Orelha 1

Observando e Anotando Raimundo Rocha Raimundo Rocha nasceu em Patú (RN), em 1919, e faleceu em São Luís no ano de 1969.Como ocorre freqüentemente com os nordestinos, morou em muitas cidades diferentes antes de chegar a São Luís, onde viveu seus treze últimos anos. Esse livro testemunha sua vida em Patú, Lucrecia, Assú, Pau dos Ferros, Mossoró, Teresina, Fortaleza, Pedreiras e São Luís, reunindo suas observações ali realizadas, especialmente sobre aspectos da cultura nacional menos controlados pelas elites e que normalmente fogem aos interesses da Ciência e da Cultura Erudita. Além de comerciante, foi também folclorista, jornalista e um estudioso da origem do povo brasileiro, ligando-se a várias associações profissionais e culturais. Publicou seus trabalhos em diversas revistas, entre elas: Centelha, Bando, Legenda, Encontro com o Folclore, Revista Genealógica Latina, Almanaque Cariri, Boletim do CRN e outras. Divulgou também vários deles no Jornal do Dia, no Jornal do Maranhão, no Jornal Cidade de Pinheiro e na Tribuna de Pinheiro. Planejava reunir seus escritos em um livro, quando foi surpreendido por um colapso cardíaco, antes mesmo de esboçar o plano de sua obra. Observando e Anotando reúne seus trabalhos publicados e inéditos localizados pela família, procurando respeitar seu estilo literário e a forma de apresentação por ele adotada. O título corresponde à denominação de uma das seções do seu caderno de pesquisa. Raimundo Rocha descreve em seus trabalhos a vida nas pequenas cidades do interior do Rio Grande do Norte, pintando com vivas cores a escola, a família rural, a instabilidade e as contingências da pequena burguesia local, de onde saiu, e os costumes sertanejos. Descreve também manifestações folclóricas nordestinas pouco pesquisadas, sendo seus trabalhos freqüentemente citados nas obras de Alceu Maynard Araújo. Mundicarmo Ferretti Organizadora

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Orelha 2

Raimundo Rocha para o escritor e amigo Raimundo Nonato “Há certas criaturas iluminadas pelos clarões da bondade que, continuam presentes na memória dos seus contemporâneos, como se vivas continuassem sendo. O fenômeno não é estranho ao raciocínio, e uniu-o Câmara Cascudo, num daqueles rasgos de sua geniosidade, quando determinou numa manifestação de sentimentos de afetividade que: “A morte existe, os mortos não” (...). “Espírito expansivo, claro, sem embutimento de ideais, mergulhou nos estudos da pesquisa e não tardou Raimundo Rocha a encontrar-se e estabelecer relacionamento com as figuras mais destacadas do campo folclórico, a exemplo de Câmara Cascudo, M. Rodrigues de Melo, Vingt-un Rosado, Veríssimo de Melo e Alceu Maynard, este de São Paulo, falecido recentemente. Seu trabalho teve o mérito da originalidade, e justificá-lo plenamente, ainda mais, pelo espírito de equanimidade com que dividia as honras de um trabalho, que ele sempre considerava de grupo, e que por isso, devia pertencer a outrem”. Raimundo Nonato, 1974. “Aroeira do Patú – Jequitibá no Maranhão” “Por demais foi intensa a atividade jornalística de Raimundo Rocha naquele importante centro cultural (São Luís-MA), tomando parte ativa nos seus movimentos literários e no trabalho das suas instituições em particular das que se dedicavam à promoção no campo do folclore e da antropologia”. Raimundo Nonato, 1972. “Raimundo Rocha – seus verdes dias no sítio do Junco”

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RAIMUNDO ROCHA

OBSERVANDO E ANOTANDO

GP-MINA São Luís 2017

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Organização e notas

MUNDICARMO MARIA ROCHA FERRETTI

Colaboração

MARIA DO CARMO ROCHA JULIA MARIA ROCHA SERGIO FIGUEIREDO FERRETTI

Revisão

MARIA DE FÁTIMA SOPAS ROCHA

Rocha, Raimundo. Observando e Anotando/Raimundo Rocha – São Luis: Gp-Mina/UFMA, 2017. 168 p.: 34 il.; 22 cm.(???) 1. Folclore Nordestino. 2. Cultura Nacional. 3. Literatura Norteriograndense memórias. 4. Folclore Maranhense. 5. Família Nordestina. I. Rocha, Raimundo. II. Título. CDD 398.09812 CDU 398 (812/914)

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Caríssimo compadre Mundico

Continue a escrever. Gostei dos seus últimos trabalhos. Vá escrevendo e um dia você ajuntará tudo num livro. São Paulo, 17/06/1968. Alceu Maynard Araújo1

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Nota da organizadora - Escritor, folclorista, professor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Antologia do Folclore Nacional – 3 vol. Ed. Melhoramentos, 1964 e de várias outras obras.

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SUMÁRIO

PREFÁCIO, 8 Pedro Dantas da Rocha Neto APRESENTAÇÃO, 11 Mundicarmo Maria Rocha Ferretti VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA, 13 Sergio Figueiredo Ferretti FOLCLORE MARANHENSE, 20 1. ROMARIA DAS CARROÇAS A RIBAMAR (11/1957), 21 2. PREGÕES DE SÃO LUÍS (08/1968), 24 3. A MEDICINA CASEIRA MARANHENSE (10/1968), 27 FOLCLORE DO PIAUÍ, 28 1. "ELE NÃO DÁ CRUZEIRO" (02/1949), 29 2. BENEDITO, MESTRE ESCOLA DA TRIBO GAVIÃO (06/1949), 31 3. O BUMBA-MEU-BOI (08/1959), 33 4. SÃO GONÇALO DO PIAUÍ (1950), 36 5. AINDA A DANÇA DE SÃO GONÇALO (11/1951), 41 6. A FESTA DOS CACHORROS (06/1954), 46 7. MARCHA DOS DEZ MANDAMENTOS (06/1967), 48 FOLCLORE DA SECA, 50 1. ADVERTÊNCIA PARA O MEU FUTURO (10/1949), 51 2. UM POUCO DE FOLCLORE, 53 3. PARECE MENTIRA, PARECE..., 60 4. ONDE MORREU JESUÍNO BRILHANTE (10/1967), 62 5. EU CONHECI ANTÔNIO SILVINO (03/1968), 64 6. PELO SINAL DO SERTANEJO (1972), 68 LEMBRANÇAS DO PATÚ. 70 1. OLHO D'ÁGUA DO PINGA (09/1947), 71 2. DIVAGANDO... (11/1947), 73 3. FIGURAS PITUENSES - JOÃO DE HOLANDA (12/1949), 74 4. SINHÁ PROFESSORA (01/1950), 76 5. BICHO DO MATO (02/1959), 79 6. POPULARES DO PATÚ (05/1950), 81 7. SOBRENOMES E APELIDOS (06/1950), 84 8. JUNCO - PARAÍSO INFANTIL (12/1966), 87 FAMÍLIA ROCHA, 89 7

1. FAMÍLIA ROCHA (genealogia) (07/1961), 90 2. MÃE-VELHA (12/1949), 95 3. MÃE MIMOSA (12/1949), 97 4. PROFESSOR ROCHA, MEU PRIMEIRO MESTRE (02/1967), 99 5. MEU PAI (06/1967), 101 6. VERSO DO AÇUDE DO SALÔBO (de poeta popular), 103 7. IRMÃOS ROCHA – NOTAS (1944-1965), 105

FIGURAS NOTÁVEIS, 125 1. HUMBERTO DE CAMPOS (06/1947), 126 2. VASCONCELOS - OPERÁRIO DA AGULHA E DA PENA (12/1948), 129 3. DUBAS - UM MESTRE E UM AMIGO (01/1950), 131 DISCURSO NA ENTREGA DA COMENDA VITAL BRASIL (10/1967), 135 ROTEIRO AUTOBIOGRÁFICO (05/1969), 137

RAIMUNDO ROCHA PARA ESCRITORES E AMIGOS, 140 1. VERÍSSIMO DE MELO - "Marcha dos dez mandamentos" (02/1951), 141 2. ALCEU MAYNARD DE ARAUJO - "Minha roseira do Maranhão" (09/1970), 143 3. RAIMUNDO NONATO - "Raimundo Rocha – seus verdes dias no sítio Junco" (09/1972), 145 4. CARLOS CUNHA - "A queda do jequitibá não abalou a floresta" (07/1974), 148 5. RAIMUNDO NONATO - "Aroeira do Patú – Jequitibá no Maranhão" (08/1974), 150 6. JOSÉ AQUINO – “Homenagem a Mundico (Carta a Mundicarmo)" (11/1983), 153 7. JOSÉ JACOME BARRETO - "Raimundo Rocha (Mundico) – um depoimento sentimental (01/1984), 157

FOTOGRAFIAS, 160

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PREFÁCIO MUITO TEMPO PARA ESCREVER, POUCO TEMPO PARA CONVIVER. Levei muito tempo até tomar da caneta e escrever alguns pensamentos que fariam às vezes de prefácio para esta magnífica coletânea de escritos reunidos cuidadosamente pela minha irmã Mundicarmo. Outro dia estava divagando quando me ocorreu a idéia de como foi curta a convivência do filho Rocha Neto com o seu pai. Não demorou mais do que treze anos. Isto, se contarmos apenas o tempo de convivência a partir da "idade da razão", como diria a minha mãe, até o meu casamento, quando, normalmente, deixamos a casa dos pais para construirmos a nossa. Temos que descontar os anos em que vivi longe do convívio familiar e que foram quatro. Nestes quatro anos fiquei interno em Recife e Campina Grande, por decisão pessoal, quase malcriada, cuidando dos estudos e da minha formação para tornar-me, como queria, um professor: um Irmão Marista. Acho que este livro é um tratado de como as pessoas podem encarregar-se do próprio desenvolvimento. Na família freqüentemente brota a idéia de que o pai e a mãe são supostamente amadurecidos e a criança, totalmente dependente dos adultos. O que aprendemos desde o nascimento até a idade adulta relaciona-se essencialmente com isto. Sem dúvida, muito do que aprendemos na vida decorre de processo inconsciente. A nossa importância para o mundo e as nossas habilidades para enfrentar a caminhada são-nos transferidas, no início da vida, através de convincentes lições inconscientes captadas dessa convivência com os pais. Tenho gravada na memória a cena em que meu pai, agilmente, com apenas os dois indicadores das mãos, elaborava cuidadosamente o início do álbum de família composto não de fotos, mas de narrativas preciosas. Cada um de nós era tratado ali como se, todos, fôssemos criaturas predestinadas. O verdadeiro "diário" da convivência com os filhos ocupa parte destes documentos, revelando também os dotes marcantes do escritor RAIMUNDO ROCHA, "doublé" de empresário, mais pela necessidade de prover o sustento da sua família, do que propriamente por vocação. Sua vocação mesmo era, sem dúvida, a de escritor. É deliciosa a leitura das narrativas das festas e manifestações folclóricas do Piauí e do Maranhão, sua terra adotiva. Magníficas lições da história e da cultura popular desses dois Estados, àquela época ainda íntegra e sem influências externas devido ao isolamento geográfico quase absoluto desse rincão brasileiro nos anos 50. Esta obra, aqui reunida graças ao espírito pesquisador e detalhista de Mundicarmo, aqui e ali nos revela o extraordinário naipe de amigos intelectuais que compartilhavam, animada e produtivamente, de uma amizade e companheirismo notáveis. Lá está RAIMUNDO ROCHA dentre figuras como Luiz da Câmara Cascudo, o Cascudinho, como a ele se referia com intimidade; Alceu Maynard Araújo, da Academia Paulista de Letras, autor da Antologia do Folclore Nacional, concedendo a RAIMUNDO ROCHA, em sua obra, sem favor e sem bajulação, três importantes citações de trabalhos seus.

