transgressão. Talvez, o que estivesse em jogo ali fosse também o desvelar da existência concreta da corporeidade masculina e

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feminina e a explicitação da materialidade dos sexos num ambiente em que a professora, culturalmente, era considerada como um ser “assexuado”, como discutem Louro (2003) e Cruz (2011), e o homem, em contrapartida, como portador de uma sexualidade incontrolável. Desse modo, a convivência com o professor Júlio, por ele ser homem, ofereceria riscos às mulheres e às crianças daquele lugar. Neste tópico, pretendo, partindo das considerações realizadas anteriormente acerca do caráter feminino do trabalho em CEIs, propor uma análise desse estranhamento causado pela presença de um homem nesse espaço, bem como das suas estratégias de resistência e de constituição de sua identidade como docente nesse contexto. Essa presença masculina num ambiente feminino colocava em cheque as relações de poder que permeavam a instituição e provocavam reações de todos os sujeitos envolvidos nessa rede – representantes da instituição, famílias, crianças, colegas de trabalho e o próprio docente –, o que se manifestaria nas situações cotidianas, como vimos no depoimento do professor Júlio sobre o conflito desencadeado por ele pleitear o simples direito de tomar um banho. Ao problematizar a polêmica questão da presença de travestis no cotidiano das escolas, Cruz (2011) aponta como o banheiro é, visivelmente, um espaço emblemático, que simboliza a representação social das diferenças de gênero. Como veremos, o próprio docente a todo o momento se indagava se era legítimo ou não, como homem, ocupar aquele lugar “reservado para mulheres”. Por isso, Júlio precisava “pedir licença” para adentrar naquele território, como simbolicamente o fez, colocando um recado na porta do banheiro para evitar constrangimentos das colegas. Conforme relatei anteriormente, nos primeiros anos em que assumiu o cargo de professor de educação infantil, Júlio conseguiu ficar com grupos de crianças maiores (3 a 4 anos), mas como sua classificação era baixa, devido ao seu recente ingresso na carreira, acabou chegando aos berçários, a princípio, não por opção, mas porque era o grupo que sobrava no processo de atribuição de aulas. Júlio tinha a intenção de se tornar um diretor de escola, e, ao que tudo indica, ele encarava aquela experiência no CEI como uma passagem necessária até que ele pudesse concretizar seu sonho. À época da entrevista, o docente atuava, já por escolha, num grupo de Berçário 1 com crianças na faixa etária de 6 meses a 1 ano de idade, embora tenha afirmado que demorou a assumir este seu gosto em trabalhar com bebês. Sayão (2005), em sua pesquisa sobre a presença de professores em creches públicas na cidade de Florianópolis, discute sobre como a opção pela profissão docente, para todos os sujeitos entrevistados pela autora, aparecia como uma oportunidade de trabalho e não como uma aspiração da infância. Ela atribuiu essa condição ao fato de que as próprias crianças têm

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seu comportamento controlado, não sendo permitido aos meninos, em suas brincadeiras, ocuparem papéis tidos como femininos, como seria, por exemplo, brincar de boneca ou de professora. Entretanto, para Hall (2005, 2009a), conforme discutimos anteriormente, o processo de construção das identidades na atualidade não parte de um único núcleo essencial, mas sim assume um caráter múltiplo e posicional de acordo com o contexto – tempo e lugar – em que vive o sujeito. O professor Júlio teve uma experiência diferente a esse respeito, pois em seus depoimentos expressou como a convivência com profissionais da educação em sua trajetória pessoal, desde a sua infância, foi decisiva em sua opção pelo magistério. Por outro lado, a opção de Júlio pela carreira do magistério, também, surgiu em meio a ambiguidades. O seu desejo de ser um diretor de escola – talvez como um papel masculino de autoridade que é socialmente aceito – e a sua demora em assumir o seu interesse como docente no trabalho com bebês são aspectos que sugerem como esse controle cultural e social sobre os papéis profissionais, que cada gênero deve ocupar, também se refletiam em seus questionamentos sobre a legitimidade de sua profissão e sobre os seus fazeres no cotidiano do CEI. Ocupando uma profissão culturalmente considerada como feminina, para construir a sua identidade como docente, Júlio teria que transitar nas fronteiras entre o que é socialmente esperado de um homem e o que é esperado de um professor (ou de uma professora) de crianças pequenas. Ao relembrar como foram os seus primeiros dias como professor de educação infantil, nas primeiras unidades infantis em que trabalhou, Júlio relatou: Nessa escola e na segunda escola que eu entrei, aqui é a terceira, nessas duas primeiras eu tive dificuldades. O professor tirou a professora, professorinha, tiazinha que todo mundo idealizava [referindo-se ao fato de ter ocupado uma vaga antes pertencente a uma professora contratada, que era uma senhora de idade, que apresentava problemas de saúde]. Eu tinha cabelo comprido na época. Eu era um monstro! Eu também ficaria assustado. Teve uma mãe que chegou, olhou pra mim, olhou pra colega do lado e disse ‘eu vim deixar minha filha’. Ela respondeu: ‘É aí mesmo’. A mãe retrucou: ‘Mas com ele?’, como se eu não estivesse lá! Eu entendo, porque eu também reagiria assim. As mães não queriam que eu lavasse as meninas. Eu perguntei pra diretora, ‘o que eu faço, é a minha atribuição?’. A diretora disse ‘se elas pediram, então não lava’. Aí as mães reclamavam e me chamavam de porco! Foi complicado. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Sayão (2005) destaca em sua pesquisa, com base nas ideias do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1999), como, ao assumirem um trabalho num ambiente reconhecidamente feminino, os professores passam por uma espécie de “rito de passagem” em que precisam provar a sua competência para realizar as suas funções. O fato, ainda, de sua formação no magistério ter viabilizado a Júlio o ingresso por meio de concurso público apareceu como uma agressão

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naquele ambiente, cujos pré-requisitos para exercer o cargo, num passado recente da instituição, eram tão somente o ensino primário e a experiência em cuidar de crianças como dona de casa, como vimos nos depoimentos de outras docentes que estavam há mais tempo na carreira. Nessa linha de raciocínio, Júlio estava transgredindo o perfil comum dos profissionais que atuavam em CEIs: ele era homem, jovem, possuía formação técnica e ainda fugia ao padrão de estética masculina usando cabelo comprido! Não é à toa que ele fosse considerado como um monstro, e que assumisse esse estranhamento perante a sua própria condição. “Eu também ficaria assustado [...] Eu entendo, porque eu também reagiria assim!” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Cruz (1998) afirma que quando homens atuam como docentes na educação infantil passam a ter sob suspeita a sua identidade masculina, como também a sua moralidade. Nessa mesma perspectiva, Sayão (2005), assim como sugerem as primeiras experiências de Júlio em CEIs, em São Paulo, também percebeu, na pesquisa que desenvolveu em creches públicas em Santa Catarina, a presença de uma crença disseminada de um homem sexuado, perverso, ativo e que deveria ficar distante do corpo da criança, o que provocava reações e discriminações quanto a atitudes dos professores. Júlio vivia, assim, um dilema: cumprir as suas atribuições com relação à higiene das meninas e levantar suspeitas sobre a sua idoneidade e um possível comportamento pedófilo, ou evitar esse contato e ser considerado um profissional incompetente ou descomprometido. De qualquer forma, como homem, em um CEI, Júlio estaria ocupando o lugar do “diferente”. Discutindo a regulação social do gênero, Butler (2006) alerta, porém, que “estar fora da norma” é uma questão paradoxal, pois, ao mesmo tempo que se é diferente, em certo sentido, se é controlado e definido por essa norma. Nesse sentido, a presença masculina de Júlio naquele ambiente seria a todo o momento interpelada e regulada pelos padrões femininos naturalizados e aceitos pela cultura da instituição, havendo reações de estranhamento mesmo por parte de algumas de suas colegas de profissão, como confessou a professora Lila: Eu tenho um lado educadora e um lado mãe. O lado educadora acha fundamental homens trabalhando na educação infantil. Antigamente não havia, hoje nós vemos homens trabalhando no CEI. Foi um avanço. Foi uma evolução. Mas, no meu lado mãe, eu tenho um pouquinho de preconceito. Eu, enquanto Lila mãe, não sei se eu gostaria que um professor tomasse conta da minha filha. Eu ainda tenho esse preconceito. Sei que eu ainda deveria me trabalhar, ver com outros olhos. Não sei se é uma coisa ainda enraizada, que a gente traz de épocas, de formação. Não que os homens não façam, trocar fralda, dar banho. Principalmente mexer nas partes mais íntimas. Eu acho que eles deveriam ficar com as crianças maiores. (PROFESSORA LILA, 2011, grifo nosso).

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Desse modo, a presença de um professor do sexo masculino naquele espaço concebido como feminino provocou diferentes reações e reflexões por parte das professoras que também precisaram situar-se diante dessa nova realidade. No depoimento da professora Lila, mesmo assumindo que este não seria o discurso esperado de uma educadora na atualidade, há a manifestação da dificuldade em aceitar que um professor do sexo masculino realizasse as tarefas de cuidados dos bebês, principalmente em se tratando das rotinas de higiene em que ele teria contato com “as partes íntimas” da criança, como afirmou Lila. Como discute Cruz (1998), ocorre uma cristalização dos papéis masculino e feminino. Tudo vai bem quando aqueles de um gênero se comportam como o outro gênero espera. Quando há uma flexibilização de papéis de um dos gêneros, isso demanda uma reorganização das identidades e uma renegociação nas relações de poder. Outros depoimentos, como o da professora Maria Cecília, expressaram essa contradição experimentada pelas professoras, que, por um lado, reconheciam a legitimidade do trabalho masculino nos berçários, mas, por outro, sentiam-se “deslocadas” ao compartilhar as tarefas de cuidado com um professor: Em 2005, quando eu estava no B1, como eu estava sozinha sempre vinha um. Outro dia, foi uma falha minha, veio um professor me ajudar e eu não deixava ele trocar. E ele falou, mas Maria Cecília, eu também troco. Eu pedi desculpa e disse que da onde eu vinha não tinha professor. Era novo pra mim. Agora não, eu já acostumei. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Outras docentes em seus depoimentos, como a professora Laura, davam mostras de que consideravam um fator positivo a presença de professores do sexo masculino na educação infantil: Eu achei muito importante esse entrosamento do homem com a educação infantil, muito importante, uma que também a criança aprende a ter referência, têm muitas que não têm aquela referência de pai, é criada só pela mãe. A dificuldade maior é o preconceito. O preconceito da própria família, achando que porque é homem não vai cuidar direito, achando que porque é homem não tem condições de cuidar do filho deles. Mas a gente tá vendo que esse tabu, esse preconceito tá caindo, graças a Deus, porque o homem ele é tão competente nessa área quanto a mulher, porque senão não existiria médico, né? Não existiria professor. Por que ele pode dar aula da 1ª a 4ª série e não pode cuidar da educação infantil? Eu acho que o preconceito, se eu fosse homem, acho que era o que eu ia enfrentar mais. Eu vejo os meninos lá, enfrentaram alguns preconceitos, né? Mas que bom que isso tá acabando. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Investido dessas contradições, nesse processo em que se constituía o seu papel profissional, em meio às relações que estabelecia numa instituição reconhecida como de caráter

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feminino, Júlio relatou suas estratégias de inserção no trabalho com bebês no CEI Freireano. Em seu depoimento, o docente nos sinalizou possíveis rotas pelas quais um professor (homem) aprende (ou não) a cuidar de bebês: Os conhecimentos que eu uso no trabalho do berçário vêm principalmente da infância. [...]. Tudo o que você vive influencia o seu jeito de ensinar, mesmo que a sua infância não foi estimuladora [...] Com relação à rotina, por exemplo, trocar fralda eu não sei quando eu aprendi. Mesmo trabalhando com os mais velhos, eu ficava observando a fralda. Quando eu comecei, eu colocava a fralda do lado errado. Foi mais empírico. Eu estragava fralda pra caramba! [...] Tudo o mais foi uma observação diante das colegas. O que é preconceito e o que é receio. A criança não pode cair. Mas ela pode se ela estiver no chão, é pertinho e não vai machucar. [...] eu via a segurança das outras colegas. As crianças na grama, não era desleixo era segurança mesmo. Noventa por cento foi observando as colegas [...] Hoje eu não sei como está, mas infelizmente na minha formação, há cinco anos atrás, parece que o ser humano passa a existir a partir do quinto ano de idade, se fala do amor, da atenção, mas no ‘e aí’ não se fala? Onde você encontra isso? Em guias pra mães. Eu ficava até constrangido em andar com um guia pra mães embaixo do braço, mesmo assim é mais focado no cuidado e não no ensino. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Desprovido dessa suposta experiência feminina com relação aos cuidados para com crianças e imbricado nas relações de poder exercidas pelas mulheres nos CEIs – consideradas “naturalmente” mais experientes –, foi nelas que Júlio iria buscar as referências para sua atuação no berçário. Foi a autoridade feminina que regulou “isso é receio, isso é preconceito”. Por outro lado, a partir de suas observações e tentativas, ele aprendeu do seu jeito a colocar uma fralda em um bebê, contrariando o discurso de que as mulheres são instintivamente mais capazes para esse tipo de tarefa, demonstrando que, de fato, tais cuidados requerem um prévio processo de aprendizagem, seja quem for que os execute. Em seu depoimento, Júlio evidenciou, ainda, o caráter regulador da ciência, já que, em sua formação no campo da pedagogia, também não teve oportunidades de aprendizagens com relação à educação e aos cuidados dos bebês. O docente expressou suas impressões sobre esse assunto, explicando que, embora aspectos teóricos do desenvolvimento infantil sejam abordados na formação acadêmica, o que fica de fora – ou tratado de forma velada – é o corpo, que só vai aparecer mais explicitamente em produções como Guias para mães, num enfoque da área de saúde, e que, num passado recente, como vimos anteriormente nas pesquisas de Viviani (2007), foi utilizado como recurso didático voltado para o exercício da maternidade numa visão higienista e eugenista. Porém, aprender a cuidar de bebês em um guia para mães, além de se tratar de um material que não oferecesse o embasamento necessário para a fundamentação da

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sua prática como docente, também causava constrangimentos ao professor, colocando em evidência uma preocupação que não fora explicitada em seu discurso, mas que parecia estar ali presente: aprender uma tarefa feminina comprometeria a sua masculinidade? A esse respeito, Cruz (1998) aponta: Interessante observar que a alusão a um homem com características ou comportamentos mais ‘femininos’, já remete à discussão sobre homossexualidade, indicando a bipolarização entre masculino e feminino, ou seja, se é um homem fazendo ‘coisas de mulher’ só pode ser um homem ‘não muito homem’. (CRUZ, 1998, p. 246).

Então, para além de preparar-se para exercer aquele ofício, lidar com bebês, especialmente com seus corpos, pressupunha estar em contato com aspectos da sua identidade como homem e como professor e com as marcas deixadas em sua história pessoal por meio das experiências por ele vividas ou por meio das “pedagogias da sexualidade”, conforme definiu Louro (2003). Para Hall (2005), na pós-modernidade, conforme abordei anteriormente, a definição de um sujeito não se dá por sua origem biológica, mas sim pela sua história, ou seja, ao nascer, a pessoa não possui uma identidade fixa que permanecerá a mesma por toda a sua vida, mas sim assume diferentes identidades em diferentes momentos e contextos, de acordo com os múltiplos sistemas de significação e representação cultural com que interage numa espécie de “jogo de identidades”. Assim, a(s) identidade(s) que o docente foi configurando em sua prática em berçários também se produziu na relação com o outro e com suas expectativas, conforme expressou em seu depoimento: a) Com relação à instituição, com base no conteúdo abordado na prova que prestou para o ingresso no cargo de professor de desenvolvimento infantil, Júlio acreditava que se buscava um perfil “romantizado” de docente: até pelas perguntas do concurso, a secretaria esperava pessoas absurdamente sensíveis [...] que se sintam tocadas pela fragilidade da criança, não de uma maneira de cuidado, mas uma maneira de encanto. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

b) Já as mães, segundo o docente, elas assumiam duas diferentes posturas, uma de encantamento e outra de desconfiança: “As mães ou ficam maravilhadas [que é a maioria], acham uma coisa de outro mundo de tão legal que é, ou fica desconfiada,

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não procurando defeitos, mas ela não se sente à vontade.” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). c) Já os pais [homens], na experiência de Júlio, se identificam com o docente quando percebem que ele é um trabalhador, e que ocupa, assim, um papel masculino que é socialmente aceito: “a princípio eles veem com estranheza, não por eu ser homem, mas por conta da característica feminina principal da profissão [...] mas depois de conversar eles percebem que eu estou trabalhando.” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). d) Entre as próprias colegas de trabalho, principalmente as mais velhas, mesmo admitindo que algumas professoras de mais idade tivessem um pensamento mais “novo” que o seu, Júlio recebe apoio, mas percebe certa inconformidade por sua escolha em trabalhar com crianças pequenas: “Você percebe que elas pensam assim: ‘Ah! Não era isso que eu queria pro meu filho’, ‘coitadinho não teve chance, não pode fazer outra coisa!’.” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). e) Entre as crianças maiores, ele percebe diferenças nas formas de tratamento, pelo fato de ele ser homem; e, entre os bebês, Júlio percebe diferentes expressões corporais em função do seu sexo: Por ser homem, os maiores vêm cumprimentar como se fosse um amigo. As meninas, mais docemente. Com as professoras são mais autênticos, informais. Age com o homem do jeito que a sociedade espera que se aja diante do homem. Já com a mulher, você pode se sentir à vontade [...]. Mesmo entre os bebês. Quando a colega pega um bebê no colo, ele fica quietinho. Quando eu pego, eles se sentem mais fisicamente seguros e podem rodar que não vão cair. Eles agem diferente. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Quando lhe perguntei a respeito de sua própria visão sobre o papel de homens e mulheres frente à educação da criança pequena de uma maneira geral na sociedade e na sua profissão, o docente afirmou já ter se perguntando muito a esse respeito, e, aparentemente, não tem uma opinião fechada. Referiu-se a longos debates em que se envolvia na faculdade. Todavia, mesmo apresentando vários argumentos pedagógicos, políticos, sociais, culturais ou de sua experiência pessoal, Júlio – usando o mesmo discurso utilizado pela professora Joyce e a professora Luiza, acerca da necessidade de alguém fazer o papel “duro” ou “masculino” frente às crianças – concluiu o seguinte:

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Não tem como querer que seja idêntico. Tem família que tem duas mães e uma criança, mas uma sempre faz o papel mais rígido e outra mais flexível, mesmo que não seja uma relação homossexual, pode ser uma mãe e uma avó. Eu concordo com isso. De um modo simplista, sempre tem o lado mais ‘duro’ e o mais ‘mole’. Pra criança, isso tem que ser muito óbvio. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Júlio, ainda que considerasse as controvérsias que enfrentava em sua opção por uma profissão considerada feminina e também levasse em conta aspectos como as diferentes formas de organização familiar ou de relações entre indivíduos do mesmo sexo, expressa em seu discurso como a procura de uma categorização fixa dos gêneros masculinos e femininos está presente em suas reflexões e inquietações. Talvez, como modo de encontrar um lugar para ancorar a sua própria masculinidade, numa concepção heteronormativa, como define Butler (2003a), nesse contexto em que imperava o feminino, para Júlio, não importava quem se responsabilizasse pelos cuidados da criança, mas os papéis femininos e masculinos precisavam ser delimitados. Medrado e Lyra (2008), num enfoque do feminismo crítico, afirmam que é preciso levar em consideração nos estudos específicos sobre as masculinidades quatro aspectos principais: o sistema sexo/gênero; a dimensão relacional; as relações de poder; e a ruptura das relações binárias – homem/mulher – no âmbito das esferas políticas, institucionais e das organizações sociais. Em vários momentos de sua entrevista, o professor Júlio, que se reconhece como homem, sinalizou de que modo as expectativas quanto às suas atitudes na instituição se configuravam em um jogo de poder entre o gênero masculino e o feminino, e como a sua masculinidade ia sendo a todo o momento interpelada nessa trama de relações, como veremos nos seguintes excertos de seu depoimento: No dia a dia, a diferença é que as crianças ‘gigantes’ (têm uns enormes!) sou eu que troco. A colega também consegue, mas se eu posso fazer com mais facilidade [...] A minha colega tem um problema no ombro. No ano passado tinha outro bebê enorme e ela teimou, teimou, teimou e no final do ano teve que se afastar por causa do ombro. As crianças maiores, eu troco, mesmo que sejam meninas. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Eu troquei ela, embora eu sempre evite trocar as meninas, só quando não é possível. Eu tenho muito receio com os expectadores, porque, por exemplo, se a menina fez cocô, você tem que lavar direitinho a vagina da bebê, ou passar bem o lencinho umedecido e a pessoa não compreende. Eu mesmo já ouvi uma moça da limpeza falando ‘olha ele cutucando a menina!’. Ainda bem que a outra falou ‘não, sua besta, ele é o professor!’. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

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O fato de ter uma professora e um professor na sala ajuda na adaptação da criança, porque, ao contrário do que se fala, aqui na minha sala, a maioria tem pai e mãe em casa. Ela sente um clima mais familiar. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Algumas crianças têm medo se eu chamar atenção. Quem olha de fora acha que ‘esse já judiou desse menino’, mas é a imagem do masculino, do diferente, já que a maioria das professoras são mulheres. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Por ser homem, as pessoas sempre acham que eu vou jogar bola com as crianças, os pais, os colegas, e eu ainda sempre venho de agasalho. Quando eu converso com as pessoas, elas pensam que eu sou professor de educação física. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Para algumas mães, o meu papel é de macho dominante, infelizmente para algumas ‘de pai’. Eu fico entristecido, porque se a criança não tem pai ela tem que aprender a lidar com isso e não ficar com compensações. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Elas ficam me cantando, e são sempre as feias! Teve uma mãe que era garota de programa e ficava uma hora na porta da sala quando vinha buscar a criança, na primeira escola que eu trabalhei. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). As mães acham que como você está disposto a cuidar da criança, você vai criar a criança. Entram na fantasia de ter um pai como o professor, que ama a criança, troca, limpa etc. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Em todos esses exemplos, o pano de fundo é uma concepção binária de gênero que atravessa a prática docente e dita suas regras: se é homem, é forte; se é mulher, é frágil; se é homem, é sexualmente ativo e perigoso; se é mulher, é assexuada e de boa índole; um homem e uma mulher juntos, mesmo profissionalmente, representam sempre um casal heterossexual – ou o pai e mãe –, o que seria uma referência familiar ideal para a criança; homens devem demonstrar virilidade e as mulheres doçura; mulheres cuidam e acalentam, homens jogam bola e colocam as regras; se o homem cuida bem da criança é porque deseja a mãe, e a mulher, por sua vez, necessariamente, deseja o homem que assume o papel de “pai”. Nessas situações, todos os sujeitos envolvidos – o professor, as mães, as demais professoras, as funcionárias, as crianças etc. – participavam de uma rede em que tal mecanismo ia configurando as relações, de tal maneira que os poderes se revezavam. Desse modo, na experiência de Júlio, há momentos em que ser homem, e mais bem preparado fisicamente, fez com que ele tivesse uma maior facilidade para lidar com os bebês mais pesados. Já para trocar meninas era a professora quem tinha a “autorização” da sociedade. Se, por um lado, algumas mães confundiam a dedicação de Júlio à criança com interesse sexual por elas, de certo modo, esse jogo sensual também participava das relações pessoais e profissionais que o professor estabelecia com essas mulheres.

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Nesse contexto relacional, alguns fazeres – ou saídas pedagógicas – idealizados por Júlio ilustram como ele foi delineando o seu jeito particular de exercer o seu papel docente em meio às incertezas, dilemas, polêmicas e controvérsias enfrentadas em sua prática como professor de bebês, conforme podemos observar em alguns dos seus depoimentos: Eu ainda morro de medo de pegar no colo. Quando pego no colo, procuro estar sentado no chão, porque eu sou alto e tenho medo deles caírem e se ‘estabacarem’ no chão! (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Então veio um grandão. Ele gosta muito de mim. Ele sai do colo da mãe chorando, mas vem por livre e espontânea vontade comigo. Isso é uma coisa que eu não faço. Eu nunca tiro um bebê do colo da mãe, acho isso uma violência. [...] Aí ele veio pro meu colo, fez um biquinho muito fofinho, eu adulei ele e ele se acalmou. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). A gente vai incentivando a caminhada. Esse menininho que engatinhava de costas era o que tinha mais receio de caminhar. Aí a gente teve uma ideia. A gente pegava uma tira de pano, passava por baixo dos ombros, pelo peitinho aí eu segurava ele no alto. Aí ele começava a andar. Ele desequilibrava eu mantinha ele de pé. Então ele começou a ter confiança que não ia cair e eu comecei a andar com ele pela escola. Quando eu senti que ele estava mais seguro, eu passava a tira por dentro da roupa dele, pra eu soltar a tirinha e ele continuar sentindo a tirinha no ombro. Eu andava do lado dele. E assim foi bem rápido. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Esses e muitos outros exemplos que Júlio relatou em sua entrevista, que ainda serão analisados em outras etapas da pesquisa, ilustram o seu percurso na construção de sua identidade profissional como professor de bebês e de que forma as questões de gênero participaram e participam desse processo. A constante interpelação sobre como exercer a sua masculinidade, ao mesmo tempo que trouxe à tona estereótipos, estigmas e visões essencialistas a respeito da profissão docente no âmbito de um CEI, também criou oportunidades para que o docente, subjetivamente, procurasse as suas próprias estratégias de inserção naquele ambiente. Se o exercício do magistério é atravessado por questões relacionadas ao gênero feminino, que a todo o momento “batem à porta” do professor Júlio em sua busca de uma identidade profissional, fica ainda o questionamento, mas que gênero feminino é este? Todas as professoras seriam dotadas de uma mesma condição também naturalizada de cuidar e educar com base em suas experiências como mulheres? Desse modo, de acordo com as discussões de Nicholson (2000), talvez seja possível inferir que, no processo de construção de sua(s) identidade(s) como docente, Júlio e sua(s) masculinidade(s) esteve (estiveram) em constante relação com diferentes feminilidades naquele contexto específico de um CEI.

