REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS

REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação e pesquisa em planejamento urbano e regional E REGIONAIS I...
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REVISTA BRASILEIRA DE

ESTUDOS URBANOS publicação da associação nacional de pós-graduação

e pesquisa em planejamento urbano e regional

E REGIONAIS ISSN 1517-4115

REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS URBANOS E REGIONAIS Publicação semestral da ANPUR Volume 11, número 2, novembro de 2009 EDITORES RESPONSÁVEIS Geraldo Magela Costa (UFMG), Sarah Feldman (EESC-USP)

EDITORA ASSISTENTE Jupira Gomes de Mendonça (UFMG)

COMISSÃO EDITORIAL Ana Fernandes (UFBA), Carlos Antônio Brandão (Unicamp), Lilian Fessler Vaz (UFRJ), Luciana Corrêa do Lago (UFRJ)

CONSELHO EDITORIAL Ana Clara Torres Ribeiro (UFRJ), Ananya Roy (University of California, Berkeley), Ângela Lúcia de Araújo Ferreira (UFRN), Brasilmar Ferreira Nunes (UnB), Carlos de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Clara Irazabal (Columbia University, Nova York), Emilio Pradilla Cobos (Universidad Autonoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, México), Ermínia Maricato (USP), Heloisa Soares de Moura Costa (UFMG), Henri Acselrad (UFRJ), João Rovati (UFRS), Lia Osorio Machado (UFRJ), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBA), Margareth Pereira (UFRJ), Maria Cristina da Silva Leme (USP), Nadia Somekh (Mackenzie), Norma Lacerda Gonçalves (UFPE), Paola Berenstein Jacques (UFBA), Paul Claval (Université Paris-IV, Sorbonne), Ricardo Cesar Pereira Lira (UERJ), Roberto Monte-Mór (UFMG), Rosa Acevedo (UFPA), Sandra Lencioni (USP), Victor Ramiro Fernández (Universidad Nacional del Litoral, Argentina), Wrana Maria Panizzi (UFRS)

COLABORADORES Almir Reis (UFSC), Ana Fani Alessandri Carlos (USP), Angela Maria Gordilho Souza (UFBA), Carlos Antonio Brandão (Unicamp), Carlos Roberto M. de Andrade (EESC-USP), Cibele Saliba Rizek (EESC-USP), Claudio Antonio Gonçalves Egler (UFRJ), Denise de Souza Elias (UECE), Flavio Villaça (FAU-USP), Jorge Dantas (FAU-USP), Jupira Gomes de Mendonça (UFMG), Lúcia Cony Faria Cidade (UnB), Luciana Correa do Lago (UFRJ), Luciana Soares Lopez (FEA-USP), Nadia Somekh (UPM), Maria Ruth Amaral de Sampaio (FAU-USP), Olga Lucia Castreghini de Freitas Firkowski (UFPR), Raquel Rolnik (FAU-USP), Ricardo de Souza Moretti (UFABC), Rogerio Haesbaert da Costa (UFF), Rosélia Perissé da Silva Piquet (UCAM), Silvio Mendes Zancheti (UFPE), Vera Rezende (UFF)

SECRETARIA Raquel Cerqueira PROJETO GRÁFICO João Baptista da Costa Aguiar CAPA, COORDENAÇÃO E EDITORAÇÃO Ana Basaglia REVISÃO Fernanda Spinelli IMPRESSÃO CTP Fabracor Indexada na Library of Congress (EUA) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais – v.11, n.2, 2009. – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional; editores responsáveis Geraldo Magela Costa e Sarah Feldman: A Associação, 2009. Semestral. ISSN 1517-4115 O nº 1 foi publicado em maio de 1999. 1. Estudos Urbanos e Regionais. I. ANPUR (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional). II. Costa, Geraldo Magela; Feldman, Sarah 711.4(05) CDU (2.Ed.) 711.405 CDD (21.Ed.)

UFBA BC-2001-098

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ARTIGOS 9 M ONTANHAS EM UM M UNDO P LANO – P ORQUE A P ROXIMIDADE A INDA I MPORTA PARA A L OCALIZAÇÃO DA ATIVIDADE E CONÔMICA – Andrés Rodríguez-Pose e Riccardo Crescenzi 31 D EMOCRACIA NO F IO DA N AVALHA – L IMITES P OSSIBILIDADES PARA A I MPLEMENTAÇÃO DE UMA A GENDA DE R EFORMA U RBANA NO B RASIL – Raquel Rolnik

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51 A O UTORGA O NEROSA DO D IREITO DE C ONSTRUIR E O S OLO C RIADO – U MA N E C E S S Á R I A A VA L I A Ç Ã O D A S M AT R I Z E S C ONCEITUAIS – Vera F. Rezende, Fernanda Furtado, M. Teresa C. Oliveira, Pedro Jorgensen Jr.

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119 I DENTIDADES R ELACIONADAS AO E SPAÇO G EOGRÁFICO – A N AÇÃO B RASILEIRA E A C IDADE DE N OVO H AMBURGO /RS (1927-1945) – Alessander Kerber e Cleber Cristiano Prodanov 139 E I X O M O N U M E N TA L D E B R A S Í L I A – A O B S E S S Ã O D A I N T E G R A Ç Ã O – Brasilmar Ferreira Nunes 157 A F ORMA U RBANA COMO P ROBLEMA DE D ESEMPENHO – O I MPACTO DE P ROPRIEDADES E SPACIAIS SOBRE O C OMPORTAMENTO U RBANO – Vinicius M. Netto e Romulo Krafta

RESENHAS

73 A R EGULARIZAÇÃO F UNDIÁRIA U RBANA NA A MAZÔNIA L EGAL – Denise de Campos Gouvêa, Paulo Coelho Ávila, Sandra Bernardes Ribeiro

183 Philip Gunn – Debates e proposições em arquitetura, urbanismo e território na era industrial, de Telma de Barros Correia (Org.) – por Celso Monteiro Lamparelli

95 A ATUAÇÃO DO M ONTEPIO NA P RODUÇÃO E STATAL DE H ABITAÇÃO EM J OÃO P ESSOA DE 1932 A 1963 – Angela Araujo Nunes

185 Viver em risco – sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil, de Lúcio Kowarick – por Cibele Saliba Rizek

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ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM PLANEJAMENTO URBANO E REGIONAL



ANPUR

GESTÃO 2009-2011 PRESIDENTE

Leila Christina Dias (PPGG/UFSC) SECRETÁRIO EXECUTIVO

Elson Manoel Pereira (PPGG/UFSC) SECRETÁRIA ADJUNTA

Maria Inês Sugai (PGAU-Cidade/UFSC) DIRETORES

Ana Clara Torres Ribeiro (IPPUR/UFRJ) Lucia Cony Faria Cidade (POSGEA/UnB) Maria Lucia Refinetti Martins (PPGAU-FAU/USP) Silvio José de Lima Figueiredo (NAEA/UFPA) CONSELHO FISCAL (TITULARES) Eloisa Petti Pinheiro (PPGAU/UFBA) Ester Limonad (POSGEO/UFF) Rodrigo Ferreira Simões (CEDEPLAR/UFMG) CONSELHO FISCAL (SUPLENTES) Celia Ferraz de Souza (PROPUR/UFRGS) Elis de Araújo Miranda (Mestrado em Planejamento Regional e Gestão de Cidades/UCAM-Campos) Iná Elias de Castro (PPGG/UFRJ)

EDITORIAL Nesta edição da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais são reunidos textos de pesquisadores de múltiplos campos disciplinares. É a partir da geografia econômica, do urbanismo, da sociologia e da história que diferentes escalas territoriais e diferentes aspectos da questão urbana e regional são analisados e problematizados, expondo campos teóricos, métodos e fontes de pesquisa específicos. Em “Montanhas em um mundo plano”, Andrés Rodríguez-Pose e Riccardo Crescenzi desafiam e dialogam com pesquisadores e autores que, por quase duas décadas, têm interpretado o processo de globalização como a possibilidade de um “mundo plano”, como um campo competitivo de condições homogêneas de poder e de condições de vida. Os autores mostram que a geografia da economia mundial é muito mais complexa e repleta de montanhas. As montanhas em um suposto mundo plano estão relacionadas ao papel desempenhado não apenas pela proximidade física ou geográfica, mas também pela proximidade cognitiva, organizacional, social e institucional na localização da atividade econômica. Nesta nova geografia, em que apenas as grandes aglomerações urbanas respondem a estas condições, a maioria da população mundial, ao contrário de ter maior poder, permanece mal preparada para estes desafios. A perspectiva urbanística está presente em três textos que avaliam, problematizam e sinalizam para a necessidade de avanços nos instrumentos e políticas públicas em curso, no Brasil, a partir das mudanças nas condições institucionais, com a aprovação do Estatuto da Cidade e criação do Ministério das Cidades. Em “Democracia no fio da navalha”, Raquel Rolnik avalia os limites e possibilidades de implementação da agenda da Reforma Urbana através da trajetória do Conselho Nacional das Cidades e da campanha pelos Planos Diretores Participativos. Focando a organização do Estado na área do desenvolvimento urbano e sua relação com o sistema político e com as características da democracia brasileira, aponta a necessidade de fortalecimento de espaços de exercício da democracia direta e de controle social, e de um projeto de reforma do atual modelo federativo de gestão urbana. Vera Rezende, Fernanda Furtado, Maria T. C. de Oliveira e Pedro Jorgensen Jr. recuperam, em “A outorga onerosa do direito de construir e o Solo Criado: uma necessária avaliação das matrizes conceituais”, o longo caminho de formulação do instrumento definido no Estatuto da Cidade para integrar a política urbana municipal das cidades brasileiras. A rica sistematização do material bibliográfico e documental que abordam a outorga e o conceito de Solo Criado que lhe dá origem colabora para uma melhor compreensão de suas potencialidades e das questões que permeiam os atuais debates sobre sua implementação. Em “A regularização fundiária urbana na Amazônia Legal”, Denise de C. Gouvêa, Paulo C. Ávila e Sandra B. Ribeiro analisam as especificidades do quadro de irregularidades da Região Amazônica a partir da complexa estrutura fundiária. Mostram como o persistente descontrole sobre os registros imobiliários consolida uma desordem fundiária que, associada à prática de fraudes, potencializa o conflito pela posse e domínio da terra. Baseados na análise do arcabouço legal que regulamenta a destinação das terras da União para os municípios, aprovado em 2009, apontam o R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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descompasso entre avanço das normas e capacitação institucional dos responsáveis por sua aplicação. Dois textos que se apoiam em fontes documentais, iluminam períodos específicos da história de duas cidades brasileiras. Em “A atuação do Montepio na produção estatal de habitação em João Pessoa de 1932 a 1963”, Angela Nunes recupera a atuação da Carteira Imobiliária do Montepio do Estado da Paraíba na produção de moradias para o funcionalismo público na capital. A autora mostra como a Paraíba se antecipa à ação federal do Banco Nacional de Habitação, os padrões de moradias construídas e as repercussões destes empreendimentos no processo de desenvolvimento da cidade e na atuação da administração municipal. Em “Identidades relacionadas ao espaço geográfico: a nação brasileira e a cidade de Novo Hamburgo/RS (1927-1945)”, Alessander Kerber e Cleber C. Prodanov analisam as lutas de representações em torno da construção de identidades de Novo Hamburgo, desde sua emancipação até o final da segunda guerra mundial e do Estado Novo. Os conflitos entre as representações da cidade através do arcabouço simbólico vinculados à imigração alemã e as representações de nação brasileira, através de signos da mestiçagem, são discutidos pelos autores. Numa perspectiva sociológica, Brasilmar Nunes analisa em “Eixo monumental de Brasília: a obsessão da integração” as implicações da construção de um museu e de uma biblioteca pública no Eixo Monumental de Brasília, na vida cotidiana e no uso de um setor do Plano Piloto. Através de um estudo etnográfico, mostra como, na medida em que se amplia e se diversifica o seu uso, o espaço torna-se acessível a um espectro mais amplo de grupos sociais. Também voltados para as dinâmicas intraurbanas, em “A forma urbana como problema de desempenho: o impacto de propriedades espaciais sobre o comportamento urbano”, Vinicius M. Netto e Romulo Krafta lançam os fundamentos teóricos e metodológicos para um novo sistema de indicadores que associa metaindicadores de desempenho, como equidade, eficiência, qualidade espacial e sustentabilidade a dimensões urbanas, como morfologia, dinâmica socioeconômica, limiares urbanos e relações cidade–ambiente. Duas resenhas de publicações de grande importância para a área de estudos urbanos e regionais completam esta edição. A primeira refere-se à coletânea de textos Philip Gunn –debates e proposições em arquitetura, urbanismo e território na era industrial, organizada por Telma Correia de Barros. Elaborada pelo professor Celso Lamparelli, a resenha situa de forma primorosa e sensível as preocupações, as linhas de pesquisa e o grande legado do colega e ex-diretor da Anpur que tão prematuramente nos deixou. A segunda resenha é elaborada pela professora Cibele Rizek, sobre o premiado livro de Lucio Kowarick, Viver em risco. Sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil, que, através de novas proposições teórico-metodológicas no estudo das condições de vida em cortiços, favelas e periferias, oferece um quadro muito preciso do que significa viver em risco na São Paulo de nossos dias. Por fim, cabe registrar aqui que esta edição da Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais é fruto do trabalho conjunto de Geraldo Magela, que finaliza sua gestão como editor responsável, e de Sarah Feldman, que assume esta função pelos próximos dois anos. GERALDO MAGELA COSTA E SARAH FELDMAN Editores responsáveis 6

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A RTIGOS

MONTANHAS EM UM MUNDO PLANO PORQUE A PROXIMIDADE AINDA IMPORTA PARA A LOCALIZAÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA* ANDRÉS RODRÍGUEZ-POSE RICCARDO CRESCENZI R E S U M O Thomas Friedman (2005) argumenta que a expansão do comércio, a internacionalização das firmas, o crescimento acelerado do processo de outsourcing e a possibilidade de conexão em redes a custos cada vez mais baixos estão criando um “mundo plano”: um campo competitivo de condições homogêneas de concorrência no qual os indivíduos têm maior poder e melhores condições de vida. Este artigo desafia essa visão do mundo, argumentando que embora a globalização traga mudanças, oportunidades e desafios, nem todos os territórios têm a mesma capacidade de maximizar os benefícios e as oportunidades e de minimizar as ameaças circundantes. Numerosas forças estão se fundindo no sentido de provocar a emergência de “montanhas” urbanas, onde a riqueza, a atividade econômica e a capacidade de inovação se aglomeram. Estas forças “tectônicas” incluem fatores como a inovação, os transbordamentos, os encadeamentos para trás e para frente nas cadeias produtivas, a dinâmica de especialização versus diversificação, o capital social e comunitário e, por último, mas não menos importante, o “buzz” da cidade. As interações destas forças na proximidade geográfica das grandes áreas urbanas dão forma a uma geografia muito mais complexa da economia mundial e permitem a ascensão de novos players econômicos. Mas esta geografia, ao contrário de ser plana, é repleta de montanhas, em que as grandes aglomerações urbanas representam os picos mais altos. A maioria da população mundial, ao contrário de ter maior poder, permanece mal preparada para encarar estes desafios. PA

L AV R A S - C H AV E vantagem competitiva.

Progresso tecnológico; nova geografia econômica;

INTRODUÇÃO Às vezes o pensamento das pessoas num campo de golfe é peculiar. Enquanto a maioria aproveitaria a ocasião para tentar, um pouco desajeitadamente, imitar Tiger Woods no famoso buraco 12 no Augusta National Golf Club, para criar vínculos com nossos chefes e parceiros de negócios ou simplesmente para aproveitar uma tarde relaxante de domingo com amigos e familiares, Thomas L. Friedman (2005) passou seu tempo no campo de golfe de Bangalore (ou Bengaluru, como a cidade foi oficialmente renomeada em 2006) para ponderar a respeito das implicações de ter que mirar sua bola na Microsoft ou na IBM (p.3). E ao conseguir levar sua bola diretamente ao green hindustani, ele chegou à conclusão de que o “mundo é plano”, isto é, “que o campo de competição global está sendo aplainado” (Idem, p.8). Infelizmente para ele, a eureca pessoal de Friedman não é particularmente nova. Uma linha de pesquisadores e autores têm argumentado por quase duas décadas que a exR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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* Este artigo foi publicado na Cambridge J Regions Econ Soc (2008) 1 (3): 371388. Tradução de Felipe Nunes Coelho Magalhães (economista e mestre em Geografia pela UFMG); revisão de Rodrigo Simões (UFMG).

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pansão do comércio, a internacionalização das firmas, o crescente processo de outsourcing e a possibilidade de se conectar em redes por custos cada vez mais baixos anunciam o “fim da geografia” (O’Brien, 1992), a “morte da distância” (Cairncross, 1997), a emergência de um “espaço de fluxos” (Castells, 1998) ou de uma “economia sem peso” (Quah, 1999). Como ressalta Ohmae, num “mundo plano” o verdadeiro mapa-múndi não é mais um mapa político, mas um mapa dos fluxos financeiros, industriais e de capital, onde “em grande medida, desapareceram as fronteiras” políticas (Ohmae, 1991, p.28). Entretanto, apesar de não propugnar uma mensagem completamente nova, Friedman merece crédito por dois aspectos. Em primeiro lugar, ele é capaz de transformar uma ideia já bem estabelecida na coluna vertebral de um livro divertido e bem escrito, contribuindo para popularizar um conceito que, apesar de bastante conhecido em círculos acadêmicos e de formuladores de políticas públicas, tem sido impreciso e em certa medida negligenciado ou manipulado por administradores, sindicalistas, servidores públicos e pelo público em geral. Em segundo lugar, Friedman leva a ideia do “mundo plano” para além de seus predecessores, argumentando que a “Globalização 3.0”, em suas próprias palavras, não somente aplaina o campo de competição e representa o fim da geografia que conhecemos, mas também dá maior poder aos indivíduos (Friedman, 2005, p.11). “As pessoas em todo o mundo começaram a acordar e a se dar conta de que elas tinham um poder inédito para atuarem globalmente como indivíduos, e que precisavam mais do que nunca de pensar em si mesmos como indivíduos competindo contra todos os outros indivíduos em todo o planeta” (Idem). Entretanto, as visões de Friedman acerca do mundo em aplainamento e do empoderamento dos indivíduos pela Globalização 3.0 pode ser o simples resultado de sua decisão de jogar golfe com expatriados e indianos com muitos anos de estudo em campos perfeitamente decorados no planalto que circunda Bangalore. Se ele tivesse jogado críquete com crianças descalças usando caixas de papelão como wickets na Província da Fronteira Noroeste do Paquistão ou, pelas mesmas razões, dominós com operários de meia idade num bar no Piemonte italiano ou boules ou petanque com seus equivalentes franceses em Grenoble, sua visão do impacto da globalização poderia ter sido muito diferente. Nestes locais, a visão do Hindu Kush ou dos Alpes lhe teria feito perceber que, apesar desta onda de globalização representar de fato uma mudança tectônica em escalas provavelmente sem precedentes, ela não necessariamente implica a erosão das montanhas anteriormente existentes, conformando um mundo plano e uniforme. Pelo contrário – como é o caso de qualquer colisão de placas tectônicas –, ela parece sinalizar a emergência de cadeias de montanhas de altura semelhante, senão maiores, do que aquelas que já existiam, embora não necessariamente no mesmo lugar. A globalização traz mudanças, oportunidades e desafios, e nem todos os territórios ao redor do mundo têm a mesma capacidade ou as ferramentas necessárias para fazer do mundo um campo competitivo de condições regulares. Desse modo, argumentaríamos que o mundo plano de Friedman é, na realidade, repleto de montanhas, e que algumas destas montanhas são tão altas quanto o Everest. E se a ele se misturassem as crianças e seus pais em áreas não tão remotas do subcontinente asiático ou aos trabalhadores de fábrica de Novara ou Grenoble, ao invés do presidente da Infosys ou de pós-graduados dos prestigiados Indian Institute of Technology ou do Indian Institute of Management, ou de expatriados estrangeiros e estagiários na Infosys e outras empresas semelhantes, ele teria se dado conta de que a grande maioria da população do mundo, longe de estar capacitada para escalar e conquistar estas montanhas, está mal preparada para enfrentar os desafios que a mudança tectônica conhecida 10

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como “Globalização 3.0” oferece. De fato, argumentaremos que quando Friedman afirma que a “Globalização 3.0” dá maior poder aos indivíduos, ele realmente quer dizer que ela fortalece grandes empresas, independente do fato de serem grandes empresas norteamericanas, europeias, indianas ou chinesas. Neste ensaio, desafiaremos o relato de Friedman (2005) acerca do impacto da globalização ao redor do mundo em relação a estes dois aspectos. Depois de uma breve apresentação dos principais argumentos de Friedman, observaremos as evidências de concentração e aglomeração econômica que tornam o mundo muito mais montanhoso do que Friedman gostaria de acreditar. Em seguida, trataremos das forças que estão dando forma ao surgimento de montanhas no “mundo plano” de Friedman. As principais conclusões são apresentadas ao final do artigo.

O MUNDO PLANO Friedman (2005) elabora uma história envolvente a respeito da globalização e seu impacto. Suas “dez forças que aplainaram o mundo” são assépticas o suficiente para torná-las tentadoras virtualmente para todos. Em primeiro lugar, a globalização potencializa todos os tipos de liberdade: a liberdade de movimento de bens, capital, serviços e indivíduos; a liberdade de adotar “boas práticas” (p.54) – seja lá o que isso signifique – independentemente de onde se está baseado; e a liberdade de a criatividade fluir. Os indivíduos e territórios não somente se tornam mais inovadores e criativos ao se envolverem em maiores intercâmbios, mas eles também alcançam saltos significativos com a adoção destas boas práticas. A globalização traz também maiores interações através da potencialização da conectividade e da criação daquilo que Friedman denomina de “cadeia global de fornecimento de software”, que permite a combinação de plataformas distintas, como o PC e o e-mail, assim como a geração crescente de softwares desenvolvidos por comunidades (p.94). A globalização também envolve o outsourcing, “levar alguma função específica, mas limitada, que sua empresa conduzia internamente (...) e ter exatamente a mesma função executada por outra empresa para você” (p.137), o offshoring, a recriação de uma empresa num lugar diferente (p.137), a criação de cadeias de fornecedores (supplychaining) e o insourcing, algo semelhante à sincronização de cadeias de fornecedores globais (aparentemente o que a UPS faz atualmente). Como um conjunto, o processo permite uma melhor in-formação, ou a “habilidade de se construir e implantar nossas cadeias produtivas pessoais” (p.137). E tudo isso é feito na velocidade da luz através do uso do que Friedman chama de “esteroides”, que permitem que os motores conversem com os computadores, que as pessoas conversem com as pessoas, computadores com computadores, e pessoas com computadores “a maiores distâncias, de forma mais rápida, mais barata, e mais facilmente do que nunca” (p.200). O resultado líquido desta transformação é simplesmente um mundo melhor. Um mundo onde os indivíduos têm maior poder e vivem melhor. Como ressalta Friedman, “uma maior quantidade de pessoas num maior número de lugares agora têm o poder de acessar a plataforma do mundo plano” (p.206), mesmo que isso signifique somente a oportunidade de se questionar alguém proferindo uma conferência ao se acessar informações mais coerentes em tempo real (p.189), ou de pagar a “Southwest Airlines para ser sua contratada” (p.202). Mas o empoderamento é somente a ponta do iceberg. Como consequência da globalização, os consumidores se beneficiam de bens mais baratos e mais efiR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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cientes, de acesso mais barato e de melhor qualidade aos seus amigos e familiares vivendo em outros países, ou da possibilidade de se assimilar inovações “sem precisar se deslocar” (p.217). O mundo plano implica o que Friedman chama de “horizontalização” e uma “mudança de hábitos massiva e de escala mundial” (Idem). De diversas maneiras, a tese de Friedman é reminiscente da literatura da morte da distância (O’Brien, 1992; Ohmae, 1995; Castells, 1996; Cairncross, 1997). Nesta literatura é proclamado que o progresso tecnológico e a inovação estão rapidamente reduzindo a importância da distância na localização das atividades econômicas. A grande realização da globalização foi a diminuição das barreiras que impediam a mobilidade de capital, bens, trabalho e, cada vez mais, dos serviços. Considerando que a localização será significativa “enquanto as barreiras físicas existirem, enquanto as viagens levarem tempo e enquanto outras diferenças culturais e sociais persistirem” (O’Brien, 1992, p.2), a rápida erosão dos obstáculos que impediam a troca de informações, conhecimento, bens e outros fatores de produção traduziu-se numa convergência ainda mais veloz na direção de um espaço digital “sem espaço” e de modelos culturais globais mais homogêneos (Castells, 1996; Cairncross 1997). Como no pensamento de Friedman, os principais motores por trás da noção da “morte da distância” são a “revolução das comunicações”, o progresso tecnológico e o fato de que o surgimento de telecomunicações e tecnologias de computação avançadas permite uma maior mobilidade de fatores econômicos, assim como uma homogeneização dos hábitos e das atividades e a remoção de gargalos de recursos (Castells, 1996). O progresso tecnológico, desse modo, desvincula a atividade econômica de seu contexto territorial e socioeconômico, permitindo que o crescimento e o desenvolvimento ocorram virtualmente em qualquer lugar, até em áreas onde pobres dotações de fatores impediam que o desenvolvimento criasse raízes. Portanto, graças aos computadores e à tecnologia de comunicações, a atividade econômica pode agora florescer praticamente em qualquer lugar do mundo, gerando “algo que, acima de tudo, beneficiará a humanidade: a difusão global do conhecimento. As informações que anteriormente eram disponíveis para poucos poderão se tornar disponíveis para muitos, de forma instantânea e barata (em termos de custos de distribuição)” (Cairncross, 1997, p.4). O conceito do Estado-nação como barreira e como uma irrelevância crescente neste “mundo dos fluxos”, também está presente em argumentos anteriores baseados na “morte da distância”. Ninguém dá mais ênfase a este ponto do que Kenichi Ohmae (1991; 1995), que defende que os atores econômicos tomaram as oportunidades que lhe foram dadas por esta onda de globalização e se tornaram extremamente móveis, cada vez menos sujeitos a fronteiras nacionais ou legais. Muito frequentemente, o até então todo poderoso Estado-nação westfaliano vai perdendo o poder necessário para contrapor estas tendências. Na medida em que a atividade econômica e a propriedade se tornam cada vez mais internacionais e globais, os agentes econômicos se tornam cada vez mais “divorciados de definições nacionais” (O’Brien, 1992, p.100). Como define Friedman (2005), “quanto mais as forças aplainadoras reduzirem a fricção e as barreiras, mais agudo será o desafio que elas colocarão ao Estado-nação e às culturas, valores, identidades nacionais, tradições democráticas e laços de restrição que historicamente protegeram e amorteceram trabalhadores e comunidades” (p.237-8). Consequentemente, os poderes do Estado estão sendo declaradamente esvaziados pelo surgimento de outros atores, como regiões e organizações internacionais, por um lado, e empresas multinacionais, do outro (Jessop, 1995), limitando a capacidade do Estado de influenciar processos econômicos que ocorrem em seus territórios. 12

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O melhor aspecto do mundo plano proposto por Friedman (2005) é que todos os seus benefícios têm custo muito baixo. É fato que os norte-americanos e os países do mundo em desenvolvimento teriam que se exercitar na academia para entrar em forma e assim enfrentar os desafios trazidos pelo mundo plano. Mas não seria nada difícil. A receita para os norte-americanos não é nada que eles não tenham experimentado antes: mais educação, especialmente nas ciências e engenharias (p.300), e melhor parentalidade através do “amor rigoroso”, para que as crianças norte-americanas sejam tão dedicadas quanto seus equivalentes imigrantes nos EUA e seus correspondentes na China e na Índia. Com estes ingredientes, os EUA serão capazes de superar o hiato de ambições com as economias emergentes, que se encontra na raiz dos atuais problemas estadunidenses em se adaptar à economia globalizada. Para o mundo em desenvolvimento a receita não é mais desalentadora: mais acessibilidade à Internet, mais educação e melhor governança (p.398). Desse modo, levado aos seus limites, o argumento do mundo plano implica que “a localização não mais importa” (O’Brien, 1992, p.73), que a atividade pode florescer virtualmente em qualquer lugar do mundo a baixos custos – na medida em que os avanços na tecnologia e nas telecomunicações teriam permitido uma mobilidade de informação e conhecimento muito maior –, progressivamente erodindo os benefícios tradicionais das economias de escala, escopo e comunicações. Dessa perspectiva, graças aos avanços na conectividade, nos softwares de cadeias de fornecedores globais, assim como nos processos de outsourcing, insourcing, na exteriorização das atividades (offshoring), e no fornecimento em cadeia (supply-chaining), todos os territórios, não importa quão remotos, têm o potencial de se tornar players globais. Corretores da bolsa de Londres podem se mudar para Seychelles e trabalhar de lá enquanto bebem coquetéis deitados em suas redes numa praia idílica, e enquanto economizam milhares que seriam gastos em aluguéis como resultado de não mais precisarem se preocupar em ter um escritório na cidade. Esta mudança provavelmente permitirá que eles sejam mais produtivos, embora possam passar mais tempo deitados, pois os corretores em Seychelles perderão menos tempo com deslocamentos e congestionamentos e serão mais felizes, e a felicidade está associada a maior produtividade (Layard, 2005). A conectividade de baixo custo e em tempo real é o que possibilitará isso. De forma semelhante, cadeias produtivas globais gerariam milhões de empregos industriais e nos serviços por todo o mundo, não importando se os trabalhadores estão localizados em Bangalore, Xangai, Jacarta ou São Paulo. Estes empregos não somente elevariam o padrão de vida daqueles que os ocupam – devido ao fato de que geralmente pagam salários muito mais elevados do que os empregos locais –, mas também gerariam efeitos multiplicadores que melhorariam a qualidade de vida de indivíduos em todo o mundo sem nenhum custo para o mundo desenvolvido. Como Friedman enfatiza em seu caso da Índia versus Indiana, se uma empresa do estado americano de Indiana inicia suas operações na Índia, empregando tanto funcionários indianos como aqueles contratados localmente em Indiana, “o negócio beneficiaria enormemente o ramo norte-americano da consultoria na Índia; beneficiaria alguns trabalhadores de alta tecnologia de Indiana; e faria com que os residentes do estado de Indiana economizassem preciosos dólares gastos com impostos que poderiam ser disponibilizados para a contratação de um número maior de funcionários públicos em outras localidades ou construir novas escolas que diminuiriam permanentemente sua condição de desempregados” (p.241). A globalização, desse modo, não envolve ganhadores e perdedores, a partir de uma perspectiva territorial. Ela cria as condições para uma situação em que todos vencem: tanto o Norte global quanto o Sul global saem ganhando. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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MONTANHAS EM UM MUNDO PLANO

1 Ver Milanovic (2005) para uma discussão útil a respeito da evolução da desigualdade nas últimas décadas.

Entretanto, infelizmente a evidência de que o mundo está sendo aplainado pelas forças erosivas da globalização e que isso está dando poder às pessoas ao redor do mundo está menos próxima de se tornar realidade do que Friedman anuncia. Para cada Bangalore, Hyderabad ou Chandigarh, existem diversas outras cidades de tamanho semelhante na Índia – para não mencionar toda uma faixa de áreas rurais – que permanecem virtualmente intocadas, senão negativamente afetadas por todo o processo de globalização. Bangalores são notadamente exceções em relação à maioria dos estados do Leste indiano, incluindo Assam, Bihar, Chhattisgarh, Jharkhand, Orissa e até mesmo o maior estado da Índia, Uttar Pradesh. De forma semelhante, na China, para cada Xangai, Guandong, Wenzhou ou Costa de Bohai, existem grandes territórios no interior que foram incapazes de diminuir sua dependência de antigas indústrias pesadas comunistas, em declínio e frequentemente decrépitas, de atrair investimento estrangeiro direto ou de melhorar de forma significativa o padrão de vida de seus cidadãos. Bangalores também estão normalmente ausentes da maior parte da África, do mundo árabe – com a possível exceção de Dubai – e da maior parte da América Latina. E para cada engenheiro indiano, chinês, brasileiro, malaio ou árabe jogando golfe em Bangalore, assistindo à Copa do Mundo de rugby em Hong Kong ou comparecendo ao GP de Fórmula 1 em São Paulo, Kuala Lumpur ou Bahrein, existem milhares, senão milhões de indivíduos tendo que jogar críquete em campos de rua improvisados com wickets de papelão na Índia, no Paquistão ou em Bangladesh, ou jogando futebol descalços nas ruas da maioria das cidades africanas e de diversas cidades sul-americanas. Nem todos no mundo, e mais especificamente, nem todos os indianos têm o que Friedman (2005) chama de “a grande vantagem de se ter um contingente de pessoas que falam inglês, que são bem treinadas e obtêm baixa remuneração, com uma forte inclinação para os serviços no seu DNA e um espírito empreendedor” (p.221) ou mesmo “as ferramentas, habilidades ou a infraestrutura para participar de qualquer forma significativa ou sustentada” (p.470) na “Globalização 3.0”. De fato, as evidências a respeito das implicações econômicas da globalização são bastante ambíguas. Se existe ou não convergência entre os países é uma questão muito discutida.1 A maioria das análises baseadas em países de todo o mundo ou tendem a encontrar divergência ou aceleração de uma evolução da distribuição da renda mundial em dois picos (Quah, 1997; Jones, 1997), ou seja, a emergência de espaços de convergência em níveis de renda altos e baixos, levando a uma polarização crescente ao redor do mundo. Entretanto, esse nem é sempre o caso (por exemplo, Dollar & Kraay, 2002) e, quando dados populacionais são introduzidos na equação, a figura muda radicalmente, e tanto a divergência quanto as distribuições em dois picos desaparecem, levando à convergência (Shultz, 1998; Sala-i-Martín, 2002). Finalmente, quando dados referentes aos indivíduos são utilizados, os resultados indicam que a desigualdade é muito elevada, e que ou existe incerteza – principalmente como consequência de uma falta de séries temporais adequadas de dados – a respeito da direção da mudança (Milanovic, 2005), ou a desigualdade realmente aumentou (Dowrick & Ackmal, 2001; Wade, 2004). Em âmbito nacional, as evidências tendem a ser menos controversas. O consenso geral é que dentro dos países as desigualdades de renda tenderam a crescer, a despeito de a análise incluir dados referentes às regiões ou aos indivíduos (UNDP, 2001; 2003; Milanovic, 2005). Disparidades regionais na Índia, por exemplo, cresceram mais de 23% nos anos 90 (RodríguezPose & Gill, 2006, p.1209). Na China, o aumento foi superior a 20%, enquanto no 14

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México as disparidades cresceram mais de 11% no mesmo período (Rodríguez-Pose & Gill, 2006). Desse modo, a atividade econômica e a riqueza parecem estar crescentemente concentradas, se não em países específicos no mundo, em espaços específicos nestes países. Grandes metrópoles e aglomerações urbanas parecem ser, em geral, as principais beneficiárias desta tendência. Como Scott et al. (2001, p.15) argumentam, embora seja verdade que a combinação de progresso técnico e desregulamentação aumentou em grande medida a mobilidade de bens, trabalho, capital e conhecimento, isso não causou a ubiquidade da atividade econômica, nem diminuiu a necessidade de concentração urbana. Existem evidências claras ao redor do mundo de que as grandes áreas urbanas estão atraindo porções crescentes de renda, atividade econômica e trabalhadores bem treinados. Esse é certamente o caso do mundo desenvolvido, onde o protagonismo de cidades como Nova York, Londres, Tóquio ou Paris numa escala global foi significativamente intensificado (Sassen, 2001; Taylor et al., 2001), ou de Mumbai na Índia, Xangai na China, Cidade do México no México ou São Paulo no Brasil. As funções de comando e controle econômico cresceram de forma significativa nestas cidades chamadas “alfa” (Taylor & Hoyler, 2000; Taylor & Walker, 2001; Taylor et al., 2001). Mas abaixo deste nível mais elevado, diversas cidades “beta” de segundo nível e “gama” de terceiro nível também estão particularmente bem. Na Europa, cidades como Bruxelas, Amsterdã e o Randstad, Madri, Copenhague, Helsinki, Estocolmo ou Roma presenciaram níveis de crescimento muito acima de suas médias nacionais. Cidades como Sydney, Singapura, Kuala Lumpur, Bangkok, Jacarta, Santiago do Chile, Cidade do Cabo, ou até mesmo, em países mais pobres, Acra ou Maputo, também tiveram bons desempenhos. A concentração – no lugar de um espraiamento territorial mais igualitário – da riqueza e da atividade econômica nestas cidades conta uma história muito diferente daquela do mundo plano. Outros fatores determinando a criação de riqueza também estão crescentemente concentrados dentro e no entorno das grandes metrópoles. Esse é, por exemplo, o caso dos transbordamentos de inovação e pesquisa que se tornaram concentrados em grandes áreas urbanas nas últimas décadas. Isso é evidente na Europa, onde, segundo os cálculos, os transbordamentos de conhecimento não ultrapassam um raio de 200 quilômetros das cidades maiores e mais dinâmicas (Moreno et al, 2005; Crescenzi et al., 2007; Rodríguez-Pose & Crescenzi, 2008), mas mais ainda nos EUA, onde os transbordamentos de conhecimento raramente ultrapassam os limites das áreas metropolitanas (Anselin et al., 1997; Varga, 2000; Sonn & Storper, 2008). Estas cidades globais, subglobais e de menor nível hierárquico, que estão se tornando interconectadas numa “rede mundial de cidades” emergentes (Taylor, 2001) e onde as ligações funcionais entre as cidades são fortalecidas para além da contiguidade física (Castells, 1996), são as montanhas (ou, se quiser, as ilhas) deste mundo plano. De fato, o mundo hoje se parece muito mais com o que Veltz (1996; 2000) chamou de “economia-arquipélago”, isto é, um mundo onde as conexões entre as cidades com funções e poderes relativamente semelhantes numa economia mundial são altamente desenvolvidas, independente da distância, na medida em que elas se tornam cada vez mais desligadas de seus contextos regionais e nacionais. Como Castells (1996) indica, neste “espaço de fluxos” gerado pela globalização, as grandes áreas metropolitanas se tornam os nós na rede global de finanças e negócios. Desse modo, embora os avanços na tecnologia e na desregulamentação possam permitir que a atividade econômica ocorra virtualmente em todos os lugares, a realidade é que esta noção de “todos os lugares” é representada por um número relativamente limitado de lugaR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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res em áreas diferentes do mundo, onde as corporações globais se localizam, gerando uma concentração urbana do capital e das estruturas de tomada de decisões ainda maiores (Sassen, 1990; O’Brien, 1992; Hall, 1993; Castells, 1998), assim como uma maior concentração das sedes das empresas (Bosman & De Schmidt, 1993), e uma relação ainda mais próxima entre o poder econômico e o poder político (Rodríguez-Pose, 1998, p.81).

TECTÔNICA DE MONTANHAS EM UM MUNDO PLANO Quais são as razões por trás do fato de que num mundo onde o progresso tecnológico permite o deslocamento da atividade econômica num custo relativamente baixo, a atividade econômica e a riqueza permanecem tão obstinadamente concentradas nas grandes áreas urbanas? Por que a importância econômica e o papel das grandes metrópoles ao redor do mundo estão crescendo ao invés de minguar? Quais são as forças tectônicas que explicam o reforço destas montanhas em um mundo plano? O aparecimento de montanhas em um mundo plano está relacionado ao papel protagonizado pela proximidade na determinação da localização da atividade econômica. Como apontam O’Brien (1992), Cairncross (1997) e Friedman (2005), há poucas dúvidas de que, teoricamente, o progresso nas telecomunicações e na capacidade de armazenar e difundir quantias volumosas de informações on-line reduziu muito o papel da proximidade física no desenvolvimento da atividade econômica. Porém, a proximidade física ou geográfica é apenas uma dimensão da proximidade. Boschma (2005, p.62) identifica outras quatro dimensões: a cognitiva, a organizacional, a social e a institucional. A proximidade cognitiva está relacionada ao fato de que “o conhecimento e as inovações são resultados frequentemente cumulativos e localizados dos processos de busca internos às firmas com um alto grau de conhecimento tácito” (p.63). A proximidade organizacional se refere às práticas organizacionais e interdependências que facilitam o aprendizado interativo, enquanto a proximidade social destaca o fato de que a atividade econômica é circunscrita a um contexto social (Granovetter, 1985; Grabher, 1993). Por último, a proximidade institucional se refere à presença de instituições semelhantes, como “um idioma comum, hábitos compartilhados, um sistema jurídico assegurando direitos de propriedade (inclusive intelectual) etc.” (Boschma, 2005, p.68) que proveem o suporte para a coordenação econômica. Enquanto Boschma é cuidadoso ao afirmar que estes diferentes tipos de proximidade não necessariamente se relacionam à proximidade geográfica, argumentaremos que a razão por trás do aparecimento de montanhas em um mundo plano é justamente a interdependência de todos os tipos diferentes de proximidade e como estas diferentes proximidades se fundem em grandes áreas metropolitanas (e consequentemente em escala geográfica relativamente reduzida, de uma perspectiva mundial). Nosso princípio é que as grandes aglomerações urbanas oferecem o cenário onde os atores econômicos e sociais se beneficiam da proximidade de outros atores econômicos e sociais com quem eles podem se relacionar a partir de uma dimensão cognitiva, organizacional, social e institucional, criando o ambiente adequado para a troca de ideias e para o florescimento de externalidades jacobianas, de inovações, e em última instância, de atividades econômicas e crescimento (Duranton & Puga, 2001). Num mundo globalizado, grandes aglomerações urbanas fornecem a âncora para que os fluxos gerados pela sociedade da informação e do conhecimento se firmem, fazendo com que a ideia da “morte da distân16

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cia” ou da emergência de um mundo plano se torne, na melhor das hipóteses, somente uma meia verdade: é fato que a atividade econômica avançada pode agora ocorrer em uma maior quantidade de regiões do mundo do que outrora, mas, até nestes lugares, ela tenderá a se concentrar de forma crescente em uma série de nós urbanos relacionais, que se tornarão as montanhas em um mundo plano. As forças tectônicas por trás do aparecimento destas montanhas urbanas são variadas, mas incluem fatores como inovação, transbordamentos, encadeamentos para trás e para frente nas cadeias produtivas, forças de especialização versus forças de diversificação, capital social e comunitário, e, por último, mas não menos importante, o burburinho da cidade. Vamos agora rever brevemente alguns destes fatores a fim de discutir como sua interação dá forma a uma geografia da economia mundial que é muito mais complexa do que aquela subjacente à metáfora do mundo plano de Friedman. MOVIMENTOS DE PLACA TECTÔNICA 1: INOVAÇÃO E DESEMPENHO ECONÔMICO Quando, contrastando com suposições neoclássicas, a acumulação de tecnologia e capital humano é completamente reconhecida como o resultado de decisões explícitas de agentes econômicos, o crescimento econômico se torna “um resultado endógeno de um sistema econômico, (e) não o resultado de forças que se colidem a partir do lado de fora” (Romer, 1994, p.3). A tecnologia, o progresso tecnológico e os recursos humanos – considerados como as principais forças “por trás de padrões de vida perpetuamente crescentes” (Grossman & Helpman, 1994, p.24) – se tornam endógenos, e mudam diferentemente em territórios distintos de acordo com a qualidade dos recursos humanos e da quantia de capital humano e físico dedicado à pesquisa e ao desenvolvimento (Romer, 1986; Lucas, 1988; Rebelo, 1991). A inovação ocorre onde as dotações adequadas de capital humano e físico estão localizadas e, vice-versa, a inovação gera o dinamismo econômico que atrai mais recursos humanos e mais capital. Consequentemente, sob um quadro de crescimento endógeno, a inovação e o capital humano tenderão a se co-localizar em áreas geográficas relativamente compactas. O potencial de concentração da atividade econômica e de divergência se torna mais evidente quando questões como os limites mínimos de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) e de possibilidade de apropriação de tecnologias – destacadas pela linha neoschumpeteriana da abordagem de crescimento endógeno – são consideradas. Para que o investimento em P&D seja efetivo, um limite mínimo de investimento será necessário, tornando não linear a relação entre investimento em P&D e crescimento econômico. Além disso, existem fortes efeitos de limite e benefícios externos associados ao investimento em P&D, e seus retornos dependem fortemente da qualidade da força de trabalho que conduz as pesquisas, da concentração de centros de P&D em espaços limitados, da qualidade do capital humano local (Audretsch & Feldman, 1996; De Bondt, 1996; Engelbrecht, 1997) e, sobretudo, da quantia de investimento envolvida (Scherer, 1983; Dosi, 1988). Assim, um investimento limitado e/ou disperso em P&D em regiões atrasadas pode não render os retornos esperados, já que a maioria dos projetos de P&D pode não ter a dimensão adequada para gerar pesquisas competitivas, e cientistas e pesquisadores locais provavelmente estarão mais isolados do que em centros tecnológicos avançados. Além disso, como será discutido mais detalhadamente adiante, o tecido econômico local pode não ter a capacidade de atingir com sucesso a passagem do progresso tecnológico à inovação e ao crescimento econômico (Rodríguez-Pose, 1999). Desse modo, a maioria dos espaços no R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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mundo plano será incapaz de inovar e o resultado final será a aglomeração de forças inovadoras em “montanhas” urbanas, estando a inovação geralmente relacionada ao tamanho da aglomeração urbana. O IMPACTO DOS TRANSBORDAMENTOS DE CONHECIMENTO Os novos conhecimentos, que são a principal engrenagem de crescimento nas teorias esboçadas aqui, não são nem completamente apropriáveis por seus produtores, nem exauridos após seu uso. Eles são cumulativos e podem ser difundidos. Consequentemente, o processo de acumulação de conhecimento gera transbordamentos que podem beneficiar todo um conjunto de agentes (intencionais ou involuntários) em potencial. O grau e a extensão da difusão dos transbordamentos de conhecimento têm, assim, implicações importantes para a possibilidade de se considerar a inovação como uma força “niveladora”. Se os transbordamentos fossem difundidos globalmente sem custos ou fricções – tornando a inovação instantaneamente disponível para todo o mundo como maná caído do céu –, a inovação e a mudança tecnológica poderiam beneficiar todos os países, regiões e indivíduos, não importando a sua localização efetiva [como a luz solar em uma paisagem plana ou, usando os termos de Friedman (2005), como um poderoso esteroide abastecendo a globalização]. Entretanto, uma quantia crescente de evidências empíricas parece apontar numa direção diferente, destacando o fato de que há fronteiras, na escala do lugar, para os transbordamentos. De acordo com Audretsch & Feldman (1996, p.256), “os transbordamentos de conhecimento não (...) se transmitem sem custo no que diz respeito à distância geográfica”. Diversos estudos empíricos mostraram que os retornos relacionados à transmissão de conhecimento são geograficamente contidos e sofrem importantes efeitos de declínio de acordo com a distância (Jaffe, Trajtenberg, Henderson, 1993; Narin, Hamilton, Olivastro, 1997; Howells, 2002). O conhecimento e a inovação tendem a se aglomerar geograficamente, com transbordamentos de pesquisa levando à criação de ciclos virtuosos autorreforçados de acumulação e à gênese de bens multiplicadores significativos em áreas tecnologicamente adiantadas (Verspagen, 1997). Melhorias tecnológicas na infraestrutura de comunicações não afetaram todos os tipos de informação do mesmo modo, enquanto “informações codificadas” podem ser transmitidas por distâncias cada vez maiores, o conhecimento “tácito” é geograficamente limitado – ou nas palavras de Morgan (2004), “locacionalmente aderente” – e é também relacionado ao contexto e à cultura (Gertler, 2003), contribuindo para a crescente concentração da inovação (Audretsch & Feldman, 2004; Cantwell & Iammarino, 2003). “As informações codificáveis (…) são baratas de se transferir porque seus sistemas simbólicos subjacentes podem ser extensamente disseminados através da infraestrutura de informações” (Leamer & Storper, 2001, p.650). Entretanto, as informações não são completamente codificáveis devido a algumas características específicas que, em alguns casos, tornam a codificação impossível ou muito cara. “Se as informações não são codificáveis, simplesmente adquirir o sistema simbólico ou possuir a infraestrutura física não é suficiente para a transmissão bem-sucedida de uma mensagem” (Storper & Venables, 2004, p.354). Desse modo, neste último caso, as informações são transmitidas através de contatos face a face, uma tecnologia de comunicação intrinsecamente espacial. Além disso, ainda que a transmissão de conhecimentos formalmente codificados seja menos sensível às relações de proximidade em razão de sua difusão, e mais dependente da capacidade local de absorção devido a seu impacto (Cohen & Levinthal, 1990), pesquisas 18

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acerca de citações de patentes indicam que a proximidade facilita uma difusão mais ágil também deste tipo de conhecimento (Sonn & Storper, 2008). Pelo menos três mecanismos tornam o conhecimento e sua transmissão forças poderosas para a gênese de montanhas e vales na paisagem da economia mundial: 1 As atividades locais de inovação são cruciais para a produção de novos conhecimentos e a exploração econômica de conhecimento existente, dada a presença de um limite mínimo. Tais atividades não são distribuídas geograficamente de maneira uniforme e tornam-se deste modo uma fonte localizada de vantagens competitivas para algumas áreas, em detrimento de outras. 2 As informações não são automaticamente equivalentes ao conhecimento economicamente útil (Sonn & Storper, 2008). Um processo bem-sucedido de inovação depende de “fatores estruturais e institucionais localizados, que não somente dão forma à capacidade inovadora de contextos geográficos específicos” (Iammarino, 2005, p.499) –, como destacado pela abordagem dos sistemas de inovação (Lundvall, 2001), dos sistemas regionais de inovação (Cooke et al., 1997) e das regiões de aprendizado (Gregersen & Johnson, 1996; Morgan, 1997) –, mas que também influenciam a capacidade de cada território em absorver e empregar de forma produtiva os transbordamentos exógenos de conhecimento. 3 A evidência da limitação espacial dos transbordamentos de conhecimento não só contradiz a ideia do conhecimento ubíquo uniformemente disponível em todos os lugares, mas também ajuda a explicar como a condição periférica pode dificultar persistentemente a capacidade regional de inovação após controlar esforços inovadores locais: quanto menor a extensão espacial dos transbordamentos de conhecimento, menor a exposição de áreas periféricas ao conhecimento externamente produzido. Enquanto regiões centrais altamente acessíveis podem se beneficiar de atividades inovadoras conduzidas em suas proximidades, a delimitação espacial dos transbordamentos impede que eles alcancem regiões remotas e periféricas. Portanto, quanto mais fortemente os transbordamentos declinarem de acordo com a distância, mais acentuada sua tendência a desenvolver concentrações de conhecimento em localizações centrais. As proximidades cognitivas, organizacionais e sociais necessárias para gerar estes círculos virtuosos de inovação ocorrem consequentemente em espaços geográficos limitados, contribuindo adicionalmente para o surgimento de montanhas no mundo plano de Friedman. ENCADEAMENTOS PARA TRÁS E PARA FRENTE E A “NOVA GEOGRAFIA ECONÔMICA” Uma terceira força tectônica são os encadeamentos para trás e para frente da “Nova Geografia Econômica” (NGE). A NGE tendeu a enfatizar a concentração crescente de atividade econômica baseada em fatores como a interação de economias de aglomeração, encadeamentos para trás e para frente nas cadeias produtivas, limite crítico e tamanho de mercado, e, acima de tudo, custos de transporte declinantes (Krugman, 1991). O equilíbrio depende das interações entre forças de aglomeração (economias de escala, efeitos de mercado interno, encadeamentos para trás e para frente, contingente de mão-de-obra) e de dispersão (preços de bens intermediários, salários, concorrência) e as mudanças nos custos de transação e de transportes (devido à integração econômica e à globalização) modificam o equilíbrio entre estas forças, eventualmente gerando novos padrões de centro e periferia. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Sob um novo quadro de geografia econômica, assumindo um modelo de duas regiões e dois setores – com cidades especializadas em indústrias e serviços, e áreas rurais em agricultura –, na medida em que cresce o comércio na indústria e nos serviços, as cidades crescerão, frequentemente às custas de suas áreas de influência rurais (Paluzie, 2001), reforçando uma dimensão centro–periferia. Desse modo, quando um país se abre para o comércio exterior, as importações advindas das áreas centrais e as exportações destinadas a elas contribuem para expandir as áreas de influência destes centros, em detrimento das áreas menos desenvolvidas. As firmas e indústrias deixam de se sujeitar às restrições de tamanho máximo impostas pela demanda limitada de mercados rurais domésticos – elas podem sustentar o crescimento e a aglomeração por atenderem à demanda estrangeira, e fazerem uso de insumos estrangeiros mais baratos. O incentivo à aglomeração, portanto, aumenta de forma concomitante à elevação do potencial de mercado que as cidades, como as montanhas no mundo plano, têm acesso através da abertura aos mercados de exportação e importação (Puga, 1999; Paluzie, 2001). Como resultado, a abertura para o comércio de bens industrializados tende a aumentar os incentivos para que firmas e trabalhadores se concentrem em áreas centrais, e em cidades maiores em detrimento das menores, nutrindo assim maiores disparidades internas nos países. ESPECIALIZAÇÃO VERSUS DIVERSIFICAÇÃO

2 Henderson et al. (1995) declaram que as externalidades do tipo Jacobs prevalecem em setores de alta tecnologia e as do tipo MAR em setores de bens de capital. 3 Duranton & Puga (2001) sugerem que as firmas desenvolvem novos produtos em contextos urbanos e criativos diversificados, subsequentemente realocandose para cidades especializadas na fase de produção em massa, para explorar vantagens de custo.

A análise do impacto da especialização versus diversificação na inovação e no desempenho econômico lança nova luz sobre o sucesso crescente das cidades e das aglomerações na era da “Globalização 3.0”. Enquanto a especialização crescente tende a nutrir externalidades do tipo Marshall-Arrow-Romer (MAR) dentro da mesma indústria, a diversidade de atividades econômicas buscada localmente permite que atores locais se beneficiem de complementaridades entre bases de conhecimento e de trocas de ideias entre os setores (externalidades jacobianas). A literatura empírica sugere que tanto as externalidades MAR (Glaeser et al., 1992; Henderson, 1999) como as jacobianas (Andersson et al., 2005; Carlino et al., 2001; Feldman & Audretsch, 1999) podem desempenhar um papel importante em incentivar a inovação seja em contextos industriais diferentes2 ou em diferentes fases do ciclo de vida de um produto.3 Uma questão crucial para a prosperidade e o sucesso das cidades origina-se na capacidade de explorar eficientemente as externalidades MAR e jacobianas. Quando outras forças (históricas, institucionais, políticas) impedem que a evolução da aglomeração produtiva atinja seu equilíbrio mais eficiente em qualquer momento no tempo entre os dois tipos de economias externas, o desempenho econômico geral pode ser dificultado. As cidades diversificadas tendem a ser maiores, enquanto cidades especializadas são geralmente menores. Considerando que tanto as cidades diversificadas como as especializadas podem, a priori, apresentar desempenhos igualmente positivos, os riscos em potencial para as cidades especializadas são maiores. Estes riscos estão relacionados à sua capacidade inovadora mais baixa e à sua maior exposição a padrões de ascensão e declínio específicos de cidades especializadas (Duranton & Puga, 2000). No longo prazo, intervenções sob a forma de políticas que encorajem a mobilidade do trabalho (principalmente para cidades maiores e diversificadas) de modo a enfrentar o declínio de cidades especializadas podem ser necessárias. Desse modo, é fundamentalmente a mistura única de proximidades sociais, institucionais, cognitivas e organizacionais encontradas em grandes áreas metropolitanas, que uma vez mais permite que os encadeamentos adequados sejam desenvolvidos e que surjam as misturas corretas de especialização versus diversificação. 20

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COMUNIDADE, CAPITAL SOCIAL E CLASSE CRIATIVA Instituições formais e informais também desempenham um papel importante na formação de montanhas no mundo desigual que estamos criando. Muitos dos efeitos de aglomeração das teorias de crescimento endógeno e da Nova Geografia Econômica são reforçadas pelas previsões de inúmeras teorias institucionais que traçam o papel de instituições e de fatores institucionais na atividade econômica. Estas teorias, apesar de suas diferentes origens, coincidem no papel de nutrir a concentração econômica protagonizado pelas instituições. Muitos estudos revelaram uma conexão íntima entre “boas” condições institucionais e a presença de comunidades fortes e a aglomeração de atividades econômicas. Estudos qualitativos a respeito de clusters e distritos industriais (por exemplo Piore & Sabel, 1984; Kristensen, 1992; Semlinger, 1993; Burroni, 2001), “regiões de aprendizado” (Gertler, Wolfe, Garkut, 2000; Henry & Beliscão, 2000; Bathelt, 2001), e sistemas regionais de inovação (Cooke & Morgan, 1998) enfatizam a forma com que acordos institucionais e governamentais complexos criam condições para que a atividade econômica prospere e, em última instância, aglomere, já que boas condições institucionais são difíceis de se reproduzir. Fatores como a interação íntima entre atores políticos locais e a presença de uma sociedade civil ativa, de administrações regionais, de organizações de empregadores e de sindicatos – o que Trigilia (1992) chama de “mercado institucionalizado” – favorecem o desenvolvimento e a aglomeração econômica. Tradições bem desenvolvidas, sindicatos fortes co-operando com empregadores e instituições de âmbito nacional caminham numa direção semelhante. Reciprocamente, a ausência de polos de ação coletiva frequentemente leva à formação de círculos viciosos de baixo crescimento. A falta ou a importância relativamente pequena de vida social nas organizações coletivas, a presença de práticas de clientelismo ou a governança de atividades sociais por simples estruturas sociais (frequentemente característica de espaços relativamente remotos e subdesenvolvidos) facilitam a migração e o desestímulo da atividade econômica. Muitas análises quantitativas chegam a resultados semelhantes. O trabalho de Putnam (1993) a respeito do capital social italiano mostra como diferenças nos níveis das instituições comunitárias no norte e no sul da Itália são a base de sua considerável desigualdade de renda. Outra pesquisa descobriu que diferentes agentes institucionais da comunidade, como a participação de grupos, ajuda a explicar um desempenho econômico mais alto (Knack & Keefer, 1997; Zak & Knack, 1998; Beugelsdijk et al., 2004; Guiso, Sapienza, Zingales, 2004), ou que, reciprocamente, divisões excessivas dentro da sociedade limitam seu crescimento potencial (Easterly & Levine, 1997; Rodríguez-Pose & Storper, 2006). Alguns analistas indicam como, no limite, a presença de uma alta densidade de redes de instituições geograficamente próximas – chamada de “espessura institucional” por Amin e Thrift (1995) e de “capital institucional” por Healey (1998) – é uma condiçãochave para o desenvolvimento econômico. Combinações de “capital intelectual” (isto é, recursos de conhecimento), “capital social” (confiança, reciprocidade, espírito cooperativo e outras relações sociais) e “capital político” (capacidade de ação coletiva) dentro destas redes institucionais determinam o potencial para o seu desenvolvimento. Quanto maior a densidade de redes institucionais complexas dentro de um determinado território, maior o potencial para mais crescimento e desenvolvimento (Amin & Thomas 1996; Morgan 1997; Cooke & Morgan 1998). R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Estas fontes estruturais de vantagem competitiva estão longe de desaparecer em resposta ao processo de globalização (muito menos os dez “niveladores mundiais” destacados por Friedman). Pelo contrário, elas são ainda mais reforçadas pelo papel crescentemente importante das pessoas “criativas” no mundo de hoje. Para Florida (2002), as economias locais futuras apoiam-se na atração e retenção de membros da “classe criativa”, incluindo aqueles que trabalham em setores como finanças, tecnologia, mídia e entretenimento, e cujas atividades aglomeram criatividade, individualidade e diferença. E não existe lugar melhor para alcançar isso do que em cidades cosmopolitas que oferecem tudo o que a “classe criativa” está procurando em termos de estilos de vida alternativos, códigos relaxados de vestimenta, acordos de trabalho flexíveis e atividades de lazer focadas em exercício e esportes radicais, e sua preferência pelos “aspectos da cultura local relacionados à urbanidade”. A interação entre a enorme capacidade dos membros desta “classe criativa” de gerar valor econômico e sua mobilidade sem precedentes dá às cidades capazes de desenvolver condições adequadas (graças às suas capacidades socioinstitucionais endógenas) uma grande vantagem sobre outras áreas e territórios. BURBURINHO: A FORÇA TECTÔNICA MÁXIMA Discutimos até este ponto as origens e a mecânica das forças responsáveis pelo aparecimento de “montanhas” urbanas na paisagem econômica mundial atual. Agora, precisamos dar uma olhada mais de perto no maior driver por trás de todos estes movimentos tectônicos: o “burburinho” das cidades. Ao combinar de forma inovadora as abordagens econômicas e institucionais para a aglomeração econômica, Storper & Venables (2004) propuseram a teoria do “burburinho”, ou das “buzz cities”: o “burburinho” se trata, eminentemente, do contato face a face. Eles argumentam que os encadeamentos para trás e para frente, o acesso aos mercados, a aglomeração de trabalhadores e as interações tecnológicas não são os únicos fatores determinando a concentração. Qualquer explicação do motivo pelo qual a atividade econômica está se aglomerando cada vez mais é incompleta sem aquilo que eles consideram “o aspecto mais fundamental” da proximidade: o contato face a face (Stoper & Venables, 2004, p.352). Nesta abordagem, a interação face a face é economicamente eficiente, já que ela ajuda a resolver problemas de incentivo, facilita a socialização e o saber e promove motivações psicológicas. E em nenhum lugar o contato face a face é mais provável de ocorrer do que em cidades grandes e diversificadas. Estas cidades – que Storper & Venables definem como “buzz cities” (ou “cidades-burburinho”) – põem indivíduos altamente qualificados e motivados em contato uns com os outros, contribuindo para fazer com que as pessoas em um ambiente de “burburinho” sejam altamente produtivas e incentivando a fecundação cruzada entre redes especializadas nos diferentes setores. Desse modo, é mais provável que novas atividades surjam nos centros de “burburinho”, onde as forças de aglomeração não são dependentes apenas de economias de aglomeração econômica clássicas, mas considera-se que fatores institucionais e relacionados ao “burburinho” têm um papel crescente e proeminente nesta direção. O “burburinho” é o conjunto de proximidades de ordem cognitiva, organizacional, social e institucional agrupadas num ambiente geográfico reduzido, e age como a maior força tectônica no aparecimento de montanhas no mundo plano de Friedman. O que pode nos enganar em um primeiro olhar é que as “cidades-burburinho” mais importantes (por exemplo, Londres, Nova York, Los Angeles) também são as mais globalizadas: elas são centros de negócios internacionais, financeiros e de redes culturais, loca22

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lizações das sedes de muitas corporações multinacionais; elas estão no epicentro das atividades “globais” de viagens e de reuniões de negócios. Contudo, “os níveis mais altos dos negócios internacionais exigem a inserção em governos locais e redes políticas para funcionarem eficazmente” e, embora “a mistura mais precisa de atividades envolvendo contatos face a face e a co-localização mudarão, ela (…) continuará a gerar a aglomeração de indivíduos altamente qualificados, firmas e burocracias em centros urbanos de alto custo” (Storper & Venables, 2004, p.366-8). Ao permitir contatos face a face e a transmissão de conhecimento não codificado/tácito (ou não codificável), as “cidades-burburinho” se beneficiam de uma vantagem competitiva duradoura sobre outros territórios, o que reforça outras forças de aglomeração num processo de causação cumulativa. As atividades inovadoras locais permitem um melhor desempenho econômico local, mas também produzem transbordamentos localizados de conhecimento cujos efeitos benéficos não só dependem das relações de proximidade, mas também da presença de instituições locais (ou filtros sociais), que permitem sua absorção e tradução em crescimento econômico adicional. Mas o aparecimento de novas montanhas na paisagem econômica ou o surto das já existentes também depende de outros fatores localizados, como um saldo favorável entre a especialização e a diversificação e um equilíbrio eficiente entre forças de aglomeração e dispersão. O ritmo sem precedentes do deslocamento da fronteira tecnológica num grande número de setores também salientou o papel da classe de “pessoas criativas” continuamente envolvidas na geração de novas ideias. A inovação e as ideias são permutadas, difundidas, e interfecundadas em áreas urbanas capazes de desenvolver o ambiente adequado em termos de sua capacidade para atrair e reter pessoas criativas e, finalmente, mas não menos importante, maximizar o contato face a face. Uma vez ativado, este processo tem um enorme potencial cumulativo: a produtividade de atividades locais inovadoras é significativamente destacada quando as condições mencionadas são encontradas, gerando incentivo econômico para investimentos adicionais. Novos investimentos em inovação, por sua vez, não só produzem efeitos indiretos localizados, mas também aumentam diretamente e indiretamente a capacidade local de absorção e estimulam a atualização contínua do ambiente socioinstitucional local. Este processo cria montanhas progressivamente mais altas na geografia do mundo econômico. Entretanto, o sistema inteiro é altamente dinâmico, e grandes deslocamentos radicais na fronteira tecnológica podem permitir que – como em qualquer período tectônico ativo – novas janelas de oportunidades sejam abertas (e outras sejam fechadas), fazendo assim com que novas cidades e aglomerações surjam na paisagem global, mas, ao mesmo tempo, condenando outras áreas ao declínio econômico.