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Aqui no Maranhão, nas reuniões freqüentes motivadas pelas questões do intelecto, das artes, da literatura, da música, ali estava, "achando um tempinho" em meio às canseiras do dia-a-dia, o agitado RAIMUNDO ROCHA esgueirando-se por entre a platéia que ouvia atenta o discurso inflamado do Cônego Ribamar Carvalho ou a declamação apaixonada daquele belo soneto de Augusto dos Anjos, dramaticamente encenada pelo poeta Carlos Cunha. Certamente, nos intervalos, cochichava ao ouvido atento de Domingos Vieira Filho talvez, quem sabe, apoiado no cabo do indefectível guarda-chuva do professor Rubem de Almeida. A leitura deste documento-coletânea é uma experiência extraordinária. O seu conteúdo vibrante apela para o meu senso de humor, para a minha percepção das fraquezas humanas, aprofundando o meu conhecimento de como funciona a mente humana conduzida pela vontade férrea de vencer. À medida que leio, identifico-me com as pessoas e os fatos que ele descreve e, por que não dizer, tenho o prazer de rir de mim mesmo constatando o quanto tenho ainda que aprender. Lamento haver demorado tanto para escrever estes rabiscos. Por muitos anos privei, involuntariamente, muitas pessoas de se deliciarem com a qualidade dos pensamentos e o nível de informações aqui reunidas. Estavam todos a esperar por mim. Mas isto não é tanto tempo assim, sobretudo considerando o tão curto lapso de tempo que foi minha convivência direta com o meu pai. Convivi apenas por quinze anos conscientes em sua companhia... E... eu ainda nem havia percebido!

Pedro Dantas da Rocha Neto2 Março/1994

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Nota da organizadora - Pedro Dantas da Rocha Neto, Bacharel em Direito, é o segundo filho de Ramundo Rocha e foi quem tomou a frente os negócios da família após o seu falecimento.

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APRESENTAÇÃO Uma das características da chamada "civilização ocidental" é a rígida separação entre "atividades materiais" e as "coisas do espírito"- consideradas mais elevadas que aquelas. Em decorrência dessa visão, era comum, no passado, jovens de origem popular envedarem pelo caminho das letras, conquistando através da atividade literária uma posição de prestígio que não lhes fora dada pelo "berço". Para tal, deveriam, no entanto, dedicar-se a ela inteiramente, mesmo que para isso tivessem que viver uma vida de miséria e que sacrificar sua família, pois nem sempre o trabalho intelectual produzia resultados rentáveis. São muitos os que consideram até inconcebível a congregação de atividades materiais e espirituais. Mas, graças principalmente à difusão do pensamento do italiano Antônio Gramsci3, essa idéia hoje tem sido posta em questão. Cresce o número dos que consideram intelectuais, não apenas os que se dedicam exclusivamente às "coisas do espírito" e os que são ligados à cultura erudita, já são muitos os que compreendem por intelectuais todos aqueles que tomam para si a tarefa de sistematizar e de expressar idéias, valores e sentimentos de uma sociedade ou de uma época. Entre as camadas populares, um estivador é um intelectual quando, por exemplo, assumindo o papel de "amo" numa brincadeira de "Bumba-meu-boi", compõe toadas e cria autos que serão apresentados pelo grupo, sistematizando e expressando o gosto e a visão do mundo de sua sociedade. Raimundo Rocha foi um intelectual-comerciante. Sendo de família pobre; perdendo o pai aos 13 anos; casando-se aos 23; e, morrendo aos 49, deixando 11 filhos, não conheceu o "ócio"- nem mesmo o "ócio com dignidade" de tantos escritores e artistas. Não seria exagero dizer que nunca teve férias. Sua produção literária, iniciada em 1947, acompanhou sua lida de comerciante, sendo mesmo preterida por esta no período 1955-1965, quando compromissos financeiros o obrigaram a dedicar-se inteiramente ao trabalho que garantia o sustento de sua família e a educação de seus filhos. Apesar de sentir grande atração pelas letras e de se orgulhar de sua produção literária, queria ser bem sucedido economicamente, sentindo também orgulho ao ser considerado e prestigiado em 1965 como "próspero" comerciante. Por volta de 1954 deixou praticamente de escrever, só retornando a essa atividade em fins de 1966, graças ao estímulo de escritores amigos como Alceu Maynard Araújo, de São Paulo, e dos conterrâneos: Francisco Rodrigues Alves e, principalmente, Raimundo Nonato, com quem manteve uma correspondência quase semanal nos últimos anos de sua vida. E, sem dúvida alguma, graças à boa situação financeira conquistada pela Cerealista Maranhense Ltda, empresa por ele fundada em São Luís, em 1957. Raimundo Rocha é um exemplo de não incompatibilidade entre produção "espiritual" e "material", é um testemunho de que, quando alguém se dedica à segunda, consegue uma situação financeira que lhe permite "respirar", essa produção pode se tornar abundante e de boa qualidade.

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GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. 2.ed., Rio de Janeiro: Ed. Civilizações Brasileiras, 1978.

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Embora não fosse portador de títulos acadêmicos, escreveu e publicou trabalhos que, em quantidade e qualidade, superam às vezes os produzidos ainda hoje pela maioria dos professores universitários. Sua obra é marcada pelo interesse etnológico ou folclórico e pelo sentimentalismo e religiosidade de migrante nordestino, nascido no sertão do Rio Grande do Norte, em 1919. Essa tônica, embora considerada, atualmente, por muitos do meio intelectual urbano, como "fora de moda"ou "ultrapassada”, tem grande receptividade no gosto popular e tem legado à ciência muitos dados importantes, possibilitando o resgate da nossa história e das raízes culturais do nosso povo. Só uma coisa é, de fato, lamentável na vida e na obra de Raimundo Rocha - o seu desaparecimento precoce, numa das fases mais promissoras de sua atividade literária e quando mal começava a ver os frutos do que plantara com tanto sacrifício. Só pôde assistir à graduação universitária dos seus dois primeiros filhos e só teve tempo de ver 4 dos seus 11 filhos completarem 20 anos - felicidade que seu pai não pôde ter nem mesmo em relação a seu primogênito. A coletânea que hoje está sendo apresentada não é completa. Muita coisa trabalhou contra ela: o desaparecimento repentino do autor; o esforço sobre-humano dos seus filhos homens para continuar sua empresa; a perda de documentos decorrente de duas mudanças de sede da Cerealista e três de domicílio da família, aliados ao estrago causado pelas chuvas e pelos cupins de São Luís; e o próprio tempo, foram obstáculos difíceis de transpor. O que hoje aparece de público é fruto do esforço conjugado de muitas mãos e de muitos anos. Foram necessários não só os recursos financeiros gerados pelo trabalho de seus filhos homens. Foi preciso o trabalho de sua esposa, filhas, noras e genros, aliados à colaboração de amigos e cunhados que, mesmo de longe, contribuíram fornecendo informações e documentos. O título da obra é o mesmo que abre o caderno de pesquisa por ele deixado incompleto. Foram incluídas aqui todas as obras localizadas, mesmo as que não se tem certeza se foram publicadas. Deixados de incluir apenas a versão preliminar de “Meu Pai”, em virtude desse texto ter sido resumido e publicado, em 1967, por Raimundo Rocha. O livro começou a ser organizado em 1983/1984, quando foi concluída a pesquisa e foram datilografados, por Maria do Carmo Rocha (viúva de Raimundo Rocha), os trabalhos localizados. Em 1994, por ocasião dos 70 anos daquela, Pedro Dantas da Rocha Neto escreveu o Prefácio, mandou digitar e imprimir uma cópia da obra completa, para presenteá-la. Doze anos depois, participando em Mossoró (RN), como palestrante, de evento promovido pela Fundação José Augusto, então dirigida por Isaura Rosado, fizemos referencia a trabalhos produzidos e/ou publicados naquela cidade por meu pai – Raimundo Rocha. O interesse despertado em representantes daquela Fundação nos animou a retomar a organização da obra e mais tarde a sua disponibilização na internet, no site do nosso grupo de pesquisa www.gpmina.ufma.br. São Luís, abril de 2017. Mundicarmo Maria Rocha Ferretti4 4

Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, Doutora em Antropologia e membro da Comissão Maranhense de Folclore, é a primeira filha de Raimundo Rocha e quem assumiu a organização de Observando e Anotando.

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VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA

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VIDA E OBRA DE RAIMUNDO ROCHA

Nascido no município de Patú, no Rio Grande do Norte, a 21 de novembro de 1919, Raimundo Rocha faleceu em São Luís do Maranhão, em 22 de setembro de 1969, aos 49 anos de idade, deixando viúva sua esposa, D. Maria do Carmo Rocha, com onze filhos, sendo cinco menores. Hoje os seus filhos já estão quase todos formados na Universidade, têm vários filhos e residem e trabalham no Maranhão. Como comerciante, Raimundo Rocha trabalhou nos primeiros anos em Patú, em Pau dos Ferros, onde se casou com D. Maria do Carmo e em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Seguindo o caminho tradicional dos Nordestinos em direção à Amazônia, transferiu-se para Fortaleza, Teresina e Pedreiras (MA), estabelecendo-se finalmente em São Luís, a partir de 1956, onde se dedicava ao comércio do arroz, açúcar e outros gêneros. Aos treze anos ficou órfão do pai tendo vivido uma juventude atribulada. Dedicava grande amor e admiração ao pai, Pedro Dantas da Rocha, que faleceu muito jovem, deixando vários filhos menores. Aprendeu as primeiras letras com o avô, que era mestre-escola em Patú. Possuía poucos anos de instrução formal, embora sempre tenha dedicado grande interesse a atividades culturais. Dispunha em sua residência, ao falecer, de vasta biblioteca com obras sobre ciências, artes, literatura, folclore e cultura geral, além de excelente discoteca com obras clássicas e populares de alto nível. Gostava de artes, teatro, cinema e fotografia. Fotografou e filmou várias cenas da vida familiar e da cidade. Como reflexo de seu interesse pelos estudos, sempre fez questão de encaminhar os filhos à escola, estando hoje dez dos seus filhos já formados na Universidade. Em São Luís, onde se estabeleceu por mais tempo, ao lado de suas intensas atividades de comércio, dedicava-se a várias atividades culturais. Colaborava sempre com diversas entidades de cultura como o Instituto Cultural Brasil Estados Unidos, do qual foi Secretário, a Associação Comercial do Maranhão, órgão de que foi um dos Diretores, a Associação Comercial de Pedreiras e várias outras. Sempre que podia assistia a palestras, conferências e exposições de arte, adquirindo obras, apoiando o trabalho de artistas e intelectuais da terra. Foi membro igualmente de várias entidades culturais de outros Estados, como da Comissão Piauiense de Folclore, de que foi sócio fundador, da Casa de Euclides da Cunha, de Natal, do Grêmio Literário Ferreira Itajubá, em Mossoró, do Centro Norteriograndense do Estado da Guanabara (hoje Rio de Janeiro), do Clube Folclórico de Piracicaba, do Instituto Genealógico Brasileiro de São Paulo, da Associação de Profissionais da Imprensa de São Paulo e outros. Quando o tempo lhe permitia, participava de Cursos de Extensão Cultural, promovidos por entidades locais, como o Curso de Jornalismo promovido pela Universidade Federal do Maranhão em 1966, Curso de Administração de Empresas do SENAC, em São Luís, Curso de Psicologia Educacional do Movimento Familiar Cristão, etc. Em suas atividades culturais ganhou várias medalhas como as de Vital Brasil e Nina Rodrigues em 1965, e as de Couto Magalhães, Cândido Rondon e Euclides da Cunha em 1967, recebendo o título de Personalidade do Ano em Natal, em 1967. 14