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Além do fato de reconhecer-se como homem e de todas as implicações biológicas, psíquicas, culturais, sociais etc. dessa condição, a(s) identidade(s) docente(s) do professor Júlio se produziu (produziram), e permaneceu (permaneceram) se produzindo, a partir de sua trajetória de vida, dos saberes que mobilizou, do encontro com outros sujeitos em sua história pessoal e profissional, de seus desejos, interesses e intenções em diferentes tempos e lugares. Num determinado momento da entrevista, Júlio confessou que, por mais que isso “pesasse”, ele não achava que fosse seu papel trocar fraldas, e, contraditoriamente, mais adiante, revelou que também se ressentia de não poder trocar as meninas pelos preconceitos que sofria por ser homem. Disse ainda que não gostava de convencer os pais a levarem os filhos no médico, pois isso era coisa de “pai e mãe” e intransferível. Ao mesmo tempo, o que mais gostava era poder tocar os bebês e do contato “mais quente, mais caloroso, mais humano” que existia entre os profissionais da educação infantil. Nas várias citações, é possível notar o esforço do professor em penetrar nesse universo feminino que, culturalmente, tornou-se imperativo no que se refere ao ato de “cuidar” de bebês, seja na família ou em um centro de educação infantil, sem, porém, abrir mão da sua identidade masculina como pessoa e como professor que, necessariamente, para isso, deveria “ensinar”. Transitando por entre as “fronteiras vigiadas dos gêneros e da sexualidade” (LOURO, 2008, p. 20) que perpassam a sua atividade docente, Júlio, em sua experiência, se fazia e se refazia constantemente como homem, como professor e como sujeito, assim como as demais docentes com quem convivia.

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6 FAZERES, SABERES E PODERES NAS RELAÇÕES PROFISSIONAIS COM BEBÊS No início do ano eles choram quando se separam da mãe, a mãe chora do outro lado. A gente vai falando, fica junto. A gente vai aprendendo a conhecer o bebê, o que ele gosta. Essa abertura [...] pras mães virem e acompanhar os primeiros dias dos bebês, amamentarem, ir pra casa e voltar, ficar um pouquinho, criar confiança, é muito importante tanto pras crianças quanto pras mães. Só deixar na porta e ir embora é muito frio. Aí esse bebê que chorava não chora mais. Quando você abre a porta e eles dão os bracinhos pra vir com você é muito gratificante. Com o tempo, eles vão percebendo que você não é uma pessoa estranha e a mãe pergunta ‘ele não chora mais?’ com ciúmes. Professora Joyce

Em meio aos depoimentos, relatos e reflexões das professoras e do professor que participaram da pesquisa, foi possível identificar diferentes contextos em que sua profissão vem se constituindo ao longo do tempo nas creches públicas – hoje, centros de educação infantil – até o momento presente em que se encontravam atuando com bebês no CEI Freireano. Partindo dessa perspectiva das docentes, das experiências por elas vividas no interior dos berçários e de suas impressões sobre essas vivências profissionais, neste capítulo pretendo propor um breve esboço dessas tramas que foram se configurando nas últimas décadas na instituição. Para tanto, apresento aqui uma discussão sobre as práticas por elas desenvolvidas com os bebês, os saberes que orientavam suas ações e ainda as relações de poder que se estabeleciam entre os sujeitos envolvidos nesses cenários: profissionais, bebês, famílias, órgãos governamentais, entre outros. Nessa perspectiva, no texto em epígrafe, podemos observar no depoimento da professora Joyce a forma como a profissional, no contexto específico do CEI Freireano, lidava com o processo de adaptação de um bebê e de sua mãe e as sensações e percepções de cada um nesse processo: o medo do bebê, a insegurança da mãe, os saberes acumulados pela docente nesses momentos nos períodos iniciais dos anos, as práticas propostas naquela unidade infantil para enfrentar essas situações de adaptação e a reação de ciúmes da mãe, expressando, possivelmente, uma disputa de poderes entre a docente e a família no que se refere à responsabilidade sobre a criança. Dessa maneira, na discussão proposta ao longo deste capítulo, sem preocupar-me em propor uma descrição detalhada da instituição ou uma cronologia dos fatos relatados pelas professoras e pelo professor, procurei identificar, por meio dos seus depoimentos, elementos no

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que se refere aos fazeres, saberes e poderes que permeavam a sua ação profissional em berçários. Pretendo, assim, me aproximar desse cenário (ou desses cenários) em que sua profissão foi se constituindo, buscando conduzir-me pela dinâmica própria em que tais memórias e impressões se manifestaram nos discursos das docentes e do docente. 6.1 MEMÓRIAS DA INSTITUIÇÃO E A GÊNESE DA DOCÊNCIA EM BERÇÁRIOS Conforme a análise proposta na introdução deste trabalho, o histórico das creches (ou CEIs) em nosso país, e particularmente na cidade de São Paulo, tem sido marcado por episódios que refletem o lugar que a infância e a mulher vêm ocupando na sociedade, como também os movimentos e as reorganizações sociais que ocorrem no sentido de transformar essa realidade, o que, consequentemente, incide sobre as expectativas quanto ao papel das(os) profissionais que atuam nessas unidades infantis. A origem das instituições de educação infantil na sociedade brasileira, como discutimos anteriormente, esteve intimamente ligada a necessidades assistenciais e filantrópicas de atendimento de crianças pobres. Vimos também que as creches foram fortemente influenciadas pelo movimento higienista, que pretendia disseminar conhecimentos da ciência médica voltados ao desenvolvimento da criança, visando a atingir o ideal eugenista de melhoria da raça brasileira. Discutimos, ainda, como, na atualidade, desde o momento em que os CEIs passaram a integrar a SME, em São Paulo, novas expectativas e exigências surgiram quanto ao papel educacional a ser cumprido por essas unidades infantis. Nessa perspectiva, as memórias narradas pelas docentes e pelo docente sobre suas experiências vivenciadas no interior da instituição expressam diferentes percepções a respeito desse processo. Em determinados aspectos, como veremos adiante, as suas impressões refletem os próprios discursos da instituição no que se refere à existência de um passado sombrio, relacionado à época em que as creches eram mantidas por órgãos de assistência social, que, em tese, teria sido automaticamente superado a partir dessa mudança dos CEIs para o âmbito da educação. Durante as entrevistas, ao solicitar que relatassem as suas experiências profissionais passadas, seus discursos deram indícios de que é comum se fazer uma avaliação negativa daquela época. As poucas manifestações em que as professoras expressaram haver satisfação ou orgulho pelo trabalho realizado nessa outra fase da instituição apareceram, timidamente, de maneira implícita ou em meio a justificativas no sentido de demonstrar que, mesmo tendo feito parte daquele cenário “superado”, elas não se identificavam com determinados aspectos considerados “negativos” a partir de uma ótica educacional.

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Demarcando de maneira emblemática as diferenças entre o passado e o momento atual da instituição, um aspecto que apareceu recorrentemente nas memórias das professoras, referese à forma como os bebês viviam confinados em quadrados – berços de ferro – sem liberdade de movimento, expressando uma excessiva preocupação com a higiene e com os riscos de contaminação da criança em detrimento de sua liberdade de movimento e de exploração do ambiente: “Antes tinha os quadrados, era tipo uma prisãozinha na verdade. Hoje não, tá totalmente diferente.” (PROFESSORA ISABEL, 2011, grifo nosso). Nos depoimentos da professora Laura e da professora Maria Cecília, sobre o primeiro contato que tiveram com os berçários ao assumirem o cargo de ADI, no início da década de 1990, ambas utilizaram em seus discursos a expressão “choque” para definir as suas impressões ao se depararem com essa organização dos ambientes e com a postura de algumas profissionais que atuavam nos berçários: Mas aí quando eu cheguei lá, o choque foi maior. Porque era um monte de quadradinho e as crianças tudo enjauladinha. Meu Deus, o que eu vim fazer aqui? [...] a creche que eu lutei pra ter! [...] as professoras tingiam o cabelo, tirava sobrancelha, fazia unha, fazia tricô e as crianças ali no quadradinho. Eu fiquei pasmada. (PROFESSORA LAURA, 2011, grifos nossos). Quando eu entrei, pra mim foi um choque quando eu vi aquelas crianças no berço. Porque tinha aqueles quadrados e quase nunca colocavam as crianças no chão. [...] Eu me choquei um pouco com a postura de algumas pessoas, porque eu tinha trabalhado na empresa privada. E se fosse na empresa não aconteceria aquilo. Eu fui pensando, eu vou fazer a minha parte. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011, grifos nossos).

Por se tratar de uma profissão considerada do gênero feminino, como discuti anteriormente, as profissionais reproduziam em sua prática cenas domésticas em que simplesmente olhavam as crianças, sem nenhuma intencionalidade de cunho pedagógico, enquanto se ocupavam de outros afazeres considerados do universo da mulher, como se estivessem em suas próprias casas, não havendo na instituição, conforme relataram as docentes, uma delimitação precisa entre a esfera pública e a privada. Talvez, em virtude das expectativas que Laura, como militante de movimentos populares, e Maria Cecília, como trabalhadora do setor privado, traziam para sua prática em creches públicas, isso fazia com que elas questionassem o caráter do trabalho desenvolvido com os bebês e a conduta das demais profissionais. Ambas as docentes, em suas narrativas, procuraram diferenciar-se desse perfil profissional, que se distanciava das propostas educacionais hoje difundidas pela instituição.

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Essa indissociação entre o âmbito público e o privado, como uma das características da instituição, aparece também na narrativa da professora Luiza com relação à maneira como, há 30 anos, ocasião em que ela ingressara na carreira como pajem, eram concebidos os diferentes papéis no quadro de profissionais das creches públicas na cidade de São Paulo: A diretora era muito bacana, [...]. Eu fui pra uma creche e de cara já fui pra cozinha porque a cozinheira não tinha chegado ainda, outra colega foi pra serviçal e outras pros grupos de criança. Não tinha muita divisão de trabalho, a gente fazia de tudo e nós trabalhávamos 9 horas com uma de almoço. Depois foi chegando mais funcionários. Tinha uma professora que ajudava a diretora e a gente na parte pedagógica, também não tinha assistente. Quando chegou a cozinheira, ninguém queria que eu saísse da cozinha, a cozinheira ficou muito enciumada (até hoje ela está na mesma creche). Mas eu disse pra ela que meu negócio era criança, mesmo assim eu sempre dava uma assistência pra ela. (PROFESSORA LUIZA, 2011).

O relato de Luiza evidenciou uma forma de organização do trabalho em que predominava a ausência de definições dos papéis profissionais, embora tenha expressado também que considerava tais circunstâncias uma condição natural de sua função como pajem e como profissional do gênero feminino; já que o próprio funcionamento da instituição pautava-se em condutas domésticas e nas relações de “camaradagem”, assemelhando-se ao ambiente familiar. Os depoimentos das docentes expressaram também que as relações entre as mulheres que conviviam no interior da instituição, sejam elas profissionais ou mães das crianças atendidas, também refletiam as expectativas com relação aos papéis sociais da mulher frente aos cuidados das crianças, como evidencia o relato da professora Luiza: Antes a creche não era um espaço da criança, era pra mãe que trabalhava realmente. A mãe trabalhando, ela pode dar mais um pouco em casa, assim na estabilidade da vida deles. Os pais parece que não se separavam tão fácil. [...] Naquela época as mães queriam que a gente cuidasse bem e desse carinho pro filho dela, que ela deixava nos cuidados da gente, porque ela ia realmente trabalhar, e tudo o que a gente pedia elas concordavam. Hoje, eu vejo assim, têm muitas mães que sim, mas têm muitas mães que deixam por deixar os filhos, pra elas parece um alívio deixar os filhos aqui. Se a gente fala ‘seu filho não tá bem’, elas fazem de conta que não ouviu. Só leva pra uma consulta no extremo, quando não dá mais. Elas acham que a gente tem a obrigação. E antes a gente tinha: limpava a cabeça, a gente cortava a unha, era mais paternalismo mesmo. E a gente percebia que os pais trabalhavam fora mesmo. Tinha a triagem, tinha uma enfermeira, não passava nada despercebido. Agora, hoje é difícil, pra gente perceber que uma criança caiu ou qualquer coisa, porque as mães fazem de propósito, põem uma toca, uma blusa de capuz até que a gente tire aquilo lá pra perceber que se ela caiu que machucou, porque elas ocultam da gente. Isso sempre acontece. Antes elas tinham mais

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sensibilidade de dar satisfação pra gente de manhã. Hoje, a gente tem que ficar perguntando e insistindo e, às vezes, elas até omitem. Mas a gente não é nada boba. Só de olhar a gente já percebe, até se a criança está com febre ou não. (PROFESSORA LUIZA, 2011, grifo nosso).

Nesse depoimento, a professora Luiza, fazendo um contraponto com a situação atual dos CEIs, referiu-se, com certo “saudosismo”, a um perfil de mulher complacente que aceitava, sem questionamentos, as regras da instituição e que “merecia” ser auxiliada pela creche nos cuidados dos seus filhos, já que estava trabalhando realmente, fato que enfatizou várias vezes, evidenciando que, antigamente, esta era uma exigência da instituição para a matrícula da criança. É possível perceber novamente nesse relato, e em outros mencionados pelas demais docentes no decorrer das entrevistas, a influência de concepções higienistas, no que se refere ao propósito desse movimento de incutir na população, por meio dos serviços assistenciais e educacionais, hábitos de higiene e saúde considerados adequados. Nesse sentido, as mães eram submetidas a um rígido controle por meio de triagens realizadas por uma enfermeira no horário de entrada na creche. Luiza demonstrou acreditar que esse tipo de abordagem mais rígida era mais eficaz do que os métodos atuais de relacionamento com as famílias, nos quais, segundo sua opinião, há uma flexibilização maior nas regras e, em contrapartida, uma responsabilização menor das mães para com os cuidados dos filhos. Laura, porém, referindo-se à relação com as famílias naquele mesmo período, manifestou uma opinião diferente, fazendo uma análise crítica a respeito da forma como elas eram tratadas pela instituição: mas a gente via assim que tinha muito preconceito também contra a família. [...], porque a criança era pega no portão, o pai não entrava na creche, não entrava na sala. E quando tinha reunião, às vezes, nunca era na creche, ou era no salão comunitário, sabe? Então os pais não tinham aquele contato com o espaço que o filho ficava. Sabia que tava lá dentro, mas não tinha aquele contato. [...] como é que eu vou saber como é que ele cuida da criança se eu não tenho contato com ele, se ele chega larga a criança no portão, porque ficava duas professoras pegando as crianças no portão, duas ADIs naquela época, e as outras na sala, que eram as suplentes [volantes] né que falava. Então a gente não tinha contato. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Outro aspecto destacado pelas docentes que atuam há mais tempo na instituição referese ao fato de que o planejamento das atividades pedagógicas era elaborado por uma professora de creche, sem que houvesse a participação das profissionais que atuavam diretamente com as crianças. A professora Joyce, referindo-se a esse período da instituição, afirma que, mesmo estando as pajens e ADIs empenhadas em realizar um bom trabalho com os bebês, o fato de elas

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não terem a liberdade de planejar as suas próprias atividades poderia justificar a falta de envolvimento de algumas profissionais, como analisa: Antes a gente não tinha liberdade pra trabalhar. Haviam duas professoras que planejavam as atividades e nós apenas executávamos. Elas tinham o magistério e nós não. Elas planejavam e davam as atividades prontas. Então era muito trabalho mimeografado pros grandes. [...] A gente podia fazer tudo com carinho, dar as atividades, mas não podíamos elaborar um projeto para ir desenvolvendo o ano todo com os bebês, e você ir na sequência conforme eles forem evoluindo, porque a gente não era vista como professora. [...] Ela trazia pronto pra semana e a gente fazia. E uma coisa que você não preparou você não tem o mesmo carinho de aplicar e nem o entendimento dos objetivos. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

A narrativa da professora Joyce mostra que, no contexto da instituição, havia uma hierarquização dos papéis profissionais, a partir da qual uns “pensavam” as práticas com as crianças e outros as “executavam”, por meio de uma dinâmica verticalizada das relações de trabalho. Numa outra perspectiva, a professora Lila, que também exercera o cargo de “professora de creche” na década de 1980, coordenando as atividades pedagógicas de pajens e ADIs, relatou as suas experiências sobre a convivência dos diferentes papéis profissionais que coexistiam na instituição naquele momento, expressando as suas impressões e opiniões, a partir desse outro lugar. A docente relatou iniciativas que empreendia para melhor entender e exercer o seu papel profissional e colaborar com o trabalho das demais profissionais, que, segundo ela, também, já naquela época, sentiam a necessidade de aprimorar as suas práticas: Eu fiz alguns cursos na CRECHEPLAN que era ligada à USP (sic). Naquela época, tanto as pajens quanto nós que éramos professoras que fazíamos a coordenação, tinha uma necessidade de ‘o que eu vou fazer com essa criança, com esse bebê, com a criança do pré, será que a finalidade minha é só dar comida, trocar?’ Então fomos a nível de pesquisa. E teve um livro também da Madalena Freire A paixão de conhecer o mundo. Eu tenho ele até hoje. (PROFESSORA LILA, 2011).

Todavia, anos mais tarde, ao retornar à creche (CEI) como docente, Lila reencontrou algumas profissionais com quem havia trabalhado anteriormente nessa condição de “coordenadora” e que manifestaram, numa espécie de “revanche”, a sua reação frente a essa inversão de papéis vivenciada pela docente, evidenciando traços de rigidez e de antagonismo nessas relações entre a “professora” e as demais profissionais no contexto das creches: “Algumas pessoas falaram: ‘agora você vai saber o que a gente passa’, porque antes eu só

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coordenava e não trabalhava direto com a criança. Mas eu não vou deixar de ser a mesma” (PROFESSORA LILA, 2011). Outros relatos das docentes deram indícios de que a rigidez, o autoritarismo e a verticalização eram aspectos que também permeavam outras relações no interior da instituição, seja na forma de como os bebês eram confinados em quadrados; seja na maneira como as famílias eram tratadas; seja na imposição de tarefas; seja na não participação no planejamento das ações e nas decisões sobre o trabalho pedagógico; seja na distância entre as funcionárias e a direção ou em situações vexaminosas a que as profissionais eram expostas, como expressam os relatos das professoras Isabel e Laura: Hoje, as pessoas têm mais facilidade de chegar no diretor e falar: eu quero fazer isso. Antigamente não, era mais difícil, era mais fechado, antes não tinha tanto funcionário como hoje. Você vai ficar ali e acabou você vai fazer isso porque eu quero. Hoje o professor tem mais abertura pra questionar, pra pedir algo, para tentar mudar. Hoje tá mais fácil para trabalhar. (PROFESSORA ISABEL, 2011). Eu nunca me esqueço quando o Pita falou que a gente tinha que limpar o bumbum do bebê, tinha que usar só 40 centímetros de papel. [...] Papel higiênico. Aí eu falei como é que a gente vai medir e se a criança tá com diarreia. Você já tem que pegar um monte pra poder limpar. Eu acho um absurdo, eles parecem que vivem em outro... não foram criança. (PROFESSORA LAURA, 2011).

A professora Laura relatou, ainda, que os instrumentos de avaliação de desempenho profissional eram utilizados para exercer o controle ideológico sobre quem questionava as normas de funcionamento da instituição, como vemos em seu depoimento: Nas avaliações também. Eu sabia que eu tava fazendo meu trabalho direito, sabia, e eu via gente que não fazia o mínimo e tirava 80 e eu tirava 70, 75. Então, tinha hora que eu me sentia em outro planeta, meus Deus, eu não tô entendendo, sabe, porque as crianças estão contentes, as crianças estão felizes, as crianças estão rendendo, tão sabendo, tão andando mais rápido, [...]. E eu não tinha valor, não tinha, por quê? Porque eu não rezava pela cartilha da diretoria ou do partido, sabe. Então eu sofri muito. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Mesmo sem terem vivenciado as situações anteriormente descritas pelas professoras que atuavam há mais tempo na instituição, ao serem indagados sobre o que ouviram falar a respeito do trabalho em creche no passado recente da instituição, o professor Júlio e a professora Monique (que ingressaram na carreira, respectivamente, em 2004 e 2011) disseram o seguinte:

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A criança não era considerada indivíduo, a criança era um mero objeto, eu li uma vez que o desejo era de imobilidade e silêncio. As colegas comentam muito que as diretoras eram terríveis [...]. Hoje ainda tem gente que não entende. Por não se considerar como espaço educacional e não considerar a criança um sujeito de sua própria vida não era um currículo, eram meios de conseguir imobilidade e silêncio, fazer a criança ficar viva o maior tempo possível, sem perturbar, serem higienizadas pra depois na escola ela aprender as coisinhas dela. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). De um tempo passado que ouvi falar, acho que houve avanços na instituição, saiu dessa visão realmente assistencialista, depósito de criança pra uma evolução da concepção do que é essa criança que a gente atende não um amontoado. (PROFESSORA MONIQUE, 2011).

Assim como ocorre no senso comum ou mesmo em algumas discussões no campo da educação infantil, os discursos das docentes e do docente, de uma maneira geral, apresentaram elementos que desenharam um quadro sombrio a respeito de como as creches funcionavam nesse passado recente. Expressões, como prisãozinha, enjauladinha, triagem, você vai saber o que a gente passa você vai fazer isso porque eu quero rezar pela cartilha da diretora ou do partido, depósito de criança, imobilidade e silêncio, entre outras, deram indícios de que existe um discurso coletivo comum acerca da precariedade na organização da instituição, do desrespeito aos direitos básicos da criança, da desvalorização profissional, da rigidez nas relações de trabalho e do controle ideológico exercido sobre e por meio das profissionais, o que nos remete, novamente, à análise de Foucault (1987) sobre o poder disciplinador das instituições. Entre as professoras e o professor que participaram da pesquisa foi um consenso a afirmação de que, na cidade de São Paulo, a passagem das creches da Secretaria de Assistência para a Secretaria de Educação representou um grande avanço na história da instituição e da carreira das profissionais que atuam nessas unidades infantis. Entretanto, as docentes, embora tecendo críticas às condições de trabalho no passado da instituição, também relataram experiências vivenciadas naquela época e que foram por elas consideradas de sucesso, como vemos no relato de Laura: E um dos passos mais emocionantes que eu tive, tive vários, mais o mais emocionante que eu tive foi do Valdir. Que era uma criança, o pai era deficiente visual e a mãe era deficiente visual. [...] Quando eu fui pro berçário, ela tinha tido o Valdir, bebezinho, era um menininho, era uma graça, ativo, ativo. E ela falava assim pra mim: ‘Dona Laura, ensina o Valdir a andar porque fica muito difícil pra eu trazer’ [...] ele, a mochila e ainda vir com a bengala [...] Aí um dia eu peguei ele, as crianças, fomos para o solarium, [...] ele já ia fazer 2 anos, tava com 1 ano e 9 meses. Todas as crianças já estavam andando, algumas engatinhando, e ele nada. Ficava sentadinho, tava

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sentadinho ficava. Se eu não fosse mexer nele, pegar na mão dele, fazer andar, ele não saía do lugar. Aí tinha uma árvore grande assim e caiu um galho da árvore. Aí eu vi ele pegar e esticar assim parecia um cabinho de guarda-chuva o galho, sabe. Ele esticava assim a mãozinha deitado tentando pegar o galho. Aí eu fui lá, peguei o galho, tirei as folhas, quebrei a ponta e ficou tipo uma bengalinha assim e entreguei na mão dele. Esse menino levantou e saiu andando que nem a mãe e o pai. [...] chamei todo mundo e foi a maior choradeira nesse dia na escola. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Desse modo, alguns dos seus relatos deram indícios de que tais mudanças não ocorreram subitamente nessa nova organização da instituição, mas sim foram sendo gestadas ao longo das últimas décadas no interior da instituição, em movimentos de resistência, na acepção de Foucault (1988), como demonstrou o depoimentos da professora Maria Cecília sobre as estratégias a que recorreu para tentar modificar esse cenário no que se refere às práticas de cuidados dos bebês: Aí foi um processo, as pessoas novas que estavam entrando aí já afastavam os quadrados e colocavam aos poucos no chão. [...] Aí foi passando o tempo e foi melhorando [...]. As funcionárias mais velhas falavam: ‘Ah vocês chegaram agora!’ Nós chegamos do concurso numas 15 pessoas, tudo nova, que não tinha trabalhado ainda em CEI [...] acho que a gente conseguiu revolucionar, a gente deu uma reviravolta. [...] No início, eu acho que as crianças ficavam muito restritas à alimentação e à troca e aos berços. Aí foi passando o tempo, mesmo em SAS foram tirados os berços de B2 aí ficaram só no B1. Mas as coisas mudaram mesmo eu acredito de 2003 pra cá. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

A professora Joyce referiu-se também à passagem para a Secretaria de Educação como um momento em que a precariedade inicial das condições de trabalho foi superada: “Antigamente, a gente além de cuidar das crianças, a gente limpava a escola. Hoje, eu acho que tudo que eu faço eu ganho muito bem pra fazer. Eu tenho que fazer muito bem feito.” (PROFESSORA JOYCE, 2011). Maria Cecília, porém, comparando o passado e o momento atual da instituição, embora faça críticas ao que chamou de falta de profissionalismo que marcava o período em que ela ingressou na carreira, demonstrou também que sentia saudades dos vínculos que se estabeleciam naquele contexto e do clima afetuoso que essa proximidade entre as profissionais imprimia ao trabalho desenvolvido na creche: Antes era tudo assim, não tinha pessoas pra orientar, deixava as crianças no parquinho, dava um banho, cuidava, passeava, passeava-se muito. Hoje, eu acredito que o trabalho é mais gratificante porque antes era o cuidar, mas, às vezes, eu tenho saudade, porque as pessoas eram mais unidas. A gente fazia as

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festas, almoço ao ar livre. Depois à tarde tinha o bolo. Hoje é bom, mas é mais sistematizado, é isso, é aquilo. As crianças também participavam, eram cuidadas, tinham as festas, eu às vezes tenho saudades. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Em seu relato, embora a professora Maria Cecília reconheça os avanços ocorridos com a passagem das creches para SME, principalmente no que se refere à sistematização do trabalho pedagógico, indiretamente, faz uma crítica à atual forma de organização da instituição pautada em práticas escolares, que, na sua percepção, limita a convivência e a formação de vínculos entre os sujeitos. Do mesmo modo, a professora Luiza demonstrou em seu depoimento que, na sua visão, embora a passagem para a SME

tenha representado avanços na carreira,

antigamente, quando as creches eram vinculadas a órgãos assistenciais, havia um maior empenho por parte da instituição em oferecer apoio e subsídios num enfoque multidisciplinar às profissionais que atuavam com crianças pequenas: Antigamente na Secretaria do Bem-Estar Social a gente tinha um amparo, tinha uma psicóloga, assistente social, enfermeira padrão, tinha nossos planejamentos (como hoje), encontro entre creches, discutia a situação pedagógica e o trabalho em si. Hoje, na educação, a gente não tem esse amparo desses técnicos. Mesmo assim valorizou bastante o salário com a transformação do cargo, têm algumas gratificações que sempre tá chegando e antes era bem pouco. Teve valorização salarial, mas falta apoio técnico para o professor. (PROFESSORA LUIZA, 2011).

