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REVISTA PORTUGUESA DE FILOSOFIA ALETHEIA - Associação Científica e Cultural Faculdade de Filosofia de Braga Praça da Faculdade, 1 4710-297 BRAGA Portugal www.rpf.pt

Author's Personal Copy A Natureza Humana: Obsoleta ou Civilizada? DANIEL SERRÃO*

Resumo Ensaio expositivo e interpretativo das perguntas sobre a natureza humana e das respostas que o pensamento moderno, em Merlin Donald e outros, vai dando. A perspetiva fisicalista, neurobiológica, é analisada a partir de Joseph LeDoux, e outros, comentando as suas teses principais. É dada ênfase particular à evolução das capacidades da mente humana na transição da cultura mimética para a cultura oral, a criação mítica e o advento da escrita e das outras formas de cultura exterior simbólica. Na crítica ao monismo fisicalista é discutido o que se pode entender por qualia e de que modo este entendimento justifica a aceitação de um “hiato explicativo” como o pensam Urbano Sidoncha e outros autores. É abordada a relação entre Pensamento e Linguagem a partir de Lev Vygotsky. Considerando a ética como um qualia procura-se fixar, empiricamente, a diferença entre ética e eticidade como contraponto à diferença entre autoconsciência e consciência cognitiva. Como proposta final é apresentada uma pergunta radical e oferecida uma temerária resposta sobre o possível conhecimento total da natureza humana. Palavras-chave : autoconsciência, consciência, ética, palavra, qualia

Abstract Expository and interpretive essay of the questions on human nature and the responses that modern thought, in Merlin Donald et al., has been producing. The physicalist, neurobiological perspective is analysed as from Joseph LeDoux et al., by commenting on his main theses. Particular emphasis is given to the evolution of the human mind’s capacities in the transition from the mimetic culture to the oral culture, the mythical creation and the advent of writing and the other forms of external symbolic culture. In the critique of the physicalist monism, one discusses what can be understood by qualia and how this understanding justifies the acceptance of an ‘explanatory hiatus’ such as Urbano Sidoncha and other authors think. The relationship between Thought and Language, as from Lev Vygotsky, is addressed. Considering ethics as a qualia, one tries to establish, in an empirical way, the difference between ethics and ethicity in contrast to the difference between self-consciousness and cognitive consciousness. As a final proposition, an extreme question is raised and a daring answer is put forward on the possible full knowledge of human nature. Keywords : awareness, consciousness, ethics, qualia, word

* Instituto de Bioética. Universidade Católica Portuguesa.

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1. Introdução

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interrogação do subtítulo não é, hoje, despicienda ou banal. Nas quase quinhentas páginas do livro no qual Harold W. Baillie e Timothy K. Casey1 reuniram catorze contribuições de especialistas em ciências humanas e sociais, é discutido o cerne da questão de uma futura natureza humana já que a atual parece estar a ficar obsoleta. E Elkhonon Goldberg2 desenvolve o conceito de mente civilizada como a marca da natureza humana atual. Mas é Merlin Donald3,4 quem explica a evolutividade da natureza do Homem e caracteriza a relação das capacidades cognitivas cerebrais com a forma como a natureza humana se constrói e se manifesta, no tempo. Num registo mais neurobiológico que antropológico, Joseph LeDoux5 considera que a natureza humana, who we are, é uma simples (?) consequência da forma como os neurónios, em especial os do neocórtex, criam as suas redes de intercomunicação sináptica. Da análise crítica das propostas abrangentes destes autores, Goldberg, M. Donald e LeDoux, das contribuições colecionadas em Harold W. Baillie e Timothy K. Casey6 e de um leque alargado, mas não exaustivo, de bibliografia mais recente, neurobiológica, antropológica e filosófica, pretendo propor uma síntese conceptual e abrir a via para uma continuada reflexão acerca de um futurível “Humanus”. Terei presentes, nesta difícil e ambiciosa tarefa de escrita, a contribuição singular do último Damásio,7 do génio de Vygotsky8 e de uma

1. BAILLIE, Harold W. & CASEY, Timothy K. – Is Human Nature Obsolete? Genetics, Bioengineering, and the Future of the Human Condition. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press, 2005. 2. GOLDBERG, Elkhonon – The Executive Brain. Frontal Lobes and the Civilized Mind. Oxford: Oxford University Press, 2001. 3. DONALD, Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture and Cognition. Cambridge, Mas.: Harvard University Press, 1991. 4. DONALD, Merlin – A Mind so Rare. The Evolution of Human Consciousness. New York / London: W. W. Norton & Company, 2001. 5. LEDOUX, Joseph – Synaptic Self. How Our Brains Become Who We Are. London: Penguin Books, 2003. 6. Cf. BAILLIE, Harold W. & CASEY, Timothy K. – Is Human Nature Obsolete? Genetics, Bioengineering, and the Future of the Human Condition, ed. cit. 7. DAMÁSIO, António – O livro da Consciência. A construção do cérebro consciente. Lisboa: Círculo de Leitores, 2010. 8. VYGOTSKY, Lev – Pensamento e Linguagem. Lisboa: Relógio d’Água, 2007.

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recente publicação de Hipólito-Reis,9 na qual reconheço uma originalidade surpreendente quando desmonta os meandros escondidos e complexos da natureza humana. E a vigorosa e, por vezes, comovente, “confissão” de Christof Koch10 sobre os fundamentos da sua posição como um reducionista romântico, “saddened by the loss of my religious belief”. Não posso escamotear aos leitores deste ensaio que a maior dificuldade na abordagem da questão da natureza humana é, rigorosamente, linguística; e está toda concentrada na palavra que se escreve e no significado que, por essa palavra, lhe está a atribuir aquele que a escreve e a usa na flexão linguística. Esta dificuldade, já de si tremenda, agrava-se quando se vai usar uma palavra que foi “inventada” numa outra convenção linguística que não a da língua portuguesa. Porque, nesta circunstância, a versão linguística é impossível sem que se “invente” uma palavra nova na língua portuguesa na qual se deposite o sentido que nela está contido na convenção linguística original. Por exemplo, mind e self, palavras que circulam facilmente nos textos de língua inglesa, são de dificílima tradução para português e sempre obrigarão a uma divagação semântica, se eu escrever “mente” por mind e “eu” por self. Acresce, finalmente, mais uma dificuldade. Tratar da natureza humana é abrir a questão corpo-mente (body-mind), debate antigo da Filosofia, debate moderno da Neuroética, para cujo desenvolvimento não dispomos de uma metodologia tranquilamente adequada. Urbano Mestre Sidoncha11 aborda com profundidade reflexiva a questão metodológica recorrendo ao conceito de “hiato explicativo” que mais à frente desenvolverei, e que foi proposto por J. Levine em 1999 como uma possível saída metodológica.