CONCLUSÕES Friedman criou uma metáfora poderosa para descrever os efeitos da mudança contínua da economia mundial. De acordo com ele, a mudança tecnológica, em geral, e as melhorias nas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), em particular, têm, nas últimas três décadas, aplainado radicalmente nosso mundo. A mudança tecnológica não tem sido apenas a força mais importante por trás do processo de crescimento econômico, mas tem também habilitado o alargamento, o aprofundamento e a velocidade da interconectividade mundial em todos os aspectos de vida social contemporânea, do cultural ao R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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criminoso, do financeiro ao espiritual” (Held et al., 1999, p.2), o que pode ser chamado de globalização. A liberalização progressiva dos movimentos de capital e trabalho, a redução aguda nos custos de viagens internacionais e intercontinentais e também a convergência proposital e progressiva de “modelos culturais globais”, e, acima de tudo, a disponibilidade sem atrito de informações e conhecimento, determinam uma influência cada vez menor da distância física e de condições contextuais subjacentes sobre as interações econômicas. O acesso mais rápido e mais barato às informações e à tecnologia também levam a uma reestruturação de como nós fazemos negócios por todo o mundo, e contribuiu para desmantelar as barreiras que ancoraram a atividade econômica em locais específicos. A consequência de todas estas mudanças é um mundo melhor: um mundo onde nem a distância entre os atores econômicos nem a condição contextual em que suas interações acontecem importaria mais; um mundo onde as informações “antes disponíveis só para poucos, estaria disponível para muitos, imediatamente e (em termos de custos de distribuição) de forma barata” (Cairncross, 1997, p.4); um mundo onde todas as economias têm uma chance semelhante de explorar e maximizar oportunidades de interação global, não importando sua posição geográfica e suas condições locais. Em resumo, um mundo onde cada vez mais pessoas estão autorizadas a este acesso às informações e têm maior consciência da necessidade de se empenhar e competir como indivíduos num mundo integrado. Para Friedman o mundo é plano e, como resultado, estamos todos melhores assim. Como o próprio Friedman reconhece, nem toda a evidência empírica disponível sustenta sua visão do mundo. “As más notícias na África de hoje, como também na Índia rural, na China, na América Latina e em vários cantos obscuros do mundo desenvolvido, mostram que existem centenas de milhões de pessoas que não têm esperança e nenhuma chance de se tornar parte da classe média” (Friedman, 2005, p.462). Ainda assim, apesar de reconhecê-lo em seu capítulo “O mundo não plano” (um capítulo em quinze), Friedman se torna uma vítima de sua própria metáfora. Entretanto, a simples evidência de que nem todas as pessoas e territórios podem se beneficiar igualmente das mudanças que a Globalização 3.0 provoca o força a descrever a geografia do mundo de uma maneira mais detalhada e talvez mais realista: “não existe apenas o mundo plano e o não plano. Muitas pessoas vivem na zona de crepúsculo entre os dois” (Friedman, 2005, p.470). E a realidade é justamente esta, o mundo não é plano. As forças tectônicas poderosas ligadas à globalização estão formando um mundo onde existem vencedores e perdedores; onde os vencedores são justamente aqueles que podem maximizar as oportunidades de inovação, as atividades econômicas e o crescimento que o acesso em tempo real à informação oferece. A revolução informacional abriu uma nova janela de oportunidades, permitindo que novos atores possam emergir na arena global, enquanto outras são fechadas, provocando o declínio relativo de algumas regiões anteriormente líderes. Além disso, algumas economias têm persistentemente permanecido marginais ao panorama econômico mundial. O novo regime tecnológico está produzindo uma minuciosa reorganização da economia mundial, ao invés de uma tendência global de níveis semelhantes de desenvolvimento possibilitados pelo conhecimento economicamente produtivo e ubíquo. Nesta nova geografia, as grandes cidades do mundo emergem como vencedoras reais, já que oferecem o ambiente certo para permitir que os agentes econômicos prosperem. Desse modo, a ironia é o fato de que o mundo plano está repleto de altos picos. E nem todos são capazes de escalar estes altos picos. Da mesma maneira que o cidadão comum não sonharia em escalar o Everest. Apenas alpinistas profissionais – a quem 24

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realmente foi dada a capacidade – ousam se aventurar nestes cumes. Mas como em qualquer atividade esportiva de elite, os jogadores reais, os alpinistas reais, são apenas uns poucos escolhidos, consistindo principalmente de firmas multinacionais e de executivos de alto nível. A maior parte de nós tem que se contentar em apenas observar as montanhas de longe e ter a esperança de que algum dia venhamos a nos beneficiar de sua escalada.

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Andrés Rodríguez-Pose é pesquisador do Department of Geography and Environment, London School of Economics. E-mail: a.rodriguez-pose@ lse.ac.uk. Riccardo Crescenzi é pesquisador do Robert Schuman Centre for Advanced Studies, European University Institute; e Dipartimento di Economia, Università degli Studi Roma. E-mail: riccardo. [email protected]. Artigo recebido em abril de 2009 e aprovado para publicação em abril de 2010.

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B S T R A C T Thomas Friedman (2005) argues that the expansion of trade, the internationalization of firms, the galloping process of outsourcing, and the possibility of networking at increasingly low prices iscreating a ‘flat world’: a level playing field where individuals are empowered and better off. This paper challenges this view of the world by arguing that although globalization implies changes, opportunities, and threats, not all territories have the same capacity to maximize the benefits and opportunities and minimize the threats at hand. Numerous forces are coalescing in order to provoke the emergence of urban ‘mountains’ where wealth, economic activity, and innovative capacity agglomerate. These ‘tectonic’ forces include factors such as innovation, spillovers, backward and forward linkages, specialisation vs. diversification dynamics, community and social capital, and, last but not least, the buzz of the city. The interactions of these forces in the close geographical proximity of large urban areas give shape to a much more complex geography of the world economy and R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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allows for new economic players to emerge. But this geography, rather than flat, is full of mountains, with large urban agglomerations representing the highest peaks. The majority of the world population, far from being empowered, remains ill-prepared to face these challenges.

KEYWORDS advantage.

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Technological progress; new economic geography; competitive

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DEMOCRACIA NO FIO DA NAVALHA LIMITES E POSSIBILIDADES PARA A IMPLEMENTAÇÃO DE UMA AGENDA DE REFORMA URBANA NO BRASIL RAQUEL ROLNIK R

E S U M O Os anos 1990 representaram no Brasil avanços institucionais no campo do Direito à Moradia e à Cidade, com a incorporação à Constituição do país, em 1988, dos princípios da função social da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos direitos de posse dos moradores dos assentamentos urbanos informais e da participação direta dos cidadãos nos processos decisórios sobre a política urbana. Estas proposições constituem os pilares da agenda da Reforma Urbana, que, a partir da criação do Ministério das Cidades no governo Lula, penetra no âmbito do Executivo federal. O artigo avalia os limites e possibilidades de implementação desta agenda através da trajetória de duas políticas propostas pelo Ministério – o Conselho Nacional das Cidades e a campanha pelos Planos Diretores Participativos – centrando a análise na organização do Estado na área do desenvolvimento urbano em sua relação com o sistema político e as características da democracia brasileira.

PA

L AV R A S democracia.

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Planejamento participativo; política urbana;

INTRODUÇÃO Os anos 1990 representaram no Brasil um período de intenso debate, no seio da sociedade civil, dos partidos e governos, acerca do papel dos cidadãos e de suas organizações na gestão das cidades. Além disto, foram anos de avanços institucionais no campo do Direito à Moradia e Direito à Cidade, com a incorporação à nova Constituição do país, em 1988, de um capítulo de política urbana, estruturado em torno da noção de função social da cidade e da propriedade, do reconhecimento dos direitos de posse de milhões de moradores das favelas e periferias das cidades do país e da incorporação direta dos cidadãos aos processos decisórios sobre esta política. Esses têm sido – desde o período da chamada “transição democrática” – os pontos centrais da chamada “agenda da reforma urbana”, cujos principais proponentes são movimentos populares, organizações não governamentais, associações de classe e instituições acadêmicas e de pesquisa organizadas em torno da promoção do direito à cidade (Santos Junior, 2007, p.297). Os anos 90 também introduziram nas cidades brasileiras, e especialmente nas metrópoles, os efeitos das reformas macroeconômicas de caráter liberal iniciadas nos anos 90 e que incidiram tanto sobre a economia das cidades, gerando desemprego e radicalizando as assimetrias econômicas e sociais já existentes anteriormente, como sobre a capacidade dos governos e atores sociais de enfrentá-las. Elas também viriam acompanhadas por uma agenda de reforma do Estado, tendo como eixo a privatização de amplas áreas das políticas públicas, a proposta de modernização e downsizing do Estado acompanhadas por um R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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discurso participacionista e de revalorização da sociedade civil, redefinida como Terceiro Setor (Dagnino, Oliveira, Panfichi, 2006; Telles, 2007; Santos Junior & Ribeiro, 2003). Finalmente, foi também no mesmo período que o processo de descentralização federativa, fortalecimento e autonomia dos poderes locais, propostos desde a Constituição de 1988, foi sendo progressivamente implantado no Brasil, limitado tanto pelos constrangimentos do ajuste macroeconômico vivido pelo país nos anos 90, como pela alta dose de continuidade política que o processo de redemocratização brasileira envolveu (Avritzer, 2003; Alston, Melo, Mueller, Pereira, 2005). A nosso ver, é a combinação particular e perversa destes elementos, em suas relações com a herança pesada da lógica de gestão do território excludente e predatória, que têm ditado as marchas e contramarchas da agenda da Reforma Urbana no país. Se, por um lado, ela não logrou constituir uma base de sustentação política para incidir profunda e amplamente na dinâmica estatal assim como relações entre sociedade política e sociedade civil de forma a promover a gestão das cidades na direção de um espaço mais coeso, includente e sustentável, por outro, tem sido uma fonte permanente de tensionamento e inovação cultural introduzida pelos atores sociais, que ampliou do ponto de vista territorial e político o espaço da democracia brasileira (Santos Junior, 2004; 2007). Neste artigo, avaliamos os limites e possibilidades de implementação da agenda da Reforma Urbana, tomando como objeto de reflexão sua incorporação à política urbana promovida no âmbito do governo Lula, sobretudo através do Ministério das Cidades. Este balanço, restrito a apenas um aspecto da política implementada pelo Ministério, pretende contribuir com a reflexão sobre os desafios da política urbana no Brasil do ponto de vista da frágil e vigorosa democracia brasileira.

1 Esta expressão foi cunhada por Lucio Kowarick em seu livro A espoliação urbana, quando dá o título “A lógica da desordem” ao capítulo em que descreve o processo de urbanização brasileiro pós-60 (Editora Paz e Terra, São Paulo, 1980).

A LÓGICA DA “DESORDEM” URBANA1 Em um dos movimentos socioterritoriais mais rápidos e intensos de que se tem notícia, a população brasileira passou de predominantemente rural para majoritariamente urbana em menos de 40 anos (1940-1980). Este movimento, impulsionado pela migração de um vasto contingente de pobres, ocorreu com base em um modelo de desenvolvimento urbano que basicamente privou as faixas de menor renda da população de condições básicas de urbanidade ou de inserção efetiva à cidade. Em cada ponto do território que apresentou grande crescimento e dinâmica urbana, as qualidades urbanísticas se acumulam em um setor restrito, local de moradia, negócios e consumo de uma minoria da população moradora. Estas áreas, “de mercado”, têm sido reguladas por um vasto sistema de normas, contratos e leis que têm quase sempre como condição de entrada a propriedade escriturada e registrada, restrita a poucos moradores. Os terrenos que a lei permite urbanizar, assim como os financiamentos que a política de crédito imobiliário têm disponibilizado estão reservados a este círculo restrito. Para as maiorias, sobraram os mercados informais e irregulares, em terras que a legislação urbanística e ambiental vetou para a construção ou não disponibilizou para o mercado formal ou nos espaços precários das periferias com as viagens cotidianas “à cidade”. Embora não exista uma apreciação segura do número total de famílias e domicílios instalados em favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares e outras formas de assentamentos marcados por alguma forma de precariedade urbanística e irregularidade administrativa e patrimonial, é possível afirmar que o fenôme32

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no está presente na maior parte da rede urbana brasileira, atingindo 40% dos domicílios urbanos brasileiros, ou 16 milhões de famílias (Ipea/IBGE, 2004). No vasto e diverso universo dos 5.564 municípios que existem hoje no Brasil, são raras as cidades que não têm uma parte significativa de sua população “assentada precariamente” (IBGE, 2006). Excluídos do marco regulatório e dos sistemas financeiros formais, os assentamentos precários foram autoproduzidos por seus próprios moradores com os meios que se encontravam à sua disposição: salários baixos, insuficientes para cobrir o custo da moradia (Oliveira, 1988; Maricato, 1996), sem acesso a recursos técnicos e profissionais e nas terras rejeitadas ou vetadas para o mercado formal, como encostas íngremes e áreas inundáveis, além das vastas franjas de expansão periférica sobre zonas rurais. Assim foi sendo produzida a cidade “fora da cidade”, eternamente desprovida das infraestruturas, equipamentos e serviços que caracterizam a urbanidade. As políticas governamentais implementadas durante o período de urbanização mais intensa (1960-1980) reforçaram de maneira perversa este modelo. Sob a égide de uma ditadura militar que concentrou recursos e poder nas mãos do governo federal, o locus da formulação e implementação da política de desenvolvimento urbano concentrou-se no BNH – Banco Nacional de Habitação. Criado após o golpe militar de 1964, sua criação era uma resposta do governo militar à forte crise de moradia presente no país buscando, por um lado, angariar apoio entre as massas populares urbanas, e, por outro, criar uma política permanente de financiamento capaz de estruturar em moldes capitalistas o setor da construção civil habitacional, objetivo que acabou por prevalecer. Em 1967, o BNH assumia a gestão dos recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), constituído pela poupança compulsória de todos os assalariados brasileiros, tornando-se assim o maior banco de segunda linha do país. O BNH passou então a concentrar não apenas o financiamento mas também toda a atividade de planejamento do desenvolvimento urbano no âmbito do governo federal, consubstanciada em metas quantitativas de produção nos setores de habitação e saneamento. Sua atuação se dava através de disponibilização de crédito com juros subsidiados para companhias públicas de saneamento e de habitação – organizadas sobretudo pelos estados e, em alguns casos, por municípios – para a execução de projetos de implantação de redes de água e esgoto e de construção de moradias populares, além de construtoras e indivíduos para a produção de casas e apartamentos para o mercados de média e alta renda (Arretche, 1996). Quando construídas, as moradias populares foram, em sua maioria, implantadas fora das cidades, em periferias distantes e desequipadas e, muitas vezes, sob as mesmas condições de irregularidade e precariedade urbanística que marcava o mercado informal popular. Por outro lado, o mercado de classe média – que concentrou 2/3 das unidades financiadas pelo BNH – conheceu enorme expansão, gerando crescimento da verticalização residencial e constituindo novos eixos de centralidade nas cidades médias e grandes do país. Neste contexto, o exercício do planejamento urbano local, através dos Planos Diretores de Desenvolvimento Urbano, obrigatórios para os municípios que demandavam recursos federais para grandes investimentos públicos, eram meros documentos acessórios de justificativa de investimentos setoriais, paralelos e externos à própria gestão local, definidos e negociados em esferas e circuitos que pouco ou nada tinham a ver com esta gestão, associados a estratégias de zoneamento que disponibilizavam as escassas áreas urbanizadas da cidade para os produtos imobiliários de classe média. Este quadro permaneceu inalterado, tendo sido impactado nos anos 80 pela falência do BNH e queda no nível de investimentos no setor, e, do ponto de vista político, R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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pelo movimento pela redemocratização do país. A crise do modelo econômico implementado pelo regime militar, a partir do início dos anos 80, gerou recessão, inflação, desemprego e queda dos níveis salariais. Este processo teve enorme repercussão no Sistema Financeiro da Habitação (SFH), com a redução da sua capacidade de investimento, gerada pela retração dos saldos do FGTS e da poupança e forte aumento na inadimplência, gerado por um cada vez maior descompasso entre o aumento das prestações e a capacidade de pagamento dos mutuários. Vivia-se o clima da luta pelas eleições diretas para presidente e pela Constituinte, com grande mobilização popular, e a oposição ao BNH se inseria no combate à ditadura (Melo, 1993). Com o fim do regime militar, em 1985, esperava-se que todo o SFH, incluindo o BNH e seus agentes promotores públicos, as Cohabs, passassem por uma profunda reestruturação, na perspectiva da formulação de uma nova política habitacional para o país. No entanto, o BNH foi simplesmente extinto em 1986 e seu espólio foi assumido por outro banco, a Caixa Econômica Federal, enquanto as políticas setoriais de habitação, saneamento e transporte urbano passavam por distintos ministérios (Santos Junior, 2004, Maricato, 2006).

A AGENDA DA REFORMA URBANA E O MINISTÉRIO DAS CIDADES Desde o período da Constituinte, um movimento pela reforma urbana articulou movimentos sociais de luta por moradia a profissionais de várias áreas, como advogados, arquitetos, urbanistas, engenheiros, além de técnicos de prefeituras e segmentos da Universidade como parte da mobilização social que pressionava a Constituição de 1988 na direção da ampliação dos direitos humanos e cidadania. Especificamente na área de política urbana, a mobilização resultou na inserção de capítulo de Política Urbana na Constituição (artigos 182 e 183), em que se afirmava a função social da cidade e da propriedade, o reconhecimento e integração dos assentamentos informais à cidade e a democratização da gestão urbana – entendida como ampliação dos espaços de partipação e controle social das políticas. Na fórmula adotada neste capítulo, fruto do processo de negociação no interior do Congresso, se requeria uma legislação federal para regulamentar os instrumentos de manejo do solo urbano e as sanções pelo não cumprimento das funções sociais, assim como a elaboração de planos diretores locais como bases para estas definições no âmbito de cada um dos municípios. A partir daí, a luta pela renovação dos instrumentos de regulação urbanística, política urbana e planejamento territorial percorreram o caminho duplo de experiências locais e nacionais (Rolnik, Nakano, Cymbalista, 2008). Em 2001, foi aprovado em âmbito federal o Estatuto da Cidade, instituindo as diretrizes e instrumentos de cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana, do direito à cidade e de democratização de sua gestão. Em âmbito local, ações de urbanização progressiva de assentamentos precários e tentativas de implementação de reformas nos marcos regulatórios do uso e ocupação do solo começavam a penetrar no universo da gestão urbana, assim como se multiplicavam experiências de participação popular e controle social das políticas e do orçamento público, tais como orçamento participativo, conselhos gestores e programas autogestionários (Avritzer, 2003; Dagnino, Oliveira, Panfichi, 2006). Entretanto, este movimento em direção à construção de políticas urbanas includentes não foi imediatamente acompanhado pela formulação e revisão de um novo marco 34

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institucional e de organização do Estado no campo do desenvolvimento urbano nas instâncias federais. Em 2002, ganha as eleições presidenciais brasileiras Lula, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), um imigrante nordestino em São Paulo, ex-morador de favela e líder sindical metalúrgico. O PT, partido de esquerda, cuja base incluía membros da maior central sindical do país, intelectuais e membros da Igreja progressista e movimentos sociais, como sem-terra urbanos e rurais, foi ao longo dos anos 90 aumentando sua participação na cena político-institucional brasileira, assumindo governos locais e ampliando sua participação no Legislativo. Uma das marcas registradas desta trajetória foi a formulação de um “modo petista de governar”, que rompia com formas tradicionais de exercício da política brasileira, introduzindo novas práticas, como a participação direta dos cidadãos na gestão pública. Durante a campanha presidencial, o compromisso com uma intervenção no campo do desenvolvimento urbano consubstanciou-se no “Projeto Moradia”, que, entre outras propostas, incluía a criação de um Ministério das Cidades como locus para a formulação e implementação de uma política urbana, depois de quase vinte anos de institucionalidades erráticas e dispersas em distintos ministérios. Esta proposta foi assumida no início de 2003, com a nomeação de Olívio Dutra, também ele líder sindical, ex-prefeito de Porto Alegre e ex-governador do Rio Grande do Sul, conhecido por ter introduzido o orçamento participativo em seus mandatos como prefeito e governador. Para os atores ligados ao movimento social pela reforma urbana, a criação do Ministério das Cidades representava a possibilidade de avançar na democratização da gestão urbana, fazendo dela um dos pilares institucionais de sua agenda, ampliando os espaços de democracia participativa, até então experimentados sobretudo no âmbito local. A resposta a esta demanda, no interior do processo de organização do Ministério, se deu através da constituição de um Conselho Nacional das Cidades como parte integrante de sua estrutura e elemento central na formulação e negociação de políticas, e no qual tanto setores governamentais (dos três níveis de governo) como os segmentos da sociedade civil (setor empresarial, sindicatos, organizações profissionais, ONGs, entidades acadêmicas e de pesquisa e movimentos populares) são representados, eleitos através de assembleias por segmentos, entre delegados presentes em Conferências Nacionais. A primeira Conferência Nacional, realizada em 2003, contou com 2.500 delegados. À exceção dos 250 representantes do Poder Público federal, indicados pelo Executivo, seus delegados poderiam ou terem sido eleitos nas Conferências Estaduais (75%) ou indicados por entidades e organizações de caráter nacional (25%). A Conferência de 2003, que elegeu o Conselho Nacional das Cidades, foi precedida por 1.427 conferências municipais, 185 conferências regionais e 27 estaduais, envolvendo 3.457 municípios. O projeto inicial de construção do Conselho o concebeu como um campo de interações políticas, arena aberta na qual a trama de interesses em torno da política urbana tivesse a possibilidade de expressão e negociação e na qual estivessem representados, com grande peso, os principais demandatários destas políticas – sem-teto, sem-casa, moradores de assentamentos precários no país – além dos setores empresariais e sindicais envolvidos no setor, gestores públicos de municípios, estados e governo federal, ONGs, profissionais e pesquisadores do urbano. O Ministério incorporou também em sua estrutura e política outro ponto central da agenda da reforma urbana – as ações e instrumentos para garantir a função social da cidade e da propriedade urbana, que a Constituição e o Estatuto da Cidade haviam definido R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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2 Além do apoio através da disseminação de materiais didáticos – o KIT do Plano Diretor – com vídeo, cartilhas e materiais de referência técnica e a promoção ou apoio a promotores de Oficinas de Capacitação em todas as regiões do país (mais de 380 oficinas envolvendo 22.000 participantes entre técnicos e gestores locais e lideranças sociais), o Ministério também repassou recursos próprios ou de parceiros no âmbito do governo federal para apoiar a contratação de serviços por parte dos municípios, apoiando financeiramente a elaboração dos planos diretores de aproximadamente 1/3 dos municípios obrigatórios.

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como competências locais, dependentes da aprovação de planos diretores pelas câmaras municipais. Os novos instrumentos de gestão do solo urbano requeriam, de acordo com o texto constitucional e Estatuto da Cidade, a elaboração de planos diretores em todas as cidades com mais de 20.000 habitantes no país – 1.683 municípios – que deveriam ser aprovados nas câmaras municipais até outubro de 2006. Como o plano diretor transformou-se em condição para que instrumentos de validação da função social da propriedade pudessem ser implementados, desde 1989, quando coalizões “democrático-populares” venceram eleições em várias cidades brasileiras, teve início um processo de experimentação na direção de uma revisão conceitual e metodológica do planejamento urbano. Com base em proposta do Ministério, o Conselho Nacional das Cidades decidiu estruturar uma campanha pela implementação de Planos Diretores Participativos, dirigida para governos e sociedade civil nas cidades que estavam “obrigadas” a cumprir a lei. O objetivo da campanha era disseminar os novos conteúdos e os novos métodos que o planejamento territorial – e particularmente os planos diretores – deveriam incorporar, considerando a missão a eles atribuída pelo novo marco legal, considerando as realidades socioterritoriais de cada município, a “função social de cada segmento de seu território”, com base em um processo participativo de discussão e pactuação que deveria ocorrer em arenas públicas em cada cidade (Brasil, 2004a). Com base na proposta do Ministério, o Conselho Nacional das Cidades definiu uma estratégia de apoiar a organização de núcleos de mobilização e capacitação da campanha em cada estado do país articulando uma rede de parceiros em todo o território nacional constituída por entidades técnicas, acadêmicas, instituições de pesquisa, poder público estadual e municipal, movimentos sociais e populares e, em alguns estados, o Ministério Público. Com a formação de Núcleos da Campanha em todos os estados brasileiros e a elaboração de material de difusão e capacitação em várias mídias, utilizando para isso o próprio processo das conferências municipais, a campanha passou a trabalhar para sensibilizar, capacitar e monitorar os municípios “obrigatórios” em cada estado; assim como, em conjunto com o Ministério, possibilitar a assistência técnica e recursos para a elaboração dos planos diretores.2 Outro ponto central da agenda de reforma urbana – o direito à moradia – foi objeto de políticas e ações prioritárias do Ministério através da ampliação de recursos para financiamento da produção habitacional e urbanização de assentamentos precários, do reconhecimento e regularização fundiária plena dos assentamentos e, a partir da aprovação de lei federal oriunda de iniciativa popular, de criação e implementação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, de forma a articular recursos de subsídios oriundos dos orçamentos dos vários níveis de governo e dirigi-los para a promoção de Habitação de Interesse Social baseada em critérios definidos no âmbito de conselhos gestores eleitos em cada instância federativa. Entretanto, por limitações de espaço e escopo, elas, assim como as demais políticas promovidas pelo Ministério das Cidades – no campo do saneamento ambiental e mobilidade urbana – não serão objeto de análise neste artigo (Brasil, 2004b). Optamos por analisar aqui propostas de Reforma do Estado que tiveram como eixo a pluralização de atores e a diversificação de lugares de exercício da representação na elaboração e implementação da política urbana (Lavalle, Houtzager, Costello, 2006). A experiência de construção de políticas no Conselho Nacional das Cidades, assim como os processos de planejamento territorial participativo apostaram na construção de espaços públicos como locus de exercício da solidariedade cívica e de conquista de “direito a ter direitos” de parte importante dos brasileiros, inseridos de forma precária nas cidades e po36

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líticas urbanas. A agenda desafiava a máquina pública – burocracias estatais, partidos e lideranças políticas a produzir instituições capazes de gerar trocas e acordos entre os diferentes atores locais a respeito do futuro de sua sociedade, promover redes de atores trabalhando sobre problemas públicos, instalar instrumentos de mobilização dos cidadãos, criar normas para garantir a implementação destes acordos, ter capacidade estratégica de articulação política e, sobretudo, ganhar a confiança dos atores e reduzir as incertezas do sistema político. (Milani, 2006, p.232.)

Em 2005, em plena preparação da Segunda Conferência Nacional e campanha dos Planos Diretores Participativos, o ministro e seu gabinete são substituídos por Márcio Fortes, do quadro técnico-político ligado ao Partido Progressista (PP) do Rio de Janeiro (denominação que substituiu a antiga Arena, partido de situação no período autoritário), que já havia assumido vários altos cargos no governo federal desde os anos 80. A nomeação de Fortes para o Ministério das Cidades atendia à demanda do presidente da Câmara dos Deputados, do mesmo partido, em plena crise político-institucional que o governo Lula atravessava, em razão de denúncias de corrupção e compra de votos no Parlamento. Desde o início do governo petista, uma política de alianças que viabilizasse constituir maioria no Congresso (já que o PT havia elegido apenas 91 dos 513 deputados e 14 dos 81 senadores) pressionava para a mobilização dos recursos tradicionalmente utilizados na política brasileira para esta finalidade: distribuição de cargos no governo, atendimento pontual de demandas de investimentos na base dos deputados e, muitas vezes, a compra de votos. Apesar da entrada de novas representações no Legislativo, comprometidas com interesses populares e políticas includentes e redistributivas, elites poderosas, incluindo proprietários de terra, setores empresariais e oligarquias familiares, continuavam amplamente representadas no Congresso (Hunter, 2003; Hunter & Power, 2005). A mudança na direção do Ministério não interrompeu a campanha dos PDPs e nem as conferências e reuniões do Conselho Nacional. Entretanto, evidenciou de forma mais explícita os limites e contradições entre uma proposta de Reforma do Estado brasileiro na área de desenvolvimento urbano e o forte conservadorismo de sua estrutura, apesar da importante mudança de direção política representada pelo PT. Como veremos nas seções a seguir, não é por acaso que justamente esta, entre as várias áreas do Estado brasileiro, é profundamente afetada pela lógica política tradicional, fortemente estruturada no clientelismo, patronagem e controle por coalizões de interesses empresariais, reinventados no contexto urbano e metropolitano brasileiros. Para entendê-la é necessário analisar onde e como se dão os processos decisórios reais sobre os investimentos urbanos e sua relação com o sistema político e modelo federativo no país.

POLÍTICA URBANA – ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO, O REAL E O LEGAL No modelo de política urbana vigente no país impera a “ambiguidade constitutiva” já largamente identificada por historiadores e cientistas políticos como marca da política brasileira, ambiguidade que “produz fórmulas combinatórias entre o ‘real’ e o ‘legal’, o ‘público’ e o ‘privado’, reinventando suas fronteiras, mas trabalhando na direção de sua manutenção” (Gomes, 1998, p.502). R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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No caso da política urbana, o mundo “legal” representaria um poder centralizado e concentrado em um Estado moderno, assentado sobre bases impessoais e racionais, sendo exercido por uma burocracia técnica. No pólo oposto estaria situada a informalidade/ilegalidade, identificada sobretudo na autoprodução da cidade popular. Entretanto, formas combinatórias entre “público” e “privado” e legal/ilegal se reproduzem no interior do mundo “legal”, no qual o Estado se faz presente. Esta observação é importante porque é comum uma abordagem que atribui a “desordem” nas cidades à “falta de Estado”, sobretudo nos territórios populares. A nosso ver, esta assertiva é falsa na medida em que, se é verdade que faltam bens, serviços e espaços públicos nos territórios populares, esses só se constituem com e a partir da presença do Estado. Ausentes dos mapas e cadastros de prefeituras e concessionárias de serviços públicos, inexistentes nos registros de propriedade nos cartórios, os assentamentos informais têm uma inserção ambígua nas cidades onde se localizam. Modelo dominante de territorialização dos pobres nas cidades brasileiras, a consolidação destes assentamentos é progressiva, eternamente incompleta e totalmente dependente de uma ação discricionária do poder público – já que eles não se enquadram na semântica das normas urbanísticas. Na forma particular como se estrutura o Estado brasileiro na área de desenvolvimento urbano, a oposição legal/ilegal, assim como a delimitação entre os mundos privado e público nunca são absolutas. Tanto para os segmentos empresariais como para os autoconstrutores do habitat popular, a ação do Estado investindo em urbanização ou regulando o território é decisiva. Para o mercado formal de produção da cidade, a relação com o aparato estatal se dá através da produção e fornecimento de bens cujo demandatário é o próprio Estado – é o caso das empreiteiras de obras públicas e de concessionários de serviços urbanos como coleta de lixo, transporte, entre outras (Marques, 2003). Também ocorre pelo estabelecimento do marco jurídico das transações econômicas realizadas neste mercado, ou ainda por meio das leis e normas estabelecidas nos distintos níveis de governo que afetam a competitividade e rentabilidade de seus produtos, da política de tributação sobre os imóveis às normas de uso e ocupação do solo, das políticas de crédito imobiliário aos marcos regulatórios dos vários setores que constituem a política urbana. A atividade imobiliária, assim como qualquer outra atividade capitalista, incorpora um forte componente de risco (...) uma bem montada coalizão público-privada que canalize recursos públicos para a modernização prévia de determinadas “frentes imobiliárias” pode diminuir substancialmente ou até mesmo eliminar estes riscos. (Ferreira, 2007, p.221.)

Setores empresariais envolvidos na produção da cidade formal estabelecem conexões privilegiadas com segmentos burocráticos de agências públicas que detêm o controle sobre o encaminhamento dos processos decisórios na implementação de projetos e programas, assim como de controle urbanístico, garantindo a destinação de áreas da cidade para seus mercados e protegendo a rentabilidade de seus investimentos. Na área de desenvolvimento urbano, estes processos decisórios se dão no interior da burocracia de gestão do território, altamente permeada por redes de influência que articulam de setores empresariais a mandatos parlamentares e partidos políticos, já que empreiteiras de obras públicas, concessionários de serviços e incorporadoras e construtoras são os maiores financiadores de campanhas eleitorais locais. 38

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No Brasil, a gestão governamental do território se estrutura em “setores” (tais como habitação, saneamento, transporte, meio ambiente, urbanismo, patrimônio histórico, patrimônio público etc.) com seus respectivos marcos regulatórios e burocracias verticalizadas situadas em agências, empresas públicas, autarquias e órgãos de administração direta vinculados às esferas municipal, estadual e federal. A fragmentação institucional, constantemente abordada como responsável pela ineficiência e baixa capacidade gerencial, burocratização excessiva e desordem nas cidades, constitui, na verdade, parte de uma estratégia de maximização de interesses particulares de burocratas, parlamentares e empresários fornecedores e provedores e bens e serviços reproduzindo uma privatização cartorializada das políticas públicas (...) Neste processo de redes de influência é necessário acrescentar ainda a interferência das forças políticas de apoio à coalizão governante, que controlam a nomeação de pessoas para ocuparem os cargos considerados chave para o funcionamento operacional dos programas. (Silva, 2003, p.36-8.)

Se para o mercado formal o Estado brasileiro – em sua capacidade de investimento e aparato normativo – tem sido o principal referencial de indução ou obstaculização de expansão do setor, para os autoconstrutores do habitat popular a ação do Estado é também central. Esta relação, imersa em um terreno marcado pela ambiguidade, se dá através do grau de tolerância por parte do aparato estatal em relação a ocupações e demais atos de infração à legalidade estabelecida no marco jurídico, e do grau de acesso aos bens públicos – como infraestrutura e serviços urbanos – distribuídos pelo Estado. Embora tanto para os segmentos empresariais como para os autoconstrutores do território popular a ação do Estado sobre o urbano é essencial para sua própria existência e sobrevivência, estas relações são marcadas por assimetrias e gramáticas distintas. No pólo empresarial, a mobilização de um vasto aparato normativo formal é parte da estratégia de “privatização” do controle da cidade pelo capital, que se vale de uma “epistemologia imperial” para construir seu discurso, desqualificando e humilhando, em nome da ciência e da técnica, o conhecimento dos demais grupos sociais (Boaventura, 2003, p.14). Podemos tomar, entre muitos outros exemplos, a linguagem do planejamento urbano, e mais especificamente do controle do uso e ocupação do solo na cidade, para ilustrar o que acabamos de dizer. Não por acaso, trata-se de um código de grande complexidade e opacidade, estruturado pela lógica da rentabilidade e valorização do investimento imobiliário. Sua opacidade, por si mesma, já seria suficiente para “privatizar” o espaço de interlocução para “técnicos” diretamente envolvidos nas redes de influência do aparato político-burocrático. Considerando que a regulação do uso e ocupação do solo é justamente a norma de atribuição do território a determinados segmentos econômicosociais, a mobilização desta semântica específica tem como uma das principais funções resguardar valores imobiliários, garantindo-os mesmo no contexto de cidades habitadas majoritariamente por pobres. Em outras palavras, na cidade infraestruturada e regulada – correspondente a menos da metade do território urbano –, onde atuam os segmentos empresariais, são altíssimos os preços da terra e dos imóveis, se levarmos em consideração o PIB e a renda da população urbana (Smolka, 2003). Estes mercados, nutridos pela escassez de urbanidade na maior parte da cidade, incorporam todas as mais valias geradas pelos investimentos públicos, mantendo assim altos seus preços e, exclusivos seus produtos. Por outro lado, estes incrementos são pouco taxados, já que os impostos prediais e territoriais cobrados são, na maior parte das cidades, bastante baixos, protegendo os ganhos R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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D E M O C R A C I A 3 Segundo Smolka (2003), na América Latina os impostos sobre a propriedade imobiliária representam menos de 0,5% do PIB, quando em países como Canadá e EUA estão entre 3% e 4% do PIB.

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imobiliários.3 Nas áreas aptas a urbanizar são as normas de uso e ocupação do solo que definem o tipo de “produto imobiliário” que ali pode ser produzido. As tipologias previstas pela regulação urbanística e edilícia correspondem integralmente a produtos disponíveis neste mercado (multifamiliar vertical, loteamento, condomínio, unifamiliar horizontal etc.), sendo que para estes empreendimentos são destinadas as melhores localizações e os maiores potenciais de aproveitamento nos planos diretores e leis de uso e ocupação do solo. Desta forma se reproduz a exclusão de parcela significativa da demanda por cidade, bloqueando seu acesso aos territórios já urbanizados, ali gerando um processo de valorização quase que totalmente capturado por agentes privados. Já no território popular, a presença do Estado se dá, sobretudo, através da mediação política na distribuição de bens públicos (Graham, 1990). Considerando que a maior parcela dos investimentos em urbanização ocorrem quando os bairros já estão ocupados, e que esta demanda tem grandes dificuldades de ser atendida, a disputa pelo acesso ao investimento é acirrada e tem grande importância político-eleitoral. A condição de informalidade e/ou ilegalidade dos assentamentos gera impasses no interior dos órgãos burocráticos para que sejam reconhecidos como passíveis de consolidação, abrindo espaço para que esta demanda só possa ocorrer de forma seletiva e intermediada. Da combinação entre um processo de urbanização da pobreza e inserção precária destes moradores à cidade, bens e serviços públicos que melhoram sua condição de urbanidade se converteram em uma das mais importantes demandas populares, tendo surgido em torno destas mobilizações locais com reivindicações organizadas em relação à moradia, transporte, saúde, saneamento etc. Estas mobilizações, ativas desde o final dos anos 70 no cenário da política urbana, constituíram os chamados movimentos sociais urbanos, que, além de formas de pressão para a obtenção de bens públicos individuais, trouxeram novas formas de organização coletiva para além daquelas presentes nas formas clássicas de organização política, como partidos políticos e sindicatos (Paoli, 1995, p.32; Sader, 1988). Ao longo dos anos 80, com a retomada das chamadas “liberdades democráticas” – partidos e organizações sociais livres, eleições diretas e voto universal para os cargos de Executivo e Legislativo –, a relação entre o sistema político eleitoral e estes movimentos foi se tornando mais complexa. De um lado, a emergência de partidos – sobretudo o PT – autoidentificados como partidos “dos movimentos sociais” traria, para dentro das instituições da democracia formal e do aparato estatal, parte das agendas destes atores. Por outro, a lógica da competição político-partidária também penetra no universo dos movimentos, transformando sua cultura. Esta equação torna-se ainda mais complexa se considerarmos que a transição democrática no Brasil ocorreu através de um pacto restrito, interelites, que preservou as regras do jogo de representação de interesses, reproduzindo a tradição de mandatos individuais articulados em networks e máquinas político-eleitorais fortemente entremeados com a máquina estatal (Avritzer, 2003). À esquerda ou à direita no espectro político partidário, tanto os “estreantes” na sociedade política que emergiram do movimento sindical e popular como os “velhos caciques” da política teriam que competir pelo voto popular e assim, de alguma maneira, se relacionar à demanda por inserção à cidade reivindicada tanto pela população organizada em movimentos como por aquela mais ampla e desorganizada. É desta forma que os investimentos em urbanidade assim como tolerância, autorização ou mesmo promoção de assentamentos precários se converteram em um potente dispositivo eleitoral, com grandes possibilidades de retorno político para seus promotores, seja sob a forma do voto po40

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pular ou do acesso aos meios para o financiamento de campanhas. Como afirmamos, o território popular é permanentemente investido pelo mundo da política, que ali espera receber o prêmio por parte daqueles que foram seletivamente beneficiados com recursos públicos por seu intermédio (Avelino, 1994; Carvalho, 1997). O grau de controle dos governos locais sobre os recursos para estes investimentos – tanto aqueles vinculados à abertura de frentes imobiliárias como para urbanização de assentamentos precários – é, entretanto, bastante limitado. No atual modelo federativo brasileiro, em que pese o controle do uso e ocupação do solo ser uma competência local, o governo federal e em, menor medida, os governos estaduais controlam boa parte do processo decisório sobre os investimentos.

INVESTIMENTOS EM URBANIZAÇÃO – QUEM DECIDE? Na Constituição promulgada em outubro de 1988, os governos municipais tiveram reforçada a sua autonomia, passando a assumir um papel de maior importância na prestação de serviços de interesse local. O texto constitucional aprovado fortaleceu financeiramente os municípios, o que se deu muito mais pelo aumento da sua participação nas transferências constitucionais do que pela ampliação da sua capacidade tributária. De fato, a Constituição inovou muito pouco em relação à competência tributária municipal, mantendo basicamente os mesmos impostos destinados pelas Constituições anteriores. Os municípios têm à sua disposição tributos que se aplicam sobre atividades eminentemente urbanas: o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS). Entretanto, a grande maioria dos municípios do país é de base econômica rural (Bremaeker, 2006, p.5). Mesmo aqueles com dinâmica econômica urbana significativa, como vimos na seção anterior, tributam muito pouco as mais valias imobiliárias urbanas. Assim, mais de 70% dos municípios brasileiros obtêm 90% suas receitas através de transferências de outros níveis de governo. Nem mesmo os dois municípios mais populosos do país – São Paulo e Rio de Janeiro – conseguem ultrapassar a marca de 40% de receita própria (Idem, p.25) (Quadro 1). Quadro 1 – Receitas municipais por tipo de municípios. Tipos de municípios

Total de número de municípios por grupos

Total Brasil Até 5.000 hab. De 5.001 até 10.000 hab. De 10.001 a 20.000 hab. De 20.001 a 50.000 hab. De 50.001 a 100.000 hab. De 100.001 a 500.000 hab. Mais de 500.000 hab.

5.564,00 1267,00

Receitas fiscais

Outras receitas

100,00% 22,77%

(%)

(%)

(%)

91,10%

2,49%

6,42%

1290,00

23,18%

88,88%

4,31%

6,81%

1385,00

24,89%

87,78%

5,18%

7,04%

1037,00

18,64%

81,43%

7,86%

10,71%

319,00

5,73%

73,54%

11,34%

15,12%

229,00

4,12%

60,20%

19,77%

20,03%

37,00

0,66%

39,25%

39,89%

20,86%

Número

%

Receitas de tranferências

Fonte: Bremaeker, F. (2008). R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Considerando que a maior parte das receitas de transferências automáticas cobrem o custeio da máquina municipal, incluindo a prestação de serviços sociais básicos previstos constitucionalmente, a maior parte dos municípios depende das chamadas transferências voluntárias e/ou de acesso a operações de crédito para poder realizar obras e investimentos em infraestrutura urbana. Diferentemente do que ocorreu nas áreas de educação e saúde, na área de desenvolvimento urbano a Constituição não estabeleceu qualquer hierarquização de competências de gestão entre os níveis de governo. Segundo a Carta Federal, a implementação de programas nesta área é competência de qualquer um dos níveis da federação. Ao longo de todo o período analisado, o governo federal manteve os recursos – crédito ou recursos orçamentários – centralizados e geridos por uma burocracia fragilmente insulada (Arretche, 2000). As possibilidades de acesso a crédito para os municípios estiveram, entretanto, bastante restringidas em razão da política de ajuste das contas públicas, que estabeleceu maiores controles sobre gastos ex ante e ex post, limitando drasticamente as possiblidades de endividamento municipal (Alston, Melo, Mueller, Pereira, 2005, p.40). Com possibilidades restritas de acesso a crédito e limitadas receitas próprias, restaram aos municípios as chamadas transferências voluntárias, que ocorrem por meio de convênios dos municípios com os governos estaduais e federal, originando-se em processos de seleção conduzidos pelo Executivo (o chamado orçamento programável) ou pelo Legislativo (as emendas parlamentares). Emendas parlamentares são rubricas orçamentárias “carimbadas”, ou seja, com definição prévia não apenas do programa ou ação, mas do local preciso de sua destinação. Podem ser coletivas – de bancadas regionais ou estaduais – ou individuais. No caso das emendas individuais, normalmente é prefixado um valor anual por parlamentar, que pode alocar em ações finalísticas de qualquer setor. Embora todo o processo de definição e alocação do orçamento seja permeado por transações políticas, na literatura (e no senso comum) costuma-se atribuir à prerrogativa congressual de emendar o orçamento, e mais especificamente às emendas individuais, o papel de engrenagens centrais de um processo que se alicerça no individualismo dos políticos, dando lugar a uma distribuição clientelista e localista dos recursos públicos. (Limongi & Figueiredo, 2005, p.737.)

4 Estes mecanismos vão desde o caráter autorizativo – e não impositivo – do orçamento, o que permite grande discricionariedade em sua execução, através do controle do fluxo do gasto, o chamado “contingenciamento”, até a existência de instrumentos como o crédito suplementar, especial ou extraordinário, que permitem alterações durante a execução.

Entretanto, os próprios autores citados, entre outros, demonstraram que o Executivo mantém sob rígido controle todo o processo de elaboração e execução orçamentário através de normas e procedimentos institucionais que não permitem sua desfiguração pelo Legislativo4 (Alston, Melo, Mueller, Pereira, 2005). as emendas individuais não são privilegiadas pelo Legislativo (...) Ao executar recursos alocados por parlamentares mediante emendas individuais, o Executivo não está cedendo a pressões e deixando de executar sua agenda. A alocação de recursos feita pelos legisladores é complementar, e não contrária à do Executivo. (Limongi & Figueiredo, 2005, p.776.)

De fato, a parcela do orçamento federal destinado às emendas individuais tem-se mantido, pelo menos desde 1997, em torno de 2% do total, com pequenas variações positivas em 2001 e 2004. Tem-se mantido também relativamente estável o número total de 42

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emendas (em torno de 8.000), bem como a parcela de emendas individuais em relação às emendas coletivas (em torno de 90%) (SIAFI, 2007). A continuidade – mais ou menos nos mesmos termos – do perfil das emendas individuais e seu papel no orçamento público ao longo de mandatos presidenciais com agendas distintas, demonstra, além da pouca relevância para o centro da agenda, a alta funcionalidade política deste mecanismo, que, com um baixo custo, pode, em conjunturas específicas, apresentar alta rentabilidade do ponto de vista da governabilidade (Pereira & Mueller, 2002). Embora envolvendo valores pequenos, a emenda individual “carimbada” pode ter impactos positivos no sucesso eleitoral e sobrevivência política dos parlamentares. Se do ponto de vista dos grandes objetivos da coalizão governante as emendas têm pouca importância, é necessário ressaltar que no âmbito da competição política no município, base fundamental para definir a reeleição de um parlamentar, este mecanismo pode ser transcendente. assumir o “comando político” do município é tarefa vital para tentar controlar a oferta política e reduzir a insegurança. Esse direito tem correspondência com algumas obrigações, principalmente naqueles municípios cuja capacidade de arrecadação é insuficiente frente às despesas. O apelo eleitoral junto aos eleitores é feito justamente em nome da capacidade do candidato de intermediar recursos públicos para a comunidade. (Avelino,1994, p.238.)

Considerando as regras atuais de organização partidária e de competição eleitoral e os custos crescentes das campanhas eleitorais, para garantir sua sobrevivência política, os parlamentares necessitam não apenas de mecanismos de acesso à distribuição de recursos públicos como também de alternativas de financiamento de suas campanhas. O controle de postos-chave na máquina estatal, em condições de interferir nas regras de contratação de serviços e obras, assim como a garantia de um fluxo de recursos para alimentar esta máquina podem responder a esta dupla função – de provocar possíveis retornos eleitorais positivos por parte dos beneficiários diretos das obras e serviços, e também de recepção de possíveis prêmios por parte dos contratistas sob a forma de contribuições para custear campanhas. Não é por acaso que a área de desenvolvimento urbano – hoje gerida pelo Ministério das Cidades – tem sido, juntamente com a área da saúde, a que mais recebe emendas por parte dos congressistas (Quadro 2).

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Coletivas+ Relator Q

113 2.573.411.286

Individuais

Q

2889 1.242.389.162

106 1.794.866.505

Coletivas+ Relator

VAF

2744 1.121.892.895 266 4.127.781.032

1386 740.213.668

250 2.104.701.622

Individuais

Q 1.261.053.209

122 1.194.612.132

468 145.411.420

15

VAF

83

1218 582.536.540

221 1.834.449.736

631 266.267.500

VAF

Q

115 1.396.003.773

465 94.659.977

28

VAF

Q 2261 571.816.650

948.113.583

732 258.525.255

109 1.633.590.838

Q

882 9.660.890.962 1468 515.259.500 47

143.470.000

194 125.269.216

VAF

Q

132 677.301.778 388 72.527.000 20

117 1.333.670.416

VAF

3171 733.600.644

1.570.654.559 736 200.987.500

186 74.244.540

VAF

859 188.894.750 93 143.199.395

115 1.404.713.900

VAF

418 68.411.000 31 242 86.219.700

1197 18.150.145.880

216.995.000

534 95.548.000 184 864.827.242

1404 45.134.068.875 8024 3.510.344.000

498.673.011

292 76.922.300

Quadro 2 – Emendas parlamentares por ministérios do governo federal. 2004 2005 2006 2007 Individuais Coletivas+ Individuais Coletivas+ Relator Relator Órgão

Ministério da Saúde Ministério das Cidades Ministério da Educação Ministério do Esporte Ministério da Integração Nacional

Soma total de emendas por 7162 1.468.810.000 2027 20.806.967.177 7513 2.063.010.000 887 15.874.322.007 7789 2.943.223.501 período Q = Quantidade, VAF = Valor Aprovado Final

Fonte: Siafi, 2007.

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Se para o orçamento federal o percentual representado pelas emendas (incluindo as coletivas) é pouco relevante em relação ao total, para o Ministério das Cidades elas representam mais de 50% do orçamento aprovado e mais de 80% do orçamento executado (SIAFI, 2006). Trata-se de recursos para a construção de casas, pavimentação de vias, canalização de água, reforma de espaços públicos, enfim, de obras de urbanização normalmente dirigidas a consolidar assentamentos precários nas cidades do país que se abriga em um programa de emendas individuais criado anualmente pelo Congresso. No âmbito das emendas coletivas, as rubricas orçamentárias também abrigam obras nas cidades designadas pelos parlamentares. Várias das emendas coletivas – oriundas de bancadas estaduais e, portanto, destinadas genericamente aos municípios do Estado de origem destas bancadas – são na verdade combinações de emendas individuais (“rachadinhas”) destinadas a acomodar os pleitos de obras de urbanização de parlamentares que ultrapassaram os limites estabelecidos para o total das emendas individuais. Finalmente, são também muitas vezes definidos como emendas – normalmente coletivas – os recursos federais “carimbados” para grandes obras de urbanização (obras viárias e sistemas de transporte coletivo, como metrôs). É no interior, portanto, do jogo político-eleitoral que boa parte do processo decisório sobre a política urbana, especialmente no que se refere aos investimentos em obras e ampliação de serviços urbanos, ocorre. O acesso a crédito, como a recursos a fundo perdido, seja sob a forma de emendas parlamentares, seja sob a forma de convênios com os programas do Ministério, dependem essencialmente das relações que os governantes locais estabelecem com o governo federal, com intensa participação de mandatos parlamentares e networks.

NOTAS FINAIS Após a convocatória do Ministério das Cidades, mais de 4.000 municípios brasileiros promoveram processos locais de discussão de políticas de desenvolvimento urbano, seja através das Conferências Municipais, da elaboração de Planos Diretores Participativos ou da participação em Conselhos instituídos a partir destes processos. Uma grande diversidade de experiências foram vividas pelos que se envolveram nestes espaços, já que se espalharam por todo o país, articulando atores e incidindo sobre configurações político-territoriais as mais diversas. Em muitas cidades, debates públicos sobre temas de política urbana ocorreram pela primeira vez; em outras, tratou-se apenas de um procedimento formal – a convocação de uma audiência pública e seu registro em ata – para que o poder político local não pudesse ser acusado e eventualmente punido por descumprir a lei. Boa parte dos Executivos locais apostaram na realização destes processos na expectativa de poder, através do cumprimento da exigência legal, se credenciar para acessar recursos federais para obras de urbanização, uma vez que, como vimos, o atual modelo federativo de distribuição de receitas e gestão territorial não contempla as necessidades básicas locais de urbanidade. Descentralizar a gestão do uso do solo sem estabelecer uma organização do Estado que permita a coordenação de políticas entre níveis de governo e setores e uma capacidade local instalada para viabilizar a implementação de uma estratégia urbanística de longo prazo é condenar a prática de planejamento urbano local a um exercício retórico que, assim como em outros vários corpus normativos, funciona no mesmo regisR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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tro da “ambiguidade constitutiva”: trata-se de uma lei que pode ou não ser implementada, a depender da vontade e capacidade do poder político local de inseri-la no vasto campo das intermediações do sistema político. De fato, mesmo que o Estatuto da Cidade estabeleça a obrigatoriedade de vincular os ciclos orçamentários subsequentes à aprovação de planos diretores às suas definições e propostas, na área de desenvolvimento urbano, pouca autonomia real têm as arenas decisórias locais sobre estes investimentos – sejam elas participativas ou não –, uma vez que a área de desenvolvimento urbano do Estado brasileiro permanece estruturada em burocracias altamente setorializadas e centralizadas que funcionam através de processos decisórios bastante penetrados pelos interesses de atores econômicos e políticos que deles dependem para sobreviver. Este fato nos ajuda a entender algumas características da política urbana que bloqueiam as tentativas de implementação de uma agenda de reforma na direção de cidades pactuadas e planejadas democraticamente em uma esfera pública. Uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões aos espaços locais intermedeia a transferência de recursos para os municípios, tanto através das emendas como dos convênios e acesso ao crédito. Os recursos materiais do Estado desempenham um papel crucial na operação do sistema; os partidos políticos – isto é, aqueles que apóiam ou participam da coalizão de governo – têm acesso a inúmeros privilégios através do aparelho de Estado. (Nunes, 1997, p.32.)

A área de desenvolvimento urbano é particularmente suscetível a estas práticas: como os recursos são geograficamente determinadas, microinvestimentos nas periferias contribuem para sustentar mandatos em eleições sucessivas. Os pequenos valores orçamentários envolvidos, insuficientes para garantir condições de urbanidade básica, apresentam, no entanto, resultados visíveis a curto prazo e, portanto, possibilidades de retribuição por parte do eleitor. Atores políticos, especialmente aqueles envolvidos no jogo político-partidário, estão geralmente mais interessados nas consequências de suas ações a curto prazo em razão da temporalidade da política eleitoral. Agendas complexas e grandes reformas institucionais, com efeitos necessariamente de longo prazo, só mobilizarão apoio destes atores se ganharem grande relevância política, ou quando estes não vêem ameaçados, no curto prazo, a retribuição do eleitor. (Pierson, 2000.)

De um lado, com a garantia de bases populares através da distribuição seletiva e individual de benefícios e, de outro, com os investimentos em obras – e regulação urbanística – articuladas à criação de novas frentes de expansão imobiliária, este modelo contribuiu para garantir a sustentação política das coalizões de governo junto às elites e ao poder econômico ao mesmo tempo apoiando-as pelo voto popular. Este modelo de Estado e sistema político, que compõem o que descrevemos como a “lógica da desordem”, posto em movimento na fase urbano-industrial de nosso desenvolvimento urbano e construído no interior da chamada “transição democrática”, continuou em vigor, mesmo sob o comando de um governo de origem operária e popular. Entretanto, não queremos afirmar com isso que uma proposta de reforma tributária e desenvolvimento do modelo federativo, capaz de sustentar governos locais com capacidade administrativa e técnica e recursos para gerir seu território, seria a condição necessá46

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ria e suficiente para potenciar processos de planejamento pactuados na esfera pública. As gramáticas políticas que conformam as relações Estado–Sociedade no Brasil atravessam os âmbitos federativos através de um intrincado conjunto de relações que envolvem grupos municipais, estaduais e federais, baseados numa hierarquia de vínculos e favores que incluem empregos no governo, acesso a recursos e prestação de bens e serviços. Os partidos políticos desempenham papel crucial na ligação entre estas gramáticas e as normas universalistas da democracia representativa instalada no Brasil, de tal maneira que “corretores” no mercado de votos (que por sua vez asseguram posições no mercado de bens e serviços ao Estado) compõem muitas vezes quadros das máquinas partidárias ou são funcionários de gabinetes legislativos. Longe de marcarem práticas que se dão apenas no interior do aparato estatal, em suas relações com a sociedade, estas gramáticas penetram e estruturam relações de poder também no interior da sociedade civil. Ao examinarmos as relações políticas que se deram no interior da construção e implementação do Conselho Nacional das Cidades, assim como em sua relação com o ministério e o governo como um todo, é possível identificar que, além da inovação político-cultural, também ali estiverem presentes e vigorosos o clientelismo, o corporativismo, a tecnocracia elitista e a ambiguidade. Desta forma, refutamos uma visão simplista e apologética da sociedade civil, considerada como pólo de virtudes democratizantes e o Estado como “encarnação do mal” (Dagnino, Oliveira, Panfichi, 2006, p.16). Nos Conselhos, assim como no interior do Estado e no vasto campo que constituem as relações de poder na sociedade brasileira, são múltiplos os projetos políticos, de democracia e de país, em permanente disputa. Assim, ao mesmo tempo que podemos identificar na experiência de elaboração dos Planos Diretores e de atuação do Conselho Nacional das Cidades a força conservadora de uma cultura política fortemente entranhada na relação Estado–atores sociais, também devemos apontar os elementos de inovação e ruptura que estes processos trouxeram. Desde logo, o conteúdo dos debates que se abriram nas cidades, apesar de pautados pelo Ministério, e, desde a eleição do Conselho, com ele negociado previamente, incorporou questões e projetos locais que produziram no âmbito de cada cidade novos agenciamentos e abriram novas pautas na agenda da política urbana.5 A ideia de construção pública e coletiva de um projeto de cidade, alicerçada sobre a definição de sua função social lançada pelo Estatuto das Cidades e presente na Campanha dos Planos Diretores, esbarrou, como já demonstramos, na blindagem semântica operada pela linguagem do planejamento urbano. Entretanto, não foram poucas as cidades onde movimentos e organizações da sociedade civil interviram ao propor outras direções e lograr, em conjunto ou em oposição a representantes do Executivo e Legislativo, e muitas vezes mobilizando o Judiciário, sobretudo através do Ministério Público, incluir instrumentos de democratização da gestão e do território. Mas, mesmo para aqueles que lograram construir planos minimamente pactuados, o grande desafio é ainda a sua implementação. Mais do que uma suposta “vontade política” de seguir um plano diretor, o governo local carece claramente de incentivos para fazê-lo, já que, como demonstramos, os processos decisórios sobre os investimentos e o destino da cidade são, no atual modelo federativo e sistema político brasileiros, estruturados sob outra lógica. O avanço da Reforma Urbana no Brasil carece, portanto, além da tessitura de uma nova gramática política alicerçada no fortalecimento de espaços de exercício da democracia direta e controle social – eixos tradicionais de sua agenda –, da formulação de um proR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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5 Entre inúmeros temas que entraram na agenda da política urbana a partir deste processo, destacamos a regularização fundiária plena dos assentamentos informais.

D E M O C R A C I A Raquel Rolnik é professora doutora da FAU/USP. Relatora Internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Secretária Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades (2003-2007). Email: [email protected]. Artigo recebido em agosto de 2009 e aprovado para publicação em setembro de 2009.

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jeto de reforma política e de desenvolvimento do atual modelo federativo de governo e gestão urbana, elementos fundamentais para a consolidação da democracia plena no país.

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B S T R A C T In Brazil the nineties represented years of institutional achievements in the field of housing and urban rights, since the 1988 Constitution, which included the principles of social function of cities and properties, the recognition of tenure rights for slum dwellers and the direct participation of citizens in the decision making process of urban policies. Those propositions have been the pillars of the Urban Reform agenda, which had penetrated into the national governments scope since the creation of the Ministry of Cities, under Lula’s administration. This article evaluates the limits and possibilities for the implementation of this agenda through the analysis of two policies proposed by the Ministry: the National Council of the Cities and the Campaign for Participatory Master Plans. The approach is centered in the organization of Brazilian State in the sector of urban development, in its relationship with the political system and the features of the country’s democracy.

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Participatory planning; urban policy; democracy.

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A OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CONSTRUIR E O SOLO CRIADO UMA NECESSÁRIA AVALIAÇÃO DAS MATRIZES CONCEITUAIS V E R A F. R E Z E N D E F E R N A N D A F U RTA D O M. TERESA C. OLIVEIRA PEDRO JORGENSEN JR.*

* Colaboração de Isabela Bacellar.