Dessa maneira, os depoimentos das docentes e do docente foram dando pistas sobre a configuração dos cenários em que se realizavam o trabalho com bebês nas creches e CEIs nas últimas décadas na cidade de São Paulo. É possível perceber nos discursos das professoras e do professor, como também nas concepções educacionais difundidas atualmente, como veremos a seguir, a ideia recorrente de que o período em que as creches estavam ligadas a órgãos assistenciais representaria uma fase obscura da instituição e o momento de inserção dos CEIs na rede de ensino representaria uma espécie de “transformação” ou “redenção” dessa realidade. Nesse sentido, todos os aspectos considerados “negativos” no passado teriam sido redimidos por meio da uma imersão dos CEIs numa nova forma de organização pautada no modelo escolar de outros níveis de ensino. Essa concepção dualista que marcou a história das creches e CEIs, no que se refere à passagem de um caráter assistencial para outro educacional, parece ter adquirido, na acepção de Foucault (2004), um estatuto de verdade. Nos discursos das docentes e do docente, essa demarcação entre esses dois momentos distintos da instituição se manifestaram constantemente,

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como podemos observar no depoimento de Lila: “Eu peguei duas fases do CEI bem diferentes. Teve as greves, as brigas pra conquistar direitos, pra ser valorizado, muita gente foi exonerada na época do Jânio Quadros.” (PROFESSORA LILA, 2011). Ou ainda na avaliação de Maria Cecília: “Agora, hoje eu acho que mudou pra melhor. Porque a gente era vista como uma pessoa só que cuidava. Hoje não. A gente é visto como uma pessoa que cuida que educa.” (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011). Desse modo, suas memórias sobre o passado da instituição; a avaliação a respeito das experiências profissionais consideradas de sucesso ou seus reveses ou, ainda, a identificação de problemas enfrentados em creches ou CEIs parece que também se manifestaram em seus depoimentos a partir do controle exercido por essa lente do “antes e do depois” que perpassa a instituição. Ao serem questionadas se do momento passado aos dias de hoje suas práticas haviam mudado, no que diz respeito ao trabalho realizado especificamente nos berçários, as professoras apontaram o seguinte: O que a gente fazia com os bebês antigamente acho que não mudou nada não. É a rotina de sempre, trocar toda vez que precisa alimentação, o banho que sempre foi feito. A gente recebe com carinho. Quando eles estão mais crescidos a gente dá atividade com gestos, musiquinhas. [...] A gente tinha o solário nas creches pequenas. Agora a gente tá mais moderno, o berço era de ferro, agora já vem mais confortável, mas o colchonete é a mesma coisa, o cardápio é igual, não mudou nada. (PROFESSORA LUIZA, 2011, grifo nosso). Na minha mente, eu sempre amei muito eles e o que eu fazia. A mãe vai trabalhar e eu vou cuidar do filho dela com carinho, o máximo que eu puder por ele eu vou fazer. A gente não tinha essa visão que você tá cuidando, você tá educando. [...] Eu sempre cantei, brinquei, fazia roda com os bebês, dava o chocalho. (PROFESSORA JOYCE, 2011, grifo nosso). Com relação aos bebês, mudou muito. Antigamente, os bebês eram vistos... põe lá, dá comida, dá mamadeira, dá banho, troca fralda e dorme. O bebê hoje ele pula, o bebê hoje ele canta, o bebê hoje ele corre, ouve histórias, [...] ele participa de jogos do jeito deles, antigamente não, ele era visto só como um bebê mesmo, aquele serzinho que tomou mamadeira, trocou a fralda, tá bom. Hoje não, cresceu muito. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

Luiza afirmou que, apesar da “modernização”, nada mudou; Joyce explicou que não houve mudanças nas práticas, mas sim na visão sobre o que é realizado, e Isabel mencionou uma mudança radical na qualidade das atividades que hoje são desenvolvidas com os bebês. Embora os relatos das três docentes tenham expressado diferentes pontos de vista, todos sugeriram a existência de práticas que continuam sendo realizadas desde o passado da instituição até o momento presente no que se refere às rotinas de cuidados. Em suas narrativas, as docentes, cada qual a seu modo, demonstraram estar buscando ajustar esses dados da

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realidade de sua prática profissional aos discursos atuais da instituição com relação à necessidade de integração entre o cuidar e o educar. Cerisara (2004), em suas reflexões sobre o trabalho que hoje é desenvolvido nos CEIs, afirma que a expressão cuidar e educar oculta a tentativa de integrar dois modelos pedagógicos, um pautado no cuidar como prática assistencial e sem intencionalidade educativa, por meio de rotinas semelhantes às domésticas ou hospitalares; e outro que considera como educar o modelo escolar do ensino fundamental. Segundo a autora, incorporar práticas escolares seria uma maneira de justificar a vinculação dos CEIs à educação. Kuhlmann Junior (2004), em suas pesquisas, também refutando concepções escolarizantes para o trabalho com crianças pequenas, propõe reflexões sobre os rumos da educação infantil sob outro enfoque: Ao anunciar o educacional como sendo o novo necessário, afirma-se a educação como o lado do bem e a assistência como o império do mal, assim como se estabelece uma oposição irreconciliável entre ambas. Mas a educação, afinal, não é tão inocente assim, nem é a redentora da triste realidade. E a assistência não é a grande vilã. Não são as instituições que não tem caráter educacional e sim os órgãos públicos da educação, os cursos de pedagogia e pesquisas educacionais que não se ocuparam delas por um longo tempo. (KUHLMANN JUNIOR, 2004, p. 201-202, grifo do autor).

Para o autor, nas creches e pré-escolas, mesmo estando essas unidades infantis associadas a órgãos assistenciais, sempre ocorreu algum tipo de educação, seja ela boa ou ruim, alertando que há equívocos históricos nessa interpretação que sugere o “educar” como tábua de salvação das instituições assistenciais. Por outro lado, é possível, ainda, questionarmos se existem outros significados para a negatividade atribuída às práticas antigas, ou assistenciais, no âmbito dos discursos atuais no campo da educação infantil. Para além de uma interpretação equivocada da história da instituição, como defende Kuhlmann Junior (2004), esse julgamento pode representar o processo de construção de um lugar para as práticas “de antigamente” em um discurso da atualidade, que aponta para a eficiência da educação de um modo geral, e, especificamente, na educação infantil. Mais adiante, examinarei como tais proposições sobre os sentidos do trabalho na educação infantil eram abordados nos discursos das professoras e do professor que participaram da pesquisa e quais as implicações das diferentes formas com que se relacionavam com esses enunciados em seu processo de identificação profissional. Partindo dessas considerações, após realizar esse levantamento acerca das memórias da instituição, no próximo tópico, passo a analisar as narrativas das docentes e do docente no que

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se refere aos saberes que embasavam as suas práticas no trabalho com bebês e às especificidades de suas vivências profissionais nos cenários específicos dos berçários no CEI Freireano. 6.2 FAZERES E SABERES NO COTIDIANO DE BERÇÁRIOS E A “EXPERIÊNCIA” DO CEI FREIREANO Se fizéssemos, hoje, um inventário dos significados que são evocados ao mencionarmos o termo ‘CEI’, a primeira ressalva que se faria necessária seria a decodificação da sigla: centro de educação infantil. Em sequência, numa espécie de tradução, seria necessário ainda explicar que estávamos nos referindo, de fato, a uma creche. Aí, então, outros elementos poderiam ser suscitados em nosso imaginário, tais como: mães, bebês, professoras, fraldas, mamadeiras, berços, choro etc. Desse modo, na tentativa de abrir a “caixa preta” do CEI Freireano, emprestando a metáfora usada por Juliá (2001) para definir a necessidade de se conhecer a cultura das instituições escolares a partir de seu interior, passo, agora, a examinar os contextos específicos em que as docentes e o docente que participaram da pesquisa desenvolviam seu trabalho. Nessa análise, tive como ponto de partida os temas que intencionalmente abordei durante o processo de entrevistas, tais como: os saberes que embasavam as suas práticas; as características particulares do CEI em que trabalhavam; a forma como planejavam as suas ações; as relações com as famílias, com as crianças e com as diretrizes pedagógicas da instituição; suas rotinas de trabalho ou, ainda, suas opiniões a respeito do que seria um “currículo ideal” para bebês. Todavia, com base na recorrência de determinados assuntos em seus depoimentos, outros aspectos também foram se manifestando e dando pistas sobre a composição desse cenário em que vivenciavam as suas experiências nos berçários do CEI Freireano, tais como: a imprevisibilidade no trabalho com crianças pequenas; a preocupação com a integridade física da criança; a necessidade de compartilhar com a família as conquistas cotidianas do bebê; entre outros, como examinaremos adiante. Foi possível observar também, por meio de diferentes depoimentos, que todos esses fazeres e saberes que constituíam as práticas docentes naqueles berçários eram atravessados por constantes embates entre os dois modelos de atendimento que marcaram a história da educação infantil mencionados anteriormente: um modelo assistencial, pautado nas práticas de cuidados dos bebês no que se refere à higiene, alimentação, saúde, proteção da criança etc.; e um modelo educacional, que privilegiava as ações de cunho pedagógico com base na organização escolar de outros níveis de

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ensino do sistema a que pertenciam os CEIs – rede municipal de ensino – no que se refere a metas, objetivos, metodologias e conteúdos educacionais ou mesmo a referência aos bebês por meio do termo ‘alunos’, conforme analisaremos a seguir. Um dos aspectos centrais que se colocam ao se propor uma análise das funções de docentes que atuam em berçários, assim como em outras áreas, é a investigação sobre como tais profissionais aprenderam seu ofício. Diferentemente de professoras que lecionam outras disciplinas, cuja preparação técnica para exercer o seu cargo se dá exclusivamente por meio de cursos de formação inicial e outros estudos complementares, houve uma unanimidade entre as entrevistadas em afirmar que, em vez de aprendizagens com base em conhecimentos teóricos, elas aprenderam a realizar as tarefas de cuidados de bebês a partir de suas próprias experiências pessoais no âmbito familiar, como relata a professora Isabel: “Trocar fralda, eu aprendi com minha irmã mais velha e ela com a minha mãe, ela com sua avó. De geração em geração. Hoje, troco até de olho fechado!” (PROFESSORA ISABEL, 2011, grifo nosso). Conforme analisamos anteriormente, há séculos os cuidados das crianças vêm sendo considerados como um atributo natural feminino em nossa sociedade, o que faz com que o trabalho com bebês em unidades de educação infantil seja reconhecido culturalmente como uma profissão do gênero feminino. No contexto das creches – ou CEIs –, os depoimentos das professoras e do professor demonstraram que, ao iniciarem suas atividades nos berçários, a instituição já contava com essa experiência considerada naturalmente feminina, como explicou Maria Cecília: A gente vai aprendendo como lidar com a criança, como lidar com o bebê. A gente estuda, mas a gente aprende a teoria, agora a prática já tem que ser uma coisa assim. [...] Já teve pessoas que entraram no CEI e aprenderam a trocar a fralda aqui mesmo. Ou então o bebê de 4 meses acabou de comer e a pessoa já foi colocar no berço e a gente teve que orientar, não, não, tem que virar! Então, alguém tem que falar ou então pra aprender vai ter que consultar um livro de saúde! Porque no livro de saúde você vai achar, por exemplo, que a criança após o mamar tem que arrotar. Você vai achar nos livros de saúde. Porque não vai estar no currículo. Porque isso não vai ser ensinado no magistério ou na pedagogia. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Como afirmou Maria Cecília, além dos saberes femininos, outra referência em que comumente se pautava o trabalho com bebês diz respeito à abordagem da ciência médica (talvez como reflexo que o movimento higienista teve na origem da instituição, conforme discuti anteriormente). Em outros momentos da entrevista, a professora Joyce relatou também que, na sua prática com os bebês, ela se baseava nas orientações que recebia ao levar seus próprios filhos ao pediatra. O professor Júlio também, de acordo com o que foi analisado no

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capítulo cinco, recorria aos guias para mães para esclarecer as suas dúvidas quanto aos cuidados das crianças. De uma maneira geral, os relatos das docentes e do docente deram indícios de que a instituição esperava que as profissionais já possuíssem conhecimentos prévios sobre o trabalho com bebês. Seus depoimentos expressaram também críticas a essa ausência de fundamentação para as práticas desenvolvidas em berçários, tanto em sua formação inicial quanto também nos próprios cursos ou treinamentos promovidos pela SME: Hoje eu não sei como está, mas infelizmente na minha formação há cinco anos, parece que o ser humano passa a existir a partir do quinto ano de idade, se fala do amor, da atenção, mas no ‘e aí?’ não se fala? Onde você encontra isso? (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Alguns cursos, eles dão. Um pouco eles se preocupam com a nossa escolaridade, com o nosso desenvolvimento. Mas a maior preocupação é com a família pra eles não saírem reclamando por ser uma escola pública. A teoria dos cursos não tem muito a ver com a prática. [...] O dia a dia das crianças não aparece nesses cursos ou documentos, poderia aparecer mais. (PROFESSORA JOYCE, 2011). Em SME, eu acho que a questão bibliográfica, a gente tem muito auxílio, tem muita documentação sendo elaborada para a educação infantil, tem muita coisa boa [...] Na teoria, a gente tem bastante embasamento. Mas agora na prática ainda falta muita coisa. Ainda falta um curso de formação, ainda falta um olhar realmente atento para as necessidades dessa primeira infância dessa educação infantil. Infelizmente, dentro da nossa própria rede, ainda há esse olhar assistencialista para a educação infantil, para o CEI, esse olhar ainda vendado, não real, não se vê o real lá no dia a dia. (PROFESSORA MONIQUE, 2011, grifo nosso).

Nessa perspectiva, ao que tudo indica, cuidar de bebês é uma competência que se espera que a profissional, ao ingressar no CEI, já traga consigo em sua bagagem de vivências no ambiente familiar. Quando a professora não dispõe dessas habilidades, a preparação para os cuidados de crianças pequenas é compulsoriamente atribuída às colegas que estão há mais tempo nessa atividade, numa espécie de “rito de passagem” das gerações de profissionais mais velhas para as mais novas: “A primeira vez que eu troquei fralda numa outra escola, eu não sabia, eu não era mãe ainda. Eu pedi ajuda pra outra pessoa. Esse conhecimento é visual, vendo outras pessoas fazendo, o exemplo.” (PROFESSORA MONIQUE, 2011, grifo nosso). Em outro momento da entrevista, a professora Joyce definiu os seus conhecimentos sobre os bebês como experiência de ver muito, explicando que ela é sempre procurada pelas mais jovens, por exemplo, para dar a sua opinião sobre algum sintoma que as crianças apresentam, orgulhando-se ao dizer que muitas vezes acerta o diagnóstico.

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Do mesmo modo, como já mencionei anteriormente, Júlio, ao assumir uma turma de berçário no CEI Freireano, também precisou recorrer à observação de outras professoras que estavam há mais tempo na profissão para aprender, após muitas tentativas, a trocar fraldas: Com relação à rotina, por exemplo, trocar fralda eu não sei quando eu aprendi. Mesmo trabalhando com os mais velhos, eu ficava observando a fralda. Quando eu comecei, eu colocava a fralda do lado errado. Foi mais empírico. Eu estragava fralda pra caramba! A fralda é muito delicada. Eu puxava vinha o durex todinho. (PROFESSOR JÚLIO, 2011, grifo nosso).

Fazendo um contraponto, Lila, em seus depoimentos, por várias vezes manifestou a sua crença de que, ao exigir uma formação específica ou mesmo nível universitário, isso garantiria, por si só, que as profissionais estariam mais bem preparadas para o trabalho com bebês: Antes a exigência era só a 4ª série, era aquele conhecimento mais intuitivo de mãe. A partir do momento que exige uma formação específica, uma formação universitária, está bem mais preparada para cuidar daquela criança do que no passado. (PROFESSORA LILA, 2011).

O uso recorrente de expressões nos discursos das docentes como de geração em geração, conhecimento visual, empírico, deram pistas de que um dos aspectos centrais da docência em berçários é a questão da experiência. Embora os conhecimentos que surgem desse modo empírico não sejam valorizados em determinadas culturas escolares que privilegiam aspectos cognitivos, esse tipo de saber emergiu como um dos eixos centrais nas vivências profissionais relatadas durante as entrevistas. Conforme aponta Carvalho (1999), existem defasagens de estudos no que concerne à inserção e aos sentidos do cuidado no campo educacional, e as narrativas das docentes mostraram que outras peculiaridades, nesse campo de atuação profissional, nem sempre são consideradas na instituição. Tais especificidades, entre outros aspectos, referem-se aos saberes que se configuram a partir das experiências que cada docente vivencia na relação direta com cada bebê com quem trabalha, como explica o professor Júlio: “Têm coisas, em todos os cursos que eu fiz, não é que na prática é diferente, é que você só descobre quando está na frente de uma criança.” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). No entanto, atuando em uma unidade infantil que passou a integrar recentemente um sistema de ensino, as professoras pareciam precisar ajustar constantemente os seus discursos sobre a sua experiência concreta com os bebês a um formato pedagógico, como dá a entender Laura:

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Os passeios em torno do CEI para observar as coisas, observar os pássaros, as plantinhas, as joaninhas então era tudo um trabalho assim montado... E a gente punha uns nomes assim chiques. Vamos trabalhar a expressão corporal, vamos trabalhar a observação da natureza, vamos trabalhar a rotina diária. Coisas simples, mas que se dá um nome mais pedagógico. (PROFESSORA LAURA, 2011, grifo nosso).

O relato de Laura sugere que, ao recorrer a um discurso pedagógico para explicar a sua prática cotidiana nos berçários, a sua experiência real, vivida com os bebês, considerada “simples” em suas palavras, ficava silenciada. Larrosa (2005) explica que a educação vem sendo pensada a partir de dois pontos de vista: o teórico e o prático ou o científico e o tecnológico. Segundo o autor, as concepções positivistas consideram a educação uma ciência aplicada. Já as abordagens críticas a consideram como uma prática reflexiva. E tanto uma quanto a outra determinam o que pode ser dito ou não nesse campo. Já a experiência, que não permite universalizações por ser única e singular, como mencionou o professor Júlio em seu relato, é considerada um tipo de conhecimento menor, quando muito um ponto de partida a ser transposto e, por esse motivo, é rechaçada pela ciência e pela filosofia. Enfatiza, ainda, o autor: A ciência captura a experiência e a constrói, a elabora e a expõe segundo seu ponto de vista; a partir de um ponto de vista objetivo com pretensões de universalidade. Porém, com isso, elimina o que a experiência tem de experiência e que é, precisamente, a impossibilidade de objetivação e a impossibilidade de universalização. A experiência é sempre de alguém, subjetiva, é sempre aqui e agora, contextual, finita, provisória, sensível, mortal, de carne e osso, como a própria vida. [...] por isso a linguagem da ciência tampouco pode ser a linguagem da experiência. (LARROSA, 2005, p. 22, tradução nossa).

Ao discutir o conceito de forma escolar, Vincent, Lahire e Thin (2001) também nos ajudam a compreender como essa pedagogização tornou-se um aspecto valorizado nas escolas e nas sociedades modernas de um modo geral. Segundo os autores, desde que a educação passou a ser transmitida de um mestre para um aluno, numa relação pedagógica, bem como a ser exercida num espaço específico para a aprendizagem, a escola, e num tempo escolar específico, em períodos determinados da vida, do ano ou do cotidiano, o aprender dissociou-se do fazer. Os saberes, que antigamente eram transmitidos à criança em sua casa por meio de atividades com sua família, ou, ainda, a passagem de um ofício de um artesão para o aprendiz por meio da prática, tornaram-se condutas ultrapassadas pertencentes a uma sociedade antiga. Essa cultura antiga, que anteriormente era fundada na oralidade, aos poucos também foi dando

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lugar a formas sociais escritas ou a uma cultura escritural. As sociedades modernas passaram, assim, a valorizar o saber escolar e a relação do homem com o mundo a partir de uma lógica escritural. As formas sociais orais ficariam associadas a sociedades primitivas, em que: “A aprendizagem se opera na e pela prática, de situação em situação, de geração em geração, aprendizagem pelo fazer, pelo ver fazer, que não necessita de explicações e não passa necessariamente pela linguagem verbal.” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 23). Essa supervalorização das formas sociais escritas inerentes às práticas escolares viria a provocar, segundo os autores, uma “pedagogização” das sociedades no mundo atual. Assim, nos discursos sobre os seus fazeres nos berçários do CEI Freireano, as professoras e o professor ora se empenhavam em utilizar termos pedagógicos comuns aos demais níveis de ensino, ora nos permitiam perceber suas experiências concretas no lidar direto com os bebês, sem se aterem a definições com base nessa espécie de “dialeto pedagógico”.5 Com relação às características específicas do CEI Freireano, no que se refere ao espaço físico, à distribuição de turmas e à organização do trabalho pedagógico, conforme expus em capítulos anteriores, convém relembrar que se tratava de uma unidade infantil de grande porte. Vidal (2005), ao referir-se às proposições de Viñao Frago e Escolano, aponta o destaque dado pelos autores para a organização dos tempos e dos espaços, diretamente, relacionada às culturas escolares que permeiam as instituições de ensino. No caso do CEI, para atender à demanda de matrículas, a partir de critérios estabelecidos anualmente pela SME, cada sala de aula abrigava de duas a três turmas de Berçário 1 (grupos formados por sete bebês de 6 meses a 1 ano de idade) ou Berçário 2 (grupos formados por bebês de 1 a 2 anos de idade). Desse modo, as professoras, ao contrário do que acontece nas turmas de crianças maiores, nunca atuavam sozinhas, mas sempre em duplas ou trios. Por esse motivo, todos os seus relatos sobre o trabalho desenvolvido nos berçários, frequentemente, se remetiam a essa interação cotidiana entre as profissionais, às vezes consensual: “Maria Cecília gosta de contar história. Eu gosto mais de cantar. Cada uma usa o seu talento.” (PROFESSORA JOYCE, 2011). Outras vezes conflituosa: “Por serem duas ou três professoras na sala, às vezes aquilo que você acha que é legal pra desenvolver com as crianças nem sempre a sua colega acha. É preciso que o grupo e a dupla trabalhem em conjunto.” (PROFESSORA LILA, 2011).

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Convém destacar que eu mesma, que além de pesquisadora também estava inserida no contexto como diretora de escola, embora tivesse a intenção de abordar os fazeres próprios desse campo de atuação profissional, ao elaborar o questionário de entrevista, também recorri a termos utilizados comumente no ambiente escolar, como, por exemplo: currículo, planejamento, projeto pedagógico etc.Todavia, procurei, nesta análise, aproximar-me da experiência, como a define Larrosa (2005), vivenciada pelas professoras e pelo professor no contexto em que se desenvolveu a pesquisa.

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Como vimos anteriormente, o CEI Freireano está situado em um complexo educacional, ao lado de uma EMEI, uma EMEF, um teatro, uma biblioteca e de uma extensa área externa com recursos diferenciados dos demais centros de educação infantil. Essa configuração distinta apareceu recorrentemente nos relatos das docentes ao se referirem ao trabalho desenvolvido nos berçários: Aqui, neste CEI, todos os projetos incluem os bebês. São as mesmas atividades, mas cada um respeitando a sua faixa etária. Mesmo no cinema o bebê vai, a professora leva e eles exploram tudo biblioteca, brinquedoteca, área externa. Então os bebês não são esquecidos no projeto. É claro que eles não vão fazer o mesmo que os maiores, mas aqui eles são respeitados. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011, grifo nosso). Meu dia é muito agitado porque eu sou agitada! Os bebês comigo não param! A gente vai para o teatro, a gente vai para o cinema, a gente corre, a gente vai fazer piquenique, a gente faz as rotinas que tem que fazer: o café, o almoço, ir no banheiro, fazer a troca, ou é conversar com uma mãe no telefone. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

Os relatos de Maria Cecília e Isabel, que atuavam em grupos distintos de berçário, apontaram para uma organização do trabalho pedagógico que se estruturava em torno desse espaço físico diferenciado. Por meio das narrativas das docentes foi possível perceber que o fato de os bebês transitarem por esses diferentes lugares, também frequentados pelas demais turmas e por outros alunos das escolas vizinhas, conferiam à sua prática certo “pé de igualdade” entre o que é realizado pelas crianças maiores e pelas menores, o que, para Maria Cecília, representava certa valorização do trabalho com os bebês e, para Isabel, tornava as atividades de rotina mais dinâmicas. Monique, porém, referindo-se à sua atuação eventual como professora de “módulo” em uma turma de Berçário 1, manifestou uma opinião crítica a esse respeito: Eu como módulo, eu dou opiniões, não participo diretamente do planejamento do berçário. Você propõe, mas o professor regente é quem decide. Vamos sair hoje, vamos passear hoje... ah não tá frio, não dá. O que eu posso propor, eu proponho, uma massinha; a tinta foi muito pouco utilizada. (PROFESSORA MONIQUE, 2011).

Para a docente, a área externa era pouco explorada por essa turma, pois havia resistências, por parte das professoras titulares, sobre preocupações com a exposição dos bebês ao tempo frio. No entanto, ao relatar o seu dia a dia em uma turma de Berçário 2, a professora Maria Cecília, que está há mais tempo na carreira, se refere tanto a atividades pedagógicas

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quanto aos cuidados com os bebês, e, no que se refere às atividades na área externa, explica que, primeiramente, verifica se a temperatura está adequada para sair com as crianças: Atualmente, no B2, nós todos os dias recebemos as crianças com música e brinquedos. Depois do café, a gente senta, conversa, conta história. [...] A gente olha o tempo se vai tá calor, a área externa, a gente explora muito e nós três sempre estamos por ali. A música, o brinquedo e a roda de conversa e a história, geralmente, têm todos os dias. O passeio na área externa, a brinquedoteca. (MARIA CECÍLIA, 2011).

O discurso de Monique sugeriu que ela discordava de condutas pautadas exclusivamente nos cuidados da criança, o que, em sua análise, prejudicaria o desenvolvimento de atividades de cunho pedagógico. Ao que tudo indica, essa defesa de um modelo mais assistencial ou de outro mais educacional, também, permeava as relações de poder que se estabeleciam entre as profissionais mais antigas e as mais novas no CEI Freireano, como também expressou Lila: Acho que o que impede esse avanço é o enraizamento do passado, por ver ainda amigas colegas que eram de mil novecentos e tra-lá-lá falar: ‘eu sempre trabalhei assim e eu vou continuar trabalhando assim’ e aí a pessoa tem que ver as coisas mudam, as pessoas mudam. (PROFESSORA LILA, 2011).