Cultivava com dedicação a amizade com grandes folcloristas brasileiros e, quando possível, promovia sua vinda a São Luís, hospedando-os em sua residência e organizando conferências, como ocorreu em julho de 1967 com o seu compadre, o folclorista paulista Dr. Alceu Maynard Araújo. Colaborava com o folclorista Veríssimo de Melo em Natal, correspondia-se assiduamente com o folclorista norteriograndense Raimundo Nonato da Silva e vários outros, e nas paredes de sua casa, figurava um retrato seu ao lado de Câmara Cascudo, do qual muito se orgulhava. Para cultivar os laços de parentesco e de amizade, gostava de escrever cartas e constantemente se correspondia com filhos que estudavam em outras capitais e com parentes e amigos de outras cidades. Sempre que viajava trazia como lembranças e presentes, quadros, discos, livros e objetos de cultura. Interessado em Genealogia, correspondia-se com o Instituto Genealógico Brasileiro de São Paulo, tendo mandado confeccionar um Brasão de Armas para sua família. Tinha grande orgulho por ter trabalhos de sua autoria citados pelo folclorista Alceu Maynard Araújo, em sua obra O Folclore Nacional, publicado em 3 volumes pela Edições Melhoramentos, de São Paulo, em 1964, bem como na obra A Província Literária, de Raimundo Nonato da Silva. Em 1968, a Câmara Municipal de Patú, sua cidade natal, resolveu dar o seu nome a um Grupo Escolar da cidade, homenageando igualmente o seu progenitor, dando o nome deste à Biblioteca de referido Grupo. Raimundo Rocha angariou entre familiares e amigos e adquiriu pessoalmente, grande número de livros que doou ao Grupo Escolar que lhe prestara tal homenagem, tendo paraninfado a turma dos alunos formados em 1968. Na época, aproveitou a viagem a sua terra para fazer uma peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora dos Impossíveis, na Serra do Lima, pois era muito devoto desta santa a quem recorria constantemente para ajudá-lo em situações difíceis. Homem simples, dedicado ao trabalho, à família e aos amigos, acompanhava com vivo interesse as manifestações de cultura popular como o Bumba-meu-boi, o Tambor de Mina, o Tambor de Crioula em São Luís e manifestações folclóricas do Maranhão e em outros Estados em que residiu, demonstrando entusiasmo pelas tradições autênticas da cultura popular. Benquisto por familiares, amigos e subordinados, que sempre tratava com sincera amizade, gostava de receber os amigos com todas as honras da casa, demonstrando sempre, afetivamente, a cordial hospitalidade nordestina. Quase todas as noites e nas manhãs de domingo recebia em casa amigos que vinham bater um papo e beber alguma coisa. Diariamente ia bem cedo ao mercado fazer compras, conhecia os vendedores dos melhores produtos e os operários especializados em diversas profissões, estando pronto a indicar a um amigo o melhor mecânico, carpinteiro, eletricista, encanador ou pedreiro da cidade, que eram também seus velhos amigos. Geralmente, aos sábados à tarde ia a São José de Ribamar conversar com algum compadre, comprar peixe e fazer uma visita à igreja, levando filhos ou amigos num agradável passeio. Às noites, após o jantar, gostava de dar uma volta de carro pelas ruas do centro da cidade para adormecer os filhos pequenos e visitar algum amigo. Nas horas vagas gostava de escrever artigos para jornais e revistas, que eram publicados em São Luís, Teresina e principalmente no Rio Grande do Norte. Assim, colaborou no período de 1947 a 1969, escrevendo diversos artigos que foram publicados nos 15

seguintes órgãos: Centelha, revista do Grêmio Literário Itajubá, de Mossoró, Boletim Bibliográfico da Biblioteca Pública Municipal de Mossoró, Poliantéia, revista comemorativa do primeiro aniversário de falecimento do jornalista J. Vasconcelos, de Mossoró, Bando, revista da Casa Euclides da Cunha, de Natal, Legenda, revista de São Luís, Almanaque do Cariri, revista de Teresina ,Boletim do Centro Norteriograndense, do Rio de Janeiro, Encontro com o Folclore, revista publicada no Estado do Rio de Janeiro, Revista Genealógica Latina, de São Paulo, Jornal do Dia, de São Luís, e Jornal do Maranhão, órgão da Arquidiocese de São Luís. Para a presente publicação pensou-se inicialmente em reunir apenas 21 artigos de Raimundo Rocha, escritos e publicados em vida, entre 1947 e 1969. Depois foram sendo localizados outros trabalhos seus, igualmente interessantes, como o Caderno de Notas sobre os Irmãos Rocha, o Caderno de Pesquisa, a pasta de Correspondências e outros trabalhos publicados de que não se tinha notícia. Resolveu-se, então, publicar todos os seus trabalhos localizados. Podemos subdividir os 36 escritos aqui reunidos nos seguintes temas: etnografia, folclore e personalidades, 21 artigos; lembranças da terra natal, 8 artigos; pessoas de sua família e autobiografia, 7 escritos. Os dois temas básicos de todos os seus trabalhos são a vida familiar e o folclore. Entre seus temas favoritos destacam-se as lembranças da terra natal, dos tempos de infância e a grande admiração pela figura paterna. A paisagem física de sua região natal é descrita no belo artigo "Olho d'água do Pinga", que narra uma excursão à terra do Patú em 1947. No mesmo ano, o artigo "Divagando..." comenta a volta, depois de vários anos de ausência, à sua cidade natal, revendo lugares onde passou anos felizes na infância, e a visita ao túmulo paterno no Dia de Finados. No artigo "Figuras Patuenses - João Holanda", relembra as estórias imaginosas e divertidas que ouvia, quando criança, daquela personalidade pitoresca, que colecionava caixas de fósforos e contava estórias de assombramento, de lobisomem, mulas, etc. Um dos temas que lhe é mais grato é a recordação de seus antigos professores primários. Em "Professor Rocha, meu primeiro mestre", descreve detalhes curiosos da escola primária rural no sítio do Junco, em que os alunos eram separados em salas diferentes por sexo e onde era comum o uso de palmatória e de outros castigos. Apesar de tudo, o professor era querido e estimado e as aulas transcorriam em meio a atividades domésticas e rurais. No artigo "Sinhá Professora", lembra a rigidez e a eficiência do ensino particular da velha professora formada nos tempos do Império. No artigo "Bicho do Mato", recorda sua antiga professora na escola pública, D. Eulália Diniz, e o Professor Raimundo Soares de Andrade, que também o ensinava a caçar passarinhos, e as brincadeiras dos colegas de infância. No artigo "Dubas - Um mestre e um amigo", fala com admiração e reconhecimento do professor e amigo Manoel Jácome de Lima, com quem manteve correspondência por muito tempo. Relembra no artigo "Populares do Patú", vários loucos que eram atormentados pelos moleques, e alguns que viviam acorrentados, como era costume naquela terra que "era boa pra doido", conforme dizia um deles. No artigo "Sobrenomes e Apelidos", escrito em Teresina em 1950, refere-se a trabalhos dos folcloristas nordestinos Veríssimo de Melo e Raimundo Nonato, com quem colaborava. Procura enriquecer com suas observações, as anotações daqueles estudiosos potiguares a respeito do hábito tão brasileiro de dar alcunhas e apelidos sonoros que se ajustam bem aos tipos. Cita prodigiosa quantidade de nomes e apelidos curiosos que recolheu em várias cidades nordestinas. Em "Junco - Paraíso Infantil", publicado em 1966, lembra os anos felizes da infância no sítio do Junco onde brincava com filhos de vaqueiros e tomava banho no açude, na estação invernosa.

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A estas recordações da infância e da terra natal, acrescenta-se seu grande interesse por diversos aspectos da vida familiar, como as lembranças de sua velha avó no artigo "Mãe Velha" e de uma tia em "Mãe Mimosa", com quem conviveu durante os primeiros anos no sítio do Junco. No artigo "Família Rocha", publicado em 1961 no número 13 da Revista Genealógica Latina, procura reconstruir elementos da árvore genealógica de sua família entre 1850 e 1960. Em "Irmãos Rocha - Notas" divulga-se aqui uma resenha de seu caderno de Anotações, redigido entre 1944 e 1965, em que acompanha o desenvolvimento físico e psicológico dos onze filhos que teve com sua esposa, D. Maria do Carmo Rocha. Recorda sobretudo os momentos agradáveis passados com os filhos, datas de aniversário, passeios, presentes, brincadeiras, não lhes poupando elogios. A partir de 1954 estas, anotações vão se tornando escassas devido a afazeres e viagens, mas o interesse pelos filhos aparece sempre em sua correspondência. Em vários de seus escritos Raimundo Rocha valoriza e ressalta a figura de seu pai, de quem guardava as gratas recordações e dedicava grande estima. No artigo 'Meu Pai", de 1967, descreve com grande orgulho seu pai, Pedro Dantas da Rocha, que foi mestre escola e ocupou vários cargos na Vila do Patú. Homem esclarecido, comunicativo, gostava de ler e escrever, tendo falecido muito jovem, com apenas quarenta e um anos, mas que sempre lhe serviu como modelo de conduta. Em "Advertência para o meu futuro", escrito em Teresina em 1949, refere-se aos últimos meses de vida de seu pai que então trabalhava fornecendo gêneros para a construção de um açude. Raimundo Rocha, que trabalhava com o pai, lembrase com revolta das injustiças sofridas pelos trabalhadores na construção, com quem convivia, criticando a corrupção dos administradores públicos. Lá seu pai contraiu o mal que o levou ao túmulo, lamentando não poder ver o filho aos vinte anos. A lembrança do pai, porém, exerceu sempre grande influência na formação de seu caráter. No artigo "Humberto de Campos", publicado em Mossoró em 1947, narra algumas passagens da vida difícil do grande escritor maranhense, que era um de seus heróis prediletos, e que ascendeu na vida tendo se originado das camadas populares mais baixas. Assumindo a profissão de tipógrafo, como Benjamim Franklin, e depois de jornalista, atingiu posteriormente as mais elevadas posições na literatura nacional. Cita suas principais obras, que lia com interesse e anotava. Refere-se à influência de Coelho Neto sobre Humberto de Campos e à sua posse na Academia Brasileira de Letras, lembrando sua liberdade de consciência em defesa dos mais fracos e oprimidos. Outra figura literária que freqüentemente cita com admiração e respeito, é Machado de Assis, também humilde, que igualmente trabalhou como tipógrafo e chegou a fundar e dirigir a Academia Brasileira de Letras, a principal entidade de cultura do país na época. Cita em vários artigos, escritores eruditos como Casimiro de Abreu, Graça Aranha, Euclides da Cunha e outros, que admirava e cuja obra possuía e conhecia. No artigo "Vasconcelos - Operário de Agulha e da Pena", publicado em 1948 em Mossoró, relembra o escritor , poeta, historiador e folclorista norteriograndense, Martins de Vasconcelos, também de origem humilde, tipógrafo e jornalista, a quem foi apresentado por seu saudoso pai Pedro Dantas da Rocha, com quem fora em viagem a Mossoró, nos primeiros caminhões que entravam pelo sertão. Em "Um pouco de folclore", transcrito de seu caderno de notas, Raimundo Rocha demonstra seu interesse pelo folclore, procurando complementar elementos da literatura popular oral, transcrita por Veríssimo de Melo em "Parlendas", recolhidas em Natal, e acrescenta variantes conhecidas na Zona Oeste potiguar. Outros aspectos da literatura oral surgem nos seus escritos: "Parece mentira, Parece”... também transcrito de suas anotações ; "Pelo Sinal do Sertanejo", recolhido no interior do Rio Grande do Norte e Publicado por seu amigo Alceu Maynard Araújo, que se refere em versos à fome e à seca do Nordeste. Em 17