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E S U M O Este artigo contempla uma avaliação sobre as matrizes conceituais que orientaram a construção da noção da Outorga Onerosa do Direito de Construir, instrumento definido no Estatuto da Cidade para integrar a política urbana municipal das cidades brasileiras. Este trabalho propõe uma análise do longo caminho percorrido desde os primeiros debates até a edição de sua versão atual no Estatuto da Cidade, entendendo esta avaliação como necessária para uma melhor compreensão das potencialidades da outorga onerosa e das questões que permeiam os atuais debates sobre sua implementação em diferentes municípios. Para tanto, o trabalho realiza uma sistematização do extenso material bibliográfico que aborda o instrumento, assim como das questões pertinentes ao Solo Criado, conceito que lhe dá origem, percorrendo as décadas de 1970, 1980 e 1990.

P A L A V R A S - C H A V E Outorga onerosa do direito de construir; Solo Criado; Estatuto da Cidade; direito de construir; instrumentos de política urbana. INTRODUÇÃO Este artigo1 recupera o caminho da construção teórica da noção de Outorga Onerosa do Direito de Construir (Outorga) e da discussão de sua possível prática, a partir da análise de material produzido sobre o tema ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990 e destacando as questões principais presentes ao longo dessas décadas. O material analisado contempla artigos, livros, conclusões de seminários e o conjunto da legislação proposta ou aprovada sobre o tema. O objetivo desta avaliação das matrizes conceituais do instrumento é contribuir para uma melhor compreensão das potencialidades da Outorga e das questões que permeiam os atuais debates sobre sua implementação pelos municípios brasileiros. Embora a Outorga só apareça na normativa geral brasileira como instrumento de política urbana em 2001, através do Estatuto da Cidade, seus fundamentos remontam à década de 1970, e mesmo a sua aplicação se encontra prevista por municípios a partir do início da década de 1990. O instrumento é inicialmente denominado Solo Criado, denominação que evolui já na década de 1990, quando de sua aplicação pelos municípios, para Outorga Onerosa do Direito de Construir, e que é consagrada pela Lei Federal 10.257/2001. Com o objetivo de reconstruirmos a evolução do conceito de Solo Criado e das bases da Outorga, retornamos inicialmente às referências internacionais, exemplos de utiliR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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1 Este artigo é fruto de pesquisa realizada pelos autores para o Lincoln Institute of Land Policy.

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zação de instrumentos semelhantes ou que indiquem um maior controle sobre a terra urbana em outros países. Posteriormente, com base na literatura produzida sobre o instrumento em questão, apresentamos a sua construção e contornos teóricos, as justificativas e potencialidades contempladas quando de sua proposição e os temas recorrentes que alimentaram os debates e discussões técnicas por quase três décadas, empreendidos por estudiosos das cidades, juristas, economistas, arquitetos e urbanistas. Alguns temas recorrentes são: a criação de solos adicionais e sua relação com a densidade dos bairros, a necessidade de compensação da sobrecarga sobre a infraestrutura urbana, e a necessária recuperação por parte do poder público da valorização da terra resultante do processo de urbanização em termos gerais. Outras questões se encontram imbricadas nas formulações da noção, em que se destacam: a constitucionalidade do Solo Criado ou Outorga, não só quanto à possibilidade de separação entre o direito de construir do direito de propriedade, mas também quanto à competência dos municípios para instituí-lo, e a adoção de um índice básico único e até unitário para a aplicação do instrumento. Essas questões, entre outras, estão relatadas e relacionadas aos autores que compartilham determinadas posições, como veremos a seguir.

AS PRINCIPAIS REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS

2 O Plano de Chicago propunha uma alteração na unidade de controle de desenvolvimento, tradicionalmente fixado no lote individual, para o distrito como um todo, possibilitando que lotes dentro de um mesmo distrito abrigassem densidades diferentes (Costonis, 1974). 3 John Costonis vem algumas vezes ao Brasil para divulgar a experiência do Plano de Chicago e discutir os conceitos do Solo Criado, a convite do CEPAM.

As primeiras experiências internacionais documentadas relacionadas com o Solo Criado revelam objetivos e contextos muito diversos e datam, em sua maioria, do início da década de 1970. Todas, no entanto, se não separam diretamente o direito de construir do direito de propriedade, limitam e submetem o direito de construir ao interesse coletivo ou instituem a possibilidade de se transacionar ou transferir esse direito de um lote para outro através da transferência de direitos construtivos. Surgem como uma alternativa aos efeitos negativos da urbanização a partir da constatação das limitações de outros instrumentos, em especial o zoneamento, no encaminhamento de soluções para os problemas das cidades. A preocupação com um mecanismo semelhante ao Solo Criado é expressa inicialmente em 1971 na Itália, quando técnicos ligados à Comissão Econômica da Europa, das Nações Unidas, e especialistas em política de habitação, construção e planejamento urbano defendem em documento a necessária separação entre o direito de propriedade e o direito de construir. Argumentam que esse “deve pertencer à coletividade e não pode ser admitido senão por concessão ou autorização administrativa a particulares”. (MEMORANDO..., 1977, p.3) Dentre as primeiras experiências internacionais, ganha destaque a experiência americana exemplificada no Plano para a cidade de Chicago2 (1973), que demonstra o uso de dois instrumentos: space adrift e zoning bonus. O primeiro (na tradução literal, espaço flutuante) como parte de uma política de preservação de imóveis, previa a transferência do potencial construtivo de um lote (que acomodasse um edifício histórico) para outro ou outros, com o objetivo de se compensar o proprietário do imóvel que se pretendia preservar quando da não utilização total do potencial construtivo permitido. (Costa & Santos, 1977; Costonis,3 1974). O segundo instrumento (numa tradução literal bônus de zoneamento) previa a possibilidade de se permitir coeficientes de aproveitamento do solo maiores, e, portanto, mais lucrativos para os empreendedores, exigindo-se em contrapartida o financiamento de uma 52

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melhoria ou equipamento a critério do poder local (Costa & Santos, 1977). A crítica a este instrumento é a de que, ao contrário da transferência de potencial, em que só existia uma redistribuição de densidades já aprovadas pelo zoneamento, os bônus injetavam aumentos de densidade na comunidade que, se não fossem bem controlados, poderiam criar demandas por serviços públicos que a cidade não poderia atender. A experiência francesa foi provavelmente a que mais influenciou as primeiras experiências brasileiras. Em 1975, uma nova política fundiária e de reforma urbana é formulada na França, visando aumentar a eficácia de controle do uso e ocupação do solo; reduzir as desigualdades sociais decorrentes do zoneamento, que provoca a valorização diferenciada da terra; e aumentar a participação da coletividade no processo de planejamento através da redistribuição de responsabilidades entre o Estado e as Comunas (SÃO PAULO. EMURB, 1977). Na experiência francesa, o direito de construir acima de uma densidade construtiva básica só poderia ser obtido diretamente do Estado, havendo a possibilidade de transferência do coeficiente de ocupação do solo nos casos de imóveis tombados ou a preservar ou em áreas que justificassem a não urbanização. Define-se um teto legal de densidade (plafond légal de densité – PLD)4 estabelecido como único para todo o país, igual a uma vez a área do terreno, com exceção de Paris, onde é fixado em uma vez e meia a área do terreno. Nos casos em que a legislação permita que esse limite seja ultrapassado, a edificação que exceder o teto é subordinada a um depósito pelo beneficiário à prefeitura, correspondente ao valor do metro quadrado do terreno, na proporção da área em excesso. Ao PLD são atribuídos os objetivos concretos de luta contra a segregação social, através da redução dos preços fundiários, redução da densidade das áreas centrais e aumento dos recursos locais. Esses dois últimos, contraditórios, segundo Granelle (1981), já que sem a promoção do adensamento não se poderia obter um aumento dos recursos. No caso francês, a intenção original, de dissociar o direito sobre o solo do direito sobre o espaço, não prevalece por razões constitucionais, adotando-se uma concepção fiscal. Embora a sua análise inicial leve em conta um pequeno período de 5 anos, ainda segundo Granelle (1981), o PLD fez com que os incorporadores, em grande parte, se adequassem aos limites, optando por orientar as suas atividades para obras de recuperação de edificações em áreas centrais ou de novas construções na periferia. A consequência foi a geração de um volume reduzido de recursos com a aplicação do instrumento. Na França, na década de 1980, o PLD é objeto de várias emendas, o que acaba com a sua supressão na maioria dos municípios. Em 1992, no Seminário Solo Criado, realizado no Rio de Janeiro, Granelle apresenta as modificações normativas5 que alteraram a aplicação do instrumento e avalia os efeitos após 16 anos de sua instituição: “Um efeito positivo é a tendência à redução dos preços da terra... e também a diminuição da diferença de preços centro-periferia. Talvez o único efeito perverso que se possa citar do PLD seja a retenção da terra pelos proprietários no primeiro período de aplicação da lei” (p.11). Na Itália, o governo propõe, em 1975, uma lei que estabelece a separação do direito de construir do direito de propriedade. O direito de construir somente poderia ser exercido mediante concessão da municipalidade ao proprietário da área, “o qual deve contribuir para as despesas necessárias com agenciamento e equipamento da área”, exigindose o pagamento de uma determinada quantia como compensação (Costa & Santos, 1977, p.92). As construções só poderiam ser realizadas de acordo com os objetivos traçados por Planos Plurianuais de atuação urbanística, elaborados pelas grandes comunas, que tamR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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4 Instituído através da Lei 75-1328 de 31/12/75 (“Code de l’Urbanisme”).

5 A Lei de 29/12/82 oferece, sobretudo aos municípios com mais de 50.000 habitantes, a possibilidade de aumentar o PLD até 2 (1,5 até 3 em Paris). A Lei de 18/07/1985 prevê que os Conselhos Municipais podem aumentar o PLD. Em 23/12/86, nova lei reforma fundamentalmente o PLD ao permitir sua revogação pelos municípios (Granelle, 1992, p.6).

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6 Permanece, contudo, para uso do proprietário, uma densidade residual de 3% da área do terreno. Sobre o assunto, ver Renard (1993).

7 Esse princípio afirma-se, também, para fins de desapropriação de um terreno, quando é considerado o valor agrícola, ou seja, o valor descolado da possibilidade de aproveitamento do terreno para fins urbanos (Lira, 1981).

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bém determinariam os prazos para a urbanização das áreas (Costa & Santos, 1977; SÃO PAULO. EMURB, 1977). A proposta transforma-se na Lei 10/77, que estabelece que a execução das obras resultantes de atividade que envolva transformação edilícia e urbanística do solo fica subordinada à concessão da administração local (art. 1°). O direito de construir não mais se insere como uma manifestação natural do direito de propriedade e passa a constituir uma concessão do Estado.6 Na tramitação do projeto que resultou na lei surge, entretanto, a preocupação da constitucionalidade dessa restrição ao direito de construir (Lira, 1981). As primeiras decisões da Corte Suprema italiana consideram inconstitucionais alguns dispositivos da nova Lei, mas posteriormente decide-se sobre a sua constitucionalidade e o ordenamento italiano passa a reconhecer uma posição inicial de propriedade do solo correspondente ao terreno sem capacidade de edificar.7 Outros exemplos de experiências internacionais que, de alguma forma, submetiam o direito de construir à coletividade também são descritos na literatura. A Grã Bretanha, já em 1947, aprova um dispositivo legal que prevê que os proprietários que detivessem uma autorização para construir deveriam pagar ao Estado ou à coletividade uma soma igual à totalidade das mais-valias que suas terras sofreriam em consequência de obras públicas. Este dispositivo é abandonado no pós-guerra por ser considerado um freio ao desenvolvimento (Costa & Santos, 1977). Na Espanha, para lidar com a escassez de terra urbanizada, a partir da década de 1950 procura-se forçar o aproveitamento de terrenos em áreas urbanizadas (“edificación forzosa”) (Lira, 1983). Posteriormente, na década de 1970, a partir da Lei do Solo de 1975, busca-se resgatar parte das mais-valias urbanísticas através da disposição gratuita de todo o solo correspondente às infraestruturas e aos equipamentos urbanos, pelo mecanismo de compensação em solo edificável (Costa & Santos, 1977). Em meados da década de 1970, a Colômbia aprova uma lei que fixa, entre outros dispositivos, a extensão vertical da propriedade do solo urbano. A ideia subjacente é de que o domínio do espaço aéreo pertence à sociedade, e a lei propõe uma limitação de altura inerente ao direito de propriedade, a partir da qual o volume de construção deverá ser adquirido das autoridades locais. Em vez de se pensar em criação de solo, é proposta uma limitação de altura, fazendo-se, assim, uso de uma dimensão física como elemento básico para a restrição. Na década de 1970, como vemos, a questão fundiária, expressa principalmente pela escassez de terra urbanizada e pela necessidade de controle sobre o aproveitamento da terra, se encontra incluída entre as preocupações de diversos países. Como resultado, em 1976, a Conferência das Nações Unidas sobre os Assentamentos Humanos “Habitat”, realizada em Vancouver no Canadá, contempla entre as suas conclusões o princípio geral (n°10): “A terra é um dos elementos fundamentais dos assentamentos humanos. Todo Estado tem direito a tomar as medidas necessárias para manter sob fiscalização pública o uso, a propriedade, a disposição e a reserva de terras. Todo Estado tem direito a planejar e administrar a utilização do solo, que é um de seus recursos mais importantes, de maneira que o crescimento dos centros populacionais tanto urbanos como rurais se baseiem num plano amplo de utilização do solo” (MEMORANDO..., 1977, p.4). Reflexos da experiência internacional e como são tratadas as questões que fundamentam, especialmente, o Solo Criado ou outros instrumentos de controle da terra urbana, podem ser observados na literatura brasileira produzida no Brasil nas décadas de 1970, 54

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1980 e 1990, destacando-se trabalhos de Azevedo Netto (1977a), Costa & Santos (1977), Lira (1983, 1991), E. Azevedo & Mazzei de Alencar (1993), e do próprio Granelle, que por duas ocasiões (1981, 1992a e 1992b), em artigos publicados ou divulgados no Brasil, apresenta e avalia a aplicação do PLD na França. As experiências estrangeiras certamente influenciaram o curso do debate no Brasil sobre o Solo Criado e suas variantes. No entanto, Azevedo Netto (1977a) refuta a crítica de que o conceito seja importado, afirmando que o Solo Criado é um “conceito puramente brasileiro, nosso, paulista. Não foi importado, ninguém o encontrará em nenhum documento técnico, em nenhuma legislação do mundo todo” (p.44).

A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO E A DISCUSSÃO NO BRASIL, UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA Ao analisarmos a produção sobre o tema, sob a forma de artigos, propostas de leis ou conclusões de seminários, percebemos uma distinção entre aqueles realizados nas décadas de 1970 e 1980 e os produzidos na década de 1990. Os primeiros buscam principalmente justificar o instrumento, conceituá-lo e dirimir dúvidas quanto à sua constitucionalidade e à necessidade ou não de se considerar destacável o direito de construir do direito de propriedade para a sua aplicação. Os textos produzidos na década de 1990, após a Constituição de 1988, coincidem ou são imediatamente posteriores à previsão do instrumento em alguns planos diretores municipais. Com a tarefa de conceituação da Outorga já efetuada, esses textos enfocam principalmente seus possíveis efeitos e procedimentos para a sua aplicação. A maioria dos trabalhos nas décadas de 1970 e 1980 toma como ponto de partida a reflexão sobre o processo de adensamento e verticalização das cidades e a evidente impossibilidade de inclusão dos grupos de diversos níveis de renda na oferta de seus bens, entre eles a moradia e a infraestrutura viária e de saneamento, a partir de instrumentos tradicionais de regulação urbana. No elenco das justificativas para o instrumento, há uma concordância com diferentes nuances entre diversos autores. Num primeiro conjunto de argumentos, é apontada a valorização diferenciada da terra que beneficia proprietários, resultante em grande parte de normas de uso e ocupação e de investimentos públicos, justificando mecanismos que recuperem essa valorização para o poder público. Estabelecer uma maior justiça social entre proprietários, já que todos teriam o mesmo direito de construir, aparece como um dos objetivos. Nessa vertente estão os trabalhos e afirmações de Moreira Lima, Azevedo Netto, Ambrosis & Nogueira Filho (1975), Azevedo Netto, Moreira Lima, Ambrosis & Nogueira Filho (1977), novamente Azevedo Netto (1977a), Eurico Azevedo (entrevista apud Brasileiro, 1977) e Hori (1977). Na década de 1990, E. Azevedo & Mazzei de Alencar (1993) destacam para o instrumento a função de equidade social, assegurando igualdade de direitos de construir. Silva & Saule Jr. (1993) invocam a questão da justiça social, atribuindo ao instrumento um caráter redistributivo de rendas fundiárias, ao propor a distribuição, com equidade, dos custos e benefícios dos investimentos públicos. Ribeiro & Cardoso (1991) justificam, além de sua potencialidade como gerador de recursos que, de forma compensatória, financiariam programas habitacionais e de urbanização de áreas populares, a função de diminuir a escassez social de terra urbanizada. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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8 Trata-se do trabalho denominado “Uma política para utilização do solo urbano”, de 1976, reproduzido na CJ Arquitetura, 1977.

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A necessária subordinação do poder econômico ao interesse geral está expressa em Seabra Fagundes (1977), Fortuna (entrevista apud Brasileiro, 1977) e Moreira (1977). Hori (1977) o justifica também para compatibilizar o direito de propriedade com a função social da propriedade. Destacam-se, ainda, a verticalização e o adensamento das cidades, com resultados nefastos para a qualidade de vida e para a saturação dos serviços públicos e das áreas livres e públicas. O Solo Criado se colocaria nessas situações para restaurar o reequilíbrio urbano, principalmente entre bens e serviços públicos por um lado e demanda, por outro, consequentes do processo de adensamento. Encontram-se nessa linha os trabalhos e manifestações de Azevedo Netto e outros (1977), Mange (1977), Hori (1977), Contador (1977), Lira (1981, 1983), E. Azevedo (entrevista apud Brasileiro, 1977). A justificativa para o Solo Criado baseada no que já é praticado em relação aos parcelamentos é afirmada por Azevedo Netto e outros (1977), Contador (1977), Hori (1977) e Silva Cordeiro (1977). Fortuna (entrevista apud Brasileiro, 1977, p.90), também afirma: “Do mesmo modo que o poder público exige normalmente dos loteadores a reserva de áreas para circulação e instalação de equipamentos, deve exigir do criador de solos superpostos a contrapartida para fazer face ao esforço do mesmo poder público no sentido de manter ou aumentar a qualidade de vida já existente.” Também nessa linha está Campos Filho (1977), adicionando, ainda, ao instrumento a função de uniformização dos preços do solo urbano em áreas legais e de redirecionamento de parte da poupança nacional. Junto com o IPTU progressivo, o instrumento traz, a seu ver, maior estabilidade e segurança para o mercado imobiliário. Ferraz (entrevista apud Brasileiro, 1977), dentro dessa vertente, divisa no instrumento um papel regulador do mercado imobiliário. Uma outra vertente de justificativas, ligada à anterior, enfoca diretamente a questão da carência de recursos públicos para atuar no processo de urbanização. Nessa linha encontra-se a tese proposta em 1976,8 com significativo impacto nos meios políticos e empresariais, pelo prefeito de São Paulo, Olavo Setúbal, no XX Congresso Estadual de Municípios, no Guarujá. A FORMULAÇÃO E A EVOLUÇÃO DO CONCEITO A revisão bibliográfica nos mostra que, apesar das variações nas afirmações de natureza jurídica ou urbanística, existe uma relativa homogeneidade na formulação inicial do conceito, desde a sua primeira definição, e em sua evolução: “De um ponto de vista puramente técnico, toda vez que uma construção proporcionar uma área utilizável maior do que a área do terreno, haverá criação do solo. De um ponto de vista prático, poderá ser considerado como solo criado, a área construída que exceder uma certa proporção de área do terreno. Baseado neste conceito de solo criado podemos propor três novos instrumentos extremamente importantes para controle do uso do solo, a saber: coeficiente de aproveitamento único; transferência de direitos de construir; proporcionalidade entre áreas construídas e áreas de uso público” (Azevedo Netto et al., 1977, p.9-10). Na mesma direção de entendimento, quanto à relação entre Solo Criado e transferência de direitos de construir, encontra-se Grego (1981), que define a noção corrente de solo criado como: “uma figura jurídica mediante a qual limita-se a dimensão permitida de construção a um percentual da área do terreno, estabelecendo-se que a edificação acima do parâmetro somente será permitida desde que se dê a aquisição do respectivo direi56

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to de construir que seria alienado ao interessado por outro particular ou pelo Poder Público (na parte relativa a suas praças e áreas verdes)” (p.1). A noção do coeficiente único também se difunde: “Em sentido genérico, pode-se definir solo criado como a criação de áreas adicionais de piso utilizável não apoiadas diretamente sobre o solo. É a criação de piso artificial. A ideia do solo criado pressupõe a adoção de um coeficiente único de aproveitamento do solo. É partindo-se dessa ideia que se pode chegar a uma concepção de solo criado stricto sensu, quando se terá que solo criado é o excesso de construção (piso utilizável) superior ao limite estabelecido em função do coeficiente único de aproveitamento” (Lira, 1983, p.6). Dallari (in Seminário IDEPE, 1987) reforça esta noção, e remete a criação de solo ao conceito de outorga: “A ideia do solo criado – todo mundo conhece – se baseia fundamentalmente no estabelecimento de um potencial de edificação uniforme. Estabelecido esse potencial de edificação, que pode ser uma vez a área do terreno, o que passasse disso seria solo criado, ou seja, cada vez que se construísse, por exemplo, um andar, haveria criação de solo; havendo criação de solo, haveria necessidade de uma outorga do Poder Público, haveria possibilidade de cobrança por parte do Poder Público” (p.140). Após a promulgação da Constituição Federal em 1988, o discurso sobre o instrumento passa a enfatizar a questão da recuperação para a coletividade dos benefícios que propicia para os fins de financiamento de infraestrutura e serviços públicos. A ideia pode ser encontrada em diversos autores, como em Ribeiro & Cardoso (1991): “Trata-se de um mecanismo que permite a repartição entre proprietários da terra, incorporadores e poder público, dos benefícios privados do processo de urbanização criado pela iniciativa privada, mas que se funda no investimento que o conjunto da sociedade realiza na forma da implantação dos equipamentos e da infraestrutura urbana. Ou seja, trata-se da apropriação, pela autoridade municipal, de parte da valorização fundiária e imobiliária” (p.55). A abordagem jurídica e a urbanística se fundem à ideia da geração de recursos públicos: “O solo criado é figura jurídica de natureza urbanística, mas que pode ser extremamente eficaz como meio de obtenção de recursos para obras e serviços públicos. A figura jurídica do solo criado representa a admissibilidade da dissociação do direito de construir do direito de propriedade, embora limitada a determinadas situações de interesse urbanístico” (E. Azevedo & Mazzei de Alencar, 1993, p.7). Este conjunto de ideias passa também a ser mais diretamente associado à outorga onerosa: “Permite que um proprietário construa acima de um índice de aproveitamento do terreno de sua propriedade. Neste caso, o Poder Público exige uma contrapartida em termos financeiros tendo em vista os benefícios que este proprietário irá auferir da infraestrutura realizada pelo Poder Público. Ao estabelecer a diferenciação e os limites entre o direito de propriedade do solo e o direito de construir, os benefícios dos investimentos públicos em infraestrutura passam a ser cobrados pelo Poder Público que os recupera para a coletividade, reinvestindo-os em equipamentos e serviços públicos. Esta outorga onerosa do direito de construir é também chamada de solo criado” (Silva & Saule Jr., 1993, p.27). O DEBATE JURÍDICO: CONSTITUCIONALIDADE, NATUREZA E COMPETÊNCIA Surgem, das formulações acima, questões que se tornam pontos essenciais na discussão. Destacam-se, entre elas, as que envolvem explorações na doutrina jurídica, que justifiquem a separação ao menos parcial entre os direitos de propriedade e de construção, à R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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luz da Constituição então vigente. A discussão sobre a constitucionalidade do instrumento pode ser encontrada em Grego (1981), que adota uma visão conjunta do interesse individual e do social na delimitação dos direitos de propriedade. A cláusula da “função social” permitiria formas de controle da ação do responsável pela utilização do bem. Acima de determinado patamar, a decisão quanto ao uso do bem decorreria de uma co-decisão de que participariam poder público e proprietário, figura que pode ser estendida ao Solo Criado. A possibilidade de separação do direito de construir do direito de propriedade, sem alteração do quadro constitucional vigente anterior à Constituição de 1988, é vista como possível por S. Ferraz & E. Azevedo (apud Brasileiro, 1977), ressaltando este último a condição de que não seja esvaziado o seu valor econômico, ou seja, desde que assegurado um mínimo desse valor. Segundo Lira (1981), em imóveis localizados em área urbana onde a possibilidade de construir constitui a essência econômica da propriedade, a simples autonomia do direito de construir, distinto do domínio e entregue ao Estado, conflitaria com a garantia constitucional da propriedade. A instituição do Solo Criado, segundo ele, no direito brasileiro, permite que se chegue a esse resultado sem criar problemas de inconstitucionalidade. Seabra Fagundes (1977), contudo, não se alinha entre os que consideram a autonomia do direito de construir, ou seja, a possibilidade deste existir distintamente do direito de propriedade. Para o autor, “em se tratando de imóvel localizado em área urbana, é na possibilidade de construir, via de regra, que está a essência econômica da propriedade” (p.58). J. A. Silva (1981, p.313) também afirma que o instrumento não promove a separação do direito de propriedade do direito de construir, contudo percebe a ideia do Solo Criado como justificativa para a compensação de proprietários que não atinjam o índice único. Em suas palavras: “O conceito de solo criado, nos termos postos acima, não importa na separação da faculdade de construir do direito de propriedade do terreno. Ao contrário, reafirma-o na medida em que transforma em direito subjetivo a faculdade de construir até o limite do coeficiente único estabelecido. Tanto assim que, se a legislação de uso e ocupação do solo determinar para alguma zona ou área coeficiente menor, os proprietários terão direito a uma compensação pela limitação estabelecida em desigualdade com os demais proprietários”. Cabe aqui registrar o debate realizado no Seminário IDEPE (1987). Neste encontro J. C. Figueiredo Ferraz, ex-prefeito de São Paulo, sugere outros instrumentos e afirma: “[O solo criado] É um instrumento inadequado, um instrumento prematuro, porque há outros meios de se arrecadar do que estar invadindo em conceitos clássicos e já consolidados pela sociedade brasileira, do que vem a ser um bem social. ... No momento que extraio do indivíduo a capacidade de construir e tem que pagar se quiser transacionar com o governo, trocar etc., isso significa que lhe foi subtraído um direito. Isto é, na verdade, uma expropriação, nem é uma desapropriação” (p.146). Nessa ocasião, a comparação do Solo Criado com as obrigações impostas aos parcelamentos e a sua consequente constitucionalidade é lembrada por Campos Filho. Ao discordar de Figueiredo Ferraz, afirma que “é o mesmo instituto do loteamento, só que é loteamento do espaço aéreo” (Idem, p.157). Após a Constituição de 1988, no momento de elaboração do Plano Diretor do Município de São Paulo, Grau (1990a, p.9) afirma que não há no regime constitucional autonomia do direito de construir dissociado do direito de propriedade. Acresce, entretanto, que o exercício do direito de construir poderá ser definido em lei municipal. Quanto 58

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à competência para instituir o Solo Criado, Grau entende que o município tem competência tanto para instituí-lo como para instituir a transferência do direito de construir. Também na década de 1990, E. Azevedo & Mazzei de Alencar (1993, p.3), observam que: “É possível afirmar, portanto, em face dos princípios constitucionais vigentes no Brasil, que o direito de construir pode ser dissociado do direito de propriedade, desde que tal providência tenha por objetivo o uso adequado do imóvel urbano de acordo com sua função no ordenamento da cidade e desde que essa providência não esvazie por completo o valor econômico da propriedade. Essa condução pode ser perfeitamente alcançada pela aplicação do solo criado”. Outros aspectos da construção do instrumento, que acionam à época debates jurídicos, dizem respeito à natureza do instrumento, se tributário ou não, e à competência municipal para instituí-lo na ausência de normativa federal. O debate sobre a natureza do instrumento atravessou as décadas de 1970 e 1980. E. Azevedo (apud Brasileiro, 1977) apontava que no projeto do Conselho Nacional de Política Urbana – CNPU (1977), o Solo Criado se apresentava como uma licença especial remunerada, aproximando-se de um tributo, enquanto na proposta do Centro de Estudos e Pesquisas de Administração Municipal da Fundação Prefeito Faria Lima – CEPAM, esse aparecia como uma compensação, à semelhança do que ocorre nos loteamentos, afastando-se das características de um tributo. Greco Filho (1977) argumentava que a restrição do direito de construir a uma vez a área do terreno era admissível e tradicional, até no Direito brasileiro, que, inclusive, admitia restrição maior. Para o autor, contudo, a instituição de um valor a ser pago à prefeitura ou ao Estado que correspondesse à efetiva transferência de direito de construir teria a configuração de tributo, insustentável diante da sistemática constitucional tributária vigente. Nessa afirmação o autor menciona especialmente a modalidade Solo Criado como transferência do direito de construir e não o Solo Criado como Outorga Onerosa do Direito de Construir. O tratamento tributário como forma de instituição do instrumento era, ainda, considerado por G. Ataliba no próprio Seminário CEPAM em 1976 (apud Jansen, 1978), e também por Seabra Fagundes (1977) e Jansen (1978), enfocando este último autor somente o caso em que a compensação se desse por equivalente econômico (monetário). A compensação por doação de áreas vazias (de terreno) não apresentaria, a seu ver, características tributárias. Ferraz (apud Brasileiro, 1977), ainda, não reconhecia a natureza tributária do instrumento, tratando-o como simples ampliação do poder de polícia em matéria de edificações. A par disso, pode-se verificar a utilização tácita do termo tributo, sem a consequente discussão da natureza do instrumento, como é o caso do documento de trabalho do CEPAM (1982b). Cabe destacar, também, o entendimento exposto por Gandra Martins (1981), segundo o qual, o Solo Criado teria coloração tributária nítida,9 sendo uma forma de tributação penal, “que visa desincentivar as construções, além de um determinado limite ou, em permitindo, impor elevado ônus, viabilizando acréscimo de receita aos cofres municipais” (p. 62). A questão sobre a natureza do instrumento está presente para vários autores até o início da década de 1990, quando por ocasião da elaboração do Plano Diretor do Município de São Paulo, e também o do Rio de Janeiro, torna-se inadiável o aclaramento da questão. É desse período a manifestação de Grau (1990b, p.13), que orienta a aplicação do instruR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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9 Segundo Gandra Martins, “qualquer exigência para que se permita a construção além de certos limites ganharia, pela definição do art. 3º do Código Tributário Nacional, coloração nítida e inequívoca de tributação” (1981, p.62)

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mento nos planos diretores: “Trata-se indubitavelmente, no caso, de um ônus, vínculo imposto à vontade do proprietário do imóvel como condição para a satisfação do seu próprio interesse e cujo descumprimento não importa a aplicação de sanção jurídica, mas tão somente efeitos econômicos negativos. Não há, pois, como confundir a obtenção da outorga onerosa de que se cuida com qualquer figura a que corresponda obrigação tributária”. É, também, importante registrar aqui as discussões a respeito da competência municipal, na ausência de uma legislação federal que lhe desse apoio, questão ultrapassada através da regulamentação da Outorga pelo Estatuto da Cidade. E. Azevedo & Ferraz (apud Brasileiro, 1977) se manifestam favoravelmente quanto à possibilidade de adoção do Solo Criado sem suporte de legislação federal. E. Azevedo impõe como condição, para que possa ser aplicado pelos municípios, que seja instituído nos mesmos moldes das exigências feitas aos loteadores, através de compensações com áreas livres correspondentes às áreas de Solo Criado. Por outro lado, Seabra Fagundes (1977), embora, reconhecendo que a regulação do direito de construir é da órbita municipal, entende que caberia à União regular ou pelo menos permitir a utilização do Solo Criado. Já para Greco Filho (1977), a definição do coeficiente básico e unitário (um) como atributo da propriedade lhe parece matéria de Direito Civil e, portanto, de competência legislativa da União. O ÍNDICE BÁSICO ÚNICO E, ATÉ, UNITÁRIO Nas formulações apresentadas, destaca-se, ainda, a questão da construção do conceito de Solo Criado apoiado na adoção de um índice básico e único. A necessidade de sua fixação apresenta uma quase total unanimidade nos textos analisados, não se considerando a possibilidade de coexistirem índices básicos diferenciados numa mesma cidade, como a forma adotada posteriormente pelo Estatuto da Cidade. Nesse caso, estão os trabalhos e entrevistas de Azevedo Netto e outros (1977), em que o coeficiente único poderia ser local, regional ou até valer para todo o país, Hori (1977), Mange (1977), E. Azevedo & Fortuna (entrevistas em Brasileiro, 1977), Jansen (1978) e Lira (1981,1986). A proposta do prefeito Setúbal (1976) também adota essa posição, como já consta, em 1976, da Carta de Embu, em sua primeira conclusão: “1. É constitucional a fixação, pelo Município, de um coeficiente único de edificação para todos os terrenos urbanos. 1.1. A fixação desse coeficiente não interfere com a competência municipal para estabelecer índices diversos de utilização dos terrenos, tal como já se faz, mediante legislação de zoneamento. 1.2. Toda edificação acima do coeficiente único é considerada solo criado, quer envolva ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo”. A justificativa é apresentada de forma clara por Hori (1977, p.63): “O conceito de solo criado parte da idéia fundamental de que o direito de ocupar uma área urbana com construção deve ser igual para todos, incorporando-se ao direito de propriedade. Quer dizer: do ponto de vista jurídico, admite-se como inerente ao direito de propriedade um direito de construção igual para todos, que pode ser denominado coeficiente de aproveitamento único”. É, também, Jansen, que se propõe a avaliar as versões existentes (1978, p.85): “Analisando as diversas versões do solo criado constatamos que todas coincidem quanto à necessidade de adoção de um coeficiente único de aproveitamento do lote do terreno, como condição prévia indispensável ao surgimento do adicional de solo. Divergem as sugestões no que tange aos encargos a serem impostos ao proprietário que quiser edificar acima desse coeficiente, e quanto à finalidade do conceito”. 60

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O documento de trabalho do CEPAM (1982b), contudo, é o único analisado em que encontramos a possibilidade de índices básicos diferenciados como alternativa ao índice único. Esse trabalho considera, ainda, a possibilidade de uma compensação para os proprietários que não atingissem o teto de densidade ou índice básico. A adoção de um coeficiente básico único e, além disso, igual a um, é justificada na formulação do instrumento. Azevedo Netto (1977a, p.50) explica: “Esse valor foi, entre nós, quase por consenso admitido como igual a um (1). Intuitivamente seria a possibilidade de cobrir toda a extensão de um terreno; ou deixando-se recuos ou espaços para iluminação e ventilação, a construção poderia ter dois pavimentos conservando a mesma extensão da área construída”. O anteprojeto do CNPU, divulgado em 1977, afirma: “Art. 50. O proprietário tem o direito de construir em seu terreno área equivalente à do lote. § 1.° No solo urbano em que houver conveniência de aumento populacional, lei municipal de uso e ocupação do solo poderá permitir construção de área excedente à prevista neste artigo, mediante licença da prefeitura. § 2.º A licença especial prevista neste artigo será sempre remunerada”. Abaixo desse valor igual a um, não se configuraria o Solo Criado, entendimento que atenderia não só à garantia do não esvaziamento econômico da propriedade, assim como ao objetivo urbanístico de garantia de qualidade de vida e de aproveitamento racional da infraestrutura urbana. Acima desse coeficiente, a criação de solos interferiria com o interesse da comunidade. Nessa linha estão os trabalhos de Hori (1977), Mange (1977), Contador (1977). E, também, a proposta apresentada por Setúbal (1976), o Plano de Desenvolvimento Integrado do Município de São Bernardo transformado em lei (1977) e a proposta para um projeto de lei para o município de São Paulo (1977), não encaminhada à Câmara Municipal. Para Greco Filho (1977, p.100) o índice básico igual a um está atrelado à possibilidade de construir, ao equilíbrio urbano e à transferência de potencial construtivo, ou seja, “quem quiser criar solo, construir acima da metragem quadrada de seu lote, deve adquirir de outrem esse direito, mediante transferência onerosa ou gratuita, de modo que, se a um terreno se incorpora ou se soma o direito de construir a mais, de outro esse direito é retirado, para que, afinal, a área de superfície urbana seja sempre igual à área construída”. A respeito da variação do conteúdo econômico dos terrenos urbanos em função da aplicação de diferentes índices construtivos, assim se manifesta Silva (1981, p.311): “Pois bem, a fixação do coeficiente único iguala essa equação econômica. Esse coeficiente único pode ser qualquer um, mas o mais lógico e razoável consiste no coeficiente de aproveitamento correspondente a 1 (um), o que equivale a reconhecer a todo proprietário de terreno o direito de erguer nele uma construção correspondente, em metros quadrados, a tantos metros quadrados quantos ele tiver, ou seja, cada metro quadrado do terreno lhe dará o direito de construir um metro quadrado de edificação, coeficiente esse que poderá previstos para a zona”. OUTRAS QUESTÕES RELACIONADAS COM A APLICAÇÃO DO INSTRUMENTO Um ponto de debate é o da forma de compensação. Cabe registrar, aqui, a manifestação de Seabra Fagundes (1977), opondo-se à troca por pecúnia de áreas proporcionais às áreas criadas por construção, ou seja, de Solo Criado. A possibilidade de compensação em equivalente econômico é, contudo, considerada na Carta de Embu (1976), e também por Mange (1977), Grego (1981) e Contador (1977), que defende o equivalente econômico R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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pela inexistência de terrenos na mesma zona da construção ou pelo risco de aceitação de terrenos impróprios. Lira (1986), por outro lado, anos mais tarde, contempla o instrumento com duas versões: uma urbanística em que o criador de solo compensa a coletividade com a cessão de espaço em favor do grupo, e outra financeira, que pode ser tolerada, em que o criador de solo reverte à municipalidade uma certa importância em dinheiro. Autores se debruçam também sobre o processo de implementação do instrumento. A aplicação progressiva e contínua que atinja a plenitude em 5 anos é defendida por Mange (1977). Smolka (1991) propõe o estabelecimento de um período de transição, na forma de moratória com prazo definido para terrenos adquiridos recentemente por edificadores e incorporadores, o que facilitaria a aceitação da proposta. As consequências do Solo Criado no mercado imobiliário fazem parte da discussão de sua construção e irão permear o debate até a década de 1990. Contudo, há uma expressiva concordância sobre as consequências do Solo Criado na queda dos preços dos terrenos já nas décadas de 1970 e 1980. Essa visão é compartilhada, entre muitos outros, por E. Azevedo (entrevista apud Brasileiro, 1977) e por Mange (1977). Apesar de admitir uma certa elasticidade no comportamento do mercado, esse último autor afirma que, se ficava impossível que os preços dos terrenos baixassem, pelo menos não subiriam. O repasse do valor do Solo Criado para o preço final das unidades, argumento muitas vezes levantado por profissionais do mercado imobiliário, não é considerado possível, a não ser em casos excepcionais de imóveis para os grupos de mais alta renda. Segundo Campos Filho (1977), o custo do Solo Criado deverá ser absorvido por uma pequena redução da excessiva valorização dos terrenos urbanos e não pelo consumidor final da unidade imobiliária (apartamento ou escritório). Mas, para o CEPAM (1982a), a transferência do custo do Solo Criado para o proprietário do terreno ou para o consumidor final dependeria das condições do mercado de terras e de imóveis construídos. Há nesse aspecto uma quase unanimidade entre os estudiosos sobre as consequências do Solo Criado sobre o valor da terra, no longo prazo, salvo opiniões enviesadas pelos interesses de classe. Germanos (1977), refletindo a visão das empresas construtoras, vê o instrumento como mais um tributo a incidir sobre o custo final das unidades, com efeitos no espraiamento das cidades e aumentando os custos do poder público com infraestrutura. Gomes de Almeida (entrevista apud Brasileiro, 1977), também alerta para a baixa produtividade fiscal do instrumento e para os seus efeitos sobre o preço final das unidades. Após a Constituição de 1988, quando da elaboração e aprovação de planos diretores municipais, retoma-se o tema do Solo Criado e suas consequências. Da mesma forma que na discussão sobre a natureza do instrumento, há uma reflexão quanto aos efeitos do Solo Criado sobre o preço dos terrenos. Nessa linha se destacam os trabalhos de Smolka (1991) e Ribeiro & Cardoso (1991): Smolka (1991, p.3) afirma que “salvo em situações excepcionais de controle monopólico ou monopsônico do mercado de terras, o proprietário é, por assim dizer, inteiramente passivo na determinação do preço do terreno – vale dizer, ele é “price-taker” conforme convencionado na teoria econômica. O preço do terreno é determinado essencialmente pela concorrência (condição típica deste mercado) entre aqueles que disputam pelo uso do solo.

E, continua: “qualquer tentativa do proprietário em repassar ao usuário o ônus de uma taxa sobre o valor do terreno, será inteiramente frustrada pelo mercado, conquanto as diferenças entre os terrenos não se alterem” (ibid). Conclui, afirmando que as inquietações 62

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dos incorporadores e construtores em geral são, em princípio, infundadas e devem ser atribuídas ao fato de que individualmente eles detêm parte significativa de seu capital imobilizado em terrenos ou a uma percepção equivocada de como opera o mercado imobiliário. Para Ribeiro & Cardoso (1991, p.54-5): “seu efeito mais geral e mais a longo prazo é a diminuição do preço da terra, pelo aumento da oferta de solo urbanizado, a curto prazo, porque não alterará a rentabilidade da construção, pois o peso do pagamento do direito de construir não recairá sobre o lucro da construção”. Outros efeitos da adoção do Solo Criado também levantados dizem respeito a um virtual congelamento das áreas centrais mais valorizadas e ao direcionamento da construção para as zonas mais periféricas, onde o preço da terra é menor e predomina a construção de edifícios com projetos que criem pouco solo. Nesta linha, na década de 1990, estão os trabalhos de Ribeiro & Cardoso (1991) e outros, acompanhando o de Granelle (1992a) a respeito da França. Quanto aos efeitos do instrumento para as camadas de mais baixa renda, assim se manifestam os estudiosos da cidade, sejam eles arquitetos, juristas ou sociólogos: A importância do instrumento para as camadas de mais baixa renda advém da possibilidade de o poder público obter maior área livre, que seria destinada ao lazer da população. Ou, então, a possibilidade de o poder público obter maiores recursos financeiros, que poderiam ser carreados para obras de infra-estrutura, em geral necessárias nos bairros periféricos ocupados por essa população. (E. Azevedo, entrevista apud Brasileiro, 1977, p.94.) O solo criado pode criar condições para que camadas de mais baixa renda tenham possibilidades de conseguir morar em áreas inseridas no tecido urbano e não tão-somente em áreas periféricas sem nenhum equipamento. O solo criado não é uma panacéia universal, mas, caso a carência habitacional (no sentido completo da palavra habitação) seja a mais importante ou de atendimento prioritário, o poder público – obtendo através do citado instrumento recursos vinculados a um fundo de reserva de áreas de habitação de interesse social – poderia comprar terrenos em locais dotados de serviços de infra-estrutura. (Mera, entrevista apud Brasileiro, 1977, p.94.) A instituição do solo criado carreará para o poder público terras ou recursos a serem aplicados em obras ou serviços ou na aquisição de terras, certamente a preços mais baixos, com o que poderá o poder público incentivar a implantação de habitação para as classes menos favorecidas. (Fortuna, entrevista apud Brasileiro, 1977, p.94.)

Entretanto, Azevedo Netto, já em 1977, alerta para a crença excessiva nas possibilidades do Solo Criado para a solução de problemas sociais, inclusive a falta de moradias: “o solo criado não é uma panacéia para curar todos os males da cidade, ou mesmo da nossa sociedade. Muitas vezes ao se discutir o solo criado ele é visto como solução para o problema de distribuição de riquezas ou para o problema da habitação das classes de menor renda. É preciso deixar claro que o conceito do solo criado não foi feito para isso, nem vai resolver todos os problemas urbanos. Vai resolver alguns, apenas alguns, mas muito importantes. Não dispensa o planejamento; pelo contrário, exige um bom planejamento” (p.54). Na década de 1990, Smolka (1991, p.10) adverte que o processo de implantação do Solo Criado “não é neutro em relação ao seu sucesso. Os ganhos e perdas devem ser claramente expostos e negociados de modo a reduzir, ao mínimo, eventuais expectativas alarmistas e de modo a evidenciar e/ou deixar transparecer possíveis atitudes anti-sociais dos R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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agentes. O compromisso de utilizar, de imediato, boa parte dos recursos arrecadados com o solo criado, na contratação de novos empreendimentos habitacionais, para a população de baixa renda, pode ser um argumento valioso nesta negociação do próprio instrumento”.

O CAMINHO EM DIREÇÃO AO ESTATUTO DA CIDADE No Brasil, as discussões sobre a necessidade de meios efetivos de controle do solo urbano datam da década de 1960. Em 1963, se realiza o Seminário de Habitação e Reforma Urbana, organizado pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil, em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, no qual o quadro geral das cidades é discutido e é encaminhada a necessidade de instrumentos efetivos de controle do solo urbano. A motivação é a necessidade de se equacionar uma política habitacional que enfrente a crise nas metrópoles brasileiras. É proposto um imposto de habitação a incidir sobre terrenos e unidades com mais de 100 m2 que, porém, não se assemelha à Outorga, assim como ainda não estão expressos no encontro entendimentos fundamentais do instrumento, como a valorização artificial de terrenos ou a questão da possibilidade de separação entre o direito de construir e o direito de propriedade. Entretanto, constitui um avanço ao indicar a necessidade de estabelecimento de maiores limites ao direito de propriedade, além das limitações administrativas tradicionais, na busca de soluções para o problema habitacional. Já se encontram nesse documento os princípios que, mais tarde, viriam a ser defendidos pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana na Assembleia Nacional Constituinte e, posteriormente, no contexto da elaboração do Estatuto da Cidade (Bassul, 2005). As primeiras ideias relacionadas com o instrumento do Solo Criado surgem em 1974, quando o Grupo Executivo da Grande São Paulo – GEGRAN, órgão da Secretaria do Planejamento do Estado de São Paulo, estuda, com a consultoria de Azevedo Netto, os problemas de uso do solo e suas possibilidades de controle. Como parte desse trabalho, em 1975, o GEGRAN realiza um seminário com a presença de juristas, em que são debatidos conceitos envolvidos na noção de Solo Criado (Azevedo Netto, 1977a). Em 1974, ainda, têm início no Município de São Bernardo do Campo estudos sobre o instrumento pela equipe técnica da Secretaria de Planejamento e Economia, tendo em vista a inclusão do Solo Criado no conjunto das propostas urbanísticas do Plano em preparação. Em 1977, São Bernardo será o primeiro a ter este conceito transformado em lei, através do Plano de Desenvolvimento Integrado do Município. A lei aprovada institui o coeficiente de aproveitamento 1 (um) para toda a zona urbana e determina que o interessado em construir além desse limite deve pagar ao município uma certa quantia por metro quadrado de área construída excedente, cujos valores recolhidos se destinam a um Fundo de Áreas Verdes. Também em 1974, o então futuro governador do Estado de São Paulo, Paulo E. Martins, promove a realização de estudos preparatórios de seu governo e no relatório sobre o Controle do Uso do Solo, sob a consultoria de Azevedo Netto, aparecem as propostas de fixação de coeficiente do aproveitamento único e da transferência de direito de construção. Nesse mesmo ano, o Solo Criado é discutido no Simpósio sobre Política Urbana, realizado em Brasília pela Fundação Milton Campos, recomendando-se o seu estudo com vistas a sua aplicação em grandes cidades e em áreas metropolitanas (Azevedo Netto, 1977a). 64

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Em 1976, no XX Congresso Estadual dos Municípios em Guarujá, o prefeito de São Paulo, Olavo Setúbal, propõe o Solo Criado como instrumento de uma “Política para Utilização do Solo Urbano”, a ser criado em âmbito federal. A proposta consiste em assegurar a todos os proprietários de terrenos uma proporção fixa e uniforme de área construída e que esse direito de construir possa ser transferido a outros terrenos. Contempla a possibilidade de construção acima do limite fixado, mediante transferência dos direitos de construir de outros terrenos, ou aquisição dos direitos de criar solo, mediante concessão do Poder Público e a destinação dos recursos públicos provenientes da aquisição de direitos de construir, criando solo para aquisição de áreas públicas, para equipamentos comunitários ou reurbanização. No mesmo ano de 1976, a questão do solo, constitui o tema de três seminários realizados em São Sebastião, São Paulo e Embu,10 sob o patrocínio do CEPAM. Essa entidade, vinculada à Secretaria de Estado dos Negócios do Interior do Estado de São Paulo, constitui, sem dúvida, a que lidera ao longo do tempo os estudos e debates sobre o Solo Criado. O resultado desses seminários é a já mencionada Carta de Embu, datada de dezembro de 1976, um marco na evolução dos estudos sobre o tema. A separação do direito de propriedade e o de construir aparece pela primeira vez em nível nacional em 1977, através do instrumento do Solo Criado, na primeira versão do Anteprojeto de Lei de Desenvolvimento Urbano, elaborado pelo Conselho Nacional de Política Urbana – CNPU. O anteprojeto abriga a figura do Solo Criado (art. 50 e 51) e garante ao proprietário o direito de construir em seu terreno uma área equivalente à área do terreno; assegura ainda, mediante licença especial e remunerada, obedecendo a conveniências de natureza urbanística, a construção de área excedente. O instrumento, entretanto, gera reações contrárias e não é incluído no anteprojeto final, que dá origem ao Projeto de Lei Federal 775 de 1983. Este último, chamado de Projeto de Lei de Desenvolvimento Urbano, elaborado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano do Ministério do Interior – CNDU, tenta estabelecer o perfil da propriedade em termos urbanísticos com a criação de instrumentos de controle e de limitação à utilização da propriedade. Apesar de não conter o instrumento do Solo Criado, o projeto inova quanto ao tratamento dado a vários temas e, em especial, fornece contornos urbanísticos ao direito de propriedade (Lira, 1983; Rocha Lagoa, 1984; Campos Filho, 1986), contemplando questões a serem observadas pelo planejamento urbano desde a esfera federal até a municipal. Constitui a primeira tentativa formal em nível nacional de tratar a questão da propriedade privada de maneira urbanística. A habitação fica incluída entre os serviços comuns de interesse metropolitano (art. 40). Nos casos de ausência de plano, fica estabelecido para todos os lotes o índice de aproveitamento de terreno igual a 1 (um), o que significa que o limite de área edificável por lote passa a corresponder à área de cada lote, determinação que vigoraria até a edição de um plano que definisse critérios locais. Ao mesmo tempo, consolida a ideia de um índice básico único e unitário. A concessão da licença para construção fica sujeita ao Município, que pode concedê-la ou não, condicionando-a à existência ou à programação de equipamentos urbanos e comunitários (art.5°). Segundo Rocha Lagoa (1984), nesse projeto o governo federal mostra conhecer que a matéria urbanística depende de modo básico da disciplina conferida à propriedade. A seu ver, porém, existe uma nota de inconstitucionalidade no anteprojeto na série de artigos através dos quais se criam diretrizes a serem adotadas pelos municípios na elaboração das respectivas legislações urbanísticas, extrapolando-se a competência da União.11 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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10 Em junho de 1976, o CEPAM realizou o Seminário de São Sebastião (e depois em São Paulo), que contou com a participação de especialistas Internacionais, como o professor John Costonis, jurista da Universidade de Chicago, o arquiteto Luís Gay Llacer, do Instituto de Estudos de Administração Local de Madrid, e o senador Jorge Cárdenas, da Colômbia. A presença desses especialistas devia-se ao fato de que em seus países os instrumentos da transferência dos direitos de construir e o coeficiente único já tinham sido aplicados (Azevedo Netto, 1977a).

11 A favor da inconstitucionalidade, existia o fato de ter sido apresentada uma proposta de Emenda à Constituição nº 19/77, dando à União o poder de emitir normas gerais sobre o desenvolvimento urbano, projeto que havia sido rejeitado (Rocha Lagoa, 1984, p. 02 e 05).

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12 A favor da inconstitucionalidade, existia o fato de ter sido apresentada uma proposta de Emenda à Constituição nº 19/77, dando à União o poder de emitir normas gerais sobre o desenvolvimento urbano, projeto que havia sido rejeitado. (Rocha Lagoa, 1984, p. 02 e 05).

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O Projeto de Lei 775/73 causa inúmeras reações, principalmente por parte de representantes do setor de construção civil, e a inconstitucionalidade é por eles também arguida. Nesse caso, o aspecto denunciado se encontra relacionado aos limites colocados para a propriedade, e a definição do índice 1 (um) para edificação em terrenos localizados em municípios que não possuam plano de uso e ocupação do solo. Essas alegações, como observa Rocha Lagoa (1984), não possuem fundamento, pois a Constituição já adotava o sistema pelo qual a propriedade era uma função social, sendo conferido ao proprietário um conjunto de deveres para a satisfação do interesse social. Mas, para a sua aprovação, criam-se dificuldades. Por um lado, a reação pelas razões ligadas à questão do direito de construir, por outro, os municipalistas que condenam a intromissão da União na política urbana dos municípios. No processo de preparação da nova Constituição, ganha força o Movimento Nacional pela Reforma Urbana, que retoma as propostas de instrumentos discutidos nas décadas de 1970 e 1980 e que, juntamente com setores progressistas da sociedade, influencia as disposições constitucionais. O direito à cidade e o direito à terra, bandeiras do movimento, se expressam nos conceitos de função social da cidade e função social da propriedade, este último já presente em textos constitucionais desde a Constituição de 1934. Vários estudos (Ribeiro & Cardoso, 1991; Silva & Saule Jr., 1993; Ribeiro & Santos Júnior, 1993; Maricato, 1994; Rolnik, 1994; Ribeiro, 1994; entre outros) contribuíram para uma melhor compreensão do que se denominou Movimento pela Reforma Urbana e quais os seus resultados para a Constituição de 1988. Na fase de elaboração da Constituição, determinados princípios são traduzidos e consolidados numa emenda popular, síntese das reivindicações das discussões sobre a cidade. Um dos artigos da emenda contempla de forma conceitual, embora sem nomear, o instrumento do Solo Criado ou Outorga: “A valorização de imóveis urbanos que não decorra de investimentos realizados no próprio imóvel, mas que seja proveniente de investimentos do poder público ou de terceiros poderá ser apropriada por via tributária ou outros meios” (Bassul, 2005). Ainda que nem todas as propostas da emenda popular sejam aprovadas, a Constituição de 1988 contempla um capítulo específico sobre política urbana. Ao estabelecer que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182 e 183), a Constituição Federal provoca, segundo Baldez (1991), um abrandamento formal na concepção e no caráter da propriedade privada e, segundo Lira (1991), traça um perfil que caracteriza a propriedade urbanística. A propriedade, a partir de 1988, fica submetida à política urbana determinada pelos municípios, sendo o Plano Diretor o instrumento privilegiado para a sua subordinação. Ao lado da antiga concepção de propriedade privada surge, então, a propriedade urbanística, como a denomina Lira (1986). Essa está condicionada à sua função social e tem origem na administração pública como agente do processo de produção da cidade. A cidade, nessa concepção, não é o resultado da atuação de proprietários no gozo de suas propriedades particulares, mas da própria administração na gerência do espaço urbano. Porém, cabe destacar, como afirma Rabello12 (2003), que a concepção da função social da propriedade, instituída desde a Constituição de 1934, é somente fortalecida pela Constituição de 1988, atuando sobre as interpretações em que se apóiam as decisões judiciais. 66

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Com o final da Constituinte, os estados e municípios preparam as suas Constituições Estaduais, Leis Orgânicas Municipais e Planos Diretores. A proposta do Solo Criado é incluída em Leis Orgânicas e Planos Diretores de várias cidades do Brasil. Quanto à regulamentação da política urbana constante da Constituição de 1988, vale mencionar que o projeto original do Estatuto da Cidade (Projeto de Lei do Senado n° 181 de 1989) não menciona o Solo Criado nem a Outorga. Apenas orienta que o Plano Diretor Municipal – obrigatório para as cidades com mais de 20.000 habitantes – deve exigir (art.41, inciso VI) a prévia avaliação por parte dos órgãos competentes do Poder Público para a aprovação de quaisquer projetos de mudança de uso do solo, alteração de índices de aproveitamento, parcelamentos, remembramentos ou desmembramentos (Furtado, 2005). O projeto estabelece também que, enquanto não for aprovado o Plano Diretor, o índice de aproveitamento máximo para a construção será de uma vez a área do terreno (Bassul, 2005), seguindo, neste particular, a orientação dada pelo projeto de Lei 775/1983 (LDU).

COMENTÁRIOS FINAIS A revisão da bibliografia do Solo Criado procura demonstrar que a construção do instrumento foi feita paulatinamente, suscitando questionamentos até a formulação do instrumento Outorga tal como previsto no Estatuto da Cidade. O próprio instrumento da Outorga ainda levanta algumas questões importantes quanto à sua aplicação, principalmente quanto à adoção do coeficiente básico. Esse é um ponto crucial da discussão que merece ser aprofundado. Como afirma Rabello (2005, p.5): “o índice básico se relaciona com o aproveitamento mais elementar do imóvel, o mínimo útil da propriedade, seu direito básico de utilização econômica, equitativamente atribuído, ao menos no seu aspecto econômico, aos proprietários das propriedades imobiliárias urbanas pelo poder público”. Embora nas formulações teóricas iniciais o índice único para toda a cidade fosse uma ideia central, na definição dada pelo Estatuto da Cidade o coeficiente básico passou a poder variar segundo áreas da cidade. Além disso, o coeficiente básico defendido originalmente era não somente único, mas de modo geral considerado igual a 1 (um). Na prática, no entanto, o coeficiente básico é estabelecido localmente e, em poucos casos limita-se a 1 (um) (Furtado et al., 2006). A concepção do Solo Criado como outorga de área construída acima de um coeficiente básico apresenta raízes conceituais comuns com o Solo Criado como base da transferência de potencial construtivo de um terreno para outro, o que dificulta a consideração de um instrumento de forma independente do outro. Melhor dizendo, as justificativas que fundamentam o Solo Criado no primeiro caso, tanto no que se refere a questões urbanísticas ligadas a densidades adequadas para determinadas áreas, como no que se refere à prevalência do interesse coletivo sobre o individual, são as mesmas que no segundo caso. Além disso, as justificativas jurídicas que levam ao entendimento da possibilidade de separação parcial entre o direito de construir e o de propriedade e, ainda, a questão da constitucionalidade da criação do instrumento nas normas municipais ou federais são as mesmas. Nessa perspectiva, à vista da literatura produzida e de seus argumentos, consideramos que a aceitação de um deles como um instrumento de política urbana inclui por extensão o outro, excetuadas as demais questões relativas às dificuldades com a apliR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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A Vera F. Rezende é doutora pela FAU-USP, professora associada da Escola de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF, e pesquisadora do CNPq. E-mail: vrezende @openlink.com.br Fernanda Furtado é doutora pela FAU-USP, professora adjunta da Escola de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFF, e colaboradora do Lincoln Institute of Land Policy. E-mail: fer.furtado@ terra.com.br Maria Teresa Corrêa de Oliveira é doutora pela Utrecht University e pesquisadora independente. E-mail: [email protected]. Pedro Jorgensen Junior é mestre em Engenharia de Transportes pela COPPEUFRJ e pesquisador independente. E-mail: pjorgensen @superig.com.br. Artigo recebido em agosto de 2009 e aprovado para publicação em setembro de 2009.

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cação de cada um, assim como de ambos, conforme ressaltado em Furtado et al. (2006), que trata da avaliação de experiências municipais com estes instrumentos. Muitos elementos ainda precisam ser investigados no sentido de melhor guiar a aplicação da Outorga, principalmente a respeito do seu impacto nos mercados fundiário e imobiliário, sua efetiva capacidade de recuperação de mais-valias fundiárias urbanas e sua interação com outros instrumentos que incidam sobre a valorização da terra. Para os municípios, a Outorga, instrumento valioso, representa tanto uma conquista importante como ferramenta de intervenção pública, como também, um grande desafio, exigindo uma melhor compreensão de seus limites para uma aplicação mais efetiva.

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B S T R A C T This paper analyzes the conceptual framework underlying the “Outorga Onerosa do Direito de Construir”, a legal instrument defined in the City Statute as part of urban policy in Brazilian municipalities. We focus on the evolution of this powerful and complex instrument from the early stages of its debate until its current version in the City Statute, emphasizing the importance of such analysis to the understanding of the procedure’s potential and to the controversy on its implementation across different municipalities. With this intent, this paper investigates the literature on the procedure, as well as on a related concept, the “Solo Criado”, from the seventies until the nineties.

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E Y W O R D S Outorga onerosa do direito de construir; Solo Criado; City Statute; building rights; urban policy instruments.

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A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA NA

AMAZÔNIA LEGAL

DENISE DE CAMPOS GOUVÊA PAULO COELHO ÁVILA SANDRA BERNARDES RIBEIRO R

E S U M O Este artigo examina como a ocupação irregular de terras na Região Amazônica gerou conflitos que exigiram uma nova lei federal para a resolução do problema. Durante a década de 1970, o governo federal, para estimular a ocupação da região, desenvolveu programas para a fixação de colonos e empresas em terras da União, sob a coordenação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra. No entanto, a falta de processos rigorosos de distribuição de terras e o descuido sobre o uso e a ocupação do solo permitiram a formação e o crescimento de cidades em muitos assentamentos rurais. Tal fato resultou em cidades onde a irregularidade fundiária afeta milhares de moradias em toda a região. Para resolver a situação, o governo federal editou em 2009 a Lei 11.952, que estabelece condições específicas e regras para a destinação das terras da União aos municípios de modo a promoverem a regularização fundiária e o desenvolvimento sustentável das cidades.

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L A V R A S - C H A V E Regularização fundiária; Região Amazônica; urbanização; desenvolvimento urbano; insegurança da posse.