A professora Joyce, que à época da entrevista atuava numa turma de Berçário 2 com a professora Maria Cecília, apresentou outro ponto de vista a esse respeito. Para ela, a falta de intencionalidade no planejamento dos berçários estaria relacionada à falta de compromisso da professora e não à opção por um modelo mais assistencial ou mais preocupado com os cuidados das crianças pequenas: “Têm uns que viajam na maionese e outros que não quer nada com nada, joguei os brinquedos lá e já dei atividade.” (PROFESSORA JOYCE, 2011). Ao serem indagados a respeito de como as atividades dos berçários eram planejadas no CEI Freireano, as docentes e o docente apresentaram diferentes percepções sobre esse processo, todavia, a maioria, mencionou a existência de um projeto pedagógico coletivo, que visava a integrar as práticas, os princípios e os objetivos pedagógicos de todas as turmas de crianças naquele centro de educação infantil e os planejamentos específicos de acordo com a faixa etária das crianças. Em seu discurso, a professora Lila questionou a coerência entre o discurso e a prática nos momentos de planejamento: “Na maioria das vezes, no coletivo, tudo é bonito, todo mundo fala que vai fazer, mas depois muita coisa não acontece. Mas têm muitas pessoas aqui que têm vontade de fazer e fazem.” (PROFESSORA LILA, 2011). Entretanto, de maneira contraditória, a mesma docente afirma se ressentir com relação aos planejamentos que se limitam a discutir apenas as práticas de cuidados de bebês:

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Na minha opinião, essa prática cotidiana deveria ser discutida, refletida, na minha opinião ainda há muito que melhorar no CEI até na questão do planejamento, falta uma discussão mais fundamentada. Isso me angustia. As pessoas ainda se atêm muito nas questões da fralda e do cocô: ‘Ai porque a fralda tava assim, o cocô tava assado’ e eu me pergunto, meu Deus será que tudo gira em torno da fralda e do cocô? (PROFESSORA LILA, 2011, grifos nossos).

O discurso de Lila mostrou que a docente criticava os planejamentos que priorizavam a discussão teórica do trabalho nos berçários e que não consideravam as demandas cotidianas de ordem prática nos berçários. Entretanto, para ela, abordar a prática não significava, necessariamente, falar de sua experiência concreta no que se refere às práticas de cuidados, principalmente as tarefas de higiene dos bebês, um assunto que parecia destoar daquilo que ela reconhecia como um assunto plausível de ser tratado em um planejamento em uma unidade escolar. Outros depoimentos, ainda, deram pistas sobre outras dificuldades enfrentadas pelas docentes e pelo docente sobre a inserção dos berçários no planejamento de ações coletivas desenvolvidas no CEI, conforme apontou o professor Júlio: Na discussão interna sobre os bebês tem uma dificuldade na diferença de idade entre os berçários. A discussão acaba ficando um pouco conflituosa, porque três meses no berçário faz a diferença. Por vezes, eu sinto no grupo geral certo descaso com o trabalho do berçário. Eu mesmo quando não era do berçário eu percebia isso. Por exemplo, quando vai ter uma festinha, o que você vai apresentar? Berçário apresenta? Como a criança menor é imprevisível se acredita que ela não vai conseguir alcançar certas coisas. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Nos relatos do professor Júlio, assim como nos depoimentos das demais docentes, o caráter de imprevisibilidade do trabalho com bebês seria um aspecto que apareceria recorrentemente nas suas narrativas. Parece mesmo que o planejamento das ações nos berçários passava por esse equacionamento entre a tentativa de ajustar as práticas a um modelo sistematizado e a realidade concreta e imprevisível diante das necessidades manifestadas pelas crianças, como defende Maria Cecília: E tem uma coisa, pra trabalhar com o B1 tem que ser aquele professor que não pode se preocupar muito com a rotina. Tem a rotina da alimentação, mas o sono não. Quem entra à tarde, vai encontrar umas acordadas, outras dormindo. Eles não têm isso. A gente tem que se adaptar e também entender. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011, grifo nosso).

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Maria Cecília em seu relato apontou, com base em suas próprias experiências, que a capacidade em lidar com o imprevisível deveria ser, segundo a sua opinião, um aspecto a ser considerado nos planejamentos das atividades dos bebês, principalmente no que se refere às atividades desenvolvidas com as crianças menores. Júlio, referindo-se à duração dos planejamentos nos berçários, afirmou o seguinte: Você acaba sendo um pesquisador, todo o professor de educação infantil tem que adaptar o que aprende na sua prática. Têm coisas do cotidiano que não chegam nas discussões. O conhecimento acadêmico não engloba o imprevisto e a educação infantil é puro imprevisto. Por exemplo, na semana passada tinha um cinema, a gente tinha até feito uma fantasia pra eles vestirem. Eles sempre estão acordados à tarde, mas a gente planejou o cinema e eles passaram a tarde toda dormindo, todo mundo, parecia boicote! Têm coisas que você faz um plano pra três semanas e acaba em dois dias. Ou planeja pra pouco tempo e acaba o ano e você tá fazendo. Como pra eles tudo é novo, tudo é possibilidade. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Isabel, com base em sua experiência em berçários e no caráter imprevisível da criança, em seu depoimento, defendeu a ideia de que o planejamento para bebês necessitaria ser rápido: É aquele planejamento rápido porque é pra bebês. O semanal é mais fácil. Não dá pra planejar tudo porque é uma fase imprevisível, um dia eles estão acordados, outro dia estão dormindo. Outro dia metade dorme e os outros ficam acordados. Que nem segunda-feira agora, todos dormiram até as 11 horas. Mas o que aconteceu com essas crianças no final de semana, dormiram até tarde? Aquele dia não deu pra fazer nada. Mas a gente não fica preso porque uns estão dormindo. A gente pega os que estão acordados e vai fazer alguma coisa, a gente respeita. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

O discurso de Isabel evidenciou o fato de as crianças serem respeitadas em seus ritmos. A docente demonstrou que, embora ela tenha uma preocupação com o cumprimento do planejamento, mesmo considerando que ele deva ser rápido, existe uma flexibilização em função das necessidades apresentadas pelas crianças. Essa tentativa contínua de perceber e respeitar o significado das manifestações dos bebês é outro aspecto mencionado diversas vezes nos relatos das professoras e do professor no que concerne à forma como se relacionam com as crianças, dando indícios de que esta é uma conduta valorizada no contexto do CEI Freireano, como sugeriram também os depoimentos de Laura, Joyce e Maria Cecília: Então, o planejamento nosso era feito assim à base de estudo, a gente procurava pesquisar, ler muito e a partir daí ia tirando o que a gente achava [...] Também tá tirando da criança. Porque mesmo ele sendo bebezinho, ele sabe dizer quando tá bom e quando não está, pelo olhar, por um gesto, pelo

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choro e em cima disso a gente ia trabalhando a nossa rotina, o nosso planejamento. Fazíamos mensal e depois a gente ia vendo o que encaixava, o que dava certo, o que não dava, a partir das avaliações, do diário de bordo. A gente ia observando, porque acho que a maior ferramenta que o professor de educação infantil tem é a observação. Se a criança tá aceitando, se tá tendo boa aceitação, se não está. Se ela tá assimilando, se não, aquela atividade, porque a criança, ela é muito ativa, quando ela gosta de uma coisa ela participa, ela dá retorno, então eu acho que o nosso planejamento batia em cima disso. O que eles gostam de fazer? Gostam de cantar? Gostam de música? Ouvir música, cantar eles não cantavam ainda, balbuciavam, né? Gostam de música, que tipo de música, porque eles sabem também escolher o tipo de música que gostam se mais lenta, se mais rápida, se batucadinha. (PROFESSORA LAURA, 2011). Aí trocamos a fralda das 9h00 às 10h00. E aí começam a se preparar para o almoço, lavar as mãos. Depois almoçam, e lavam as mãos tudo de novo. Eu gosto de levar no banheiro porque estou acompanhando quem está saindo das fraldas. Uns colocam fralda pra dormir, eu pergunto se eles querem colocar a fralda pra dormir. A gente coloca música de relaxamento pra eles dormirem. Quando eu saio da sala, eles já estão dormindo. (PROFESSORA JOYCE, 2011, grifo nosso). Tem um menino que só toma no copo aberto. Foi até legal quando eu descobri. Eu descobri porque ele só queria mamadeira, então eu tirei a tampa da mamadeira que parece um copinho e ele pegou e pôs na boca. Eu coloquei o leite lá e ele aceitou, então eu entendi. Ah, danado, você já toma no copo! O ‘negócio dele é o copo, se você der com o biquinho, ele não toma o dia todo, fica ofendidíssimo’ (PROFESSOR JÚLIO, 2011, grifo nosso). Então eles precisam de compreensão. Às vezes, eles querem chão. Ela pode ser uma criança de 6 ou 7 meses quando ela não quer mais ficar no berço, ela mesmo se manifesta. E tem criança que ela tá no chão e ela quer berço, ela começa a chorar a gente põe no berço: ‘quero ficar sozinha agora’. Eu tive uma aluna que era assim, ela brincava meia hora e começava a chorar, colocava no berço e ela ficava como quem diz ‘eu quero ficar aqui agora’. A gente tem que saber estar sempre atenta a essas escolhas da criança, mas que eles escolhem, eles escolhem. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011, grifo nosso).

Laura, em seu relato, apresentou elementos que nos permitem perceber uma preocupação em demonstrar os seus esforços em sistematizar as suas práticas, por meio de estudos, registros no diário de bordo, da observação e da constante avaliação da criança em suas atividades e, ao mesmo tempo, evidencia o respeito aos interesses das crianças. Do mesmo modo, tanto Joyce, ao mencionar o fato de que pergunta se o bebê deseja colocar a fralda para dormir, Júlio, ao aceitar a recusa do bebê a tomar o leite na mamadeira, quanto Maria Cecília, ao identificar se o bebê quer ficar no chão ou no berço, expressam em seus discursos uma concepção de criança – ao que tudo indica, valorizada pela instituição – que a considera como um sujeito ativo e que deveria ser respeitado em seus interesses e necessidades. Maria Cecília,

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ainda em seu relato, ao referir-se a um bebê, utiliza a denominação “aluna”, o que não ocorreu com frequência nos depoimentos das demais docentes. Esse fato nos leva a refletir se, no momento atual, embora haja na instituição uma pré-disposição a valorizar as atividades de cunho pedagógico, ao pautar as suas condutas com base no respeito aos tempos da criança, a ideia de aluno já teria sido efetivamente produzida no discurso e na prática, pois, para ser aluno, um bebê deveria ser submetido a uma organização do tempo escolar mais rigorosa, a exemplo do que ocorre nos demais níveis de ensino. Outro aspecto que também foi mencionado diversas vezes nas narrativas das professoras e do professor referiu-se aos riscos inerentes à preservação da integridade física e da saúde da criança, que foram reconhecidos como um imperativo de suas funções no trabalho com os bebês, conforme expressaram Isabel e Luiza: No CEI, o berçário é uma das faixas etárias que você corre mais riscos. Eu amo ficar no berçário. É uma fase que você aprende muito. Graças a Deus até hoje não aconteceu nada. Eu sou do tipo da professora que se tiver que sair da sala eu saio, não fico preocupada com o que vai acontecer, eu solto, vamos ver o que vai dar. São crianças pequenas, eles estão aprendendo a andar, tropeçando, cai, a gente fica de olho, se acontecer faz parte do aprendizado, eles estão se desenvolvendo. (PROFESSORA ISABEL, 2011). No trabalho com bebês é sempre difícil ficar sozinha, independente do número de crianças. De repente você tem que fazer uma troca e não pode deixar os outros sozinhos, você ao virar as costas, você não sabe o que pode acontecer. Trabalhar com bebês não é fácil. Você tem que estar atento a todo momento. (PROFESSORA LUIZA, 2011).

Essa constante preocupação com os riscos que se impõem ao trabalho realizado com os bebês no CEI, como expressaram Isabel e Luiza – e que também foi mencionada em depoimentos de outras docentes –, apareceu em seus discursos como algo que regulava as suas práticas, balizando quais atividades podiam ou não ser realizadas nos berçários, e também como um mecanismo de controle de seu desempenho profissional no âmbito institucional: “A Secretaria da Educação quer que as crianças sejam cuidadas, que não haja nenhum acidente pra não sair na mídia e não denegrir a prefeitura. Tô sendo sincera!” (PROFESSORA JOYCE, 2011). Do mesmo modo, de acordo com os depoimentos, essa atenção apurada quanto aos riscos de acidentes ou aos problemas de saúde manifestados pela criança, entre outros aspectos, era também uma condição determinante na forma como se estabeleciam as relações com as famílias, como explicou o professor Júlio: “Com relação às famílias, isso é mandatário. A

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criança sente. Quando você sente que a família confia em você, a criança também confia em você.” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Dessa maneira, mesmo que não fosse explicitado, parece que era travado um acordo de garantia da integridade física e da saúde da criança entre as docentes e as famílias, o que determinaria, de maneira incisiva, as relações de confiança na instituição: A partir do momento que a família se sente segura com relação ao professor que está ali olhando o seu filho, ele fica mais tranquilo e aquilo que você vai passar ele aceita com mais facilidade, porque está tendo uma cumplicidade, uma amizade uma confiança, afinal você deixa ali o seu bem maior, que é seu filho, com uma pessoa que você nem sabe quem é. (PROFESSORA LILA, 2013, grifo nosso).

Ao reportar-se à forma como se relacionava com as mães, a professora Lila utilizou em seu depoimento a expressão “olhar o filho”, recorrendo a um discurso comum ao ambiente familiar. Assim, no que se refere ao contato diário das docentes com as famílias, os depoimentos mostraram que também se manifestava a questão controversa entre o modelo assistencial e o educacional, permeando e dando o tom das relações entre mães e professoras: “A expectativa das famílias é o cuidar. ‘Ah, tá limpinho, tá bom! Vim buscar meu filho, tá limpinho, tá ótimo, não preciso saber o que foi feito’.” (PROFESSORA MONIQUE, 2011). Já Isabel e Maria Cecília relataram suas estratégias para explicar às mães o seu papel profissional e a necessidade de envolvimento da família: A relação com as famílias não interferem no meu trabalho. Eu sempre explico pras mães. Eu vou tentar fazer as coisas aqui como a senhora faria. Mas aqui eu tenho um planejamento. A gente pode até sentar e conversar. Eu faço aqui e a mãe faz lá em casa. Por exemplo, a chupeta, tudo bem ele precisa, mas tem uma hora que o próprio bebê dá na mão da gente pra guardar. (PROFESSORA ISABEL, 2011). Aqui, a gente fala pra mãe, olha ele tá comendo sozinho, incentiva em casa. E elas vêm falando, olha ele sentou, ele tá pegando a colher. Eu mesmo nunca tive dificuldades com as mães. Como agora a gente tá tirando da fralda e fala olha mãe dá pra você por em casa? A gente consegue. Isso é importante porque se a criança está começando a sentar, a criar autonomia, se a mãe em casa não propicia isso, aí a criança vai ficar tolhida, não vai fazer, eu, pelo menos, eu consigo com os pais. A gente avisa olha ele tá comendo com a colher, já tá saindo da fralda e as mães ficam felizes. A gente consegue. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Nos relatos de Isabel e Maria Cecília, assim como nos depoimentos das demais docentes, foi possível perceber também que nos berçários as pequenas conquistas cotidianas –

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ou aprendizagens – dos bebês adquiriam um valor importante para as profissionais, as quais sentiam a necessidade de compartilhar com as mães. As docentes manifestaram suas preocupações no sentido de que não houvesse divergências entre as diferentes maneiras das professoras e das mães cuidarem dos bebês, garantindo uma continuidade do trabalho realizado no CEI também no ambiente familiar sobre, como citado nos depoimentos, o uso da chupeta, a escolha da hora certa para tirar a fralda ou permitir que a criança se alimente sozinha. Talvez, essa necessidade de compartilhar os avanços da criança com a família expressasse também uma busca de aprovação quanto ao seu desempenho. Nos relatos seguintes, Joyce e Maria Cecília referem-se a uma mesma atividade de leitura desenvolvida por elas no Berçário 2, que foi considerada por ambas como uma prática de sucesso, por meio da qual é possível observar como essa avaliação do alcance do seu trabalho com os bebês adquire importância no reconhecimento de seu papel profissional: Porque você acompanha mesmo o processo do projeto, desde o comecinho, do engatinhar do bebê até que nem eu tô agora na fase das garatujas. Eu contei a história dos três porquinhos [...] e nesta semana eu pedi pra eles desenharem. E você precisa ver que lindo, uma menininha fez o lobinho, os três porquinhos e ainda pôs o olhinho. Não é muito rico? [...] Antes era um bebê que você pegou no colo e caía pra um lado, caía pro outro. Até o descascar uma banana. Antes eu descascava. Hoje, com 1 ano e 8 meses, eles descascaram e colocaram a casca no prato. Isso pode parecer besteira, mas se você acompanhou um bebê desde os 4 meses, tudo que ele faz é muito gratificante. (PROFESSORA JOYCE, 2011). Nós trabalhamos com os três porquinhos. Uma professora que tem uma filha que é minha aluna no berçário comentou que em casa ela estava no banheiro e a menina falou: ‘Mãe, sai daí senão eu vou soprar!’ Mesmo no B1 nós fizemos uma bebeteca (sic) e os bebês já iam e manuseavam os livros. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

Ao serem convidadas a relatarem um dia no cotidiano dos berçários, de um modo geral, as docentes se referiram também à preocupação com a regularidade com que se desenvolviam as atividades consideradas de cunho pedagógico, como também às rotinas de cuidados, conforme relatou a professora Luiza, que trabalhava com uma turma de Berçário 1 no período da manhã, e o professor Júlio, que atuava com um grupo de Berçário 2 à tarde: No nosso dia a dia a gente recebe eles, pergunta como foi a noite deles e aí a gente vai organizando eles pro café da manhã. Dá o café da manhã, em seguida faz a troca, aí a gente vai pra uma atividade, no momento a gente vê o que eles querem fazer. Eles sabem o que querem. Não adianta dar a bola se eles não estão interessados. O tempo tá bom, a gente vai dar uma volta ou vamos pra outra sala fazer uma integração que também é válido, conhecer

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outros amigos, outros professores. Aí chega a hora da outra troca, se necessário o banho. Já chega o almoço e a gente vai fazer a alimentação deles. A gente dá mais uma olhada se está tudo ok de troca e já põe pra descanso, é a hora do soninho. Aí já chega a hora de fazer o nosso relatório do dia, relatar tudo o que aconteceu, a atividade que a gente deu. Eles vão dormir e a gente espera o colega chegar para sair da sala. Aí é aguardar um novo dia! (PROFESSORA LUIZA, 2011). Para falar sobre o cotidiano dos bebês vou narrar o dia de hoje no período da tarde. Eu cheguei, eram seis, haviam dois acordados e quatro dormindo. Uma das crianças acordadas acabou de voltar de uma catapora, e ela não conseguia dormir, não conseguia relaxar [...]. Fiz um carinho, mas ela não gostou porque tinha muitas bolinhas na cabeça. Eu fiquei lá abanando ela pra coceira não ficar tão forte. [...] Passado isso chegou meu amiguinho que gosta muito de mim. Talvez seja porque ele é enorme, então sempre sou eu quem troca. Ele tá com 1 ano e 8 meses, é muito grande. [...] Aí ele veio pro meu colo fez um biquinho muito fofinho eu adulei ele e ele se acalmou. Aí chegou o suco naqueles copos com biquinho. [...]. Então eu deitei com eles no chão, fiquei perto deles, brinquei com eles, ofereci a bola. A gente procura oferecer brinquedos que eles possam manusear com liberdade e esse ano eles curtiram muito bola. Na minha sala tem um monte de bola. Eles chutam, empurram, a grandona eles gostam de deitar por cima de barriga. Tem um que chuta muito bem, chutou e acertou naquele que estava dormindo. Chegou a janta logo em seguida. Como hoje foi sopa bem líquida eu não deixei eles comerem sozinhos. [...]. Quando é comida seca, a gente deixa eles tentarem comer sozinhos. Eu servi eles. Eu dou sopa pra três de cada vez. O engraçado é que a colega sempre abana a sopa. Eles ficam ansiosos e eu fico inventando formas pra esperar a sopa ficar fria. [...] Eu fico jogando a bola na parede e eles gostam de ficar olhando, se racham de rir enquanto a sopa esfria. A gente canta algumas musiquinhas de vez em quando. Mas o que gostam mesmo é da bola. Então dei comidinha pra eles, troquei os meninos, sempre primeiro os meninos do transporte. [...]. Aí ficou só eu e o meu grandão, aí eu vim pra cá e ele veio atrás de mim e aí acabou o dia. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Os dois relatos de Luiza e de Júlio, como também das demais docentes que não foram aqui transcritos, deram mostras de que existiam dinâmicas próprias com que cada docente e cada bebê interagiam no decorrer de suas jornadas de trabalho. Além dos aspectos já abordados anteriormente, ao relatarem detalhadamente a sua rotina nos berçários, outras circunstâncias também foram sendo explicitadas pelas docentes e pelo docente, tais como: a necessidade de troca de informações com a família sobre o estado de saúde do bebê; a avaliação das condições climáticas para a realização das atividades externas; o curto espaço de tempo entre as rotinas de higiene, as refeições e as demais ações; a necessidade de documentação do trabalho; a comunicação das informações para outras colegas que atuam no mesmo grupo; a conciliação de atividades para crianças com diferentes necessidades num mesmo grupo (como, por exemplo, as que ficam acordadas, as que querem dormir, as que estão com algum desconforto por problemas de saúde etc.); a constante verificação da adequação de alimentos, utensílios, brinquedos; as

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preferências afetivas dos bebês – e das professoras –; o relacionamento com as famílias ou com outras pessoas do convívio da criança, como o condutor do transporte escolar; entre outros fatores. Durante as entrevistas, após relatar as suas vivências profissionais nos berçários do CEI Freireano, propus às docentes e ao docente que expressassem o que seria, segundo suas próprias opiniões, um currículo ideal para esse trabalho, apontando, ainda, de acordo com suas experiências, o que os bebês esperavam das professoras. Alguns depoimentos apontaram para a necessidade de ser oferecida aos bebês uma grande diversidade de atividades e de linguagens: Um currículo ideal para bebês deveria ter tudo o que eles pudessem ter a possibilidade de manifestação, tanto quanto artística, como rodas de música, rodas de conversa, sair com eles, não anda, bota no carrinho chama o pessoal da secretaria. Tudo pra eles é possível, mas precisa ser mediado, planejado e com suporte; pessoas presentes, ativas. (PROFESSORA MONIQUE, 2011). O currículo ideal do berçário seria trabalhar com todas as linguagens, porque nós nos enganamos quando nós pensamos que um bebê não sabe nada, mas ela sabe sim. Então você pode trabalhar a leitura verbal e não verbal, trabalhando só com gestos, estimulando a fala, trabalhando a matemática com os objetos. (PROFESSORA LILA, 2011). Para mim, o currículo ideal dos bebês tem que ter muita música, muita história, muito espaço pra brincar e correr, muito doce, muito pirulito, pelo menos uma vez por mês, umas guloseimas e um lugar acolhedor com pessoas que realmente estão a fim de fazer um trabalhar, pra colaborar com tudo que for necessário. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

Todavia, a ênfase na afetividade foi mencionada na maioria das narrativas das docentes e do docente como o aspecto principal a ser observado no trabalho com os bebês: “Na minha opinião, na escola ideal, você tem que ter primeiro o carinho, o amor por aquilo que você tá fazendo seja uma música, um gesto, uma bronca. Afetividade em primeiro lugar.” (PROFESSORA JOYCE, 2011); “Os bebês, o que eles querem é bastante carinho, bastante afeto. A gente acha que eles não entendem, mas eles entendem muito, viu?” (PROFESSORA LUIZA, 2011); “Eu acho que o bebê espera ser cuidado, ser alimentado, ele espera carinho, o toque, porque você percebe que a criança gosta de abraçar.” (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011); “No currículo de um bebê, pra ele vivenciar na escola, a primeira coisa que ele precisa é carinho, depois muita alegria, muita boa vontade, orientação.” (PROFESSORA LAURA, 2011); “Os bebês querem carinho e atenção. Eles querem respostas, se a criança puxa o pelinho e ele voa, ele quer que você esteja lá do lado dele.” (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

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Entretanto, embora os aspectos afetivos tenham sido mencionados como um aspecto estruturante no trabalho com bebês, alguns depoimentos mencionaram também a dificuldade enfrentada em garantir um atendimento das necessidades de atenção de cada criança devido ao número de crianças pelas quais são responsáveis nos berçários, como concluiu o professor Júlio: “O difícil é estar ao lado de cada um e de todos com qualidade.” Esse anseio por oferecer uma grande diversidade de atividades no trabalho com bebês; a questão da afetividade como elemento principal nos discursos sobre as relações que se estabelecem entre docentes e crianças; as preocupações em como garantir o desenvolvimento de seu trabalho tendo que assumir uma turma com muitos bebês; davam pistas sobre algumas das questões importantes que se colocavam para as profissionais que desempenhavam, naquele momento, a função de professora de educação infantil nos berçários do CEI Freireano, considerando-se o contexto em que estavam inseridas, como unidade infantil pertencente à rede municipal de ensino da cidade de São Paulo. Dessa maneira, como vimos, nos depoimentos das professoras e do professor que participaram da pesquisa, foi possível identificar algumas permanências em seus discursos sobre os embates entre os modelos assistenciais e educacionais: o caráter de imprevisibilidade do trabalho; a organização, em duplas ou trios, de docentes que fazem o planejamento das atividades, às vezes concordando, outras vezes discordando; os princípios pedagógicos valorizados na instituição, como o respeito às necessidades individuais dos bebês; a regularidade das ações; a preocupação com riscos referentes à integridade física e à saúde da criança; as relações de confiança estabelecidas – ou não – com as famílias; o reconhecimento cotidiano das conquistas dos bebês; a necessidade de oferecer uma diversidade de atividades e linguagens no trabalho em berçários; e, ainda, o papel relevante atribuído à afetividade como principal aspecto a ser observado em um currículo ideal para os bebês. A seguir examino as implicações e desdobramentos dessa trama de fazeres, saberes e poderes em que se constituíam as experiências docentes nos berçários do CEI Freireano. Intenciono investigar, sobretudo, como as professoras e o professor que participaram da pesquisa vivenciavam esse coabitar de culturas escolares e práticas de cuidados naquele ambiente institucional.