"Verso do Açude Salôbo" encontrado entre sua correspondência, transcreve poesia popular de sua terra fazendo referência a seu pai e a seu avô. Em 1967 e 1968, publicou dois interessantes artigos sobre cangaceiros nordestinos. Em "Eu conheci Antônio Silvino" lembra Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino e Lampião, verdadeiros flagelos do sertão, sobre os quais pairava "um halo de simpatia e admiração, não porque o sertanejo admirasse os cangaceiros, mas porque gosta de homens valentes e bem dispostos". Conta como viu Antônio Silvino, velho e alquebrado, saindo de um bar em Campina Grande, dando-lhe mais a impressão de um pastor evangélico, do que daquele que durante vinte anos atacara cidades, vilas, povoados e fazendas, distribuindo aos humildes e famintos, o dinheiro que subtraía aos ricos e a que passou longos anos na penitenciária de Recife. Fala do medo e da angústia que sentia na infância ao ouvir, à noite, as estórias do cangaço e a decepção que sentiu ao conhecer aquele que fora chamado de "Governador do Sertão”, ou o "maior cangaceiro do século vinte". No interessante artigo "onde morreu Jesuíno Brilhante" procura complementar pesquisas de Gustavo Barroso e Raimundo Nonato tentando identificar o local da morte de Jesuíno Brilhante, nascido em Patú, então Município de Martins, e considerado por Gustavo Barroso como "o maior cangaceiro do século dezenove”. Relembra fato que lhe foi narrado por seu padrinho, contestando o local em que teria morrido o famoso cangaceiro. O escritor Raimundo Nonato, com quem manteve longa correspondência, dedicou à memória de Raimundo Rocha, seu trabalho "Jesuíno Brilhante, o Cangaceiro Romântico (1844-1879)", publicado no Rio de Janeiro em 1970, onde reproduz parte deste artigo. Em 1949, Raimundo Rocha publicou em Natal dois artigos sobre os Índios Gaviões, de Grajaú no Maranhão, demonstrando sua grande curiosidade em conhecer e documentar coisas de nossa terra e lamentando a situação de desamparo em que se encontravam os nossos silvícolas. Descreve o tipo físico dos índios, o modo de trajar, seus interesses, atividades, recolhe diversas palavras de seu idioma e reclama da falta de assistência dos poderes públicos para com estes autênticos brasileiros. Há ainda no material que nos deixou Raimundo Rocha, oito interessantes artigos sobre o folclore do Piauí e do Maranhão. O folclore foi sempre um dos seus principais temas de interesse desde os primeiros escritos de 1949, até seus últimos trabalhos em 1968. Descreve o Bumba-meu-boi do Piauí, transmitindo cantigas de um boi coletadas na cidade de Campo Maior. Demonstra grande interesse pelas festas populares e em dois artigos descreve aspectos da festa de São Gonçalo do Amarante, transcrevendo versos coletados em Campo Maior e vários outros aspectos interessantes da dança. Assinala variantes e divergências de outras versões do São Gonçalo, recolhidas por vários folcloristas. Transcreve outros versos que coletou e comenta detalhes constatando não ser festas só de negro e que pertence tanto ao rico quanto ao pobre. Em "A Festa dos Cachorros", escrita em 1954, documenta esta curiosa e pouco conhecida festa de devoção a São Lázaro ou a São Roque, realizada na região do Ceará ao Maranhão. Narra a festa que lhe foi descrita por Albertina Vieira Brito, no Piauí, e amplia as informações com novas pesquisas, comentando a ingenuidade e a simplicidade da religiosidade popular. Em "Marcha dos Dez Mandamentos",transcreve os belos versos de um cantador que encontrou em Campo Maior em 1950, que foram comentados e parcialmente publicados por Veríssimo de Melo, no Diário de Natal, em 1951, e republicados por Raimundo Rocha, em 1967.

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Sobre o folclore maranhense, Raimundo Rocha deixou-nos apenas três artigos, sobre temas até hoje ainda pouco documentados. Certamente seus muitos afazeres e compromissos não lhe deram tempo de registrar por escrito suas observações, algumas das quais acompanhamos pessoalmente. No belo artigo "Romaria das Carroças a Ribamar" que inicia esta coletânea, descreve a pouco conhecida procissão organizada anualmente pelos carroceiros da Ilha de São Luis à cidade de São José de Ribamar, num domingo de lua cheia, após a festa de São José, durante toda a noite, por mais de 30 quilômetros. Narra o longo trajeto da romaria, sua chegada a Ribamar e a festa na cidade no dia seguinte. Este trabalho foi citado por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional, de 1964, e publicado em 1967 em jornais do Maranhão. Os costumes e a linguagem popular são descritos em "Medicina Caseira Maranhense", que fala da simpática figura do mezinheiro, que ensina e vende remédios nos mercados de São Luís. O belo artigo "Pregões de São Luís", descreve vendedores ambulantes típicos da cidade, que oferecem frutas e comidas maranhenses com um linguajar característico. Se tivesse vivido mais, e em época tranqüila, certamente teria escrito ainda sobre outros aspectos da vida familiar ou da vida do povo, que tanto o interessava e a que sempre se referia, analisando com simpatia e simplicidade seus variados aspectos. Raimundo Rocha, infelizmente para seus amigos e familiares, viveu pouco tempo. De origem humilde, como nos narra em suas páginas, ascendeu na vida graças à dedicação ao trabalho. Como comerciante, estabeleceu-se nos últimos anos em São Luís num belo sobrado da Praia Grande em que, por sugestão de amigo Dr. Alceu Maynard Araújo, colocou uma placa com o nome de Solar do Barão de Patú, local aonde veio a falecer numa manhã de trabalho, em 1969. Tivesse vivido mais tempo, certamente nos teria deixado muitas outras páginas bonitas e poéticas como as que estão aqui reunidas, documentando cenas familiares e costumes tradicionais das terras nordestinas, que não cansava de admirar e que gostava de descrever e pesquisar. Estas páginas nos revelam um pouco de sua rica e variada personalidade de curioso, observador de tudo que o cercava.

São Luís, janeiro de 1984. Sergio Figueiredo Ferretti5

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Sergio Figueiredo Ferretti, carioca radicado em São Luís, Doutor em Antropologia e reorganizador da Comissão Maranhense de Folclore, é genrro de Raimundo Rocha.

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FOLCLORE MARANHENSE

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ROMARIA DAS CARROÇAS A RIBAMAR6

Os carroceiros da Ilha de São Luís do Maranhão festejam o seu dia, todos os anos, com muito entusiasmo e até mesmo com grande sacrifício. O seu dia é comemorado com a Romaria das Carroças à cidade de Ribamar. Essa romaria constitui uma das festas tradicionais mais bonitas do Maranhão, ao lado do Divino e do Bumba-meu-boi. É inteiramente ligada a quantos trabalham em carroças movidas por animais. Data de tempos imemoráveis, a sua existência. Desconhece-se por completo, quando ela nasceu e a quem pertence a sua paternidade. A Romaria das Carroças à Ribamar, atualmente, é patrocinada pelo órgão da classe, Sindicato dos Condutores Autônomos de Veículos Rodoviários de São Luís, fundado a 16 de novembro de 1958 e tem sua sede provisória à rua Cândido Mendes, 471, 1º andar. O carroceiro Evandro Vieira dos Santos é o seu atual Presidente. Dirige o Sindicato com inteligência, operosidade, merecendo a confiança e apoio de todos os seus associados. O Sindicato que congrega os carroceiros de São Luís está sob a proteção de Nossa Senhora das Vitórias, Padroeira da cidade. A Romaria das Carroças existe apenas na Ilha de São Luís. Não se registra a sua presença em qualquer outro município do Estado. Participam dessa Romaria interessante não só os carroceiros de São Luís, como também os de Paço do Lumiar e de Ribamar, municípios em que se divide a chamada Ilha Rebelde. Poderíamos dizer até que é a confraternização, porque dela participam todos os carroceiros, quer sejam sindicalizados ou não, residentes nos três municípios da Ilha. O dia da Romaria das Carroças é marcado, todos os anos, levando-se em conta o término da Festa do prestigioso São José, Padroeiro da cidade de Ribamar. Regra geral, é escolhido o primeiro domingo de lua-cheia, após a festa de São José. Assim permitirá que a Romaria se realize à luz da lua, no sábado, à noite, verificando-se a chegada a Ribamar, às seis horas da manhã do domingo. Para fazer face às despesas com fogos, velas e "bóia", o Sindicato recolhe a quantia de NCr$ 3,00 de cada associado. O ponto de concentração dos romeiros é a sede do órgão da classe. Contudo, por conveniência de cada um, aqueles que residem nas proximidades do caminho por onde passará a romaria, poderão ficar no local mais próximo, para se reunirem ao cortejo. Em frente à sede do Sindicato, a imagem de Nossa Senhora das Vitórias, Protetora dos carroceiros, já se acha sobre a carroça, escolhida com antecedência, para conduzir neste ano o andor. É uma deferência especial para o carroceiro escolhido conduzir o vulto de sua padroeira. Portanto a carroça é preparada e embandeirada cuidadosamente e bem iluminada, oferecendo um espetáculo encantador, dentro da noite, aos romeiros, seus familiares e adesistas. 6

Nota da organizadora - Publicado no Jornal do Maranhão, em 03/12/1967, p. 3; no Jornal de Pinheiro, em 25/12/1967, p.5; na Revista CNR (informativo do Rio Grande do Norte), em 05/1968, p.8; na Revista Maranhense de Cultura (FUNC), ano II, nº 2, jan-jun 1978; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 27, dez. 2003, p. 14. Sobre esse artigo afirmou o folclorista Alceu Maynard Araújo, em dezembro de 1967, em carta a Raimundo Rocha: A sua Procissão das Carroças marca o seu retorno com as letras. Gostei muito do seu artigo. Continue e quero vê-lo na Academia Maranhense de Letras. É lá o seu lugar!”

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Há um detalhe importante a assinalar: a carroça que conduz o vulto de N. Senhora das Vitórias a Ribamar, será a mesma que a trará de regresso. Não é permitida uma substituição. A partida de São Luís se verifica às vinte e uma horas, da frente do Sindicato, ao pipocar de foguetes em grande quantidade, ao som de agradável banda de música, que acompanha os romeiros cantando a Ave Maria de Lourdes: Vestida de branco Ela apareceu... trazendo no cinto as cores do céu... Ave, Ave, Ave, Maria... Demandando a Praia Grande - rua Portugal, de belas tradições no comércio atacadista local, a Romaria prossegue rumo ao viaduto, Palácio do Governo, na Pç. Pedro II. Atravessa a Pç. João Lisboa, entra pela rua Oswaldo Cruz, para alcançar, cortando a cidade de Oeste a Leste, Monte Castelo, bairro do João Paulo, Filipinho, Anil, onde finalmente pega a estrada que leva a Ribamar, a Trinta e seis quilômetros da cidade de La Ravardière. Toda essa distância é devorada a pé, durante a noite de sábado para domingo, por aquele grupo de romeiros religiosos. Apenas os familiares dos carroceiros têm o privilégio de ocupar as carroças entre as duas cidades. A chegada a Ribamar se verifica ao redor de seis horas da manhã do domingo. Todas as carroças são dispostas em filas, assistem piedosamente à Santa Missa. Daí, temos a segunda etapa da Romaria, a Festa propriamente dita. As carroças são recolhidas à casa da Festa. Esta casa foi alugada com antecedência e, lá, já os espera a comedoria, cerveja, cachaça, orquestra composta de violão, saxofone, pandeiro, reco-reco, etc. E o forró "vira" o dia todo. Há sempre nessas ocasiões um elemento errado para atrapalhar os outros. Neste ano houve briga. Um elemento mesmo de Ribamar, cismou de atrapalhar a folia. Não teve graça. Foi pego a muque e posto para fora, a bem da moral. Este ano a Romaria caiu no dia vinte e um de outubro. A missa foi a vinte e dois, domingo, consagrado a Santa Maria Salomé, no calendário católico. Não temos conhecimento de que a Romaria das Carroças seja participada noutra cidade do Maranhão, fora da Ilha de São Luís. Em São Paulo, o folclorista Alceu Maynard Araújo, no seu monumental FOLCLORE NACIONAL (1964, Ed. Melhoramentos), registrou na cidade de Tatuí, por ocasião da "Festa de Santa Cruz" a "procissão das carroças de lenha". É muito curiosa e interessante essa festa em que toma parte toda a comunidade religiosa local, inclusive o Vigário da Paróquia daquela cidade do interior bandeirante. Porém é um pouco diferente da nossa Romaria. Tive a grata satisfação de contemplar e sentir o encanto dessa Romaria, na sua passagem pelo rio São João, no interior da Ilha, alta madrugada, no sítio SAYONARA, de propriedade de um amigo. Dormia no alpendre da casa, à margem do caminho. Ao lado havia 22

uma frondosa mangueira, que soltava os seus apetitosos frutos, de momento a momento, ao soprar do vento. Acordei pelo estrondar de foguetões e ao som da orquestra que acompanhava a Ave Maria, cantada pelos Romeiros que regressavam, cada um empunhando uma lanterna com luz acesa. O andor também iluminado,conduzindo o vulto de N. Senhora das Vitórias, sobre a carroça. Muita música, em plena floresta, imponentes palmeiras, compondo a grandiosidade desse quadro, iluminado pelo disco de ouro da lua-cheia. Despertei, francamente, naquela madrugada feliz, porém permaneci como que em sonho ouvindo com emoção aquela sinfonia dentro da mata, no gostoso sítio SAYONARA, no rio São João. Senti a impressão, meio acordado, de que me encontrava ante aquela belíssima cena de "Os Pirilampos", descrita pelo escritor Graça Aranha no seu livro CANAÃ.