INTRODUÇÃO O processo de urbanização no país não é homogêneo em suas diversas regiões, mas em geral ele é estudado à luz do desenvolvimento econômico que, ao longo do século XX, esteve associado à industrialização e ao intenso fluxo migratório em direção às cidades das regiões Sul e Sudeste ou, quando muito, às capitais dos estados de outras regiões. Tais estudos destacam a forte marca que o processo de urbanização no Brasil produziu nas suas cidades pela presença maciça de diversas formas de assentamentos informais, como favelas, loteamentos irregulares e clandestinos, que adquirem magnitude tamanha que no fim do século XX passam a ser quase a regra da produção do espaço urbano no país. As diversas formas de assentamentos precários são produtos das assimetrias e distorções do modelo de desenvolvimento adotado, que não se preocupou em criar as condições para incorporar os segmentos mais pobres da população à sociedade moderna, que utilizava esta massa de mão-de-obra como insumo do seu progresso. De fato, tais assentamentos abrigam em grande medida os segmentos sociais de menor renda, que formam a maior parte da população brasileira. Em 2000, 40,8% dos domicílios urbanos do Brasil tinham renda mensal familiar de até 3 salários mínimos, sendo que 60% deles apresentavam alguma carência de infraestrutura (água, esgoto, coleta de lixo ou energia elétrica). Essas e outras condições de precariedade e vulnerabilidade, como violência urbana e a falta de equipamentos e serviços urbanos, reproduzem os mecanismos de exclusão que impedem tais grupos de satisfazer plenamente suas R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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expectativas e demandas sociais, gerando um ciclo perverso de reprodução da desigualdade social. A incapacidade de integrar os segmentos mais pobres da população às cidades é fruto não só do padrão excludente de desenvolvimento, mas também das políticas de planejamento e gestão urbana, do próprio sistema político que favorece determinados grupos e do regime jurídico que definiu ao longo do tempo os mecanismos de acesso à terra favoráveis à formação de uma sociedade patrimonialista que, ao fim e ao cabo, dificulta o reconhecimento de direitos sociais e estimula mercados de terras especulativos. Tais fatores não ofereceram aos grupos sociais mais pobres as condições adequadas de acesso à terra e à moradia, provocando a ocupação irregular do solo urbano (Fernandes, 2007). O acesso à terra é um dos nós na urbanização brasileira, e, nas duas últimas décadas do século XX, no bojo da crise econômica mundial que afetou o país, as barreiras a este acesso pela população de menor renda se exacerbam, estimulando conflitos. Neste período, as desigualdades sociais se acirram no país e a concentração da pobreza se torna predominantemente urbana. Em São Paulo, se no início da década de 1970 cerca de 1% da população vivia em favelas, esta proporção alcança 20% no fim do século passado, assim como em outras capitais, como Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Porto Alegre, ou beiram os 30%, como em Fortaleza e Salvador, e alcança 46% em Recife (Maricato, 1999). Esta proporção pode chegar a 50% se à população das favelas for somada à população vivendo em loteamentos irregulares. O padrão de formação dos assentamentos informais também se modifica no período, fomentando os conflitos fundiários urbanos. Maricato (1999) aponta que enquanto a formação de favelas foi predominantemente espontânea no passado, resultado de ações individuais que ensejavam um crescimento gradual dos assentamentos, a partir da década de 1980 a formação de assentamentos precários passa a apresentar um padrão organizado, intenso e coletivo de ocupações. A construção de um espaço marcado pela desigualdade também tem como um de seus insumos a execução arbitrária da lei, que é aplicada de acordo com as circunstâncias numa sociedade caracterizada pelas relações de favorecimento e privilégios (Maricato, 1999). Neste ponto, o sistema normativo é um elemento estratégico na reprodução da dualidade da produção da cidade, que contrapõe um espaço contido num meticuloso arcabouço legal e, outro, três vezes maior, eternamente localizado numa zona intermediária entre o legal e o ilegal (Rolnik, 1997). Esses e outros estudos fornecem um exaustivo quadro do contexto urbano brasileiro, em especial das cidades localizadas nas regiões mais desenvolvidas do país, que passaram por intenso processo de industrialização e urbanização, mas que, em certa medida, não é o cenário por trás do quadro de irregularidade fundiária de muitas cidades localizadas na região Norte. Ou melhor, é, porém, com outros elementos que reproduzem e consolidam a mesma estrutura social desigual. A ocupação da Região Amazônica, seja nas áreas rurais seja nas áreas urbanas, e mesmo nos dias atuais, apresenta muitas das características que marcaram o processo de ocupação e apropriação da terra no Brasil desde o tempo das sesmarias, sistema que foi fundamental na estruturação da propriedade fundiária no país. Como tal, em muitos casos, este processo ainda não é pacífico e a complexa estrutura fundiária das terras da Amazônia é um dos principais elementos por trás dos impasses no acesso à terra na região. A situação fundiária na Região Amazônica apresenta problemas de toda ordem, não se conhecendo, por exemplo, em muitos casos, as cadeias dominiais das terras, sendo 74

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grande também a ocorrência de títulos deslocados, sobreposição de títulos e registros falsos. Esta situação se deve não só à forma como estas terras foram ocupadas, mas também à inexistência de cadastros confiáveis nos cartórios e nos governos estaduais, o que, em grande medida, cede espaço para as fraudes. Estudo realizado por técnicos do Incra sobre a estrutura fundiária do Brasil, com base nos dados do Cadastro de Imóveis Rurais do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária,1 constata que a região Norte, com uma superfície de cerca de 387 milhões de hectares, possuía em 1992 uma área cadastrada de apenas 59,6 milhões de hectares, ocupadas por 131.174 imóveis rurais, o que representava 15,4% de área cadastrada (Cardim, Vieira, Viégas, s.d.). Assim, enquanto do ponto de vista geográfico a região representa cerca de 60% da superfície do Brasil, do ponto de vista cadastral, sua área representa apenas 19,2% da área cadastrada no Incra (Idem). Hoje é sabido que, de fato, apenas cerca de 4% das terras da região possuem título de propriedade e cadastro validado pelo Incra. Esta constatação foi feita a partir de um estudo do Imazon, Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia, com base em informações também do Sistema Nacional de Cadastro Rural (SNRC), administrado pelo Incra. O estudo verificou também que outros 43% da Amazônia são áreas protegidas, algumas com posses ilegais; outros 32% são terras com posses ou propriedades com informações pendentes, algumas podendo ter títulos fraudados; e 21% constituem áreas públicas sem cadastro, podendo também apresentar ocupações ilegais. Em inspeção realizada em julho de 2009 pela Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça nos serviços de notas e registros do Estado do Pará, com foco na Comarca de Altamira, foram encontradas irregularidades de caráter formal e material que podem ser classificadas como muito graves, o que contribui com a completa insegurança jurídica dos serviços registrais imobiliários naquele estado (CNJ, 2009). As irregularidades encontradas, entre as quais se destacam o ingresso de títulos no registro imobiliário sem força para transmitir o domínio,2 anotações em livros não previstos em lei, deterioração de livros de registro, inovações descritivas sem o devido processo legal e falhas técnicas diversas, revelam o completo descontrole da situação fundiária no Pará. Tal descontrole abre caminho para que se consolide a desordem fundiária, com a prática de fraudes que potencializam o conflito pela posse e domínio da terra no campo, não escapando o Poder Público da responsabilidade pela inquietude fundiária (CNJ, 2009). O relatório do Conselho de Justiça Federal transcreve trecho do Relatório da CPI destinado a investigar a ocupação de terras públicas na Região Amazônica, apresentado em 29 de agosto de 2001, que destaca outro aspecto que dificulta o controle e fiscalização dos cartórios na região: A grilagem de terras na Amazônia é tão notória quanto antiga. Última fronteirado País, ainda pouco povoada, a Amazônia oferece espaços, distâncias e dificuldades de comunicação que incentivaram as ilegalidades fundiárias de todo tipo. A volubilidade das políticas governamentais para a região também exerceu papel importante neste sentido (Relatório da CPI da Grilagem. (Diário da Câmara dos Deputados, 2009.)

Estes fatos geraram uma larga cadeia de irregularidades e de incertezas quanto à situação real dos imóveis na Amazônia, e os conflitos agrários pela posse das terras e problemas de ordem econômica, ambiental e social acabaram por extravasar também para as áreas urbanas. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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1 No total de área cadastrada pelo Incra em 1992, não estavam incluídas as terras públicas, exceto cerca de 2 milhões de hectares em Roraima e 2 milhões no Pará. Isso porque, a partir de 1992, o Incra criou o Cadastro de Terras Públicas, com formulário próprio (DTP). Naquele ano, a área cadastrada era formada por 2.924.204 imóveis rurais, totalizando 310 milhões de hectares ocupados por imóveis rurais, ou apenas 36,7% do território nacional (Cardim, Vieira e Viégas, s.d.).

2 À parte as fraudes imobiliárias perpetradas por títulos falsos e por registros irregulares, foram encontrados títulos de mera posse, de concessão de direitos, de legitimação, de outorga de propriedades em caráter resolutivo, certidões extraídas do Registro do Vigário, datas de sesmaria etc., títulos que visavam justificar, legitimar e regularizar a posse, em cumprimento de políticas e programas sociais de colonização e reforma agrária desenvolvidos ao longo dos tempos, muitos dos quais expedidos no decorrer de décadas por diversos órgãos – União, Incra, Estado do Pará, Intendências, prefeituras municipais – que, somados aos títulos centenários, oriundos de negócios jurídicos celebrados no final do século XIX e início do seguinte, com base em um cipoal verdadeiramente impressionante de leis e regulamentos, acabaram por formar um mosaico de difícil compreensão, regulação, gestão, saneamento e fiscalização (CNJ, 2009).

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Muitas cidades da Amazônia Legal se desenvolveram em terras públicas sob a tutela do Incra, a partir de núcleos e assentamentos da reforma agrária. Bairros de capitais como Porto Velho e Boa Vista, por exemplo, também cresceram sobre as terras que seriam utilizadas na reforma agrária. Nestas áreas, não só as moradias não possuem títulos de propriedade, mas também equipamentos públicos, como hospitais e escolas, sedes dos governos estadual e municipal e órgãos federais estão edificados em terras sem registro. Diante deste quadro, é muito difícil para os governos locais executarem de modo efetivo sua política de desenvolvimento urbano em áreas que enfrentam grandes fluxos migratórios, uma vez que, sem a propriedade do solo claramente definida, as prefeituras ficam de mãos atadas diante da impossibilidade de realizar investimentos em infraestrutura e equipamentos públicos, fazer cumprir a legislação urbanística e promover suas políticas habitacionais. Com o intuito de desatar o nó da questão da terra na Amazônia, um dos elementos que agrava o quadro de desigualdade social e incentiva a ocupação desordenada do território na região, foi iniciada em 2009 uma ampla ação de regularização fundiária das terras da União na Amazônia, tanto em áreas rurais como urbanas. As ações promovidas com este intuito integram vários entes do Executivo federal e dos governos estaduais e municipais, assim como órgãos da Justiça e entidades da sociedade civil. Com isso, se espera eliminar a insegurança patrimonial daqueles que ocupam efetivamente as terras, e também exercer maior controle sobre a ocupação desordenada do território, que alimenta o desmatamento e a violência no campo e nas cidades. No caso das áreas urbanas, esta ação busca não só trazer à legalidade milhares de moradias em toda a Amazônia Legal, garantindo às famílias o seu direito constitucional à moradia digna, mas também assegurar que as prefeituras possam integrar tais áreas às políticas de desenvolvimento urbano sustentável, cujos princípios são estabelecidos nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal e na Lei 10.257, de 2001 (Estatuto da Cidade).

O ACESSO À TERRA NO BRASIL O início da colonização do Brasil se deu a partir da divisão da porção leste da linha do Tratado de Tordesilhas (1494), que cabia à Portugal, em 15 capitanias hereditárias, cujas administrações foram concedidas a homens de confiança da coroa portuguesa. Cada donatário recebia a concessão de vastas extensões de terras, tendo poder para ocupar e administrar a sua posse e conceder terras a particulares, as sesmarias. As terras deveriam ser ocupadas em 6 anos, após os quais era concedido o título de domínio pleno e perpétuo. Aquelas que não fossem efetivamente ocupadas eram retomadas pela coroa, o que deu origem às terras devolutas. Longe dos donos das terras, os sesmeiros rapidamente se tornaram as únicas autoridades do interior, formando verdadeiros feudos pessoais, cujo controle da ocupação era exercido pela concessão de novas autorizações para outros colonos, e ampliando a extensão original das suas concessões pela ocupação e a posse efetiva de terras devolutas. Como observa Delson (1997), a prática da concessão de sesmaria institucionalizou o fenômeno dos latifúndios e, na ausência de sanções governamentais, surgem poderosas famílias interioranas que derivam o seu poder e influência baseadas no domínio sobre a propriedade das terras. 76

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A preocupação da coroa com a ocupação do interior aumenta, fazendo com que, sucessivamente, se tentasse limitar a influência dos grandes proprietários de terras por meio de reformulações da situação jurídica do solo colonial, limitando a extensão das áreas concedidas e estabelecendo o sistema do “cultivo útil” (1695) como critério para manter a posse das terras, com a possibilidade de expropriação em caso de não cumprimento (Delson, 1997). A intenção era ampliar a presença de pequenos proprietários e reduzir os latifúndios, uma vez que os imperialistas reconheciam que a colonização do interior não seria possível se houvesse a manutenção de grandes propriedades particulares (Delson, 1997). O sistema de sesmarias é encerrado por ocasião da Independência do Brasil em 1822, passando a vigorar o regime de posses até 1850, quando entra em vigor a Lei 601, de setembro de 1850 (Lei de Terras). No período entre a Independência do Brasil e a Lei de Terras, o país deixa de contar com legislação de titulação de terra pública e a posse informal da terra continua existindo, sendo que as propriedades eram transmitidas por simples contrato, posse ou herança, bastando comprovar a posse para que a propriedade fosse transmitida, o que deu margem a extenso apossamento de terras. A ausência de registros formais também abria espaço ao surgimento de toda sorte de fraudes, causando insegurança nas relações comerciais que utilizavam os imóveis como garantia de crédito. A Lei de Terras encerra este período proibindo a aquisição de terras públicas por outro título que não o de compra, estabelecendo também critérios para a legitimação das posses antigas. A Lei também instituiu o registro paroquial com finalidade cadastral para comprovação da posse, identificando as terras particulares e discriminando as terras públicas por exclusão. De fato, ela acaba com a posse e a doação de terras devolutas, impedindo a aquisição da propriedade por aqueles que simplesmente ocupassem a terra. Tal sistema consolida a propriedade privada, garantindo a exclusividade dos proprietários de terras existentes, num período de transição entre a força de trabalho escrava, agora liberta, e a força de trabalho assalariada dos imigrantes, os quais não teriam condições de adquirir terras pela compra, uma vez que não possuíam recursos próprios. Desta forma, a alocação de terras exclusivamente pela compra favoreceu a elite econômica, resultando na concentração da terra e no acirramento das desigualdades sociais. A Constituição Federal de 1891 estabeleceu que as terras devolutas pertenciam aos estados, com exceção das áreas de fronteira e aquelas necessárias à segurança nacional. A alocação de terra se torna fragmentada, passando os estados a emitir títulos, em alguns casos, como no Pará, extraídos de registros de mera posse, de outorga de propriedades, de concessão de direitos, do Registro do Vigário, sesmarias etc. Neste momento, a estrutura fundiária do país se consolida, ao mesmo tempo que nas áreas onde a autoridade não conseguia exercer o seu poder os conflitos pela posse da terra se intensificam, assim como as fraudes e a grilagem, em especial nas terras públicas devolutas. Nas áreas mais inóspitas do país, onde as dificuldades de comunicação são, por vezes, intransponíveis, como na região Amazônica, áreas de difícil acesso e de escassa fiscalização se tornaram o palco de conflitos pela posse das terras, que, em certos casos, reproduz em pleno século XXI o cenário de lutas do século XIX. Os conflitos de terras se acirram na medida em que cresce o potencial econômico da região, especialmente nas áreas onde se constroem estradas e onde a fronteira agrícola avança sobre as áreas inexploradas, atraindo colonos e invasores de terras. É o caso das áreas da Transamazônica, áreas ao norte do Mato Grosso e Rondônia, onde a fronteira R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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agrícola avança com o rebanho bovino, a cultura de soja e a exploração da madeira e, também, das áreas ao sul do Pará, onde se instalam grandes mineradoras, que atraem grande fluxo migratório. Como afirma o relatório do CNJ: Considerando que grande parte de nossos municípios ainda está no início de seu desenvolvimento, por isso ainda bastante preservados e com poucos conflitos de terras, como aqueles que se situam em toda a margem esquerda do rio Amazonas, nas regiões do oeste-sul adiante de Altamira e baixo-amazonas, entretanto, o problema fundiário é latente em todos eles, pois os registros irregulares lá estão adormecidos, prontos para produzirem os seus nefastos efeitos, quando para lá se expandir a chamada fronteira agrícola, com a venda, muitas vezes fatiada, dessas áreas irregulares a colonos e fazendeiros que lá se instalarão, sendo inevitável o conflito entre os posseiros nativos e os índios que lá se encontram com esses novos adquirentes. (CNJ, 2009.)

A OCUPAÇÃO URBANA NA AMAZÔNIA E A QUESTÃO DA TERRA

3 O conceito geral das regulamentações era barroco, alinhado a conceitos de beleza e sofisticação próprios da Europa refinada, tida como modelo de civilidade e progresso. As instruções estabeleciam traçado de ruas retilíneo, praças bem definidas ornadas por árvores simetricamente dispostas, edificações alinhadas, regularidade de composições arquitetônicas e localização do pelourinho, igreja, Casa de Câmara, cadeia e outras edificações públicas. Trazia também regras de ajuste ao modus vivendi das pessoas.

Via de regra, a colonização do interior do país seguiu ciclos cronológicos que se iniciam com os boiadeiros, os caçadores de índios e, por fim, os garimpeiros que penetraram o interior sem qualquer controle das autoridades. Algumas trilhas vão do interior da Bahia e seguem sertão adentro até o Maranhão. Estes agentes são logo seguidos pelos caçadores de silvícolas e depois pelos garimpeiros em busca de ouro, que penetram o território fora do alcance das autoridades a partir da década de 1690. A crescente preocupação dos portugueses com a ocupação sem controle do interior fez com que, a partir do século XVIII, fosse iniciado um programa de urbanização do sertão, pois havia a convicção de que a construção de municipalidades organizadas era o melhor meio de civilizar e promover o povoamento do agreste do sertão (Boxer apud Delson, 1997). A implantação destas comunidades, vilas e povoações, buscava a formação de redes urbanas integradas que tinham como objetivo controlar a ocupação do interior a partir da sua localização em pontos estratégicos. As cidades seguiam projetos racionais que incluíam planos diretores contendo um conjunto de normas e diretrizes de desenho urbano.3 A implementação do programa se inicia em 1716 com a ordem de implantação de duas novas cidades no interior do Piauí, Mocha (Oeiras) e Piracuruca, cujo escopo era a criação de uma ligação segura entre a Bahia e o Maranhão. Outras vilas e cidades foram criadas em várias regiões do Sul e Sudeste da colônia, nas capitanias de Goiás, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso e Ceará. A implantação de cidades e vilas na Amazônia tem início com a ascensão de Pombal ao poder em 1750. O marquês defendia a ampliação do poder real por meio de uma integração que se daria com a criação de vilas e cidades no interior e consequente aproveitamento das potencialidades dos territórios inexplorados, incluindo as populações indígenas, utilizadas como força de trabalho na agricultura e construção das vilas. Neste período, a Região Amazônica adquire maior importância econômica por conta da ligação fluvial Pará-Madeira-Guaporé entre Belém, a sede da capitania do Pará, e 78

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Vila Bela, em Mato Grosso. Vila Bela da Santíssima Trindade foi objeto do programa, e sua planificação urbana foi fielmente posta em prática para criar em 1752 a sede da nova capitania de Mato Grosso, recomendada pelo Conselho Ultramarino em 1748. Localizada próxima ao rio Guaporé, firmava um sistema de comunicação fluvial integrado com Belém do Pará como rota alternativa de abastecimento do Sul, e sua fundação visava estabelecer estrategicamente um ponto de observação governamental nessa rota. De modo geral, a escolha das áreas para povoamento imediato buscava localizações próximas às principais vias fluviais da bacia Amazônica, o principal meio de transporte na região até os nossos dias. Assim é que foram fundadas vilas nos rios Madeira, Tapajós e Negro, além de outras mais para o interior, no rio Xingu. Tais vilas serviam tanto como postos administrativos nas principais rotas fluviais comerciais como de controle do território, especialmente naquelas localizadas nas zonas limítrofes do território, como no Amapá, que tinham a função de proteger o território de eventuais incursões dos franceses. O desenvolvimento urbano na Amazônia ganha impulso com o ciclo da borracha, a partir da segunda metade do século XIX, que estimulou o surgimento de novas aglomerações e o desenvolvimento de uma rede urbana da qual Belém e Manaus eram os centros de maior hierarquia. Belém se destacava por concentrar população e os recursos financeiros para investimento urbano, enquanto Manaus, segunda maior cidade, se responsabilizou pela interiorização das frentes de exploração da borracha (Kampel, Câmara, Monteiro, 2001). A decadência do ciclo da borracha desestruturou a rede urbana, esvaziando cidades e fazendo crescer outras aglomerações devido ao êxodo rural das áreas de exploração. Frentes de ocupação surgiram, tendo por esteio a criação de gado ou a exploração de recursos naturais (minérios etc.), em Mato Grosso, norte de Goiás, hoje Tocantins, ou no Maranhão com a exploração de arroz. Tal padrão se estende até meados do século XX. A partir deste período, a questão do desenvolvimento econômico da região passa a ser uma preocupação cada vez maior do estado que, por meio de ações deliberadas de planejamento, cria e consolida novos vetores de penetração e de circulação no interior e entre os espaços regionais. O espaço regional, ainda marcado pelo povoamento irregular e esparso, também resultado da desarticulação da rede urbana do ciclo da borracha, passa a ser pressionado pelos resultados da modernização da indústria e da agricultura no Sudeste e por seus efeitos na reorganização espacial da produção (Ipea, 2001). Um dos principais componentes da influência do estado na reorganização dos fluxos e vetores de ocupação na região é a implantação de uma rede rodoviária que, ao mesmo tempo que funciona como mecanismo de desmobilização da unidade regional estruturada no período de exploração da borracha, submete o transporte fluvial a rápido processo de obsoletismo econômico (Ipea, 2001). Os novos vetores de circulação no interior são fortemente amparados pelas novas rodovias implantadas na região e pelos investimentos governamentais em infraestrutura por meio de planos de desenvolvimento. A intervenção do estado na região Amazônica se inicia durante o governo de Getulio Vargas em 1953, com a chamada “Marcha para o Oeste”, quando é criada a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), cujo objetivo era promover o desenvolvimento da região integrando-a à economia nacional. Tal política segue no governo de Juscelino Kubtischek, com o Plano de Desenvolvimento Nacional (PDN), do qual resultam a construção de Brasília e da rodovia Belém-Brasília (BR-010), além de investimentos em redes de comunicação, distribuição de energia elétrica, construção de hidrelétricas e outras rodovias interligando a região ao sul-sudeste e abrindo novas frentes de desenvolvimento da agricultura e da indústria. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Ao longo dos anos 1960 e 1970, novas frentes de investimentos são executadas, com a ação combinada de recursos públicos e privados por meio de programas oficiais como, por exemplo, a criação da Zona Franca de Manaus (1967), o Programa de Integração Nacional – PIN (1970); o Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte e Nordeste – Proterra (1971); o Programa de Pólos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia – Polamazônia (1974), Programa de Desenvolvimento do Cerrado – Prodecer (1974), entre outros, e a criação em 1967 da Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), que extingue a SPVEA. Fazem parte destes programas desde a implantação de estradas, projetos de incentivo ao estabelecimento de indústrias e produção agropecuária até projetos de colonização da reforma agrária. Grande parte dos projetos de colonização foi criada pelo governo federal durante a década de 1970 ao longo de novas rodovias, centralizando a administração da alocação de terras e distribuindo pequenas propriedades, em geral, menores que 100 ha. Além dos colonos atraídos pelo governo para projetos oficiais de colonização, a expectativa de ocupação fácil das terras disponíveis, acessíveis com a implantação das rodovias na região, fez que diversas outras pessoas migrassem espontaneamente para a Amazônia. O fracasso de alguns projetos levou o governo a atrair grandes empresas e fazendeiros por meio da oferta de incentivos fiscais para projetos agrícolas e de extração da madeira, em muitos casos com a dispensa de licitação para concessão das terras. Um caso emblemático é representado pelos resultados alcançados pela abertura da BR-163 (Cuiabá-Santarém), em 1976, que causou uma corrida ao desmatamento e diversos conflitos armados de ordem fundiária. A má distribuição e os usos distorcidos da terra em sua região multiplicaram-se, avolumando as tensões sociais. Pode-se perceber a forte concentração das terras na área de abrangência da BR-163 em que, segundo o Cadastro de Imóveis Rurais do Incra, as propriedades com até 100 ha representam 74,8% do número total, mas ocupam apenas 17,5% da área total dos imóveis rurais, enquanto os grandes imóveis com mais de 1.500 hectares são 5,9% do total, mas ocupam 54% da área total (Brasil, 2006). Hoje, importantes estradas se consolidam como os atuais eixos de urbanização da Amazônia: BR-163 (Cuiabá-Santarém), BR-174 (Cáceres/Manaus/Boa Vista), BR-319 (Manaus/Porto Velho), BR-153 (Marabá/RS – Transbrasiliana), ou mesmo a BR-230 (Transamazônica), além de estradas estaduais, como a PA-150. Ao longo destas rodovias diversos projetos de colonização deram origem a várias cidades que hoje servem de sustentação à produção agropecuária e à extração da madeira. No entanto, o processo de colonização não é homogêneo na Amazônia, sendo mais intenso no Acre, Rondônia e Pará. Projetos de colonização como Pedro Peixoto, Boa Esperança, Quixadá, Humaitá e Santa Luzia, entre outros, alteraram o quadro fundiário do Acre. Em Rondônia, mais de 90% dos seus municípios são originários de Projetos Integrados de Colonização (PICs), como Ariquemes e Ouro Preto, enquanto Roraima e Amapá são áreas praticamente desocupadas e vazias de infraestrutura econômica e social (Cardim, Vieira, Viégas, s.d.). No Pará, um movimento espontâneo de ocupação de terras devolutas ao sul do estado e na região do Bico do Papagaio se manifesta a partir da década de 1980, protagonizado por população afugentada pela seca do Nordeste, principalmente do Maranhão. Recentemente, esta região também tem recebido grande afluxo de migrantes devido aos projetos de mineração, especialmente na região de Carajás. 80

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O Incra, responsável pela coordenação de toda a colonização e projetos de reforma agrária, não foi capaz de exercer o controle da situação da terra, não só por causa da histórica complexidade da ocupação da terra, da corrupção e falta de investimentos para controlar a ocupação, mas também devido à ausência de conexão entre os entes federais e estaduais, entre o sistema cartorário e o sistema cadastral de terras rurais do Incra, abrindo espaço para a ação de grileiros, que levantam dúvidas até mesmo sobre os imóveis da União. Além disso, os problemas se manifestam dentro e fora dos projetos oficiais de colonização, pois pequenos colonos e invasores de terras ocuparam áreas de forma irregular ao longo das principais rodovias na expectativa de legitimar posses de até 100 ha. Outro fato que agrava ainda mais os conflitos é que o Incra não emancipou nem titulou áreas por mais de 15 anos, deixando os assentados em total situação de insegurança e dependência, visto que os sustentava por meio de uma série de atividades de apoio, num paternalismo pouco racional (idem). É nesse cenário que várias povoações se desenvolveram e tornaram-se cidades na região Amazônica, especialmente a partir da década de 1970.

O QUADRO URBANO ATUAL DA AMAZÔNIA LEGAL Os dados do IBGE demonstram o processo de urbanização brasileira de forma acelerada. Destaca que a população urbana em 1950 representava 36%, aproximadamente 18 milhões de habitantes, e em cindo décadas a população chegou a 169 milhões. Hoje, 82% dos brasileiros vivem em cidades. Em 50 anos, a população urbana cresceu mais de 150 milhões de habitantes. A área da Amazônia Legal, segundo o art. 2º da Lei Complementar 124, de 3 de janeiro de 2007, engloba todos os municípios dos estados de Roraima, Rondônia, Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Tocantins, Pará e parte do Maranhão. Totalizando 762 municípios, a Amazônia Legal ocupava cerca de 60% do território nacional, sendo que a sua população alcançou, segundo dados da Contagem da População de 2007 (IBGE), cerca de 22,3 milhões de habitantes ou 12% da população do país. Entre 1991 e 2000, a taxa de crescimento urbano na Amazônia Legal beirou os 5% ao ano, enquanto no Brasil foi de 2,4% ao ano. Entre 2000 e 2007, o crescimento foi menos intenso, porém ainda acima da média nacional, 2,2% contra 1,5%. Para se ter uma ideia desse crescimento, entre 1991 e 2007 a população urbana da Amazônia Legal praticamente dobrou de tamanho, passando de 8,9 milhões de pessoas para 16 milhões. As pequenas e médias cidades da Amazônia apresentam os maiores índices de crescimento populacional nas duas últimas décadas e, como salientam Cardoso & Lima (2006), o aspecto fundiário determina a direção da expansão urbana, quando as tensões no campo desencadeiam uma dinâmica de transformação que rapidamente alcança o perímetro urbano das sedes municipais. O mesmo processo se verifica em aglomerações mais afastadas, que se desenvolvem a partir de cruzamentos de vicinais com a Transamazônica, por exemplo, onde se localizam alguns dos serviços públicos, como escolas ou o comércio (Cardoso & Lima, 2006).

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Tabela 1 – Municípios da Amazônia Legal Municípios

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População 2007

(1.000 km ) 2

Brasil Amazônia Legal Cidades com menos de 20 mil habitantes Cidades com mais de 20 mil habitantes

(1.000 hab)

5.564 100% 762 13,7%

8.498 100% 5.016 59,0%

Total 184.000 100% 22.312 12,1%

Urbana 153.000 100% 15.996 10,5%

637

3.613

8.182

4.056

83,6%

72,0%

36,7%

25,4%

125

1.403

14.130

11.939

16,4%

28,0%

63,3%

74,6%

Taxa de urbanização 83,2% 71,7%

49,6%

84,5%

Fonte: Contagem da População 2007 (IBGE, 2008).

A taxa de urbanização média hoje na região é de cerca de 72%, sendo que grande parte da população urbana (75%) está localizada em 125 cidades com mais de 20 mil habitantes (Tabela 1). Os municípios destas cidades apresentam, em conjunto, uma taxa de urbanização de 85%, enquanto os municípios de cidades com menos de 20 mil habitantes apresentam uma taxa de urbanização de cerca de 50%. Em resumo, pode-se afirmar que a Amazônia, apesar do seu enorme patrimônio natural, possui uma considerável urbanização, muito embora tal afirmação deva ser encarada com cuidado em razão das sobreposições entre o rural e o urbano, especialmente nas cidades pequenas. Tal advertência se deve ao fato de que muitas cidades se desenvolveram em terras antes destinadas para os assentamentos rurais promovidos em terras da União pelo Incra, no âmbito da reforma agrária. Segundo dados preliminares do Incra, estimase que existam 169 municípios cujas áreas urbanas incidem em suas terras, e desses, 138 são cidades com menos de 20 mil habitantes. Esse é um indicativo de que a análise da urbanização na Amazônia não deve repetir esquemas teóricos que fazem sua leitura de modo desarticulado da dinâmica territorial, composta também pelas estruturas rurais (Castro, 2006). Desta forma, o espaço geográfico do município amazônico é constituído não só pela sede municipal, mas também pelo espaço ocupado pelas vilas e agrovilas, planos de assentamento, comunidades ribeirinhas, além das áreas da União plenas de conflitos devido à grilagem de terras para exploração madeireira e ampliação das áreas de pasto (Cardoso & Lima, 2006). Apesar do grande número de cidades pequenas na região (83,6%), os municípios com mais de 20 mil habitantes na Amazônia Legal concentram a maior parte da população urbana, cerca de 1,6 milhão de pessoas ou 63,5% da população vivendo em cidades, como mostra a Tabela 2.

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Tabela 2 – Municípios da Amazônia Legal com terras do Incra em áreas urbanas Municípios

Área

População 2007

(1.000 km ) 2

Cidades com terras do Incra em áreas urbanas Cidades com menos de 20 mil habitantes Cidades com mais de 20 mil habitantes

(1.000 hab)

Total

Urbana

169

1.315

4.062

2.596

100%

100%

100%

100%

138

871

1.922

948

81,7%

66,3%

47,3%

36,5%

31

443

2.140

1.648

18,3%

33,7%

52,7%

63,5%

Taxa de urbanização

63,9%

49,3%

77,0%

Fonte: Contagem da População 2007 (IBGE, 2008).

A situação fundiária de parte ou da totalidade destas 169 cidades se encontra indefinida, uma vez que, embora suas terras pertençam ao Incra, elas perderam, de fato, sua vocação de uso rural, apresentando ocupação urbana consolidada cuja reversão é impossível. A manutenção desta situação causa uma série de problemas e entraves ao desenvolvimento urbano sustentável, e ao cumprimento da função social da propriedade e da cidade, como estabelecidos na Constituição Federal (artigos 182 e 183) e no Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 2001). A falta de segurança quanto às moradias de milhares de famílias devido à falta de registro expõe a população a ameaças constantes de desocupações forçadas e invasões, impedindo também o uso econômico destes ativos no acesso a financiamentos. A falta de um responsável formal pelos imóveis também faz com que o poder público fique impossibilitado de implementar sua política urbana, especialmente na aplicação dos dispositivos de sua política de ordenamento territorial ou de instrumentos fiscais de controle do desenvolvimento urbano. O município também perde uma importante fonte de recursos uma vez que as transações imobiliárias que ocorrem à margem do registro, em mercados informais, faz com que deixem de ser recolhidos os impostos incidentes nestas transações. Além disso, uma vez que os municípios não detêm, de fato, o domínio das áreas públicas, fica muito difícil a realização de investimentos em infraestrutura, na melhoria dos espaços públicos, na implantação de equipamentos públicos comunitários para atendimento das demandas locais de saúde, educação, segurança e outros serviços urbanos, e também na execução de políticas habitacionais para responder ao crescimento populacional que muitas cidades ainda experimentam.4 O Gráfico 1 mostra como a irregularidade fundiária pode estar afetando o desenvolvimento urbano destas cidades. Utilizando dados do Censo de 2000, pode-se observar que, enquanto nos municípios da Amazônia Legal, em torno de 57% dos domicílios particulares permanentes urbanos não eram atendidos por rede geral de coleta de esgotos ou não possuíam instalações sanitárias, nos municípios cujas áreas urbanas incidem em terras do Incra, esta proporção era de 72%. A maior parte destes domicílios (65%) estava nas cidades com mais de 20 mil habitantes, enquanto na Amazônia Legal, esta proporção era de 50% nas cidades acima R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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4 A aplicação de recursos obtidos da União para realizar investimentos quando tiver por objeto a execução de obras ou benfeitorias em imóveis está condicionada, pela Instrução Normativa 01 de 15 de janeiro de 1997, da Secretaria do Tesouro Nacional, e pela Portaria Interministerial MPOG/MF/ CGU 127, de 29 de maio de 2008, à comprovação do exercício pleno dos poderes inerentes à propriedade do imóvel, mediante certidão emitida pelo cartório de registro de imóveis competente. Uma vez que a maioria dos municípios é dependente de recursos da União, seja por meio de convênios, contratos de repasse ou emendas parlamentares, a situação fundiária indefinida constitui sério entrave ao seu desenvolvimento.

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de 20 mil habitantes. Nas cidades menores, com população abaixo de 20 mil habitantes, a proporção se manteve praticamente equivalente, entre 83% e 85%. O mesmo Gráfico 1 mostra que nas 169 cidades com terras do Incra, cerca de 51% dos domicílios particulares permanentes não eram atendidos por rede de água, enquanto na Amazônia Legal esta proporção beirava os 33% em 2000. Tanto as cidades acima de 20 mil habitantes como aquelas abaixo deste patamar na Amazônia Legal apresentam precariedade inferior no abastecimento de redes de água potável em relação aos municípios cujas áreas urbanas são incidentes em terras do Incra. Gráfico 1 – Domicílios sem atendimento por redes de esgotos e de água na Amazônia Legal.

Fonte: Censo Demográfico, 2000 (IBGE).

De modo geral, os municípios com áreas urbanas em terras do Incra reuniam apenas 15,4% do total de domicílios particulares permanentes urbanos da Amazônia Legal em 2000, mas somavam cerca de 24% dos domicílios sem acesso à rede de água e 20% dos domicílios sem coleta de esgotos. A impossibilidade da realização de investimentos públicos nestas áreas compromete o desenvolvimento social da população, gerando também impactos negativos de ordem econômica e ambiental. Ao fim e ao cabo, os entraves gerados pela irregularidade fundiária das áreas citadas comprometem o desenvolvimento sustentável das cidades de modo geral.

A GESTÃO URBANA NA AMAZÔNIA LEGAL Embora o quadro geral urbano dos municípios na Amazônia Legal seja bastante precário, especialmente naqueles cujas áreas urbanas são incidentes em terras do Incra, a Pesquisa do Perfil dos Municípios Brasileiros de 2008 realizada pelo IBGE detectou que a 84

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região dispõe de médias superiores às do Brasil no que diz respeito a alguns instrumentos de política e planejamento urbanos à disposição dos municípios. A Tabela 3 mostra, por exemplo, que enquanto em 1985 apenas 8,8% dos municípios da Amazônia Legal dispunham de Plano Diretor, esta proporção em 2008 subiu para quase 36% dos municípios, enquanto no Brasil subiu de 14,5% para 33,8% no mesmo período. Tal crescimento pode ser atribuído à campanha de elaboração de Planos Diretores Participativos implementada pelo Ministério das Cidades, em cumprimento aos dispositivos do Estatuto da Cidade. Tabela 3 – Instrumentos de política e planejamento urbano – Brasil e Amazônia Legal Municípios

Brasil Total Amazônia Legal Total Mais de 20 mil habitantes Menos de 20 mil habitantes Amazônia Legal com terras do Incra Total Mais de 20 mil habitantes Menos de 20 mil habitantes

Total

Plano Diretor 2005

Plano Diretor 2008

Legislação Regularização Fundiária 2008

Programas de Regularização Fundiária 2008

Conselho Municipal de Política Urbana 2008

5.564 -

805 14,5%

1.878 33,8%

843 15,2%

593 10,7%

1.066 19,2%

762 -

67 8,8%

273 35,8%

153 20,1%

104 13,6%

144 18,9%

125

29

114

60

40

68

-

23,2%

91,2%

48,0%

32,0%

54,4%

637

38

159

93

64

76

-

6,0%

25,0%

14,6%

10,0%

11,9%

169 -

19 11,2%

77 45,6%

52 30,8%

65 38,5%

44 26,0%

31

4

29

17

22

17

-

12,9%

93,5%

54,8%

71,0%

54,8%

138

15

48

35

43

27

-

10,9%

34,8%

25,4%

31,2%

19,6%

Fonte: Perfil dos Municípios Brasileiros, 2008 (IBGE).

Sem entrar na questão da qualidade dos planos ou na sua efetiva implementação, os números indicam que na Amazônia Legal o crescimento proporcional de cidades que formularam novos Planos Diretores para orientar sua política urbana à luz do Estatuto da Cidade foi maior que no resto do país. Naquelas com mais de 20 mil habitantes (125) com obrigatoriedade de ter seus planos diretores, em torno de 91% cumprem a determinação, ao passo que naquelas com menos de 20 mil habitantes, em torno de 25% possuem planos diretores. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Estas médias são ainda maiores em relação às cidades onde as áreas urbanas incidem em terras do Incra – e apresentam, para as com mais de 20 mil moradores e com população inferior a esse limite, respectivamente, 93,5% e 38% com plano diretor. Pode-se especular que isso esteja relacionado ao fato de que a forte ação do estado no planejamento da ocupação da Amazônia possa ter criado uma maior propensão das municipalidades amazônicas em criar instrumentos próprios de política e planejamento urbano, especialmente nas cidades com terras do Incra, oriundas, em muitos casos, de projetos de assentamentos rurais. Mas tal afirmação pode não corresponder ao que se observa na prática quando se verifica o grau de descontrole na ocupação do território, especialmente em municípios com forte pressão demográfica em virtude da implementação de grandes projetos de mineração, avanço da fronteira agrícola ou projetos de infraestrutura, como as barragens. Por outro lado, a ineficácia dos instrumentos de planejamento em controlar processos intensos de crescimento urbano parece ser a regra no país, e não uma exceção na Região Amazônica. No que se refere à regularização fundiária, as médias na Amazônia Legal também superam às encontradas no restante do país. Enquanto naquela região cerca de 20% dos municípios possuem legislação específica que dispõe sobre regularização fundiária e em torno de 14% possuem plano ou programa específico de regularização fundiária, no Brasil estas médias são de 15% e 11%, respectivamente. Nos municípios com terras do Incra em áreas urbanas, estas médias são, respectivamente, de 31% e 38% aproximadamente. Destaca-se também que dos 762 municípios da Amazônia legal, por volta de 19% possuem Conselho Municipal de Política Urbana, Desenvolvimento Urbano, ou órgão semelhante, ao passo que no Brasil esta proporção é de pouco mais de 19%. Embora as médias apresentadas pelos municípios da Amazônia legal em termos de disponibilidade de instrumentos de política e planejamento urbano sejam superiores ou semelhantes às apresentadas pelo país, muito ainda necessita ser feito não só na construção desse arsenal nos municípios que ainda não dispõem dos instrumentos necessários à gestão do crescimento de suas áreas urbanas, mas também na capacitação de todos os municípios na efetiva implementação de suas políticas de desenvolvimento. Verifica-se que um dos grandes entraves à implementação de políticas e planejamento urbano é a baixa capacidade dos municípios em termos humanos e materiais. Desta forma, o apoio de estados e da União na capacitação de técnicos e no aparelhamento dos governos locais são desafios urgentes a serem enfrentados. Tal desafio é mais flagrante naqueles municípios que enfrentam intensos processos de crescimento urbano, no bojo dos investimentos públicos e privados realizados na região, muitas vezes acompanhados da sobreposição de conflitos agrários, ambientais e fundiários.

A POLÍTICA DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA URBANA PARA A AMAZÔNIA LEGAL Desde a extinção do BNH em 1996, o governo federal se ausentou em desempenhar um papel mais ativo de proposição de uma política de desenvolvimento urbano e habitacional para o país que fosse além de programas pontuais e isolados. Com o Estatuto da Cidade em 2001 e a criação do Ministério das Cidades em 2003, em que pese os equívocos e desafios ainda presentes, avanços de âmbito nacional podem ser sentidos. 86

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O Ministério das Cidades, criado a partir de uma antiga demanda do movimento pela reforma urbana, procurou integrar os setores de habitação, planejamento urbano, saneamento ambiental e transportes em um mesmo ministério. O Ministério foi assim estruturado em quatro Secretarias Nacionais e um Conselho das Cidades. O Conselho das Cidades nasceu como órgão colegiado deliberativo e consultivo, tendo por finalidade estudar e propor diretrizes para a formulação e implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Entre as quatro Secretarias Nacionais criadas, coube à Secretaria Nacional de Programas Urbanos – SNPU o papel de apoiar estados, municípios e entidades civis na elaboração e implementação dos Planos Diretores Participativos e na Regularização Fundiária Plena. O Programa de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável – Programa Papel Passado, criado junto com o Ministério das Cidades e coordenado pela SNPU, tem três estratégias básicas: • apoiar os estados, municípios e entidades civis sem fins lucrativos na promoção da regularização fundiária de assentamentos de baixa renda em áreas urbanas; • remover os obstáculos existentes na legislação; • capacitar os agentes que promovem a regularização fundiária, incluindo os gestores e técnicos municipais e os operadores do Direito. Decorridos seis anos do Programa de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável, os resultados obtidos mostram que a regularização fundiária já se integrou às agendas municipais e estaduais de política urbana. Um número significativo de municípios de todo o país já se encontra desenvolvendo programas ou projetos de regularização fundiária. Segundo dados do monitoramento da SNPU, até dezembro de 2009 foram contabilizados 2,6 mil assentamentos em processo de regularização em 472 municípios, com 1,7 milhão de famílias com processos de regularização fundiária iniciados. Deste total, 370 mil famílias receberam o título de propriedade ou posse do seu lote, sendo que 137 mil desses títulos foram devidamente registrados nos cartórios de registro de imóveis. Nos estados da Amazônia Legal, são 176 assentamentos em processo de regularização em 65 municípios, beneficiando 473 mil famílias. Deste total, 118,4 mil famílias receberam o título de propriedade ou posse do seu lote, e 45,4 mil deles foram devidamente registrados nos cartórios de registro de imóveis. Estes números são importantes, mas não suficientes, pois o atual universo de informalidade urbana, de acordo com estimativas realizadas pelo Ministério das Cidades com base nos dados do Censo de 2000 do IBGE, ultrapassa 12 milhões de moradias, habitadas por famílias com renda mensal de até 5 salários mínimos. Na Amazônia Legal, este total supera um milhão de moradias, podendo ser ainda mais elevado se forem contadas as posses e permissões com títulos precários. Apesar de todos os esforços já realizados para o apoio à implementação de programas de regularização em todo o país, existem especificidades regionais que ainda criam obstáculos, questões que acabam não sendo tratadas nas legislações de caráter geral formuladas para todo o país. Deste modo, na Amazônia Legal é necessária a retirada de vários obstáculos que hoje burocratizam e até mesmo impedem a regularização fundiária em terras da União, juntamente com ações específicas que qualifiquem e agilizem os processos de regularização fundiária na região. Um destes entraves refere-se à legislação disponível até 2009 para a transferência de terras devolutas da União ou do Incra, remanescentes de núcleos de reforma agrária, aos municípios da Amazônia Legal. A Lei 6.431, de 11 de julho de 1977, e a lei 5.954, de R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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3 de dezembro de 1973, nunca surtiram o efeito desejado, uma vez que deixavam muitas lacunas nos procedimentos de como se daria o processo de transferência destas áreas, gerando longos e incertos ritos de transferência de terras, muitas vezes com exigências difíceis de serem cumpridas pelos municípios. Outros fatores se ligam ao complexo emaranhado de títulos e certidões presentes e às incertezas quanto ao registro de terras na Amazônia, conforme relatado no início deste artigo, que põem em dúvida até o registro de terras da União. Isso sem mencionar os notórios casos de corrupção nos cartórios, como livros guardados nas casas dos registradores, cartórios que se incendeiam mais de três vezes, livros mal preservados e concessões irregulares de títulos por municípios e estados. Como resultado, o fato é que raras foram as ações de destinação de terras pelo governo federal na Amazônia Legal aos municípios que chegaram a uma resolução desde a década de 1980, o que abriu espaço para a intensificação do ambiente de instabilidade jurídica, resultando no aumento da ocupação desordenada alimentada pela grilagem de terras, o que, por sua vez, levou ao acirramento dos conflitos agrários e ao avanço do desmatamento. Na busca por uma solução para esta grave questão, em 2009 foi iniciada uma ação compartilhada com vários órgãos federais, estaduais e municipais a fim de se construir uma ação nacional ampla para a regularização de áreas rurais e urbanas na Amazônia Legal. Em 10 de fevereiro de 2009, o governo editou a Medida Provisória 458, com o objetivo de adequar os dispositivos legais de modo a permitir que a doação das terras da União seja implementada de forma mais célere apara a regularização das ocupações incidentes tanto nas áreas rurais como nas áreas urbanas. A MP 458, depois de polêmica discussão no Congresso Nacional e com a sociedade em geral, foi finalmente convertida na Lei 11.952, de 25 de junho de 2009. Esta lei, em que pese o desagrado de alguns setores quanto a alguns dispositivos vinculados à questão da alienação de terras nas áreas rurais, especialmente grupos de defesa do meio ambiente que alegaram que a doação das terras incentivaria o desmatamento e a ocupação desordenada, constitui um importante marco na regularização fundiária na Amazônia Legal.

A NOVA LEGISLAÇÃO PARA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA DE ÁREAS URBANAS NA AMAZÔNIA LEGAL A regularização fundiária e urbanística das áreas de propriedade do Incra na Amazônia Legal que perderam sua vocação para o uso rural é uma condição necessária e fundamental para trazer à legalidade porções consideráveis de muitas cidades. A edição da MP 458, convertida na Lei 11.952, simplifica os procedimentos e exigências para a doação ou concessão de terras do Incra e da União aos municípios, de modo a realizar a regularização fundiária de suas áreas urbanas. A nova lei estabelece que as doações e concessões de terras da União ou do Incra possam ser efetuadas tanto em áreas com ocupações urbanas consolidadas como em áreas de expansão urbana, desde que as demandas sejam enquadradas nos critérios específicos definidos na nova legislação e sua regulamentação. As áreas com ocupações urbanas consolidadas serão aquelas onde existe sistema viário implantado, pavimentado ou não, e que tenha ocupação caracterizada como urbana, isto é, moradias, áreas de comércio e serviços, equipamentos urbanos, e outros usos; bas88

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tando o requerente da destinação das áreas comprovar as condições de ocupação com uso urbano, por meio de imagens ou levantamento fotográfico e laudo comprovando a perda da vocação rural da área. A área de expansão urbana é definida como a área ou conjunto de áreas previstos em Plano Diretor ou lei municipal específica de ordenamento territorial urbano, sem ocupação para fins urbanos já consolidados e que também tenham perdido sua vocação para uso rural. A solicitação de doação de áreas ou de concessão de direito real de uso deverá ser encaminhada pelo município ao Ministério do Desenvolvimento Agrário ou à Secretaria do Patrimônio da União. No primeiro caso, quando se tratar de áreas arrecadadas ou administradas pelo Incra e, no segundo, quando se tratar de áreas da União, que, após análise da Secretaria do Patrimônio da União, poderão ser repassadas por meio de concessão de direito real de uso. De modo a identificar a área pretendida em relação aos registros do Incra ou da União, a prefeitura municipal deverá apresentar também a planta georreferenciada do perímetro da área acompanhada do respectivo memorial descritivo. O Incra, em conjunto com a SPU, identificará o posicionamento correto da área em relação às glebas registradas em nome do Incra ou da União e fará o devido destaque para realizar a doação ou a concessão da área ao município, caso não haja nenhum impedimento, como títulos definitivos concedidos a particulares, desapropriações ou outros obstáculos. No caso de áreas para expansão urbana, o município deverá apresentar, também, lei do Plano Diretor ou da lei municipal específica contendo o ordenamento territorial urbano, de acordo com os quesitos exigidos pela regulamentação da lei. Basicamente, pretende-se que para a obtenção das áreas o município defina minimamente as diretrizes para a sua ocupação, ou seja, as diretrizes para proteção ambiental e do patrimônio histórico e cultural, parâmetros urbanísticos de parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, densidade populacional, sistema viário, infraestrutura e delimitação de Zonas Especiais de Interesse Social. O ordenamento territorial urbano deverá adequar-se às disposições da lei do Plano Diretor Municipal, quando houver, e aos princípios do Estatuto da Cidade, devendo ser apresentado em audiência pública e ao Conselho Municipal da Cidade ou similar, quando houver. Esta exigência visa possibilitar uma ampla discussão da necessidade de expansão urbana do município ou de implantação de novas áreas urbanas. Deve-se destacar que a exigência de apresentação do ordenamento territorial não é colocada para a doação de terras incidentes em áreas com ocupações urbanas consolidadas. Tal procedimento se justifica no sentido de preservar e garantir o direito de moradia, remediando as situações de insegurança da posse. Ademais, a exigência de Planos Diretores para municípios com menos de 20 mil habitantes seria uma exorbitância da lei, uma vez que tal exigência não é prevista no Estatuto da Cidade ou na Constituição Federal. Embora desejável, o ordenamento territorial consubstanciado em planos diretores incide apenas nos municípios com população acima de 20 mil habitantes. Além disso, conforme foi visto, dos 31 municípios com mais de 20 mil habitantes com terras do Incra em áreas urbanas, 29 já possuem planos diretores, enquanto 35% dos 138 municípios com menos de 20 mil habitantes com terras do Incra em áreas urbanas possuem planos diretores. Assim, a exigência de ordenamento territorial para estes municípios, a maioria dos quais sem recursos, poderia inviabilizar a regularização fundiária das áreas urbanas, condenando os seus moradores a uma permanente situação de insegurança em relação às suas moradias. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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As terras da União ou do Incra só serão destinadas aos municípios após consulta à Secretaria do Patrimônio da União (SPU), Fundação Nacional do Índio (Funai), Serviço Florestal Brasileiro (SFB), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Ministério das Cidades. Quando as terras se situarem em faixas de fronteira, também o Conselho de Defesa Nacional (CDN) será consultado. Os títulos de doação ou de concessão de direito real de uso deverão ser registrados no Registro Geral de Imóveis em favor do município e deverão prever a regularização fundiária dos lotes ocupados em favor dos efetivos ocupantes, de acordo com a Lei 11.952, de 2009. A regularização a favor dos ocupantes será efetuada da mesma forma que ocorrer a destinação das terras ao município, isto é, por doação nas terras do Incra ou Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) nas áreas concedidas pela SPU. A alienação das áreas para os moradores será gratuita para aqueles que tenham ingressado na área antes de 10 de fevereiro de 2009 e que atendam às seguintes condições: não possuir renda familiar mensal superior a 5 salários mínimos, ocupe área urbana de até 1.000 m2, sem oposição, por no mínimo um ano ininterrupto, utilize o imóvel como única moradia e não seja proprietário ou possuidor de outro imóvel urbano ou rural acima de quatro módulos fiscais. A prefeitura municipal poderá também alienar de forma onerosa, precedida de licitação com direito de preferência, das áreas entre 1.000 m2 e 5.000 m2, desde que se comprove a ocupação por um ano ininterrupto, sem oposição, até 10 de fevereiro de 2009. Acima dos 5.000 m2, as áreas serão alienadas por licitação aberta. Além disso, no artigo 35 da nova lei, está prevista a gestão democrática dos processos de aplicação da nova legislação, com a instituição de comitê constituído de representantes da sociedade civil organizada que atue na Região Amazônica. Esta inclusão é importante, pois permitirá que as atividades de doação de terras e regularização fundiária possam ser definidas, avaliadas e monitoradas com transparência em conjunto pelo poder público e pela sociedade civil. Finalmente, a lei estabelece que os estados da Amazônia Legal aprovem no prazo de três anos, a contar da data de vigência da lei, mediante lei estadual, seus Zoneamentos Ecológico Econômico – ZEEs, sob pena de não poderem celebrar convênios com a União até que tal obrigação seja adimplida. Este dispositivo é eficiente na medida em que estimula a elaboração dos ZEEs a fim de garantir o desenvolvimento econômico sustentável da região. Para a implementação da nova lei e das ações por ela prevista, foi criado o Programa Terra Legal, lançado em junho de 2009 e coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, com participação do Ministério das Cidades, Secretaria do Patrimônio da União e demais órgãos envolvidos. As ações de regularização fundiária do programa se sobrepõem a outras ações do governo, como a Operação Arco Verde, direcionada ao desenvolvimento sustentável de 43 municípios da Amazônia com os maiores índices de desmatamento ilegal do país, e o Territórios da Cidadania, que tem como objetivo promover o desenvolvimento econômico sustentável e universalizar programas básicos de cidadania. Segundo dados do Programa Terra Legal, mais de 73 mil posseiros já foram cadastrados para a regularização de posses rurais de até 15 módulos fiscais (cerca de 1.140 hectares), com área declarada de mais de 8,2 milhões de hectares até junho de 2010. Nas terras incidentes em áreas urbanas, o MDA já demarcou o perímetro de cerca de 95 áreas urbanas em sedes e vilas de 87 municípios, cujos processos de destinação das terras já 90

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foram iniciados, o que beneficiará mais de 5 mil famílias. O programa já fez a doação em 2009 de uma área ao município de Porto Velho, correspondente aos bairros Socialista e Jardim Santana, nos quais habitam cerca de 20 mil pessoas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Um ponto fundamental para a reversão do quadro de irregularidades fundiárias nas cidades da Amazônia é a presença mais sólida do estado nas áreas inóspitas da região. Esta reversão depende de diversos fatores que envolvem ações específicas dos governos federal e estadual na remoção de obstáculos legais para a destinação das áreas públicas aos seus efetivos ocupantes, passando pela alocação de recursos financeiros e melhoria da capacidade de gestão das prefeituras, por meio do apoio do Ministério das Cidades e dos órgãos de Planejamento e dos Institutos de Terras dos estados. Passa também pela reestruturação dos cartórios da região. O Conselho de Justiça Federal destaca que a situação encontrada nos cartórios do estado do Pará reclama providências urgentes de preservação da instituição de registros e notarial e medidas correcionais que visem sanar a insegurança jurídica na questão da posse e domínio das terras, campo fértil para fraudes financeiras e causa, ainda que remota, dos conflitos fundiários urbanos e rurais (CNJ, 2009). A situação do Pará, talvez a mais crítica na Amazônia, cujos registros de terras podem chegar a três vezes a área do estado, exemplifica a confusão que é o sistema de registros na região. No Acre, sobrepõe-se ainda um outro elemento a completar a mixórdia de registros existentes, os títulos bolivianos. Diversas cidades da Amazônia, especialmente as pequenas e médias, enfrentam acelerado processo de crescimento, seja por conta de grandes projetos de infraestrutura, como a construção das hidrelétricas de Girau e Santo Antônio no Rio Madeira, que têm atraído grandes contingentes populacionais para Porto Velho, Rondônia, seja pela crescente atividade mineradora na região de Carajás, que tem pressionado o crescimento das cidades na região, tanto nas áreas de avanço da fronteira agrícola, no norte do Mato Grosso, Rondônia, sul do Amazonas e do Pará, como nas periferias das grandes capitais da região, Belém e Manaus. A este crescimento sobrepõem-se problemas de ordem urbanística, social, econômica e ambiental e as dificuldades que a maior parte dos governos locais apresentam no ordenamento do crescimento de suas cidades são múltiplas. A nova legislação aplicável à regularização fundiária na Amazônia Legal, em que pese o objetivo de agilizar os procedimentos administrativos e legais que tornarão possível a concretização da regularização das cidades e o planejamento da ocupação territorial em bases sustentáveis, e as ações do Programa Terra Legal para implementação da lei não são suficientes. Verifica-se que, assim como grande número dos municípios brasileiros, a maior parte dos municípios amazônicos possui limitações técnicas e financeiras para a concretização dos processos de regularização e de implementação das suas políticas de desenvolvimento urbano. Esse parece ser o grande entrave para a regularização fundiária urbana na Amazônia. A melhoria institucional dos governos municipais da Amazônia é urgente, seja na questão da ampliação de receitas próprias, seja na capacitação de técnicos para formulação de políticas e planejamento das cidades. O Ministério das Cidades executa diversas R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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A Denise de Campos Gouvêa é arquiteta e mestre em Planejamento Urbano (UnB); assessora técnica do Ministério das Cidades e professora do curso de Arquitetura e Urbanismo, Faculdades Integradas do Planalto Central – FACPLAC. E-mail: [email protected] Paulo Coelho Ávila é arquiteto e mestre em Planejamento Urbano (UnB) e analista de Infraestrutura do Ministério das Cidades. Email: [email protected] Sandra Bernardes Ribeiro é arquiteta e mestre em Planejamento Urbano (UnB), e gerente de Projetos do Ministério das Cidades. E-mail: [email protected] Artigo recebido em março de 2009 e aprovado para publicação em setembro de 2009.

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ações de capacitação e assistência técnica em planejamento e gestão urbana, com o objetivo de fortalecer a capacidade técnica dos municípios para elaborar estratégias de desenvolvimento que viabilizem os investimentos em infraestrutura social e urbana, sendo importante ampliar as ações do Ministério na região. Assim é que, ao mesmo tempo em que se altera o arcabouço legal que permite que a regularização fundiária urbana se dê de modo mais célere e com procedimentos específicos, como aqueles apontados na nova Lei 11.977, de 2009, que trata em seu capítulo III da regularização fundiária, é preciso investir mais fortemente na capacitação e sensibilização dos agentes locais da regularização fundiária, incluindo os gestores e técnicos municipais, capacitação de notários e registradores, como aponta o relatório do CNJ (2009), e dos operadores do Direito. Nada adianta a evolução da normativa aplicável à regularização se os entes que decidem ainda estão apegados a conceitos e abordagens já superadas pela norma.

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A B S T R A C T This article reviews how the irregular occupation of land in the Amazon region generated conflicts that claimed for a federal law for a resolution. In the 1970's, to stimulate occupation of the region, the federal government developed programs to give away public land to settlers and firms willing to explore the region, under the coordination of INCRA, the national government agency for agrarian reform. However, lack of a rigorous process of land distribution and oversight of land use allowed the formation and growth of cities in several rural settlements. This resulted in many urban areas where insecure land tenure affects thousands of housing and public buildings overall in the region. To resolve this situation, the federal government edited the Federal Law 11,952 in 2009, establishing the specific conditions and regulations to transfer federal land to the municipalities in order to regularize land ownership and promote sustainable urban development. K

E Y W O R D S Land regularization; Amazonian Region; urbanization; urban development; insecure land tenure.

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A ATUAÇÃO DO MONTEPIO NA PRODUÇÃO ESTATAL DE HABITAÇÃO EM JOÃO PESSOA DE 1932 A 1963 ANGELA ARAUJO NUNES R

E S U M O Este trabalho objetiva o exame da atuação da Carteira Imobiliária do Montepio do Estado da Paraíba na produção estatal de habitação na cidade de João Pessoa, de 1932 a 1963, período entre a designação da instituição para a produção de moradias em benefício do funcionalismo público até sua última realização antes da criação do BNH. Através de exaustiva pesquisa documental, realizada em acervos locais, e tendo como principal fonte o jornal A União, registro oficial das realizações do Executivo estadual, foram recolhidos dados sobre as realizações habitacionais do instituto, possibilitando a identificação das suas vilas e conjuntos populares e, posteriormente, a classificação das unidades construídas e a reconstituição da planta e fachada originais.