9. HIPÓLITO-REIS, C. – Da Noite se faz o Dia. Lisboa: Âncora Editora, 2012. 10. KOCH, Christof – Consciousness. Confessions of a Romantic Reductionist. London: The MIT Press, 2012, p. 28. 11. SiDONCHA, Urbano Mestre – Do Empírico ao Transcendental. A consciência e o problema mente/corpo, entre o materialismo reducionista e a fenomenologia de Husserl. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. É uma Dissertação de Doutoramento na qual o Autor, com notável desenvoltura e grande qualidade expositiva, propõe uma nova forma, muito husserliana de discutir a relação do corpo com a mente (para ele, Espírito) assim sintetizada “Sou Corpo porque ele é Órgão do Espírito”.

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J. Manuel Curado12 que ao problema “duro” da consciência tem dedicado muita reflexão, afirma que “Os elos de causalidade entre o cérebro e a experiência subjetiva escapam-nos por completo. Ninguém faz a mínima ideia de por que razão o cérebro dá origem ao que sentimos quando poderia não dar origem a mais nada; ninguém faz também a mínima ideia de como é que o que sentimos influencia realidades biológicas e físicas”. Noutro trabalho publicado em 2007,13 Curado propõe uma solução que, nas suas palavras, é a seguinte: “O problema duro é um malentendido do edifício do conhecimento disponível à data em que essa sequência é expressa… É possível concluir que o problema duro não expressa uma arquitetura do próprio real mas, apenas, uma arquitetura provisória do estado do conhecimento humano. Expressando a mesma ideia de outro modo, o problema duro é uma ficção racional”. Não o acompanho em absoluto, a menos que consideremos que todas as questões postas pelas neurociências e pela teoria da mente são ficções racionais. E Engelhardt Jr., já em 1973,14 quando as neurociências estavam a dar os primeiros passos no que viria a ser o crescimento explosivo dos conhecimentos científicos sobre a estrutura e a funcionalidade cerebral, abordou o problema Mind-Body como uma relação categorial, e não como uma questão de causalidade.

12. CURADO, Manuel – “Os desafios das Ciências da Mente”. Revista Portuguesa de Bioética. Suplemento n.º 11 (junho de 2011), pp. S-127 / S-174. Neste trabalho apresentado num Seminário intitulado “Natureza e Ética”, este autor faz uma ampla discussão sobre os contornos do debate cérebro/mente na psicologia moderna e nas ciências cognitivas e apela para “uma reflexão ética constante”. Na publicação referida, Alfredo Diniz, que à questão da neuroética e da ética das neurociências tem dedicado particular atenção, escreve sobre a questão da liberdade humana mostrando, com cuidadosa argumentação, que não é possível afirmar que o conhecimento da funcionalidade cerebral elimina a liberdade dos humanos. 13. CURADO, Manuel – Luz misteriosa. A Consciência no mundo físico. Famalicão: Quasi, 2007. É um livro de difícil leitura pela riqueza e diversidade da informação que Curado mobiliza para a sua brilhante argumentação. Noutro trabalho – Alfredo Diniz; Manuel Curado (orgs.), O Choque de Thomas Reid e a Origem do Problema Difícil da Consciência. Mente, self e consciência. Braga: Publicações da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica Portuguesa, 2007 – a propósito das obras de Thomas Reid, um filósofo inglês da segunda metade do século XVIII, Curado mostra como é antiga a questão das relações entre o corpo e a mente e afirma que “a análise de Reid sobre a consciência ainda não foi ultrapassada”. Para a teoria da mente de Reid, os qualia, de que trataremos mais adiante, serão propriedades secundárias que resistem a uma análise “funcionalista” e significam que corpo e mente são incomensuráveis, porque a sensação não é explicada pela perceção. Curado retira desta postura de Reid consequências da maior importância para uma análise rigorosa da relação cérebro/mente. 14. ENGELHARDT Jr., H. Tristram – Mind-Body: a Categorial Relation. The Hague: Martinus Nijhoff, 1973.

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Divido este ensaio em duas partes, uma expositiva e a outra conclusiva. A primeira parte, intitulada “As perguntas e as respostas”, procurará situar a questão da natureza humana nas controvérsias científicas, antropológicas e éticas e apresentará o que muitos neurocientistas, psicólogos e filósofos pensam, hoje, sobre a natureza humana, no presente e o que imaginam para o futuro. Na “Conclusão” será exposto um juízo pessoal sobre a pergunta mais radical e a resposta mais temerária.

2. As perguntas e as respostas Abordando a questão da natureza humana, a primeira pergunta será esta: o que é, hoje, o Homem. Antes de perguntar quem é. Pergunta antiga que acompanha o viver dos humanos desde que, na conceção evolutiva de Merlin Donald,15 foi atingido o patamar da cultura comunicacional mimética e, depois, o da oralidade. Com efeito, esta primeira transição separou, na linha evolutiva dos primatas, o Homo dos outros primatas, os quais evoluíram nestes 6 a 8 milhões de anos para as diversas e numerosas espécies de primatas nãohumanos hoje identificadas. O Homo, porém, evoluiu no mesmo período temporal, adaptou-se, sobreviveu, mas é uma só espécie, cujos membros proveem, diretamente, ao que parece, do H. erectus (dois milhões de anos). Donald reconhece a dificuldade de entender esta transição da cultura episódica para a cultura mimética. Nas suas palavras, “Erectus também cooperava em caçadas sazonais, migrava para longas distâncias, usava o fogo, cozinhava e tinha um cérebro que evoluiu até oitenta por cento do volume do cérebro humano moderno. Que tipo de mente e de cultura pôde ser responsável por tudo isto?” Ou seja, pergunto eu, como era o Homem arcaico que emergiu deste salto qualitativo e logo ocupou o que é, hoje, o grande espaço euroasiático? Seguramente não falava. Parece difícil imaginar como comunicavam e cooperavam os seres humanos sem linguagem, tão “viciados” estamos em usar, para tudo, a palavra como representação simbólica da cognição.