São Luís, 26/11/1967.

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PREGÕES DE SÃO LUÍS7

Uma legião de vendedores anônimos invade toda São Luís, desde as primeiras horas da manhã, todos os dias, oferecendo os produtos de sua mercadoria ambulante, dando uma nota típica à Cidade dos Azulejos. O carvoeiro passa muito cedo, sob o peso enorme de dois cofos de carvão, presos às extremidades de uma vara robusta, que carrega sobre o ombro, por certos pontos da cidade para atender o cliente que o espera. Um grito bem fino, muito característico, se ouve à proporção que ele passa em frente da cada casa. Este grito denuncia a sua aproximação. A empregada já sabe e o espera à porta ou à calçada para receber o carvão. Ele não falha. E quem desconhece o detalhe, o grito fininho, não imagina que ele significa a aproximação dessa figura humilde e simpática do carvoeiro, a passos firmes, ligeiros e cadenciados, sob o peso de muitos quilos de carvão que carrega nos cofos sobre os ombros. O seu freguês é certo, compra o carvão suficiente para o consumo do dia. E ele percorre diariamente, quase sempre, as mesmas ruas da cidade. O abastecimento cotidiano já constitui um compromisso tático com a clientela. Ele grita e prossegue rua acima e rua abaixo, indiferente ao bulício da cidade que desperta e se agita para o trabalho rotineiro e cotidiano. É lamentável que esse pregoeiro secular esteja condenado a desaparecer de nossas ruas, das nossas grandes cidades, em nome do progresso. O carvoeiro é uma tradição. E o progresso chega e fulmina impiedosamente tudo o que é tradição, antiguidade. Pouco importa se aquilo nos proporcionou conforto e bem-estar, durante algum tempo, uma vida. O carvão cedeu já lugar ao gás, subproduto do petróleo, e, aliás, com grandes vantagens inegavelmente. O gás é, na realidade, um descanso para a empregada, para a dona de casa. É rápido para fazer a chama, não há tisna para encardir as mãos da cozinheira, não suja as vasilhas, não produz a fumaça irritante nem tisna o vestido da dona de casa. Cheiiiiro verde! ... - anuncia o verdureiro mais distante. Alegre, às vezes, canta um versozinho para fazer graça e merecer a simpatia da freguesia.... Mannnnga foice... - grita o vendedor de frutas. Mannnnga bacurí..., manguita..., banana comprida..., Banana couruda...., casca verde..., baé...., Banana casada..., pitomba...., juuuçara.... A petizada faz uma festa. E temos que comprar todo esse mundo de guloseima para a gurizada. Outro pregoeiro alarma:

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Nota da organizadora - Publicado na revista Legenda, São Luís, Ano I, nº 4, set. 1968, p. 36; e na Revista Maranhense de Cultura (FUNC), Ano II, nº 2, jan.-jun. 1972; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 46, jun. 2010, p. 16.

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Tem laranja..., tem lima..., tem tanja..., Tem bacuri e tem cupu... (Frutas regionais, uma delícia, faz correr água na boca). Na Feira do Matadouro, encontramos um grupo de vendedores anônimos, anunciando os mais diversificados produtos de sua mercancia. Destacamos o vendedor de cerâmica, entre os demais, que traz o seu produto pendurado numa vara. Tem jarrrro e tem pote... Tem "muringa" e tem bilha... No Mercado Central, está presente, além do que já nos reportamos, outro tanto de produtos regionais, e os pregões se multiplicam: Jaçannnnãããã... Peixe fresco..., tem pescada e camarão fresquinho... Tem cumurupim e tem curimatã... do Lago-Açu... O sol esquenta. A garganta resseca. É a vez do vendedor de picolé. Ele faz um esforço tremendo, sobre-humano, anunciando a variedade de fruta de seu picolé. O esforço é maior, quando anuncia as frutas da região. Há até trocadilho, vejamos: Tem cupu..., bacuri e tem ameixa... Ameixa..., bacuri e cupu... Cupu..., ameixa e bacuri... Tem bacuri..., ameixa e murici... O Luís Almeida é extraordinário, na exploração de seu comércio. Tem qualidades de grande vendedor. Criou um fraseado sonoro, pomposo para despertar a atenção da freguesia. O seu carrinho é bem cuidado, limpo e bem pintado. E abre o par-de-queixo, rua afora: Tem picolé... seu José... É de juçara, Da. Januária... É de murici... Da. Lili... É de açúcar, seu Manduca... É de abacaxi, seu Gigi... É de coco, seu Tinoco... É de caju, Da. Juju... É de maracujá, Da. Sinhá... É uma beleza, Da. Tereza... É um suplício, seu Simplício... É um coquinho, seu Agostinho... E finalmente para os cabeludos: É um tremendão, seu Brandão... É interessante. Chama a atenção por onde passa. Seria imperdoável finalizar, sem fazer uma referência especial ao gostoso "mingau maranhense" que é vendido diariamente no 25

Mercado Central de São Luís, como também a juçara com farinha d'água que se encontra à venda no portão da Feira da Praia Grande, preparada por uma roxinha muito habilidosa. Quem prova do mingau maranhense de da juçara com farinha d'água, jamais esquecerá. São Luís, 11/08/1968.

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A MEDICINA CASEIRA MARANHENSE (Medicina Prodigiosa)8

Também nos mercados e nas feiras de São Luís encontramos a figura simpática do mezinheiro, o mago da medicina prodigiosa e caseira, a ensinar e vender raízes de pau, para curar essa e aquela doença. É um comércio interessante e bem movimentado. O cliente não é apenas gente humilde, há gente bem, que vai sempre ao raizeiro, à procura dos cheiros para os banhos miraculosos ... na esperança de cura do seu mal. Ficamos horas a fio observando um deles que nos chamou a atenção, na Feira do Matadouro, oferecendo as suas raízes, os cheiros, usando uma lábia irresistível. É um "escurinho" (escurinho no Maranhão é sinônimo de preto, no resto do Nordeste), sempre a gritar com entusiasmo, convencendo de que está vendendo um produto de grande e eficiente qualidade. Tem alfazema ..., tem tempero seco ... e tem corante ... Tem boldo - remédio para os rins e para o fígado ... Defronte, outro anuncia com mais ênfase: Tem jucá ... e tem pau d'arco roxo ... (está na moda). E surge mais outro ao lado: Tem defumador de chama! ..., tem Sete flecha ... e tem Flecheiro Tem alecrim e tem incenso de igreja ... Que maravilha ... e como o povo gosta. E outro mais: Tem "Vence Tudo"..., desperta e abre caminho ... Tem Quebra-Barreira ..., tem Catinga de Mulata ... e tem Diabo Preto. Concluindo essa coisa fabulosa, da medicina caseira e prodigiosa do Maranhão, o pregoeiro enfatiza o seu pregão: Tem contra-erva para constipação e se faz lambedor com ovos de galinha ...

São Luís, 05/10/1968.

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Publicado no Jornal do Dia, São Luís, em 24/10/1969; na Revista Maranhense de Cultura (FUNC), Ano II, nº 2, jan.-jun. 1972, p. 22; e na Tribuna de Piracicaba, em 01/08/1974, com o título: Medicina Prodigiosa e Caseira de São Luí;s no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 48, dez. 2010, p. 04..

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FOLCLORE DO PIAUÍ

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ELE NÃO DÁ CRUZEIRO9 João é o mais velho, o chefe. São dez, o número dos que compõem o grupo de índios "civilizados", que se encontra nesta Cidade-Verde, ou mais propriamente, Chapada-doCorisco (Teresina). Pertencem à tribo Gavião, cujo pajé (parré) se chama Boaventura. Sua maloca se acha situada nas proximidades de Barão-de-Grajaú, no vizinho Estado do Maranhão. Todos têm nome português. Teresa e Senhorí (Senhorinha?) chamam-se as mulheres; Pedro e Fabrício, os do sexo forte. São fisicamente uns super-homens. Não obstante adaptados ao nosso meio, ainda conservam as principais características da tribo. Os homens têm os supercílios raspados, cabelos negros e lisos, que se alongam cobrindo as omoplatas. Trazem a parte inferior da orelha cortada verticalmente, sendo entretanto ligada a extremidade. João, como pai e chefe, exagera um pouco, elastecendo a parte cortada da orelha e laça, na abertura, a parte superior da mesma. As mulheres usam as orelhas furadas, como se nelas houvessem usado brincos. Igualmente, de maneira curiosa, todos, na altura das orelhas, têm uma camada do cabelo cortado, formando assim como que uma boina. Fabrício traz invariavelmente a calça arregaçada na altura do joelho e entre este e a "batata da perna" um cordão amarrado. Num arranco de curiosidade, procurei conversar com esses genuínos brasileiros, ficando extraordinariamente surpreendido quando verifiquei que não havia nenhuma dificuldade para isto. Já se comunicam regularmente no mesmo idioma do poeta dos Timbiras. João me disse inicialmente que o motivo da sua vinda a esta cidade, foi não só o desejo de deixar sua vida selvagem, mas também "pedir auxílio ao papai-grande", o governo. Mas bateram à sua porta, porém foram informados que o "papai-grande" estava viajando... Para eles não existe o Serviço de Proteção aos Índios e, num franco desafio aos responsáveis pelos nossos destinos, eles permanecem, o grupo de dez, mais uma vez nesta terra, aumentando o número dos desocupados, dos que vivem da caridade pública, margeando "o velho monge". Quase ninguém os reconhece como seres humanos. Não há para eles qualquer apoio ou controle ao trabalho continuando assim uma vida errante na cidade, famintos e esfarrapados. Nesta hora difícil que atravessamos, quando necessitamos de produção e braços para o desenvolvimento de nossa agricultura, é com tristeza que verificamos que esse elemento, elemento de casa, é deixado à margem e passamos a receber o elemento dos mais variados climas e raças, às vezes, indesejáveis aos nossos interesses, oferecendo-lhes casa, conforto, enfim tudo. O nosso elemento, os mais lídimos brasileiros, afluem às cidades sem amparo, sem lar, entregando-se à mendicidade para fugir à morte pela fome. Não desejam mais a vida nas selvas, a monotonia de suas malocas.

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Publicado na revista Bando, nº 6, p. 11, Natal, 1949.

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Ao sair, João confessou que sua tribo não prende mais "cristão", são mansos. E como pedi para dizer algo em sua língua ele, em seu próprio idioma, falou para uma das companheiras: "ELE NÃO DÁ CRUZEIRO?..." Teresina, fevereiro de 1949.

