PLEBISCITO, REFERENDO E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

Revista Jurídica, n. 9, Jan. – Jun. - 2004, Anápolis/GO, UniEVANGÉLICA. PLEBISCITO, REFERENDO E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Kerllen Rosa da Cunha Bonome...
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Revista Jurídica, n. 9, Jan. – Jun. - 2004, Anápolis/GO, UniEVANGÉLICA.

PLEBISCITO, REFERENDO E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA Kerllen Rosa da Cunha Bonome

RESUMO O Estado democrático de direito pressupõe o relacionamento entre os dois pressupostos basilares: os direitos humanos e a soberania do povo, compreendidos, respectivamente, como autodeterminação (moral) e auto-realização (ético-política). Neste diapasão, o plebiscito e o referendo são institutos jurídico-políticos com grande potencial de se tornarem importantes intermediadores da democracia participativa, onde o respeito às diferenças é fundamental num espaço público pluralista.

O Estado Democrático de Direito, como paradigma atual, supera o Estado Liberal de Direito e o Estado Social de Direito por apresentar um plus normativo transformador da realidade e fomentar a harmonização das três esferas fundamentais de interesses: a atuação do Estado, do indivíduo e da coletividade. Dois princípios são singulares tanto para a compreensão deste paradigma quanto para a justificação do direito moderno: os direitos humanos e a soberania do povo (1) - ambos expressamente presentes nos dois primeiros títulos da nossa Constituição Federal de 1988. Aqueles representam bens inerentes ao ser humano, tais como o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, dentre outros, enquanto este se refere à participação política do cidadão no Estado e pressupõe o cumprimento de requisitos de forma (alistamento eleitoral) e fundo (idade mínima, nacionalidade, etc.) (2).

Reconhecendo os direitos humanos, reconhece-se no indivíduo uma consciência moral com possibilidade de autoconhecimento, decisão existencial e autodeterminação(3). E, estando estes direitos presentes em cada um, surge a questão do reconhecimento intersubjetivo por todos no interior da coletividade, pois apesar da universalidade de direitos, não se pode negar a “diversidade incontrolável e contraditória de valores, interesses e expectativas”(4) presentes em qualquer sociedade. Torna-se clara, então, uma das funções do direito: a de estabilizador das expectativas na sociedade moderna, garantidor da compatibilidade das liberdades de ação dos cidadãos, legitimado através de um processo legislativo apoiado no princípio da soberania do povo(5).

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Isto não significa, em absoluto, que tais divergências devam ser anuladas, combatidas ou suprimidas, pois a legitimidade do Estado democrático de direito advém do reconhecimento de um espaço público pluralista que esteja aberto ao dissenso e que promova a presença de procedimentos jurídico-políticos abertos de modo a garantir o eqüânime acesso dos discursos divergentes às discussões e decisões. Nos dizeres de Marcelo Neves(6), o Estado democrático de direito não tem que se apresentar como “fundamento do consenso”, mas como “fundamento consentido do dissenso”, viabilizando o respeito recíproco às diferenças que compõe a sociedade supercomplexa contemporânea. No contexto brasileiro atual, a soberania popular é exercida através do sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos – assim dispõe o art. 14 de nossa Carta Política. Trata-se de uma questão crucial no processo democrático, no qual a regra é o sistema representativo. As eleições periódicas com sufrágio universal compõem um dos elementos indispensáveis ao “conteúdo mínimo do Estado democrático”(7). E a representação é um elo entre o poder e a sociedade, num ajuste entre as aspirações dos governados e a ação dos governantes. Entretanto, esta representação recebe críticas ao ser analisada sob os aspectos das políticas nascidas do jogo de forças sociais, da influência de interesses organizados na formação da vontade parlamentar e do emprego do poder administrativo. Os mais pessimistas censuram o demasiado distanciamento entre os direitos proclamados e os direitos respeitados, pois, segundo eles, há a ambiciosa pretensão de conciliar ideais antagônicos, ou seja, alternativa e simultaneamente, confia-se no Estado e desconfia-se dele. O representante que não cumpre com sua tarefa político-democrática age para a desarticulação da sociedade e nem mesmo sua posição legítima conferida pela Constituição impede tal resultado. Reconhecendo-se o ordenamento jurídico como regulador do comportamento das pessoas e do modo pelo qual se devem produzir as regras e aceitando-se a norma fundamental como termo unificador das normas que o compõe(8), chega-se a uma das noções características da linguagem jurídica: o poder. Este, por sua vez, pode ser explicado tanto como uma espécie de direito do estado natural reconhecido pelo Estado, como por uma delegação do Estado aos cidadãos. E os atos imediatos da expressão popular – o referendo e o plebiscito – é poder, numa e noutra perspectivas. O artigo 1º, parágrafo único da atual Constituição Brasileira afirma a procedência do poder – o povo -, e o seu exercício – por representação ou diretamente. É mister, então, empreender uma reflexão jurídica sobre as figuras constitucionais do plebiscito e do referendo, regulamentadas pela Lei N. 9.709 de 18/11/1998, cujas definições estão no próprio diploma legal infraconstitucional:

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“Art.2o. Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.  1o O plebiscito é convocado com anterioridade a do ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido.  2o O referendo é convocado com posteridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição.(9) (grifo meu) O plebiscito e o referendo são instrumentos de participação direta do povo no poder com aplicação muito mais restrita, pois o inciso XV do art. 49 da atual Constituição Federal submete a convocação do primeiro e a autorização do segundo à competência exclusiva do Congresso Nacional, exceto quando a própria Carta Magna autorizar, como por exemplo, o art. 18, parágrafos 3o e 4o. Entretanto, a já citada Lei 9.709/98 prevê em seu art. 6o que nas demais questões de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o plebiscito e o referendo serão convocados de conformidade, respectivamente, com a Constituição Estadual(10) e com a Lei Orgânica(11). Portanto, isto abre perspectivas a fim de que possam ocorrer com freqüência maior e, inclusive, ampliar o efetivo exercício deste poder pelos cidadãos, pois tais mecanismos de participação direta podem desenvolver a educação política e contribuir para uma democracia pautada pela participação estratégica, pelo livre arbítrio e pelo agir responsável, pois o que distingue o poder democrático do autocrático é que somente o primeiro permite formas de “desocultação”(12) das ações empreendidas, através da crítica livre e do direito de expressão dos diversos pontos de vista. Enfim, a democracia permite a construção da idéia de direito como integridade, ao lado da justiça, da eqüidade e do devido processo legal. A disparidade sócio-econômica é um dos componentes do complexo tecido, presente em nossa sociedade. Conseqüentemente, é grande o desnível entre conhecimento e consciência dos diferentes grupos sociais. A eleição dos representantes para compor os Poderes Legislativo e Executivo é permeada de discursos diferentes nos autores, mas semelhantes nos conteúdos onde abundam promessas de benefícios sociais. A ênfase à concorrência política no âmbito das elites acaba por reduzir a participação do eleitor à aceitação ou rejeição deste ou daquele candidato. Isto não é satisfatório para nossa sociedade, como indica uma pesquisa realizada pelo IBGE em cinco das seis maiores metrópoles brasileiras: os entrevistados foram solicitados a escolher dentro de um grupo de instituições e de pessoas previamente selecionadas quais as que melhor defendiam seus interesses. 62% responderam que nenhuma delas cumpria esta função.

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Dos que apontaram alguma instituição ou pessoa, mais da metade indicaram igrejas, cultos e sindicatos. A mesma pesquisa também demonstrou que a escolaridade é um fator que afeta o grau de participação em atividades políticas e sociais, ou seja, com o aumento do número de anos de estudos cresce, gradativa e regularmente, a proporção de pessoas que participa destas atividades(13).

O plebiscito e o referendo diferenciam-se não apenas pela participação direta dos cidadãos em questões concretas, mas pelo debate social que deve anteceder tanto um quanto outro, quando os políticos, os partidos e outras instituições sociais têm que expressar suas opiniões e tomar posições sobre o assunto em debate. Isto é positivo para a democracia, pois permite a discussão e a reflexão em torno de um tema, estimulando o efetivo exercício da participação, deflagrando o processo democrático, através do deslocamento de decisões políticas. Todavia, não há possibilidade de se compreender a democracia participativa, firmada pela Constituição de 1988, como excludente da democracia representativa ou como mero sinônimo de democracia direta. O presente artigo pretende demonstrar a viabilidade da efetiva e concreta conjugação de ambas perspectivas políticas. E o paradigma procedimentalista do Direito atenta para as condições do procedimento democrático, submetendo-se à discussão contínua, propiciando aos cidadãos entenderem-se como sujeitos de direito, descobrindo seus problemas e o modo de solucionálos. NOTA (1) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.p.128. (2) MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11 a. São Paulo: Atlas, 2002.p.234. (3) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. (4) SOUZA, José (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001. Neves, Marcelo. Do consenso ao dissenso: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Habermas.p. 111-164. (5) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Vol. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. (6) SOUZA, José (org.). Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001. Neves, Marcelo. Do consenso ao dissenso: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Habermas.p. 111-164. (7) BOBBIO, Norberto. El Futuro de La Democracia. México: Fondo de Cultura Econômica, 2000. (8) KELSEN, Hans. Teoria pura do Direito. Coimbra, Portugal: Arménio Amado, 1979. (9) www.senado.gov.br/legislacao. In 18/03/2004. (10) A Constituição do Estado de Goiás os prevê em seus arts. 11, XI e 83. (11) Infelizmente, um exemplar atualizado da Lei Orgânica do Município de Anápolis não estava disponível na Câmara de Vereadores em 17/03/2004. O texto da Lei atualizado encontrava-se no HD de um computador que por sua vez estava pifado – foi o que, gentilmente, informaram-me. (12) BOBBIO, Norberto. El Futuro de La Democracia. México: Fondo de Cultura Econômica, 2000. (13) www.ibge.gov.br, In 18/03/2004.

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ABSTRACT. The democratic state of law has a support in the relationship of two bases: Humans rights of people’s soberany, using self determination (moral) and self realization (politics). In this way, plebiscite and referendum are juridical institutes to implement the participative democracy, respecting, above all, some differences in a pluralist and popular area.

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