15. Cf. Donald, Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture and Cognition, ed. cit.

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Mas um estudo de Lane16 realizado em surdos-mudos iletrados provou, como refere Donald, “que eles tinham plena consciência e eram capazes de compreender e evocar acontecimentos com grande precisão. Portanto as suas memórias episódicas estavam intactas e a consciência não estava afetada. A sua tendência para inventar gestos e mímicas, no momento, de uma forma muito criativa, para comunicar os seus pensamentos, demonstra que possuem excelente capacidade de comunicação intencional”. Claro que não pode comparar-se o cérebro de um surdo-mudo atual com o cérebro de um erectus mudo; mas as capacidades criativas de ferramentas e de organização social, tanto quanto podemos avaliar (certamente por defeito), pelos achados arqueológicos, indicam um desempenho cognitivo e de interpretação mental que “forçou” a comunicação entre o indivíduo e o grupo social, por mimesis; à falta, na época, de melhor instrumento comunicacional. A capacidade mimética na síntese rigorosa de Donald “baseia-se na possibilidade de produzir atos representacionais conscientes, auto iniciados que são intencionais mas não linguísticos”. O Homem mimético terá sido a primeira forma de ser Homem: um corpo animal vivo que conhece o mundo sentindo-o, por meio dos seus órgãos sensoriais e sensitivos, e que comunica aos outros o que sente com intencionalidade comunicacional. Sem linguagem – mas com pensamento. Esta forma de ser Homem, embora permitisse o sucesso desta espécie triunfante, não se estabilizou e continuou a evoluir. Como acentua Donald, “A evolução dos humanos não produziu apenas um cérebro maior, uma memória mais vasta, um léxico ou mecanismos especiais de articulação da fala; evoluíram também novos sistemas de representação da realidade. Durante este processo, os nossos mecanismos de representação perceberam, de alguma maneira, a utilidade dos símbolos e inventámo-los completamente; nenhum ambiente simbólico os precedeu”. Para mim, como tenho referido em publicações anteriores, a questão mais difícil de elucidar é a invenção da palavra portadora de um sentido.

16. LANE, H – When the Mind Hears. New York: Random House, 1984 (citado em DONALD, Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture and Cognition, ed. cit.). Poderá dizer-se que estes surdos-mudos que nunca ouviram uma palavra e muito menos a viram escrita, pensavam e inventavam um sistema de comunicação com os outros, não linguístico.

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Nas suas aprofundadas investigações sobre a relação entre a palavra e o conceito, Vygotsky17 acentua que, na criança, a palavra ensinada é usada para identificar objetos – função nominativa – e para caraterizar o seu sentido – função significante; o que é uma distinção importante e nos ajuda a compreender como a palavra vai servir, a partir da adolescência, para exprimir conceitos abstratos. Mas Vygotsky não aborda nunca a emergência ou invenção da palavra na filogénese da espécie. Como surge no tempo a primeira palavra e, nela, a funcionalidade representativa? Diz que “o conceito não vive em condições de isolamento, que não é uma formação estática congelada, mas uma formação que aparece sempre num processo de pensamento vital e complexo. Um conceito preenche sempre certa função ao nível da comunicação, do raciocínio, da compreensão ou da resolução de problemas”. Com este suporte proponho (tenho proposto) uma teoria18 para tentar entender a emergência nos seres humanos da palavra. Enuncio, assim, os pressupostos da teoria de forma sintética: – A protopalavra só poderia ser um monossílabo gutural, uma vocalização. Com efeito, nesta fase de evolução do maciço facial a laringe, por onde passa o ar expirado produzindo o som, é muito alta em relação ao bordo posterior da língua e o ar sai pela boca aberta sem participação modulatória de lábios, dentes e língua; que irão, futuramente, atuar sobre o ar expirado e fazer aparecer as consoantes. Seria, portanto, uma das cinco vogais, cuja modulação fonética era apenas de intensidade, duração, altura e ritmo sequencial. – A palavra não fazia falta para garantir a sobrevivência dos indivíduos e do grupo, pois tudo indica que não foi necessária durante os dois milhões de anos em que o erectus persistiu. Como refere Robin Dunbar,19 “espalhou-se por todo o Velho Mundo, a partir da sua África natal, para

17. Cf. VYGOTSKY, Lev – Pensamento e Linguagem, ed. cit. 18. É uma teoria tranquilamente apresentada porque ela é, rigorosamente, indemonstrável. Com efeito, ninguém pôde assistir, estar presente, quando um ser humano inventou e gritou a primeira palavra, a protopalavra, a palavra que jamais tinha sido ouvida por outro ser humano. 19. DUNBAR, Robin – A História do Homem. Uma nova história da evolução da humanidade. Lisboa: Quetzal Editores, 2006.

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leste até ao nordeste da China, para a região que haveria de se tornar nas ilhas do arquipélago indonésio e para o norte da Europa”. – Não sendo, então, a palavra necessária nem para a comunicação de situações concretas percecionadas, nem para garantir a sobrevivência, ela não está dependente de nenhuma pressão exterior exercida sobre o ser humano. Não é, portanto, uma reação, mas é, antes, uma invenção. Assumindo como válidos estes pressupostos, a questão não se coloca ao nível do “como surgiu a palavra”, mas sim a um nível diferente que é o de “porque surgiu a palavra”. Começo aqui a enunciar a teoria. Não se destinando a palavra a facilitar qualquer resolução ou decisão do viver prático e quotidiano, de umas centenas de seres humanos agrupados socialmente, ela deverá ter sido inventada não para ser usada na caracterização de situações sociais concretas, mas para representar um acontecimento individual abstrato. A minha proposta é que esse “acontecimento individual abstrato” tenha sido a intuição da individuação pessoal. Iluminada a consciência percetiva por este fulgor que não provinha do estímulo de nenhum órgão sensorial ou sensitivo, o H. erectus emitiu um som vocálico e gritou para o grupo social – EU. Pela primeira vez, uma vocalização exprimia, para os outros, o sentido do exercício do que, posteriormente, se tem designado por inteligência interior a que chamarei “autoconsciência embrionária”. Como terá acontecido esta iluminação interior, que imagino súbita e sem nenhum antecedente a provocá-la ou a prepará-la? Não podemos senão conjeturar. Por ela o erectus é, agora, sapiens, o que sabe que é um próprio, um EU. A conjetura mais plausível (será?) é a de que um homem, ainda sem palavra, claro, tenha logrado, ao olhar com particular atenção reflexiva para outro homem, viu-o – mas sentiu-o como diferente. No viver quotidiano, os membros destes grupos sociais de povos “ainda sem palavra” eram todos iguais, não tinham, obviamente, nome próprio; a comunicação mimética era uma atividade grupal e coletiva. Nasciam, cresciam e morriam sempre como componentes anónimos do grupo. Morrer seria “só não ser visto”, na expressão de Pessoa, aplicada à moderna sociedade de indiferença. Mas, nesse tempo recuado, o grupo humano era, por natureza, uma sociedade de indiferença e nela morrer seria só não ser visto.