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BENEDITO, MESTRE ESCOLA DA TRIBO GAVIÃO10 Estão em Teresina mais cinco índios da tribo Gavião. Como sempre, movidos pelo natural interesse de conhecer de perto o que é nosso, de colher detalhes sobre a vida, os costumes e atividades dessa raça fadada a desaparecer. Entrei em contato com dois deles: Salomão e Amazonas. E alguns minutos decorridos, conversávamos como se fossemos velhos conhecidos que de súbito ali se encontravam. Vieram incumbidos de uma bem delicada missão que lhes fora imposta pelo grande chefe, e não para pedir inutilmente amparo ao "papai-grande". Verificada que foi a fuga de MIPLI (Maria), encantadora rapariga da tribo, o pajé Boaventura, expedira incontinenti o grupo de cinco índios - Salomão, Amazonas, irmão de Milpi, Militão, Frimiano (?) e Belizário - para sair à procura da fugitiva e fazer que ela reverta, de qualquer maneira, à maloca. Viajando pela via-férrea que liga o Maranhão ao Piauí os emissários do chefe indígena, saltaram nesta cidade, onde já se achava Milpi. Esta porém recusara o convite de regressar à tribo, "tinha pena deixar mulher", mesmo assim temia os rudes castigos a que seria irremediavelmente submetida, em reparação ao seu erro. Não a comoveram os apelos do irmão, nem tão pouco os pedidos de sua desolada mãe, que ficara nas matas maranhenses, banhada em lágrimas frente a tão profundo golpe. Para Milpi, maior que o amor materno já é a amizade, a gratidão àqueles que, na hora incerta e decisiva da sua vida, lhe deram acolhimento à margem do Parnaíba. Eles, ante tudo isto, levados talvez por pseudos sentimentos de humanidade, fracassaram fragorosamente no cumprimento da missão. "Milpi diz não volta, tem pena deixar mulher” e, continuou Salomão, "nós quer bem”, "ele não leva à força, ele não quer ir”. E, tomado de grande tristeza, concluiu: “Boaventura fica zangado, tem raiva, se não levar Milpi e diz - vocês são moles!” Quatro desses índios são tipos comuns e aparentemente medíocres. Um deles, no entanto, o Salomão, merece referência especial pela sua aguda inteligência. Forte, simpático, usando roupa bem cuidada em relação aos companheiros, de paletó branco e camisa vermelha, óculos escuros, face à cinta, lanterna e tamanco, é, em suma, desses que á primeira vista deixam seus companheiros num plano de inferioridade, absorvendo para si toda a nossa atenção. Conta dezoito anos de idade, “com seus descontos”. Acompanharam-me à minha residência, onde os apresentei aos irmãos Rocha, que lhes ofereceram, surpreendidos e alegres, várias guloseimas. Valendo-me dessa oportunidade, colhi um sem número de informações, detalhes, em torno de suas atividades, seus costumes, enfim, tudo que diz respeito à sua tribo. Esta conta, aceitando os números fornecidos por Amazonas, cerca de trezentos índios, "todos comem salgado e andam vestidos”. Entre eles está muito bem desenvolvida a agricultura. Plantam arroz, milho, feijão, fava, batata e inhame, "modubim", mandioca e cana; criam bode, porco, galinha e "angulis" (guiné), peru, pato, seis reses e dois cavalos "de carreira boa, forte". Ainda em minha casa, após ouvirem gravações de Luiz Gonzaga e Luiz Americano, pediram que repetíssemos alguns discos que mais agradaram, porque estavam aprendendo para ensinar aos outros. 10

Publicado na revista Bando, Ano I, nº 10, p. 10, Natal, out. 1949

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Salomão, fortemente emocionado, nos deus as costas e balbuciou: " Tô com saudade do pai"... Amazonas, olhando o astro-rei agonizante, disse - "Esta hora mãe está chorando"... Não foi pequena a luta para fotografá-los. Amazonas, justificando sua recusa, dissera que "tinha em casa muito retrato, tinha retrato até no Ceará". Salomão só não queria "porque não prestava". Este, no entanto, a custo, se deixou vencer e decidiu-se: "Vou deixar meu retrato pru você, mas eu quero um". E alinhando as franjas, os cabelos negros e longos, preocupado em saber se daquela forma estava bonito, posou para minha objetiva ... Este selvagem não se cansa de prestar informações e detalhes, tendo também o devido cuidado de observar se está sendo bem entendido. "Eu não gosto quando a pessoa não pergunta bem". Confirmaram serem de sua tribo os índios que aqui estiveram, e pronunciou o nome de cada um: João, Miguel, Antenor, Fabrício, Floriano, Bento, Mundico, Vicente, Teresinha e Senhorinha, e não como dissemos em trabalho anterior, Teresa e Senhori. Seu comércio, permuta de cereais por roupa e outros objetos, é de preferência feito com o caboclo Pacuá e Nascimento, na cidade de Amarante. Pondo em suas mãos algumas moedinhas com a efígie de Getúlio, Salomão sorrindo contou Cr$ 2,00. Salomão deixou-me boquiaberto ao revelar que nas matas maranhenses existe forte movimento de alfabetização entre os índios. A tribo Gavião não está indiferente a este movimento que se processa em todo o território nacional. Ela prepara-se para o futuro, tem seu mestre-escola, Benedito. O Benedito é o tal, afirmou o índio. Aprendeu ler junto "cristão" e saiu na Geraldo (Geral?), não quis mais11. Ele é nosso, você "cristão". Sou BRASILEIRO. Ele ensina nós. Tive uma noite e três dias na escola, viajei aqui. O nosso bate-papo nesse ínterim, se transformara numa proveitosa aula. "Açúcar, lata, quaje mesma coisa sua língua" e pronunciava.... Passei a dizer-lhe algumas palavras e ele dava a correspondente em sua língua|: dia - acmocrô, machado - coi, bom-dia - têmo cameá-crem, Urubu - Tzuní, faca - uacu, Deus - Pat (?), faquinha – uacurê. E finalizou com o nome de alguns deles: Cutxi - Boaventura, o pajé; Prôcatê – Salomão; Carô – Amazonas; Mipli Maria, a desertora. Teresina, junho de 1949.

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Nota do autor - Após a publicação desse artigo, li que a Serra Grande era conhecida também como Geral. Não tenho dúvidas de que o índio pronunciou Geral e não Geraldo.

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O BUMBA MEU BOI12

O BOI é a tradição junina que, no Piauí, empolga de modo geral desde a criança até o velho recurvado no seu bordão. Ninguém aqui estranharia um "São João" sem fogueira, sem milho verde, sem o clássico baile à matuta. Mas, sem o BOI, seria inadmissível, inacreditável. É a brincadeira característica da região. Dizem que ela é de origem africana, havendo chegado ao Maranhão com os escravos. Daí, espalhou-se pelo Pará e Piauí. Aparecem na mesma época, no Maranhão, também os popularíssimos "pássaros" e "animais" outros, numa perfeita imitação ao BOI. Os ensaios iniciam-se um mês antes. Já por esse tempo as crianças começam a confecção de minúsculos BOIS de talo de burití, revestidos de papel de seda de cores extravagantes. E são expostos à venda nos mercados ou nas ruas, proporcionando instante de intensa alegria à petizada. As "cantigas" se renovam todos os anos. O grupo de "foliões" varia entre dezoito e vinte e quatro anos. São - 1º Amo, 2º Amo, Chico, "Catirina", o Vaqueiro, o Caboclo Real, o Caboclo Guerreiro, 1º Rapaz, 2º Rapaz, Doutor Cachaça, Doutor "Pilantra", e outros caboclos. Tem indumentária própria de cores fortes, espécie de fantasia carnavalesca, inclusive os caboclos que se trajam com tangas, nas quais empregam penas de pássaros, à semelhança dos índios. Porém "o BOI antigo - dizem - era bem diferente". Está se modernizando e, com isto, perdendo o que tinha de mais original e mais belo. Sua pancadaria constituída por matracas, cedeu lugar a cuícas, pandeiros, tambor, maracás e apitos, que à distância imprimem um aspecto macabro à brincadeira. É costume local contratarem o BOI de sua preferência, o de mais popularidade, para cantarem nas residências para divertimento da família. É por isso que nos últimos dias de Maio, os BOIS estão aptos a atenderem a chamados ou fazerem assaltos por toda a cidade. Os dias máximos são de 23 a 28 de junho, ligando o "São João" ao "São Pedro". A brincadeira finaliza invariavelmente com a morte e ressurreição do BOI. Cada BOI pode morrer diversas vezes numa só noite. Morre em cada casa ou local, onde se exiba. Noite de São Pedro, em suma, fixam a data para a definitiva morte do BOI, no mês de julho. Cada localidade ou cidade maior tem o seu BOI, qual deles goza de maior fama. Merece referência especial o BOI de José Alves de Sousa, vulgarmente conhecido por PASSARINHO, no bairro do Matadouro, em Teresina. No ano passado o seu BOI se chamou "Jardim do Amor". Este ano foi "Brilho do Amor". Saiu bem modernizado com as "cantigas novas". Entrou na Política. Pela ZYQ-3, Rádio Difusora de Teresina irradiou, Noite de São Pedro, um programa em homenagem a Ademar de Barros e Dr. Agenor Almeida.

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Publicado na revista Bando, nº 17, out. 1950. p. 10-11, Natal, 1949; Palavras de Raimundo Nonato, em carta sem data, sobre o artigo acima: “Ontem remeti-lhe o Bando, agora saído. Seu artigo vai na mesma. Muito bom e oportuno, aliás. A propósito, o M. Rodrigues fez-lhe um elogio sem favores, colocando-o entre as colaborações necessárias”; Citado em 1964 por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional v. 1, São Paulo, Ed. Melhoramentos, p. 406; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 47, ago. 2010, p. 15..

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As "cantigas" que abaixo transcrevemos são de um BOI da cidade de Campo-Maior, em cuja ortografia, fizemos ligeira alteração: Eu tenho, moreninha, mas não dou, Meu canário cantador. Eu vou botar meu canário pra cantar com o beija-flor Lá vai, lá vai A estrelinha pelo chão. Ó borboleta do inverno, Andorinha do verão ... Lá vai, lá vai Jogando água pra o fundo, Meu boi que vai passando Eh! Moreninha, avisa a todo mundo! Eu tenho meu baralho novo, Que a morena me mandou. Meu baralho está na mesa, Está na mão do jogador. Eu tenho meu baralho novo, Que comprei, mandei buscar. Meu baralho novo está na mesa, Quem quiser pode jogar... Lá vai, lá vai O nosso boi guerreiro, Leva o nosso boi, vaqueiro, Pra rua da redondeza. Lá vai, lá vai O boi de fama, Serrador, Morena, varre o terreiro, Te prepara que já vou. Mas eu vou, eu vou, Seu colega Se as moças forem, eu vou também (Bis) Quero bem a bananeira da raiz até o meio. Quero bem estas meninas do vestido no joelho. Quero bem a bananeira da raiz até o cacho. 34

Quero bem estas meninas de doze anos pra baixo... O couro do meu boi No salão alumeia, Ou no sereno brilha, Ou no salão balanceia. Vai, vai, vai, vai reparando Eh, negro Chico, os caboclos estão te esperando... Lá vem a lua saindo Lá pra banda do nascente. Quem beija boca de moça, Não sente mais dor de dente. Ôôô... vai morrer, ôôô... vai morrer, Balanciou... A fama do BOI guerreiro, Hoje mesmo se acabou... Nós somos caboclos guerreiros, Que viemos das aldeias, Pra prender o pai Francisco, Pra meter na cadeia... Xô, xô, xô, Jerumenha (Bis) Xô, xô, xô, Jerumenha (Bis) Os caboclos se prenderam, Foi com muita da razão, Se não fosse o BOI estrela, Eu não ia preso, não... Xô, xô, xô Jerumenha (Bis) Xô, xô, xô Jerumenha (Bis) Negro Chico tira a língua, Nego, se tu queres tirar. Entrega à dona da casa, Que meu senhor mandou dar. Daqui, daqui pra acolá, É pra você mais Seu José, Me dê mais um bocadinho, Para interar o café... Teresina, 09 de agosto de 1950. 35