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C H A V E Montepio; João Pessoa; carteira imobiliária; habita-

INTRODUÇÃO A questão habitacional, entendida como necessidade de provisão de uma morada para as classes menos abastadas, teve sua origem e consolidação nas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais ocorridas a partir do século XVIII, com a Revolução Industrial. Baseado na insalubridade e degradação produzidas pela inadequada confluência populacional, o poder público foi compelido a intervir, primeiro através de medidas sanitaristas, e em seguida com a determinação de leis e normas que buscavam, além da higiene, a necessária disciplina construtiva para a edificação das casas e alojamentos operários e populares. Ainda assim, o fornecimento de moradia para aqueles desfavorecidos, tardou a ser encarado como uma responsabilidade estatal. A habitação do operário, do trabalhador, do pobre continuava destinada ao especulador privado e, lentamente, o Estado chegou ao posto de agente direto responsável por conter e eliminar o déficit habitacional. Por conta da insustentável condição urbana que se formara e pela pressão popular, o empenho governamental direcionou-se para ações concretas, como a construção de casas, vilas, conjuntos e até bairros inteiros para a população desprovida. Desta forma, a atuação pública tornava habitação subsidiada um sinônimo de habitação popular. O resultado construído do comprometimento governamental passou a ser elemento não só arquitetônico, mas político, econômico e social na formação das cidades, e casa subsidiada tornou-se um definidor do espaço urbano. Até a década de 1930, a Europa já apresentava um amadurecimento pioneiro na questão habitacional. Em parte, devido às transformações urbanas desencadeadas pela Revolução Industrial, mas, fundamentalmente, devido às experiências ocorridas após a Primeira Grande Guerra, com o envolvimento estatal no provimento de habitação para o trabalhador. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Em João Pessoa, encontramos duas etapas distintas, balizadas pela forma de atuação dos governos locais. A primeira se situa entre o surgimento e a afirmação do processo de mecanização da produção. Nesta fase, o Estado, em suas várias esferas, ocupou-se apenas indiretamente da resolução do problema, através da criação e implementação de leis sanitárias e mecanismos burocráticos para obtenção de moradia, ficando no âmbito privado a maioria das obras construídas. O outro momento se situa no período entre-guerras, quando a iniciativa pública direciona-se ao cooperativismo, com incentivo direto para a realização de moradias através de instituições de origem previdenciária. Mesmo que esta fase tenha sido marcada pelo início da construção em massa de edificações e conjuntos habitacionais, o Estado ainda não assumia a posição de promotor ou executor da moradia popular, apenas mostrava-se disposto a colaborar com os institutos e organizações que objetivavam concretizar a habitação para seus associados. Esta forma de atuação estatal, seja pela comodidade burocrática ou pelo sucesso construtivo, tornou-se um modelo de participação reproduzido em diversos países, como no caso brasileiro, por exemplo, onde a maior parte da habitação realizada pelo governo provinha de sociedades mutuárias. No Brasil, destaca-se a produção de moradia pelo Estado pela atuação do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) através do Banco Nacional de Habitação (BNH), criado em 1964, tanto por ser o primeiro executor de uma política habitacional no país, quanto pela quantidade de unidades que foram construídas. Mas as experiências anteriores também desempenharam importante papel na tentativa de prover moradia popular. As primeiras manifestações de preocupação com a problemática habitacional remontam ao período final do Império. Contudo, as ações governamentais para aqueles que não tinham condições de obter moradias sem ajuda começaram a ser realizadas apenas a partir do século XX, quando as cidades do país, ainda eminentemente agrário, consolidavam-se como centros urbanos e “modernos” nos moldes europeus, mas com grande parte da população composta por escravos libertos. Enquanto as cidades cresciam, a estrutura urbana entrava em colapso, como no caso europeu, por questões de aglomeração populacional e deterioração do espaço, agravadas pelas condições de moradia dos necessitados. O governo brasileiro, em suas diferentes esferas de atuação, perseguiu as mais distintas soluções para sanar a dificuldade habitacional da população pobre ou do trabalhador humilde. Até dar execução diretamente à construção de casas, o Estado colocou-se como incentivador da construção privada e como executor de uma rígida postura higienista para garantir o controle sobre a cidade e “resolver” a questão habitacional. No princípio, a ação do poder público foi incipiente, com poucas realizações concretas e poucas unidades construídas. O embrião de uma política habitacional só se formou a partir da República Nova (1930-1937), com a criação dos IAPs (Institutos de Aposentadoria e Pensão), entidades que realizavam programas de financiamento das habitações, cuja prerrogativa era a de que os beneficiados deveriam pertencer a determinadas categorias trabalhistas, de forma que a aquisição da casa própria ficava restrita a pequenas parcelas da população, deixando as camadas menos favorecidas excluídas desses benefícios. As carteiras prediais destes institutos foram as maiores empreendedoras de habitação no país, inclusive durante o Estado Novo (1937-1945), responsáveis por inúmeros conjuntos habitacionais que se tornaram símbolos do ideário da arquitetura moderna. A produção dos IAPs foi abalada pela inflação, pois “muitos dos financiamentos para a compra da casa própria não eram reajustados (não havia ainda o sistema de correção monetária), 96

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de modo que os Institutos tiveram que absorver os prejuízos decorrentes da desvalorização da moeda” (Finep/GAP, 1983, p.55). Com a criação da Fundação da Casa Popular (FCP), em 1946, o Estado pretendia sistematizar as atividades, até então dispersas, de todos os órgãos do governo que vinham intervindo no setor da habitação para a população de baixa renda, especialmente para responder aos anseios daqueles que não participavam do mercado formal de trabalho, e que por isso não tinham acesso aos programas dos IAPs. Com limitados recursos para o seu vasto campo de atuação, a FCP chegou a construir apenas 4.879 unidades em 45 cidades de 12 estados do país. Até a instituição do SFH e BNH, quando a ação governamental passou a acontecer de forma coordenada e sistemática, havia apenas esforços desconcentrados para a construção de unidades. Um marco, não necessariamente positivo, na forma de gestão da questão da habitação pelo Estado, visto que a provisão de moradia passou a ser um mero mecanismo de reaquecimento da economia na época, sem a necessária preocupação social ou urbanística. Todas estas iniciativas foram importantes na abordagem do problema habitacional no país e na tentativa de solucioná-lo. As realizações destas diversas instituições públicas marcaram a paisagem de muitas cidades, bem como foram fatores determinantes do desenho e da expansão de muitas delas, mesmo que o planejamento não fizesse parte da política de implantação das unidades. Na cidade de João Pessoa, como em diversas capitais do Brasil, anteriormente à atuação do BNH, os IAPs e a FCP se encarregavam de promover casa própria para seus segurados associados mediante parcelas amortizadas e tiveram grande importância no desenvolvimento e na definição do traçado urbano, como apontam diversos estudos (Cavalcanti, 1999; Lavieri, 1999). Mas, antes dos renomados institutos federais, o governo da Paraíba prontificou-se a auxiliar seu funcionalismo na solução do problema da casa própria.

O MONTEPIO DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS NA PRODUÇÃO HABITACIONAL DE JOÃO PESSOA Em 15 de setembro de 1912 foi criada a Sociedade de Benefícios e de Auxílio Mútuos Cooperativa Predial Parahybana. Por meio desta instituição, o governo estadual construiria e, preferencialmente, incentivaria a construção de moradias através da desapropriação de terrenos e da isenção fiscal para as empresas construtoras responsáveis pelas séries ou subséries de edifícios, para os materiais empregados na construção e para o próprio edifício. Além da utilização destes instrumentos de estímulo, o Estado se prontificaria a realizar as intervenções urbanas necessárias. Contudo, não foram realizadas edificações, nem foram encontrados registros da atividade da Cooperativa. Apenas em 1913 seria fundada a instituição responsável pela realização das primeiras unidades de habitação subsidiada no Estado: o Montepio dos Funcionários Públicos do Estado da Paraíba. O órgão tinha cunho previdenciário e assistencialista, era mantido por seus associados, que formavam um fundo para a cobertura de determinados infortúnios no intuito primeiro de prover pensões e conceder empréstimos. No ano de 1929, o então presidente do Estado, João Pessoa Cavalcanti de Albuquerque, sugeriu em mensagem oficial que o Montepio passasse a construir edificações para os servidores, como forma de incentivo aos funcionários. Com a morte do presidente em 1930, o plano de consR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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trução de habitações foi retomado em 1932, quando foi fundada a Carteira Imobiliária do Montepio, objetivando o financiamento para construção, aquisição, ampliação e liberação de edifícios residenciais destinados aos seus segurados. Nosso objetivo foi examinar a atuação do Montepio na produção estatal de habitação em João Pessoa, sem o propósito de estabelecer discussões de ordem arquitetônica, estética ou estilística e, assim, realizar a exposição, caracterização e classificação das unidades populares construídas em conjuntos e vilas pela instituição, agrupadas de acordo com o período em que foram edificadas. Através de um inventário das habitações construídas, definimos o recorte temporal de 1932 a 1963, estabelecido pela criação da Carteira Imobiliária até a última realização de habitação popular da instituição antes da atuação do BNH na cidade. Separamos este período em duas etapas, utilizando como marco divisor a atualização estrutural que transformou o Montepio dos Funcionários Públicos do Estado da Paraíba em Montepio do Estado da Paraíba (MEP). Na primeira etapa, estão compreendidas as habitações construídas entre 1932 e 1941, anos iniciais da criação da Carteira Imobiliária. A segunda etapa vai de 1942, quando o interventor Ruy Carneiro sanciona a alteração para MEP, até 1963, ano que antecede a criação do BNH. O órgão continuou a construção de unidades habitacionais para seus funcionários públicos, mesmo após a instauração do BHN, e o fez de maneira ainda mais organizada, através do estabelecimento de políticas voltadas exclusivamente para a concessão das moradias. Isso foi possível com a reestruturação ocorrida em 1970, quando o governador João Agripino assinou o Decreto 5.144 de 27 de outubro, que transformava o MEP em Instituto de Previdência do Estado da Paraíba (IPEP). O MONTEPIO E A CARTEIRA IMOBILIÁRIA: 1932 A 1941 Com a instauração da Carteira Imobiliária, foram mantidas as funções primordiais do Montepio – o pagamento de pensões e a concessão de empréstimos; porém, começou a ser disponibilizado capital para financiamento da construção de edifícios, compra de terrenos e aquisição de prédios já construídos. Todas estas ações visavam o uso exclusivamente residencial, não sendo permitidos financiamentos para construções comerciais ou de qualquer outra natureza.

Figura 1 – Trecho da av. Almirante Barroso onde foram implantadas as primeiras unidades. Fonte: Google Earth. 98

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O ato inaugural da ação habitacional ocorreu em janeiro de 1932. Por meio de concorrência pública, a diretoria do Montepio selecionou a proposta do engenheiro e construtor Giovanni Gioia para a construção das dez primeiras casas, pelas vantagens de economia e conforto que o empreiteiro oferecia. As edificações foram construídas em terrenos de propriedade do órgão localizados na atual avenida Almirante Barroso, à época avenida Walfredo Leal, onde ainda era possível a implantação de mais 30 casas. A área escolhida, próxima ao Parque Solon de Lucena e zona eminentemente residencial, consolidou-se pela quantidade de prédios construídos ou comprados pelo Instituto. Posteriormente, essa extensão seria delimitada como bairro Montepio. Para estas primeiras unidades foram oferecidos quatro tipos de construções: casa tipo A, com área de 100 m2, custo de 15:000$000 e construída isoladamente; casa tipo B, com 120 m2, custo de 18:000$000 e também isolada; casa tipo C, com 85 m2, custo de 12:500$000 e agrupadas duas a duas; e a casa tipo F, com 40 m2, custo de 6:000$000 e dispostas em séries maiores. Todos os tipos de edificações contavam com instalações de água, luz e esgoto, e os mesmos materiais de construção e acabamento: paredes de alvenaria, estrutura de concreto, piso de tacos e forro de madeira nos dormitórios e salas, piso de mosaico hidráulico e paredes revestidas de azulejo na cozinha e banheiro. A distinção entre as unidades ficava por conta da quantidade de cômodos e de suas respectivas áreas. As casas com maior área e custo mais elevado eram destinadas aos contribuintes dos cargos mais elevados, funcionários que gozavam de melhores salários e poderiam pagar financiamentos maiores. As edificações do tipo B eram compostas por quatro quartos, duas salas, terraço, cozinha, banheiro e lavanderia externa; e as do tipo A e C, que tinham três quartos, sala, terraço, cozinha e banheiro. Para os funcionários mais humildes restavam as casas do tipo F, com apenas um quarto, sala, pequeno terraço de chegada, cozinha e banheiro. Contudo, não há registro de quantas unidades de cada padrão foram construídas nem um número final exato. Apesar dessa imprecisão, as construções foram realizadas e ficou comprovada a viabilidade do plano imobiliário da instituição. Os tipos de unidades definidos tornaram-se referência para as residências produzidas por particulares na cidade e foram adotados como modelos para construções futuras propostas pelo Montepio, populares ou não.

Figura 2 – Vista de unidade construída em 1932, imagem realizada em julho de 2008. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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A instituição ajustou seus regulamentos para as especificidades da Carteira Imobiliária, o que passou a ser, em curto espaço de tempo, uma de suas atividades mais solicitadas. O serviço de habitação subsidiada continuava exclusividade do Montepio, não obstante já tivessem sido criados alguns IAPs em João Pessoa. No entanto, nenhum deles havia habilitado suas carteiras prediais ou começado a construção de edificações. À população não atendida pelas entidades públicas restava recorrer ao autoempreendimento da casa própria ou às empresas privadas de promoção predial que se disseminavam na cidade. Eram empresas que contemplavam seus mutuários através de sorteios dos títulos de capitalização, como a Auxiliadora Predial S.A., Constructora Universal Ltda., Líder Construções ou A Promotora da Casa Própria S.A., todas sediadas em outros estados, mas com sucursais instaladas em João Pessoa a partir de 1934, em busca do crescente mercado disposto a livrar-se do aluguel. O Montepio ainda não contava prontamente com o suporte financeiro do governo do Estado, que alegava não poder cumprir suas obrigações devido às despesas de combate à seca que assolava a Paraíba e às obras do Porto de Cabedelo, embora reconhecesse sua dívida para com o funcionalismo e pretendesse quitá-la. Ainda que contasse apenas com o capital advindo da contribuição dos funcionários e do lucro de seus próprios investimentos, o Montepio prosseguia com as construções e assumia importante papel no desenvolvimento da cidade, de acordo com os depoimentos na Imprensa Oficial: Essa instituição vem contribuindo de maneira notável para a solução do problema da casa própria nesta capital. Iniciadas as construcções das primeiras residências para os seus contribuintes, mediante amortização mensal dentro dos prazos de 10 e 15 annos, todo um moderno bairro situado numa das zonas mais amenas da cidade já se acha coberto de lindas casas, dando ao local uma feição de urbis adiantada e progressista. (A União, 1935, p.42.)

A Carteira Imobiliária começava a se firmar e, entre 1932 e 1934, possibilitou a construção de 63 casas, mas ainda não havia propostas ou construções de unidades populares. No ano de 1935 seria construído o primeiro conjunto de habitação popular do Montepio, e também de João Pessoa, realizado no bairro que passaria a se chamar Montepio. Conhecido como Vila Macacos, o conjunto era formado por 35 unidades padronizadas, implantadas com generosos afastamentos laterais. Essas unidades distanciavam-se do padrão popular pela tipologia e pelo alto nível de qualidade das construções, mas alguns problemas na implantação da vila ainda inquietavam: Continua afeiando, consideravelmente o novo bairro dessa instituição, a falta dos respectivos muros e balaustradas [previstos nas especificações dos projetos]. Esperam os interessados que a digna e criteriosa directoria não deixe, por mais tempo, sem solução, tão urgente problema. (A União, 1935, p.4.)

Esta intervenção de 1935, durante a presidência de José Gomes Coelho, estabeleceu uma conduta nas realizações da Carteira Imobiliária do Montepio. Começaram a ser definidos padrões para projeto e construção das unidades de baixo custo. Na intenção de facilitar a execução e baratear a obra, assegurando, assim, o maior número possível de edificações, essas unidades seriam realizadas segundo projetos predefinidos pela diretoria, em um sistema mais econômico, diferente do critério da “planta própria” adotado nos casos das edificações maiores e mais caras, nos quais o candidato apresentava o projeto da requerida residência. 100

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As construções passavam a ter uma distinção explícita em relação ao tamanho, ao valor, ao projeto e mesmo à nomenclatura utilizada pelo órgão para defini-las. A chamada “casa residencial” era a unidade que não tinha um modelo preestabelecido nem seguia uniformização ou standards. Nela, a concepção do projeto ficava a cargo dos futuros proprietários, mas deveriam ser obedecidos metragens, números de cômodos e acabamentos indicados pelo Montepio. Esse tipo de edificação era o modelo habitacional direcionado para aqueles de remuneração maior, com cômodos generosos, acabamentos suntuosos e elementos decorativos segundo o gosto da época. Já a unidade padronizada, que recebia a denominação de “casa residencial tipo popular” e era destinada aos funcionários de ganhos mais modestos, seguia um único projeto arquitetônico, era entregue na forma de conjuntos e vilas, e apresentava área reduzida, em torno dos 60 m2. Independentemente da opção “casa residencial” ou “casa residencial tipo popular”, para o Montepio, a referência da habitação subsidiada era a da casa individual – uma residência unifamiliar, construída de forma isolada em relação aos lotes vizinhos. Mesmo com os avanços alcançados nos grandes centros urbanos brasileiros e na Europa, na difusão do padrão multifamiliar para habitação popular – várias unidades organizadas em edifícios e conjuntos –, a residência unifamiliar ainda era o possível e o ideal em terras paraibanas. Isso se deveu principalmente às limitações tecnológicas e econômicas, bem como aos valores sociais e estéticos, consequências inerentes a uma cidade de progresso lento. O Montepio focalizou sua produção na casa individual, chegando a priorizar o tipo não popular. As casas maiores eram financiadas sobretudo para a classe média que se consolidava e acabaram por se tornar o emblema da atuação do órgão. Entre os anos de 1936 e 1940, foram construídas 80 grandes residências, com a regularidade de produção de uma unidade entregue por mês. As casas populares, conjuntos e vilas foram postas, temporariamente, em segundo plano. Após a construção da primeira vila popular, não houve mais construções deste tipo, até o ano de 1940. Ainda em 1939, o interventor Argemiro de Figueiredo, diante da escassez de moradias de baixo custo para o funcionalismo e para as outras classes contribuintes, solicitou ao Ministério do Trabalho a construção de casas pelos IAPs. Até “comunicando ao titular da pasta do trabalho que o Governo do Estado e a Prefeitura fariam doações de terreno para as construções que fossem levadas a efeito, bem como concederiam isenção aos impostos relativos às mesmas [sic]” (A União, 1939, p.1). Mas a construção de casas por outros institutos ainda tardou e, apesar dos apelos governamentais, só foram realizadas a partir da década de 1950. Sem produzir efetivamente as unidades populares, o presidente do Montepio, Virgílio Cordeiro de Melo, já buscava em 1939 a retomada da construção em massa de casas de baixo custo. Sempre preocupado com a repercussão social do Instituto, este gestor teve um desempenho diferenciado e realizou alguns dos mais significativos trabalhos, como o maior conjunto entregue pelo Montepio nesta primeira etapa: a Vila 10 de Novembro, construída em 1941 no bairro Montepio, e a instalação da sede própria do Montepio no antigo prédio do Banco do Brasil na avenida Barão do Triunfo. A vila era composta por 42 unidades populares com a mesma disposição em planta, mas diferiam quanto ao acabamento e à localização, estando classificadas em tipo A, B e C. As casas do tipo A custavam Cr$ 16.000,00 e foram construídas na avenida João Machado e Maximiniano de Figueiredo. As do tipo B e C custavam entre Cr$ 14.000,00 e Cr$ 12.000,00 e foram construídas na rua Francisca Moura e avenida D. Pedro II. Mesmo destinadas aos segurados mais necessitados, o padrão das casas desta vila sobreR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Figura 3 – Sede do Montepio, imagem produzida em julho de 2008. pujava os modelos conhecidos de casas populares, devido ao tamanho, área, acabamentos e preço. Apesar disso, o conjunto era classificado como popular pela padronização das unidades, pois não apresentava a exclusividade da casa residencial planejada por seus proprietários. Nesses anos iniciais de produção habitacional, o Montepio foi responsável pela construção de 228 unidades, sendo 57% de unidades “residenciais” e 43% de unidades “residenciais tipo popular”. Embora pareça um número tímido diante dos conjuntos habitacionais realizados naquele período pelos IAPs, essa produção local representa um avanço, visto que, no Brasil, até o fim do Estado Novo, só foram reconhecidas pela bibliografia, além da atuação federal dos IAPs, a construção de unidades pelo governo de Pernambuco para a erradicação dos mocambos, e do governo do Rio de Janeiro para a erradicação de favelas. A revelação dessas unidades do Montepio ratifica a produção, até então desconhecida, de outros órgãos estatais. Já quanto à regularidade e ao valor das casas construídas, vimos a real distinção financeira entre os dois tipos de edificações e a realização apenas pontual dos conjuntos populares. Para exemplificar esta diferença, adotemos os dois últimos anos da produção, pela proximidade cronológica e pela construção exclusiva de cada tipo de unidade. Em

Figura 4 – Localização da Vila 10 de Novembro. Fonte: Google Earth. 102

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Figura 5 – Vista das casas construídas na av. João Machado. Fonte: Melo (1946, p.29). 1940, foram produzidas apenas casas residenciais que custaram em média Cr$ 53.194,41, enquanto em 1941 foram construídas somente as unidades populares da Vila 10 de Novembro com valor médio de Cr$ 12.656,13. Excetuando as possíveis desvalorizações financeiras e econômicas existentes no período, para cada unidade residencial não popular poderiam ser construídas quatro unidades tipo popular. Uma relação considerável diante da missão assistencialista e do comprometimento com os funcionários mais humildes a que se propunha o Montepio. Assim, o Montepio acabou privilegiando a construção de casas luxuosas e de altíssimo custo. Esta liberdade para financiamento e concepção destas grandes residências era em parte justificada pela garantia de retorno financeiro, em virtude da melhor condição econômica dos adquirentes. Entretanto, as unidades populares, mesmo em menor número e valor, foram realizadas com padrão construtivo consideravelmente elevado, se lembrarmos das poucas experiências de habitação popular de mesma tipologia realizada até então pelo país, como as casas da Vila Paz e Trabalho realizadas na cidade do Recife. CLASSIFICAÇÃO DE UNIDADES POPULARES PRODUZIDAS EM CONJUNTOS Por meio da interpretação e análise de descrições contidas nos boletins e matérias veiculadas na Imprensa Oficial, bem como através das determinações construtivas contidas na legislação municipal vigente no período – Código de Posturas do Município de 1928, revisado pela Lei 399 de 21 de setembro de 1938, foi possível identificar e reproduzir as unidades populares construídas nestes primeiros nove anos. Pela planta esquemática, pelo esboço da fachada principal e pela relação dos materiais e técnicas de construção, pudemos entender a conformação das unidades e a tecnologia empregada. Para as duas vilas, utilizou-se como referência o tipo A construído em 1932. Maiores e mais confortáveis, as casas viraram referência tipológica também para a cidade, ficando conhecidas como as primeiras “casa de conjunto” de João Pessoa. Embora a padronização não seja bem quista pelos moradores de conjuntos, haja vista as mudanças operadas pelos proprietários com a ocupação dos imóveis, a composição da fachada acabou repetida em outras residências do bairro, inclusive naquelas que não eram construídas pelo Montepio. Nestas unidades ficam evidentes as decisões construtivas pela mudança de costumes, como a inclusão do banheiro no interior da casa – mas sempre na parte posterior – ou visando à economia, com a articulação e proximidade das áreas molhadas para supressão de R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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instalações hidráulicas. Além disso, fica evidente o respeito às determinações de higiene que exigiam os códigos municipais, e das áreas mínimas para os cômodos, como 6 m2 para cozinhas e 4 m2 para banheiros com latrina. As unidades da Vila Macacos apresentavam volumetria mais simples do que as residências individuais, não populares, realizadas pelo Montepio. Estavam implantadas de forma livre no lote, com recuo frontal e afastamentos laterais ajardinados. As edificações tinham um programa até extenso para uma casa tida como popular: terraço, sala, copa, três quartos, cozinha, banheiro e lavanderia externa, totalizando cerca de 66,5 m2. Por economia, as áreas molhadas continuavam concentradas e colocadas sempre na parte posterior da casa, sempre longe dos olhos dos visitantes, resquícios da hierarquia de espaços e dos preconceitos de um passado colonial. Com área e programa semelhantes ao da Vila Macacos, foram construídas as casas da Vila 10 de Novembro, que diferiam apenas quanto à disposição da planta e à implantação no lote. Elas tinham 67 m2 e também eram compostas por terraço, sala, copa, três quartos, cozinha, banheiro e lavanderia externa, porém, apresentavam um lado geminado e um esforço projetual para que todos os quartos estivessem voltados para a rua. Outro diferencial era a ampla área avarandada, igualmente inédita em outras construções populares.

Figura 6 – Planta e fachada frontal original da unidade construída na Vila Macacos e Vila 10 de Novembro. Nos dois exemplares das vilas, não pudemos notar grandes avanços em relação à tecnologia e aos materiais de construção. Eram materiais, em sua maioria, do repertório local, como tijolo maciço, telha colonial, madeira, cimento, ladrilho hidráulico e azulejos, e eram utilizados num esquema construtivo simples e tradicional, que contava ainda com as alvenarias dobradas como sistema estrutural. O emprego tímido e a escolha 104

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destes materiais não eram apenas uma questão de preferência particular ou imposição do órgão, tratava-se do momento pelo qual passava a indústria no Brasil, de maneira geral, como aponta Reis: Até cerca de 1940 a industrialização dos materiais de construção seria tímida, em escala modesta, quase artesanal. A indústria ainda não atingira estágio de atendimento do mercado nacional; em verdade, no que se refere à construção, ensaiava apenas alguns avanços. Verifica-se a importação de muitos equipamentos e materiais estrangeiros e, em contrapartida, nos centros mais modestos, os progressos estavam longe de acompanhar os das grandes cidades. (1978, p.64.)

As unidades produzidas até 1941 refletiam o desenvolvimento lento da cidade de João Pessoa, ainda amadurecendo como uma capital de Estado. Mesmo sem os avanços materiais, a qualidade das unidades construídas era superior a muitas experiências realizadas neste período. As habitações produzidas pela Liga Social contra o Mocambo no Recife, por exemplo, não dispunham de certos cuidados em relação a detalhes e acabamentos da construção. Segundo Lira, Se os materiais por vezes variavam e se aqui ou ali eram empregados pequenos lajeados, marquises, colunas, caixas de esquadria ou basculantes, a casa térrea, unifamiliar, de alvenaria de paredes singelas, rebocos internos e externos de uma só massa, pé-direito de três metros, piso em cimento e teto sem forro, instalação de esgoto simplificada e coberta com telhas planas sobre caibros e ripas serradas, oferecia a solução econômica oficial. (2002, p.59.)

A diferença existente entre as unidades propostas pelo Montepio e pela Liga podia ser justificada tanto pela forma de financiamento e aquisição das casas como pela ausência de um modelo verdadeiramente popular, no caso do Montepio. Na experiência do Recife, fazia-se urgente a instituição de uma casa popular que pudesse ser reproduzida à exaustão, dada a quantidade de pessoas vivendo nos mocambos. Assim, essa unidade deveria ser viável economicamente para o poder público. Já em João Pessoa, o custo da unidade realizada estava garantido nos descontos do assegurado e futuro proprietário, bem como não foram realizadas investigações técnicas para obter um modelo de baixo custo. As habitações das vilas foram derivadas da bem-sucedida empreitada habitacional realizada em 1932, sendo compreensível que, ao contrário das unidades da Liga, as do Montepio tivessem melhorias como alvenaria de paredes dobradas (em torno de 0,28 m), pé-direito de 4 m, piso de tacos e ladrilho hidráulico, teto com forro de madeira e coberta de múltiplas águas com telhas tipo colonial de barro sob madeiramento. Um fator comum entre as unidades dos dois locais foi a opção pela unidade unifamiliar, resultado de condições tecnológicas, sociais e culturais. Numa tentativa de garantir a salubridade e a decência, fazendo com que a moradia popular tivesse aspectos qualitativos semelhantes aos das residências abastadas. A idéia higiênica da habitação unifamiliar, isolada e devidamente compartimentada, com jardim em frente para a ocupação moral do tempo livre e bem-disposta em arruamentos e conjuntos planejados, se espalharia ao mesmo tempo pela opinião e pelo espaço com impressionante rapidez. (...) E não foi por acaso que, a partir da década de 30, os ícones românticos da arquitetura residencial européia como o cottage, o bungalow e o chalet, viessem R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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a fornecer o modelo inspirador de um sem-número de paraísos proletários e vilas populares construídas pelo Estado e pelo empresariado local. (Lira, 2002, p.56.)

Estes aspectos, de relação edifício/lote e reprodução, em escala econômica e reduzida, de elementos das habitações dos ricos também foram mencionados por Reis (1978), ao discorrer sobre o desenvolvimento urbano no Brasil no período de 1920 a 1940. O autor aponta, como uma forte tendência na produção das casas populares, a repetição das “aparências” das residências mais ricas com a modéstia dos recursos disponíveis. Vimos que o isolamento total e parcial da edificação no lote foi utilizado nas unidades das vilas, procurando garantir vistosos jardins e discretas passagens para a porção posterior das residências. No entanto, não parecia haver preocupações com conforto térmico-ambiental na edificação, já que a mesma planta era inserida em terrenos de diferentes orientações, fossem frente norte ou sul. Quanto ao emprego de componentes advindos das residências opulentas, notamos que este uso resultou numa volumetria sem evidência de estilo arquitetônico, sem refinamento projetual, servindo de ponto de distinção entre as unidades populares e não populares do Montepio. Assim, enquanto a política de vários órgãos de provisão habitacional, notadamente os IAPs, baseava-se na eleição de uma planta mínima de baixíssimo custo para a produção em larga escala, e na verticalização para potencializar o aproveitamento do solo, o Mon-

Figura 7 – Vista de uma casa da Vila 10 de Novembro na época da inauguração. Fonte: Melo (1946, p. 33)

Figura 8 – Casa da Vila 10 de Novembro, localizada na rua Francisca Moura, imagem produzida em julho de 2008. 106

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tepio continuou com sua proposta de residências individuais reproduzindo tipologias bem-sucedidas no primeiro ato de sua Carteira Predial. Sem a procura por um modelo econômico, estas casas populares tinham a qualidade e o conforto das grandes residências, e, por conseguinte, seu custo impediu um maior número de construções. Ao fim desta fase, percebemos que as unidades realizadas pelo Montepio distanciavam-se dos tipos de habitação popular realizados pelo país. As edificações possuíam características construtivas, de qualidade e acabamento, que as afastavam da modéstia e limitação dos exemplares vistos até então. Estas casas acabaram por não se diferenciar muito daquelas construídas sob a alcunha de “residenciais”, apenas tinham certa contenção na questão da área construída, no uso de alguns materiais e no rebuscamento dos volumes arquitetônicos e fachadas. O Montepio reproduzia suas unidades, estabelecendo um modelo por tentativa, através da repetição das experiências e não por meio de pesquisas e projetos que possibilitassem um protótipo econômico e eficaz. A HABITAÇÃO ATRAVÉS DO MEP: 1942 A 1963 Mesmo com as novas funções atribuídas pelo governo da Paraíba, transformando o instituto em MEP, ainda era finalidade principal do órgão assegurar pensão e pecúlio aos beneficiados dos seus segurados falecidos e, por finalidade secundária, facilitar aos seus segurados empréstimos em dinheiro e financiar a construção ou aquisição de casa para moradia. E foi justamente o sucesso das atividades das carteiras de empréstimos e de imóveis que atraiu cada vez mais contribuintes e inscritos para adquirir ou construir casas. Além da construção, a liberação de crédito para reforma de habitações também passou a fazer parte das competências do Montepio. Nos sete anos seguintes à alteração para MEP, o ritmo de produção das edificações manteve-se semelhante ao período anterior, mas passou a ser exclusivamente de casas não populares, com elevação significativa do custo médio das unidades. Resguardadas as devidas variações de custo pela inflação ou pela alta das tarifas relativas à construção civil, os valores unitários triplicaram. Em 1942, por exemplo, cada edificação foi realizada pela importância de Cr$ 27.893,76. Já em 1943, o valor subiu para Cr$ 60.435,42 e, em 1944, uma casa chegou a custar Cr$ 111.207,86. Como se tratava de valores médios, obviamente cada casa apresentava suas particularidades, uma vez que para estas unidades era utilizado o sistema da “planta própria”, projeto apresentado pelo futuro proprietário e não pelo MEP. Assim foram construídas residências com os mais variados projetos e, por conseguinte, diversos estilos arquitetônicos. Embora fossem projetos os mais distintos, estas unidades residenciais não populares podiam ser balizadas e agrupadas de acordo com área e valor de custo. Num grupo A estariam as casas maiores com área em torno de 150 m2 e número considerável de cômodos – na maioria das vezes compostas por duas salas, sala de copa, três ou quatro quartos, terraço, banheiro, cozinha e área de serviço, algumas até com quarto e banheiro de empregada. Estas unidades, geralmente dispostas em dois pavimentos – térreo e primeiro andar – eram implantadas em terrenos maiores que os habituais utilizados pelo Montepio, em torno de 300 m2 ou 360 m2, e sempre com afastamentos laterais e frontais ajardinados e bem definidos. Num grupo B estariam as demais casas, igualmente “residenciais”, porém menores e mais simples. Eram unidades com área abaixo dos 100 m2; implantadas em terrenos de tamanho regular, segundo padrão do Montepio – 10 m x 30 m; todas com afastamento R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Fig. 9 – Grupo A e B de casas não populares construídas entre 1942-1943. Fonte: Melo, 1946. frontal e apenas algumas gozando de afastamentos laterais. Todas estas residências eram térreas e constituídas de sala, terraço, dois ou três quartos, cozinha, banheiro e área de serviço externa. Os modelos apresentados nessa classe aproximavam-se dos definidos como populares, mas cada proprietário conferia certas particularidades às casas, de acordo com a necessidade ou gosto. O Montepio distanciava-se da execução de habitações populares, dedicando-se exclusivamente à construção das grandes residências. Segundo registros do órgão (A União, 1950; Melo, 1946), entre os anos de 1942 a 1948, foram construídas 178 casas, nenhuma delas do tipo popular. Naqueles anos, as atividades da Carteira Imobiliária, quer fossem de construção, aquisição, hipoteca ou compra de terrenos, estavam direcionadas para os contribuintes que se dispunham a pagar maiores parcelas. Foi apenas em 1949, mesmo ano em que a FCP realizaria seu primeiro núcleo residencial na cidade, em meio ao brado local e nacional pela provisão de moradia e baixa dos aluguéis, que o MEP retomou a construção das requisitadas casas populares (Tabela 1).

Fig. 10 – O governador Oswaldo Trigueiro na inauguração da Vila 11 de Junho. Fonte: A União, 12.6.1949. 108

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Tabela 1 – Unidades residenciais construídas entre 1932-1963 Ano Nº Tipo de unidades 1932 1933 1934

15 7 41 8 35

Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais tipo popular em séries

16 14 15 15 20 42 17 13 11 24 24 24 65 30 52

Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais tipo popular em séries Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais Residenciais tipo popular em séries Residenciais

1950

38 22

Residenciais tipo popular em séries Residenciais

1951

2 11

Residenciais Residenciais tipo popular

1952

11 21

Residenciais Residenciais tipo popular

8 24 10 29

Residenciais Residenciais tipo popular Residenciais Residenciais tipo popular

20 17 78 471 223 85 779

Residenciais Residenciais Residenciais tipo popular em séries Residenciais Residenciais tipo popular em séries Residenciais tipo popular Construídas

1935 1936 1937 1938 1939 1940 1941 1942 1943 1944 1945 1946 1947 1948 1949

1953 1954 1958 1959 1963 Total Total Total Total

A Vila 11 de Junho, inaugurada naquele dia no ano de 1949, consagrou o recomeço da produção das unidades residenciais tipo popular, realizada pela última vez em 1941. As obras foram iniciadas na administração de Orestes Lisboa e concluídas na presidência do doutor Normando Guedes Pereira, outro presidente reconhecido por suas realizações à frente do MEP. O conjunto, destinado às famílias mais humildes, foi implantado no bairro Santa Júlia. Eram trinta casas térreas, geminadas por um lado, com uma nova comR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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posição e tipologia de dois quartos e com área menor em relação às vilas anteriores. Tratava-se de um grupo de casas modestas como há tempos não era realizado pelo MEP, para atender àquela parcela desconsiderada de seus contribuintes. Com o governo estadual imbuído deste espírito empreendedor, foi lançada a pedra fundamental de mais um conjunto residencial destinado ao funcionalismo público, na ocasião da inauguração da Vila 11 de Junho. Tratava-se da Vila da Rua Miguel Santa Cruz no bairro Torrelândia, Vila Torrelândia, entregue em 1950. O conjunto era composto por estabelecimentos comerciais, quatro unidades destinadas a açougues e 38 prédios para moradia, realizados com o mesmo projeto da vila de 1949, no bairro de Santa Júlia. A iniciativa, segunda realizada na presidência do doutor Normando Guedes Pereira, inovava pela inclusão de outros usos além do residencial, a exemplo, guardadas as devidas proporções, dos conjuntos dos IAPs realizados pelo país, que continham alguns serviços necessários aos moradores, como praças, lavanderia, posto médico ou lojas. Com a realização desta vila, sagrava-se a mudança de postura do MEP, priorizando o atendimento dos servidores desprovidos, ao invés da construção apenas das grandes casas, “pequenos palacetes”, como chamavam alguns críticos na época. A reivindicação elementar dos cidadãos e da sociedade era a construção das casas, mas logo a necessidade de complementação com os serviços de infraestrutura passou a ser pleiteada pela população. Notadamente nas áreas dos conjuntos residenciais que recebiam um contingente populacional considerável num curto espaço de tempo, e a falta de abastecimento d’água, esgotamento sanitário, iluminação e pavimentação eram sentidas de forma mais aguda. A esse respeito, a construção da Vila da Torrelândia possibilitou, ao menos, a instalação do abastecimento d’água para o próprio conjunto e para mais 90 residências localizadas naquela região, algumas executadas isoladamente pelo Montepio. A obra de infraestrutura foi realizada em 1952 pelo governador José Américo. A adoção da causa habitacional fez com que o MEP continuasse a construção das casas populares nos quatros anos que se seguiram. Contudo, o movimento produtivo diminuiu de forma considerável, e o número de unidades, tanto das residenciais quanto das residenciais de tipo popular, caiu admiravelmente. Passando das 82 construções realizadas em 1949 e das 60 em 1950, para 13 unidades construídas em 1951, 32 unidades construídas em 1952 e 1953 e 39 unidades construídas em 1954. Além do declínio da produção, outra característica do período foi a construção isolada das casas populares, não sendo executado nenhum conjunto ou vila após 1950. Em prejuízo para a população de maneira geral, porque a implantação das vilas significava a possibilidade de implantação da infraestrutura básica na área. A diminuição da produção do MEP deveu-se, em parte, ao pouco comprometimento da sua administração e também ao lançamento e atuação de diversas carteiras prediais de outros institutos que dividiram a atenção e o incentivo estatal. Destaca-se, nesse sentido, não só o exercício das instituições já reconhecidas – como os IAPs e a FCP, responsáveis por pelo menos sete conjuntos entre 1949 e 1963 –, mas, sobretudo, a iniciativa de instituições novatas na questão habitacional, como as locais Caixa de Aposentadoria dos Serviços Públicos na Paraíba, a Caixa Beneficente da Polícia Militar da Paraíba, o Instituto dos Servidores do Estado e também a Caixa Econômica Federal da Paraíba, que implantou o bairro Jardim Miramar em 1950. O governo estadual fez parceria com todos estes institutos, mas deu preferência às ações federais pelo número de unidades que poderiam ser construídas e pela aparente comodidade em ser incentivador, através da doação de terrenos e isenção fiscal, ao invés de investir diretamente na construção ou aquisição 110

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das casas. Muito mais vantajoso para o Estado incentivar a produção federal que custear suas próprias habitações. Somou-se à descentralização do apoio do governo estadual, o direcionamento da atuação do MEP para a saúde do segurado, reservando parte da receita orçamentária para serviços médicos, dentários e ambulatoriais. Em 1959, na administração de Nizi Marinheiro, planejava-se a construção do Hospital do MEP, com projeto feito pela Divisão de Obras do Ministério da Saúde, que deveria ser implantado em terreno de 10.000 m2 localizado no bairro de Oitizeiro. Também prejudicou o desenvolvimento do MEP, e consequentemente o andamento da Carteira Imobiliária, a instabilidade no governo estadual, pois entre 1951 e 1963 estiveram no poder sete governadores. Entre acusações sobre irregularidades, desvios, nomeação de funcionários em troca de votos, atraso nos vencimentos dos servidores, o Montepio esteve com suas realizações quase paralisadas e com a continuação dos serviços e benefícios ameaçada. A retomada do crescimento do MEP só aconteceu no governo de Pedro Gondim, que reparou a estrutura do Instituto e reconduziu a construção em massa de casas populares, ocorrida no ano de 1963. Pelo empenho do governador, foi realizado o maior plano de construção de casas populares do Montepio ao fim do período pré-BNH: a Cidade do Funcionário Público Estadual, implantada no bairro de Oitizeiro em 1963. Na ocasião da

Figura 11 – Localização do conjunto Cidade do Funcionário Público Estadual. Fonte: Google Earth.

Figura 12 – Inauguração da Cidade do Funcionário. Fonte: A União, 5.7.1963. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Figura 13 – Visita do governador potiguar Aluisio Alves à Cidade do Funcionário. Fonte: A União, 7.8.1963. inauguração, foi entregue para 76 famílias a primeira parte das 300 unidades que seriam construídas. A distribuição das casas respeitou o mesmo critério usado na entrega dos conjuntos anteriores, dando preferência aos funcionários inscritos com família mais numerosa, mais sobrecarregada de filhos, auxiliando assim os servidores mais desamparados, mais humildes, mais sacrificados, aqueles de remuneração menos significativa. O Montepio atingia ineditamente um número bastante expressivo de unidades populares em benefício da parcela realmente desprovida de seus associados. Também em caráter pioneiro, estabelecia a implantação de conjuntos habitacionais em áreas periféricas – esse seria o primeiro conjunto do MEP a ser instalado fora do perímetro e das adjacências da zona central da cidade, numa área de nível socioeconômico bem mais baixo. Assim, dava-se início a um processo de expansão urbana, de periferização, que se tornaria tão comum na era BNH, e bastante criticado posteriormente. Os conjuntos populares realizados nesta fase foram possíveis pelo comprometimento direto do governo estadual, e a construção das unidades deveu-se sobretudo à figura dos governadores Oswaldo Trigueiro e Pedro Gondim, que viram a necessidade, e a oportunidade, de reforçar o apoio ao órgão. Como muitos assegurados não teriam outra forma de adquirir a casa própria, era de fato estratégico reinvestir na produção estadual de moradias como garantia de popularidade social e política. Com este importante auxílio à Carteira Imobiliária do MEP, foram executadas as vilas de 1949 e 1950, o conjunto de 1963 e várias unidades populares isoladas. Ao fim deste período, vimos que o Montepio deixou de ser o único provedor de habitação subsidiada, com o início da construção de vilas e conjuntos pelos IAPs e FCP na cidade. Distanciando-se do foco popular, o instituto estadual continuou sua produção habitacional colocando em primeiro plano a construção de residências maiores e mais luxuosas para associados de melhores posses. Enquanto esteve sozinho na provisão de unidades subsidiadas, o Montepio atuava similarmente às autarquias federais, numa espécie de escala reduzida pela disponibilidade de recursos e pelo tamanho da cidade. Com a vinda dos IAPs e FCP para João Pessoa, parece que o instituto fica “liberado” do apelo popular e pode se dedicar à construção de outra modalidade de casas, com maior retorno financeiro, sem grandes investimentos por parte dos cofres da instituição. A produção do Montepio ficou associada a estas unidades diferenciadas, enquanto as casas de conjunto começaram a ser “responsabilidade” dos órgãos federais. 112

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CLASSIFICAÇÃO DE UNIDADES POPULARES PRODUZIDAS EM CONJUNTOS Nesta segunda fase, a produção popular do Montepio foi caracterizada pela alteração do seu modelo. Com redução das áreas das unidades e do número de cômodos e simplificação tipológica e construtiva, semelhante à praticada por outros institutos como IAPs e FCP. Foi adotado o mesmo projeto nas duas vilas realizadas em 1949 e 1950, em Santa Júlia e Torrelândia, respectivamente. A repetição do projeto na Vila da rua Miguel Santa Cruz também tinha por objetivo a economia de tempo e recursos, assim como esta nova tipologia empregada pelo Montepio já havia sido bem aceita pelos contribuintes. As realizações federais tornavam-se referência para construções populares, influenciando diretamente a produção do MEP. A padronização das unidades passou a ser inevitável para o sucesso dos empreendimentos populares do Instituto, e junto à ideia da uniformização, fortaleceu-se a cada ano a simplificação construtiva. O programa e a área das unidades foram reduzidos, a planta tornou-se mais compacta e funcional e, como resultado, o volume arquitetônico surgia despojado de elementos decorativos, sem profusão de recortes na coberta, nem preocupações estilísticas, apenas fruto de mera representação dimensional da planta. Os materiais de construção e os acabamentos também ficaram mais modestos, enquanto as técnicas construtivas não apresentaram grandes alterações, privilegiando as empresas e o trabalho local. Com área aproximada de 51 m2, estas casas eram compostas por terraço, sala, dois quartos, copa, cozinha e banheiro. Estavam geminadas por um lado, além de implantadas em um terreno menor e com composição volumétrica bem mais simples do que as unidades das vilas anteriores, num esforço do Montepio para baratear o custo das casas e assim possibilitar um número maior de construções. Adotando-se esta postura de simplificar e padronizar, as unidades construídas pelo Montepio acabaram por se aproximar, financeira e tipologicamente, das casas construídas pelos institutos federais. A construção destas unidades consagrou a retomada das casas populares e a associação com o significado de habitação de baixo custo, uma vez que o Montepio mudava sua postura na concessão dos financiamentos, dedicando-se aos contribuintes mais carentes em benefício dessas famílias. Compartilhando desta mesma intenção, porém, após 13 anos, foram construídas as unidades da Cidade do Funcionário, com número de cômodos e área ainda menores. A habitação, com aproximadamente 50 m2, era composta por terraço, sala, dois quartos, cozinha e banheiro, sem a copa das vilas anteriores, mas implantadas em terrenos de maiores dimensões, com 10 m de frente por 30 m de comprimento. O conjunto também foi concebido primando pela economia, embora a edificação estivesse disposta livremente no terreno, com afastamentos laterais – decisão considerada menos econômica, a composição volumétrica apresentava-se de maneira mais simplificada, sem adornos decorativos, além da coberta com caimento em uma água. O padrão construtivo do Montepio nestes 29 anos de atuação da sua Carteira Imobiliária sempre foi tido como alto, quer pelo tamanho das unidades construídas ou pelo esmero no uso dos materiais e acabamentos, mesmo nas construções mais modestas. Contudo, foi inevitável promover a adaptação deste alto padrão às necessidades quantitativas e financeiras do instituto. No processo evolutivo das unidades populares, desde a primeira casa realizada na Vila Macacos até esta última na Cidade do Funcionário, vimos a diminuição gradual das áreas de construção – as plantas tornaram-se cada vez mais enxutas; a supressão de cômoR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Figura 14 – Planta e fachada da unidade construída na Vila 11 de Junho e Vila da Rua Miguel Santa Cruz.

Figura 15 – Vila 11 de Junho no ano da inauguração. Fonte: A União, 9.6.1949.

Figura 16 – Casas na Vila Miguel Santa Cruz, imagem produzida em julho de 2008. 114

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Figura 17 – Unidades da Cidade do Funcionário em julho 2008.

Figura 18 – Planta e fachada frontal original de unidade da Cidade do Funcionário. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Figura 19 – Bairros com obras do Montepio até 1963, em preto o Bairro Montepio e a Cidade do Funcionário Público Estadual. Fonte: Seplan – PMJP. dos, primeiro com a retirada do terceiro quarto, seguida da remoção da copa; a busca pela economia na geminação das unidades, antes implantadas livres no lote, depois dispostas aos pares, unidas por um cômodo ou lateral; e, por último, viu-se a gradual e sensível limpeza formal das unidades – em parte por questões de custo, mas também a considerar as transformações estéticas e de gosto no decorrer deste tempo. Contudo, as unidades populares do Montepio ainda guardaram um padrão diferenciado, tendo-se em consideração as residências de outros institutos estatais e mesmo algumas propostas de organizações privadas. Nesta segunda etapa, ocorreu uma divisão de esforços. O MEP acabou por dedicarse à construção de casas maiores e por deixar em segundo plano as unidades populares, visto que a atenção para estas unidades estava resguardada pelos órgãos federais. Mas as unidades construídas pelo Montepio, populares ou não, tiveram grande importância no desenvolvimento dos bairros em que foram implantadas, e consequentemente no crescimento da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando foi iniciada a coleta dos dados para este trabalho, a intenção era examinar a produção estatal de habitação realizada pelos institutos estaduais e federais antes da implantação do sistema BNH. Mas com o desenvolvimento da pesquisa, o desempenho do Montepio dos Funcionários Públicos do Estado da Paraíba destacou-se dos demais órgãos governamentais, pela reiterada incidência de notícias e notas na nossa principal fonte de informação, o jornal A União. A regularidade da concessão dos benefícios a seus associados e o consequente apreço da sociedade pela instituição despertaram nossa atenção para 116

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o trabalho do Montepio. Tínhamos, então, uma base sólida para determiná-lo como objeto do nosso estudo, relatando a sua produção na tentativa de estabelecer uma ligação com o traçado e o desenvolvimento da cidade, já que também desconhecíamos sua importância na evolução de João Pessoa. Com as primeiras descobertas deste estudo, começamos a perceber uma instituição que gradativamente foi dominando a construção civil na cidade, realizando grandes casas – ou pequenos palacetes –, apesar de relegar a construção das casas populares, tratandoas como uma questão de mero exercício de caridade. Afinal, a instituição tinha outras atividades e investimentos, sendo os empréstimos a médio e longo prazo bem mais rentáveis, ao passo que a modalidade predial, através da Carteira Imobiliária, não possibilitava grandes lucros, ainda mais com estas construções. Mas era inegável a função e a necessidade social da intervenção do Montepio, pois grande parcela dos contribuintes dependia exclusivamente da instituição para ter a idealizada casa própria. Apenas sob a ótica assistencialista foi que as primeiras moradias populares foram construídas. Mas a construção das unidades populares nunca aconteceu de forma continuada, eram momentos espaçados na história do Montepio, levados a cabo por empenhados administradores, como Maurício Furtado, José Gomes Coelho, Virgílio Cordeiro de Melo, Normando Guedes Pereira, Nizi Marinheiro, Oswaldo Trigueiro do Vale, e Antônio Correia de Vasconcelos, que atuaram em consonância com os respectivos governadores de cada período. Mesmo que não tenha realizado avassaladores planos urbanísticos ou grandes conjuntos com centenas de casas como os dos institutos federais, o Montepio realizou aquilo que era sua meta primordial: a casa para o funcionário público, sendo popular ou não. E amparado nesse sentido, foi muito bem-sucedido em sua missão. Pode-se afirmar que a atuação do Montepio na habitação consolidou o uso residencial naquela área próxima à Lagoa, dinamizou a infraestrutura do local pelo número considerável de construções; atraiu o interesse do governo para provisão da infraestrutura após a instalação das vilas e conjuntos – embora as respostas estatais tenham sido comumente mais demoradas; foi responsável pelas incursões iniciais em bairros como Torre e Expedicionários – que mais tarde se firmariam como bairros residenciais pela ação de outros institutos também públicos, e finalmente o Montepio inaugurou a implantação periférica de habitação subsidiada produzida em larga escala ao conceber a Cidade do Funcionário Público Estadual. Quantitativamente a produção do Montepio pode até ser considerada pequena diante dos números dos institutos federais, mas foram realizações e alguns reflexos urbanos importantes que ficaram há muito esquecidos pela inexistência de um estudo aprofundado sobre o período abordado. Mesmo que de forma acanhada, a Paraíba envolveuse diretamente no processo de produção habitacional e antecipou-se à ação federal, como fizeram poucos estados da federação, a exemplo de Pernambuco, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. O Montepio, com suas casas unifamiliares e vilas para o funcionalismo público, conseguiu estabelecer um padrão construtivo que se tornou referência em João Pessoa, sendo repetido até mesmo por particulares. Numa ação que, até então, encontrava-se pouco documentada e desmerecida, em consequência da dificuldade de acesso às informações da atuação do órgão ou mesmo por se tratar de um instituto estadual de pouca visibilidade, diante dos recursos nacionais que possibilitaram a implantação das vilas e conjuntos da FCP, dos pequenos e médios conjuntos dos IAPs e, posteriormente, dos grandes conjuntos habitacionais afastados da malha urbana pelo BNH na cidade. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Angela Araujo Nunes é mestre em Engenharia Urbana e Ambiental (UFPB), professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba (IFPB). E-mail: angelanunes2@hot mail.com. Artigo recebido em agosto de 2009 e aprovado para publicação em setembro de 2009.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A UNIÃO. Com o Montepio. João Pessoa, 14.3.1935. __________. Construção nesta capital, de casas pelo Instituto de Aposentadorias e Pensões. João Pessoa, 17.8.1939. __________. Mensagem governamental. João Pessoa, 4ª Secção, 4.6.1950. ANNUARIO DA PARAHYBA. Montepio dos funccionarios publicos do Estado da Parahyba. 1935. João Pessoa: Imprensa Official, 1935. CAVALCANTI, J. B. A política habitacional do BNH no Brasil pós-64 e seus reflexos na expansão urbana de João Pessoa. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 1999. FINEP/GAP. Habitação popular: inventário da ação governamental. Rio de Janeiro: FINEP/Projeto, 1983. LAVIERI, J. R.; LAVIERI, M. B. F. Evolução urbana de João Pessoa pós-60. In: GONÇALVES, R. C. (org.) A questão urbana na Paraíba. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 1999. LIRA, J. T. C. Modernidade e economia de morar no Recife (1930-1964). In: SAMPAIO, M. R. A. (org.) A promoção privada de habitação econômica e a arquitetura moderna 1930 – 1964. São Carlos: RiMa, 2002. p.52-76. MELO, V. C. Relatório do exercício de 1944. Apresentado ao Conselho fiscal do Montepio do Estado da Paraíba. João Pessoa: Imprensa Oficial, 1946. PARAHYBA (Cidade). Código de posturas. Lei n.º 140 de 04 de outubro de 1928. Parahyba: Imprensa Official, 1928. REIS, N. G. Quadro da arquitetura no Brasil. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1978.

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B S T R A C T This work analyzes the constructive actuations of the real estate portfolio of Montepio Paraiba State in the statal housing production in the city of João Pessoa, from 1932 to 1963, established between the institutional designation for the production of housing in benefit of the public functionalism and its last popular realization before the work of BNH. Through exhausting documental research, done in local collections and especially through the newspaper A União, official record of the realizations of the state executive, data was found regarding the realizations of the housings by the institution, identifying the cities and popular aggregation and later on classifying the built unities and the reconstitution of the house plans and the front elevation.

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Montepio; João Pessoa; real estate portfolio; popular housing.

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IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO A NAÇÃO BRASILEIRA E A CIDADE DE NOVO HAMBURGO/RS (1927-1945) ALESSANDER KERBER CLEBER CRISTIANO PRODANOV R E S U M O O texto analisa as lutas de representações em torno da construção de identidades ligadas ao espaço geográfico da nação brasileira e da cidade de Novo Hamburgo (RS) através do seu principal jornal, O 5 de Abril, no período de 1927, momento de sua emancipação, até 1945, final da Segunda Guerra Mundial e da ditadura do Estado Novo. Este período foi marcado pela construção de versões acerca destas duas identidades e de sua disseminação através da imprensa. As duas versões apresentavam conflitos especialmente focados no fato de a cidade ser representada por signos que remetiam ao processo de imigração alemã, e à nação, por signos que remetiam à mestiçagem. Tais conflitos acirraram-se no momento em que o Brasil entrou na Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha. PA

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Cidade; identidade nacional; imprensa.

INTRODUÇÃO: DEFININDO O PROBLEMA E OS APORTES TEÓRICOS Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas no Brasil (1930-1945), construiu-se e disseminou-se através dos meios de comunicação de massa – especialmente o rádio, a imprensa e o cinema – uma versão acerca da identidade nacional baseada em elementos como a valorização da mestiçagem. Contudo, havia espaços do território brasileiro excluídos desta versão, entre os quais se destacavam cidades constituídas pela imigração ocorrida durante o século XIX, especialmente aquelas com populações predominantemente de origem germânica, como as existentes no sul do país. Pode-se afirmar que houve um processo de lutas de representações na construção de identidades. Identidades nacionais e de cidades são produzidas em relação a um espaço geográfico e estão ligadas à organização do espaço público e político.1 Uma identidade se expressa, justamente, através de representações que definem a ideia e o sentimento de pertencimento a um grupo. Assim, ela é, ao mesmo tempo, sentimento e ideia, é sentida e pensada como formulação de uma imagem de si mesmo, ou seja, como autorrepresentação.2 Como propõe Hall (2005), em um mesmo grupo social há uma diversidade de identidades que se sobrepõem, se relacionam, conflitam e se transformam constantemente. No caso deste artigo, propõe-se analisar a construção da identidade da cidade de Novo Hamburgo, localizada no extremo sul do Brasil, no Estado do Rio Grande do Sul, no período entre 1927 e 1945. Este enfoque justifica-se na medida em que houve um processo de lutas no âmbito do imaginário, marcado pelo conflito entre representações da cidade ligadas à germanidade e às representações nacionais brasileiras. Destaca-se que este conflito aprofundou-se no contexto da Segunda Guerra Mundial. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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1 Como afirma Oliveira (1990, p.14), existe uma relação íntima entre identidade nacional e política, pois: “A ideia de nação faz parte do universo simbólico. Sua valorização vai proporcionar sentimentos de identidade e de alteridade a uma população que vive ou que se originou em um mesmo território. Trata-se de um símbolo que pretende organizar o espaço público, referindo-se, portanto, à dimensão política”. 2 Como propõe Chartier (1990, p.17), para a compreensão do real, há um processo de significação e associação com símbolos já existentes no imaginário daquele grupo. Até o desconhecido é pensado a partir de símbolos já conhecidos. Uma realidade, assim, nunca é apreendida de forma pura, sempre é apropriada e simbolizada, consciente ou inconscientemente, pelos grupos que dela se aproximam. E, é nesta atribuição de sentido, que percebemos que o quanto as representações não são “ingênuas”. Apesar de se proporem a uma aproximação com a realidade, sempre são influenciadas pelos interesses do grupo que as produzem.

IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO

3 A coleção do jornal O 5 de Abril encontra-se disponível no Arquivo Municipal de Novo Hamburgo e na biblioteca da Feevale.

Para analisar esta construção identitária, foi utilizado o principal meio de comunicação existente na cidade à época, o jornal O 5 de Abril,3 que também apresentava-se como representante da sua identidade, como veremos. Analisou-se o jornal, com periodicidade semanal desde sua fundação, que ocorreu junto à do município, em 1927, até o final do primeiro governo Vargas, observando os discursos presentes acerca da identidade nacional brasileira e sua relação com a identidade da cidade. Percebeu-se que o jornal apresentava interessantes relações entre as representações da cidade de Novo Hamburgo e a imagem nacional, influenciadas especialmente pelas lutas de representações entre uma cidade que se afirmava como descendente de imigrantes alemães em um período de emergência da nacionalização. Novo Hamburgo, como qualquer cidade, como materialidade erigida pelo homem, também é sociabilidade e, ainda, sensibilidade. Conforme Pesavento, é construção de um ethos que implica a atribuição de valores ao que se convencionou chamar de urbano, é produção de imagens e discursos que se colocam no lugar da materialidade e do social e que os representam, é percepção de emoções e sentimentos, expressão de utopias, desejos e medos, assim como prática de conferir sentidos e significados ao espaço e ao tempo, que se realizam na e por causa da cidade (Pesavento, 2002, p.24). No processo de inclusão e exclusão existente na seleção dos símbolos que representam a identidade de uma cidade, percebe-se que existe a manifestação de relações de poder. No caso do enfoque deste trabalho, há um produto midiático influenciando a construção de uma identidade. Sendo o primeiro e, inicialmente, único jornal de Novo Hamburgo, O 5 de Abril detinha poder simbólico, o qual influenciou a construção identitária. Tal poder é entendido como: poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. (Bourdieu, 2005, p.14.)

A definição da fronteira entre uma nação e outra, entre uma região e outra ou, no caso deste estudo, entre uma cidade e outra, ao se estabelecer, produz a existência daquilo que enuncia. Assim, após legitimado um discurso que estabelece a divisão, o aparelho político passa a ter, também, legitimidade para utilizar-se de violência física e simbólica para a manutenção deste discurso: O discurso regionalista é um discurso performativo, que tem em vista impor como legítima uma nova definição das fronteiras e dar a conhecer e fazer reconhecer a região assim delimitada – e, como tal, desconhecida – contra a definição dominante, portanto, reconhecida e legítima, que a ignora. O ato de categorização, quando consegue fazer-se reconhecer ou quando é exercido por uma autoridade reconhecida, exerce poder por si: as categorias “étnicas” ou “regionais”, como as categorias de parentesco, instituem uma realidade usando do poder de revelação e de construção exercido pela objetivação no discurso. (Idem, p.116.)

De qualquer forma, há, ainda segundo Bourdieu, a necessidade da autoridade para o estabelecimento da legitimidade deste discurso:

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A eficácia do discurso performativo que pretende fazer sobrevir o que ele enuncia no próprio ato de o enunciar é proporcional à autoridade daquele que o enuncia: a fórmula “eu autorizo-vos a partir” só é eo ipso uma autorização se aquele que pronuncia está autorizado a autorizar, tem autoridade para autorizar. Mas o efeito de conhecimento que o fato da objetivação no discurso exerce não depende apenas do reconhecimento consentido àquele que o detém; ele depende também do grau em que o discurso, que anuncia ao grupo a sua identidade, está fundamentado na objectividade do grupo a que ele se dirige, isto é, no reconhecimento e na crença que lhe concedem os membros deste grupo assim como nas propriedades econômicas ou culturais que eles têm em comum, pois é somente em função de um princípio determinado de pertinência que pode aparecer a relação entre estas propriedades. (Idem, p.116-7.)

Uma estratégia utilizada pelo jornal O 5 de Abril, também presente na imprensa em geral, foi a utilização de autoridades assinando as matérias, pois a presença de autores com capital simbólico para serem reconhecidos como autoridade também confere autoridade ao veículo de comunicação. Desta forma, o primeiro prefeito da cidade de Novo Hamburgo, Leopoldo Petry, era uma das principais autoridades a assinar matérias.