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Terá acontecido, um dia, que um neandertal ou um cro-magnon reparou no corpo morto de um seu igual e descobriu-se diferente dele; então, assinalou esta descoberta – que foi, nele, o exercício do pensamento abstrato primitivo – e grunhiu para si e para os outros – EU, inventando a proto palavra. Mera conjetura, reconheço. Para mim, verosímil.

2.1. Além da palavra Mas, por esta via ou por outra, a emergência da palavra marca a possibilidade de uma nova intencionalidade expressiva e alarga a nossa teoria da mente. O cérebro humano passa a possibilitar a “criação” de conteúdos mentais abstratos internos, representados para o exterior por um veículo sonoro que é a palavra. Quando esta evolução aconteceu, o controlo cerebral das vocalizações laríngeas, importantíssimas na comunicação mimética, estava já muito aperfeiçoado e bem associado à mimese facial. Como acentua Donald20 a mimese “é ainda mais eficiente que a linguagem na difusão de certos tipos de conhecimento; por exemplo, é ainda a melhor na modelação de papéis sociais, na comunicação de emoções e na transmissão de capacidades rudimentares… teve os seus sucessos pragmáticos no fabrico de ferramentas, e nas atividades socialmente coordenadas como a caça, a manutenção de um lar sazonal e o uso do fogo… foi uma adaptação estável e bem-sucedida, uma estratégia de sobrevivência para os hominídeos que durou mais de um milhão de anos”. Mas, não servia para transmitir uma ideia abstrata, acrescento. Uma ideia tão abstrata como esta de cada um se descobrir a si próprio como um próprio, um EU, que se confronta com o mundo e com os outros. Este acontecimento seminal, que foi a invenção da palavra significante, vai mudar, radicalmente, a forma como o sapiens se vê a si próprio e a forma como organiza a relação com o outro – e com os outros do grupo no qual está inserido. Até este momento, a evolução dos humanos, principalmente corporal, era comandada pelos estímulos externos, muitos dos quais induziam

20. Cf. DONALD, Merlin – Origins of Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture and Cognition, ed. cit.

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mutações genéticas, fazendo aparecer genes que garantiam o sucesso adaptativo. Mas a partir da possibilidade de representar, por palavras, conteúdos mentais, abriu-se ao Homem, agora um sapiens sapiens, que sabe que sabe e sabe quem sabe, uma nova forma de ser e de estar no mundo, direi um ethos específico. Sabemos, hoje, que o trabalho cerebral executado sobre as perceções sensoriais, antes do nascimento e, principalmente, depois do nascimento e da entrada relacional no mundo, estimula a produção de neurónios, em especial corticais, fazendo crescer o cérebro numa caixa craniana que se deixa distender e crescer até que as fontanelas anterior e posterior se encerrem pela ossificação definitiva da calote craniana. A palavra e, depois, a linguagem e, finalmente, a escrita, a par de outras representações exteriores simbólicas das criações mentais, tudo isto tornou possível a criação de toda uma cultura simbólica exterior que é, hoje, o habitat específico dos humanos. Como escreve Donald na última página do seu livro,21 “As nossas mentes funcionam em vários níveis representacionais, filogeneticamente novos, nenhum dos quais está disponível aos outros animais. Atuamos em coletividades cognitivas, em simbiose com sistemas externos de memória. À medida que desenvolvemos novas configurações simbólicas externas e novas modalidades, reconstruímos a nossa própria arquitetura mental de uma forma não trivial.” Esta situação que é a do homem moderno, criador incessante de cultura exterior simbólica, potenciada pelo ímpeto criativo da Ciência, não tem, infelizmente, um “correlato” genético pelo que a cria humana nada conhece do que configura a forma atual de se ser homem. Por isso, é “obrigada” a adquirir ferramentas específicas para que possa adquirir tudo (o que é impossível) ou muito (o que é difícil) ou o necessário, para sobreviver, entre o que está depositado na chamada memória exterior e conservado em suportes imperecíveis. Como assinala Donald22, pode hoje adiantar-se o conceito de collectivity of mind, de uma inteligência coletiva. Como se atingiu esta forma de ser e de estar do Homem no mundo? A emergência da oralidade referida ao eu pessoal abriu a inesgotável via de invenção mítica: o homem concreto, ao perceber-se como um certo elemento do mundo natural, elaborou mentalmente conceitos abstratos

21. Cf. Ibid. 22. Cf. DONALD, Merlin – A Mind so rare. The Evolution of Human Consciousness, ed. cit.

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sobre este espaço, onde se encontrou situado, sobre a matéria que o constituía, sólida, gasosa ou líquida, e sobre a relação do seu eu pessoal com todos os outros objetos intramundanos – vegetais, animais, ou outras pessoas. Como diz, algo poeticamente, David Abram,23 a perceção de que há um mundo mais do que humano, e de que o nosso corpo é parte intrínseca desse mundo, é a matéria essencial da qual se alimenta a invenção mítica – como mostram os conteúdos dos mitos fundacionais dos atuais povos “ainda sem escrita” que Abram, cuidadosamente, estudou. Os mitos são, portanto, as histórias inventadas pela inteligência humana em crescente e constante desenvolvimento; em cerca de cem mil anos e um pouco por toda a terra já habitada pelo sapiens, com relevo para os povos do Oriente Médio, desenvolveram-se milhares de civilizações míticas diferenciadas pelo conteúdo das narrativas míticas transmitidas oralmente de geração em geração. A palavra, ao ser transferida para um suporte físico exterior, a escrita, criou uma nova função cerebral até então inexistente e não geneticamente codificada. A aprendizagem da leitura provoca no cérebro humano a criação de novas redes neuronais sinápticas que não existirão nunca no analfabeto; e, por estas novas estruturas cerebrais, se irá desenvolver a inteligência formal. É claro que o analfabeto pensa, interpreta o mundo à sua volta e decide. Inventa outras simbolizações do pensamento, como, por exemplo, a pintura (pictogramas), mas a capacidade de comunicar sentidos, em especial abstratos, do instrumento expressivo pintura, é, reconhecidamente, muito inferior à da palavra escrita. É este novo cérebro humano que vai ser o agente de toda a cultura exterior simbólica na qual a ciência assume uma indiscutível liderança. A intercomunicabilidade dos conteúdos desta cultura configura o homem moderno como parte de uma mente coletiva dotada de uma memória exterior muito mais poderosa e rica que a nossa memória de longa duração; ela está acima das pessoas individuais e está disponível de forma permanente e quase ilimitada. A essa mente coletiva, constantemente alimentada pelos conteúdos das criações das mentes individuais, cada um só acede a uma minúscula parcela no tempo que lhe é concedido para viver.