SÃO GONÇALO NO PIAUÍ13

São Gonçalo é, incontestavelmente, um dos santos mais festejados e queridos da família piauiense. O seu prestígio pode ser equiparado ao que desfrutam Santo Antônio, São João e São Pedro, entre a gente que mora no sertão potiguar. "São Gonçalo" era o nome da atual cidade de Regeneração. Foi uma "homenagem ao santo do nome do governador que ali recolheu 434 índios”. Patrono do templo católico de Amarante desde 1865. Coincidiu assim com o de sua homônima na península ibérica. E não há dúvidas, trata-se de uma homenagem a Portugal, por influência de seus filhos na fundação do lugar. E qual o filho de Amarante ou quem lá decidiu que, pelo menos, não guardam na memória uma estrofe do bendito que se canta na Matriz, em louvor ao seu querido padroeiro. Achamos indispensável a transcrição de uma delas que, vezes sem conta nos foi repetida: Bendito louvado seja A luz do sol tão brilhante Na hora em que nasceu São Gonçalo do Amarante... Além do culto oficial que lhe presta a Igreja, São Gonçalo é alvo de um culto esquisito entre a população ingênua e simples que habita o interior do Estado. A igreja combate e critica a prática desse ritual devocional por ser profano e supersticioso, mas persiste o costume, embora com as deturpações que lhe têm sido impostas pelo tempo. A opinião de pessoas amigas por nós ouvidas a respeito do São GONÇALO, é que " essas festas apareceram, no Piauí, com a chegada de uma família de portugueses que se localizou em Amarante”. Daí se espalhou por todo o Estado. O devoto ingênuo faz uma promessa a São Gonçalo. Pede pra ficar bom de um mal, que, muitas vezes, já não tem mais cura. Implora pela restituição da saúde de um ente querido. Pede tudo: que lhe volte às mãos o objeto perdido, o animal que desapareceu. A mulher deseja a volta do esposo, a mocinha pede um noivo. Obtido o milagre, a graça, São Gonçalo recebe a sua "festa”. A imagem de São Gonçalo é posta em um andor e levada em acompanhamento a determinada casa de pessoa amiga. Aí, realiza-se a "festa". E pelo caminho, todos cantam: São Gonçalo vai saindo, Saindo de porta a fora, Parecendo a Estrela Dalva, Quando vem rompendo a aurora. 13

Publicado no Almanaque Cariri – Edição especial do Centenário de Teresina. 2ª ed. 1952, p.856-861, coordenado por Francisco de Assis Leite; publicado também em 1954 em Dança de São Gonçalo, plaquete organizada por Assis Silva e publicado pela Biblioteca Municipal de Mossoró. Esse trabalho, como também Ainda a dança de São Gonçalí, foram citados por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional, vol. II, p. 36, como estudos criteriosos sobre a dança de São Gonçalo no Piauí e no Maranhão, assinalando sua presença nos dias atuais; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 47, ago. 2010, p. 15.

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Ôôô que caminhos tão longe, Ôôô que areias tão quente, Os milagres de São Gonçalo Fez abalar tanta gente... Minhas alvíssaras, minha gente, São Gonçalo já chegou, Foi chegando e foi dizendo: Minhas alvíssaras, eu aqui estou! O vulto do santo é colocado num altar sobre a mesa, na sala ou em latada, à frente da casa para melhor agasalho dos gonçalinos. Rezam-se algumas orações, seguindo-se um intervalo no qual ingerem algumas "chamadas" de aguardente e outras bebidas para melhor se expandirem, para ficarem mais desenvolvidos nas danças. Um grupo, quase sempre, de 12 mulheres, que ostentam miçangas no cabelo, no traje vistoso, nos braços, e 4 homens "os guias" e "contra-guias" - além dos tocadores de viola e de tambor, inicia "as danças". Formase a roda ante a imagem do santo. Começam as cantigas, as danças, ao som da viola e batuque de tambor. Os versos que transcrevemos, foram recolhidos de uma "festa de São Gonçalo", realizada no município de Campo-Maior. Foram-nos gentilmente cedidos por pessoa amiga, os quais não sofreram nenhuma alteração: Nas horas de Deus amém, Padre, Filho, Espírito Santo, É a primeira cantiga Que eu a São Gonçalo canto Padre, Filho, Espírito Santo, Nas horas de Deus amém, É a primeira cantiga Que eu a vós canto também. Eu vou dar uma despedida, No bico da saracura, A boca de São Gonçalo Parece um cravo maduro. Eu vou dar uma despedida, Numa caneca de ouro, Meu senhor São Gonçalo, Essa é em seu louvor. Eu vou dar uma despedida, Numa caneca de ouro, Meu senhor São Gonçalo Adeus que eu já vou-me embora. São Gonçalo disse ontem, Hoje tornou a dizer 37

Que eu “vinhesse” as vossas danças Que ele queria me ver. Eu vou dar uma despedida, No laço da fita roxa, Viva, viva São Gonçalo! Viva, viva o tocador! Eu vou dar uma despedida, No bico da siricora, Vou-me embora com as nuvens Que é coisa que não demora. Eu vou dar uma despedida, No galho do alecrim, Meu senhor São Gonçalo, Vossas danças estão no fim. Eu vou dar uma despedida Numa caneca de prata, Meu senhor São Gonçalo, Vós desculpe algumas falta. Entre serras e serrotes, Mora três padres galantes, São Francisco, Santo Antonio, São Gonçalo de Amarante. São Gonçalo diz que é santo, Mais também tem seus amores... Todo dia recebendo, Os seus raminhos de flores. Santo Antonio e São Gonçalo, São dois santos enteresseiros, SãoGonçalo pelas danças, Santo Antonio pelo dinheiro... E, aproximando-se dos violeiros, continuam os cantores: Estes "guias" que aqui estão, Vinheram do Rio de Janeiro, Vós levais eles pro céu, Para os pés de Deus verdadeiro. Meu senhor São Gonçalo, Aqui estão os "contra-guias", Vós levais eles pro céu, Para os pés da Virgem Maria. 38

Meu senhor São Gonçalo, Aqui tenho duas amigas, Vós levais ela para o céu, Enquanto são bem amigas. Meu senhor São Gonçalo, Vou lhe fazer um pedido,: Fortuna e felicidade, Gonçalo pra nossa vida. Meu senhor São Gonçalo, Aqui tem duas irmãs, Vós levais elas para os céus, Uma hoje, outra amanhã. Meu senhor São Gonçalo, Aqui tem duas açucenas, Cravo branco roxeado, Meninas de cor morena. Meu senhor São Gonçalo, Meu Jesus de Nazaré, Dai-me licença, meu santo, Eu beijar em vossos pés. Passemos, gente, passemos, Passemos com pé ligeiro, Depois não saiam dizendo Tem barroca no terreiro. Passemos, gente, passemos, Tornemos a repassar, Dancemos as danças direito, Pro santo nos ajudar... Começando à "boca da noite" a dança se prolonga até muito tarde, dependendo, porém, do número de jornadas a serem realizadas. Estas são em geral, 12. Há uma pessoa determinada com os caroços de milho à mão, os quais correspondem ao número exato de jornadas. À proporção que vão terminando uma, essa pessoa joga um caroço de milho fora. Isto é para evitar engano. A última jornada habitualmente é reservada para o dono da casa ou à pessoa que organiza a função, a qual, quase sempre, é contemplada com a maior parte dos gastos. Não deixa de ser muito interessante o modo por que termina essa "festa”. Consta da arrematação de um arco, após as danças. O arco foi adredemente preparado, com a devida antecedência. Muito enfeitado com papel de seda de variadíssimas cores, flores artificiais e naturais em abundância. Há neles inúmeros cachos de frutas de diversas qualidades, rodas de bolo, etc. No centro, foi colocado muito de propósito, uma penca de banana ou das melhores 39

frutas. É motivo de gracejos e pilhérias do leiloeiro, visando animar o ambiente. Antes, porém, de anunciados os objetos, cantam algo interessante e original. Uma desagradável advertência contra infalíveis caloteiros que esperam a sua grande oportunidade: Senhores e minhas senhoras Atenção me queiram prestar. Vai-se arrematar o arco De meu senhor São Gonçalo. Mas vou lhes dizendo logo Que eu não vendo fiado, Pois fiado me dão pena E pena me dão cuidado, E mesmo assim eu não posso, Pois o santo fica zangado...

Teresina, 1950.

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AINDA A DANÇA DE SÃO GONÇALO14

Bendito louvado seja, A luz do sol tão brilhante, Na hora em que nasceu São Gonçalo do Amarante...

É o início do Bendito em louvor ao Patrono da Matriz de Amarante, no Piauí. Amarante escolheu padroeiro idêntico ao de sua homônima na península ibérica. E, por isto, achamos possível que, entre os seus fundadores, houvesse a influência do elemento português para justificar essa dupla homenagem à pátria mãe. Em nossas constantes pesquisas em torno das festas tradicionais piauienses - o Tambor, o Reisado, os Caretas, o Divino, São Benedito, os Marujos, etc. - sempre ouvimos dizer que o São Gonçalo foi uma festa que apareceu no Piauí com a chegada de uma família portuguesa que foi morar em Amarante. Daí a dualidade de culto ao milagroso santo. Um com a aprovação da Igreja; outro por ela combatido. Mas, seja como for, dessa época, ou de outra mais remota, São Gonçalo continua recebendo as costumeiras homenagens do piauiense que habita o interior, apesar de combatido e criticado pela Igreja, por ser uma festa de cunho profano e supersticioso. A sua prática mais se acentua nos lugares menos visitados por padres, onde inegavelmente e instrução religiosa permanece em nível muita a desejar. Assis Silva, em interessante artigo publicado em BANDO (outubro de 1950), cujo título é análogo ao destas notas, assinala divergência entre versões recolhidas por folcloristas do Norte e do Sul do país, referentes à celebração desse culto exótico. Há aqui também divergências não apenas em versos, porque cada grupo tem os seus, mas no motivo do culto, cujos "devotos" pertencem tanto ao preto e ao branco, como ao rico e ao pobre. Não é, pois, uma "festa" só de negros, como encontrou Assis Silva, em Portalegre, no Rio Grande do Norte. Seu "devoto", como um católico praticante, recorre à intercessão do milagroso santo, prometendo fazer "um São Gonçalo", se alcançar a graça da concretização do seu desejo, a solução do seu caso, muitas vezes tão curioso quanto a própria "festa". Num andor, a imagem de São Gonçalo é levada em acompanhamento a determinada casa de pessoa amiga, na qual se realizará a "festa”. Colocado o vulto do Glorioso Santo sobre uma mesa na sala ou no terreiro, rezam-se algumas orações. Seguindo-se, os Gonçalinos em frente à imagem à roda e começam as danças, de modo mais ou menos idêntico ao descrito pelo autor do artigo mencionado.

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Publicado na revista Bando, Ano V, Vol. III, nº 4, Natal, set. 1953, Natal. Apresenta pequena modificação ao publicado no Almanaque do Cariri (1950-1952) e no plaquete organizado por Assis Silva Sobre a Dança de São Gonçalo (1954), com o título São Gonçalo no Piauí; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 37, jun. 2007, p. 07. Esse trabalho, como também São Gonçalo no Piauí, foram citados por Alceu Maynard Araújo em Folclore Nacional, vol. II, p. 36, como estudos criteriosos sobre a dança de São Gonçalo no Piauí e no Maranhão, assinalando sua presença nos dias de hoje.