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6.3 CUIDAR DE BEBÊS E DE SEUS EXCREMENTOS EM ESPAÇOS ESCOLARES: MAPEANDO RELAÇÕES DE PODER

Como vimos anteriormente, Hall (2005, 2009a), em suas proposições sobre cultura e identidade, analisa a diáspora, ou o mito diaspórico, como um processo social em que, ao mesmo tempo que o sujeito mantém laços com a terra de origem que abandonou, ele também passa a ter como referência identitária aspectos da nova cultura do outro lugar que passou a habitar. Nesse sentido, se, metaforicamente, considerarmos a passagem das creches de uma Secretaria de Assistência Social para uma Secretaria de Educação – conforme ocorreu na cidade de São Paulo – como uma espécie de diáspora institucional, quais representações emergiriam a partir do encontro dessas diferentes culturas no âmbito da instituição, que, inclusive, entre outras mudanças estruturais, teve sua denominação alterada para centro de educação infantil? Essa foi a indagação que se evidenciou a partir e no decorrer da análise dos depoimentos das docentes e do docente que participaram da pesquisa, que, de maneira direta ou indireta, manifestaram suas impressões sobre esse embate de culturas assistenciais e educacionais a partir do qual se desenvolvia a sua experiência profissional em berçários, naquele momento da instituição. Carvalho (1999), analisando o lugar ocupado pelo cuidado nos contextos escolares, aponta como essa questão, embora reconhecida por diversos teóricos como uma dimensão integrante do ato educativo, não aparece nos discursos pedagógicos das instituições escolares, nem acadêmicos, especialmente no Brasil, sendo tratada como um assunto de menor valor em relação às tarefas associadas ao desenvolvimento cognitivo do aluno. Desse modo, o cuidado, embora perpasse a relação entre professoras e alunos, não é considerado como tarefa legítima da docente, sendo reconhecido apenas como uma tendência “natural” da professora – ou do caráter feminino imputado culturalmente a essa profissão, como discutimos anteriormente, mesmo quando é exercida por professores do sexo masculino –, e, embora esteja presente em todas as relações educacionais, é silenciado e esvaziado de sentidos na cultura escolar, que, comumente, valoriza outros aspectos presentes no cotidiano da escola. No que se refere às atuais discussões no campo específico da educação infantil, o enunciado, na acepção de Foucault (2004), que postula a indissociabilidade entre o cuidar e o educar, como vimos anteriormente, como princípio fundamental das ações educacionais a serem desenvolvidas com crianças pequenas, busca, em tese, ressignificar o cuidado em meio às propostas pedagógicas desenvolvidas nas unidades infantis, no que se refere aos diferentes

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campos do conhecimento (SÃO PAULO, 2007b), tais como: linguagem verbal, conhecimentos matemáticos, linguagem artística, natureza e cultura etc. Nesse contexto, o cuidado, em meio à ênfase dada ao educar, adquire um caráter de norma, todavia atrelada ao trabalho pedagógico, como indicam as Diretrizes Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010) e o próprio documento Orientações curriculares: expectativas de aprendizagens e orientações didáticas para a educação infantil (SÃO PAULO, 2007b) que, atualmente, rege o trabalho desenvolvido em CEIs e EMEIs na cidade de São Paulo: Primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, às quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente e submetidos a controle social. (BRASIL, 2010, p. 12, grifo nosso). Compreende-se hoje que cuidar da criança é atender suas necessidades físicas oferecendo-lhes condições de se sentir confortável em relação ao sono, à fome, à sede, à higiene, à dor etc. Mas não apenas isto. Cuidar inclui acolher, garantir a segurança e alimentar a curiosidade e expressividade infantis. [...] Portanto, cuidar e educar são dimensões indissociáveis de todas as ações do educador. (SÃO PAULO, 2007, p. 19, grifo nosso).

No entanto, como alertam Cerisara (2004) e Kuhlmann Junior (2004), embora haja nesses discursos uma intenção explícita de se reconhecer o cuidado como uma dimensão importante do ato educativo, no âmbito das culturas escolares que hoje permeiam os centros de educação infantil, como temos visto por meio dos relatos das professoras, o que ocorre na prática é uma supervalorização dos aspectos escolarizantes em detrimento das práticas de cuidado, o que já se observa, inclusive, nas próprias narrativas das professoras. Desse modo, na busca de equiparação com as demais unidades escolares da rede de ensino, os CEIs, ao se apropriarem de discursos pedagógicos que valorizavam aspectos cognitivos e por terem, ao mesmo tempo, como uma das suas atividades centrais o cuidado de crianças pequenas, pareciam vivenciar de forma orgânica essa discrepância entre o que se prega e o que de fato se faz. Essa contradição parecia criar na rede de ensino um estranhamento acerca do trabalho realizado pelas profissionais que atuavam na instituição, e, em particular, nos berçários, como explicou Maria Cecília: Já os professores que não trabalham em CEIs não veem com muitos bons olhos o nosso trabalho. Você encontra as pessoas e dizem: ‘Ah eu prestei

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concurso, mas as minhas amigas disseram você é louca de trabalhar em CEI, você vai trocar criança.’ Ainda tem esse olhar, porque o professor não foi acostumado a educar e cuidar então eles têm essa dificuldade em cuidar. Aqueles que vêm de CEI, eles fazem com maior prazer, porque a gente já fazia isso antes. Mas o professor que vem de EMEI, EMEF, eles têm essa dificuldade, porque se acontece de ver uma criança de EMEI sujar a roupa, fazer alguma coisa, eu acho que cabia ao professor sim estar intervindo, fazer alguma coisa. Não, ela fica parada como se não soubesse o que está acontecendo. Eles também deveriam estar preparados para o cuidar. Porque pode acontecer muita coisa, mesmo com uma criança de primeira, de segunda, de repente sai sangue do nariz, de repente a criança tem um enjoo, um desmaio. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011).

De uma maneira geral, em seus depoimentos, as professoras mencionaram já terem vivenciado situações em que se sentiram discriminadas ou que perceberam haver, particularmente, por parte de outros docentes que atuam em outros níveis de ensino, certa desvalorização de sua profissão, pelo fato de elas terem que realizar tarefas de cuidados, sobretudo a troca de fraldas. Monique, a docente que ingressou mais recentemente na carreira, e que à época da entrevista trabalhava, concomitantemente, no CEI Freireano e em outra EMEI, disse o seguinte a esse respeito: Com relação às opiniões que se tem do CEI no geral, eu nunca ouvi nada de positivo. Eles só falam dessa questão da troca, da fralda, não é só isso, esse olhar tá muito arraigado, ‘só troca fralda, não tenho paciência, que eles choram toda hora’. Eles não choram o tempo todo, a partir do momento que existe essa ligação entre o professor e o aluno. Da minha memória nunca ouvi comentários positivos sobre o CEI. [...] Mas o que frustra é essa questão do olhar, o olhar que os outros têm perante a nós professores de CEI. (PROFESSORA MONIQUE, 2011, grifos nossos).

Do mesmo modo, Luiza e Joyce, que trabalhavam há 30 anos na instituição, atribuíam essa discriminação de sua profissão, como docentes que atuam com bebês – até entre as próprias colegas – ao fato de as professoras nos berçários, em vez de desenvolverem atividades relacionadas ao mundo da escrita, lidarem constantemente com excrementos, como explicaram: Nessa parte a gente não é bem valorizado, não. As pessoas acham que por a gente trabalhar com bebês, a gente não é professor. Eles têm essa noção da gente, porque eu não sei. Porque a gente não dá atividade pra eles escreverem, não dá uma atividade assim. Mas a gente tem que perceber que nessa faixa etária deles é brincar mesmo, é dar carinho, na hora que chora pegar no colo, sempre estar trocando pra que ele se sinta bem, dar a alimentação adequada na hora certa. Isso não me incomoda. Eu faço de conta que não ouvi. Eu tô fazendo a minha parte. Eu me valorizo, eu gosto de mim. Então não faz muita diferença o que o outro acha ou deixa de achar. Mas têm professores aqui na escola que também não gostam dos bebês, eles preferem os grupos maiores

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porque não gostam ou têm nojo de limpar cocô. A gente não, já tá acostumada. É tanto que é muito difícil pôr uma luva e eu nunca peguei uma micose nesses 30 anos. Têm pessoas que só de trocar ‘ai’. Porque se você faz as coisas com boa vontade, nada acontece. (PROFESSORA LUIZA, 2011). Agora, na rede, a gente tem um pouco de preconceito. Elas olham pra nós professoras de educação infantil com outros olhos, de desmerecimento, preconceito mesmo. Não deveria. A vida da criança começa ali. A gente dá uma longa formação pra eles já irem pra escola, falando, conversando, sentando bonitinho. A primeira base é a educação infantil, então não sei o porquê desse preconceito [...] O que magoa é quando eles falam que eu não sou professora. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

Talvez, a preocupação com esse tipo de julgamento, sobre a legitimidade do trabalho de docentes que trabalham com bebês, fosse também um dos motivos que levou Lila, ao assumir o cargo de professora de educação infantil, a omitir o fato de trabalhar em um CEI perante os demais colegas da rede de ensino. Ao que tudo indica, embora o cargo de professora de educação infantil surgisse para ela como uma oportunidade vantajosa em termos salariais, este era também um motivo de constrangimento. Isso porque esse tipo de atividade parecia ser considerado, pelo seu meio, como uma atividade de menor valor, especialmente por distanciarse do mundo das letras – como também mencionou Luiza – e aproximar-se desse contato direto com tarefas consideradas inferiores pelo senso comum, como a troca de fraldas, o banho e alimentação do bebê, como explicou Lila: Na verdade, minha maior frustração era que meus amigos falavam assim: Nossa você vai pra CEI, você estudou tanto e agora vai trocar fralda! Então eu vim mesmo carregada de muitos preconceitos e até certo tempo eu não falava pra ninguém que eu trabalhava no CEI, só falava que era professora de artes na MF. Era uma coisa falsa. Eu ficava angustiada com aquilo. Eu estava mentindo pro fulano e pra mim mesma. [...] Mas depois a gente vai deixando os preconceitos e os tabus. E era essa questão da fralda. Toda a vez que eu ia trocar a fralda eu ficava me perguntando: ‘Meus Deus do céu, eu não acredito, será que é isso mesmo?’ Mas eu encontrei algumas pessoas que trabalharam comigo antigamente na creche que me deram apoio e eu comecei a fazer um resgate do tempo de 1985 pra agora muita coisa mudou. Foram várias conquistas em termos de salário, de posição. Não é porque eu estou trabalhando em um berçário num CEI que eu deixei de ser professora. (PROFESSORA LILA, 2011, grifo nosso).

Existe, entretanto, dentro da própria instituição, segundo o depoimento da professora Joyce, uma diferenciação entre professores que se identificam mais com crianças maiores e aqueles que atuam em berçários, conforme a docente relatou:

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Na própria escola existe diferença de postura com os bebês. Porque criança de 4 anos já faz tudo sozinha. O bebê não, tem que dar uma assistência durante as seis horas. Entre os professores tem gente que nunca pega a turma dos bebês. Com os maiores você vai orientar. Com os bebês tem que pôr a comida na boca. Até na hora do sono tem que acompanhar, ver a respiração deles. É muita responsabilidade cuidar do filho dos outros. Têm professores que não gostam dessa dependência. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

Tais preferências mencionadas por Joyce expressaram também como as relações de trabalho vão se desenhando no próprio interior dos CEIs, pois, ao atuarem com as crianças maiores, as professoras produzem discursos em que a identidade docente se aproxima mais de uma representação ideal da docência, no que se refere ao trabalho com aspectos cognitivos. Já o trabalho com bebês, por serem crianças mais dependentes, constitui-se num conjunto de atividades que envolve uma ação mais corporal, que em tese, se distancia do ideal educacional, hoje difundido nos CEIs. Os depoimentos, dessa maneira, deram indícios de que, no interior do centro de educação infantil, essa dicotomia entre práticas de cuidados e atividades associadas ao desenvolvimento cognitivo da criança estabelecia certa hierarquia entre os fazeres considerados de cunho assistencial e aqueles reconhecidos como de caráter educacional, ou entre trabalho intelectual e trabalho manual. Como vimos anteriormente, para Vincent, Lahire e Thin (2001), essa valorização da forma escolar não ocorre apenas em ambientes escolares, mas sim atravessa a sociedade de uma maneira geral, como podemos observar no depoimento de Joyce sobre as opiniões dos seus próprios familiares em relação à sua profissão, e de Isabel a respeito da curiosidade que o trabalho docente com bebês despertava nas pessoas de um modo geral: A minha irmã dá aula de 1ª a 4ª série. A minha mãe (74 anos) questiona porque já que eu estudei tanto porque eu não vou ser professora de verdade como a minha irmã! Eu respondo: ‘Mãezinha, eu sou professora de verdade!’ Ela acha que eu trabalho demais com os bebês, mesmo a minha irmã tendo que trabalhar dois turnos e eu apenas 6 horas. (PROFESSORA JOYCE, 2011). Até uns dois anos atrás eu mesmo ouvi: ‘Ah, mas você só limpa o bumbum do nenê, coloca a fralda e põe pra dormir.’ Não aqui dentro, mas lá fora as pessoas ainda não tinham o entendimento. [...], porque aqui é um lugar aberto, as pessoas transitam. Param na janela, ficam olhando o que as crianças fazem, batem na porta e perguntam a idade das crianças, comparam com seus filhos. (PROFESSORA ISABEL, 2011).

Entre todas as tarefas necessárias ao cuidado de bebês, lidar com os seus excrementos, ou com o xixi e o cocô, apareceu nos discursos de todas as professoras e do professor que

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participaram da pesquisa, como uma demarcação emblemática entre o trabalho intelectual – reconhecido socialmente como “nobre” – e o trabalho manual – considerado como uma tarefa inferior. Gottlieb (2009), discutindo a ausência dos bebês nas pesquisas sociológicas, afirma que uma das razões a que atribui essa suposta negligência refere-se justamente ao fato de os bebês, em vez de realizarem atividades intelectuais, ficarem a maior parte do tempo envolvidos com processos corporais, por meio dos quais expulsam substâncias que não são valorizadas na sociedade ocidental, como lágrima, urina, fezes e vômito. Em que pese a possível inibição que a minha posição como pesquisadora e diretora do CEI Freireano pudesse suscitar, durante a realização das entrevistas, apenas dois docentes expressaram suas próprias dificuldades em relação a esse tipo de atividade. O professor Júlio expressou explicitamente o seu descontentamento: “O que eu não gosto, sinceramente, é de trocar fraldas. Por mais que eu saiba do peso disso, eu acho que não deveria ser o meu papel.”; enquanto Lila fez referências aos esforços que tem empreendido no sentido de aceitar essa exigência de sua profissão: Estou procurando ver com outros olhos. Eu não posso ser hipócrita e falar pra você que foi tudo bonitinho. Foi conflituoso, frustrante. A Lila sempre foi professora, mas agora ela está colocando a mão na merda. Mas agora esses preconceitos estão mudando. (PROFESSORA LILA, 2011).

Contudo, o depoimento de Laura a esse respeito sugere que, entre as demais professoras que trabalhavam nos berçários do CEI Freireano, também ocorriam manifestações de aversão durante o momento da troca de fraldas, conforme relatou a docente: Na hora das trocas, eu brigo muito. Ai que cocô fedido, ai você tá fedendo, ai que cheiro! Isso me revolta, porque pelo que eu estudei, pelo que eu li, pelo que eu aprendi nos cursos que eu fiz, a criança quando ela faz um cocô, ela se sente como se tá dando um presente [eu até comento isso com eles lá] como se ela tivesse dando um presente pra mãe. Como ela não tem a mãe ali, quem recebe o presente sou eu. Então eu tenho mais é que ir limpar essa criança com satisfação. Lavar essa criança com satisfação e alegria e até agradecer. Então isso eu também não gosto. Pra que estudar se você só vai lavar bunda? Isso eu ouvi de um sindicalista, uma pessoa estudada, maravilhosa, quase que a representante do nosso sindicato bateu nele nesse dia! (PROFESSORA LAURA, 2011, grifos nossos).

Em seu depoimento, Laura procurou também demonstrar que, com base em suas experiências e em seu processo de formação, ela já havia construído conhecimentos sobre o seu papel profissional ao lidar com os excrementos do bebê. Sua narrativa evidenciou, porém, como

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havia controvérsias, dentro e fora da instituição, acerca da inserção dessa atividade como prática docente. Além de ser considerado um atributo natural das mulheres, conforme discutido ao longo deste estudo, o cuidado dos bebês ficou historicamente associado ao trabalho feminino realizado na esfera doméstica e em funções desvalorizadas pela sociedade, tais como: amas de leite, amas-secas, donas de casa, babás etc. Desse modo, é possível inferir que os embates em torno do xixi e do cocô, na prática docente em berçários, eram também permeados por essas representações em torno do caráter de inferioridade relegado a esse tipo de atividade em nossa sociedade. Em relação a essa desvalorização do trabalho envolvendo os cuidados dos bebês e, especialmente, as tarefas relacionadas aos seus excrementos, alguns discursos apontavam para uma espécie de negação desse fato, dando maior destaque para as demais atividades de cunho pedagógico, como se trocar a fralda da criança fosse um assunto a ser relevado ou omitido, como sugere o depoimento de Monique: Eu tenho muito orgulho de ser professora sim de CEI. Por exemplo, quando eu chego no meu outro cargo, quando eu comento que trabalho no CEI, eles falam: ‘Nossa, você troca fralda o dia inteiro!’ Não, não troco só fralda o dia inteiro! Eu faço atividades, passeio bastante com eles, tenho o mundo inteiro pra explorar com eles. Então é um preconceito assim muito grande com o trabalho com CEI. Pensa num centro de educação infantil já pensa logo nos bebês, na fralda, só pensam no negativo, sendo que o trabalho com berçário, com o CEI como um todo é tão mais livre, não é aquele algo fechado dentro de uma sala, você ficar trancado, você tem um espaço, você tem um mundo a explorar. (PROFESSORA MONIQUE, 2011).

Outros discursos, numa outra perspectiva, buscavam encontrar nesse tipo de atividade envolvendo o xixi e o cocô aspectos pedagógicos que evidenciassem o seu caráter educacional e justificassem a sua realização como prática docente, conforme defendeu a professora Joyce: Como agora que a gente tá ensinando, que eles já estão saindo da fralda. Sair das fraldas pra mim é a coisa mais linda do mundo nessa idade de 1 ano e meio, 2 anos. Hoje, eu estava levando uns que já estão saindo da fralda pro banheiro e um menino bem danadinho que ainda tá na fralda saiu correndo na frente, arrancou a fralda, sentou no vaso sanitário e fez cocô. Eu quase chorei. E se eu não tivesse deixado ele correr? Era o momento dele, e nós batemos palma para o cocô dele, fizemos a maior festa. E isso você não está educando? Nessas coisas a gente vê que não é só cuidar. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

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Desse modo, para Joyce, como para as demais professoras e para o professor que participaram da pesquisa, reconhecer-se como docente implicaria ensinar algo, não bastando simplesmente cuidar dos bebês. Com base em todas as discussões propostas ao longo deste capítulo, é possível inferir que, no âmbito das normas e diretrizes da instituição, bem como nos discursos dos sujeitos envolvidos na pesquisa e mesmo na opinião da população de um modo geral, o enunciado cuidar e educar, embora situasse o cuidado dos bebês como uma atribuição legítima a ser realizada por docentes, também o colocava num lugar hierarquicamente inferior ao educar. Em outras palavras, já que é necessário cuidar, e essa atividade não é reconhecida no contexto escolar, que assim se faça, porém a partir da ótica dominante do educar, ao contrário das tentativas de equilibrar as duas funções, conforme postulam os discursos oficiais. Assim, todos os fazeres, saberes e poderes imbricados na trama em que se constituía a atuação de docentes nos berçários do CEI Freireano apontavam para este e outros questionamentos sobre as suas identidades profissionais, assunto que, a seguir, passarei a analisar.

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7 A DOCÊNCIA EM BERÇÁRIOS: TRANSITANDO PELAS FRONTEIRAS DAS IDENTIDADES PROFISSIONAIS Eu, diante do meu trabalho, é uma coisa muito de lua, como em toda profissão. Tem dia que eu venho por inércia. Penso: meu Deus o que eu estou fazendo lá com aqueles bebês? Sempre fui o melhor da turma, sempre me esforcei, me considero bem inteligente e agora com esse bando de nenenzinhos que não sabem nem falar o meu nome, o que eu vou ensinar pra eles? Depois eu me empolgo novamente, eu tô ensinando, tô ensinando. Eu demorei pra assumir, vou ser sincero, mas eu gosto de ser professor [...] Eu gosto de sentir que eu tô fazendo a diferença e com eles você faz. Quando você não tá bem consigo mesmo, você não vê essas coisas pequenas. Hoje, eu vejo a especificidade técnica da minha função, eu estou tranquilo, não sei o que eu responderia amanhã. Professor Júlio

Para Dubar (2005), as identidades profissionais não são apenas expressões psicológicas da individualidade de cada sujeito, tampouco produtos das estruturas políticas e econômicas, mas sim construções sociais que surgem da interação entre as trajetórias individuais, os processos de formação e os sistemas de emprego. Nessa perspectiva, na epígrafe acima, o professor Júlio expressou as suas incertezas a respeito de seu papel profissional ao exercer o cargo de professor de educação infantil, atuando em um berçário no CEI Freireano. Em seu discurso, é notório um esforço de autoconvencimento no sentido de que, apesar de seus conflitos internos, ele de fato é um professor, pois está ensinando algo aos bebês. Por meio do seu depoimento, é possível perceber, no entanto, as suas dúvidas com relação à sua formação, à sua escolha profissional e ao sentido do seu trabalho, como também as contradições que experimentou até assumir que gostava, ou se identificava com a sua profissão. Tendo em vista a sua condição como profissional do sexo masculino, o caráter feminino atribuído culturalmente aos cuidados dos bebês e o seu recente ingresso na carreira, como analisamos anteriormente, a narrativa de Júlio expressava as maneiras e as motivações que justificavam a sua permanência nesse trabalho, como também buscavam delimitar o seu papel profissional como docente que “ensina” algo aos bebês e que, portanto, “faz a diferença”, ou tem valor. Dubar (2005), do mesmo modo que Hall (2005), aponta também que as identidades estão sempre em movimento e que essa dinâmica de estruturação e desestruturação às vezes é considerada como uma “crise de identidades”. Júlio, ao referir-se à sua vivência profissional, demonstrou ter a percepção dessa inconstância que ele próprio experimentara com relação ao

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seu trabalho. E, no caso específico dos CEIs, poderíamos também considerar que a própria instituição passara – ou está passando – por uma espécie de crise de identidade institucional, tendo em vista as muitas transformações ocorridas em sua forma de organização nos últimos anos. A própria expressão “transformar o cargo” utilizada pela SME, e por algumas das docentes entrevistadas, para denominar a mudança das funções anteriormente exercidas no âmbito da assistência social para as previstas na carreira do magistério, evidencia que a questão das identidades profissionais colocava-se em pauta, tanto ao nível da vivência de cada profissional quanto na própria estrutura organizacional da instituição. Neste capítulo, com base nas discussões realizadas até o momento, examinarei como as professoras e o professor que participaram da pesquisa foram constituindo as suas identidades profissionais no exercício da docência em berçários do CEI Freireano. Terei como ponto de partida o levantamento das suas próprias representações acerca da profissão docente de uma maneira geral, para, posteriormente, elencar as estratégias identitárias que cada sujeito encontrou para justificar a sua permanência nessa área, buscar significados para a sua atuação no trabalho específico com bebês, bem como qualificar a sua própria atuação profissional. Ao final desta seção, proporei ainda uma análise sobre como a coexistência desses diferentes arranjos identitários evidenciaram, ao longo da investigação, o caráter híbrido das culturas que permeiam a prática docente em berçários, nem sempre reconhecido pela instituição. 7.1 REPRESENTAÇÕES DA PROFISSÃO DOCENTE Ao propor a investigação acerca das identidades profissionais de docentes que atuam em berçários, é preciso antes, porém, indagar: de que maneira uma professora se torna, hoje, uma professora? Embora não seja esse o escopo dessa pesquisa, cabe aqui, ainda que sucintamente, situar o caso específico das professoras que atuam com bebês, em meio às discussões educacionais contemporâneas em torno da questão de como se constituem as identidades docentes de um modo geral. Em outras palavras, não são apenas as professoras e professores que trabalham em berçários, ou em CEIs, que hoje se perguntam o sentido de sua profissão, mas esta é uma questão que se coloca a todos os profissionais dessa área nos diferentes níveis de ensino. Discussões acerca de sua formação, de suas competências, de seu papel social, dos aspectos subjetivos que envolvem a profissão docente, entre outros, são temas amplamente abordados na literatura científica. Nóvoa (2007), ao referir-se a essa intensa busca de significados para o que deveria ser um professor, no âmbito da pesquisa educacional, critica os paradigmas tecnicistas que situam

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a profissão docente em termos da eficiência quanto a métodos de ensino e ao desempenho em sala de aula, ou ainda que delimitam os atributos inatos do que viria a ser um “bom professor”. O autor defende que essa suposta “crise de identidades” dos professores, entre outros fatores, também ocorre em função da separação entre o eu pessoal e o eu profissional, conforme explica: A identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão. Por isso, é mais adequado falar em processo identitário, realçando a mescla dinâmica que caracteriza a maneira como cada um se sente e se diz professor. (NÓVOA, 2007, p. 16, grifo do autor).

Ao investigar o sentido que cada docente atribuía à sua identidade como professora ou professor que atuava com bebês, ou o seu processo identitário como define Nóvoa, me deparei com vários outros aspectos que se interpunham na sua atuação profissional. Além das suas próprias representações acerca do que seria uma carreira “ideal” no magistério, estava em jogo, ainda, a maneira como cada profissional, de acordo com suas trajetórias pessoais e com as exigências da instituição, experimentava essa condição no trabalho específico em berçários. Kramer (2005), ao analisar a questão da identidade profissional em suas pesquisas no campo da educação infantil, aponta que outros aspectos recorrentes nos discursos das professoras precisam ser considerados nessa análise, como, por exemplo, a paixão que esse trabalho desperta ou ainda a resistência às dificuldades referentes às condições dessa profissão, segundo a autora, ainda não valorizada em nossa sociedade. Desse modo, durante as entrevistas, ao solicitar às docentes e ao docente que descrevessem o que seria, em sua opinião, a imagem ideal de uma professora ou de um professor, algumas referências recorrentes, entrecruzadas às histórias pessoais de cada profissional permitiam perceber o lugar que essas representações ocupavam em seus próprios processos identitários ao atuarem no trabalho específico com bebês, como veremos mais adiante. Um aspecto que foi mencionado pela maioria das docentes no decorrer das entrevistas, e, especificamente, em resposta a essa questão, refere-se ao papel da afetividade como um dos principais atributos na atuação de uma professora ou de um professor, conforme podemos observar nos depoimentos de Joyce e Luiza:

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O professor ideal: eu acho que o amor e o carinho em primeiro lugar. Quem não tem isso e tem coragem de olhar numa criança assim e não ter aquele carinho, aquele amor, eu acho que tá na profissão errada, porque a carinha deles transmite muita coisa boa. [...] isso pra qualquer área do Magistério. [...] é lógico, todo mundo trabalha porque precisa de dinheiro, mas se você não tem esse carinho, você tem que procurar outro lugar. (PROFESSORA JOYCE, 2011). Uma professora ideal pra mim tem que ter bastante carinho por aquilo que ela escolhe, não só o professor, como acho que todos os funcionários, que seja médico, dentista, ele tem que ter carinho e amor na profissão dele porque senão não rende. [...] E assim ele vai poder educar e fazer a parte dele bem feita. (PROFESSORA LUIZA, 2011).