23. ABRAM, David – A Magia do Sensível. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. (Tradução de: The Spell of the Sensuous. Perception and Language in a More-Than-Human World. New York: Vintage Books, 1998.)

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Neste tempo de vida, que é o nosso tempo individual, o Homem é, hoje, um cérebro no qual se articula uma perceção do mundo, individual e subjetiva, com o conhecimento da representação exterior simbólica produzida por outros cérebros humanos, depositada em suportes quase imperecíveis e constitui como que uma mente coletiva universal. 2.2. Será esta uma resposta possível à pergunta colocada – O que é hoje o Homem? Mas é uma resposta consistente? Nas suas linhas gerais que apresentei, embora de forma pouco sistemática, ficou subjacente uma forte valorização do cérebro humano como o órgão que constrói a identidade humana e uma relativa desvalorização de informação codificada no genoma. Esta informação seria instrumental para a constituição do cérebroestrutura, mas a ação do mundo exterior sobre este cérebro-estrutura, mediada pelos equipamentos sensoriais é que forjaria a identidade de cada um. Seríamos todos iguais no genoma e todos diferentes no epigenoma. Sendo a mente coletiva o mais poderoso componente do epigenoma. Descobertas científicas recentes24 apontam para a possibilidade de o genoma mudar algumas sequências génicas, alterando o cérebro-estrutura. A raridade deste evento e a sua relação com alterações neuropsíquicas indica que ele é pouco relevante como mecanismo de geração da identidade. O determinismo genético – que chegou a cunhar a afirmação de que cada homem é como é pelos seus genes – é um paradigma esgotado, particularmente no que se refere ao encéfalo humano.25 Esta conceção da natureza humana como um cérebro inteligente em linha com uma inteligência coletiva é vista por Merlin Donald como o “triunfo da autoconsciência”. Mas o que deve entender-se por autoconsciência humana (consciousness ou self-consciousness, na língua inglesa)? Os neurocientistas usam esta palavra quando estão a referir-se à consciência como perceção consciente, ou cognição, resultante do exercício

24. GAGE, Fred H. & MUOTRI, Alysson R. – “What makes each brain unique”. Scientific American 306(3) (2012), pp. 20-25. 25. Ver STROHMAN, Richard C. – “5. Genetic determinism as a failing paradigm in Biology and Medicine: Implications for health and wellness”. In: New Frontiers for Research, Practice and Policy. Edited by Margaret Scneider Jamner & Daniel Stockls. Los Angeles: University of California Press, 2000.

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sensorial; tenho consciência do objeto exterior que os meus olhos estão a ver, a mesa onde trabalho, as palavras que escrevo. Mas não é isto que é a autoconsciência. Pessoa26 situa muito bem o problema central da autoconsciência nestes versos: “De quem é o olhar / que espreita por meus olhos? / Quando penso que vejo / quem continua vendo / enquanto estou pensando?”. Não é fácil traçar os contornos do conceito representado pela palavra autoconsciência. Tenho dito – usando a metáfora da Física Teórica – que a autoconsciência é o campo onde acontecem as perceções sensoriais, mas não é a cognição consciente dessas perceções, nem é a atribuição de sentido emocional e racional ao que é conscientemente percebido. Ver, sabemos todos, é função orgânica com um claro suporte neurobiológico. Dar sentidos à imagem visual e memorizá-los é uma atividade cerebral já em grande parte elucidada pela neurobiologia, tornando obsoleta a designação de alma sensitiva para o que é atividade cerebral. A questão em aberto é quem vê, na pergunta angustiada de Pessoa e nas interpelações filosóficas desde Heraclito até hoje, passando pela quase sombria reflexão heideggeriana sobre o ser como expressão da natureza do homem no tempo. A dificuldade em encontrar uma boa resposta para o quem é que a resposta terá de ser um conceito totalmente abstrato. Para ele proponho a palavra autoconsciência, certamente imperfeita porque do que se trata é de uma intuição que cada um recebe (ou não?) – com a descoberta que a protopalavra EU (in) definiu para a comunicação ao próprio e aos outros. À pergunta – quem sou eu? – responderei: sou autoconsciência. 2.3. O correlato estrutural Não faltam tentativas de localização cerebral do que chamo autoconsciência, mas sempre sucede que os autores estão a chamar consciousness à consciência percetiva, interopercetiva. Sirva de exemplo o muito louvado livro de Sandra Blakeslee e Matthew Blakeslee.27

26. PESSOA, F. – Poesias. 4.ª edição. Lisboa: Ática Limitada, 1952. 27. BLAKESLEE, Sandra & BLAKESLEE, Matthew – The Body Has a Mind of Its Own. New York: Random House Trade Paperbacks, 2007.