NAÇÕES, NACIONALISMOS E HOMOGENEIZAÇÃO DA DIVERSIDADE REGIONAL O Estado é uma construção política que, para conquistar legitimidade, necessita se afirmar como “nação”, ou seja, construir representações que insiram as diversas identidades dos diversos grupos que habitam o território administrado por ele, dentro de um novo conceito. É necessário fazer com que diversas identidades pensem-se e sintam-se como pertencentes à nação brasileira. Assim, a nação pode ser entendida como uma representação presente no imaginário social. Como afirma Oliven (1992, p.25), nação é um produto cultural que surge na Europa a partir do fim do século XVIII e se constitui em uma comunidade política imaginada. É, pois, preciso invocar antigas tradições (reais ou inventadas) como fundamento “natural” da identidade nacional que está sendo criada. Isso tende a obscurecer o caráter histórico e recente dos Estados nacionais. O surgimento do imaginário que constitui a nação está associado a uma questão política: a formação dos Estados nacionais modernos. Contudo, a nação não é construída apenas com base na propaganda e nos elementos coercitivos estatais; existe um processo de negociação em que vários agentes influenciam em um jogo de poder que define as representações desta identidade nacional. Deste modo, é interessante fazer um histórico da forma como foi inicialmente abordado este tema, relacionando-o com a forma atual. De 1890 a 1945, houve uma grande produção teórica, dentro das ciências humanas, sobre a nação. A questão a ser respondida era: o que é uma nação? Já na pergunta, percebe-se que os autores procuravam alguma forma de legitimar politicamente alguns estados, sendo eles identificados como nação em detrimento de outros, em uma espécie de violência simbólica. Pode-se, assim, considerar esse momento da discussão sobre nação como altamente engajado em relação à formação dos Estados nacionais. Esta discussão, por sua vez, ocorreu influenciada pela assimilação da região da Alsácia Lorena pela Alemanha, questionando-se aí o fato de a região pertencer à nação francesa ou alemã. Em ambos os países, intelectuais engajados procuraram formular conceitos de nação que justificassem o controle sobre ela.4 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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4 Os alemães afirmavam, de modo geral, que a pertença a uma nação é uma questão determinada pelo nascimento, ou seja, independe da vontade do indivíduo. O que eles estavam afirmando é que elementos como a raça, a língua e a religião definiam a nação. Nesse sentido, a Alsácia pertenceria à Alemanha. Esse pensamento é largamente influenciado pelo romantismo, que construiu a representação de um passado unificado e heroico para a nação alemã. Em oposição a essa concepção alemã de nação, levantam-se pensadores franceses que procuram, de todas as formas, legitimar a pertença da Alsácia à França. O principal deles é Renan (1997) que, no seu clássico Qu’est-ce qu’une nation?, publicado pela primeira vez em 1882, por influência das ideias iluministas, entende a nação não como naturalmente determinada, mas como um pacto social a partir do qual os indivíduos optam pela pertença. O autor coloca que a nação seria algo como um plebiscito diário em que se reafirma ou não esta nação.

IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO

Cabe destacar que a questão teórica sobre nação foi pouco estudada no período após 1945, provavelmente pelos traumas causados pelo nacionalismo na Segunda Guerra Mundial. Desde os anos 80, porém, vários pensadores têm-se proposto, novamente, a pensar teoricamente o conceito. Tendência influenciada por um novo contexto social: o da globalização. Especialmente nos anos 90, fortes nacionalismos renasceram na Europa, apropriando-se deste imaginário já existente sobre a nação como forma de defesa em relação à globalização. O antropólogo Ernest Gellner, uma das principais referências sobre nação no contexto atual, define que: A “era do nacionalismo” não é uma mera soma da revelação e da auto-afirmação política desta ou daquela nação. Em vez disso, quando as condições sociais gerais conduzem a culturas eruditas standartizadas, homogêneas e centralizadas, abrangendo populações inteiras e não apenas minorias de elite, surge uma situação em que as culturas unificadas, educacionalmente sancionadas e bem definidas, constituem na prática o único tipo de unidade com que os homens se identificam voluntariamente e muitas vezes ardentemente (...) Deste modo, os homens querem estar politicamente unidos com todos aqueles, e apenas aqueles, que partilham a sua cultura. Então as organizações políticas estenderão as fronteiras até aos limites das respectivas culturas para protegerem e imporem essas culturas até às fronteiras do seu poder. (1993, p.88.)

Uma identidade nacional forma-se através de um sentimento e ideia de pertencimento a uma nação. Destaca-se, então, o conceito de Anderson, para quem a nação não existe em outra instância senão no imaginário de uma comunidade; ela é: uma comunidade política imaginada – e imaginada como implicitamente limitada e soberana. Ela é imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações jamais conhecerão a maioria dos seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar deles, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão (...) é imaginada como limitada, porque até mesmo a maior delas, que abarca talvez um bilhão de seres humanos, possui fronteiras finitas, ainda que elásticas, para além das quais encontram-se as outras nações. Nenhuma nação se imagina coextensiva com a humanidade (...) É imaginada como soberana, porque o conceito nasceu numa época em que o Iluminismo e a Revolução estavam destruindo a legitimidade do reino dinástico hierárquico divinamente instituído (...) é imaginada como comunidade porque, sem considerar a desigualdade e exploração que atualmente prevalecem em todas elas, a nação é sempre concebida como um companheirismo profundo e horizontal. Em última análise, essa fraternidade é que torna possível, no correr dos últimos dois séculos, que tantos milhões de pessoas, não só se matem, mas morram voluntariamente por imaginações tão limitadas. (1989, p.14-6.)

A comunidade imaginada, por sua vez, identifica-se por intermédio de uma série de símbolos. Segundo Thiesse (2001/2002, p.8-9), existe uma check list, um código de símbolos internacionais que define o que todas as nações devem ter: uma história estabelecendo a continuidade da nação; uma série de heróis-modelos dos valores nacionais; uma língua; monumentos culturais; um folclore; lugares memoráveis e uma paisagem típica; uma mentalidade particular; identificações pitorescas – costumes, especialidades culinárias ou animal emblemático. Estes símbolos não são apenas uma superficial lista de adornos, mas essenciais para a autorrepresentação das pessoas que se identificam com a nação. 122

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ALESSANDER KERBER, CLEBER CRISTIANO PRODANOV

No Brasil, diferentemente da República Velha, que teve o federalismo como característica, a política que se instalou após a Revolução de 30 tendeu ao centralismo e, consequentemente, valorizou a identidade nacional em detrimento das regionais e das cidades. O modelo de Estado autoritário que começava a se instaurar a partir de então teve uma importante atuação, em âmbito cultural, para a construção de uma nova identidade nacional. Especialmente a partir do Estado Novo e da instauração do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), ocorreu um processo de censura mais efetiva sobre representações regionais e de cidades que apresentavam tensões em relação às nacionais.

A FORMAÇÃO DA CIDADE DE NOVO HAMBURGO E SUA IMPRENSA Leopoldo Petry foi o primeiro a escrever uma versão que se apresentava como uma história de Novo Hamburgo. Segundo ele, o surgimento da cidade está intimamente ligado ao projeto imperial brasileiro de ocupação da região meridional do país, com população europeia leal ao imperador e à Coroa. Neste processo, desembarcaram no Rio Grande do Sul, a partir de 1824, sucessivas levas de imigrantes de origem germânica, que se estabeleceram em várias regiões do Estado. Conforme Leopoldo Petry (1959, p.6), é possível estabelecer a seguinte periodização para narrar a trajetória do município: o primeiro período tem início na época da fundação de Hamburger-Berg (povoado que originou a cidade) e segue até a implantação do tráfego ferroviário (1824-1876); o segundo corresponde ao funcionamento do tráfego ferroviário e se estende até o começo da industrialização (1876-1900); o terceiro começa com a industrialização e se estende até a emancipação do município (1900-1927); o quarto e último, tem início com a emancipação e continua até a data da elaboração de seu livro (1927-1959). Percebe-se que Petry faz uma divisão focalizando, essencialmente, os aspectos econômicos (com exceção da emancipação, que seria um aspecto político). Nesta perspectiva, analisa o início do desenvolvimento de um centro comercial, que futuramente comporia o município de Novo Hamburgo, ao redor do qual se estabelece um pequeno povoado. Marca, ainda, a chegada da estrada de ferro, que ligava Porto Alegre a Novo Hamburgo, o que veio a impulsionar ainda mais o desenvolvimento comercial da região, além do início do processo de desenvolvimento da indústria coureiro-calçadista. Até a década de 1970, a visão predominante na historiografia brasileira acerca do processo de industrialização apontava que o capitalismo industrial, no Brasil, não tinha conhecido as fases de artesanato e manufatura, ou seja, a atividade fabril já nascera tendo na grande indústria seu principal sustentáculo. Ao enfocar o desenvolvimento da indústria calçadista em Franca (SP), porém, Barbosa encontra a origem do empresariado do calçado em modestos empreendimentos iniciados por artesãos e pequenos comerciantes (Barbosa, 2005, p.1-2). A história da cidade de Novo Hamburgo, outro polo que se desenvolveu principalmente a partir da indústria calçadista, ainda não foi devidamente analisada. O desenvolvimento da indústria na região, no entanto, também teve origem em pequenas fábricas com baixo capital de investimento (Kerber, Prodanov, Schemes, 2007, p.194). Criado por um grupo que defendia o movimento emancipacionista, o jornal O 5 de Abril foi o primeiro existente no território do município de Novo Hamburgo, em 1927. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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5 Calcula-se que as primeiras tiragens alcançaram cerca de 200 a 300 exemplares por semana. Para a população de Novo Hamburgo recenseada, na época, em 8.500 habitantes, o número era significativo, tendo em vista, especialmente, a expressiva parcela de hamburguenses moradores na zona rural e os habitantes que falavam apenas a língua alemã. Já para a época da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), ou seja, o período final da década de 1930, falavase na tiragem, por edição, de mil exemplares (Behrend, 2002, p.43, 60).

O nome foi escolhido em homenagem à data de emancipação do município – 5 de abril de 1927. Intitulava-se no cabeçalho da página principal como “semanário de interesses gerais” e sem ligações partidárias ou religiosas. Na sua fundação, teve como diretor Leopoldo Petry e como gerente Edgar Behrend (filho de Hans Behrend, dono da tipografia onde era impresso o semanário). Werner Behrend (outro filho de Hans) mais tarde assumiria, durante um período de 30 anos, a gerência do periódico, que saía às sextas-feiras e era impresso na “Typografhia Behrend”. Inicialmente era editado em quatro páginas, as duas últimas geralmente eram ocupadas com publicidade. Na primeira página, aparecia a principal notícia, que era geralmente transcrita de jornais da capital, como o Correio do Povo e a Federação.5 O 5 de Abril pretendia assumir uma vinculação direta com a identidade da cidade de Novo Hamburgo (elemento já perceptível no nome do próprio periódico). Assim, em seu exemplar de lançamento, na página 2, aparece a matéria intitulada “O nosso jornal”. Com o advento da nossa emancipação política e administrativa, fruto do progresso que aqui se verifica como em nenhuma outra parte do nosso amado Rio Grande do Sul, tomadas as devidas proporções e, onde a atividade de seus filhos é múltipla, a criação de um órgão de publicidade era absolutamente inadiável. Eis porque, de um grupo de ardorosos paladinos do vilamento local, partiu a idéia da fundação e um jornal. Como, porém, não bastasse a concepção desta boa idéia, sendo precisa a coragem para realizá-la, tratou-se desde logo de dar um caráter prático à teoria expendida, apresentou-se hoje, embora ainda em modestas condições, o nosso jornal que tomou o título de “O 5 de Abril”. Este título não é mais do que uma homenagem à, para nós gloriosa, data que se assinala à assinatura do decreto de ouro, com que o benemérito Governo do Estado, houve por bem, concede-nos a tão almejada autonomia. Não será preciso encarecer o valor moral deste ato justo e nobre. Basta dizer-se que ele mereceu os aplausos unânimes, chegando-nos de toda parte notícias destas manifestações. E, de fato, se dentro de grande Estado gaúcho há centros com direito a este favor, Novo Hamburgo merecia, sem dúvida, ser colocada em primeiro plano, pelo seu grande comércio e pelas suas extraordinárias indústrias, conhecidas em todos os recantos de nosso amado Brasil e, quiçá, além de nossas fronteiras. Por algumas colunas procuraremos amparar todas as boas causas e todos os grandes empreendimentos. Será,porém, o nosso principal objetivo trabalhar pela união da coletividade do nosso município, sem dúvida o fator primordial de seu progresso, máxime quando esta união parece já estar consolidada com o auspicioso ato da municipalização, para o qual cooperaram gregos e troianos. Teremos ainda em mira especial amparar os que trabalham, porque foi com o trabalho que a nossa localidade ascendeu ao ponto em que atualmente se encontra. O nosso jornal não tem nenhuma ligação partidária ou religiosa. Isto não nos impede de consignarmos, no nosso artigo inicial, palavras do nosso mais profundo reconhecimento ao preclaro estadista que tão proficuamente dirige os destinos do nosso querido Estado, Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros.6

6 O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 1 julho de 1927, p.2. 7 Segundo as reflexões de Eric Hobsbawm (2006, p.9), que define uma “tradição inventada” como “um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado”.

A expressão “nosso” já remete, diretamente, à construção da identidade, ou seja, à definição do que pertence a nós e, consequentemente, aos outros (à alteridade). Nesta perspectiva, o jornal atuou construindo uma versão identitária sobre a cidade, estabelecendo seus símbolos e “inventando tradições”7 que a justificassem. 124

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Também é tema recorrente no jornal a construção simbólica da cidade. Em diversas matérias foram retomados temas como as características de Novo Hamburgo, a justificativa e os signos8 da cidade, bem como a sua relação com outras cidades, com a região e a nação. Os textos presentes nos meios de comunicação de massa pela articulação com a sociedade reconfiguram o espaço social. Isso ocorre quando as questões das identidades culturais podem ser percebidas através dos discursos jornalísticos veiculados, por exemplo, nos jornais impressos. Este movimento pode ser visualizado nas páginas do jornal O 5 de Abril, que, no caso do município de Novo Hamburgo, foi o primeiro meio de comunicação de massa voltado à população local. Assim, verifica-se que o O 5 de Abril conseguiu se firmar como mediador entre as ideias de um grupo de emancipacionistas e grande parte da população alfabetizada do município, devido tanto à sua hegemonia como pela escolha dos redatores. Os colaboradores eram representantes do governo e da sociedade local e os assuntos abordados tratavam de avisos para a comunidade, colunas opinativas e anúncios do comércio local, que começava a crescer junto com a cidade, ou seja, todos tinham um motivo para ler o “Cinquinho”, nome carinhoso dado ao semanário pela comunidade. Para comunicar a informação em uma mídia, é utilizado o chamado discurso jornalístico, pois é ele e suas características que legitimam um fato, considerando, é claro, o seu meio de divulgação e a sua abrangência. Ao fazer referência à notícia, que é traduzida pelo discurso/texto jornalístico, remete-se à pressuposição de um real, o real dos fatos, como se eles narrassem demandas e valores de uma comunidade, sem a intervenção do emissor. A função testemunhal do discurso jornalístico mantém, ainda, uma relação de alteridade com outra questão: a da legitimação. Para Gomes (2000, p.45), por causa dessa não-causação (na origem de um sem sentido), fomos levados à necessidade de que todo o testemunho, padece remetendo-se a um outro testemunho, de todo texto justificar-se por meio de outro e da reprodução discursiva como tentativa de costura da proliferação.

A autora continua a ideia destacando que toda a legitimidade reduz-se a processos de legitimação que estão ancorados nos modelos discursivos. Para clarificar este pensamento, ela recorre aos trabalhos de Foucault e Lyotard e verifica que “existe uma impossibilidade de Verdade” (Idem, p.53). Sendo assim, a função referencial do jornalismo é a de dar o aval de que o seu testemunho é verdadeiro, ou seja, ser argumento pró-consenso. As representações da cidade de Novo Hamburgo presentes no jornal no período de enfoque deste estudo referiam, essencialmente, a dois aspectos: a modernidade e a germanidade. Ambos os aspectos apresentavam-se no próprio nome dado à cidade recém-emancipada de São Leopoldo, berço da colonização alemã e representação do antigo, do velho, do ultrapassado, do qual a imprensa de Novo Hamburgo propunha se diferenciar.

REPRESENTAÇÕES DA CIDADE E ASSOCIAÇÕES COM A IDENTIDADE ALEMÃ Talvez o elemento mais recorrente nas matérias do jornal tenha sido a relação estabelecida entre a cidade de Novo Hamburgo e a nação alemã. Até 1937, era inclusive frequente o uso da própria língua alemã no periódico. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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8 Utilizou-se o conceito de signo conforme proposto por Roland Barthes (1999, 134-5), que afirma que “toda a semiologia postula uma relação entre dois termos, um significante e um significado (...) É preciso não esquecer que, contrariamente ao que se sucede na linguagem comum, que me diz simplesmente que o significante exprime o significado, devem-se considerar em todo o sistema semiológico não apenas dois, mas três termos diferentes; pois o que se apreende não é absolutamente um termo, um após o outro, mas a correlação que os une: temos portanto o significante, o significado e o signo, que é o total associativo dos dois primeiros termos”.

IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO

A estratégia mais utilizada para estabelecer relação entre Novo Hamburgo e a Alemanha era a menção à imigração que, desde mais de um século antes, teria estabelecido a origem e a identidade da cidade. Necessário mencionar que Novo Hamburgo não era uma cidade em que a população fosse totalmente composta por descendentes de alemães, mas uma cidade com população diversificada. Estudos recentes, como os de Magalhães (2006), remetem a clubes e sociedades essencialmente negras na cidade nas décadas de 1920 e 1930. Contudo, no processo de lutas de representações, acabou vitoriosa, em Novo Hamburgo, a versão sobre uma cidade originada e composta por descendentes de alemães. Esta relação era especialmente lembrada nas edições próximas ao dia 25 de julho, em que se comemora a imigração alemã no Brasil. Em 1930, por exemplo, o jornal apresentou, sem identificar autoria da matéria, o texto que segue: Hoje, 25 de julho, se comemora neste Estado, a vinda dos primeiros imigrantes alemães. Foi em 25 de julho de 1824 que chegaram ao porto de São Leopoldo as primeiras famílias de colonos contratadas, na Alemanha, pelo Governo Imperial do Brasil, e que aqui vieram lançar os alicerces dessa colonização que em pouco mais de um século tem trazido tão grandes benefícios ao nosso caro Rio Grande. É, pois, justo que no dia de hoje nos lembremos, com veneração, daqueles primeiros pioneiros, que vindos de longe, para um país novo e desconhecido para eles, com um clima diferente do de sua Pátria, com usos e costumes diversos, atiraram-se com coragem ao trabalho, à luta, conseguindo com a sua tenacidade e amor ao trabalho vencer todas as dificuldades e legar aos seus pósteros um rico patrimônio moral e material. Honremos a sua memória.9

9 “Imigração alemã”, in O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 25 de julho de 1930, p.2.

O 5 de Abril frequentemente dirigia-se à população da cidade utilizando este elemento associado à identidade étnica. Por exemplo, no dia 20 de maio de 1927, em artigo nomeado “Os primeiros frutos de nossa emancipação”, noticiou as obras empreendidas pela municipalidade, afirmando que: A laboriosa população do ex-2º distrito de São Leopoldo, hoje município de Novo Hamburgo, graças ao decreto... que emancipou da tutela administrativa do município a que pertencia e que, até então, vivera entregue a si mesma, privada de qualquer melhoramento moral ou material (...)10

10 O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 20 de maio de 1927.

No dia 7 de outubro do mesmo ano, a associação da identidade da cidade com a alemã tornou-se ainda mais explícita: A autonomia de seu pequeno solo, conseguida a cabo de muita luta ingente, trás os hamburguezes orgulhosos pela maior semelhança que apresenta assim, com o seu glorioso homônimo hanseático. E da tenacidade indiscutida de seus habitantes, tudo se podre esperar, por certo. 11

11 Idem, 7 de outubro de 1927, pp.2.

12 Idem, 4 de abril de 1930, p.1.

Destaca-se que o “orgulho pela semelhança” e o “homônimo hanseático” remetem, imediatamente, à ligação entre a identidade da cidade e a identidade étnica alemã, associada à modernidade e à industrialização de Novo Hamburgo, fazendo com que o jornal se referisse à cidade como “pequenina Manchester brasileira”.12 126

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No dia 7 de junho de 1929, o jornal referiu-se à cidade como uma colmeia. A imagem de colmeia, que remete à de ordeiros trabalhadores, é ligada à questão étnica, construindo-se uma narrativa em que tal elemento ordeiro e trabalhador liga-se à descendência alemã. Vale a pena a longa citação: Quem chega à esta Vila sente a inflexão da riqueza e do conforto, tamanha é a simpatia do ambiente e notável a benemerência do exemplo! Todos laboram pela grandeza econômica do Município, cada qual como uma molécula desse grande organismo que se agita e que se desenvolve em busca de um ideal esplêndido! Os estabelecimentos fabris assemelham-se à enormes colmeia, onde milhares de inteligências se empenham no trabalho que felicita e redime o homem, reivindicando-o do mal e da perdição, produzindo o pão do corpo e a hóstia do espírito! Assim é que a criminalidade míngua e a moral abre as asas diáfanas sobre os nossos lares, protegendo-nos a vida e levantando-nos o nome de dignos e cristãos! Não sabemos de outra Vila que mais trabalhe e mais número de casas confortáveis tenha que a nossa, havendo mesmo requinte em alguns de seus palacetes, ótimos, magníficos de linhas e estilos, aptos a figurarem em qualquer capital do mundo civilizado. A despeito de ser o menor município do país, não é, todavia, o mais ínfimo, posto que o potencial do seu trabalho supera o de muitos, não lhe ficando mal o título de Manchester gaúcha! Os teutos têm o instinto da ordem e da prosperidade, infiltrando àqueles que os rodeiam o exemplo dignificante, buscando, como numa fonte maravilhosa, a independência no labor de cada dia, tal o beduíno que procura no Alcorão a redenção e a glória da espécie mesma! (...) Há ainda a fundação de três escolas, fato este que merece palmas e louvores, em virtude de ser essa a maior preocupação dos grandes espíritos que almejam ao Brasil o verdadeiro lugar a que ele faz jus, pela sua grandeza e pelo seu posto de guardião da América do Sul! (...) Para concluir vem a pelo a questão da luz e força, quando mais se fizera notar a inteligência do major Leopoldo Petry, solucionando, a contento geral, esse problema que nos empolgava, encontrando nos snrs. Pedro Adams Filho e coronel José J. Matins os mais valiosos dos seus auxiliares na consecução desse benefício que já transpusera as fronteiras hamburguezas para nos orgulhar e servir de paralelo à iniciativas congêneres que se debuxam pelo Estado afora... Salve! De homens deste jaez é que a pátria carece e não da chusma de maldizentes que superabunda, inativa, corrupta e corruptora! Salve, major Leopoldo Petry!13

13 Idem, 7 de junho de 1929, p.1.

A afirmação de uma origem alemã apresentava-se, em geral, investida de um significado valorativo, justificado pela associação entre o alemão e o trabalho. Por exemplo, em 1934, o próprio prefeito Leopoldo Petry apontou: Dada a concentração ao trabalho, aliada ao espírito ordeiro desses pioneiros, rapidamente se desenvolveu a colônia: a mata virgem foi desaparecendo e em toda parte surgiram prósperos núcleos, florescentes vilas e cidades, e hoje, ao cabo de 110 anos, com toda justiça podemos orgulhar-nos do progresso e desenvolvimento da grandiosa estrutura econômica e cultural iniciada pelos nossos antepassados.14

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14 Leopoldo Petry, “Do início da colonização alemã”, in O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 25 julho 1934, p.2.

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15 Conforme Gertz (1991, p.32), o germanismo é a tradução da palavra Deutschtum. É usada, às vezes, para designar simplesmente o conjunto da população de alemães e descendentes. Mas de uma maneira geral entende-se por Deutschtum uma ideologia e uma prática de defesa da germanidade das populações de origem alemã. A palavra também pode aparecer significando as duas coisas ao mesmo tempo. É o caso do título da obra comemorativa do primeiro centenário da imigração alemã, Hundert Jahre Deutschtum im Rio Grande do Sul (Cem anos de germanismo no...), publicada em 1924. 16 Como afirma Renato Ortiz (2001, p.16-7): “As considerações de Silvio Romero sobre o português, de Euclides da Cunha sobre a origem bandeirante do nordestino, os escritos de Nina Rodrigues refletem todos a ideologia da supremacia racial do mundo branco (...) Dentro desta perspectiva, o negro e o índio se apresentam como entraves ao processo civilizatório”. 17 O positivismo de Comte, o darwinismo social, o evolucionismo de Spencer foram teorias elaboradas na Europa em meados do século XIX que apontavam para a evolução histórica e o progresso das civilizações, legitimando a superioridade da cultura branca européia sobre os povos “primitivos”. Essas teorias europeias influenciaram enormemente as teorias raciais que predominaram entre as elites brasileiras no final do século XIX e início do século XX. Também na Europa, ainda no final do século XIX, começaram a aparecer trabalhos de Franz Boas, em que a noção de raça cede lugar à de cultura. A obra de Boas teve grande influência sobre Gilberto Freyre.

Esta associação entre “alemão” e “trabalhador” fez parte da própria versão identitária proposta para sua nação pelo Estado alemão e está presente no “germanismo”.15 Importante, também, ressaltar, que antes dos anos 1930 não parece ter sido considerado problema importante, pelo Estado brasileiro, a afirmação da “germanidade” de descendentes de imigrantes alemães, desde que também se afirmassem como brasileiros. Esta questão é fortemente influenciada pela percepção predominante das elites brasileiras, até a década de 30, de que os elementos étnicos não brancos eram os principais entraves para o desenvolvimento do Brasil.16

AS TRANSFORMAÇÕES NAS VERSÕES SOBRE A IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA DURANTE O GOVERNO VARGAS E SUAS RELAÇÕES COM A IDENTIDADE DA CIDADE DE NOVO HAMBURGO No Brasil, a década de 30 acompanhou o início da produção científica de um jovem intelectual que se projetou como um marco no pensamento brasileiro: Gilberto Freyre.17 De acordo com Ortiz: A passagem do conceito de raça para o de cultura elimina uma série de dificuldades colocadas anteriormente a respeito da herança atávica do mestiço. Ela permite um maior distanciamento entre o biológico e o social, o que possibilita uma análise mais rica da sociedade. Mas a operação que Casa grande e senzala realiza vai mais além. Gilberto Freyre transforma a negatividade do mestiço em positividade, o que permite completar definitivamente os contornos de uma identidade que há muito vinha sendo desenhada. (2001, p.41.)

O que interessa na obra de Freyre é a influência de seu pensamento nas representações do imaginário da sociedade brasileira. Segundo Carlos Fico (1997, p.34), a década de 30 foi o período de “gilbertização” do país, ou seja, da absorção dos cânones explicativos da sociedade brasileira através da obra Casa grande e senzala, que promoveu uma ressignificação dos negros e dos mestiços na cultura nacional. Com a obra de Gilberto Freyre, a mistura de raças como formadora da identidade nacional ganhou ampla aceitação, a noção de que o Brasil tinha se formado pela mistura das três raças (o branco, o índio e o negro) difundiu-se socialmente e tornou-se senso comum. A obra de Freyre ia perfeitamente ao encontro da proposta da política de Vargas, assimilando harmoniosamente diversos grupos étnicos à nacionalidade, idealizando uma sociedade sem conflitos – e, com certeza, esse é um dos motivos de seu pensamento ter se projetado tanto. Como afirma Hermano Vianna: O governo pós-Revolução de 30 tornou semi-oficial a política de miscigenação, valorizando inclusive os símbolos nacionais mestiços como o samba (...) As medidas de repressão foram inclusive legais (...) limitando as cotas de imigração [como forma de valorizar o trabalho dos mestiços brasileiros em detrimento dos brancos europeus] e estabelecendo que nenhum estabelecimento de trabalho poderia ter mais do que um terço de empregados estrangeiros. (1995, p.73.)

Esta versão sobre a identidade nacional brasileira emergente durante os anos 30, contudo, excluía os descendentes de imigrantes alemães no sul do país. A política esta128

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belecida durante esta época também fortalecia essa exclusão. Eliana Freitas Dutra, em O ardil totalitário (1997), focaliza especialmente o período entre 1935 e 1937, fundamentando-se em teóricos da psicologia, e explica que, naquele momento, o imaginário social recorreu ao Estado, identificado a nação, a pátria-mãe, a um salvador que poderia proteger a sociedade dos males que a atormentavam. Neste sentido, a nação veio a ser uma resposta às angústias de uma população em crise. Maria Helena Capelato afirma que: O varguismo e o peronismo surgiram em momentos de crise nas respectivas sociedades, o contexto de insegurança e instabilidade explica a aceleração dos sentimentos e sua transformação em paixão. O apelo a valores comuns e, através deles, a emergência simbólica de um nós, proclamação agressiva de uma identidade a se afirmar e legitimar, implicavam em trabalho complexo de construção da identidade e identificação do outro. Este processo levou ao extremo das emoções. (1998, p.243.)

No contexto dos anos 30, é preciso prestar especial atenção à atuação do Estado para definições sobre o nacional. Isso ocorre porque a crise mundial também foi responsável pela emergência de regimes autoritários em todo o mundo. O nacionalismo que se configurou a partir dos anos 30 não é mais o liberal, mas o do tipo autoritário, centrado no Estado, o qual teve grande poder para autorizar ou censurar seus símbolos. Capelato (1991, p.51-63) analisa a influência das ideias fascistas nos regimes de Vargas e Perón, concluindo que eles não podem ser classificados como fascistas, apesar de terem sofrido grande influência deles. As ideias fascistas circularam pela América Latina entre as décadas de 1930 e 1940, influindo, especialmente, em dois aspectos: no desenvolvimento do nacionalismo e na emergência do Estado autoritário, que atuou mais sobre a cultura nacional. A influência das ideias fascistas apresenta-se forte no governo Vargas no Brasil, em especial a partir do Estado Novo, quando também houve um processo de renegociação sobre a identidade nacional brasileira. Parte-se do pressuposto de que uma identidade não é criada pelo Estado, mas que pode ser influenciada por ele. Assim, o Estado brasileiro do período de Vargas teve, através de uma série de mediações, o controle sobre a imprensa, o rádio e o cinema. Esta inovação da “Era Vargas”, que foi a centralização do poder político e a atuação cada vez mais forte do Estado na esfera social e cultural, é explicada da seguinte forma pelo antropólogo Ruben Oliven: Se a República Velha se caracterizou pela descentralização política e administrativa, a República Nova reverte essa tendência e acentua uma crescente centralização nos mais variados níveis. Esse processo precisa ser entendido como decorrência de importantes transformações que vinham sendo gestadas nas primeiras décadas deste século e que assumiriam uma dimensão mais ampla a partir da década de 1930. Em poucas palavras, essas mudanças foram a formação de uma indústria de substituição de importação de bens não-duráveis, o crescimento das cidades que eram centros de mercados regionais, a crise do café, a falência do sistema baseado em combinações políticas entre as oligarquias agrárias (a “política dos governadores”) e o surgimento de revoltas sociais e militares que começaram na década de 1920 e culminaram com a Revolução de 1930. (...) Nesse período, as ideologias sobre o caráter nacional brasileiro que enfatizavam a dificuldade de construir uma verdadeira cultura no R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO

Brasil por causa da miscigenação racial cedem lugar a posições como a de Gilberto Freyre, que frisam a idéia de que no Brasil haveria uma democracia racial. (2000, p.74-6.)

18 O Integralismo tinha forte inspiração fascista. Conforme Helgio Trindade (1974), o Integralismo teve o topo de suas estruturas administrativas ocupado especialmente por descendentes de luso-brasileiros, mas conseguiu um amplo apoio, nas bases, de descendentes de alemães.

Esta tendência acentua-se com o Estado Novo, ocasião em que os governadores eleitos foram substituídos por interventores e as milícias estaduais perderam força, medidas que aumentaram a centralização política e administrativa. No plano da cultura e da ideologia, a proibição do ensino em línguas estrangeiras, a introdução da disciplina de Moral e Cívica, a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (que tinha a seu cargo, além da censura, a exaltação das virtudes do trabalho) ajudaram a criar um modelo de nacionalidade centralizado no Estado (o qual, logo a seguir, viria a exercer violências sobre alguns segmentos da população brasileira, especialmente imigrantes, e, mais enfaticamente, sobre os descendentes de alemães). A emergência desta nova versão sobre a identidade nacional brasileira coincidiu com a emergência do nazismo na Alemanha, quando o país apresentou-se novamente como uma ameaça internacional. As ideias fascistas encontraram ressonância também na América Latina, em especial no Brasil, fazendo com que se tornassem também uma questão política importante. Neste período, os descendentes de alemães foram frequentemente confundidos com e rotulados como nazistas. Houve, efetivamente, uma simpatia às ideias fascistas nas regiões de imigração alemã que se manifestaram, em grande medida, no crescimento do Integralismo nestas regiões. É provável que a emergência da Alemanha como uma potência, com base em uma perspectiva política nazifascista, tenha sido o principal elemento motivador na aproximação de alguns descendentes de alemães com o Integralismo,18 movimento com inspiração no ideário fascista. Contudo, apesar desta participação ter sido de apenas parte da comunidade alemã, houve, no imaginário social, uma identificação genérica entre a identidade étnica e tais ideias de caráter político. O imenso crescimento econômico e, especialmente, industrial da Alemanha no começo do século XX contrastava, porém, com seu potencial em termos de mercados consumidores e fornecedores de matérias-primas. Por ter se constituído tardiamente como Estado nacional, a Alemanha havia chegado “atrasada” na partilha dos mercados mundiais. Assim, a África e a Ásia já tinham sido divididas especialmente entre a Inglaterra e a França, que exerciam controle sobre os mercados destas regiões através de, basicamente, três sistemas: colônias, protetorados e áreas de influência. No caso do Brasil, desde a Doutrina Monroe, os Estados Unidos definiam-no como seu mercado. Contudo, esta relação não era mais complexa do que gostaria o governos norte-americano, pois a Alemanha apresentavase, até a Segunda Guerra Mundial, como segunda parceira comercial do Brasil. A Alemanha, no entanto, encontrava limitações para o seu desenvolvimento econômico. Limitações tão rigorosas de acesso aos mercados internacionais que chegaram a ser apontadas como explicação para a entrada do país nas guerras mundiais. Uma das saídas parciais encontradas pela Alemanha foi estreitar os laços de comércio com as regiões do mundo que haviam sido colonizadas por seus emigrantes. O historiador René Gertz analisa este contexto histórico, identificando a política econômica exercida pela Alemanha: A Alemanha não tinha colônias e ideólogos e estrategistas alemães pensaram no aproveitamento de “alemães no exterior” em benefício da “pátria-mãe”. Já em 1865 o geógrafo alemão Woldemar Schulz, escrevendo sobre as possibilidades de imigração para o sul do Brasil, 130

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Uruguai e Argentina, citava uma personalidade alemã que havia dito: “... ninguém praticamente lembra que com isto se criariam lugares de reunião para os ramos caídos do nosso tronco, onde todo botão de flor se transforma em fruto maduro para a pátria alemã, onde qualquer pulsação do sangue da velha pátria é refletido”. Certamente alguns destes ideólogos e estrategistas - mais exaltados e menos realistas – pensavam até numa anexação, na criação de uma colônia alemã como os franceses as tinham na Ásia ou na África. A maioria, porém, pensava a presença de descendentes de alemães como fator fundamental para a conquista do mercado local. (Gertz, 1991, p.15.)

Tudo isso desencadeia a famosa campanha do “perigo alemão”, que se estende com intensidade variável por quase quarenta anos, até a Primeira Grande Guerra, quando da derrota alemã. Obviamente que é preciso considerar os exageros existentes no “perigo alemão”. Como o próprio Gertz afirma, o interesse em geral da Alemanha, excetuando o de alguns nacionalistas mais radicais, era apenas expandir seu mercado econômico para dar vazão aos seus produtos industrializados e conseguir matérias-primas. Uma pequena parcela dos descendentes de alemães no Brasil efetivamente aderiu às ideias fascistas. Contudo, houve uma identificação genérica, no imaginário social, entre a identidade étnica e tais ideias de caráter político. A parcela da população de Novo Hamburgo que se vinculava diretamente às propostas políticas do Estado alemão vincularam-se, em boa parte, à Ação Integralista Brasileira (AIB). Até 1937, a AIB fazia parte de sua divulgação através do jornal, em notas como a citada abaixo: A Secretaria do Núcleo Municipal da A. I. B. nos forneceu a seguinte nota: Sessão semanal – Teve lugar, segunda-feira última, na sede municipal, uma concorrida [ilegível na fotografia, poucas palavras] de doutrina e propaganda integralista, falando o Chefe Municipal Dr. W. Metzler e o comp. Alfredo Marotzky que, aproveitando a data do aniversário da criação do município de Novo Hamburgo, fez uma demorada explanação da origem do “município” e como o encara o Estado Integral (...) Anauê! Pelo Bem do Brasil.19

Ao mesmo tempo, anteriormente ao Estado Novo, apresentava-se, cada vez mais frequente, a crítica contra a propaganda alemã e o jornal O 5 de Abril parece ter sido espaço da diversidade de discursos. Em Novo Hamburgo, uma parcela da população participou da Ação Integralista Brasileira, demonstrando proximidade às propostas políticas do Estado alemão. Até 1937, a AIB fazia parte de sua divulgação através do jornal O 5 de Abril. No entanto, a adesão às ideias fascistas e ao Integralismo na região de imigração alemã, durante a década de 1930, cresceu somente até a ocorrência de dois fatos: o rompimento do Estado Novo com a Ação Integralista Brasileira, em 1938, e o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939. A partir de então, iniciou-se uma repressão por parte do Estado brasileiro em relação aos suspeitos de se ligarem ao Integralismo. Por fim, em 1942, com a entrada do Brasil na II Guerra, a repressão tornou-se muito mais forte e os descendentes de alemães passaram a ser considerados suspeitos.

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19 O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 9 de abrIl de 1937, p.2.

IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO

A IMPRENSA COMO ESPAÇO DE LUTAS DE REPRESENTAÇÕES ENTRE A NAÇÃO E A CIDADE A questão da germanidade versus nacionalismo no Brasil dos anos 1930 perpassou muitos dos discursos oficiais. Havia a necessidade e o interesse, em Novo Hamburgo, de se afirmar uma identidade nacional brasileira, mas os laços que uniam os descendentes de alemães à sua antiga pátria eram muito fortes e tinham que ser habilmente tratados. Em 1931, por exemplo, Leopoldo Petry criticava a falta de educação pública oferecida pelo Estado brasileiro desde o século XIX e, nesta crítica, acabava por responsabilizá-lo pela própria manutenção de uma identidade alemã na cidade:

20 Leopoldo Petry, “Pela instrução”, in O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 1 de maio de 1931, p.1-2.

os filhos dos colonos alemães, por falta de aulas Nacionais, não estudavam e não falavam senão o idioma alemão, e que sendo Brasileiros, tornaram-se que nem estrangeiros no seu próprio país natal.20

Foi pouco antes da comemoração do primeiro aniversário da emancipação de Novo Hamburgo que a prefeitura estabeleceu a data de 5 de abril como feriado municipal. O jornal O 5 de Abril de 16 de março de 1928 apresentou o decreto em sua edição, afirmando que: considerando que a criação do município de Novo Hamburgo foi de suma importância para o seu progresso econômico e social, e de incalculáveis conseqüências para o seu desenvolvimento futuro, considero que esse ato constitui uma velha e justa aspiração dos nossos antepassados, cuja memória devemos cultivar, e o resultado dos esforços congregados de toda a população do antigo 2º distrito de São Leopoldo.21

21 O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 16 de março de 1927, p.3.

A partir do Estado Novo, especialmente após a criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), em 1939, percebe-se uma mudança drástica no jornal. Em relação aos meios de comunicação, o artigo 122 da Constituição de 1937 considerava a imprensa um serviço de utilidade pública e determinava que os periódicos não poderiam se recusar a inserir comunicados do governo:: Uma das primeiras medidas do órgão foi proibir todas as transmissões radiofônicas e a impressão de jornais e revistas em língua estrangeira. (...) As medidas constituíram-se num duro golpe para a imprensa organizada por imigrantes e seus descendentes, e atingiu particularmente as regiões Sul e Sudeste do país, que havia recebido contingente considerável de mão-de-obra européia. (Martins & Luca, 2006, p.65.)

Percebe-se esta censura claramente no jornal O 5 de Abril através de três elementos: a eliminação do uso da língua alemã no jornal (até 1937 havia matérias inteiras nesta língua); a mudança no discurso de identificação de Novo Hamburgo com representações alemãs; a emergência cada vez mais frequente de matérias que exaltavam a identidade nacional brasileira, tanto nas matérias oficiais, enviadas pelo governo federal e que os jornais eram obrigados a publicar, como nas matérias escritas por integrantes da cidade de Novo Hamburgo, especialmente por políticos, numa clara perspectiva de afirmarem-se dentro do regime instaurado. Por exemplo, na edição de 4 de abril de 1941, a matéria de capa “Recordando a Emancipação”, assinada por Leopoldo Petry, apresentou em seu subtítulo: 132

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É antigo o espírito de brasilidade de Novo Hamburgo – Os dirigentes de São Leopoldo atribuíram a este município sentimentos não brasileiros, não devendo assim emancipar-se (...) Relembremos ufanos esse fato 14 anos antes de ter o brilhante historiador Capitão Paranhos Antunes afirmado ser Novo Hamburgo FORTE REDUTO DE BRASILIDADE [grifos do original].22

22 Idem, 4 de abril de 1941, p.1.

Segue Petry, informando sobre “memorial com 827 assinaturas pedindo a emancipação desta zona”, entregue em comissão ao conselho municipal de São Leopoldo em 1925: Por isso, certo de que esse conspícuo Conselho, inspirado pelo mais puro patriotismo e tendo em vista unicamente o bem do povo (...) tendo como ideal o mais elevado amor ao nosso querido Rio Grande do Sul, à nossa amada Pátria Brasileira, procurará facilitar uma medida de que tão grandes vantagens advirão ao público.

Na continuação da matéria, na página 4 do mesmo número, Petry afirma: Eu aqui não quero traçar um paralelo entre o nosso patriotismo e o da cidade vizinha [São Leopoldo], mas não posso deixar de levantar o meu protesto contra essa ofensa que nos foi atirada. Nós não somos brasileiros? Mas não são brasileiros esses nossos industrialistas e comerciantes, que com atividade incansável trabalham nos seus estabelecimentos, (...) para a independência econômica da nossa Pátria, sem falar nas grandes contribuições que entregam aos cofres públicos?! (...) Não são patriotas os nossos operários, moços e velhos, que desde manhã cedo até ao escurecer mourejam nas fábricas (...) Naturalmente, quando falo em patriotismo, me refiro àquele patriotismo são, que trabalha, que produz, que vê o supremo ideal do homem, no cumprimento estrito do dever – aquele patriotismo que o Brasil precisa para tornar-se próspero, feliz e independente do estrangeiro (...) daquele patriotismo que o Brasil precisa para conseguir no concerto das nações a posição a que por sua natureza tem direito. Este patriotismo é o que se cultiva em Novo Hamburgo, onde tudo trabalha, tudo produz, e onde os parasitas da humanidade, felizmente, não encontram ramo onde pousar. (...)23

Há, também, uma série de expressões utilizadas nas matérias que exaltam, de forma ufanista, a pátria. Por exemplo, na edição de primeiro de setembro de 1944: “convidam a patriótica população de Novo Hamburgo a se associar, com todo o seu ardor cívico, às festividades programadas”. Na mesma matéria: “Novo Hamburgo, como aliás costuma fazer todos os anos, vai festejar com um programa excepcional A Semana da Pátria”.24 Na edição seguinte, lia-se: “mais uma vez, vêm demonstrar, cabal e inequivocamente, que o civismo em Novo Hamburgo é uma realidade”.25 Em relação às escolas, católicas ou luteranas,26 parecia haver uma competição na perspectiva de exaltação da pátria. A Escola Normal Santa Catarina27 noticiava que: Como nos anos anteriores, este estabelecimento de ensino vem realizando com vivo entusiasmo as comemorações da Semana da Pátria (...) dia 24 de agosto teve início o programa das solenidades com a recepção das alunas da Escola Santa Teresa de Bom Princípio, que vieram em visita de intercâmbio cultural e regressaram com a mais grata impressão.(...) [a proR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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23 Idem, p.4.

24 Idem, 1 de setembro de 1944, p.1. 25 Idem, 8 de setembro de 1944, p.1. 26 A maior parte do sistema educacional do município da época era comunitário e confessional, vinculado às igrejas católica e luterana. 27 Era uma escola comunitária católica de Novo Hamburgo voltada para o público feminino.

IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO

gramação previa] A Caminho da Vitória § dramatização em 9 cenas § a) Partida das Samaritanas, b) Em defesa da Liberdade, c) Saída do Corpo de Expedicionários, d) Nossos marujos em águas longínquas, e) Recordando a Pátria distante, f) Trabalho silencioso da 2ª frente, g) Supremo holocausto pela Pátria, h) Visão da Vitória, i) Os troféus gloriosos aos pés da Virgem Aparecida.28

28 O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 1 de setembro de 1944, p.8.

A Fundação Evangélica,291 por sua vez, anunciava na mesma página:

29 Era uma escola comunitária evangélica de confissão luterana de Novo Hamburgo voltada para o público feminino.

mais uma de suas apreciadas ‘Horas de Arte’, com que homenageará a Semana da Pátria (...) o grande coro de quase 100 alunos que entoará a quatro vozes (arranjo especial do professor de música M. Maschles), diversas canções brasileiras, sendo a primeira de autoria do maestro Villa-Lobos, com versos do atual Ministro de Educação sr. Gustavo Capanema, intitulada ‘Nesta hora sombria do mundo’. O prof. Samuel Dietschi apresentará duas marchas de sua autoria, com orquestra e coro: ‘Avante’ e ‘Louvor ao Brasil’.”; “Uma cena regional contribuirá para vulgarizar entre nós as nossas tradições tão belas e evocativas. Terminará a noitada, que terá a duração de aproximadamente, uma homenagem à gloriosa Bandeira Nacional.”; “Antes da ‘Hora de Arte’, às 19,45 horas, o sr. Alberto Severo, digno edil desta comuna e grande propugnador pela higidez da raça, especialmente convidado para esse fim, inaugurará um moderno gabinete dentário no próprio estabelecimento.30

30 O 5 de Abril, Novo Hamburgo, 1 de setembro de 1944, p.8.

Este ufanismo manifestou-se de forma similar durante todo o período do Estado Novo. O ano de 1945 já era permeado de desafios à censura por vários jornais do país. Como afirmam Martins & Luca, No final de 1944, a derrota do nazi-fascismo já se tornara clara, o que acelerava a desestabilização do governo. Vários jornais passaram a desafiar abertamente proibições, estampando entrevistas com personalidades do mundo político, que exigiam a volta das liberdades democráticas, tal como ocorreu nos diários cariocas O Globo e Correio da Manhã, e divulgando notícias vetadas e/ou não submetidas ao DIP, indício evidente de que a censura perdera sua eficácia. A pressão crescente pelo fim do regime de exceção levou o governo a anistiar os presos políticos e extinguir o DIP, substituído pelo Departamento Nacional de Informação (DNI) [sem tantos poderes de censura e também extinto em 1946]. (2006, p.71-2.)

Contudo, estes desafios parecem não ter sido expressos no jornal O 5 de Abril, pois o discurso de exaltação à pátria permanece igual ao de anos anteriores. Em matéria sem autor identificado relacionada à derrota alemã na Segunda Guerra, o jornal afirmava: Novo Hamburgo comemorará com o seu nunca desmentido ardor cívico e com o maior brilhantismo até hoje demonstrado, a “Semana Máxima de nossa Pátria”; dia 31 de agosto – Trânsito do Fogo Simbólico, acendido em Monte Castelo, nas abruptas encostas dos Apeninos, onde jorrou copiosamente o heróico sangue brasileiro, numa demonstração imarcescível de abnegação, bravura e entusiasmo em prol das grandes causas da humanidade – apanágio da Brasil e a Gente.31

31 Idem, 31 de agosto 1945, p.3.

Na edição seguinte, o jornal descreveu a programação da Semana da Pátria, novamente ligando a cidade à nação: 134

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A Semana da Pátria mais uma vez passará, mas há de ficar ainda uma vez mais a demonstração eloquente de que Novo Hamburgo cultiva o civismo, que esta terra de trabalho e progresso sabe cumprir os seus deveres patrióticos, porque ela é um pedacinho desse grande todo que é o Brasil, gloriosa pátria de heroicos filhos.32 Percebe-se, no discurso jornalístico, a perspectiva de vincular a cidade de Novo Hamburgo com a nação brasileira. Não aparece, neste discurso, como nos vários outros publicados durante a Ditadura Vargas, referências a muitas representações, tanto do Brasil quanto da cidade. Isso parece justificável pela grande diferença entre as representações nacionais e da cidade apresentadas naquele contexto. Deste modo, fala-se em “pátria”, cuidando-se para não descrevê-la em detalhes, fala-se em “heroicos filhos”, sem identificá-los. A não menção a representações tanto da cidade de Novo Hamburgo como da nação brasileira parece ser uma estratégia utilizada para ocultar as lutas de representação neste contexto de censura à imprensa.

32 Idem, 7 de setembro de 1945, p.1.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Percebe-se que existia uma tensão entre a afirmação da identidade nacional brasileira e a identidade da cidade de Novo Hamburgo, ocasionada especialmente pelas diferenças de suas representações e expressa nos discursos presentes no O 5 de Abril. Desde sua fundação até meados da década de 1930, o jornal apresentava representações sobre Novo Hamburgo associada à identidade nacional alemã. Parece um paradoxo, porém, que esta tensão tenha diminuído, no final da década de 1930, período em que emergiu uma nova versão sobre a identidade nacional brasileira, representada através de vários símbolos ligados à miscigenação. Esta versão parece excluir mais ainda os brasileiros descendentes de imigrantes alemães. Contudo, ao se observar o contexto político, principalmente no que se refere ao controle da imprensa exercido no período do Estado Novo, poder-se-ia considerar que houve um silenciamento no jornal O 5 de Abril acerca das lutas de representações existentes entre a identidade da cidade e a nacional, o que é perceptível tanto através da eliminação do uso da língua alemã no jornal a partir de 1937, como pela emergência cada vez mais frequente de matérias que exaltavam a identidade nacional brasileira. Contudo, durante o Estado Novo, nos discursos presentes no O 5 de Abril raramente apareciam representações da identidade nacional brasileira e da cidade de Novo Hamburgo, o que parece justificável na perspectiva de evitar a apresentação das lutas de representação em um contexto de forte censura.

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Alessander Kerber é doutor em História (UFRGS), professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected] Cleber Cristiano Prodanov é doutor em História (USP), professor e pesquisador do Centro Universitário Feevale. E-mail: prodanov@ feevale.br Artigo recebido em julho de 2009 e aprovado para publicação em setembro de 2009.

IDENTIDADES RELACIONADAS AO ESPAÇO GEOGRÁFICO

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A B S T R A C T This is an analysis of the struggle over representations involving the construction of identities rooted in the geographical space of the nation of Brazil and the city of Novo Hamburgo using the city’s main newspaper, “O 5 de Abril”, which was published from 1927, when the city was officially recognized, until 1945, which marked the end of the Second World War and of the Estado Novo dictatorship in Brazil. This period was marked by the construction of different versions of these two identities and their massification by the media. These versions were in conflict, specifically focused on the fact that the city was 136

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represented through signs that refer to the process of German immigration, while the representation of the nation was through signs referring the intermixing of races. These conflicts intensified when Brazil entered the Second World War against Germany.

K

E Y W O R D S

City, national identity, the press.

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EIXO MONUMENTAL DE BRASÍLIA A OBSESSÃO DA INTEGRAÇÃO BRASILMAR FERREIRA NUNES Desejo inicialmente desculpar-me perante a Direção da Companhia Urbanizadora e a Comissão Julgadora do Concurso pela apresentação sumária do partido aqui sugerido para a nova Capital e também justificar-me. Não pretendia competir e, na verdade, não concorro; apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta. Lucio Costa, Memorial Descritivo do Projeto n. 22 para a escolha da Nova Capital da República, 1957

Não se pensa da mesma forma em todos os lugares. Alain Badiou, 1994

R E S U M O Procuramos no presente texto fazer uma análise do impacto do novo museu e da biblioteca pública, construídos no Eixo Monumental de Brasília, que complementam parte da proposta original deLucio Costa de um corredor cultural para atender algumas funções de cidade-capital. A análise é de cunho intraurbano, visto que procura captar as implicações destes novos artefatos na vida cotidiana dos moradores do Distrito Federal (DF) e no uso que se abre para uma subárea até então relativamente ociosa dentro do Plano Piloto. Nossa hipótese é de que a sua construção, na medida em que amplia e diversifica o seu uso, torna o espaço acessível a outros grupos sociais e produz alterações na apropriação do Plano Piloto pela população do DF como um todo, consolidando cada vez mais a cidade projetada. A nova acessibilidade ao espaço provocada pelos seus novos elementos constitutivos nos permitirá decodificar a dinâmica e o processo de apropriação deste território. Para tanto, faremos um estudo etnográfico a fim de perceber a expansão da influência de outros grupos no espaço até então restrito do Eixo Monumental, num esforço de retomada crítica do conceito de segregação socioespacial. P A L A V R A S - C H A V E Brasília; museu; cultura urbana; segregação socioespacial; planejamento urbano. APRESENTAÇÃO Nosso intuito é contribuir para um debate que vem sendo feito ainda de maneira fragmentária dentro dos estudos urbanos no Brasil, mas que guarda a nosso entender um prisma original de análise deste campo entre nossos intelectuais e pesquisadores. A presença em congressos científicos, as pesquisas desenvolvidas em nossos centros de pós-graduação, a instigante possibilidade de questionar a relação espaço/sociedade quando se reflete sobre a experiência de Brasília são fatores que nos motivam. Especialmente, perseguimos uma ideia apresentada pelo professor Frederico Holanda da R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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E I X O

1 Característica que por si só merece reflexões mais aprofundadas, que não faremos por instante.

2 Talvez tenha sido esta a intenção do arquiteto quando desenhou a cidade e, utopicamente, imaginou um lugar onde as diferenças sociais seriam aplainadas por um desenho urbanístico em que os grupos e as classes “conviveriam em harmonia”.

M O N U M E N T A L

D E

B R A S Í L I A

FAU/UnB em Congresso da Anpur em 2007, em Belém (PA), quando de forma lúcida nos apela para um esforço interdisciplinar no sentido de contribuir para a delimitação de uma arquitetura sociológica que analisaria a relação entre arquitetura e sociedade, mais especificamente sobre as maneiras como se estruturam encontros interpessoais, de forma mais ou menos determinística, mais ou menos casual, concentrados ou não no espaço e no tempo. De início, deixamos claro que a Brasília à qual o trabalho se debruça é o que se conhece como Plano Piloto, onde se encontram as instituições públicas, as residências da alta burocracia e o comércio e prestação de serviços que têm nelas e nela seus clientes privilegiados. É a área tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO e pelo Iphan, o que lhe confere uma dignidade particular; sobretudo se considerarmos que esta classificação se fez quando a cidade mal tinha completado os seus trinta anos. Até o momento há consenso entre os estudiosos da cidade de que aqui a interação através do espaço é descontínua no tempo: o desenho segrega as pessoas. A segregação socioespacial da capital foi comandada por políticas públicas como resposta a princípios ideológicos, não como resultado de mercado, regra nas demais cidades brasileiras (Holanda, 2002).1 Em se tratando de cidade com pouco tempo de existência, é de se pressupor que em Brasília haja ainda uma memória em formação, que tanto pode ser um aspecto positivo como negativo. Positivamente, pode significar um princípio de liberdade que nos permite agir segundo nossos desejos e fazer disso um componente fundamental na construção de novas formas de sociabilidade, de vida em comum.2 O lado negativo está na rápida proliferação da(s) cidade(s) em negativo ao redor do Plano Piloto. Assim, de um lado, uma cidade planejada, quase perfeita, e, de outro, um universo onde muitas vezes impera um mercado selvagem de terras, trazendo aquele ar caótico que caracteriza nossas periferias – a primeira induz o aparecimento da segunda. Nesta realidade de dupla face, é na esfera simbólica que a desigualdade territorial se apresenta mais sutil e eficiente. Quando um morador da(s) cidades satélite(s) precarizada(s) circula pelos espaços “públicos” do Plano é que esta desigualdade se manifesta: nos parques, nos shopping centers, nas áreas de lazer das superquadras etc. É justamente nestes momentos que vemos que, apesar da tão decantada liberdade de circulação no espaço territorial do Plano, ele, no fundo, é uma das áreas públicas mais privatizadas das cidades brasileiras. É nesse aspecto que a realidade socioespacial de Brasília nos permite criticar tanto o planejamento quanto o urbanismo como prática social que nos condiciona a um padrão de espaço com sua estética e seus usos de forma quase impositiva. Mesmo assim, classificou-se e fez-se o tombamento do Plano Piloto, pelo menos de algumas de suas áreas. Poderíamos nos perguntar: classificaram uma utopia? Se assim o é, estamos de acordo com André Micoud (2000) que, ao referir-se à prática do tombamento, argumenta que na medida em que haja unanimidade para este gesto podemos considerá-lo como um ato significativo, de importância. O Plano Piloto, o seu ideário urbanístico, com sua premissa de racionalidade espacial como modeladora de comportamentos sociais tinha muito de utopia. Assim, mesmo se há o consenso atual de que a era das grandes utopias está no mínimo em crise, nada mais oportuno do que classificar um monumento síntese de uma ilusão de sociedade, como foi a proposta de transferência da capital política do país nos anos de 1950. O resultado foi que o tratamento preservacionista dado a Brasília parte do entendimento da cidade como obra de arte acabada, o que pode significar que congelamos uma experiência única nas suas potencialidades de explorar o novo.

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B R A S I L M A R

F E R R E I R A

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Estas reflexões nos guiarão na análise do significado da inauguração recente do Espaço Cultural da República (museu e biblioteca pública) na Esplanada dos Ministérios em Brasília, como complementação de parte do projeto original de implantação de um espaço cultural naquela área da cidade. Trata-se aqui de uma perspectiva de compreender as mutações aceleradas que se observam na aparente estabilidade que a cidade apresenta. Brasília tem um ritmo ditado em grande parte pelo funcionamento do Congresso Nacional, uma rotina que condiciona a dinâmica da cidade. Entretanto, há que se decodificar os mecanismos de regulação social e política através dos quais o tecido urbano, sua fragmentação, a diversidade de práticas urbanísticas e territoriais, assim como a mobilidade interna e a emergência de novas centralidades, conduzem o pesquisador a reformular suas abordagens. Entendemos e tentaremos mostrar que a inauguração destes novos artefatos trazem novas formas de apropriação social daquela subárea.

O EIXO MONUMENTAL DE BRASÍLIA O projeto de Lucio Costa para o Plano Piloto de Brasília concretiza todos os seus ideais humanistas, libertários e de valorização da cultura brasileira. Fez uma cidade-jardim ao emoldurar os prédios com uma faixa verde pensando em dar qualidade de vida à população. Inaugurou uma nova maneira de viver com as superquadras, onde os moradores poderiam encontrar todos os serviços que precisavam a poucos metros de casa: padaria, barbearia, farmácia, mercado, salão de beleza, tudo deveria estar em uma das lojas do comércio local. Propõe que lazer e diversão também deveriam ficar perto das pessoas, mas separados do poder da Esplanada dos Ministérios ou do vai-e-vem da área central, voltada para o trabalho (Costa, 1991). No relatório para o concurso de escolha da nova capital, Lucio afirma categoricamente: “Brasília é a expressão de um determinado conceito urbanístico, tem filiação certa, não é uma cidade bastarda”. Construída para uma camada social média de funcionários públicos, Brasília traz essa marca na sua imagem. Ao mesmo tempo, o peso de seu desenho, aliado às funções político-administrativas, produz um efeito singular sobre a sociedade no seu conjunto. Por um lado, ela é o símbolo materializado da república. E isso não é algo simples, pelo contrário. Com tão pouco tempo de existência ela se consolida como capital da democracia política brasileira, tanto quanto foi durante o regime militar um elemento estranho e distante nas paisagens política e urbana e da sociedade. Por outro lado, internamente, permanece secreta para uma parcela significativa de moradores do Distrito Federal que para cá migraram justamente seduzidos pela sua imagem de esperança.3 Trata-se, de fato, de um espaço urbano cuja memória e, portanto, sua identidade, está em processo de construção.4 O plano para Brasília foi pensado em quatro escalas: a escala coletiva ou monumental; a escala cotidiana ou residencial; a escala concentrada ou gregária; e a escala de lazer ou bucólica. Façamos um passeio pelo Eixo Monumental valorizando o visível e, ao mesmo tempo, ensaiando uma leitura feita por diferentes pontos de vista e na qual possa intervir o movimento do observador, seguindo algumas sugestões de Linch (1999), que nos sugere descrever as variações do campo visual. Não se trata de um espaço pitoresco em razão da acumulação de planos diferentes, com rupturas bastante fortes numa distância relativamente curta; é, de fato, um espaço monumental,onde se observam sucessões lentas que não causam impacto na sua sequência (Panerai, 2006).5 R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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3 A ideia de área “secreta” tem referência com a estrutura polinuclear do espaço urbano do DF que faz com que as satélites funcionem como cidades dormitórios, e o Plano Piloto – que concentra cerca de 60% do emprego formal do DF – seja visto pelos moradores de fora como o centro do poder, o espaço de trabalho. Há que se destacar que no plano demográfico, da inauguração em 1960 até hoje, a proporção dos moradores do Plano em relação à população total do DF passou de 48% a aproximadamente 10%. 4 A noção de “memória urbana” foi desenvolvida inicialmente por Pierre Nora (“Entre mémoire et histoire: la problématique des lieux”, in Pierre Nora (org.), Les lieux de mémoire, Paris: Gallimard, 1984, para quem os lugares de memória podem ser lugares simbólicos para uma dada coletividade; lugares com acúmulo de investimentos simbólicos, portanto subjetivos, sujeitos e objetos construídos por determinada sociedade. Na concepção do Estado, o lugar da memória pode ser visto como o lugar da identidade coletiva (Silveira, 2006). 5 Isso se mostra mais evidente para um observador a quem o Eixo Monumental é parte do cotidiano e onde as mudanças nas sequências que ocorrem ao longo do tempo vão sendo absorvidas no dia a dia.