A professora Joyce defendeu enfaticamente a capacidade de sentir e oferecer carinho como um dos pré-requisitos para se desempenhar a profissão docente. Por outro lado, Luiza, ao situar a docência em meio a outros campos profissionais que lidam com o cuidado humano, afirma que é o carinho que garante a eficiência, ou que “rende” mais, nesse tipo de trabalho. Em outros momentos da entrevista, a questão da afetividade apareceu também associada às tarefas de cuidados e às sensações que as docentes experimentavam ao executar as tarefas comumente relacionadas ao papel da mãe, como explicou Laura: uma vez até a gente teve uma discussão na escola quando eu estava fazendo o magistério. Eu falei que professora de educação infantil era meio mãe e a professora ficou brava comigo: não, não pode misturar as coisas. Eu falei: mas não tem como, você não misturar. Se você troca a fralda, você dá uma alimentação, a bem dizer amamenta porque aquele que é tirado do peito, quando você vai dar a mamadeira você tem que aconchegar ele aqui, colocar a mamadeira pra ele não sentir a falta do peito. Então você amamenta, você aconchega, como que você não vai sentir nenhuma emoção. Eu me sinto muito emocionada quando eu pego o berçário e vejo aquelas carinhas, sabe, assim sorrindo pra mim, me fazendo carinho. Cria uma relação, cria, por mais que você não queira, queira ser assim ‘professora’ não dá. A emoção é muito grande. Qual é o certo? Pra mim é ser mãe, não tirando o lugar da mãe. (PROFESSORA LAURA, 2011, grifos nossos).

Nesse depoimento, quase em tom de confissão, Laura afirmou que acreditava ser aceitável o fato de, como docente, sentir-se como uma mãe ao cuidar da criança. No entanto, seu relato deu pistas de que, influenciada por outras concepções pedagógicas com as quais teve contato em sua formação, a docente se questionava se uma professora deveria ou não sentir-se como uma mãe, ou ainda, se seria legítimo ou não amar os seus alunos. Carvalho (1999) explica que na década de 1980 no Brasil uma tendência tecnocrática no campo educacional viria a associar a questão do amor – e consequentemente do cuidado – no trabalho docente à falta de competência técnica, conforme defendia Mello (1982). Ao falar a

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sua opinião sobre a imagem de professor ou professora ideal, Júlio também se referiu a esse paradigma no que se refere à questão da afetividade na prática docente: Sempre que eu ouço falar em ‘professora’ eu sempre me lembro da minha primeira professora, da 1ª série e da minha mãe. As duas eram muito meigas, eu pouco conversei com a minha professora porque eu tinha 6 anos, mas a minha mãe me contava que essa minha professora dizia, e minha mãe concordava, que não trabalhava com crianças por amar crianças, mas trabalhava porque era a profissão dela, mas que dava o maior carinho, atenção, com a maior responsabilidade que conseguir, porque a criança era filho de alguém. (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Considerando que a mãe de Júlio também pertencera à carreira do magistério, nota-se que essa foi – ou é – uma ideia bastante difundida no meio educacional. Porém, tanto Carvalho (1999) quanto Kramer (2005), numa outra perspectiva, questionam as proposições de Mello (1982), especialmente a alegação da autora no sentido de que, quando a professora não sabe o que fazer, ela ama. Kramer (2005) enfatiza ainda que, segundo suas pesquisas, esse amor, a que se referem as professoras no campo da educação infantil, não se contrapõe ao compromisso profissional, pois por amar a criança ou o seu trabalho as docentes procuram aperfeiçoar a sua prática, nas palavras da autora, “buscam formação, enfrentam obstáculos para estudar, lutam por melhores condições para o trabalho prático.” (KRAMER, 2005, p. 50). Outro aspecto recorrente nos discursos acerca da imagem ideal de uma professora ou de um professor referia-se a valores éticos e morais, como respeito, compromisso, engajamento social, índole democrática, caridade, entre outros, como sugeriram os depoimentos de Maria Cecília, Júlio, Lila e Laura: Pra mim o professor ideal é aquele que respeita o aluno e não só o aluno, respeita a comunidade. Porque quando eu não respeito o outro eu também não sou respeitada. E durante essa minha trajetória de 21 anos eu sempre consegui me relacionar bem com as famílias, com as crianças. Porque é assim: a criança está em formação. Se o professor não dá o exemplo, o que a gente vai esperar da sociedade? A gente tem que ser praticamente o modelo. Porque já pensou, o aluno vê o professor jogar um papel no chão, ou falar um palavrão, ter uma atitude assim de grosseria, então eu acho que a gente tem que se policiar em tudo e ter cautela pra a gente ser o espelho. O professor ideal é aquele que respeita o ser humano. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011, grifos nossos). eu não compreendo muito bem as crianças, mas no geral não se volta os olhos pra isso, você tem apenas receitas de bolos, mas o bolo fala, anda, tem sonhos. Você pode ter técnicas incríveis, mas, se você não respeita o seu aluno, o processo que ele tá vivendo, o crescimento que ele tá tendo, você não se vê

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como a grande oportunidade na vida de uma criança. (PROFESSOR JÚLIO, 2011, grifos nossos). Minha imagem ideal de um professor é aquele que tem uma linha de trabalho diferenciado, democrático, uma professora que queira realmente fazer a diferença em sua sala de aula. Que vá sempre inovando, não ficar sempre na velha cartilha ou no velho caderno de tempos atrás, mas sempre procurar inovar seja lá no fundamental ou na educação infantil, mas ter essa postura de compromisso, de responsabilidade e de amor com seu ofício. (PROFESSORA LILA, 2011, grifos nossos). O professor pra mim é ‘aquele’ [apontando uma imagem de Jesus Cristo na parede]! Eu acho que o verdadeiro professor tem que se pautar no que Cristo foi, no que Cristo é pra gente até hoje. Porque você não ensina, ninguém aprende com arrogância. Por que a violência tá tão grande nas escolas hoje? Porque ninguém aprende com arrogância, ninguém aprende com intolerância, ninguém aprende com discriminação. A gente aprende com humildade, carinho, observação, abnegação. Isso pra mim é ser professor. (PROFESSORA LAURA, 2011, grifos nossos).

As expressões utilizadas pelas docentes e pelo docente em seus discursos – respeito, ser o modelo, ser a grande oportunidade na vida de uma criança, trabalho democrático, fazer a diferença, entre outras não mencionadas aqui – deram indícios de que as professoras e o professor sentiam a necessidade de demonstrar que nutriam grandes expectativas morais quanto à profissão docente. Esse caráter quase missionário atribuído à profissão docente, evidenciouse, sobremaneira, no discurso de Laura, que comparava a docência a um ato de caridade que devia se pautar em princípios cristãos, valorizando atitudes como a abnegação, o sacrifício e a humildade. Kuhlmann Junior (2004) discute como o conceito cristão de caridade – como o dever de aliviar a miséria alheia – influenciou as primeiras instituições assistenciais voltadas ao cuidado de crianças pequenas no Brasil, explicando como esse caráter de cunho religioso marcou a história da educação infantil em nossa sociedade, o que, como vimos no discurso de Laura, pode estar reverberando até os dias de hoje. Embora partindo de diferentes perspectivas, os depoimentos de Isabel e Monique acerca de suas representações sobre a docência ideal trouxeram à tona as suas próprias imagens ao desenvolverem atividades consideradas de cunho pedagógico com os bebês. Desse modo, ao idealizarem a profissão docente, as docentes demonstraram ter como referência concepções de educação infantil que enfatizam o cuidar e o educar, conforme expuseram: Não tenho a imagem ideal de um professor. Cada um tem o seu jeito, a sua maneira de trabalhar, cada um tem o seu jeito de pensar. Quando eu me imaginava como professora quando eu era criança, eu me via brincando com

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as crianças, segurando na mão, lendo história, jogando bola. Eu me imaginava e hoje eu faço isso. Consegui ainda realizar isso, correr, brincar, cantar, pular. [...] A gente só precisa estar se aprimorando, mas não tem um ideal de professor. (PROFESSORA ISABEL, 2011, grifos nossos). Quando penso num ideal de professora, a primeira imagem que me vem na cabeça é sentar no chão, sair do pedestal da cadeirinha, sabe, sentar junto, tá no olhar, é no olhar que a gente descobre muitas coisas. Não é porque é bebê ah, ele não fala, ele fala sim! Ele sente, tem desejo, tem vontade, então se sentar no chão é se colocar na altura dele, sentir o que ele sente e interagir com ele. (PROFESSORA MONIQUE, 2011, grifos nossos).

Brincar, segurar na mão, ler uma história, jogar bola, correr, pular, sentar no chão e interagir são princípios e conteúdos valorizados nas atuais discussões no campo da educação infantil e nos remetem ao enunciado em torno do binômio cuidar e educar que, naquele momento, regulava as ações na instituição. Desse modo, o que era ideal ao nível institucional também se manifestava como tal nas representações das docentes. Em seu discurso, Isabel sugeriu que a sua própria prática nos berçários do CEI Freireano representaria para ela o seu ideal de docência; já Monique considerava que esse ideal no trabalho com os bebês era ainda um vir a ser. As duas, porém, situavam as suas representações de docência em torno de seu próprio campo de atuação profissional como professoras de educação infantil. Ainda no que diz respeito às representações acerca de um ideal de docência, outro aspecto que foi se evidenciando nas falas das professoras e do professor em outros momentos da entrevista referia-se ao caráter polivalente da profissão, cujas exigências do ofício ultrapassam as competências do magistério, como afirmaram Monique e Laura: “Professor é uma profissão multifacetada. Você é assistente social, você é médica, coordenadora às vezes.” (PROFESSORA MONIQUE, 2011); “professor de educação infantil ele é enfermeiro um pouquinho, ele é mãe um pouquinho, ele é pai um pouquinho, de tudo ele é um pouquinho, aí juntando dá um todo.” (PROFESSORA LAURA, 2011). É notório, porém, que embora ambas as docentes apontem essa polivalência como um atributo da profissão docente, os papéis sociais elencados por Monique e Laura diferem em sua tipificação. Monique mencionou profissões que envolvem conhecimentos científicos, e Laura diferentes atores que se ocupam dos cuidados das crianças, expressando o dilema que pairava na instituição entre trabalho intelectual e trabalho manual. Assim, de uma maneira geral, ao serem evocadas as representações das professoras e do professor acerca de uma imagem ideal de docência, com exceção dos depoimentos de Isabel e Monique que mencionaram referências do próprio campo da educação infantil no que se refere às expectativas quanto ao cuidar e educar, os demais discursos manifestaram aspirações gerais

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que desenharam um perfil de docente que ama os seus alunos, é movido por valores éticos e morais e que tem um caráter polivalente. Nesse modelo ideal, apesar das especificidades do seu trabalho com crianças pequenas, as professoras e o professor talvez pudessem identificar significados comuns tanto para a sua atuação em berçários quanto para outros docentes que trabalhavam em diferentes níveis de ensino. Contudo, seus depoimentos também deram pistas de que, mesmo referindo-se a uma professora ou a um professor imaginário, as opiniões manifestadas, ainda que implicitamente, expressavam suas próprias aspirações com relação às suas vivências como docentes. Ao longo da investigação, como veremos a seguir em suas narrativas, cada sujeito encontrou diferentes estratégias para identificar os significados da sua profissão, justificar a sua permanência no trabalho com bebês e valorizar sua prática como docente em berçários, numa tentativa de, ao que tudo indica, aproximar sua experiência cotidiana a esse ideal de docência. 7.2 ESTRATÉGIAS IDENTITÁRIAS NA DOCÊNCIA EM BERÇÁRIOS A partir das imagens evocadas pelas professoras e pelo professor ao serem indagados a respeito do que seria um modelo ideal em sua profissão docente, bem como todas as especificidades de seu trabalho e o contexto em que desenvolviam as suas atividades em um CEI, conforme venho analisando ao longo desta investigação, a pergunta que se coloca é: em que medida e de que modo os sujeitos envolvidos na pesquisa identificavam-se, ou não, com a sua profissão, ao atuarem como docentes em berçários? A distinção entre atividades docentes voltadas para o desenvolvimento cognitivo da criança e aquelas relacionadas aos cuidados dos bebês, recorrentemente abordada nos vários depoimentos descritos anteriormente, evidenciou a dicotomia existente entre trabalho intelectual e trabalho corporal no âmbito da carreira do magistério. No campo específico da educação infantil, essa dicotomia se expressava por meio das discussões em torno do enunciado cuidar e educar que, naquele momento da instituição, regia os debates em torno das especificidades desse nível de ensino. Nessa perspectiva, os discursos das docentes e do docente, ao se referirem às suas identidades profissionais, expressavam essa cisão entre corpo e mente, lição e cuidado (ou lousa e fralda), conforme podemos observar nos depoimentos de Joyce e Lila: Quando eu me formei as pessoas falavam: presta outro concurso, vai trabalhar na EMEI ou na EMEF. Eu não me vejo trabalhando com criança até a 4ª série, passando uma lição na lousa, sem trabalhar com os bebês. (PROFESSORA JOYCE, 2011, grifos nossos).

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No meu trabalho o que eu não gosto é que eu ainda não consigo me ver com os bebês eu – Lila professora. Por mais que eu tente. Tá meio complicado. Eu não me sinto a Lila professora. Porque eu não vejo o papel, sempre estava acostumada a estar com o giz ali explicando. (PROFESSORA LILA, 2011, grifos nossos).

Após concluir seus estudos na área da educação, Joyce, que durante toda a sua trajetória profissional atuou com crianças pequenas, foi “lembrada” pelo seu grupo social que já poderia ocupar o status de professora em outros níveis de ensino. Entretanto, a docente não se via passando lição na lousa, em contraposição às suas atividades nos berçários. Por outro lado, em suas reflexões, Lila constantemente fazia um aparente exercício de autoconvencimento, no sentido de que era possível “trocar fraldas” e continuar sendo professora. Colocava-se aí, de forma contundente, um conflito identitário, a partir do qual, por mais que Lila tentasse acreditar que era, de fato, uma professora, todo o cenário em que sua prática docente era exercida lhe dizia o contrário. Convém relembrar que, no início de sua carreira, quando atuou como professora de creche, essa divisão de trabalho era dada pela própria instituição, já que as pajens eram contratadas para cuidar das crianças e as professoras para planejar o trabalho pedagógico. Desse modo, Lila não conseguia se ver como professora por estar cuidando de bebês, em vez de estar explicando com o giz, como o fazia em suas demais experiências docentes. Dubar (2005), ao analisar a questão das identidades sociais e profissionais, nos indica uma interpretação para esse descompasso entre o que se espera de uma professora que atua em berçários e aquilo com o que ela realmente se identifica. O autor afirma que nem sempre as expectativas que alguém nutre com relação a uma pessoa – identidade para o outro – e aquilo que, de fato, a pessoa deseja ser – identidade para si – coincidem. Nesse caso, ocorre o que o autor denomina de negociação identitária, um processo em que o indivíduo lança mão de estratégias como forma de aproximar a identidade que lhe foi atribuída à outra que ele possa aceitar, conforme explica o autor: Cada um é identificado por outrem, mas pode recusar essa identificação e se definir de outra forma. Nos dois casos, a identificação utiliza categorias socialmente disponíveis e mais ou menos legítimas em níveis diferentes. (DUBAR, 2005, p. 137, grifo do autor).

Com base nesse enfoque,

cada docente que participou deste estudo empírico,

identificando-se, ou não, com aquilo que se esperava da sua atuação em berçários, encontrou diferentes mecanismos para conferir à sua prática significados, sentidos e qualidades que

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pudessem aproximar o seu ideal de docência à sua experiência concreta com os bebês. Embora, concordando com Hall (2009a), também reconheça o caráter provisório, limitado e não fixo de qualquer classificação que se proponha acerca das identidades que um sujeito possa assumir em sua existência, passo agora a elencar tais estratégias identitárias que puderam ser depreendidas a partir da análise dos discursos das professoras e do professor ao longo desta investigação. A paixão pelo trabalho com bebês foi mencionada em alguns dos depoimentos das docentes e do docente como um fator decisivo em suas escolhas profissionais. Como vimos anteriormente, entre as professoras e o professor que participaram da pesquisa, apenas Júlio e Lila escolheram esses grupos devido à falta de opções. Todas as demais docentes referiram-se a essa paixão como algo que as motivava a assumir todas as demandas desse trabalho e, em alguns casos, se manifestava em seus discursos como um talento, ou como um dom inato, como podemos ver nos seguintes excertos: “Mas o meu maior amor são os bebês. O que me atrai é esse momento deles.” (PROFESSORA JOYCE, 2011); “Esse trabalho eu amo. É dele que vem meu sustento, é dele que vêm as coisas que eu tenho e adoro fazer, o que eu faço. [...] Eu acho que eu nasci pra isso.” (PROFESSORA ISABEL, 2011); “Mas eu não sei, eu acho que Deus já me deu esse dom, porque as crianças gostavam de mim.” (PROFESSORA LAURA, 2011); “Eu estou por amor também.” (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011); “O centro de educação infantil é a minha paixão, exatamente pela questão do dinamismo.” (PROFESSORA MONIQUE, 2011); “Eu gosto do que faço. Eu acho gratificante.” (PROFESSORA LUIZA, 2011). Outras estratégias que também se evidenciaram nos discursos referiam-se à identificação com o gênero feminino atribuído à profissão. Algumas docentes manifestaram em seus depoimentos, de maneira explícita ou implícita, que investiram nessa carreira, justamente por poderem conciliar o seu trabalho aos cuidados dos filhos e às tarefas da casa, pelas quais, como mulheres, sentiam-se socialmente responsáveis, ou ainda por se identificarem com esse tipo de atividade, como podemos observar nos relatos de Joyce e Luiza: Hoje eu estou com 51 anos e praticamente eu criei meus filhos em CEI. Quando eu entrei na prefeitura eu estava grávida bem de pouquinho e meu filho mais velho tinha 1 ano e 8 meses. Hoje eles se encontram um com 31 e outro com 29 anos. Foi muito gratificante porque na época pra mulher trabalhar era muito difícil. [...] A prefeitura pra mim foi uma bênção. Um lugar que você vai, trabalha, cuida de outras crianças e sabe que seus filhos também estão sendo cuidados. (PROFESSORA JOYCE, 2011). Eu fui pra uma creche e de cara já fui pra cozinha porque a cozinheira não tinha chegado ainda, outra colega foi pra serviçal e outras pros grupos de criança. Não tinha muita divisão de trabalho, a gente fazia de tudo [...] Quando chegou a cozinheira, ninguém queria que eu saísse da cozinha, a cozinheira

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ficou muito enciumada (até hoje ela está na mesma creche). Mas eu disse pra ela que meu negócio era criança, mesmo assim eu sempre dava uma assistência pra ela. (PROFESSORA LUIZA, 2011).

Numa outra perspectiva, conforme discuti anteriormente, Júlio, ao reafirmar-se como professor do sexo masculino, também encontrou estratégias para justificar a sua ação docente em berçários a partir da referência do caráter feminino atribuído a essa atividade, embora fazendo uma espécie de contrapartida masculina da profissão, como descreveu: As mães acham que como você está disposto a cuidar da criança, você vai criar a criança. Entra na fantasia de ter um pai como o professor, que ama a criança, troca, limpa etc. No começo, as meninas da limpeza achavam lindo me ver trocando as crianças. Porque incomoda, ser homem no CEI é ser um diferente pra todo mundo até pra mim mesmo. Na faculdade a gente debatia que historicamente professor é trabalho de mulher e por isso o salário é pequeno! [...] No dia a dia a diferença é que as crianças ‘gigantes’ (têm uns enormes!) sou eu que troco. A colega também consegue, mas se eu posso fazer com mais facilidade... (PROFESSOR JÚLIO, 2011).

Entre as professoras que atuavam há mais tempo na instituição, reconhecerem-se como profissionais que detinham a sabedoria das mais experientes – ou “a experiência de ver muito”, como definiu Joyce – também representava uma maneira de elas se realizarem em seu ofício no que se refere aos cuidados dos bebês. Em situações em que não se sabia o que fazer com “a materialidade do corpo da criança”, como apontou Kramer (2005), seus saberes de origem prática, passados de geração em geração, eram solicitados pelas professoras mais inexperientes, sobrepondo-se, nessas situações, aos saberes de ordem científica ou acadêmica: Às vezes a gente acerta até o diagnóstico pela experiência que a gente tem de lidar com as doenças dos bebês. Outra referência são os professores mais antigos. As mais novas procuram a gente quando a criança apresenta alguma coisa. Uma vai passando pra outra, de geração para geração. Porque a gente tem uma experiência de ver muito. (PROFESSORA JOYCE, 2011). Então isso me deixava muito feliz. E as colegas também, o apoio das colegas, o carinho que elas tinham, o respeito que elas tinham comigo como vó de creche, mãe de creche, que vinha me pedir assim, conselhos, sabe? Olha Laura, você acha que assim tá bom, você acha que se fizer assim tá ótimo, você acha que se fizer assim vai dar certo. Então isso me deixava muito feliz também, o reconhecimento da experiência. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Outro aspecto que também se mostrou como um fator de motivação para a permanência no trabalho com bebês referiu-se à satisfação que as docentes e o docente experimentavam por

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meio da retribuição afetiva da criança, que em seus discursos se expressava como uma espécie de compensação moral para seus esforços, nem sempre reconhecidos em seu meio social, o que, em alguns casos, justificava a energia despendida com as tarefas de cuidados, ainda que esse trabalho não fosse identificado como uma legítima prática docente, conforme ilustram os seguintes trechos: Mas assim, é uma turma... é bem gostosa. Um pessoalzinho gostoso de pegar no colo, gostoso de abraçar. Não que os maiores não sejam, mas eles, acho que a gente se encaixa melhor. (PROFESSOR JÚLIO, 2011). É gratificante, a gente percebe o crescimento deles junto com a gente, é tanto que quando eles saem do berçário pra outro grupo quando eles veem a gente eles correm pra abraçar a gente, porque de certa forma eles pegam um carinho com a gente. Então eu acho gratificante trabalhar com o berçário. (PROFESSORA LUIZA, 2011). Não, eu fico porque gosto, adoro. Adoro ver eles quando eu vou dar o banho, ver o sorriso deles, quando eu vou trocar uma fralda ver a alegria deles, ver eles sorrindo, batendo palminha pra mim, sabe? Quando eles falam a primeira palavra. [...] Então eu fico muito feliz quando eu trabalho com criança pequena, porque eles são muito gratos ao que você faz pra eles. (PROFESSORA LAURA, 2011). Teve um dia que eu cheguei e cumprimentei as colegas que estavam na sala e um aluno estava no bercinho e disse ‘Oi Lila’ e aquilo me cativou, você é importante pra ele, seu papel ali não é só trocar uma fralda. [...] O que me dá satisfação e o que faz que eu continue é o retorno dessa criança pra mim, o carinho, o apego que ele tem a nós, isso não tem preço, não tem dinheiro nenhum que pague e também o carinho da família, quando ela acredita no seu trabalho não tem preço também a gratidão que esse pai transmite pra você. Então são compensações. Por um lado você tem uma frustração por não se sentir professora, mas sim uma cuidadora, mas por outro lado tem esse outro lado que compensa. (PROFESSORA LILA, 2011, grifos nossos).

A questão do trabalho em berçários possibilitar, em termos

visíveis, o

acompanhamento da evolução do bebê foi mencionada de forma recorrente pelas docentes e pelo docente como uma maneira de demonstrar o sentido, a relevância de suas ações e a sua preferência em trabalhar nos berçários. Algumas docentes, como Joyce, chegavam a cumprir um ritual de acompanhamento da criança, ano após ano, nas diferentes turmas, a fim de, ao final de um ciclo, comprovar o resultado de seus investimentos iniciais nos berçários: O que me satisfaz no meu trabalho é a alegria de ver a criança começar engatinhar, andar, o progresso. Às vezes a gente encontra na rua, adulto já. [...] Eu tive uma criança que entrou com 2 meses, ela tinha refluxo e hoje ela está no Mini 2. Então a gente vê, a criança ela entra, ela tá no bercinho, não levanta. Aí você acompanha o progresso da criança, a criança começa a sentar,

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começa a engatinhar, começa a segurar nas coisas pra andar. E isso é muito gratificante. É o trabalho que eu gosto de fazer é esse. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011). E é gratificante porque a gente vê eles crescerem e os grandes não, a gente já pega crescidos com a educação diferenciada que vem de casa, costumes diferenciados e você tem que ter sensibilidade pra saber lidar com esse tipo de coisa. [...] Já o berçário não. A gente percebe quando eles dão os primeiros passos, quando engatinham, quando nasce os primeiros dentinhos, eles chamarem a gente pelo nome, chamar ‘mamãe’, ‘papai’. [...] E se eu tiver que continuar trabalhando, vou trabalhar com berçário sim! (PROFESSORA LUIZA, 2011). Esses meus estão com 1 ano e meio, aí no ano que vem eu não consigo largar deles. Vou com eles até 4 aninhos, até saírem daqui. Porque assim, você acompanha o desenvolvimento de uma criança, a aprendizagem, a falinha, o começar a engatinhar, o andar, o olhinho, o amor que ele tem, só quem cuida é que sente, você recebe muito mais do que você dá. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

O engajamento em causas sociais e a utopia apareceram também como uma forma de justificar o enfrentamento das dificuldades no trabalho docente em berçários. Seja em discursos que mencionavam o papel social da profissão docente, seja em defesa dos direitos das crianças, das mães ou das famílias, reconhecer-se numa “missão social” parecia atribuir valor aos seus fazeres com as crianças pequenas, como sugerem suas narrativas: Porque a criança merece, é aquilo que eu falei, a criança merece ser respeitada desde a primeira infância. Pra ser um cidadão consciente e sem sequela. Porque infelizmente hoje o que a gente tá vendo? É aluno batendo em professor, é aluno batendo em aluno, esfaqueando aluno. Por quê? Porque teve uma educação, eu falo sinceramente, sequelada, cheia de preconceitos [...]. Então eu acho que nesses meus 27 anos que eu trabalho com educação, se eu tive desilusão não foi com o meu trabalho. As frustrações que eu tive foram mais com o poder público, sabe, que a gente poderia desenvolver melhor ainda o trabalho e a gente não desenvolve porque encontra barreiras, mas com a criança eu nunca me decepcionei, eu sempre me senti premiada. (PROFESSORA LAURA, 2011). Pode vir tempestades, os salários pode não ser dos melhores, a comunidade pode não valorizar. O importante é aquilo que eu acredito. Eu sempre vou acreditar na educação, que eu posso dar alguma coisa melhor para o meu aluno seja ele do ensino médio ou o bebê. A minha contribuição é grande e eu sei que a minha marca ficará. (PROFESSORA LILA, 2011).