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Usando a importante descoberta dos neurónios em espelho, descobertos pelo neurologista italiano Rizzolatti, os autores afirmam que “when you perceive the actions and emotions of others you use many of the same neural mechanisms as when you produce those same actions and emotions. This is the bridge between first-person and third-person agency”. Ou seja, para reconhecer e compreender os outros cada um precisa de se mapear a si próprio, de mapear o seu próprio corpo. Este mapeamento corporal, no qual Damásio28 também insiste, seria, para estes autores, a autoconsciência, como um simples produto da interocepção; e a ínsula frontal direita seria a região cerebral onde se articulam o estado do corpo com o estado da mente e desta união resulta a inteligência emocional como expressão da autoconsciência. Como se pode inferir deste breve resumo, do que os Blakeslee estão a tratar é de consciência cognitiva extra e intraceptiva. Jean-Pierre Changeux,29 um neurologista consagrado que escreveu com Paul Ricœur30 um texto de aprofundada reflexão sobre a funcionalidade cerebral como suporte do pensamento, desenvolveu um conceito novo que designa por “espaço de trabalho” numa publicação, com dois colaboradores, de 1998. Este espaço de trabalho é neuronal, puramente neuronal. No esquema simplificado da sua teoria, J.-P. Changeux propõe uma associação horizontal dos neurónios de axónio longo do córtex, em especial pré-frontal dorso-lateral, com os do córtex pré-motores, temporais superiores, parietais inferiores, singulares anteriores e posteriores e ainda com estruturas mais profundas; e uma associação descendente do conjunto do córtex cerebral com os neurónios talâmicos. Esta arquitetura do espaço de trabalho neuronal, com relevo para as várias regiões ativáveis do lobo frontal, tem sido confirmada por ressonância magnética nuclear funcional. Mas o que estes estudos mostram é que o espaço de trabalho é o território por onde passam as perceções sensoriais para serem valorizadas e memorizadas e evocadas. Mas não a perceção du moi, como autoconsciência.

28. Cf. DAMÁSIO, António – O livro da Consciência. A construção do cérebro consciente, ed. cit. 29. CHANGEUX, Jean-Pierre – L’Homme de Vérité. Paris: Editions Odile Jacob, 2002. 30. CHANGEUX, Jean-Pierre & RICŒUR, Paul – Ce qui nous fait penser. La Nature et la Règle. Paris: Editions Odile Jacob, 1998.

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J.-P. Changeux faz, num capítulo isolado, uma ampla discussão sobre a palavra com apoio nos autores que já referi e comentei, mas não coloca a questão da protopalavra e da transição da cultura mimética para a cultura oral e mítica; que é, a meu ver, onde se situa, pela primeira vez, na história evolutiva do Homem, a possível origem da autoconsciência. Não como consciência percetiva dos objetos do mundo exterior, mas como a perceção de quem tem a perceção de objetos virtuais interiores, inventados por intuição, e promove a sua comunicação por símbolos.31 Uma última questão se impõe nesta tentativa de caraterizar a natureza do homem moderno que é a da invenção do conceito que se procura representar pela palavra ética, referindo-o ao tempo atual. Afirmando que o Homem é um animal ético. Sem nenhuma pretensão de ser original direi que o conceito representado pela palavra “ética” é, para mim, o melhor exemplo de um qualia. Por esta palavra um filósofo tão lúcido e crítico como Nagel afirma que os qualia são sempre internos, emergem das nossas experiências mentais e, portanto, não são compatíveis com qualquer abordagem objetiva, científica, realizada na terceira pessoa, como: ele teve esta ou aquela experiência mental. Como escreveu, recentemente, C. Koch – “to have an experience means to have qualia, and the qualia of an experience are what specifies that experience and makes it different from other experiences”. Sidoncha32 afirma que “acreditar nos qualia é aceitar uma teoria não fisicalista da mente” porque, continua, “os qualia são, afinal, a diferença entre a dimensão qualitativa das nossas experiências de consciência e as explicações fisio-funcionalistas da mente, impedindo-as de atingir o objetivo da autossuficiência em termos explicativos”. Nesta questão, Sidoncha acha que há qualiófilos e qualiófobos. Para os primeiros, os qualia são aspetos qualitativos experimentados – e, nesta medida, fenoménicos – pela pessoa e só por ela conhecidos; para os segundos, são propriedades não relacionais, privadas, mas que podem ser objetiváveis na perspetiva de terceira pessoa.

31. J.-P. Changeux aborda a questão do símbolo e da sua significância afirmando que a variabilidade da organização do cérebro, dependente, como está, das ações epigenéticas, contrasta com a proposta de uma partilha de significâncias comuns, ou mesmo universais, como se espera de um símbolo oral ou escrito no interior de uma mesma convenção linguística. 32. Cf. SIDONCHA, Urbano Mestre – Do Empírico ao Transcendental. A consciência e o problema mente/corpo, entre o materialismo reducionista e a fenomenologia de Husserl, ed. cit.

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Como me assumo qualiófilo, avanço aqui que a palavra ética pretende comunicar uma experiência mental que é rigorosamente incomunicável, porque há um “hiato explicativo” entre experiência mental e correlato corporal cerebral. O qualia que a palavra ética pretende caraterizar (sem sucesso) é uma experienciação mental que terá acontecido num estranho período de expansão das capacidades mentais de habitantes de um certo território, a Hélade, e que originou a invenção de palavras novas para representarem conteúdos mentais abstratos. Assim foi com logos, pathos, chronos… e ethos. Com todo o respeito pelos especialistas da língua grega antiga escrita e pelo seu esforço para decifrarem as experiências mentais que motivaram estas invenções linguísticas, a minha convicção é esta: quando um ser humano descobriu, na sua intimidade pessoal, que conseguia avaliar e valorizar a sua forma particular de ser e de estar no mundo, porque era logos, gerador de chronos e sujeito a pathos, pronunciou pela primeira vez o fonema ethos que depois grafou. Admitindo – e eu admito, para parte das experiências mentais, incluindo alguns qualia – que é possível dar-lhes alguma objetividade na perspetiva de terceira pessoa, direi que os seres humanos exprimem este qualia, na forma como decidem viver, escolhendo o que lhes é favorável e agradável e evitando o que lhes causa repulsa ou prejuízo. O qualia “ética” torna-se, de certa forma, reconhecível ou objetivável nas decisões comportamentais humanas. Na perspetiva de terceira pessoa, a palavra adequada para este fim não é ética, mas sim, eticidade. Não é o qualia, mas a qualidade, que é suscetível de ser objetivado. A ética, como qualia, é, então, a forma particular de ser e de estar do Homem no mundo que o capacita para decidir comportamentos após ponderação mental do que, para si, é bom ou mau. No plano estritamente individual. O Homem é, portanto, um animal ético, porque tem um cérebro por meio do qual pode atribuir qualidades às perceções. Não esquecendo, também aqui, que há um “hiato explicativo” entre a reconhecida ativação de áreas cerebrais, incluindo a ação de neuropeptídeos, e a experiência mental interior de agrado ou desgosto. Os trabalhos científicos e filosóficos dedicados à Ética são incontáveis; desde há uns vinte e seis ou mais séculos que são presentes, em todas as culturas, reflexões sobre ética. Mas do que tratam é de eticidade individual e social; não de ética como qualia mas de eticidade como qualidade. A ética, em Aristóteles, é eticidade explicada a Nicómaco.