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A consolidação do Eixo Monumental, espaço síntese do projeto de Lucio Costa, vem se dando de forma lenta ao longo desses relativamente poucos anos de existência. O Eixo tem início na Praça dos Três Poderes e termina no extremo Oeste do Plano, na estação rodoferroviária. Seu canteiro central, desde o Congresso até o cruzamento das Asas Norte e Sul, onde está a rodoviária urbana, é uma grande área livre, reservada para as grandes manifestações políticas nacionais. Após a rodoviária, para Oeste, este canteiro central passa a conter equipamentos tais como a Torre de TV, o Complexo Cultural da Funarte, o Planetário, o Clube do Choro, um moderno centro de convenções, a praça do Buriti, além do Museu da Cultura Indígena e, mais à frente, o monumento ao fundador da cidade (Juscelino Kubistchek). Termina com uma outra praça simples, sem artefatos, a não ser um cruzeiro, símbolo do catolicismo, usado inclusive para rituais de outras religiões. Dali até a rodoferroviária, no seu extremo Oeste, há um canteiro central vazio, com uma pequena igreja católica que comemora a passagem de um dos papas pela cidade. Os limites do Eixo são, da sua extremidade Leste em direção a Oeste, os palácios dos três poderes, os ministérios, a catedral, o Teatro Nacional, em uma posição secundária, e agora o Museu da República e a Biblioteca Nacional; a rodoviária urbana é um marco na medida em que estabelece um corte com um elevado que marca o cruzamento do Eixo com as Asas. Há que notar, do lado Norte, o Conjunto Nacional e, do lado Sul, o CONIC, dois shopping centers tradicionais na cidade. Seguindo em direção Oeste, há nas laterais o setor de hotéis Sul e Norte, seguido pelo complexo esportivo e pelas edificações do governo local (GDF). Após isso, uma área vazia nas laterais do Eixo, onde predomina uma vegetação nativa e sem vida urbana. Este é o espaço da cidade-símbolo que, na essência, se move em torno de uma área restrita, que essencialmente se reduz à Esplanada dos Ministérios e à Praça dos Três Poderes, pontos nodais e estratégicos na paisagem urbana. Na praça estão materializados em edifícios e palácios o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, além do Panteão da Democracia, num quadrilátero de enorme carga simbólica. Trata-se de uma praça que, apesar de bonita, é fria, pouco acolhedora, que não aproxima pessoas, apesar da inexistência de muros ou barreiras. De fato, não há nada que as afaste. Há um ambiente de cerimônia oficial que faz com que todos se sintam submetidos a uma disciplina codificada. Do centro da praça, os edifícios dos três poderes são equidistantes, inatingíveis, apesar de próximos, síntese do poder estatal que nos submete, muitas vezes sem necessidade de violência física, mas sempre com uma violência simbólica que lhe é constitutiva. Esse é o cérebro da cidade; é dali que emana a energia que alimenta o seu ritmo. Ali também é um dos extremos do Eixo Monumental que, como vimos, corta verticalmente o Plano Piloto de Leste a Oeste, formando o corpo do pássaro cujas asas se curvam delicadamente para baixo no desenho. Ao longo deste Eixo, nas suas laterais, duas instituições estão presentes nos seus limites: o Estado, com sua alta hierarquia ministerial, e a Igreja, em posição relativamente secundária, porém visível, devido a uma arquitetura singular, como que enunciando o seu lugar próximo do poder. Logo após, entre a catedral e a estação rodoviária urbana, aparece o Espaço Cultural da República (Teatro Nacional de um lado, e os recém-inaugurados Biblioteca Nacional de Brasília e o Museu Nacional da República, do outro), artefatos da cultura ocupando lugar de destaque no desenho da cidade-símbolo. O Eixo Monumental resume, portanto, materialmente, as superestruturas normativas da tradição cultural (direito, religião, moral, arte etc.), concebidas como irredutíveis a uma simples ideologia; pode-se dizer que são a materialização do Estado. 142

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A Figura 1 a seguir permite visualizar o Eixo Monumental, dando uma percepção de sua escala e grandiosidade.

Figura 1 – O projeto “Artes Visuais” da Funarte – Cead/UnB, Brasília, 2008. Fonte: Iara Martorelli.

DENSIDADE E VÍNCULOS SOCIAIS Brasília, com seus setores funcionais, produz um território de baixa densidade intergrupos, o que reduz, de forma às vezes drástica, uma das dimensões da cidade a fato sociológico: segundo Wirth (1974), a sua natureza socialmente heterogênea. Portanto, pensar o espaço físico e social de Brasília nos leva a considerar que a urbanidade vem se realizando com base em uma cultura urbanística espacial e socialmente segregadora, dificultando a utilização do seu espaço público como local de interação social. Esta característica termina gerando uma prática cotidiana de uso do território da cidade em que a particular combinação de elementos, tais como zoneamento funcional, prioridade pela circulação em quatro rodas, arquitetura residencial padronizada, baixa densidade, se agrega às propriedades inerentes à cultura moderna em sua expressão metropolitana, tais como individualismo, impessoalidade e consumismo. O resultado não involuntário desta combinação é a impossibilidade em Brasília da flânerie tradicional, que fica substituída por uma variante modernizada desta prática, qual seja, a contemplação do mundo urbano através das janelas dos carros ou, o que mais se coaduna ao componente mercadológico da flânerie, a contemplação da mercadoria no anonimato dos shopping centers, das galerias ou das feiras (Silva, 2003). Nosso interesse, conforme já expresso, será refletir sobre o impacto no uso deste Eixo pela população do DF, considerando a recente inauguração do Museu Honestino Guimarães e da Biblioteca Leonel Brizola, obras de Oscar Niemeyer que, junto ao já existente Teatro Nacional, vieram complementar parte do ainda incompleto Conjunto Cultural da República. Estes novos artefatos situados na proximidade da rodoviária urbana da cidade, onde circulam diariamente milhares de pessoas oriundas das cidades-satélites, faz desse um dos raros espaços que sociologicamente podem ser considerados urbanos. Entretanto, cumpre lembrar que a área urbana onde o novo museu e a biblioteca se situam é utilizada principalmente durante os dias de semana, nas horas de trabalho. Não R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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há ali pontos de encontro ou de sociabilidade, mesmo se levarmos em conta o clima árido e a ausência de abrigos que pudessem proteger ou favorecer frequências fora do trabalho ou dos edifícios administrativos. O resultado é que a subárea radicaliza a característica do Plano Piloto: a circulação por veículos automotores e a ausência de pedestres nas ruas. A ilustração abaixo permite perceber o cenário descrito: na hora do rush a pequena presença de pedestres e a predominância de veículos no Eixo.

Foto 1 – Eixo Monumental de Brasília ao anoitecer. Foto: Diego Lourenço Carvalho.

VISITA AO MUSEU DA REPÚBLICA

6 Para se ter uma ideia da variedade de eventos de artes plásticas, fotografia, entre outros que ocorrem no DF, quando de nossa pesquisa, no fim de semana de 18/07/2008, havia 27 exposições ocorrendo na cidade.

7 Para a inauguração do Museu e da Biblioteca foi retirado do local um mercado informal que ali se implantou para aproveitar a elevada circulação de pessoas em trânsito na área.

Brasília tem já algumas experiências de equipamentos culturais consolidados, espalhados por diferentes áreas da cidade: a Fundação Banco do Brasil, o Centro Cultural da Caixa Econômica Federal, a Funarte e outras galerias de instituições públicas, como o Banco Central e o Itamaraty, além de galerias de arte de iniciativas privadas.6 A complementação do Complexo Cultural da República traz um sopro novo na Esplanada dos Ministérios, uma área da cidade até então reservada para eventos políticos ou cívicos esporádicos. Por agora não se trata ainda de discutir as atividades do museu. Ele ainda é recente, tendo sido apresentadas até o momento três exposições: uma, quando de sua inauguração (2006), que sintetizava a trajetória de Niemeyer, e duas em 2008, sendo uma comemorativa do centenário da imigração japonesa ao Brasil na galeria principal, e, na sala ao lado, da trajetória futebolística de Pelé. Foram exposições em que a arte, ao invés de exercer uma função subversiva, teve um papel de “ligação”, o que se coaduna com a característica de museu oficial. De qualquer forma, as exposições são dignas de museus importantes, seja pelos temas, que remetem a aspectos da identidade coletiva nacional, seja pelo seu porte. Estas exposições permaneceram durante meses, o que evitou o acúmulo acentuado de público diário, e atraíram um número expressivo de visitas ao longo da sua permanência. A acessibilidade ao local onde se situam os dois novos espaços culturais da cidade é relativamente fácil: próximo da rodoviária urbana, com inúmeras linhas de ônibus que ligam às cidades-satélites e vias expressas onde se circula sem maiores problemas de trânsito, à exceção dos horários de pico.7 Além disso, outra alternativa de transporte 144

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coletivo, o metrô, tem na própria rodoviária uma de suas estações, o que significa que há a facilidade de um confortável acesso para quem vem de algumas das principais cidadessatélites, além de circular na área cerca de 600 mil pessoas por dia. Esse é um aspecto de importância, pois, como ressaltamos, a concepção urbana do Distrito Federal é caracterizada pela polinucleação, em que as diferentes cidades não estão (ainda!) conurbadas, provocando distanciamento físico e simbólico entre elas. Estas distâncias encarecem o sistema de transporte coletivo, já precário em suas condições e com elevados preços, o que torna o cruzamento dos eixos na rodoviária o efetivo “centro da cidade”, dada a facilidade de acesso.8 Trata-se de um dos raros espaços do Plano Piloto que podem ser considerados urbanos na perspectiva sociológica. Uma rápida leitura desta área nos permite ver que ela se insere num complexo mais amplo com o chamado Setor de Diversões Norte e Sul, que em Brasília se resume aos dois shopping centers – o CONIC e o Conjunto Nacional – na plataforma superior da rodoviária, além do Teatro Nacional. Trata-se de dois espaços comerciais e de serviços com elevado índice de interação e anonimato, mas que se mostram como área de exceção quando se verifica o vazio ao longo do Eixo que lhe corta. O Teatro Nacional em frente ao Conjunto Nacional não é integrado diretamente a este shopping e à sua rotina cotidiana, funcionando em período noturno com espetáculos esporádicos. Sua concepção o distancia tanto da plataforma superior da rodoviária quanto do próprio Eixo Monumental. A construção neste eixo, no nível do térreo da rodoviária, do novo museu e de uma nova biblioteca pública, requalifica a subárea, criando mais uma alternativa de uso deste espaço. Como veremos adiante, esta subárea aciona aspectos significativos da cultura, da memória e da identidade de Brasília. É consenso que o desenho do Plano Piloto concebido por setores funcionais segmenta o uso e a ocupação do espaço da cidade. Tradicionalmente cidades se constroem segundo um desenho que vai do edifício sagrado ao mercado profano; esta extensão de significados é a da diferenciação de papéis, justapostos em territórios comuns ou separados por tênues barreiras físicas e/ou simbólicas (Ansay & Schoonbrodt, 2002). A primeira consequência da implantação deste complexo cultural é a diversificação do uso do Eixo Monumental, exatamente o seu núcleo principal. A originalidade do novo espaço cultural que se agrega à rotina da área é, sobretudo, a de inserir novos papéis naquele cenário por enquanto restrito: dominado especialmente pelas funções administrativas, e, portanto, pela presença do funcionalismo público como uma espécie de usuário cativo; a chegada do museu e da biblioteca incorpora novos elementos humanos na paisagem. Ao mesmo tempo, numa cidade política por excelência, o espaço público se firma um pouco mais com a construção deste novo artefato coletivo. Num certo sentido, aparece também como um contraponto de tendências atuais dos espaços coletivos de nossas cidades, lugares cada vez mais inseguros onde a presença do flâneur se torna mais rara, onde o espaço público perde cada vez mais o seu sentido. Assim, o Eixo, pelas suas funções, sejam administrativas, comerciais, e até religiosas e, agora, culturais, se firma cada vez mais como o centro da cidade numa cidade sem centro. Neste ponto, a arquitetura do novo museu merece alguns comentários. Sua forma arredondada, lembrando uma enorme oca indígena ou um objeto extraterrestre, não estabelece níveis hierárquicos a priori. Todo o edifício está num plano único, como se fosse um imóvel de um único gabarito. Esta característica, comum aos palácios governamentais em Brasília, oferece, ao mesmo tempo, uma sensação aparentemente ambivalente: de monumento e de acessibilidade. Sua forma, portanto, se adéqua a seu destino: cria uma R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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8 Retornaremos mais adiante esta discussão sobre o “centro” de Brasília.

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praça pública e sua função contribui para democratizar o acesso a um produto de consumo restrito, as artes visuais. Os concretos brancos ascéticos, também característicos da arquitetura de Niemeyer em Brasília, contêm uma “neutralidade” que democratiza o acesso. Agrega-se a este aspecto o fato de que as exposições ali são gratuitas, com horários flexíveis, se estendendo para além do horário do expediente do trabalho das repartições públicas que o circundam. Estes elementos nos levam a outros pontos que merecem destaque. A arquitetura contemporânea vem apontando para uma nova visibilidade nas construções de grandes edifícios. A utilização do vidro com finos suportes de aço faz com que o interior e o exterior dos edifícios se confundam numa espécie de muro transparente. Entretanto, mesmo transparentes, há uma total ruptura entre o espaço interior e o exterior, numa concepção que une estética da visibilidade com o isolamento social. Há então aqui uma paradoxal tendência de se anular o espaço público, mesmo quando ele ganha mais visibilidade e transparência (Sennet, 1979). O edifício do Museu da República em Brasília escapa desta tendência. O interior e o exterior são completamente separados. Como nos ensina Holanda, “o invólucro arquitetural filtra atributos do espaço natural, cria espaço transformado, adequado a fins práticos (arquitetura como valor de uso material, como bem) e expressivos (arquitetura como valor de uso ideal, como signo). As expressões – bem e signo – sintetizam as duas maneiras mais amplas pelas quais a arquitetura desempenha seu papel” (Holanda, 2007). Entra-se no edifício por uma rampa de concreto que chega numa porta estreita pelas dimensões do prédio. Uma vez no seu interior, tem-se uma surpresa imediata dada a amplidão da sala. Espaçosa e climatizada, cria uma atmosfera oposta ao exterior, árido, seco ou úmido dependendo do período do ano, sem janelas ou aberturas, não há nenhuma possibilidade de vista para o exterior. Escapa, portanto, às características da arquitetura de vidro, trazendo um aspecto original às tendências atuais de certa arquitetura em voga. De certo modo, reproduz situações limites de arquiteturas em que a relação entre o interior e o exterior é completamente oposta, em que as duas dimensões encontram-se afastadas, não nos permitindo nenhuma visão do que existe no interior do edifício. O caso limite pode ser exemplificado pelas Grandes Pirâmides de Gisé no Egito antigo, ou as pirâmides maias da América pré-colombiana. Há sempre uma separação entre o interior (lugar sagrado) e o exterior (lugar público).

Foto 2 – Museu da República em Brasília. 146

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Foto 3 – Interior do Museu da República durante exposição sobre Niemeyer. A área em torno, uma praça típica dos espaços oficiais de Brasília, se constitui por uma ampla superfície de concreto, com um pequeno espelho d’água que quebra ligeiramente a aridez, mas que coloca o edifício do museu como o centro, uma verdadeira escultura de concreto. Em outros termos, o museu é o centro de um espaço arquitetônico e seu porte absorve tanto o anexo quanto a própria biblioteca, que fica timidamente colocada numa posição de barreira em frente à rodoviária. Esta imagem é interessante, pois ultrapassa a função utilitária do edifício (museu) e recupera a sua função simbólica, na medida em que passa a ser também um símbolo do conjunto arquitetônico do Eixo Monumental e da própria cidade. Desta maneira, a arquitetura tem aqui uma conformação formal-espacial com componentes-meio (os elementos “escultóricos”, os “cheios”, os “sólidos”, a forma) e componentes-fim (os “vazios”, os “ocos”, os espaços) (Coutinho apud Holanda, 2007). Em que espécie de sentido estético, ritual e social pode residir o prazer de flanar por um espaço que aparenta artificialidade, carece de efervescência, é repetitivo, vazio de diversidade, vazio de pessoas, vazio de alternativas? Esse parece ser o impasse do novo artefato no Eixo Monumental. Mas timidamente começam a acontecer exposições ao ar livre, especialmente de arte contemporânea, indicando futuras apropriações do espaço. Tais eventos estão a indicar que, pouco a pouco, a praça em torno do museu será uma nova alternativa para a realização de eventos na Esplanada, tais como ocorre em outras situações similares no mundo: Paris (Beaubourg), Bilbao (Guggenheim), São Paulo (MASP), Londres (Tate Modern Gallery) etc. Conforme nos lembra Holanda (2007), os espaços (ruas, avenidas, praças), lugares abertos na paisagem natural, é que seriam os elementos por excelência da linguagem arquitetônica; afinal é neles que estamos imersos. É de se esperar que as visitas ao museu sirvam como argumento para se frequentar a praça que o rodeia. Isso, desde que a utilização destes lugares abertos sejam adaptados para atividades que garantam interações sociais, além da ida às exposições. A imagem a seguir permite visualizar a atmosfera exterior do novo espaço cultural da capital da República.

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Foto 4 – Perspectiva vista do alto da rampa do museu, vendo-se a biblioteca em primeiro plano, o Conjunto Nacional à direita e, ao fundo, a torre de TV. Interessante perceber como a plataforma da rodoviária se integra ao solo na perspectiva observada.

A SUBÁREA DO COMPLEXO MUSEU E BIBLIOTECA COMO “CENTRO” DE BRASÍLIA

9 “o tráfego é local, situou-se então o centro de diversões da cidade (mistura em termos adequados de Picadilly Circus, Times Square e Champs Elysées” (Costa, 1991, p.24).

Brasília, resultado de um desenho na prancheta de um arquiteto urbanista não deixa de ser genial como proposta formal. Entretanto, sua implantação traz à ideia original a interferência na vida social, mesmo tendo que se contrapor à orientação conceitual da arquitetura racionalista que tira das ruas todas as suas dimensões sociais, culturais, simbólicas e emocionais. A cidade está ainda se consolidando e, portanto, as práticas de uso e ocupação de seu espaço ainda causam surpresas ao observador mais atento. A proposta original para a Esplanada já antevia a futura diversidade de uso desta subárea do Plano Piloto. Assim, no “Relatório do Plano Piloto de Brasília”, está explicitado que “o setor cultural será tratado à maneira de parque para melhor ambientação dos museus, da biblioteca, do planetário, das academias etc.” (Costa, 1991,p.24). Na proposta, o conjunto da esplanada deve prosseguir desimpedido até além da plataforma, onde os dois eixos urbanísticos se cruzam. Na proposta há, ainda, íntima articulação entre a plataforma superior da rodoviária e a inferior. Além de guardar a perspectiva da Esplanada, vista do alto da plataforma, com exceção de suas bordas (ao Sul, um edifício ainda sem uma função precisa; ao Norte, o Teatro Nacional) com gabaritos baixos e uniformes, constituindo no conjunto um corpo arquitetônico contínuo. A vista para Oeste, do alto da plataforma, mostra os dois shoppings, com gabaritos relativamente elevados, onde se situam lojas, escritórios, consultórios e sedes de empresas e autarquias.9 Lucio Costa, revisitando o Plano Piloto em 1987, se surpreende com a realidade da sua rodoviária: eu sempre repeti que essa plataforma rodoviária era o traço de união da metrópole, da capital, com as cidades-satélites da periferia. É um ponto forçado, em que toda essa popula148

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ção que mora fora entra em contato com a cidade ... Isso tudo é muito diferente do que eu tinha imaginado para esse centro urbano, como uma coisa requintada, meio cosmopolita. Mas não é. Quem tomou conta dele foram esses brasileiros verdadeiros que construíram a cidade e estão ali legitimamente ... Eles estão com a razão, eu é que estava errado. Eles tomaram conta daquilo que não foi concebido para eles. Foi uma bastilha. (Costa, 1987.)

Foto 5 – Estação rodoviária urbana do Plano Piloto de Brasília. Foto: Diego Lourenço Carvalho. Profética percepção, esta do autor do plano urbanístico de Brasília. Entretanto, pouco surpreendente para nós, pois sabemos que não se funda uma cidade. Ela é o resultado de processos sociais que na interação se manifestam no território fazendo aparecer formas urbanas muitas vezes inesperadas. A abordagem sociológica da cidade tem como tarefa ultrapassar sua representação puramente espacial/territorial; considerar, de início, que o objeto da sociologia são as interações sociais e os processos de mudança que nelas e a partir delas ocorrem. Todos estamos de acordo que cidade é sinônimo de sociedade, especialmente como corpo político, um lugar de produção de relações. A palavra cidadão considerava os indivíduos em razão de seu pertencimento a este corpo. Esquecemos muitas vezes a origem etnológica do termo, que se refere à cidade. Da mesma forma, o termo política, que vem da polis grega. Da mesma forma ainda, a concepção de “espaço público”, que designa, no sentido figurado, espaço do debate ou da comunicação, e, no seu sentido próprio, o conjunto dos espaços urbanos, ágoras, fóruns, praças públicas, ruas onde os homens podem se juntar para debater assuntos da cidade ou mesmo manifestar suas opiniões. Assim, na contemporaneidade, a existência de lugares de encontro, onde há a possibilidade de ver e ser visto, de discutir assuntos diversos, continua sendo constitutiva da cidade como fato social, por mais que o uso do espaço público venha se alterando. Os equipamentos de acesso coletivo (praças, ruas, feiras, museus etc.) podem ser compreendidos na sua função de socialização. Não se trata aqui de entendê-los como unidades de produção de alguma mercadoria específica: são, sobretudo, artefatos coletivos cuja principal função é a circulação de pessoas, de símbolos que compõem as construções identitárias. A cidade e seus equipamentos coletivos assumem então a figura de uma totalidade complexa, de uma unidade que desenha suas instituições no espaço da representação. A cidade na sociologia é, portanto, o lugar do “não falado” do “não dito”, do mostrado. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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A imagem de Brasília esteve sempre marcada pelo signo de excepcional ou de extraordinário, ainda que se tenha de certa forma banalizado suas próprias características, muito provavelmente pela sucessão de eventos políticos e burocráticos desgastantes que terminam por se confundir com a cidade. Viver em Brasília significa, assim, manter certa intimidade com tudo aquilo que ela contém de teatral, em excesso ou exuberância, exposto cotidianamente na mídia nacional. Entretanto, para os seus habitantes há ainda a percepção de que uma cidade está, cada vez mais, se consolidando num processo em que estão todos envolvidos. Este sentimento se renova na medida em que novos investimentos são feitos para dispor a cidade de infraestrutura (como o metrô ou a expansão da área residencial para o Noroeste da cidade) ou completar o projeto original (como o novo espaço cultural da República). Neste movimento de criação da cidade, o seu uso por seus habitantes vai também se redefinindo. Há uma dinâmica intraurbana particularmente na sua dimensão microespacial, que pode ser observada quando nos debruçamos sobre a sua lógica de ocupação, tanto por pessoas como por atividades. Ao mesmo tempo, existem ainda processos que envolvem a cidade no seu conjunto. Esse pode ser o caso da consolidação do centro de Brasília. Pela sua característica de polinucleação e até mesmo pela setorialização das suas funções no seu plano urbanístico, fomos sempre convencidos de que a cidade não tinha um “centro”. O Plano Piloto guarda uma imagem de ordem, de uma rigidez férrea que se contrapõem à “anarquia” do espaço da cidade tradicional. Esta ordem característica do Plano Piloto funciona com a contribuição a um desenho linear e para uma sociedade aparentemente estável. Termina produzindo um modelo de apropriação do espaço pelos moradores que se condiciona ao ângulo reto de suas vias, à ausência de cruzamentos, à circulação motorizada, num distanciamento do contato direto com a cidade. Ela se mantém distante e toda forma de apropriação de seu espaço aparece como concessão e não como direito. Este desenho se rebate na lógica social da cidade que se apresenta como algo estruturado em camadas que parecem se superpor umas às outras, sem jamais se misturar. Tendo sido apropriada imediatamente após sua inauguração pela classe média, e contando sempre com irrestrita atenção do Estado à sua manutenção, adquire imediatamente a característica autônoma das formas individualistas de existência social (Giddens, 1975). Opõe-se, assim, a outras lógicas urbanas dentro do DF que se desenvolvem nas cidades-satélites e mesmo nas cidades de seu entorno. Estas distintas formas urbanas produzem espaços com tempos também distintos, o que termina por transformar o DF numa área urbana como as demais do país, ou seja, com elevada dose de heterogeneidade socioespacial, dentro da qual Brasília aparece como exceção. Entretanto, a definição de um “centro” permanece em pauta, apontando que a cidade está ainda incompleta. A noção de “centro” ou a determinação de centralidade que daí resulta se baseia na soma de elementos distintivos (forma, função, posição etc.), os quais nas suas inter-relações lhe atribuem conotações específicas. O “centro” se produz por três ordens de fatores (Ostrowetsky, 1994): 1 o “centro de um conjunto” que permite a identificação (espaço monumental, com capacidade de agrupamento que simboliza a cidade do ponto de vista político, jurídico e religioso); 2 o centro como sinergia (a parte pelo todo) que ”representa”, por sua essência, o papel político e administrativo de toda a cidade; 150

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3 o centro como ponto de convergência e espaço de concentração, o qual confere a certo lugar o valor de “núcleo” e que, por sua vez, define metaforicamente seu conteúdo essencial de centralidade mais do que sua posição real no espaço urbano. Estas três ordens de fatores de centralidade não são excludentes e podemos utilizálas para refletir sobre o Eixo Monumental, particularmente sobre a subárea em torno da rodoviária. Objetivamente, nos perguntar se a configuração da área onde estão situados os novos artefatos na Esplanada e a forma de sua utilização alteram a maneira com que os indivíduos e os grupos se localizam e se movem naquele espaço, e qual seria a modificação visível nas condições de encontros e esquivanças interpessoais, assim como para a visibilidade do outro. Sem dúvida a sua capacidade de agrupamento é inegável, além do fato de que nas suas proximidades, ao alcance dos olhos, está situado todo o arcabouço material do Estado, na Esplanada dos Ministérios. É o espaço da política nacional, lugar das grandes manifestações públicas na cidade. Entretanto, afora o espaço dos shoppings onde há um comércio e a prestação de serviços permanentes, a utilização desta subárea, especialmente na Esplanada, não se faz de forma corriqueira no cotidiano. Por ter uma elevada utilização como lugar de passagem, fica-se com a sensação de ociosidade, com suas calçadas vazias praticamente o dia todo, mesmo na hora de maior movimentação. E, no entanto, conforme já frisamos, é um dos lugares de maior circulação de pessoas dentro do Plano Piloto, com elevado potencial de polarização. Isso sem lembrar os aspectos simbólicos que o lugar contém e que remetem a outros elementos maiores do que o próprio Museu. Entretanto, a proposta original de fazer desta subárea o centro da cidade não se completou ainda. A inauguração do novo museu preenche parte desta função, na medida em que se apresenta como uma nova possibilidade de uso coletivo deste espaço, integrandoo um pouco mais à lógica social da cidade. Insistimos nesta dimensão, pois o que se tem hoje é, sobretudo, a utilização da Esplanada para eventos políticos nacionais. A população do DF se vê em parte excluída do seu uso cotidiano, mesmo porque sua função ainda se restringe às funções administrativas do Estado. Temos no Distrito Federal uma pluralidade de formas de vida se materializando em linguagens espaciais diversas e heterogêneas que, na essência, podem ser lidas como síntese de uma sociedade aberta nos termos popperianos, segundo os quais a magia cede lugar para decisões pessoais, em pleno processo de consolidação identitária. O peso simbólico do Plano Piloto (especialmente do seu Eixo Monumental) é enorme e monopoliza as representações sobre Brasília. A possibilidade de permitir ou de ampliar o acesso à área por parte dos habitantes do DF pode significar uma efetiva apropriação do espaço da cidade pela população local. O Espaço Cultural da República pode, portanto, ser lido como mais um elemento formador da identidade cultural da cidade vista na sua dimensão heterogênea, pois autoriza a utilização daquele território, até então monofuncional e monopolizado pelo funcionalismo público exclusivamente como lugar de passagem. Podemos retomar mais uma vez a Holanda (2007, p.124) e lembrar que as pessoas “se fazem humanas pelos sistemas simbólicos que inventam, pelas maneiras de criar e usufruir dos lugares”.10 Isso é especialmente válido se nos ativermos à facilidade de acesso ao novo artefato urbano que rompe com a setorialização tradicional do espaço da cidade, que até o momento tinha apenas a Torre de TV como referência de alternativas de uso territorial do Plano Piloto (seu Eixo Monumental) por outras camadas sociais, com outros fins além do trabalho.11 Particularmente o acesso à cultura escandalosamente desigual, inclusive em raR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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10 Mais ainda: “Prática humana é perceber estímulos visuais de uma sequência de ruas e praças e, a partir disso, formar uma imagem mental estruturada (aspectos topoceptivos); é emocionar-se diante da leveza da arquitetura de Oscar Niemeyer (aspectos afetivos)” (Idem, 1991, p.124). 11 A Torre de TV é onde se realiza uma tradicional feira de artesanato do DF e tem sua acessibilidade garantida pela proximidade da estação rodoviária, tal qual o novo museu, só que no sentido oposto ao da Torre, em direção à Esplanada dos Ministérios.

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12 De fato, o Distrito Federal reproduziu a realidade social do país de forma radical, pois além de expressá-la no território, expressou-a também no simbólico do lugar. 13 O poder dogmático que pleiteia o tombamento do Plano Piloto, num contexto urbano heterogêneo como o do DF, se baseia numa ordem que é aquela do tempo estagnado ou repetido ad aeternum; esta é a ordem do monumento histórico, em que o tempo é o tempo natural, físico. Ignora a existência de um outro tempo, igualmente natural, no sentido fisiológico e não físico. É o tempo do “desenvolvimento”, que se refere ao tempo do fenômeno vivo. 14 O Grupo de Trabalho Brasília (GT – Brasília), formado ainda no início dos anos 80 por profissionais da Universidade de Brasília, do governo do Distrito Federal e da Fundação Pró-Memória, teve com objetivo traçar e definir parâmetros para a política de preservação do patrimônio do Distrito Federal. A proposta do grupo de ampliar a área a ser preservada de forma a abranger realidades preexistentes não foi incorporada no processo de tombamento.

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zão do padrão territorial de uso e ocupação do solo, torna-se mais efetivo, rompendo com esta lógica excludente que impera em Brasília.12 Quando do tombamento da cidade, pouco se falou sobre o componente social do Plano Piloto, ou melhor, foi uma dimensão completamente descartada.13 Nesse sentido, o tratamento preservacionista dado a Brasília, que parte do entendimento da cidade como obra de arte acabada, poderia estar significando que congelamos uma experiência única nas suas potencialidades de explorar o novo.14 O novo artefato introduz um novo elemento neste debate, apontando que talvez a proposta original tivesse méritos ainda pouco explorados na sua concepção. Nesta perspectiva, podemos considerar que uma cidade se constrói ao longo de uma história que lhe é própria, história em permanente movimento. Como acumulação de signos, de bens, de pessoas, de equipamentos, ela é também memória, fluxos. Temos, entretanto, que considerá-la como fenômeno fragmentário em que as partes se unem por fios invisíveis, muitas vezes em situações de tensões implícitas ou explícitas. Em outras palavras, trata-se de fenômeno que só se compreende como totalidade, mesmo se recortado em pedaços que reúnem pessoas, riquezas e atividades antes dispersas. Cabe lembrar ainda que, ao contrário do campo econômico, os campos simbólicos, como o religioso ou artístico, supõem que os agentes que nele atuam sejam “desinteressados” e que as trocas que aí se realizam não sejam trocas monetárias. Ao refletir sobre uma cidade-capital deve-se levar em conta que o Estado, sendo uma abstração real, só existe no espaço da representação, como território, um mapa no qual se distribuem as instâncias administrativas: regiões, estados, municípios, capitais. O Estado é, assim, o capital institucionalizado, e uma das cidades se destaca como cidade–capital do Estado, marcando uma importante dimensão de sua identidade.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO É na dimensão interna à cidade que estamos insistindo sobre o lugar que os novos artefatos arquitetônicos vão ocupar. O Eixo Monumental, conforme já frisamos, é o lugar das grandes manifestações da sociedade brasileira, o lugar da política nacional. E justamente o fascínio que este lugar emite é também o que motiva indivíduos e famílias a optarem por Brasília. São duas lógicas de apropriação da subárea que se apresentam. Uma, que se deve ao papel de capital política, e outra, que se deve ao lugar de opção de moradia e construção de trajetórias de vida. Não são excludentes, pois em ambas a forma como meio de aprendizado dos lugares responde a expectativas sociais, genéricas ou específicas, colocadas pelo próprio processo de conhecimento que termina por dar sentido à forma urbana. Kohlsdorf (1996) chama atenção para a vertente que avalia a forma dos lugares por sua resposta a expectativas psicossociais, ou seja, como adquire sentido afetivo para seus usuários. A afetividade tem sido definida pela identificação emocional das pessoas com os lugares, qualificados como hospitaleiros, alegres, frios, agressivos, estimulantes, monótonos etc. Ao lado desta expectativa há ainda duas outras – a estética e a informação – que, juntas, dão sentido à apreensão da forma dos lugares, e nos são úteis para perceber a maneira como os habitantes do DF captam o significado daqueles novos artefatos de uso coletivo. Há uma nova possibilidade de usufruto do território “sagrado” da capital e, na medida em que o acesso é generalizado aos diferentes grupos sociais, há também a democratização do espaço da política materializado no Eixo Monumental de Brasília. 152

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Baseados nas considerações apresentadas, vamos procurar agora responder a algumas das questões colocadas, de maneira explícita ou implícita, neste texto. Elas são de naturezas distintas: a formação da identidade de Brasília, os limites ainda presentes na proposta até agora implementada do projeto original do Plano Piloto, a diversificação do uso da subárea do Eixo Monumental em relação aos novos artefatos instalados. A primeira delas talvez seja a que sintetiza com mais propriedade as demais, pois resume grande parte do conteúdo do texto. Brasília, como experiência de cidade nova, não possui um passado que se prende à nossa historia urbana. A sua origem é caudatária de um movimento que ocorre na concepção de cidade que vigorou, especialmente a partir do século XX, e que se guiou pelas implicações das guerras na Europa e pela necessidade de reconstrução das cidades então destruídas. Estaria aí a proposta urbanística do modernismo, estabelecendo que as construções contemporâneas não deveriam orientar-se pelo passado, o que fez com que a cidade da segunda metade do século passado se desenvolvesse por rupturas históricas, como se nela não houvesse laços temporais (Kohlsdorf, 1996). A racionalidade do seu plano urbanístico, mesmo se procurando resgatar aspectos da cultura brasileira, não escapa a esta lógica “futurista”. Cabe ainda lembrar o componente político–ideológico na sua concepção, que antevia através do desenho a possibilidade de uma sociedade nova, de um homem novo. Sem as implicações da lógica concorrencial do mercado, pôde-se implantar um piloto de cidade original em que as propostas da prancheta foram implementadas praticamente como imaginadas. Já se analisou e criticou bastante as implicações deste gesto (Holston, 1993; Holanda, 2002; 2007; entre outros). Entretanto, não se pode negar que a cidade deu certo. Ela se firmou como representação da nação, tanto quanto símbolos como a bandeira e mesmo o hino nacional. Esta posição no cenário urbano e simbólico brasileiros implica certas responsabilidades por parte do Estado na preservação desta experiência. A segunda ordem de questões refere-se aos problemas que começam a aparecer justamente pelo fascínio que a cidade exerce sobre populações “disponíveis” para migrar, para as quais o novo núcleo passa a contar como uma alternativa plausível de destino e fixação. A heterogeneidade social que vai então caracterizar o seu espaço vai recolocando questões à sua viabilidade, questionando a sua própria concepção original que, na sua dimensão intraurbana, passa a ser uma exceção dentro de um território diversificado. Assim, é como exceção que o seu Plano Piloto continua a ser a síntese da nova capital e, simbolicamente, segue representando a essência das subjetividades que optaram por Brasília. Ao lado do controle exercido pelo Estado, hoje a cidade divide esta função com mecanismos do mercado imobiliário, particularmente pelo lucro que pode se obter com a expansão de seu ambiente construído. Assim, como espaço de exceção, o Eixo Monumental permanece o seu mais precioso território, pois sintetiza simbolicamente a própria cidade, lugar onde ainda se pode executar o que ainda falta da proposta original. Finalmente, a análise dos novos artefatos que compõem o Espaço Cultural da República no Eixo Monumental se guiou por aspectos ligados ao seu potencial de utilização, em que o espaço é visto como um objeto de consumo, que é determinado, antes de tudo, pela sua própria natureza. Trata-se, portanto, de um produto potencialmente capaz de favorecer o desenvolvimento de interações humanas e inserir aquela subárea na dinâmica mais ampla da cidade, vista no seu conjunto. A acessibilidade que se promove com estes novos artefatos que oferecem bens culturais para uma ampla parcela de população do Distrito Federal, num local até então exclusivo do Estado e seus funcionários, R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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Brasilmar Ferreira Nunes é professor do Depto. de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (PGSD) da Universidade Federal Fluminense; colaborador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UnB e pesquisador do CNPq e FAPERJ. E-mail: bnunes.uff@gmail. com. Artigo recebido em maio de 2009 e aprovado para publicação em setembro de 2009.

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redimensiona o próprio sentido de apropriação do espaço da cidade. A Esplanada dos Ministérios que é, no cotidiano do morador da cidade, um corredor de tráfego sem maiores atrativos, pouco a pouco se transforma num território de usos diferenciados, múltiplos. Modificam-se os mecanismos de sua apreensão na medida em que se trata de um lugar com elevada dose simbólica da função de capital da nação, constitutivo da identidade tanto da cidade como de seus moradores. A forma do novo complexo arquitetônico é de tal maneira original que se destaca imediatamente quando se olha para a Esplanada, concorrendo tanto com o edifício do Congresso Nacional como com o da Catedral, dois ícones da arquitetura de Brasília. Podemos recuperar a reflexão de Lefebvre (2001) segundo a qual o direito à vida urbana se traduz pelo seu uso como lugar de encontro e de interações sociais, onde inúmeras possibilidades humanas de vida em sociedade podem se apresentar.

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B S T R A C T We seek in this text to analyze the impact of the new museum and public library built in the Monumental Axis in Brasilia, supplementary part of the original proposal from Lúcio Costa of a cultural corridor to attend some functions of city-capital. The analysis relies primarily on intra-urban, in a sense that seeks to capture the implications of these new artifacts in the everyday life of residents of the District and use that opens to a subarea hitherto relatively idle within the “Plano Piloto”. Our hypothesis is that its construction as it expands and diversifies its use makes space available to other social groups and will produce changes in ownership of the “Plano Piloto” for Brasília's population as a whole, increasingly consolidating the designed city. The new accessibility to the new space caused by its constitutive elements allows us to decode the dynamics and process of ownership of this territory. To do so an ethnographic study will be made in order to realize the expansion of the influence of other groups in the space until then restricted on the Monumental Axis, in an effort to take back criticism of the concept of socio-spatial segregation.

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E Y W O R D S planning.

Brasilia; museum; urban culture; socio-spatial segregation; urban

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A FORMA URBANA COMO PROBLEMA DE DESEMPENHO O IMPACTO DE PROPRIEDADES ESPACIAIS SOBRE O COMPORTAMENTO URBANO VINICIUS M. NETTO RO M U LO K R A F TA R

E S U M O O artigo traça crítica a indicadores urbanos usuais, baseados na intensidade de presença de características ou propriedades, e aponta a necessidade de indicadores de comportamento definidos pelo conhecimento do impacto da trama de propriedades espaciais sobre as dinâmicas da cidade – indicadores verdadeiramente de desempenho, aptos a avaliar a cidade como fenômeno dinâmico e relacional, no qual seus componentes e dimensões têm efeitos uns sobre os outros. Indicadores capazes de capturar, por exemplo, os modos como diferentes padrões de morfologia podem impactar a vida microeconômica, a socialidade urbana ou o ambiente em níveis de influência sobre tendências de menor ou maior dependência veicular na movimentação intraurbana. Para tanto, lança os fundamentos teóricos e metodológicos para um novo sistema de indicadores arranjados em dois eixos: metaindicadores de desempenho (equidade, eficiência, qualidade espacial e sustentabilidade) e dimensões urbanas (morfologia, dinâmica socioeconômica, limiares urbanos e relações cidade–ambiente).

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L AV R A S - C H AV E sistêmicos; planejamento.

Desempenho e comportamento urbano; indicadores

INTRODUÇÃO As ações de produção urbana parecem estar atingindo preocupantes limiares em nosso país – limiares que evidenciam riscos para o próprio funcionamento das cidades brasileiras. Formas de crescimento espacial, ora por densificação possivelmente excessiva de áreas intraurbanas ora induzindo padrões de dispersão periférica, vêm esgotando infraestruturas e impactando sua dinâmica, impondo dificuldades severas de mobilidade e, paradoxalmente, aumento do grau de dependência de transporte. As externalidades de padrões potencialmente perdulários de urbanização parecem repercutir sobre a própria equidade, eficiência e continuidade da cidade como suporte à vida social e sobre suas inserções ecossistêmicas. As relações entre produção econômica e urbanização têm se caracterizado por uma desconexão entre ações de urbanização e seus efeitos, tanto internamente em nossas cidades quanto externamente. A problemática relação entre crescimento, industrialização, impactos ambientais e a limitação de recursos energéticos tem afirmado a cidade – principal locus da produção expressa no próprio processo de urbanização do país – como tema central na discussão do desenvolvimento, eficiências e ineficiências econômicas e energéticas, e impactos sobre o ambiente natural. No entanto, parecemos atravessados por uma dificuldade em identificar quais são exatamente os problemas de nossa urbanização – quais aspectos da forma e do crescimento de nossas cidades gerariam impactos negativos sobre quais dinâmicas socioeconômicas R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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e seu ambiente externo. De forma mais grave, observa-se um distanciamento entre esta crescente preocupação e o desenvolvimento de estratégias e instrumentos que permitam identificar de forma sistemática o problema urbano como relacionado a aspectos de comportamento tidos como desejáveis. Atento ao caráter potencialmente problemático dos padrões espaciais da cidade brasileira e a importância do seu conhecimento, teceremos uma crítica aos indicadores urbanos usuais, baseados na intensidade de cobertura ou presença de características ou propriedades – e não verdadeiramente de desempenho. Apontaremos a necessidade de produção de indicadores focados no impacto da trama de características e propriedades urbanas sobre as dinâmicas muiltidimensionais de nossas cidades. Propomos a construção de um método para objetivação desses comportamentos e problemas urbanos sob forma de duas contribuições: (i) os indicadores propostos operam sobre propriedades do urbano capturadas na sua natureza sistêmica, partem de uma visão da cidade como complexo de interações e inter-relações ativas entre elementos constitutivos, características morfológicas e implicações socioeconômicas e ambientais; (ii) tais propriedades são usadas para a definição de indicadores capazes de identificar sua influência no comportamento urbano, considerando de forma explícita o problema da mudança em tais elementos, características e implicações como fatores ativos nas dinâmicas da cidade como um todo. Esse conjunto de indicadores sistêmicos é desenvolvido em dois eixos de abordagem: categorias de desempenho (qualidade espacial e eficiência, equidade, e sustentabilidade urbanas) e indicadores do estado de dimensões urbanas (estados da morfologia da rede urbana e da forma construída, dinâmicas socioeconômicas, os limiares da estrutura urbana face a processos de auto-organização e relações entre cidade e ambiente).

DE INDICADORES DE PROPRIEDADES A INDICADORES SISTÊMICOS DO COMPORTAMENTO URBANO As dificuldades da cidade brasileira tornam explícitas as fissuras entre o ideal das prescrições generalistas dos planos normativos e a complexidade das transformações urbanas, bem como a seriedade dos impactos delas sobre as dinâmicas sociais e econômicas. Tais fatores são de difícil captura discursiva: eles envolvem a análise de intensidades de presença e relacionalidade, as quais terminam por requerer uma metodologia também quantitativa. A maneira mais eficaz de conhecer o comportamento de sistemas urbanos, dada a multiplicidade e simultaneidade de seus processos, mostra-se através de indicadores da forma e dinâmica urbana como parâmetros centrais em estratégias de aumento da viabilidade urbana. Recentemente, o debate em torno de formas urbanas sustentáveis tem envolvido a produção de indicadores variados, a maior parte produzida fora do país, essencialmente baseada em correlações entre aspectos do urbano capturados através de mensurações simples de estado com base em características da forma visível – uma abordagem que pode ser traçada de volta aos estudos da relação entre geometria (implantação, volumetria e tipologias resultantes) e capacidade de densidade ou potencial construtivo (Martin & March, 1972). Entretanto, tais abordagens têm mostrado limitações: (i) grande parte dos indicadores ou são meros apontamentos de taxas de proporção entre fatores como compacidade, distâncias internas, tempos de viagem, consumo de combustível e estímulo à eficiência no uso do transporte coletivo (Burton, 2002), e a promoção de economias de escala e provi158

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são de serviços e facilidades (Chen et al., 2008). Elas têm apontado correlações simples (graus de co-incidência) positivas ou negativas entre a presença ou ausência de certos fatores, como a compacidade, e certos efeitos urbanos, como externalidades ambientais ou disponibilidade de serviços, sem apontar com firmeza as relações causais que explicariam tais co-incidências ou amarrar sistemicamente como tais fatores da morfologia de fato influenciam essas dinâmicas – através da identificação de quais seriam as linhas de causalidade (e o que haveria de contingência) ligando aspecto identificado e efeito urbano; (ii) descrições de desempenho fixadas nas características superficiais da forma urbana têm se mostrado pouco aptas a considerar a morfologia como suporte a atividades e agentes em constante interação e mudança. A relação entre morfologia como um sistema de unidades espaciais, arquitetônicas, irregularmente distribuídas, social e economicamente interativas dentro da dinâmica da cidade, e mediadas por uma rede espacial de caminhos apresentando níveis diversificados de acessibilidade interna, não é problematizada. Esses itens mostram uma severa inadequação de avaliações baseadas em aspectos profundamente não sistêmicos em sua consideração do urbano. O ponto de partida para a concepção de um sistema de análise de desempenho sistêmico, dinâmico e espacial foi estabelecido por Bertuglia et al. (1994). A ideia central é a constituição de um sistema de representação da cidade que permita descrever seus sucessivos estados e analisar seu desempenho integradamente. Isso pressupõe consistência entre aspectos, suas relações e diferentes parâmetros. O núcleo seria um método capaz de representar a dinâmica socioespacial, secundado por um conjunto de indicadores que usem as mesmas variáveis, acionadas sistematicamente a cada cenário. Desde 1994, a representação do urbano evoluiu dos modelos multicausais de equilíbrio aos modelos complexos, em que as relações causa—efeito são verificáveis a priori somente no plano das relações entre componentes elementares do sistema (nível micro), a forma macro é emergente, e a dinâmica é fora do equilíbrio. A partir disso, uma extensa produção de novos meios analíticos de conhecimento da dinâmica urbana tem ocorrido, sem que, entretanto, a proposta de Bertuglia tenha sido revisitada e atualizada. Estes instrumentos, conhecidos como Sistemas de Suporte ao Planejamento (SSP – Planning Support Systems), trazem indicadores baseados na análise de benefícios locacionais para consumidores e provisão de oportunidades para fornecedores finais. Desempenho é entendido como a eficiência da localização de serviços, verificada pela sua acessibilidade em relação a um padrão de localização de potenciais consumidores, em abordagens baseadas no trade off entre custos de transporte e localizações que maximizam as vantagens do consumidor. Indicadores sociais incluem variáveis de qualidade de vida. Tais sistemas têm importância central para servir ao planejamento urbano em tempo real – e têm sido apontados como uma tendência para a próxima década, na aproximação entre as instâncias de pesquisa e de decisão (Batty, 2007). Contudo, processos geradores de aglomeração, como aumentos de produtividade na economia urbana, não são considerados: a cidade é tida como um estado sobre o qual se extraem indicadores de intensidade e distribuição de benefício locacional. Observa-se nesses estudos, ainda, a ausência de elementos de avaliação de desempenho: os graus de eficiência, equidade e sustentabilidade das distribuições espaciais (sob forma de padrões de densidades compactas ou fragmentadas, com diferentes graus de dispersão) sobre as dinâmicas dos agentes urbanos. Têm-se produzido medidas de intensidade da presença de uma certa característica em dada condição ou contexto, o que dá ideia de maior ou menor adequação ou qualidade da característica em si (por exemplo, maior ou menor acesR . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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sibilidade), mas não da implicação desta característica no desempenho urbano (os efeitos de um certo nível de acessibilidade para as dinâmicas do sistema urbano ou no consumo de recursos energéticos). Tais implicações permanecem apenas no campo das suposições. A ideia de desempenho deveria pressupor o comportamento relacional de componentes e processos urbanos no tempo: o conhecimento do grau de vínculo entre aspecto urbano e seus efeitos. Em outras palavras, o papel dos indicadores – o ponto-chave na definição de parâmetros seguros de avaliação – é capturar os efeitos da presença e intensidade de uma certa característica na natureza e qualidade dos comportamentos urbanos, e dar respostas à perguntas fundamentais do ponto de vista das correntes preocupações com a viabilidade urbana, como “qual o impacto na variação de uma dada característica espacial sobre a sustentabilidade social ou microeconômica de uma cidade?”. Vemos, assim, a necessidade de instrumentos capazes de mostrar as implicações de padrões e transformações morfológicas (observadas empiricamente, simuladas em cenários hipotéticos ou decorrentes de ações de planejamento), sobretudo nos potenciais de interação de agentes socioeconômicos, as localizações das atividades futuras em áreas da cidade e as configurações edificadas envolvidas – digamos, o efeito do aumento da compacidade sobre a compressão de interações e o apontamento dos possíveis ganhos ou perdas de produtividade com o aumento de interatividade socioeconômica como externalidade da densificação em um cenário urbano. Os indicadores disponíveis simplesmente não têm feito tais conexões: eles apontam a intensidade de propriedades, mas não indicam suas implicações ou seus efeitos potenciais sobre outras propriedades, dimensões e dinâmicas do urbano. Epistemologicamente, a pesquisa de desempenho urbano depende da demonstração de relações ao menos parcialmente causais entre fatores e características da forma e dinâmicas urbanas, ou, de modo menos linear, entre forma e dinâmicas urbanas sobre outras dinâmicas frequentemente mais complexas, voláteis e imprevisíveis. Sua utilidade na verdade depende da identificação, entre todas as contingências e não linearidades inerentes ou no entorno dessas relações, de “feixes de causalidades” intrínsecos a elas. Tais métodos devem ser úteis também para demonstrá-las, ao confrontarem-se com casos reais, especialmente comparativamente. Em outras palavras, no centro da preocupação com desempenho e da construção de um método de análise, há a necessidade de se estabelecer pontos de causalidade (ao menos parciais) que nos permitam reconhecer dependências entre propriedades urbanas e qualidades do comportamento urbano, e isolar aspectos problemáticos a serem tratados com ações de planejamento, em uma cidade analisada. Portanto, um método de análise de desempenho deve buscar primeiramente consistências na identificação dessas causalidades parciais, pois sua construção depende da aferição da existência das implicações entre presença de fatores e efeitos, traduzida na quantificação das propriedades e operações entre indicadores. Em outras palavras, as operações internas de um método de análise inevitavelmente dependem de (e evidenciariam) tais feixes de causalidade, seus limiares e pontos de inflexão, criticalidade e mudança e possibilidades de bifurcação e mesmo inversão – quando a presença de uma propriedade com base em certa intensidade (ou na presença de outra propriedade) passa a ter efeitos eventualmente inversos sobre o sistema urbano. A dependência entre análise de desempenho e a identificação de causalidades parciais, condicionais, certamente ligadas a contingências e imersas em complexidade, são simultaneamente a fraqueza metodológica e também a raison d’être destes métodos: sem apontar a probabilidade de certos efeitos sob certas condições, tais métodos tornam-se inúteis. Metodologicamente, uma forma de fazer isso é termos o usual indicador específico apontando a intensidade de presença de determinada propriedade; e uma segunda opera160

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ção: sua ligação a um segundo indicador geral, de comportamento, mostrando o efeito potencial da propriedade sobre outros aspectos do sistema urbano. As diferenças na intensidade de uma propriedade (como a compacidade) e seus efeitos (como a intensificação de centralidades, interatividade socioeconômica ou oportunidades espaciais) podem ser definidas e testadas através de simulações teóricas do aumento de unidades/agentes espaciais envolvidos, simulações então confrontadas com observações de casos reais – confronto que permitirá a calibragem das relações entre propriedades e dinâmicas, e a consolidação das ponderações obtidas pelos indicadores. O confronto a priori com o empírico na definição das causalidades entre propriedades e efeitos – a aferição da sua implicação sistêmica sob forma de diferenças conhecidas nos graus de sua relação – é o item central tanto na afirmação da relevância dos indicadores verdadeiramente sistêmicos de propriedades como na sua utilidade na geração de indicadores do desempenho urbano em geral. Propomos que a análise de desempenho vinculando características, dinâmicas, relações ou fatores urbanos, diversos em sua natureza, seus efeitos mútuos entre si e sobre o sistema urbano em geral, seja conduzida em dois eixos analíticos, como formas alternativas, mas complementares, de verificação. Através de metaindicadores de desempenho, coincidentes com paradigmas de diferentes fases do desenvolvimento teórico-urbano: eficiência (foco das preocupações urbanas da década de 1960); equidade (paradigma nos anos 1970) e qualidade espacial; e, mais recentemente, sustentabilidade. Ou por meio da verificação direta de dimensões urbanas empiricamente reconhecidas, sob forma de metaindicadores de morfologia que combinam qualidades tanto do edificado como da rede espacial; dinâmica socioeconômica ou relação entre agentes mediadas por espaço; dinâmicas de auto-organização e os limiares do sistema urbano; relações entre sistema urbano e sistema natural ou cidade-ambiente. Tanto os metaindicadores de desempenho como as dimensões urbanas envolvem aspectos particulares – conjuntos de fatores capturados e reconstruídos teoricamente através de combinações de séries de indicadores específicos1 (como compacidade ou acessibilidade). Indicadores específicos de características e propriedades (largamente o caso dominante na literatura em desempenho), estados e dinâmicas serão propostos de modo a compor relacionalmente mais de um metaindicador. Este segundo caminho de análise de desempenho tem a vantagem de certo apelo intuitivo para o planejador; ambos são naturalmente afins metodologicamente (utilizam combinações de indicadores e operações). Também serão formas de aplicação empírica, somadas à possibilidade de análise direta por meio dos indicadores específicos. Vejamos o modo de abordagem ou reconstrução teórica do “urbano” de modo a permitir o nível analítico e relacional demandado por essas intenções.

REPRESENTANDO O URBANO O exame do desempenho demanda a análise das relações ativas entre um sistema de materialidade marcada por sua durabilidade, rigidez e opacidade (o espacial) e um sistema substancialmente volátil (na forma de práticas e socialidades) (Netto, 2008b). O presente método de análise de desempenho considera níveis ontológicos independentes como elementos reconhecidamente diferenciados, mas dependentes como elementos essencialmente interativos:

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1 Veja trabalhos do grupo de pesquisa Sistemas Configuracionais Urbanos (UFRGS, UFPel e UFF – Krafta, 1994; 1997); na literatura de indicadores, veja, entre outros, Bertuglia et al. (1994), Burton et al. (2002), Hasse & Lathrop (2003), e Chen et al. (2008); em estudos no Brasil, veja Ribeiro & Holanda (2006) e Ribeiro (2009).

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Sistema espacial Sistema social Relações exógenas

ambiental urbano agentes pluralizados, individuais agentes arranjados (ou reconhecidos) em redes estímulos macroeconômicos relações interurbanas e regionais

Figura 1 – Os níveis ontológicos na análise do comportamento de cidades. A série de indicadores para o tratamento relacional dos elementos, relações e dinâmicas urbanas opera dentro e entre estes níveis. O sistema espacial aqui considerado é um sistema de materialidades não exclusivamente físicas, mas fundadas na rigidez e durabilidade do espaço, composto pelo sistema espacial urbano e sua relação com um ambiente geográfico natural, imediato e ativo, tanto como cenário dos impactos das externalidades dos processos urbanos como na dependência do urbano sobre quantidades de recursos nele disponíveis. O sistema espacial urbano é analisado em atratores (edificações e seus conteúdos socioeconômicos e cognitivos), rede de espaços públicos de acesso (ruas) e suas áreas de ocupação (lotes, bairros etc.). O sistema social é constituído de agentes pluralizados, incluindo indivíduos e agrupamentos na forma de instituições e firmas, eventualmente arranjados em redes de agentes por semelhança de condição social (caso dos indivíduos e suas classes sociais) e papel econômico (consumidor, fornecedor, firma produtora de bens finais e bens intermediários), e atividades produtivas e reprodutivas. Temos, assim, a possibilidade de incluir redes de agentes dentro e fora do sistema urbano analisado – os quais completariam o leque de relações socioeconômicas constituintes do urbano e permitiriam investigações diretas da relacionalidade nas redes de agentes, como seu grau de coesão ou conectividade interna e externa, transmissão de informação etc. para fins de avaliações direcionadas ao comportamento dos agentes em si. A abordagem ainda permite considerar as conexões entre o sistema urbano localizado (a cidade sob análise) e dinâmicas econômicas mais amplas, sob forma de suas relações macroeconômicas ou regionais. Sugere-se que tais conexões sejam acrescentadas oportunamente ao método sob forma de 162

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índices de crescimento econômico como fatores exógenos de estímulo à produção de bens e serviços internos (taxas de crescimento econômico da região que tendem a se replicar na produtividade das firmas internamente à cidade em análise).2 Propõe-se a inclusão das redes de agentes (envolvendo sobreposições) apropriando-se ativamente do espaço e competindo por localização para fins de sua própria reprodução, ligadas a itens de eficiência e equidade, produzindo e interagindo no espaço urbano: I.

Redes de agentes individualizados ou parte de grupos sociais II. Redes de interação Fornecedor final–Consumidor final III.Redes de ligação Firmas intermediárias IV.Redes Firma–Trabalhador V. Redes Produtor espaço–Consumidor espaço A rede espacial que viabiliza as ligações entre agentes coloca-se como elemento central nas relações e na definição de hierarquias naturais de suas localizações e suas vantagens aglomerativas. Ganhos de acessibilidade na produção (nas ligações entre firma e entre setor) são tão importantes quanto nas ligações entre fornecedor final e consumidor final, ou entre oportunidades de trabalho e a localização residencial dos trabalhadores. Indicadores devem permitir avaliar as condições da interação entre agentes a partir da nuvem atual de suas localizações e avaliar a capacidade da estrutura urbana em dar suporte à rede de interações atual e potencial (orientada para análise comparativa), como o grau de interferência do espaço urbano no potencial de interação nas redes de agentes, ou, mais detalhamente, o grau de interferência da localização dos agentes e da configuração da malha de acessos na interatividade nas redes e entre redes. Um sistema de análise focada em comportamento urbano deve verificar padrões de proximidade/distância entre agentes, e ganhos/perdas em cenários de novas localizações ou modificações na malha de acessibilidade sobre o desempenho e sustentabilidade econômica do sistema urbano. Apontamos aqui para as relações entre interatividade dos agentes e a conectividade do sistema espacial: a correspondência entre essas dimensões do fenômeno urbano é item fundamental para seu desempenho. Parece relevante colocar a questão do papel da estrutura física urbana, suas possíveis transformações e modificações em padrões urbanos e produção de centralidades como hipótese central no exame do desempenho e dos estímulos urbanos, e modelar as redes de agentes que produzem aglomeração, competem por localização, geram fluxos dentro e entre cidades e dependem tanto de distribuição de localizações como de acessibilidade para sua produtividade e para a distribuição dos efeitos de suas externalidades sobre a cidade. Uma vez definidos os fundamentos teóricos da abordagem ao problema urbano como profundamente sistêmico, ativamente correspondente em suas dimensões ontológicas (suas espacialidades e estruturas e suas socialidades e redes de interação), passemos à definição dos indicadores de tais relações e dinâmicas.

METAINDICADORES DE DESEMPENHO Os indicadores individuais podem ser endereçados em suas combinações. Iniciemos pela rápida definição das formas de abordar o urbano de modo explicitamente sistêmico – a fim de preparar teoricamente o caminho para a definição de indicadores capazes de capturar relações entre diferentes elementos e dinâmicas do urbano. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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2 A inclusão das redes de interação entre Produtor de espaço e Consumidor de espaço em um submodelo de crescimento urbano será contemplada em um estágio avançado da pesquisa. Outros estímulos econômicos sob forma de demanda e entrada de bens e serviços considerados em quantidades de fluxos trocados não serão tema do método de análise de desempenho urbano. Veja a inclusão destes fluxos no trabalho recente de Wilson (2007).

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QUALIDADE ESPACIAL A análise de qualidade espacial refere-se às qualidades inerentes do casco da cidade, e tem sido tratada, no universo do planejamento urbano, de modo trivial, limitada a aspectos locais de microacessibilidade, conforto, “bom desenho” ou habitabilidade, todos atributos puramente locais. Sugerimos indicadores de cunho mais amplo e sistêmico. A análise de características espaciais e seu potencial impacto sobre habitantes não implicam juízos de valor formal, mas de aferição da interação entre forma construída, atividade urbana e habitante. Trata-se de um campo aberto, cujas explorações existentes se resumem à formulação de conceitos e, quando muito, à explicitação de uma forma de aferição sem experimentação empírica e muito menos associação a sistemas de indicadores de desempenho mais avançados. A presença das características espaciais não é garantia de existência de qualidade espacial, entretanto, é certo que sua presença contribui para situações urbanas com potencial de mais alta qualidade espacial. Qualidade espacial trata de indicadores diretos da estrutura e das características do espaço urbano (compacidade da forma edificada, acessibilidade, permeabilidade, distributividade e continuidade da rede espacial, mobilidade), da qualidade informacional desses espaços (identidade, navegabilidade, capacidade informacional), e das características locais do espaço urbano em estreita relação com aquelas globais (continuidade da forma construída, microeconomicidade e socialidade). Traz em si a implicação dessas características com a prática e uso do espaço. Qualidade espacial, neste sentido, não se refere a propriedades apenas “locais”, compacidade, por exemplo, é uma medida também usada para analisar a cidade como um todo ou suas partes isoladamente. Qualidade espacial considera implicitamente o impacto de características morfológicas sobre tais dinâmicas a partir das correlações reconhecidas a priori entre propriedades espaciais (digamos, o aumento de compacidade) e efeitos sobre o sistema urbano (o aumento de centralidade e interatividade socioeconômica), permanecendo, no âmbito espacial, restrita às propriedades referentes às características espaciais, sem incluir variáveis socioeconômicas em sua formulação. Propomos um indicador geral de “qualidade espacial” que combine fatores de morfologia, indicadores diretos do tecido urbano local (por exemplo, cobertura vegetal), elementos de informação espacial (o quanto o espaço local ajuda na navegação do habitante) e da qualidade ambiental destes espaços. EQUIDADE A análise de equidade evidencia impactos da estrutura física sobre as atividades de grupos e classes sociais distintos no sistema urbano. Foca na distribuição de benefícios locacionais e mobilidade como capacidades de geração de renda e como fatores de aumento ou redução de custo (relacionados a transporte, tempo, eficiência de deslocamentos, número e intensidade de atividades realizadas e, em última instância, produtividade do indíviduo) para agentes socialmente diferenciados. Supõe-se que certas localizações e graus de mobilidade potencializam essas capacidades, o que torna a relação agente–estrutura urbana um item relevante de equidade social (Harvey, 1973) – ainda que uma relação direta entre ambas seja, naturalmente, de difícil demonstração e, portanto, controversa. Se considerarmos que um sistema urbano se beneficia com o aumento de produtividade distribuída entre seus agentes, supõe-se que as condições espaciais para que agentes sejam equanimamente produtivos também sejam itens de eficiência urbana. A 164

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análise da equidade urbana estende a atenção aos impactos da estrutura física (como o das distâncias internas) sobre a eficiência da produção (incluindo a produção da própria cidade) e do comportamento de consumo ao problema dos custos e benefícios aos indivíduos. Quando o objetivo é capturar o quanto o espaço interfere nas condições de acesso a atividades e produtividade dos indivíduos por classe, o uso de indicadores econômicos ou sociológicos de diferença de renda ou educação – mais afeitos a capturar equidade como um problema social mais geral – são menos elucidativos. Indicadores como oportunidade espacial (análise do privilégio locacional; Krafta, 1997), acessibilidade (indicando influência da estrutura da rede urbana sobre alcançabilidade),3 mobilidade (sensível para diferentes grupos sociais e formas de transporte predominante) e segregação espacial (grau de concentração e distância entre localizações de habitantes de classes diferentes) mostram-se formas mais aptas de capturar esses impactos. Operacionalmente, o indicador geral de equidade se vale principalmente do indicador de oportunidade espacial de trabalho e consumo (serviços/comércio), sendo sensível a diferenças: quando uma classe tem mais privilégios locacionais que outra, o indicador deve apontar queda da equidade. Equidade inclui a valorização de mobilidades similares entre classes, usando valores simples de ponderação para diferentes modalidades de transporte. O indicador de mobilidade segue relevante em razão das fricções da distância que se abatem sobre indivíduos socialmente diferentes4 – e das modalidades de transporte usados para burlar o efeito dessas fricções constantes. O indicador de acessibilidade captura de forma simples a distância entre uma localização em relação a todo o sistema, sendo verificada para cada ponto residencial e agregada de acordo com classe (acessibilidade média dos residentes/classe), cuja média segue mesmo princípio de harmonização. Segregação espacial mostra o grau de concentração entre residentes de mesma classe como indício de uma equidade de oportunidade na localização: sistemas urbanos em que haja concentração dos semelhantes e distância entre os diferentes indica que a inequidade é uma característica que atravessa o sistema urbano na produção de seu padrão locacional. É verificada como a diferença entre a média da distância topológica entre agentes similares e a média entre diferentes classes, como uma ponderação para apontar sistemas menos e mais equâmines na sua produção e formação de padrões de localização residencial.