A identificação com práticas inovadoras de educação infantil também parecia evidenciar-se como estratégia que justificava a aceitação das contradições, da desvalorização ou de tarefas nem sempre compatíveis aos seus anseios. A partir dessas novas concepções, as docentes e o docente percebiam-se como protagonistas desse processo de mudanças,

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procurando, por meio desses discursos, justificar, por exemplo, o motivo de determinadas práticas permanecerem inalteradas em toda a sua trajetória na instituição, conforme expressaram os seus relatos: Na minha visão eu acho que não mudou muita coisa com relação ao cuidar do professor com o aluno. Mas em termos técnicos mudou sim muito a visão das pessoas essa questão da educação infantil. Antes as pessoas tinham mais preconceito, principalmente quando se falava de creche. Hoje as pessoas ainda olham com um pouco de preconceito, mas já têm outro olhar. Nós vemos até mais pessoas querendo entrar na educação infantil porque estão tendo outra visão. Não sei se pelo fato de hoje pertencer à educação. Foram muitas lutas. Ainda continua as lutas. Mas a tendência é melhorar cada vez mais. (PROFESSORA LILA, 2011). No trabalho com bebês o que avançou foi o olhar, o CEI não é um depósito. Existe um trabalho de educação infantil, mas precisa avançar mais. Não é só a fralda, o choro, isso é apenas a parte de todo um processo. O que tem que mudar é esse olhar das pessoas. [...] Eu gostaria que o berçário tivesse uma sala repleta, com móbile, uma sala de vivências, bonita, aconchegante, cheiro, cor, uma sala de bebês. (PROFESSORA MONIQUE, 2011).

Foram evidenciados também como justificativas para a permanência no trabalho em berçários em um CEI as vantagens financeiras, a segurança e o status atribuído a um cargo no serviço público municipal, como sugerem os seguintes excertos: “Mesmo assim valorizou bastante o salário com a transformação do cargo, têm algumas gratificações que sempre tão chegando e antes era bem pouco. Teve valorização salarial.” (PROFESSORA LUIZA, 2011); “Quando eu comecei a trabalhar no CEI o que eu esperava era que em cinco anos eu já fosse diretor! Ser professor era um rito de passagem. São cinco anos de pré-requisito.” (PROFESSOR JÚLIO, 2011); “Hoje, eu acho que tudo que eu faço eu ganho muito bem pra fazer. Eu tenho que fazer muito bem feito.” (PROFESSORA JOYCE, 2011); “Uma grande conquista é que hoje pertencemos à secretaria da educação. Antes não sabíamos nem ao que pertencíamos.” (PROFESSORA LILA, 2011). Outro aspecto que apareceu sutilmente nos discursos das docentes e do docente referiase à sua identificação com a área da saúde, considerando que, ao contrário do estranhamento que provoca em contextos escolares, nesse campo de atuação profissional, o cuidar era reconhecido como uma competência inerente ao trabalho. A atividade docente, em alguns momentos, se mistura com a enfermagem, como podemos observar nos seguintes relatos: A gente é a mesma coisa que uma auxiliar de enfermagem que trabalha num berçário quando a criança fica doente. O bebê quando entra com 2 ou 4 meses, aí já entra essa parte. Não é bem a educação não! A pessoa tem que procurar

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saber, por exemplo, quando o bebê tem refluxo. (PROFESSORA MARIA CECÍLIA, 2011). Lá onde eu trabalho, descobri muitas doenças nas minhas crianças que os próprios pais não sabiam que tinha, porque eu fico observando. No caso tinha uma menininha lá no CEI, logo que eu entrei que ela não conseguia engolir. E ela tinha as amígdalas tão grandes, crescidas, que tapava, ela tinha problema de tireoide, e a família não sabia. E eu pedia pras meninas passarem a comida na peneira, a comidinha, pra ela conseguir comer. Depois de tanto falar, tanto falar, a mãe levou no médico, aí descobriu que a menina tinha problema de tireoide, operou e ela tá boa agora, graças a Deus. (PROFESSORA LAURA, 2011).

Por fim, convém destacar que todas as narrativas que se referiam a um julgamento negativo do passado da instituição pareciam também apontar para a necessidade de autovalorização das docentes e do docente, como uma estratégia identitária que legitimasse sua profissão nos CEIs, como podemos observar no depoimento de Lila: Mas eu encontrei algumas pessoas que trabalharam comigo antigamente na creche que me deram apoio e eu comecei a fazer um resgate do tempo de 1985 pra agora muita coisa mudou. Foram várias conquistas em termos de salário, de posição. Não é porque eu estou trabalhando em um berçário num CEI que eu deixei de ser professora. (PROFESSORA LILA, 2011).

Todas essas estratégias a que recorriam as docentes e o docente, como pude observar em seus discursos, não se manifestavam de maneira isolada. Embora determinados aspectos se evidenciassem com maior frequência nos depoimentos de uma mesma docente, tais argumentos ora se revezavam, ora se articulavam a outros, dando pistas das configurações singulares que as suas identidades profissionais assumiam naquele contexto. Na próxima seção, com base na análise de tais arranjos identitários, e de acordo com o que foi se evidenciando no decorrer da investigação, passo a examinar o caráter híbrido das culturas que coabitam em um CEI e as implicações dessa configuração na constituição de identidades docentes no trabalho específico em berçários. 7.3 IDENTIDADES DOCENTES E CULTURAS HÍBRIDAS NO TRABALHO COM BEBÊS No desenvolvimento deste estudo, inúmeros aspectos foram abordados no que se refere à experiência singular de docentes que atuam em berçários de um CEI. Considerando essa multiplicidade de fatores referentes: ao histórico da instituição; às trajetórias profissionais percorridas pelos sujeitos envolvidos na pesquisa; ao caráter feminino atribuído aos cuidados

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das crianças pequenas; aos múltiplos saberes evocados na prática cotidiana com os bebês; e às representações das professoras e do professor acerca de uma imagem ideal de docência, venho buscando esboçar, ainda que provisoriamente, um desenho que expresse os contornos e as especificidades desse campo de atuação profissional. Conforme assinalei desde o início deste texto, uma questão que primeiro se colocava era a própria denominação da profissão e as transformações que foi sofrendo no decorrer da história da instituição. Porém, como falar da identidade profissional de um sujeito, sem considerar o nome atribuído à função que ele ocupa? Nesse percurso de mudanças, como vimos, pajens tornaram-se auxiliares de desenvolvimento infantil, que se “transformaram” em professores de desenvolvimento infantil, que, por fim, passaram a ser designados em sua versão atual como professores de educação infantil. Cada uma dessas denominações trazia consigo novas exigências e atribuições, na acepção de Dubar (2005), como podemos observar nas definições das legislações que as instituíram. Enquanto à pajem cabia “cuidar da alimentação, higiene, recreação e repouso das crianças.” (SÃO PAULO, 1980, p. 10); para a ADI era estabelecido como atribuição geral: Estimular e contribuir para o desenvolvimento sadio das crianças, em todos os aspectos, com o objetivo de sua formação integral, partindo da vivência das mesmas, na perspectiva de torná-las pessoas com participação criativa, crítica e independente, em seu meio. (SÃO PAULO, 1984, p. 6).

As PDIs eram chamadas a: I - Participar, em conjunto com a equipe técnica e a comunidade educativa, da elaboração, execução e avaliação do projeto político-pedagógico [...] V – Responsabilizar-se pelo cuidado, pela observação e pela orientação para que todas as necessidades de saúde, higiene e alimentação sejam cumpridas nas diferentes idades. (SÃO PAULO, 2004, p. 4).

E, recentemente, ao assumir o cargo de PEI, esperava-se que a profissional fosse capaz de: criar condições, oportunidades e meios para garantir às crianças, respeitadas suas especificidades e singularidades, o direito inalienável de serem educadas e cuidadas de forma indissociada. (SÃO PAULO, 2009, p. 44).

Se fizermos uma análise desse processo de mudanças na nomenclatura que identifica a profissão, bem como das principais funções que lhe foram atribuídas ao longo do tempo,

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podemos perceber que nos discursos da instituição, os diferentes termos utilizados sugerem uma espécie de gradação que vai da pajem, como atividade associada ao trabalho doméstico; que em seguida avança para o nível de auxiliar no processo de desenvolvimento da criança; tornandose posteriormente uma professora numa área da docência ainda difusa; até, finalmente, ser reconhecida como uma professora no campo da educação infantil, uma atividade associada ao trabalho de caráter intelectual. Nesse processo, o cuidado que antes aparecia como a tarefa principal das pajens hoje figura de forma indissociada ao educar, como um direito inalienável das crianças, destacando-se como uma das principais atribuições de uma PEI. Essa crença na evolução da carreira, cuja história está impressa nos próprios nomes conferidos ao cargo, adquiriu o estatuto de verdade e permeava todos os discursos, seja no interior dos CEIs, nas legislações que regiam esse trabalho ou nas narrativas das professoras, como uma espécie de identidade fabricada pela própria instituição, como discute Lawn (2000). Todavia, mesmo considerando todas as estratégias identitárias adotadas pelos sujeitos no sentido de aproximar os seus fazeres ao seu ideal de docência, é fato que, ainda hoje, algumas tarefas, especialmente no que se refere às práticas de cuidados dos bebês, continuam a serem exercidas no trabalho com crianças pequenas nos CEIs. Para ilustrar, se no passado a pajem trocava a fralda de pano, hoje a professora troca a fralda descartável, mas ainda tem como uma de suas atribuições a higiene da criança. Assim, o mesmo discurso que enaltece o cuidar e o educar, colocando-o como direito inalienável da criança, também demarca essa enorme distância entre os fazeres de uma pajem há 30 anos e de uma professora de educação infantil nos dias de hoje. Questionando esse “elogio ao novo” difundido amplamente nos atuais discursos da educação infantil, Kramer (2005) aponta: A maioria das iniciativas de formação trabalha com a ideia de que é preciso ou possível jogar fora a experiência passada e começar tudo de novo. Como se os professores fossem colocados em ponto morto e fossem alavancados s cada vez que se descobrisse um novo método, uma proposta ou teoria. (p. 223).

No que se refere ao trabalho específico com bebês, essa contradição tornava-se ainda mais explicitada. Ao contrário do que ocorria com os grupos dos maiores, nos berçários, devido ao grau de dependência da criança e à premência em atender às suas necessidades de alimentação, higiene e saúde, as professoras, ao terem o cuidado como uma das tarefas centrais de sua prática docente, aos olhos da instituição e do seu meio social, pareciam permanecer com os “pés fincados” naquele passado indesejado, já que as suas atividades se assemelhavam às de uma pajem, o que colocava em cheque o discurso de superação daquela antiga fase da

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instituição. Não é à toa que Lila estranhasse o fato de ser professora e ter que trocar fraldas, já que, a todo o momento, ela era interpelada por um discurso que afirmava: “isso é coisa do passado!”, ou em outras palavras: “isso é um trabalho que não tem valor!” De uma maneira geral, esse julgamento depreciativo acerca do que foi vivido no passado da instituição, associado a um modelo assistencial, e essa crença exacerbada em sua nova estrutura de funcionamento, pautada em um modelo educacional, manifestaram-se de forma recorrente nas narrativas das professoras e do professor em vários momentos das entrevistas. Desse modo, ao analisar como a profissão docente se configurava no interior dos berçários em um CEI, evidenciei que essa ambiguidade entre os velhos padrões considerados assistenciais e os novos parâmetros considerados educacionais representava um aspecto central no processo de identificação profissional dos sujeitos que atuavam naquele contexto. Essa trama binária que se evidenciava nos discursos dos sujeitos e nos próprios documentos oficiais da instituição deu indícios de que as relações de poder naquele contexto também se se estabeleciam por meio da predominância de uma cultura em detrimento da outra: atividades pedagógicas se sobrepunham às atividades de cuidados; atividades relacionadas aos cuidados se distanciavam do conhecimento pedagógico; professoras que atuavam em outros níveis de ensino eram mais valorizadas do que aquelas que trabalhavam com crianças pequenas; professoras que atuavam com bebês questionavam o compromisso das que atuavam em outros níveis de ensino; conhecimentos científicos sobre o desenvolvimento infantil desprezavam os saberes adquiridos na experiência; os costumes tradicionais referentes aos cuidados dos bebês negavam as descobertas científicas; professoras novas julgavam as práticas antigas como ultrapassadas; professoras antigas desconsideravam as contribuições das novas; as condutas do único professor do sexo masculino eram colocadas em cheque pela maioria feminina; a força masculina se destacava sobre a suposta fragilidade feminina em situações cotidianas; entre outras alternâncias de poder e sujeição. Por outro lado, também pude observar ao longo deste estudo, por meio das narrativas das professoras e do professor, que os cenários da instituição eram coabitados por diferentes culturas que se articulavam de forma complementar em torno da tarefa de atender às necessidades dos bebês que frequentavam o CEI Freireano: as vivências familiares no ambiente doméstico e as referências culturais trazidas de acordo com a procedência e a trajetória de vida de cada docente; as formas como exerciam as suas feminilidades ou masculinidades e o conjunto de saberes sobre cuidados oriundos da experiência adquirida por mulheres de geração em geração ou no próprio cotidiano da instituição; a cultura da infância ali representada pelos próprios bebês e seus interesses como sujeitos; as políticas públicas e

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educacionais das diversas instâncias a que estava vinculada aquela unidade infantil (região, município, federação); a organização escolar do CEI e as diretrizes pedagógicas da instituição como unidade pertencente a uma rede de ensino; a influência das disciplinas que se ocupam da infância, como a pediatria, a psicologia ou a enfermagem, entre outras; a cultura local do bairro em que estava localizado o CEI; entre outras. Entretanto, apesar desses múltiplos aspectos culturais que conviviam e se complementavam na prática docente naqueles berçários, os debates sobre o papel social e o valor desse trabalho, nos discursos dos sujeitos envolvidos na pesquisa e nos documentos oficiais da instituição, tinham como referência apenas o caráter ambíguo da profissão, a partir do qual eram demarcadas polarizações entre: trabalho intelectual e trabalho manual; cognição e corporeidade; gênero feminino e masculino; teoria e prática; novo e antigo; ou, em última análise, entre o cuidar e o educar, já que é este o enunciado que, na atualidade, coloca-se como mais importante nas discussões no campo da educação infantil. Desse modo, as narrativas dos sujeitos a respeito de suas vivências profissionais concretas expressavam os seus saberes a respeito do trabalho específico com bebês, suas descobertas teóricas e práticas, os princípios educacionais que regiam suas ações, as maneiras como articulavam o conjunto de rotinas de cuidados às diferentes atividades propostas em seus planejamentos, as negociações cotidianas que faziam com as famílias entre tantos outros conhecimentos que haviam acumulado a partir de suas experiências nos berçários. Todavia, ao emitirem suas opiniões e impressões sobre os sentidos de sua profissão e do papel que desempenhavam como docentes no CEI, como uma instituição de educação infantil, seus discursos reforçam enunciados em torno da crença no passado sombrio das creches e da superação dessa condição por meio da indissociabilidade entre o cuidar e o educar. Em outras palavras, ao referirem-se à sua experiência concreta no atendimento de bebês, expressavam que essa prática demandava a articulação de múltiplos aspectos que se complementavam ou se hibridizavam. Entretanto, ao abordarem o enunciado cuidar e educar (que no âmbito da SME tem estatuto de lei), procuravam ajustar seus fazeres a uma ou outra dessas duas dimensões, num discurso próximo ao binarismo, em que as práticas em torno do cuidar remetiam ao passado “obscuro” da instituição, em tese, superado, e o educar ao ideal nobre da atual fase de sua carreira, fazendo com que os sujeitos encontrassem diferentes estratégias para reafirmarem as suas identidades docentes em meio a essas contradições. Ao discutir as relações entre cultura e práticas escolares, Vidal (2009), apoiada nas proposições de Canclini (2008) sobre culturas híbridas, aponta uma nova perspectiva para se reinterpretar a convivência dos diferentes aspectos culturais que coexistem no interior das

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escolas, oferecendo-nos pistas sobre como abordar esse mesmo processo nos CEIs. A autora sugere que as concepções acerca das relações e das práticas educacionais deveriam também considerar as reações dos sujeitos frente a essa heterogeneidade cultural presente no contexto escolar, propondo o uso de uma abordagem que: convida a perscrutar as diversas culturas que convivem no interior da escola, como culturas familiares, infantis, docentes, administrativas, percebendo-as não como isoladas ou puras, mas como mestiças; ao mesmo tempo, reconhecendo a escola como um lugar de fronteira cultural, de zona de contato, e a cultura escolar como uma cultura híbrida. (VIDAL, 2009, p. 30).

Com base nesse enfoque do hibridismo, que segundo Hall (2005) é uma das características centrais das identidades que se produzem na atualidade, para além da lente binária que categoriza de forma dicotômica os fazeres de uma professora ou de um professor de educação infantil, foi possível perceber as diferentes docências que se produziam ali naquele contexto específico, tomando forma nas fronteiras das culturas que coexistiam nos berçários do CEI Freireano. Nesse sentido, ao confrontarmos as trajetórias bem distintas de Joyce e Júlio, podemos perceber que, mesmo seguindo diferentes caminhos, os dois acumularam um profundo conhecimento sobre o trabalho com bebês. Joyce, como profissional identificada com o papel social esperado dela como mulher e esposa, construiu os seus saberes a partir das suas “experiências de ver muito”, as quais acumulou ao cuidar, com muito amor, de seus próprios filhos e das crianças com quem conviveu durante os seus 30 anos de carreira. Ao referir-se à sua trajetória, afirma que: Eu me sinto educadora, professora mesmo. Cada momento que você vê do bebê aí você se sente educadora. Eu falo com muito orgulho que eu sou professora de educação infantil, de 0 a 4 anos. Eu nunca me vi trabalhando no outro lugar. (PROFESSORA JOYCE, 2011).

Júlio, avesso à ideia de ter filhos, contrapondo-se aos discursos que supervalorizavam a questão do amor na profissão docente, construiu os seus saberes nessa busca de um lugar para o masculino em um ambiente profissional reconhecido como feminino e ao arriscar novas estratégias pedagógicas, identificar o que poderia ensinar aos bebês e, mesmo “estragando muitas fraldas” – enquanto aprendia a trocar uma criança –, ao refletir sobre o seu papel como docente em berçários, afirmou: “Eu demorei pra assumir, vou ser sincero, mas eu gosto de ser

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professor, mesmo com aquela história de a vida inteira sempre querer ser diretor!” (PROFESSOR JÚLIO, 2011). Já Luiza demonstrou em seus depoimentos que sempre se identificara com os aspectos práticos de sua profissão no que se refere aos cuidados dos bebês, sem nunca sequer ter usado luvas descartáveis para trocar fraldas. Em um dos momentos das entrevistas, a docente afirmou ainda, sem idealizações ou preocupações em ajustar o seu discurso às discussões sobre o cuidar e o educar, que na prática nada mudara nos berçários, apenas havia se “modernizado”. Sua postura, em tese, se chocava com a de Monique que em seus comentários defendia veementemente a necessária mudança do olhar diante do trabalho a ser realizado com a primeira infância, dando indícios, por meio de seu discurso, de sua vontade de colocar em prática as concepções de educação infantil com as quais se identificava. No entanto, ao emitir a sua opinião sobre o que os bebês esperavam da sua atuação como docente, Monique afirmou “eles esperam sim o novo, eles esperam também estarem bem cuidados.” Desse modo, existiria alguma incongruência entre a conduta de Luiza focada nos aspectos práticos de sua profissão e as de Monique que, mesmo partindo de uma abordagem mais intelectualizada, também defendia que os bebês deviam ser bem cuidados? Haveria, nesse sentido, na experiência que o bebê vivencia, diferenças em ser bem cuidado por quem se identifica com o lado prático do seu ofício ou por quem o faz por convicções pedagógicas? Por outro lado, Maria Cecília gostava de colocar música clássica para os bebês dormirem e se identificava com a “tranquilidade” desse grupo; já Isabel adorava brincadeiras na área externa e afirmava que se divertia muito com esse grupo devido ao seu dinamismo. As interações, possibilitadas por meio do convívio entre crianças pequenas e docentes em seus diferentes modos de ser e de estilos pessoais, não poderiam contribuir nas discussões sobre currículos voltados para bebês? Se Lila defende a luta por melhores condições de trabalho para os profissionais da educação infantil e Laura se coloca como defensora dos direitos das crianças, suas ações, ainda que em diferentes direções, não culminam numa mesma busca de aprimoramento da sua profissão? As memórias das mães das docentes e do docente que, unanimemente, foram evocadas em suas narrativas, ao se referirem às suas experiências da infância e aos saberes por elas acumulados sobre os cuidados dos filhos, serviam como fonte de inspiração para a prática docente em berçários. Na mesma perspectiva, informações obtidas por pediatras, por guias para mães, literaturas da área e orientações curriculares da instituição também foram mencionadas

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pelas professoras e pelo professor. Ao que tudo indica, tanto os saberes das mães quanto as fontes científicas se alternavam em termos de eficiência no trato cotidiano dos bebês. Nesse sentido, Canclini (2008) afirma que uma pessoa que vai ao médico e ao curandeiro pode se beneficiar tanto dos saberes científicos quanto dos populares, e, em diferentes circunstâncias, um ou outro, ou ambos, exercerá o poder sobre a saúde do indivíduo. Desse modo, ainda que o objetivo deste estudo fosse ajustar as identidades docentes que se produziam nos berçários do CEI Freireano a um único perfil, ou ainda se, com essa finalidade, eu destacasse as qualidades, os talentos e as competências de Joyce, Júlio, Luiza, Monique, Isabel, Maria Cecília, Laura e Lila em sua atuação com os bebês, ainda assim isso não seria possível. Como apontou Hall (2005), o sujeito está em constante deslocamento e aquilo que ele é ou com o que se identifica é algo que muda em diferentes posições, tempos, histórias ou culturas que ele habita. Todavia, reconhecer as diferentes identidades docentes que puderam emergir nesse contexto, a partir das diferentes culturas que se encontravam, se chocavam, se integravam e se hibridizavam no interior de um berçário em um CEI, talvez tenha sido um primeiro passo para uma melhor compreensão sobre as especificidades, a singularidade, as dificuldades e o valor social dessa profissão.

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8 CONSIDERAÇÕES FINAIS No início desta investigação enveredei por vários caminhos em busca de significados para a prática exercida por professoras em berçários de um CEI da rede municipal de ensino da cidade de São Paulo, na tentativa de elucidar o processo de constituição das identidades docentes de profissionais que atuavam naquele contexto. Interessava-me compreender as percepções, as expectativas e as representações de tais profissionais que passaram por diversas fases das creches, hoje CEIs, como também daquelas que ingressaram recentemente, acerca de qual seria o seu papel profissional ao pertencerem à carreira do magistério e trabalharem com bebês. Tive como ponto de partida a análise do próprio histórico da instituição e das mudanças que lá ocorreram nas últimas três décadas, especialmente ao que se refere às modificações na designação (pajem, ADI, PDI e PEI) e no caráter das suas funções ao longo desse período. Para entender as origens das unidades infantis que, na atualidade, atendem a crianças pequenas na cidade de São Paulo e o atual formato da profissão que, hoje, se ocupa dessa atividade, fiz uma breve incursão na história das instituições de educação infantil no Brasil. Nesse percurso me deparei com um passado extremamente carregado por desigualdades sociais e distinções de classes, cujos reflexos vivemos até os dias de hoje. O processo de colonização e o fenômeno da escravidão, que coexistiam ao lado de – e sustentando – uma pequena elite dominante, davam o tom da forma dualista que também a infância seria tratada: por um lado, havia as crianças escravas, as crianças órfãs, os filhos de camponeses, os filhos de imigrantes, que eram recebidos em rodas dos expostos, asilos, orfanatos, creches filantrópicas e num passado mais recente em parques infantis; e, por outro lado, as crianças de classe abastada que eram cuidadas por amas de leite, amas-secas, escravas e, com o passar do tempo, eram encaminhadas para os jardins de infância e escolas que seguiriam padrões europeus de ensino. Desse olhar da origem das instituições pré-escolares no Brasil, veio a primeira pista que me ajudaria a compreender posteriormente a herança dessas contradições, em se tratando de como a infância, ou as infâncias, eram tratadas no país. Fazendo uma analogia com o meu objeto de estudo, as identidades de sujeitos que trabalhavam com crianças pequenas, percebia que a época da Colônia e o processo de escravidão deixaram em nossa cultura uma marca discriminatória, pois sempre quem cuidara dos bebês pobres ou ricos foram mulheres em situações subalternas. Quando as primeiras instituições de atendimento à infância foram surgindo, também foi se estabelecendo uma divisão entre aquelas de caráter assistencial, em que, de modo geral, as profissionais ou voluntárias cuidavam das crianças pobres, e as de caráter instrucional,

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em que professoras ensinavam crianças ricas. Havia também iniciativas que tentavam conciliar os dois aspectos (assistencial e educacional), como as escolas maternais de Anália Franco e os parques infantis (em sua ideia original) de Mário de Andrade, mas em caráter de exceção ou de resistência. De modo que, ao longo da história, o cuidar ficou associado à pobreza e o ensinar à nobreza. Nessa incursão na história da educação infantil, pude evidenciar também que, em paralelo a essa história carregada de dualismos, os cuidados das crianças pequenas passariam a ser, tanto a nível doméstico quanto institucional, um objeto da ciência médica. Os higienistas pretendiam, desse modo, contribuir com seus preceitos sobre higiene, saúde e alimentação etc. na conquista do ideal eugenista em promover a “raça pura”, garantindo o progresso da nação. Por isso, era preciso abandonar as crendices e ensinar as mulheres que não detinham o conhecimento científico a cuidarem de maneira adequada dos bebês. E mais uma herança nos era deixada: a supremacia do saber científico sobre o saber popular (e ainda a mensagem subliminar de formar uma raça pura!). Dando um salto na história, observei ainda que a gênese dessa profissão estava também relacionada aos movimentos sociais de resistência, que se iniciaram lá atrás com as ideias anarquistas, com as reivindicações por melhores condições de vida para operários, crianças e mulheres, e vieram tomando corpo por meio de movimentos feministas, movimentos populares que, após a Ditadura Militar, deflagraram a implantação de creches públicas na cidade de São Paulo e, no período de abertura política no Brasil, a criação de legislações voltadas à proteção da infância e à estruturação da educação infantil como etapa da educação básica no país (Constituinte, LDB, ECA etc.). Partindo dessa contextualização, e devido aos questionamentos que eu trazia em virtude da minha própria prática profissional, optei intencionalmente em abordar a temática por mim proposta, cujo referencial seria o campo da educação infantil, a partir do enfoque interdisciplinar dos estudos culturais, procurando, a partir da aproximação dessas duas áreas de conhecimento, ampliar o meu campo de visão por meio do uso de diferentes ferramentas teóricas. Buscando a abordagem da multiplicidade, com base nos objetos pesquisados pelos estudos culturais, priorizei quatro eixos que me acompanhariam, no decorrer da pesquisa, conduzindo as discussões acerca dos vários assuntos relacionados ao exercício da profissão docente em berçários: estudos sobre identidade, cultura, gênero e poder. Ao escolher esses temas como fios condutores, assumia uma abordagem embasada na pluralidade, em que identidades, culturas, gêneros e poderes seriam analisados em diferentes contextos e arranjos, sem a pretensão de encontrar definições fixas, únicas, essencializantes ou binárias. Nessa