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Damásio,33 direta ou indiretamente, aponta nos seus livros, artigos e entrevistas para um “fisicalismo” das experiências mentais mesmo nas áreas relacionadas com a ética (por vezes referida como moral) e com a religião (na verdade, com a religiosidade dos humanos). No artigo citado do American Journal of Bioethics, Damásio é mais assertivo que em qualquer outro texto dos que conheço. Transcrevo (tradução minha): Acredito que a ética começou como uma das primeiras e mais gloriosas criações da inteligência humana, tal como se manifesta nos simples comportamentos humanos, nas convenções sociais, nas regras morais, no sentido de justiça e nas leis básicas. A ética é um projeto em desenvolvimento (ongoing) e as principais forças que estão por detrás dele são o conhecimento, a racionalidade e uma combinação de ambas que é designada por sabedoria (wisdom), atuando numa cultura. Mas também acredito, contudo, que por detrás das origens da ética na história humana estiveram fenómenos automáticos e geneticamente herdados a que chamamos emoções com os seus correspondentes sentimentos (feelings). Também sugiro que a modulação cultural e a prática atual da ética, tal como a conhecemos hoje, continua a exigir, em cada indivíduo, um componente emocional. Que fique claro que não estou a reduzir a ética às emoções, mesmo nas versões civilizadas de David Hume ou Adam Smith (reducionistas). Tanto quanto podemos ver, avaliando o espetáculo da evolução biológica, a natureza parece ser moralmente indiferente e portanto é improvável que tenha sido o marco para o comportamento ético. Estou apenas a dizer que o trabalho duro de examinar os factos e de refletir sobre eles, que culminou, e continua a culminar, na formulação de regras éticas, em leis e em sistemas de justiça, tem alguns inícios distantes em certos tipos de emoções. E também digo que a modulação sociocultural destas emoções, durante o desenvolvimento individual, bem como a prática de comportamentos éticos em adultos, requereu e continua a requerer a integridade do aparelho emocional cerebral.

Transcrevi todos estes parágrafos que são a síntese final do artigo para que não restem dúvidas de que Damásio se refere à eticidade social e comunitária e não à ética como qualia individual. 33. Ver artigo de 2007 – DAMÁSIO, António – “Neuroscience and Ethics: Intersections”. The American Journal of Bioethics, 7(1) (2007) , pp. 3-7.

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Claro que a eticidade, como norma do relacionamento humano com os outros e com o mundo natural vivo ou inerte, é uma capacidade cerebral. Dunbar34 publicou recentemente, conclusões da sua equipa de investigação sobre a relação entre a dimensão numérica da rede social da pessoa e a dimensão volumétrica do córtex pré-frontal supraorbitário, o cérebro executivo de Goldberg.35 Tal como tinha sido observado em primatas, em 1992, os resultados no Homem mostram que a dimensão da rede social de cada indivíduo está linearmente relacionada com o volume neural do córtex frontal supraorbitário, o que dá suporte à conceção de que o número de neurónios em áreas definidas aumenta, após o nascimento, de acordo com os estímulos que a ele chegam do exterior via órgãos sensoriais. No caso da região pré-frontal supraorbitária, cuja função é receber informação das outras regiões e depois dirigir a sua ativação, os investigadores mostraram que não era apenas o número das pessoas do grupo social envolvente, mas era, de facto, a capacidade do hemisfério direito de conhecer, nessa rede de indivíduos, os seus estados mentais – conhecimentos, emoções, crenças – que podem ser diferentes dos nossos, como sujeitos observadores. Esta interação é transmitida ao córtex frontal supraorbitário que, por passar a ter um maior leque de opções decisórias, vai aumentar a sua dimensão por recrutamento de novos neurónios no pool de células neurais estaminais residentes. É nesta relação entre o indivíduo e o grupo social que a eticidade faz sentido porque é ela que possibilita um intercâmbio ativo de indivíduos numa comunidade social estável e pacífica.

3. Conclusão Em síntese final das perguntas e respostas que fui referindo ao longo do texto, arbitrariamente, entre centenas de perguntas possíveis e milhares de respostas, relevo que o Homem tem muitas naturezas que são complementares; no sentido do princípio da complementaridade de Niels Bohr: todas são verdadeiras, porque todas são consequência lógica, rigorosa, das metodologias usadas para as conhecer.

34. DUNBAR, R. I. M. [et al.] – “Social laughter is correlated with an elevated pain threshold”. Proceedings of the Royal Society B. 279(1731) (22 de março de 2012), pp. 1161-1167. 35. Cf. GOLDBERG, Elkhonon – The Executive Brain. Frontal Lobes and the Civilized Mind, ed. cit.

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Parece que todas essas naturezas se reúnem e todas formam a Natureza humana total. Mas esta, só a autoconsciência a conhece e de uma forma incomunicável, por ser um qualia em vez de ser uma natura naturans, um algo que possa “dar-de-si”, no sentido que Lain Entralgo36 atribui a Zubiri. É esta uma conclusão que promove uma insatisfação intelectual naqueles que não assumem que uma só metodologia de observação possa descrever o todo emergente – que é sempre mais do que a adição ou justaposição das partes. E também nos que não colocam a sua esperança nas múltiplas equações que um dia transformarão o Caos em Cosmos. 4. Proposta final O que escrevi é uma pequena amostra do muito que existe publicado sobre o conceito de natureza humana. Dei ênfase aos dados das neurociências modernas porque muitos autores “acreditam” que será um mais perfeito e mais completo conhecimento do modo como trabalha este maravilhoso equipamento biológico – que é um cérebro humano – que permitirá caraterizar, de uma vez por todas, a natureza do Homem. Atrevo-me, para encerrar, a apresentar a pergunta mais radical e a resposta mais temerária, como anunciei. A pergunta é esta, na sua radicalidade. Na complexa natureza do Homem há algum componente que não será nunca compreendido pela inteligência humana? A resposta, temerária, que proponho é: não há. Análise da pergunta. O componente que é considerado como não compreendido pela inteligência humana – e que é, como tentei mostrar, aquele onde radica a especificidade humana, por todos reconhecida, – é o pensamento abstrato e a sua projeção para fora do corpo biológico, sob forma objetiva (v.g. a palavra), mas simbólica. Este veículo da ideia abstrata sinaliza-a, representa-a, mas não é a ideia. A esta, em si própria, como emergência, não temos meios para a conhecer e o uso de um signo para a representar é uma via sempre imperfeita. Mas não temos outra, por agora. Não temos, mas vamos ter, no futuro. É inegável que a encefalização progressiva dos humanos, medida em ciclos de milénios, dá aos seres humanos deste milénio muito mais capa-