3 Alcançabilidade se refere a uma capacidade de bemsuceder na movimentação intraurbana na busca por atividades ou outros agentes.

4 Uma pessoa de menor renda dependente do transporte coletivo e pedestre localizado, digamos, em favela intersticial central, sofre menos o atrito das distâncias do que uma localizada perifericamente, mas tende a sofrer mais fricção para acessar a nuvem de oportunidades espaciais das quais teoricamente dispõe do que a pessoa que tem veículo privado.

EFICIÊNCIA URBANA Trata-se da análise da relação entre morfologia e dinâmicas socioeconômicas intraurbanas. Em princípio, “eficiência urbana” refere-se tanto à eficiência das dinâmicas em uma dada condição espacial como à eficiência da estrutura urbana em seus impactos sobre tais dinâmicas. A primeira possibilidade envolve a análise da rede das conexões entre agentes face a rede espacial como fator de custos e eficiência nas trocas, ou seja, as relações entre agentes econômicos complementares em relação à proximidade espacial (cenário atual) e entre agentes potencialmente complementares (cenário potencial).5 A segunda possibilidade analisa o quanto a estrutura urbana atua para efetivar trocas atuais e potenciais, analisando o comportamento da rede espacial em confronto com as possibilidades de conexão da rede dos agentes. A análise da eficiência é fundamental para verificarmos o quanto as atividades e trocas entre indivíduos e firmas sofrem “atritos espaciais.” A vida urbana cotidiana, diferente para cada indivíduo porque montada a com base na sua rede particular de relações e dependências, pode, não obstante, ser equiparada a um contínuo processo de deslocamentos e interações intermitentes. Com efeito, independentemente R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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5 Proximidade espacial entre firmas é um fator considerável na eficiência econômica de um sistema urbano; é reconhecidamente um fator gerador de externalidades, não consideradas no presente método.

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do que cada indivíduo realize ao longo de seu dia, seu procedimento envolve deslocamentos e atividades localizadas, sequenciais. A eficiência desse procedimento envolve distribuição espacial de atividades e minimização de distâncias, ambas associadas à forma urbana. A universalidade desse problema se deve a características fundamentais da reprodução e produção socioeconômica baseadas na mobilidade de objetos, consumidores e trabalhadores, e no confronto desses com um dado inescapável: a distância entre as localizações e suas implicações nos tempo de deslocamentos e custos de transporte, bem como a configuração da estrutura espacial urbana produzida coletiva e historicamente como resposta à necessidade de proximidade entre a diversidade de agentes. Tal estrutura, contudo, pode apenas minimizar (em graus diferentes para estruturas urbanas diferentes) o problema da distância, criando inevitavelmente problemas adicionais de restrições para o conhecimento de agentes potencialmente interativos e alcançabilidade (e uma redistribuição de potenciais) entre agentes. Em outras palavras, a estrutura espacial urbana, rígida e opaca, produzida como solução material ao problema das distâncias nas interações, implica contudo novas restrições nas possibilidades do indivíduo quanto ao conhecimento dessa própria estrutura e da sua exposição a outros agentes – possibilidades construídas através da experiência heurística do espaço urbano (Portugali & Casakin, 2003). Mesmo uma vez conhecidas as possibilidades de agentes para interação – sendo todas as outras condições iguais –, a distância tende a ser um critério de escolha de interações em função dos custos de transporte nas trocas entre agentes. O metaindicador “eficiência” se refere essencialmente ao exame dos diferentes graus de interferência do espaço sobre essas possibilidades, sobre escolhas para efetivar interações, e a intensidade de possibilidades e de interações efetivadas (“sustentabilidade”, por sua vez, incluiria também a diversidade e longevidade na geração de possibilidades de interação e de interações efetivas). A urgência típica nas interações diárias na cidade, a centralidade das condições espaciais propícias para maximizar as mobilidades e viabilizar a efetivação desse emaranhado de interações e o problema dos custos e tempo de transporte inerentes ao cenário do consumo e sobretudo na produção evidenciam a necessidade de abordagem de sua eficiência face as fricções impostas fisica e cognitivamente pela estrutura urbana. A eficiência urbana é uma forma de buscar economia de meios, ganhos de produtividade, funcionalidade. Nesta abordagem, eficiência é voltada para o estado do sistema urbano. 1 A eficiência de um padrão de localização de atividades (distâncias relativas) para agentes potencialmente interativos e vinculados a estas atividades – isto é, os impactos da acessibilidade da rede urbana sobre a movimentação entre atividades: o grau de facilidade para novas relações entre agentes emergirem e se efetivarem no espaço urbano, com menos esforço material. 2 O grau de intensidade com o qual essas trocas entre agentes complementares emerge, em diferentes instâncias de produção e consumo dentro de uma configuração de localizações e acessibilidade. Como mencionado, uma forma sintética de verificar estas eficiências é através do potencial de conexão nas redes de agentes, na passagem da nuvem de possibilidades de conexões de agentes complementares para a rede das conexões efetivadas, mediadas pela rede material das localizações espaciais destes agentes apontando maior potencial de conexões. Uma cidade eficiente teria uma rede de ligações físicas conectando um padrão de localização tal que facilitasse a passagem entre a rede de ligações possíveis para a rede das 166

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ligações efetivas – e eficientes –, entendendo a proximidade topológica como ingrediente-chave para a atualização de conexões socioeconômicas ou para a prática dos agentes. Graus de dispersão entre agentes mutuamente dependentes quanto a trocas físicas implicarão maiores distâncias e, portanto, atividades mais ineficientes quanto ao uso de recursos e tempo, o que afeta o comportamento do sistema social e microeconômico, gerando ainda externalidades negativas, como impactos sobre rede urbana (tráfego) ou novos riscos sobre a sincronia na produção. A análise da eficiência urbana passaria então por medidas de relação topológica entre pares de agentes e sua distância em relação a uma rede ideal de posições de total conectividade (passo 1) entre esses conjuntos de agentes em um “espaço virtual, líquido”, mostrando o quanto um sistema espacial está próximo de oferecer distância mínima entre conjuntos de agentes complementares ou potencialmente interativos. Considera ainda o tamanho do sistema urbano em análise como fator determinante – mas que pode ser relativizado, se a eficiência dos padrões de localização for relativizada em função do tamanho do sistema, sobretudo para fins comparativos da eficiência das localizações e alcançabilidades em diferentes cidades. A aferição de eficiência pode ainda: • dirigir-se a subsistemas específicos de agentes (como serviço-consumidor ou firma-firma) verificando o grau de eficiência destas ligações físicas (ou proximidade dessa distribuição com a rede de conexão ideal) –, usando-se, por exemplo, distância topológica média entre localizações; • considerar a eficiência geral de diversos subsistemas de agentes, ponderados numa consideração sintética do sistema urbano. Portanto, as propriedades da rede de ligações físicas que conectam essa nuvem potencial de agentes/localizações passam a ser centrais na análise da eficiência urbana; • mostrar ganhos de eficiência com a qualificação de componentes urbanos; por exemplo, com o eventual aumento de acessibilidade em razão de melhorias na rede de acessos ou de modificações no panorama de localizações de agentes complementares; com o ganho de compactação/centralidade (interna e global para uma área); ou com o ganho de informação espacial a respeito de agentes complementares, avaliados em cenários hipotéticos; • a análise da dessincronia entre a rede de ligações potenciais e a rede das localizações entre potenciais agentes em interação pode apontar a hierarquia dos espaços mais apropriados para futuras localizações de agentes dentro destes campos de complementaridade. Essa é uma aplicação possível da análise para fins de tomada de decisões de planejamento; • o exame de eficiência pode ainda ser dirigido no sentido contrário: a análise da eficiência das ligações existentes entre agentes, e o quanto elas se beneficiam do espaço (ou eventualmente ignoram vantagens locacionais ou agentes complementares melhor localizados para possíveis interações). A eficiência das interações entre agentes, obtida pelo confronto da análise das redes de agentes versus a análise da centralidade ou hierarquia na rede espacial das localizações reais, depende, contudo, da existência de dados de ligações efetivadas. Avanços no exame da eficiência urbana podem incluir outros itens: eficiência da cobertura e tempos para modalidades de transportes e sua relação com graus de alcançabilidade entre atividades, sob forma de relação entre graus de acessibilidade intrínsecos à uma rede espacial em um dado estado e os graus de mobilidade estimulados morfologicamente, vinculados ainda à eficiência da cobertura e velocidades das modalidades de R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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transporte. Pode-se ainda apontar para a eficiência de infraestrutura urbana, a qual não será tema neste artigo. SUSTENTABILIDADE URBANA Exatamente pela grande extensão de fatores envolvidos e a consequente indefinição (e eventual contradição entre) conceitos propostos e intenso – e largamente desinformado – uso do termo (Netto, 2008a), “sustentabilidade” é uma categoria de desempenho de difícil tratamento. As noções de sustentabilidade referidas à cidade estão frequentemente associadas a ideias de escassez de recursos e não poluição, centrando-se na necessidade de permanência de recursos ou de qualidade de vida – mecanismos que se encarregam de sustentar sua continuidade (Polidori & Krafta, 2004). O metaindicador de sustentabilidade consiste de uma análise da continuidade de sistemas urbanos diante de perturbações internas e externas, de sua dependência de recursos e das externalidades geradas em seus processos de produção e reprodução. Requer atenção por questões também metodológicas: dada a impossibilidade teórica de uma aferição de “sustentabilidade geral” de uma sociedade ou mesmo de uma região, tal análise deve iniciar-se na escala individual de cidades, sendo relacionável na análise de redes de cidades e suas interfaces com seu ambiente ou região. Metodologicamente, é necessária a abordagem local da “sustentabilidade” como problema sistêmico, que afeta regiões e relações em cadeias entre ambientes urbanos e ecossistemas. As hipóteses usuais da relação entre forma e sustentabilidade têm apontado para considerações como: cidades mais compactas tendem a ser mais sustentáveis do que as menos compactas; cidades mais fragmentadas tendem a ser menos sustentáveis do que as menos fragmentadas (cf. Burton, 2002; Chen et al., 2008; Ribeiro & Holanda, 2009). Polidori e Krafta (2004) argumentam contra superssimplificações, considerando que fragmentação e compacidade são processos que implicam movimentos necessários na continuidade da cidade (veja também Abramo, 2009). Em outras palavras, observações de sustentabilidade têm se focado em análises de estado e não como processos urbanos em direção a soluções menos ou mais sustentáveis ao longo do tempo. O problema do tempo nos leva a reconhecer o papel da estabilidade e instabilidade de sistemas urbanos – e a rejeitar a priori a definição desinformada de sustentabilidade urbana como associada à estabilidade ou continuidade linear de processos. A questão que se coloca é como avaliar instabilidade: se como uma ameaça à sustentabilidade ou, ao contrário, como um sinal de vitalidade. Estas duas possibilidades espelham a essência do debate sobre sustentabilidade hoje existente, a oposição entre uma sustentabilidade buscada mediante redução do desenvolvimento e outra, que aposta na capacidade de resolução de problemas alcançada justamente no desenvolvimento. Instabilidade é um componente intrínseco do processo urbano, pois mudança e transformação estão na essência do conceito de urbano. Entre os fatores centrais em sustentabilidade como processo e sua relação com instabilidade estão: a oscilação dos processos de transformação urbana como manifestação de mudanças em dinâmicas socioeconômicas, sujeitas a estímulos exógenos das conexões entre cidade, região e a macroeconomia; o problema dos limiares na constituição de estruturas ao longo da evolução urbana, e a intermitente consolidação e mudança de padrões urbanos. Tais processos espaciais ocorrem em diferentes escalas implicadas no tempo e espaço, em uma distribuição descontínua de frequências e estruturas, em que as descontinuidades marcam a transição de uma 168

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para outra escala. O problema da transformação e instabilidade urbanas, fundamental para a compreensão das condições reais de sustentabilidade, aponta para o problema dos limiares de transformação presentes em diferentes escalas: limiares locais que implicam mudanças de padrões globais da cidade, e vice-versa. Estímulos de mudança e instabilidade, limiares estruturais e pontos de criticalidade se relacionam com a capacidade do sistema urbano em absorver e reorganizar-se frente a tais mudanças: a capacidade de autoorganização torna-se um item essencial na sua continuidade e sustentabilidade. Sustentabilidade inclui, assim: • o comportamento de eficiência da cidade quanto a seus processos, agora avaliado no tempo, incluindo análise da evolução para a continuidade do sistema urbano; • a capacidade estrutural do sistema urbano de responder a variações de estímulos (autoorganização) geradas internamente ou externamente à cidade quanto à sua morfologia e suas dinâmicas internas na geração ou mudanças em seus padrões espaciais aparentes (limiares),5 e a possibilidade de mudanças estruturais ou parciais em áreas urbanas sob tensão de crescimento por densificação/expansão: a capacidade de absorção e transformação da estrutura urbana, as quais assegurariam formas – adequadas ou inadequadas – de continuidade do urbano. • a consideração da dependência da cidade face à disponibilidade de recursos para alimentação das suas dinâmicas, e as externalidades negativas de tais dinâmicas sobre o seu ambiente, as quais potencialmente voltam a comprometer a continuidade do sistema urbano (relações cidade–ambiente); • comportamento do sistema urbano quanto à equidade, item de continuidade e da eficiência; • a análise dos limiares da estrutura urbana diante de seus efeitos sobre dinâmicas socioeconômicas e o comportamento urbano de modo geral: limiares de crescimento e estruturação de morfologias de desempenhos mais sustentáveis: limiares superiores e inferiores de expansão, ocupação e densificação de cidades e presença de atividade microeconômica e seus impactos sobre a capacidade de interação dos agentes socioeconômicos; limiares de recursos e energia disponíveis para sistemas urbanos; limiar para externalidades ambientais negativas de dinâmicas urbanas (conforme indicador detalhado mais adiante). A análise de desempenho baseada em sustentabilidade deve fundamentar-se na análise da evolução de estados urbanos e seus comportamentos, confrontando-os com indicadores do ambiente ao longo do tempo e traçando projeções de cenários futuros fundamentados em parâmetros encontrados na análise temporal. “Sustentabilidade” coloca-se, portanto, como uma “categoria maior” que sumariza e estende as anteriores, reunindo em sua ponderação itens destas categorias mais aspectos capturados nos indicadores de limiares e relações cidade–ambiente.

METAINDICADORES: AS DIMENSÕES EMPÍRICAS DO URBANO A análise de sistemas urbanos naturalmente esbarra no problema da diversidade: a complexidade do número e diversidade de elementos e dinâmicas envolvidos na cidade abre a possibilidade de geração de uma quantidade de indicadores quase tão grande R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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5 Exemplos são a capacidade e limiares de substituição de morfologia edificada, de substituição de usos e novas interatividades entre usos; capacidade da rede de acessibilidade absorver demandas de novos atratores ou a intensificação de fluxos; modificações na rede que possam colocar o sistema urbano em novo patamar de eficiência até novo ponto de criticalidade.

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Figura 2 – Dimensões do problema urbano e os meta-indicadores correspondentes. quanto o número de variáveis identificadas. Um aspecto, portanto, conveniente – e um ponto a ser explorado metodologicamente – é a seleção, combinação e eventual síntese de indicadores específicos. Como vimos, tais indicadores podem ser agrupados de várias formas, de acordo com as categorias sustentabilidade, eficiência, equidade e qualidade espacial. Por questão de facilidade de aplicação, sugerimos agora uma segunda forma de agrupamento em metaindicadores que combinarão a variedade de medidas em um elenco conciso diretamente ligado às dimensões mais evidentes do fenômeno urbano. Leques mínimos de indicadores, diretamente ligados ou aos critérios principais ou às características do fenômeno, tendem a ser mais facilmente entendidos e operados no momento da análise. Assim, “indicadores de morfologia” se referirão a características do sistema espacial cuja mensuração pode trazer dados do desempenho da cidade sobre este aspecto; “indicadores de dinâmicas socioeconômicas” capturarão relações entre sistema espacial e sistema de agentes; “indicadores cidade–ambiente” capturarão a relação entre funções urbanas e seu sistema ambiental circundante; e assim por diante. Estas “dimensões” poderão ter seu comportamento avaliado sob critérios de desempenho agrupados anteriormente; elas também poderão ser reformuladas; outras, adicionadas etc. A estrutura de indicadores sugerida (Figura 2) consiste de uma reorganização de medidas já desenvolvidas ou a serem desenvolvidas, com a intenção de enfatizar o caráter intuitivo e um rápido poder explicativo sobre o fenômeno e seus critérios de desempenho. INDICADORES DE MORFOLOGIA URBANA Estes indicadores são de suma importância para o conhecimento por parte do planejador das características da estrutura espacial da cidade e suas implicações de desempenho – sendo análogos aos indicadores da categoria de desempenho “qualidade espacial”. Temos três instâncias de investigação da morfologia: suas condições globais (a cidade como um sistema espacial completo), a geração de informação útil para a navegação e práticas sociais a partir desta configuração, e a escala morfológica local (de caráter de ocupação e densificação do lote e quarteirão) como manifestação de tendências e demandas morfológicas globais, a qual volta a impactar as dinâmicas globais. INDICADORES DA CONFIGURAÇÃO GLOBAL URBANA Endereçam propriedades diretas do sistema espacial, especialmente quanto a itens ligados à alcançabilidade e potencial de interação espacial. Podem ser divididas em subjconjuntos de acordo com a abordagem da forma urbana: por características geomé170

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tricas absolutas (áreas, volumes, distâncias métricas) ou por características geométricas relacionais (conectividade, distância topológica etc.). Para fins de operacionalização e, sobretudo, de facilidade de aplicação, propõe-se abaixo uma seleção, agrupamento e, eventualmente, combinação das medidas desenvolvidas – dispostas em dois conjuntos: morfologia edificada e morfologia da rede espacial. MORFOLOGIA EDIFICADA Compacidade: O problema da compacidade vem recebendo grande atenção em debates sobre sustentabilidade urbana, por seu natural envolvimento em questões de distâncias internas, dependência veicular e suas implicações. Indicadores atuais são baseados em medida métrica em três formas: relação entre área construída e área urbana; área ocupada e área urbana; e população e área urbana (indiretamente, supondo que cidades mais densas também serão mais compactas). Contudo, indicadores baseados em área e altura de cobertura edificada não capturam com precisão o que a compacidade implica para o sistema urbano: a questão não se refere meramente à característica do espaço físico, mas o que esse espaço físico de fato sedia de práticas e atividades sociais. É esta relação que importa para o desempenho urbano. Um mesmo caso pode ter intensidades de ocupação diferentes, e formas de atividade com níveis certamente bastante diferentes quanto à sua interatividade com o restante do sistema urbano, ou com grau de dependência com relação à proximidade a agentes e atividades complementares. Estas duas características, abrigadas por morfologias menos ou mais densas, só podem ser capturadas se considerarmos o espaço arquitetônico urbano como um sistema de unidades espaciais irregularmente distribuídas, social e economicamente interativas dentro da dinâmica urbana. O tratamento metodológico mais adequado seria, portanto, não o da compacidade como intensidade de áreas brutas construídas sobre área de solo, mas um indicador da compressão de unidades de atividade/residência por área ou trecho de rua. A consideração de população não é o suficiente, por não mostrar sua interatividade, assim como a do número de economias.6 É urgente retirarmos o item “compacidade” da mera descrição de densidade geométrica absoluta e o relacionarmos com a ideia de “configuração” como relações entre entidades urbanas articuladas, na forma do número de unidades de atividades e residências por unidade espacial (métrica ou topológica). Essa adequação, além de oferecer mais riqueza descritiva, retira a imprecisão de cascos semelhantes com intensidades de ocupação diferentes, ainda oferece natural compatibilidade metodológica com os demais indicadores sistêmicos: o tratamento de seus aspectos em relação àqueles de outras propriedades fica alinhado e explícito. Aqui também temos o problema do limiar de compactação: se os efeitos da compacidade sobre a alcançabilidade/mobilidade na cidade ainda deve ser demonstrada apropriadamente, ela também deve incluir o problema do limiar superior, a compactação em excesso pode levar ao problema da baixa habitabilidade. Esses limiares devem ser introduzidos. MORFOLOGIA DA REDE ESPACIAL Acessibilidade: indicador topológico global de centralidade considerando cada unidade espacial ligada ao sistema viário em relação a todas as outras. Cada unidade espacial terá uma distância média em relação às demais, a qual expressa a acessibilidade dessa unidade; se as distâncias médias de todas as unidades espaciais forem comparadas, obtém-se um ranking de acessibilidade expressando diferenciação espacial existente (Krafta, 1994). O indicador pode relacionar diferenciações a aspectos do funcionamento das cidades, tais R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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6 Compacidade indica a intensidade da presença de atividades, enquanto os indicadores sistêmicos de centralidade, oportunidade e convergência (Krafta, 1994; 1997) mostram o potencial de interatividade latente numa área ou trecho axial entre si (passo menor) ou quanto a todo o sistema (passo n) resultante dessas compacidades.

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como probabilidade de localização de zonas comerciais e localização de áreas potencialmente segregadoras. Ele é vinculado explicitamente ao problema da mobilidade e à equidade, eficiência e sustentabilidade urbanas. Profundidade: consiste do grau de distanciamento entre unidades espaciais do sistema espacial urbano. O indicador de profundidade pode ser associado a avaliações de eficiência e equidade urbanas. A eficiência pode ser denotada pelo fato de sistemas mais ou menos profundos produzirem viagens mais ou menos extensas; a equidade decorre da inferência de que sistemas profundos tendem a produzir mais segregação socioespacial. É útil para responder questões como: “o que o aumento de profundidade de um sistema particular – no caso, por exemplo, de expansão urbana – provoca sobre as distâncias percorridas na cidade e itens como consumo de combustível? O quanto reduz eficiência e sustentabilidade da morfologia da cidade?”. A primeira forma de aferir profundidade é calcular a distância média do sistema, obtida pelo somatório de todos os caminhos mínimos ligando todos os pares de unidades espaciais do sistema. A segunda forma (verificar o diâmetro ou o maior caminho mínimo existente, indicando as duas unidades espaciais mais distantes entre si no sistema urbano) é sujeita a distorções em razão de formas urbanas menos convexas ou mais dendríticas. A terceira usa as distâncias de um determinado ponto, tomado como referência, ordenando o sistema a partir desse ponto. Contudo, o indicador isolado pode ser pouco informativo se não incluir a relativização da propriedade em função do tamanho do sistema: uma cidade pode ter uma morfologia mais eficiente que outra cidade menor (menos profunda), se tiver, por exemplo, maior compacidade. Distributividade: indicador topológico do grau de conectividade da rede viária urbana associada à quantidade de percursos alternativos existentes entre dois pontos quaisquer de um sistema. Uma rede é não distributiva quando, entre um par qualquer de localizações, há apenas um caminho possível (como nas formações urbanas compostas de apenas uma via principal e várias outras transversais). Pode ser obtido pela quantidade de “ciclos fechados” existente em um sistema, comparada com uma grelha retangular perfeita com o mesmo número de nós (a grelha retangular, por ser a forma mais comum de organização espacial existente, embora não seja a mais distributiva), e varia de acordo com o tamanho do sistema (grau de conectividade e continuidade de caminhos). Um item complementar envolve a eficiência dos caminhos alternativos – caminhos alternativos mais curtos aumentam a fluidez ou distributividade. Permeabilidade: indicador métrico de penetrabilidade do espaço (global ou local) e da intensidade da interface entre o espaço público e o privado resultante da quantidade de oportunidades de troca entre eles. Funda-se na noção de que essa interação, chave para a existência da cidade e consecução das atividades humanas, é a oportunidade de contato entre os universos do público e do privado, propiciada pelas linhas de contato entre vias públicas e lotes de terra privados. Pode ser obtida pela relação entre extensão total de vias existentes em uma zona urbana e a área desta zona: razão entre comprimento das vias pela área do sistema ou proporção entre áreas de quarteirão ocupadas e cobertura de ruas. Supõe-se que tramas mais permeáveis sejam mais eficientes; entretanto, considera-se que o aumento na área viária possa levar a ineficiências quanto à ocupação do espaço construído, e uma distributividade tal que dispersa quantidades veiculares e pedestres para níveis menores que os necessários para sustentar comércios locais, por exemplo. Aqui há outro problema de limiar: se baixas permeabilidades são claramente problemáticas para as dinâmicas socioeconômicas, altamente dependentes de mobilidade, permealibilidades altas demais impactam a proporção entre áreas de ocupação e atividade (quarteirões) e de 172

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movimento (rede de ruas), e consequentemente a densificação e compacidade, e a centralidade e intensidade de interações na cidade. Continuidade da rede espacial: captura a importância de redes com fluidez, visibilidade e alta conectividade de suas ruas: sistemas viários com baixa descontinuidade de seus caminhos internos têm redução em suas distâncias internas e ganhos de acessibilidade, mobilidade e inteligibilidade, com possíveis efeitos sobre outras propriedades urbanas como a eficiência dos padrões de localização e centralidade, e sobre formas de desempenho de equidade e eficiência urbanas. A aferição interna da continuidade da rede substitui indicadores mais simples, voltados para a relação entre perímetro urbano e sua área interna. Mobilidade: relaciona acessibilidade topológica, distância métrica interna (dependente da compacidade) e alcance por meio pedestre e veicular (vinculada com a disponibilidade de transportes). INDICADORES DE INFORMAÇÃO ESPACIAL Verificam a relação cognitiva entre agente, morfologia urbana e graus de inteligibilidade da rede espacial, e os conteúdos práticos e semânticos de seus espaços edificados como informação espacial para a navegabilidade e como meio para o conhecimento social dos agentes sobre atividades sendo produzidas por outros agentes (o conhecimento do sistema social e econômico local). Indicadores de informação espacial são relevantes na análise das dinâmicas de apropriação do espaço e do crescimento urbano (como aspectos de reforço à interatividade e à auto-organização dos agentes), e analogamente, na análise da eficiência e sustentabilidade urbanas. Identidade: explicitamente vinculada com a leitura cognitiva, analisa a extensão do sistema de espaços públicos de uma cidade que está sob o controle da sua estrutura primária, supondo que ela ancora os processos de cognição espacial e navegação urbana. Capacidade informacional: capacidade de difusão de informação sobre atividades e agentes produzida e contida na estrutura da cidade (Faria &Krafta, 2003). INDICADORES DE MORFOLOGIA LOCAL FRENTE A TENDÊNCIAS GLOBAIS URBANAS Considerando o número de variáveis espaciais constituintes da morfologia urbana e seu grau de interdependência, é relevante expandir a análise do desempenho de morfologias gerais da cidade ao exame das características “microestrututurais” do tecido urbano, a fim de capturar comportamentos locais e relacioná-los ao comportamento global urbano. Naturalmente, modificações na escala local apresentam-se como manifestações de tensões produzidas nas dinâmicas globais na cidade (como as tendências de adensamento, de atividade ou distribuição de tráfego menor ou maior em certas áreas). Modificações locais (adensamentos em lotes e quarteirões, trocas de usos, mudanças na configuracao das ruas, reconexões), por sua vez, têm impactos sobre dinâmicas globais em vários aspectos: mobilidade e limiar de mobilidade, diversificação de usos, consolidação e modificações na hierarquia de centralidades etc. Os indicadores mais adiante apresentam propriedades de relacionamento entre escalas. Quanto ao universo dos indicadores, há um considerável potencial para inovação neste item: instrumentos existentes tendem a focar nessas diferentes escalas como independentes, sem retroalimentação – tanto em modelos de produção do espaço (quando tendências globais de centralidade, densificação e atratividade irrompem como novas edificações) como em modelos de análise de estado. A análise do desempenho da morfologia em âmbito local permite estender tendências espaciais R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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7 Naturalmente, esse grau de análise não pode ser considerado na escala geral da cidade, por razões de volume de dados e pertinência da informação.

verificadas na escala global (como densificação ou expansão) ao seu item constitutivo: a constituição do edifício, lotes e quarteirão.7 O indicador também oferece a possibilidade de avaliação da capacidade de tecidos locais prevendo limiares de ocupação e compactação em função tanto da capacidade edilícia dos lotes e quarteirões como das condições de sua habitabilidade, que pode retroalimentar a análise de compacidade global da cidade, seus limites e seus efeitos sobre suas dinâmicas. Continuidade da forma construída: relaciona as superfícies construídas e a extensão das vias públicas, assumindo fachadas como suporte ao uso de pedestres e ocupação de térreos por comércio e serviços. É relacionada com a eficiência do espaço edificado em relação à rede pública como cenários para troca social e econômica. Vida microeconômica: análise da morfologia das implantações edificadas quanto a seu potencial para oferta de serviços; analisa o grau de suprimento e oportunidades de serviços em raio de alcance pedestre; como indicadores de desempenho microeconômico (Netto, 2008a). Socialidade: análise da morfologia das implantações quanto a seu potencial para estimular o uso pedestre do espaço público, com possíveis benefícios, como aumento de segurança pública (Jacobs, 2000; Hillier & Sahbaz, 2005), constituindo um indicador de comportamento social do espaço urbano (Netto, 2008a). A relação destes indicadores com indicadores usuais de desempenho de habitabilidade urbana (sombreamento, ventilação, conforto sonoro etc. – veja Ratti et al., 2003) como outro limiar importante na ocupação também qualifica a análise da morfologia local. A análise local, alimentada pela consideração global da cidade, é útil sobretudo no teste de cenários possíveis – incluindo o impacto de decisões de planejamento sobre a densidade e ocupação em trechos da cidade ou sobre a cidade como um todo. INDICADORES DE DINÂMICA SOCIOECONÔMICA Uma série de indicadores permite a análise de estado da relação entre agentes intrinsicamente mediados pelo espaço, na instância da reprodução social. Centralidade: identifica gradientes de diferenciação espacial no interior das cidades, correspondentes a gradientes de intensidade de atividades urbanas diversas como os fluxos viários e de pedestres, atividade comercial etc. – relações estruturais entre configuração e distribuição espacial de atividades urbanas. Usos do solo adicionam à configuração espacial um fator de centralidade específico, diferente para cada atividade, o que deve ser considerado quando se procura descrever centralidade urbana (Krafta, 1994; Palma & Krafta, 2001; 2007). Convergência: indicador de distribuição potencial de usuários de um determinado serviço em relação a seus diversos pontos de oferta, baseados no critério de localização espacial, em uma análise direcionada que considera apenas os pares de unidades espaciais que tenham como origem as localizações residenciais e como destino as que ofertam o serviço em questão. Denota o poder de cada ponto de oferta de serviço para capturar proporções de usuários distribuídos irregularmente no espaço urbano (Krafta, 1997). Oportunidade: indicador do privilégio locacional residencial, relativamente a um serviço ou conjunto de serviços. Relaciona-se fortemente com a análise de equidade e eficiência urbanas, ao descrever as facilidades de acesso de cada ponto de localização residencial a um sistema de serviços existente. A população é analisada em suas localizações urbanas (trecho de quadra ou esquina) e serviços detalhados por porte, atratividade, complexidade e tipo. Faz uso de uma análise direcionada (origens e destinos especificados), 174

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incluindo mobilidade de cada residente e atratividade de cada serviço. Relaciona cada localização residencial a todos os serviços localizados no alcance do residente, utilizando a distância e a atratividade como variáveis discriminantes (Krafta, 1997). Polaridade: efeito de um determinado uso do solo ou, mais especificamente, um determinado equipamento urbano, sobre a centralidade urbana. O indicador tensiona o tipo de equipamento em relação a todos os consumidores possíveis, carregando os espaços até eles, acumulando mais em certos espaços, mais bem servidos do que em outros (Krafta, 1997). Segregação dinâmica: grau de sobreposição das redes sociais de diferentes classes ou grupos sociais no espaço urbano, considerada através das movimentações e padrões de apropriação do espaço típicas dessas categorias, incluindo atratores e a rede espacial (Netto & Krafta, 1999; Netto, 2010). Mobilidade: indicador que vincula acessibilidade topológica, distância métrica interna (dependente da compacidade) e alcance por meio pedestre e veicular (vinculado com a disponibilidade de transportes). INDICADORES DE LIMIAR Verificam a capacidade do sistema urbano (a estrutura espacial e suas relações às redes de agentes) para absorver e rearranjar-se diante de mudanças em um e em outro sistema, ou flutuações nas interações com ambiente, região ou macroeconomia. Não se trata de um indicador de “grau de ordem” ou “estabilidade,” mas da capacidade do sistema de reagir frente à natural desestabilidade dinâmica das ações de agentes em relação ao sistema de localizações de atividades e o estado de redes espaciais. Os indicadores de limiares urbanos operam com os principais indicadores de dinâmicas socioeconômicas, tais como centralidade, relacionados de forma a capturar explicitamente indícios de auto-organização e emergência de padrões urbanos face a limiares de criticalidade. Incluem, entretanto, aspectos específicos, a saber: Tensão estrutural: intensidade de atividade urbana, definida com base na configuração e no uso do solo. Seria lógico supor que lugares de maior centralidade coincidissem com os de maior acessibilidade, já que esta denota potencial para centralidade, mas essa relação apresenta dissonâncias. O indicador considera a correlação entre as posições dos espaços num e noutro núcleo, particularmente em cidades onde o crescimento é mais intenso. Auto-organização: habilidade do sistema urbano em responder a forças desestruturadoras e retomar suas dinâmicas uma vez perturbado; é a capacidade de absorver transformação. O indicador demanda conhecer relações causais entre estímulos e seus efeitos no urbano, e a maneira como ele absorve tais estímulos e se rearranja espacialmente e/ou socialmente. Limiares de morfologia: verificam o grau de saturação dos espaços para substituição e adensamento; centralidade verifica limiares de centralidade e possibilidade de emergência de novas centralidades urbanas; e mobilidade vincula qualidades espaciais de acessibilidade, continuidade da malha e mobilidade considerando limiares de saturação face à capacidade das vias e quantidade de veículos. INDICADORES DAS RELAÇÕES CIDADE–AMBIENTE Avaliam o grau de uso e de externalidades do uso de recursos energéticos na reprodução e produção urbana (risco extração indiscriminada, não sustentável), e as externalidades negativas oriundas das interações entre sistema de agentes e sistema espacial (espaço consumido em urbanização e impactos negativos da expansão sobre o natural; R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N OV E M B RO 2 0 0 9

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poluição etc.). A representação do sistema ambiental se dá por valores de recursos disponíveis que alimentam o sistema urbano, e as externalidades dos processos urbanos sobre o ambiental. Interessa aferir esses aspectos da dependência entre ambos do ponto de vista da dinâmica urbana. Avalia recursos a serem consumidos na reprodução urbana, como: • a relação entre espaço, crescimento e consumo de áreas não urbanas (Polidori e Krafta, 2004); • os recursos e energia usados pelo sistema urbano (disponibilidade, custo de recursos e limiares); • as externalidades ambientais negativas das dinâmicas urbanas, como efeitos como a poluição, que passam a prejudicar o comportamento dos agentes e do sistema urbano.

COMBINAÇÕES: OS METAINDICADORES DE DIMENSÕES URBANAS E CATEGORIAS DE DESEMPENHO Os indicadores do sistema de análise urbana devem ser usados de forma independente pelo planejador, permitindo analisar ora um aspecto específico (digamos, o grau de acessibilidade global de uma cidade ou de ruas em particular), ora uma dimensão do urbano (como o indicador de morfologia ou de qualidade espacial), ora categoria de desempenho urbano (como o grau de sustentabilidade urbana envolvendo os itens anteriores e outros). Devem ainda permitir aplicação de forma relacional (como a verificação de graus de acessibilidade como fator de sustentabilidade urbana). Devem, portanto, ajudar o planejador a obter respostas bastante diretas a questões como “o quanto um aumento na compacidade aumentaria a qualidade espacial ou a eficiência geral do sistema urbano em questão”. A composição da coleção de indicadores em metaindicadores referentes às categorias de desempenho e às dimensões urbanas se dá através de ponderações baseadas em médias harmônicas dos seus indicadores específicos (Tabelas 1 e 2).

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Identidade Capacidade informacional

INFORMAÇÃO ESPACIAL

Continuidade forma Microeconomia Socialidade Habitabilidade

Centralidade Convergência Oportunidade espacial Polaridade Segregação dinâmica Mobilidade

Limiares Morfologia Centralidade Mobilidade

Auto-organização Resiliência

Sustentabilidade urbana

Consumo áreas Consumo recursos Externalidades negativas

Cidade-ambiente

Qualidade espacial Compacidade Acessibilidade etc. Equidade Mobilidade Segregação Eficiência Centralidade Oportunidade espacial etc. Criticalidade Tensão estrutural Auto-organização Limiares Cidade-ambiente Consumo áreas Consumo recursos Externalidades negativas

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Compacidade Acessibilidade Profundidade topológica Distributividade Permeabilidade Continuidade rede espacial Mobilidade

GLOBAL

Criticalidade

Centralidade Oportunidade espacial Convergência Interatividade de redes Tensão estrutural Compacidade Continuidade de rede espacial Acessibilidade Mobilidade

Tensão estrutural

Oportunidade espacial Acessibilidade Mobilidade Segregação espacial

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Indicadores específicos

Compacidade Acessibilidade Profundidade topológica Distributividade Permeabilidade Continuidade rede Mobilidade Identidade Navegabilidade Capacidade inform. Continuidade de forma Microeconomicidade Socialidade Habitabilidade

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Tabela 2 – Dimensões urbanas como metaindicadores urbanos e seus indicadores componentes Dimensão urbana Morfologia Dinâmica socioeconômica

Indicadores específicos

Tabela 1 – Categorias de desempenho como metaindicadores urbanos e seus indicadores componentes Metaindicador de desempenho Qualidade espacial Equidade Eficiência

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CONCLUSÃO: O DESENVOLVIMENTO DE UM MÉTODO DE ANÁLISE

Vinicius M. Netto é professor adjunto da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: vnetto @vm.uff.br. Romulo Krafta é professor titular da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR), e pesquisador do CNPq. E-mail: krafta @ufrgs.br. Artigo recebido em maio de 2009 e aprovado para publicação em setembro de 2009.

O modelo conceitual para um sistema de análise de desempenho baseado em indicadores de fatores relacionados prevê o desenvolvimento quantitativo dos indicadores apontados. Os metaindicadores serão construídos a partir da síntese matemática dos seus indicadores específicos componentes, cuja formulação encontra-se disponível com os autores. Alguns dos indicadores propostos serão objeto de tradução quantitativa no estágio seguinte de pesquisa. Em razão da complexidade das propriedades analisadas e a natureza e volume de suas intensidades, a pesquisa envolve a construção de uma arquitetura de indicadores sistêmicos na forma de método computacional, já em desenvolvimento com base nos estudos do grupo de pesquisa. Há ainda possibilidade de indicadores mais dirigidos, por exemplo, ao comportamento das redes sociais ou ao desempenho de trechos de escala local em uma cidade, a serem exploradas em estágio posterior da pesquisa, tal como de interatividade social, apontando as características das redes sociais urbanas (graus de conectividade, intensidade de interações efetivas e transmissão de informação nas relações sociais ou microeconômicas, como nas redes de produção e de oferta-consumo) como item vital para a auto-organização, eficiência e sustentabilidade do sistema urbano, por capturar a efetivação, na forma de interações, da capacidade de informação e de mobilidade latentes no sistema urbano. O uso dos indicadores deve ser, entretanto, implicado: o método deve ser útil para demonstrar possíveis relações de causalidade, como as hipóteses referentes aos efeitos de aumentos na compacidade urbana (Tabela 3).

Tabela 3 – Exemplos da influência de características capturadas por indicadores específicos sobre metaindicadores Indicador específico Indicador dependente Dimensão urbana Categoria desempenho ↑

compacidade ?





compacidade

↑ ↓



compacidade [limiar]



morfologia

centralidade



dinâmica

habitabilidade



morfologia



qualidade eficiência ↑ sustentabilidade ↑ eficiência ↑ sustentabilidade ↓ qualidade ↓ sustentabilidade ↑

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B S T R A C T The present work proposes concepts and indicators intended to grasp features and effects of urban form; in fact, systemic indicators defined to tackle cityscapes as relational processes whose constituents are pervaded by mutual effects. Firstly, it brings a critique of indicators found in the literature, asserting that most indicators are feature indicators rather than performance indicators. Secondly, it advances theoretical and methodological grounds for new indicators geared to assess the impacts of urban structure on aspects of social life, equity in the access to jobs and facilities, the efficiency of locational patterns in economic interactions, and the sustainability of urban reproduction. Thirdly, a new set of indicators is proposed and arranged in two major groups: (i) performance indicators (spatial quality, urban equity, efficiency and sustainability), and (ii) meta-indicators for urban dimensions (general indicators of urban morphology, socioeconomy, criticality, and cityenvironment relations). Finally, the paper discusses possibilities of application and further development, and brings mathematical definitions of the systemic indicators.

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E Y W O R D S

Urban performance; systemic indicators; criticality.

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R ESENHAS

PHILIP GUNN – DEBATES E PROPOSIÇÕES EM ARQUITETURA, URBANISMO E TERRITÓRIO NA ERA INDUSTRIAL Telma de Barros Correia (Org.) Annablume, FAPESP, São Paulo, 2009

Celso Monteiro Lamparelli Professor titular da FAU-USP

O livro Philip Gunn – Debates e proposições em arquitetura, urbanismo e território na era industrial, organizado por Telma de Barros Correia, professora do Curso de Arquitetura da EESC-USP, apresenta cinco textos dentre os inúmeros produzidos por Philip Gunn, professor titular da FAU-USP, que nos deixou prematuramente. As leituras da “Apresentação”, “Philip Gunn: uma trajetória intelectual”, e do “Prefácio”, “O século XX como objeto de história ou Phil e as três estrelas”, escritos respectivamente pela organizadora e pela professora da Faculdade de Arquitetura da UFBA, Ana Fernandes, nos comoveu profundamente, e certamente isso acontecerá com os demais amigos que também sentem sua falta. Os títulos do livro e dos seus capítulos são claros, precisos e representam, admiravelmente, os principais interesses de Philip Gunn como pesquisador, professor e viajante incansável. Os leitores encontrarão em cada um deles, os resultados das cuidadosas pesquisas em múltiplas fontes, documentos, entrevistas e observações diretas que passaram pelo crivo de suas posições teórico-metodológicas e interpretação crítica. Os dois primeiros capítulos, “O paradigma da cidade-jardim na via fabiana de reforma urbana” e “As querelas do urbanismo nos anos vinte e trinta”, retomam temas bastante explorados, mas são inovadores, e representam valiosas contribuições para a historiografia de dois períodos marcantes nos processos de urbanização induzidos pela industrialização. O primeiro capítulo procura situar os movimentos de reforma urbana nas Ilhas Britânicas com destaque para a contribuição da Sociedade Fabiana e suas propostas nas dimensões política, fiscal e administrativa, além de incorporar uma análise dos modelos utópi-

cos das cidades-jardins de Ebenezer Howard. Mas, ao apresentar a “noção de uma via fabiana de reforma urbana”, o autor ressalta: “Este artigo, entretanto, não pretende passar a ideia de que o projeto de cidadejardim de Howard se transformou numa utopia especificamente Fabiana, apesar de vários autores citarem Howard, Unwin e Parker como fabianos” (p.19). O texto também salienta o papel do paradigma da reforma urbana defendido pelos adeptos da posição socialista da Sociedade Fabiana, com ênfase nas funções regulatórias do Estado. Disserta com mais detalhes como as novas exigências do novo mercado de trabalho no capitalismo fabril, mesmo não dispensando o “saber fazer” dos operários, altera as relações entre capital e trabalho na Inglaterra e na Europa. Dedica algumas páginas às mudanças do modo de produção industrial, à nova relação capital–trabalho, à revisão do saber e das práticas urbanísticas e à história do movimento socialista britânico. Como aprofundamento do seu olhar para a trama da história, na passagem do século XIX para o XX, abre o subtítulo “As raízes de economia política no paradigma da cidade-jardim”, em que realiza uma excelente revisão da literatura sobre a época, demonstrando sua erudição e suas preferências. O eixo da argumentação continua sendo a evolução da Sociedade Fabiana como movimento socialista atuando em múltiplas questões, inclusive na reforma urbana em pleno desenvolvimento. Nos subtítulos “Versões fabianas da renda de terra” e “A herança fabiana e Letchworth como ‘ponto de virada’”, Philip Gunn revisita as discussões e posições das diferentes correntes de pensamento, o que nos proporciona poder apreciar a indissociação entre história e arquitetura presente em Gunn – como o arquiteto se torna historiador. Ao recuperar a gênese do planejamento urbano neste primeiro capítulo, o leitor pode sentir o peso da complexidade contida num simples modelo, cidadejardim, que aprendemos a admirar e discutir desde os primeiros sonhos de estudante. No segundo capítulo, “As querelas do urbanismo nos anos vinte e trinta”, a narrativa deixa para traz a Primeira Grande Guerra e, para demonstrar a posição de recuo em relação ao paradigma da cidade-jardim, inicia com um trecho da conferência de Philip Arctander no XXXI Congresso Mundial da IFHP (International Federation of Housing and Planning): “Planeja-

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mento não é um plano, planejamento é um processo. O planejador não faz ‘os canais em que a vida flui’…”. Esta citação representa o fim do ciclo de racionalidade mecanicista, incitando o debate entre as duas principais posições, separadas pelo Canal da Mancha, sobre urbanismo e planejamento urbano no interregno das duas Grandes Guerras. A pesquisa bibliográfica realizada permite ao autor uma penetrante interpretação das trajetórias históricas das duas posições: • a do projeto da cidade-jardim que se difunde em diferentes modos de realização nas primeiras décadas do século XX e se incorpora a outras realizações dos profissionais de Town-Planning organizados no International Federation for Town and Country Planning and Garden Cities (IFTPGC). Esta análise pormenorizada pode ser apreciada nos sete primeiros subitens dedicados a este projeto em suas gêneses, complexidades, múltiplas formas de aplicação e desdobramentos nas práticas urbanísticas nos países sob influência britânica; • a do Movimento da Arquitetura Moderna com suas propostas urbanísticas difundidas pelos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs) e aplicadas pelos seus associados, tema tratado nos últimos três subitens. Para terminar o capítulo o autor reafirma sua crítica: “No CIAM o mecanicismo do século XIX chegou a um novo patamar. Sua ascendência no fim dos anos trinta abre e prepara o caminho para o reino dos sistemas nos planejamenteiros dos anos quarenta e cinqüenta”. O terceiro capítulo, “Frank Lloyd Wright e a passagem para o fordismo”, o autor explicita uma inusitada interpretação da vida e obra do grande arquiteto americano, cujos objetivos são assim resumidos: “A própria tentativa de uma leitura da obra de Wright através da Escola da Regulação representa uma ruptura com as interpretações existentes baseadas na teoria da urbanização. Esta ruptura constitui o objeto da primeira parte deste artigo, enquanto a aplicação dos conceitos da Escola da Regulação à obra de Wright é discutida ao final” (p.81-2). Inicialmente apresenta a Escola da Regulação como objeto teórico e, posteriormente, sua aplicação nos dois principais períodos da história econômica dos Estados Unidos: o período anterior à grande crise dos anos trinta dominado pelo processo extensivo de acu184

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mulação capitalista, e o período após os anos trinta, com a predominância da forma intensiva da acumulação capitalista. Na mesma dicotomia, são desenvolvidas as posições e atuações de Wright, inicialmente com os argumentos pró-agrários e as críticas às grandes cidades. O capítulo introduz o princípio da fronteira e do materialismo geográfico como bases fortes da ideologia dominante na passagem do século XIX para o XX e seu enfraquecimento a partir dos anos trinta, preparando as mudanças de posição de Wright num segundo período, que o autor interpreta como: “O caminho para a acumulação intensiva iria encerrar outras tantas críticas socialmente conservadoras, contudo, o que deve ser ressaltado é a maneira como Frank Lloyd Wright também viria igualmente a ser porta-voz de outros aspectos do novo modo de acumulação” (p.93). As mudanças de Wright são comprovadas no seu discurso, nos projetos e obras como a proposta utópica da Broadacre City, e das casas pré-fabricadas usonianas. Em “Transições no planejamento modernista de fábricas em São Paulo, 1945-1955: a influência das ideias de projetos inglesas e americanas” concentra-se na história da arquitetura fabril, desenvolvida em regiões de maior crescimento da indústria paulista na fase de transição dos prédios tradicionais para os projetos modernos das grandes indústrias. Nos esforços de guerra, as indústrias inglesas e americanas aceleraram suas produções e acumularam experiências, dando origem à expressão “enxuta e eficaz” para qualificar a excelência dos prédios industriais. O autor recupera grande parte dessas experiências, mostrando o amadurecimento das concepções fordistas para a aceleração da produção. Com inúmeras citações, referências bibliográficas e ilustrações, o capítulo propicia um enriquecimento da historiografia da arquitetura fabril. Mais uma vez Gunn mostra sua maneira abrangente de conduzir suas pesquisas e seu método de expor um problema: em 35 páginas são concatenados desde os fatos das práticas do projeto, os sistemas construtivos, a eliminação das atividades de recreação nos programas das fábricas, até as novas relações de salário e as particularidades do “fordismo” brasileiro em São Paulo. O quinto capítulo, “A indústria automobilística nos anos recentes: as inflexibilidades da globalização”, desloca o objeto de estudo para fins de século XX. No subtítulo inicial, “Mudança nos termos de um debate”,

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o texto prepara a análise desenvolvida no segundo subitem “A geopolítica de ‘globalização’ na década de 1980”. Um parágrafo (p.142) resume os objetivos deste capítulo: “Neste trabalho analisam-se três temas, necessários para uma compreensão dos problemas enfrentados na indústria automobilística brasileira e particularmente nos segmentos sediados no município de São Bernardo do Campo. Em primeiro lugar a globalização da produção; em segundo lugar as aplicações de modernização tecnológica com novos modos de organização do trabalho; e em terceiro lugar as inovações nas relações empresariais e nas relações empresa/governo”. Estes três temas estão presentes de uma forma ou outra nos cinco textos escolhidos para o livro objeto desta resenha e, mesmo sendo tratados em épocas e países diferentes, explicitam as preocupações e as linhas de pesquisa do colega e amigo Phil, cujos resultados fazem parte do grande legado que nos deixou.

VIVER EM RISCO – SOBRE A VULNERABILIDADE SOCIOECONÔMICA E CIVIL Lúcio Kowarick São Paulo: Editora 34, 2009 Cibele Saliba Rizek Profa. livre docente do Depto. de Arquitetura e Urbanismo da USP/São Carlos e pesquisadora do CNPq

Este livro se dedica a descrever e analisar a vulnerabilidade ou, mais precisamente, as vulnerabilidades que caracterizam as condições de vida da população pobre da maior cidade brasileira. Produzido a partir de uma longa trajetória de pesquisa e reflexão, é uma fonte preciosa de informações, mas também de questões que se repõem a cada capítulo, nos quais se ancoram conceitos e dimensões teóricas como matrizes que podem e devem ser interrogadas, merecer contrapontos, passar pelo crivo dos processos e das dinâmicas observadas e, assim, em confronto com o presente, passar por atualizações. São velhas e novas questões relativas à heterogeneidade da pobreza urbana, da população vulnerável, nomeada e observada de perto por meio das situações de moradia precária – cortiços na área central, periferias autoconstruídas e favelas.

Lúcio Kowarick, como se sabe, tem um lugar único por sua longa e fértil trajetória na pesquisa e na elucidação dos enigmas urbanos brasileiros. Não é demais lembrar, entre outros títulos, São Paulo – 1975. Crescimento e pobreza (Camargo, C. P. F.; Cardoso, F. H.; Kowarick, L. et al., São Paulo, Edições Loyola, 1976), A espoliação urbana (São Paulo, Editora Paz e Terra, 1980) ou Escritos urbanos (São Paulo, Editora 34, 2000), em que algumas das questões presentes em Viver em Risco já estavam se desenhando. Mas se Escritos urbanos apontam temas e desdobramentos cujos pontos de inflexão constituem uma coletânea de ensaios sobre os temas então emergentes, na virada do milênio, Viver em risco traz um novo panorama. Parte dos achados do livro é resultante de incursões etnográficas que fornecem os elementos e informações analisados a partir de uma ancoragem histórica, assim como de uma visão sociológica construída, inclusive, com base em informações estatísticas secundárias. Este cruzamento de fontes de pesquisa permitem que as três situações urbanas – cortiços, favelas e periferias – ofereçam, com a ajuda das fotografias de Antonio Saggese, um quadro muito preciso do que significa viver em risco na São Paulo de nossos dias. Se as etnografias são inéditas, parecem instigar também novas incursões no debate sobre as vulnerabilidades e a pobreza, novas proposições para duas articulações teórico-conceituais – a norte-americana e a francesa – como horizontes que propõem ângulos de visão e formas de inserção e de diálogo entre a produção acadêmica, a ordenação social e as proposições políticas. Os ecos e ressonâncias destes contrapontos também se fazem sentir na produção brasileira, quer graças a essas literaturas e à sua utilização em pesquisas e investigações empíricas, teses e dissertações, publicações, quer porque, imersas em nossas especificidades, as questões relativas ao vínculo entre produção acadêmica, ordenação social e proposições políticas tenham passado por redefinições e inflexões nesse último decênio, o que também redesenhou legitimidades, constituiu novos consensos ou novos modos de encapsulamento e isolamento da reflexão sobre as cidades, para além das práticas e dos modos mais ou menos imediatos de gestão urbana. Assim, o livro recoloca os dois grandes feixes de leitura da pobreza urbana e de suas vulnerabilidades, tal como se se redefiniram depois do esgotamento das sociedades salariais constituí-

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das ou imaginadas como horizonte a ser alcançado: a discussão americana, pautada pela individualização e pela ótica da culpabilização das vítimas, mais ou menos moduladas pelo debate entre conservadores e liberais; e, por outro lado, a discussão francesa em torno da responsabilização do Estado pelas formas da “exclusão” e pelo seu combate, contra o que se identificou como fratura social ou desfiliação. Uma ascensão conservadora em torno das responsabilidades individuais como contraponto ao Estado do bem-estar, por um lado – o que de resto se comprova nas dificuldades recentes em alterar o sistema de saúde pública nos EUA –, e, por outro, a forte tradição republicana apoiada nas virtudes cívicas e na solidariedade em torno do Estado como elemento central, também bastante alquebrada e questionada pelo governo Sarkozy, entre outros, na França, demonstram a importância estratégica desse debate. Apontam também para um embate entre perspectivas distintas e ao mesmo tempo distanciadas das matrizes explicativas da vulnerabilidade socioeconômica e civil na sociedade brasileira e na cidade de São Paulo, em particular. A vulnerabilidade brasileira e paulistana, analisada no Capítulo 2, nem se vincula estreitamente à matriz norte-americana, nem à francesa. Está emoldurada pela superação de um déficit de democracia política e pela longa e persistente permanência de um déficit de direitos civis e sociais. Lúcio Kowarick, na procura da caracterização de nossa especificidade, remonta o debate brasileiro, desde a questão da marginalidade e de seus desdobramentos e articulações com a teoria da dependência, passando pelas críticas e desdobramentos em torno das questões do chamado “desenvolvimento dependente”, das formas de exclusão e inclusão perversa e funcional, instável e precária. Uma citação parece dar o tom dessa recuperação dos marcos teóricos em suas atualizações brasileiras e latino-americanas: “se o socialismo saiu do horizonte dos ideais e das utopias e se, ademais, a ideia de revolução perdeu força mobilizadora porque, entre outras razões, como Saturno, ela tem devorado seus filhos, permanece o vasto fosso que caracteriza o apartheid social de nossas cidades” (p.75). Entre as “experiências de derrota” e a mentalidade de extermínio, as estratégias de evitação, a desconfiança e o medo como elementos estruturadores da sociabilidade, Lúcio Kowarick nos apresenta uma pergunta que desenha diálogos e confrontos entre perspectivas: 186

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“quais discursos e ações dão conteúdo às questões sociais de nossa atualidade urbana em torno da problemática da desigualdade e injustiça?” (p.95). Insatisfeito com as versões que explicam essa atualidade a partir de uma espécie de maldição de origem essencializada em um ethos de tristeza, cordialidade, miscigenação e conciliação, persegue as questões de pesquisa a que se propôs enfrentar, em busca de algumas respostas e de novos desafios que tragam para o primeiro plano os modos de vida da população em situações de vulnerabilidade urbana, o que permite apreender um movimento pendular entre o reconhecimento de permanências e a constatação de sinais de transformação. O primeiro feixe de questões, itinerários e personagens se desenha a partir do centro da cidade de São Paulo e de seus cortiços. Nômades urbanos, andarilhos de lugar em lugar, de emprego em emprego, de cortiço em cortiço, em contiguidade com migrantes que constituíram famílias e se instalaram de modo um pouco mais estável em casas de cômodos, a questão da proximidade que caracteriza a moradia no centro ganha nitidez. Potencialidades e vulnerabilidades, políticas urbanas moldadas por diferentes concepções – que ora enfatizam a participação ora a delegação –, além das fotografias que flagram fluxos e situações da cidade, permitem que a experiência de seus moradores, flagrada em sua história, em suas dimensões sociológicas e etnográficas, tomem corpo. A periferia e as moradias autoconstruídas são objeto do capítulo seguinte, sua constituição como momento da história da cidade e como conformação territorial comparece acompanhada de seu duplo – a casa própria autoconstruída e seus significados. Ao gosto e de certo modo como uma necessidade da estrutura narrativa e de análise, o capítulo termina com um pergunta – vale a pena construir? – e muitas respostas complexas, difíceis, variáveis, “mas, na opinião daqueles que entraram neste espoliativo processo, no final das contas, por vários motivos, se chega a uma opinião favorável: apesar de todos os pesares” (p.219). O Capítulo 5 discute a forma mais recente de moradia popular na cidade – as favelas. É preciso observar que favelas e periferias são lugares de algum estranhamento recíproco, ainda que se aproximem crescentemente, tanto territorialmente quanto como modos de inserção urbana. Alvo de políticas públicas e de intervenções as mais variadas, portadoras de estigmas e

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objeto de violência simbólica e real, as favelas são a forma de moradia de algo como 8,7% da população da cidade. Entre urbanizações e remoções, entre ter e não ter direitos, ter e não ter a propriedade do terreno, esta população bastante heterogênea se equilibra, ora se estabelecendo, ora – quando possível –, desejando se mudar. Nos três capítulos sobre as situações de moradia e de vulnerabilidade uma questão se faz presente, atravessando práticas, discursos e formas de um saber que nasce no solo dessas experiências. Trata-se das dimensões da violência, frequentemente agravadas pela imposição do silêncio, que modulam relações e modos de vida com seu crescimento. Na percepção de vulnerabilidades e de violências, na experiência do desrespeito e na denegação do reconhecimento e dos direitos, ganham corpo as heterogeneidades, as vantagens e desvantagens das situações de moradia e de inserção urbana daqueles que vivem em risco, que vivem na corda bamba na maior e mais rica cidade brasileira. Uma última referência dá concretude ao título deste livro indispensável para quem deseja conhecer as quebradas, a viração, os modos de morar das classes populares da cidade de São Paulo: em todas as situações de pesquisa (loteamentos, favela e cortiços), “os entrevistados conhecem o local onde estão os bandidos... tiveram parentes próximos assassinados, viram pessoas mortas pelas ruas e todos sabem onde se localizam os traficantes... Também as crianças não são poupadas, pois se falasse o assassino ‘vinha me pegar’, diz o menino de sete anos (...) são trabalhadores que evitam e temem a presença de criminosos, pois sabem do perigo de ser atingido pelas balas ou ser confundido pelo arbítrio da ação policial: a sensação de ‘viver em risco’ é algo arraigado no cotidiano das pessoas, principalmente nos locais ermos, mal iluminados, onde a política só chega depois do crime” (p.297). Depois de descrever este viver em risco, como alguém que acompanhou e analisou os movimentos sociais da cidade, Kowarick conclui seu livro com um aceno menos sombrio: “É de esperar que a ‘experiência do desrespeito’... venha a se constituir na matéria-prima de resistência e lutas coletivas que façam os grupos escanteados escaparem da vulnerabilidade socioeconômica e civil que caracteriza o cotidiano de suas existências” (p.301). Talvez o tom de aposta traga uma esperança e um quê de nostalgia de um autor fiel aos temas e questões que brotam da experiência social na cidade e da cidade de São Paulo. R . B . E S T U D O S U R B A N O S E R E G I O N A I S V. 1 1 , N . 2 / N O V E M B RO 2 0 0 9

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