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empreitada, encontrei como ferramenta-mestra, inspirada nas ideias de Foucault (2004), a análise dos discursos como meio de abordar as narrativas dos sujeitos envolvidos na pesquisa empírica; as diretrizes de documentos normativos da instituição; minhas próprias formulações como pesquisadora e profissional da área; e as concepções pedagógicas que circulam no universo da educação infantil, especialmente no que se refere ao eterno dilema da relação entre o cuidar e o educar, cujas origens pareciam estar carregadas de contradições de classe e da posição que a criança pequena e suas cuidadoras vinham ocupando em nossa sociedade desde os mais remotos tempos. Assim, ao adentrar o CEI Freireano, na qualidade de pesquisadora (lembrando que naquela ocasião também exercia lá o cargo de diretora de escola), já levava comigo algumas dessas reflexões e questionamentos. Entretanto, ao começar a ouvir as narrativas das professoras Joyce, Luiza, Isabel, Maria Cecília, Laura, Monique e Lila e do professor Júlio, várias outras questões foram surgindo. Inspirada em abordagens biográficas, sabia dos riscos e das possibilidades dessa opção metodológica, considerando o meu duplo vínculo com os sujeitos envolvidos na pesquisa. Evidentemente emergiriam dali, além dos conteúdos objetivos referentes às questões propostas no roteiro de entrevista, muitos outros aspectos de caráter subjetivo. Nesse processo fui me reapresentando às docentes e ao docente. Ouvindo suas histórias, fui percebendo a dimensão daquela ação, que, de um modo ou de outro, nos modificaria. Como me propus a conduzir as entrevistas de uma maneira informal, que se caracterizaram por longas conversas sobre as várias questões abordadas, ao final dessa fase da pesquisa, eu havia reunido um volumoso material. Percebi que muitas das informações que eu perseguia se encontravam distribuídas em diferentes momentos das narrativas das professoras e do professor. Então, para a análise do material precisei realizar várias leituras que foram, aos poucos, me aproximando dos sujeitos entrevistados sob o enfoque da pesquisadora, mas que também reconhecia, nesse processo, as impressões da diretora. A partir de seus depoimentos, atenta ao alerta de Hall (2005) sobre a não existência de um único núcleo da identidade de um sujeito, fui procurando reconhecer as diferenças e as semelhanças de suas histórias, como se configuravam as suas famílias e de onde vinham; como fora o seu processo de escolaridade; o que havia mobilizado cada uma e o professor para trabalhar em berçários; como chegaram ao cargo de professora e professor de educação infantil na instituição; há quanto tempo estavam nesse trabalho entre outros aspectos. Numa primeira análise de suas entrevistas, o primeiro dado que chamava a atenção era a predominância de mulheres na profissão. Júlio aparecia fazendo um contraponto entre as sete

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professoras entrevistadas que atuavam em berçários, e no CEI Freireano dividia sua posição com apenas mais um rapaz entre os 56 docentes. Outro aspecto que se evidenciava é que as docentes eram, na sua maioria, paulistanas, entretanto, eram descendentes de imigrantes, na sua maioria nordestinos (com alguns casos de referências a imigrantes de origem europeia), que tinham vindo para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Todavia, todas as docentes e o docente vinham de famílias de trabalhadores pobres ou pertencentes à classe média baixa. Além das expectativas de cada docente a respeito de sua função, o serviço público se mostrou como uma oportunidade de trabalho. O grupo que participou da pesquisa se dividia em dois agrupamentos distintos: um que estava há 21 a 30 anos no trabalho em creches (cinco docentes) e CEIs, já tendo ocupado o cargo com diferentes nomenclaturas, e outro que havia ingressado na carreira há seis meses a seis anos, já como professoras e como professor (três docentes). Nessa primeira análise de seus discursos, evidenciou-se também que a escolha pelos berçários nem sempre se dava de forma espontânea, mas sim seguia critérios normativos da instituição. No entanto, desse grupo, apenas dois docentes (Lila e Júlio) chegaram ao berçário não por escolha, mas sim por falta de opções, e, ao longo da entrevista foram explicando de que maneira foram se ajustando a esse papel. Ao analisar as percepções e experiências das docentes e do docente que participaram da pesquisa sobre o papel de homens e mulheres no atendimento de bebês, por meio de seus depoimentos e apoiada em estudos de gênero, pude constatar que esse trabalho não é feminino apenas pela predominância de mulheres na profissão, mas sim porque culturalmente os cuidados das crianças (ou dos filhos) foi naturalizado como atributo feminino, mesmo quando é exercida por um homem, como no caso do professor Júlio. Revisitando, mais uma vez, a história, encontrei nas ideias de Ariès e Badinter algumas explicações sobre como as mulheres tornaram-se responsáveis pela criação dos filhos e, como, a partir da Revolução Industrial e do surgimento da família nuclear esse papel veio a se demarcar na estrutura das sociedades modernas. Fato este que também viria a influenciar a carreira do magistério, que se tornou reconhecidamente feminina. A partir de vários relatos, ficou perceptível que nos cenários da instituição as tarefas se dividiam tendo como referência papéis sociais masculinos e femininos. Então, mesmo se duas professoras (do sexo feminino) atuavam numa mesma turma de berçário, uma delas era a mais “dura” (entenda-se “fazendo o papel do homem”) e a outra era a mais “mole” (ou assumindo “a posição feminina”). Essa mesma divisão binária de papéis sexuais pôde ser observada nas experiências de Júlio e nos seus esforços de encontrar estratégias para ser professor numa profissão reconhecida como feminina e se manter em seu papel social como homem

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(carregando os bebês mais pesados, colocando limites nas crianças mais velhas ou tornando-se objeto de desejo de algumas mães). O mesmo rigor que dividia papéis sexuais, numa ótica heteronormativa, como definiu Judith Butler (2003b), também colocava em cheque a legitimidade da atuação de Júlio nos berçários, por imputar ao homem uma sexualidade descontrolada, como discutia Sayão (2005), que poderia pôr em risco a segurança das crianças, e por esse motivo ele evitava trocar as meninas. Todavia, mesmo “estragando muitas fraldas”, Júlio aprendeu a trocar os bebês, assim como demonstrou ter tomado várias outras iniciativas no sentido de encontrar o seu jeito próprio de trabalhar nos berçários. A sua atitude colocava em cheque, na instituição e em seu meio social, o fato de que tais tarefas não eram da natureza da mulher, mas sim culturalmente aprendidas por elas (e também por ele naquela profissão!). Essas questões envolvendo o gênero feminino acompanhariam todas as demais discussões no que se refere aos fazeres, saberes e poderes que permeavam o trabalho desenvolvido com bebês naquele contexto. Desse modo, a próxima tarefa, talvez a mais árdua e mais intensa, foi, com base nas narrativas das professoras e do professor, procurar fazer uma imersão no cotidiano dos berçários daquele CEI, buscando conhecer mais de perto as especificidades daquela profissão. Em outras palavras, inspirada na metáfora da aeronáutica utilizada por Juliá (2001), tentei abrir a caixa preta do CEI Freireano e verificar de que modo docentes desenvolviam seu trabalho com bebês: as práticas que realizavam nas diferentes fases da instituição, os conhecimentos em que apoiavam o seu trabalho, a organização das rotinas, a forma como se estabeleciam as relações entre professoras, bebês, mães, famílias, SME etc. Em seus discursos a respeito do passado da instituição, as memórias das creches expressavam uma imagem sombria em que bebês ficavam presos em quadrados, em que as relações de poder eram extremamente verticalizadas e as pajens ou ADIs, além de suas tarefas com as crianças, realizavam todo tipo de trabalho, como limpar as salas ou preparar as refeições. Os discursos criavam uma imagem nebulosa, embora uma ou outra docente esboçasse certo saudosismo ao referir-se às amizades ou atividades prazerosas que havia realizado naquela época. Em outras narrativas, as experiências de sucesso apareciam como uma espécie de resistência às formas autoritárias que regiam as relações naquele contexto. Cada vez mais se evidenciava o julgamento negativo acerca do passado das creches como um discurso predominante na instituição, como um dado a ser considerado na constituição das identidades docentes. Ao serem indagadas sobre como haviam aprendido a cuidar de bebês, a grande maioria das docentes mencionou as suas experiências pessoais com os seus próprios filhos e que havia

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aprendido tais cuidados com suas mães e assim de geração em geração. Já Júlio, em virtude de ser homem e não ter sido preparado para esse papel social, teve que aprender a trocar fraldas por meio da observação das professoras mais experientes. Ficou notório que, ao ingressar no cargo, e especificamente no trabalho em berçários, a instituição contava que as profissionais já possuíssem previamente tais saberes, já que o cuidado das crianças era atribuído naturalmente às mulheres, havendo uma queixa geral de que as questões específicas envolvendo o trabalho desenvolvido com os bebês não eram abordadas nos cursos de magistério ou pedagogia e também não eram priorizadas nos processos de formação continuada promovidos pela SME. Evidenciou-se que embora a experiência representasse uma fonte de saberes relevantes aos cuidados dos bebês, esses conhecimentos práticos relacionados ao cuidar não eram valorizados em contextos escolares, como apontara Carvalho (1999), onde a ênfase era dada aos aspectos cognitivos e isso também, de certo modo, regulava os discursos das docentes e do docente a respeito de suas próprias práticas. Ao se referirem às suas experiências nos berçários, mesmo considerando as características específicas de uma unidade infantil de grande porte como o CEI Freireano e os interesses e as singularidades da atuação profissional de cada docente, percebi alguns aspectos recorrentes em seus relatos que foram dando pistas sobre como eram planejadas as ações, sobre quais atividades eram priorizadas e os princípios que embasavam as práticas docentes que desenvolviam com os bebês, naquele contexto específico. Assim, no CEI Freireano, em virtude da presença de duas ou três turmas de crianças em cada sala de aula, além do planejamento geral da unidade, as atividades específicas de cada agrupamento de bebês eram planejadas em duplas ou trios de docentes, às vezes em concordância, às vezes com divergências que expressavam as relações de poder entre as opiniões das mais experientes em relação às mais novas, ou outras diferenças. Todavia, de um modo geral, as narrativas apontavam para a existência de uma regularidade nas ações desenvolvidas, embora o caráter da imprevisibilidade fosse frequente nos berçários, já que, embora tentassem seguir o planejamento, havia um consenso entre as professoras e o professor entrevistados de que era importante respeitar o ritmo e as manifestações das crianças, em situações em que, por exemplo, os bebês quisessem dormir em vez de participar de outra atividade prevista para aquele horário. Foi unânime também a preocupação com os riscos envolvendo acidentes e problemas de saúde dos bebês, fazendo com que as docentes e o docente estivessem sempre em estado de alerta. Embora mencionassem a diversidade de atividades e linguagens como um ideal a ser atingido no trabalho em berçários, também foi unânime a referência à importância da afetividade como um aspecto central desse trabalho.

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Em meio às muitas falas referentes às práticas de cuidados no decorrer de todo o processo de entrevistas, a referência às tarefas relacionadas aos excrementos dos bebês, ou ao xixi e ao cocô, emergiu em seus discursos como um emblema que demarcava a dicotomia entre trabalho intelectual e trabalho manual, e que diferenciava docentes que atuavam com bebês daqueles que atuavam com crianças maiores no próprio âmbito do CEI, ou entre outras unidades de educação infantil ou ainda em comparação com outros níveis de ensino. Nessas circunstâncias, o enunciado em torno da indissociabilidade entre o educar e o cuidar, por mais que atrelasse o cuidado às práticas docentes, ainda que implicitamente, o colocava numa situação de tarefa menos nobre. Desse modo, o julgamento depreciativo que se fazia do passado da instituição criava uma situação contraditória, pois, como tudo aquilo que se fazia antigamente era considerado negativo, como fazer parte desse modelo atual focado no educar e ainda continuar lidando com o xixi e o cocô? Em outras palavras, como substituir nas representações acerca da docência a lousa pela fralda? Diante da proposta de expressar a imagem de um docente ideal, as professoras e o professor se referiram a princípios gerais, como a importância da afetividade (embora tenham sido mencionados alguns questionamentos acerca da crença que amar é algo imprescindível na docência); valores éticos e morais que deviam fazer da docente um modelo a seguir; o caráter polivalente; e ainda expectativas em torno do cuidar e do educar. Contudo, com base no pensamento de Dubar (2005), pude observar que havia uma identidade atribuída à sua atuação com bebês e outra que as docentes e o docente de fato queriam ser. Nesse processo, evidenciaram-se as diferentes estratégias identitárias a que as professoras e o professor recorriam para sentirem-se próximos às suas representações em torno da carreira do magistério e também como meio de valorizar a sua profissão. Do que pude depreender da análise de suas narrativas, as docentes e o docente justificavam sua permanência no cargo e o valor da sua profissão devido à paixão pelo trabalho com bebês ou ainda pela retribuição afetiva que as crianças pequenas manifestavam, dando sentido aos seus esforços, que nem sempre eram socialmente reconhecidos. As professoras que estavam há mais tempo no trabalho em berçários manifestaram a sua satisfação em ajudar as mais novas com a experiência que possuíam sobre os cuidados das crianças. Outras afirmaram sentirem-se motivadas pela importância social de seu trabalho, referindo-se ao papel da professora diante de situações de pobreza e de carência dos bebês e de suas famílias, ou se identificavam com práticas inovadoras no próprio campo da educação infantil. Outras ainda assumiam a proximidade de suas funções relacionadas ao cuidado às de um profissional da saúde, especialmente as das enfermeiras. Porém, um fator mencionado unanimemente, por

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diversas vezes, diz respeito ao prazer de acompanhar a evolução do bebê, cuja rapidez do desenvolvimento é algo visível nessa idade. Havia ainda quem cumprisse o ritual de acompanhar os bebês, ano após ano, nas sucessivas turmas até a sua saída do CEI. Mas o fato de pertencerem ao serviço público municipal, mencionado direta ou indiretamente, também justificava a permanência no cargo, por aspectos relacionados à segurança, ao status e às melhorias salariais que ocorreram após sua passagem para a carreira do magistério no âmbito da SME. Todas essas estratégias se mesclavam, se alternavam, formando diferentes arranjos identitários. Todavia, de um modo geral, a análise negativa do passado da instituição também servia como uma forma de valorizar a sua condição presente como docentes, ainda que tivessem tarefas diferenciadas das demais colegas da rede de ensino, no que se referem aos cuidados da criança. Analisando as transformações ocorridas na denominação da função de profissionais que antigamente trabalhavam em creches e hoje atuam como docentes em CEIs (pajem – ADI – PDI – PEI), pude identificar nas legislações que instituíam esses cargos na PMSP uma gradação que se iniciava com a pajem, numa função identificada com o trabalho manual ou com outras profissões socialmente desvalorizadas, como babás ou empregadas domésticas, sofria algumas transições até chegar ao patamar de professora de educação infantil, uma profissão pertencente à carreira do magistério, associada ao trabalho intelectual. Dessa maneira, a instituição foi criando novos sentidos para essa atividade, assim como foi também fabricando, ela própria, uma nova identidade profissional para tais docentes, conforme discute Lawn (2000). Entretanto, embora os discursos que permeavam a instituição negassem o passado sombrio das creches, concretamente as professoras continuavam realizando algumas das mesmas tarefas que as pajens realizavam antigamente, algo em tese superado. No entanto, por meio de seus relatos, foi possível perceber que tais docentes, em seu cotidiano, recorriam a diferentes saberes, crenças, procedimentos, costumes, conhecimentos, ou culturas, para dar conta de seu trabalho com os bebês. Nesse empreendimento, eram evocadas: suas memórias da infância, suas experiências com os próprios filhos, as expectativas de todos os sujeitos envolvidos nessa trama (bebês, mães, avós, pais, direção, SME e PMSP), os conhecimentos científicos que traziam de suas formações na área pedagógica ou que adquiriam informalmente na “consulta ao pediatra”, ou em “guias pra mães”, seus anseios como profissionais da carreira do magistério, entre tantos outros aspectos. Diante desse cenário, as ideias de Canclini (2008) contribuíram para que eu verificasse que, ali, as suas identidades docentes se constituíam em meio a um processo de hibridação de culturas. Todavia, nos discursos dos sujeitos e da própria instituição, suas ações eram ajustadas ao enunciado da

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indissociabilidade entre o cuidar e o educar, que, embora anunciasse um esforço de integração dessas duas dimensões no atendimento dos bebês, assumia também um caráter binário, ao associar o cuidar às tarefas exercidas no “passado sombrio” das creches e o educar ao “novo patamar” de suas carreiras como docentes. Desse modo, ao identificar o sentido de sua ação como docentes em situações cotidianas, como auxiliar um bebê a deixar as fraldas ou a se alimentar, para reafirmarem o valor de sua profissão como professoras e professor, em seus discursos, precisavam ajustar as suas práticas a alguma forma que pudesse ser reconhecida em contextos escolares, como nas afirmativas de Júlio: “eu tô ensinando, eu tô ensinando!” Essa trama binária a respeito do caráter assistencial e educacional – ou intelectual e manual –, esteve presente a todo o momento no decorrer das entrevistas, demarcando uma formação identitária que destoava das demais idealizadas e que ainda era perpassada pelo enunciado cuidar e educar, muito freqüente nas narrativas das docentes e do docente, nas legislações, nos documentos normativos, como se fosse uma tentativa institucional de convencimento dos sujeitos acerca da necessidade de unificar a cisão que desde a época colonial demarcava a nossa sociedade entre aqueles que trabalham com o corpo e aqueles que trabalham com a mente. O protesto de Sônia Kramer (2005) ecoou em minhas reflexões: “Só uma sociedade que teve escravos poderia imaginar que as tarefas ligadas ao corpo e às atividades básicas para a preservação da vida seriam feitas por pessoas diferentes daquelas que lidam com a cognição!” (p. 64). Contudo, essa mesma sociedade que demarcara essa hierarquia das funções relacionadas ao corpo e à cognição também engendrara o surgimento de uma profissão que transitava entre cuidados e ações pedagógicas. Além desse lastro cultural de desigualdades que a escravidão nos deixara como herança, e, particularmente, no que diz respeito ao atendimento à infância, também me pus a cismar sobre outro aspecto que também se evidenciara durante a pesquisa, no que se refere ao caráter feminino que lhe era conferido: tendo em vista as poucas referências ao trabalho específico com bebês nos próprios cursos de pedagogia, ou o pouco investimento por parte da própria instituição em formações que abrangessem com maior propriedade esse campo da docência – como unanimemente foi mencionado nas entrevistas –, toda e qualquer professora, ao ser contratada para esse trabalho, por sua condição feminina, deveria saber cuidar de bebês e gostar dessa atividade? Não seria legítimo que tais tarefas fossem reconhecidas pela instituição, e pela sociedade de um modo geral, e passassem a ser explicitadas no processo de escolha e formação profissional, seja para homens ou mulheres, como um campo do magistério que, como outro qualquer, requer preparação, aprofundamento e, sobretudo, identificação com tais atividades?

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Assim, ao concluir essa incursão na experiência vivenciada pelas sete professoras e pelo professor nos berçários do CEI Freireano, recorrendo às ideias de Foucault (2004), percebi que o que estava em jogo naquele contexto específico não dizia respeito somente às muitas siglas com as quais a sua profissão fora designada, tampouco às possíveis interpretações que surgiam a partir dos enunciados em torno do cuidar e do educar ou dos discursos acerca do passado nebuloso das creches. O que se evidenciou por meio desta pesquisa realizada naquele CEI é que tais práticas discursivas incidiam diretamente na própria constituição de suas identidades como docentes e nas relações de poder que se estabeleciam entre os sujeitos no interior daquela instituição, como vimos ao longo deste trabalho. Ao final das entrevistas, ouvi vários depoimentos que expressavam a satisfação das pessoas que participaram deste estudo, ao revisitarem as suas próprias trajetórias e experiências como docentes no trabalho com os bebês no CEI Freireano. Desse modo, no caso específico do universo pesquisado, a aproximação entre o campo dos estudos culturais e o da educação infantil possibilitou a percepção desses entre-lugares em que suas identidades docentes se constituíam. E, a mim como pesquisadora, deixou a certeza de que ainda existem muitos outros caminhos a serem percorridos na investigação sobre esse importante campo de atuação profissional, em que docentes, mesmo transitando nas incertezas das “fronteiras entre a fralda e a lousa”, buscam, cotidianamente, sentidos para o trabalho com o bebê humano.

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APÊNDICES APÊNDICE A: ROTEIRO DAS ENTREVISTAS 1. História de vida: Idade, origem, etnia, sexo, histórico familiar e social, outros aspectos que julgar relevantes. 2. Trajetória profissional: Escolha da profissão, formação, percurso profissional, ingresso no cargo (quando e como ingressou, como foi o processo seletivo e os pré-requisitos para o ingresso), o processo de mudanças na carreira até tornar-se professora de educação infantil, a opção em atuar em berçários. 3. Identidade: Qual a imagem ideal de uma professora na concepção da docente? Expectativas da docente, da instituição e das famílias quando iniciou o trabalho com crianças pequenas em um centro de educação infantil (ou creche), fazendo um paralelo com o momento presente. Como a docente se vê sendo uma professora que atua com bebês. Quais as percepções da docente com relação à opinião dos outros sobre sua prática (famílias, instituição, colegas da unidade escolar, grupos sociais a que pertence etc.)? O que concorda, o que não concorda, o que gosta, o que não gosta? 4. Gênero: Na opinião da docente, qual é o papel da mulher e do homem frente à educação de crianças pequenas? O fato de ser mulher (ou homem) interfere no trabalho desenvolvido com bebês no centro de educação infantil? Como? O que de sua experiência feminina ou masculina a docente traz para a sua prática com bebês? Qual a visão de outras pessoas pelo fato de você ser uma profissional do sexo feminino (ou masculino)?

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5. Currículo: Houve mudanças nas práticas desenvolvidas com bebês do início da carreira da docente até o presente (se ingressou recentemente, conhece esse histórico?)? Relato das práticas desenvolvidas no cotidiano com os bebês. Como são planejadas as ações desenvolvidas nos berçários pela docente? Origem dos conhecimentos e habilidades que a docente utiliza no trabalho com bebês (pessoais, médicos, pedagógicos, culturais, outros). O que a instituição (Secretaria Municipal de Educação) propõe para a prática docente nos berçários e como o trabalho com bebês se insere na discussão do Projeto Pedagógico do CEI em que a docente atua? Qual a relação entre o que é proposto nas discussões pedagógicas da instituição sobre educação infantil e a prática cotidiana com os bebês? Quais as necessidades e interesses manifestados pelos bebês? Como se dá a relação com as mães e familiares nesse cotidiano e como isso interfere na prática com os bebês? Na concepção da docente, o que deve fazer parte de um currículo para bebês? 6. Ser professora de bebês: No trabalho desenvolvido com bebês neste CEI, o que traz satisfação, o que traz frustrações? O que gosta, o que não gosta? O que acredita ser seu papel? O que julga não ser sua atribuição? Como professora de bebês: O que falta? O que está consolidado? Como gostaria que fosse? O que mais gostaria de falar sobre essa questão?

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APÊNDICE B:

AUTORIZAÇÃO PARA A REALIZAÇÃO DA PESQUISA NA INSTITUIÇÃO

Eu,________________________________________________________________________, representando a Diretoria Regional de Educação __________________ DRE/___, autorizo a aluna Rosmari Pereira de Oliveira, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo, Nº USP 1862626, a desenvolver, sob a orientação da Profª Drª Luciana Maria Viviani, o projeto de pesquisa intitulado de “Entre a fralda e a lousa: um estudo sobre identidades docentes em berçários” no Centro de Educação

Infantil – CEI

______________________________, unidade vinculada a essa DRE, para o qual serão realizadas entrevistas com professores de educação infantil, que por livre adesão se disponham a participar da investigação, sendo garantido o sigilo absoluto com relação à identificação da unidade e dos docentes envolvidos. São Paulo, _____/_______/____. ___________________________________

Cientes: _________________________________ Assinatura da pesquisadora _________________________________ Assinatura da Orientadora

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APÊNDICE C:

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Eu, Rosmari Pereira de Oliveira, estudante de pós-graduação do Programa de Mestrado Acadêmico em Estudos Culturais da EACH-USP, estou realizando uma pesquisa intitulada de “Entre a fralda e a lousa: um estudo sobre identidades docentes em berçários”, sob a orientação da Profª Drª Luciana Maria Viviani. Essa pesquisa tem como principal objetivo analisar o processo de construção das identidades docentes de profissionais que atuam com crianças de zero a dois anos de idade em um centro de educação infantil da rede municipal de ensino na cidade de São Paulo. Para tanto, gostaria que você participasse desta pesquisa, na qual me comprometo a seguir a Resolução CNS 96/1996, relacionada à Pesquisa com Seres Humanos, respeitando o seu direito de:

1. Ter liberdade de participar ou deixar de participar do estudo, sem que isso lhe traga algum prejuízo ou risco;

2. Manter o seu nome em sigilo absoluto, sendo que o que disser não lhe resultará em qualquer dano à sua integralidade;

3. Interromper a participação na pesquisa caso se sinta incomodado (a) com a mesma; 4. Responder as questões levantadas pela pesquisadora caso seja solicitado (a) para uma entrevista, onde será marcado um local na instituição, horário e data em que possa se sentir mais confortável,

5. Garantia de receber uma resposta a alguma dúvida durante ou após a entrevista. A sua participação nesta pesquisa poderá contribuir para o reconhecimento das especificidades e desafios de sua prática docente no trabalho específico com bebês, bem como para aproximar a investigação científica de aspectos relevantes no que se refere a como esse novo campo de atuação profissional vem se constituindo no âmbito da instituição em que se desenvolve a pesquisa. Este Termo de Consentimento será emitido em duas vias, sendo que uma via ficará em poder da pesquisadora e a outra em poder do participante. Deixo abaixo telefone e e-mail para que possa entrar em contato, caso deseje obter mais esclarecimentos ou informações sobre o estudo e sobre sua participação: Tel.: (011) 9 9903-0168

E-mail: [email protected] Grata pela atenção.

______________________________ Assinatura da pesquisadora

____________________________ Assinatura da orientadora

Declaro que, após convenientemente esclarecida(o) pela pesquisadora e ter entendido o que me foi explicado, consinto em participar do presente Projeto de Pesquisa. São Paulo, ____/_____ /_____. __________________________________________________ Assinatura do sujeito de pesquisa (ou responsável legal)