36. ENTRALGO, Pedro Lain – O que é o Homem. Lisboa: Editorial Notícias, 2002.

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cidades que no primeiro milénio d. C. e nos milénios anteriores históricos e pré-históricos. O que hoje é impossível – pensar o pensamento abstrato, compreender a autoconsciência – acontecerá e será um desempenho cerebral. Não do cérebro atual, mas do neocérebro que se irá constituindo no tempo – muito ou pouco tempo, não sei. Mas sei – ou julgo saber, por uma intuição sem fundamento – que esta possibilidade já se verificou uma vez e de tão grandiosa dividiu o tempo histórico num antes e num depois. Aconteceu em terras banhadas pelo rio Jordão, habitadas por um povo inquieto e expectante que aguardava um acontecimento que fosse o sinal que, verdadeiramente, identificasse a natureza autêntica dos humanos, da sua origem e do seu destino. Na verdade, o povo hebreu vivia representado num livro, ainda incompleto e a aguardar uma esperada conclusão. Yeshua, um jovem judeu gerado de uma forma estranha, abre um dia o Livro inconcluso e afirma, com tranquila simplicidade, que ele próprio é a conclusão anunciada e esperada pelo seu Povo.37 Noutra ocasião, porque lhe perguntaram quem era, usou a metáfora do pai para responder “Eu e o pai somos um”.38 Esta afirmação, e outras do mesmo teor, levam-me a esta interpretação/convicção: Yeshua, verdadeiro homem, integrado na cultura 37. Esta afirmação de Yeshua (depois chamado o Cristo) parece não ter provocado grande entusiamo entre os outros hebreus presentes na Sinagoga de Nazaré naquele dia de Shabbat; e até o quiseram deitar pelo monte abaixo (Lc 4,18). 38. Na narrativa de João, o debate dos hebreus contemporâneos sobre a natureza de Yeshua ocupa um espaço considerável. ALMEIDA, Bernardo Corrêa d’ – A vida numa palavra. Uma nova leitura do Evangelho de S. João. Porto: Universidade Católica Editora, 2012 – num notabilíssimo comentário ao 4.º Evangelho, comenta que, no prólogo poético, o Logos é o Princípio e é também o Enviado, numa unidade total, como luz verdadeira que ilumina todo o homem. SUMARES, Manuel – “Acerca de uma tese Ricœuriana. O Propósitio”. Revista Portuguesa de Filosofia, 46(1) (1990), pp. 25-142. – comenta a tese Ricœuriana: “Se há apenas um logos, o Logos de Cristo não me exige, enquanto filósofo, outra coisa senão um mais inteiro e mais perfeito trabalho da razão; não mais que a razão, mas a razão inteira”, afirmando “malograda a sua tentativa de colocar o logos de Cristo num plano privilegiado relativamente ao logos grego”. Frei Bernardo Corrêa d’Almeida considera, contudo, que o logos joanino e o logos grecoromano resultam de “duas tradições distintas”. Este, o greco-romano, “era a razão, a luz, o poder que permitia conhecer a unidade do uno e do múltiplo, da harmonia e da desarmonia, da razão e da não-razão, da mónade e da díade… O Logos-Jesus, glorificado em Deus, permite àqueles que o acolhem passar da ignorância à compreensão, da dispersão à unidade, da morte à vida de Deus”. O logos greco-romano responde à pergunta – o que é? – o Logos-Jesus responderá à pergunta – Como é? –, em especial à pergunta como é ser em relação com Deus.

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hebraica do seu tempo, teve a possibilidade – única, até ao momento, de compreender a sua autoconsciência como “espaço virtual” ou “campo” do Espírito absoluto e absolutamente desencarnado. Quando disse o que disse, quando falou afirmando que os outros que o ouviam não podiam, ainda, compreender as suas palavras, estava a usar o seu cérebro de uma forma que aos outros cérebros não era possível. Em linguagem atual e para considerar que o Logos de Yeshua era natural e não exige mais do que “a razão inteira” direi que foram usadas novas sinapses (Joseph LeDoux) e constituído um campo de trabalho (J.-P. Changeaux) com outras capacidades e, principalmente, um outro cérebro executivo (E. Goldberg) de uma invulgar capacidade. Yeshua terá logrado – como, não sei – preencher o mind-body gap, terá ultrapassado o “hiato explicativo”, terá assumido este qualia numa qualidade pessoal comunicável – mesmo que tivesse de usar a narrativa metafórica e a estrutura linguística da palavra disponível. Mas haverá melhor forma de exprimir o qualia do amor aos outros do que a história do filho pródigo e de um proprietário rural de gado e de terras de lavoura, narrada para ser entendida pelos membros de uma sociedade agropastoril? Ou o qualia da dignidade humana expresso na história do samaritano que ajuda o desvalido, uma parábola que Ramiro Délio Borges de Meneses39 tem submetido a exaustiva hermenêutica em dezenas de publicações? A minha temerária resposta de que não há nenhum componente da natureza do homem que a inteligência humana não venha, um dia, a compreender, fundamenta-se no sentido sempre ascendente da evolução das nossas capacidades cerebrais e na esperança de que esta evolução culmine na capacidade de compreender a autoconsciência e de a reconhecer como o Espírito que dá vida ao viver atual, especificamente humano, e a dará no outro viver, o da “vida do mundo que há de vir”. Em nós, o espírito (para mim o mesmo que autoconsciência) é um qualia não comunicável. Em Yeshua, o Espírito (autoconsciência) revelou-se lhe comunicável, como Amor ao outro, e foi comunicado. Por isto, quando o seu cérebro, abandonado por já desnecessário, ficou quase incapaz de servir de meio para continuar a comunicar aos homens, as últimas palavras ditas foram as que se deviam esperar: está tudo concluído, resta-me entregar o espírito ao Espírito.

39. MENESES, Ramiro Délio Borges de – O Desvalido no Caminho. Santa Maria da Feira: Edições Passionistas, 2008. Cito esta, por todas as numerosas publicações deste Autor sobre este tópico, porque ela se relaciona, especificamente, com a eticidade do acolhimento da pessoa doente pelo médico, na figuração de um samaritano.

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