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Vítima da sorte nessa estranha "festa", como o "devoto" Assis Silva, uma jovem campo-maiorense, de uma retentiva privilegiada, nos oferece as CANTIGAS DE SÃO GONÇALO, que transcrevemos sem nenhuma alteração: São Gonçalo vai saindo, Saindo de porta a fora, Parece a Estrela d' Alva Quando vem rompendo a aurora. ôôô... que caminhos tão longe, ôôô... que areias tão "quentes”, Os milagres de São Gonçalo Fez abalar tanta gente. Minhas alvíssaras, minha gente, São Gonçalo já chegou, Foi chegando e foi dizendo: Minha alvíssaras, eu aqui estou. Nas horas de Deus amém, Padre, Filho, Espírito Santo, É a primeira cantiga Que eu a São Gonçalo canto Padre, Filho, Espírito Santo, nas horas de Deus amém. É a primeira cantiga Que eu a vós canto também. São Gonçalo disse ontem. Hoje tornou a dizer Que “vinhesse” as vossas danças Que ele queria me ver. Entre serras e serrotes, Mora três padres galantes: São Francisco e Santo Antonio, São Gonçalo do Amarante. São Gonçalo diz que é santo, Mas também tem seus amores, Todo dia recebendo Os seus raminhos de flores. Santo Antonio e São Gonçalo São dois santos "enteresseiros" São Gonçalo pelas danças Santo Antonio pelo dinheiro.

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Os cantadores aproximam-se dos tocadores e prosseguem: Eu vou dar uma despedida, No bico da saracura, A boca de São Gonçalo Parece um cravo maduro Eu vou dar uma despedida Numa caneca de ouro, Meu Senhor São Gonçalo, Essa é em seu louvor. Eu vou dar uma despedida, No laço da fita roxa, Viva, viva São Gonçalo, Viva, viva o tocador. Eu vou dar uma despedida, No bico da siricora, Vou-me embora com as nuvens Que é coisa que não demora. Vou dar uma despedida, No galho do alecrim. Meu Senhor São Gonçalo, Vossas danças estão no fim. Eu vou dar uma despedida, numa caneca de prata. Meu senhor São Gonçalo, Vós desculpe alguma falta. Eu vou dar uma despedida, Numa caneca de ouro. Meu Senhor São Gonçalo, Desculpe as faltas que houve. Eu vou dar uma despedida, No bico da saracura, Adeus, adeus, São Gonçalo, Adeus que eu já vou-me embora. Estes guias que aqui estão, “Vinheram” do Rio de Janeiro, Vós levais eles para o céu, Para os pés de Deus verdadeiro. Meu senhor São Gonçalo, Aqui estão os contra-guias 43

Vós levais eles para o céu, Para os pés da Virgem Maria. Meu Senhor São Gonçalo, Aqui tem duas irmãs. Vós levais elas pro céu, Uma hoje, outra amanhã. Meu senhor São Gonçalo, Aqui tem duas amigas. Vós levais elas para o céu, Enquanto são bem amigas. Meu Senhor São Gonçalo, Aqui tem duas açucenas, Cravo branco roxeado, meninas da cor morena. Meu Senhor São Gonçalo, Vou lhe fazer um pedido: Fortuna e felicidade, Gonçalo pra nossa vida. Meu Senhor São Gonçalo Meu Jesus de Nazaré Dai-me licença meu santo, Eu beijar em vossos pés. Passemos, gente passemos, Passemos com pé ligeiro, Depois não saiam dizendo Tem barroca no terreiro. Passemos, gente, passemos, Tornemos a repassar, Dancemos as danças direito, P'ro Santo nos ajudar. Comumente a dança termina à meia noite, e a "festa" finaliza com a "arrematação do arco”. Este é previamente preparado, do qual pendem belos cachos de banana, de laranja, "rodas" de bolos e mais alguns objetos, que são arrematados em leilão. Antes, porém, do leiloeiro falar, cantam ainda algo que constitui categórica advertência contra infalíveis "marreteiros" que esperam a sua oportunidade. Senhores e minhas senhoras, Atenção me queiram prestar, Vai-se arrematar o "arco" De meu Senhor São Gonçalo. Mas vou lhe dizendo algo, 44

Que eu não vendo "fiado", Pois fiado me dão pena, E pena me dão cuidado, E mesmo assim eu não posso, Pois o Santo fica zangado... Como vemos os versos são diferentes dos citados por Assis Silva. Há entretanto, em alguns deles, referências à "caneca de ouro", "caneca de prata", nossas "faltas" e ao "Rio de Janeiro”. As duas quadras em suma, as últimas, se assemelham às recolhidas por Nonato Mota, em Apodi (RN). O jornalista Manuel Viana, falando-nos sobre a realização do culto a São Gonçalo no Maranhão, declamou duas quadras que aprendera na infância, com as quais finalizamos: Ôoo meu São Gonçalo, Fulô de cajá, Matai essas veias Pras moças casá... E as velhas em frente às moças respondiam no mesmo ritmo: Ôoo meu São Gonçalo, Não faça isso, não, Que as pobres das veias Não tem culpa não...

Teresina, 20 de janeiro de 1951.

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A FESTA DOS CACHORROS15

Albertina Vieira Brito conhece muito bem os costumes e tradições de sua terra. Piauiense de origem humilde, criou-se da casa de sua mãe, da zona rural do município de Campo-Maior, para a casa de pessoas amigas em Teresina. Morou cerca de três anos em nossa casa e, durante esse tempo, jamais perdeu oportunidade de demonstrar e de nos transmitir os seus conhecimentos em torno das tradições e costumes de sua gente e do seu Estado. Certo dia, regressando de um passeio à casa materna, Albertina perguntou: - "Seu" Mundico já ouviu falar na "festa" dos cachorros que se faz aqui no Piauí? E, sem esperar a nossa resposta, passou a descrevê-la: É assim, disse ela, a gente possui um cachorro de estimação ou um animal qualquer. Ele adoece, aí se faz uma promessa a São Lázaro - se o bicho ficar bom, faz-se uma festa para dar de comer a sete cachorros de sete pessoas amigas. O “de comer” é do bom e do melhor, e, no fim, tem a sobremesa de doce, como se faz para gente mesmo. E pormenorizando, continuou ela - "mamãe deve, há anos, uma promessa dessas a São Lázaro. Ainda não pagou, mas pretende pagar logo que melhore de situação". Fizemos outras pesquisas, e depararam-se-nos novos detalhes bem interessantes em torno dessa tradição, registrada no território piauiense. Põem-se pelo chão, na sala, duas esteiras novas de palha de carnaúba que servem de mesa. Sobre esta, distribuem-se os pratos com os saborosos manjares, que foram cuidadosamente preparados para regalo dos cães. Bem limpos, com um laço de fita ao pescoço, os cachorros, presos à corrente, permanecem todo o tempo seguros pelos respectivos donos, o que é indispensável para que não haja briga e corra tudo na santa-paz. Comida franca é servida enquanto os convidados suportam e, por fim, ainda o doce... Há segunda mesa. É para os donos dos cães, também para algumas pessoas que honraram a festa com a sua presença. Outras buscas realizadas mesmo na capital piauiense nos levaram a novas revelações. Luis Nonato da Costa - o Camarão - e Aniceto Alves Rodrigues, ambos engraxates na praça Rio Branco, nos transmitiram outras versões não menos curiosas. O Luís Nonato assistiu no subúrbio teresinense a uma dessas "festas" em cuja promessa se pedia ao santo varão da Igreja a volta da saúde de uma criancinha. Alcançada a graça, o garoto foi posto à mesa entre os cachorros e comiam os convidados e a criança, a um só tempo o mesmo alimento. Aniceto Alves presenciara cerimônia idêntica em que o ex-doente era adulto. Este não compareceu à primeira mesa com os cães, preferindo a segunda. Em todas essas versões, verifica-se nitidamente o espírito de religiosidade do povo ingênuo e simples, que não se envergonha de nada, elegendo São Lázaro o protetor dos cães, invocando a intercessão na Corte Celeste, para obtenção de cura, às vezes, de um animal que, o mais das vezes, é portador de uma moléstia perigosa. 15

Publicado no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 47, ago. 2010, p. 15..

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Temos em todas as versões recolhidas em fontes limpas, a presença do número sete: sete cachorros de sete pessoas amigas. São Lázaro é, quase sempre, esquecido após as comidas. Esquecido e desprezado para que possa realizar-se um animado e grande baile o qual se prolonga até o nascer-do-sol no dia seguinte. Na cidade de Palmeiras, ainda no Piauí, o Sr. João de Deus Soares, funcionário do Departamento de Agricultura, também assistiu a uma dessas "festas". O banquete foi servido realmente numa mesa. Os cães ficaram com os pés apoiados nos bancos de madeira, contornando a mesa. Porém, a seu ver, a posição era um pouco incômoda e os cachorros gulosos e desesperados, desrespeitando os seus donos, invadiram a mesa, finalizando tudo como era de esperar - COM UMA BRIGA INFERNAL...

Fortaleza, 18/06/1954.

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MARCHA DOS DEZ MANDAMENTOS16

Encontrei na cidade piauiense de Campo-Maior, por volta de 1950, quando morava em Teresina, numa de minhas viagens a Fortaleza (Ceará), um poeta anônimo, cantador de viola, que me chamou a atenção e do qual jamais me esqueci. Boêmio, sonhador, um Divino Maluco, que vive a deleitar o povo, sem pensar no dinheiro, tocando, cantando modinhas, toadas, improvisando versos, dedilhando o seu pinho inseparável. Esse violeiro sem nome, de inteligência fora do comum, humilde, tinha o dom de prender o seu auditório certo, à porta de botequins, graças à gostosura dos temas dos seus versos simples e melodiosos. Tocando na sua viola, à porta de uma "bodega", sentado, num tamborete de couro cru, recebia os seus ouvintes, como estímulo, remuneração, um "trago" de uma deliciosa caninha, e, assim passava o tempo. Nasceu para cantar, não queria vida melhor e era feliz cantando. Fui surpreendido, certa feita, ao ouvi-lo cantando os DEZ MANDAMENTOS DA LEI DO AMOR. Trata-se de um verso parodiando os DEZ MANDAMENTOS DA LEI DE DEUS, com o quê o vate piauiense homenageava o seu amor - uma Maria qualquer. Vai aqui a transcrição da versalhada da MARCHA DOS DEZ MANDAMENTOS para nosso deleite: Estes Dez Mandamentos Que o meu peito encerra Amar a Deus no céu E Maria aqui na terra. Primeiro amar a Deus, Meu amor, meu bem-querer, Se Maria for constante, Hei de amá-la até morrer... Segundo não jurar Seu santo nome em vão, Eu juro por Maria A quem dei meu coração... Terceiro ouvir Missa, Domingos, Festas de Guarda. Eu vou ouvir Missa Bem juntinho da minha amada. Quarto honrar pai e mãe, 16

Publicado em Encontros com o Folclore, Ano IV, nº 12, 1967, editado pelo folclorista Francisco de Vasconcelos, e no Jornal do Maranhão, São Luís, 16/07/1967, p. 4. Os cinco primeiros versos de Os dez mandamentos, encaminhados por Raimundo Rocha a Veríssimo de Melo, foram por este divulgados em 09/02/1951, no Diário de Natal – seção Arquivos de folk-lore e etnografia.

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Pai e Mãe eu honrarei. Pelo amor de Maria, Pai e Mãe eu deixarei. Quinto não matar Que nunca matei ninguém. Só mato as saudades, Que sinto por ti, meu bem... Sexto não pecar Contra a castidade. Só peco por Maria Que por ela tenho amizade. Sétimo não roubar Que nunca roubei ninguém, Só roubo as saudades Que sinto por ti, meu bem. Oitavo não levantar Falso testemunho, Só levanto a Maria Porque é minha risonha. Nono não desejar A mulher do próximo, Só desejo a Maria Porque ela não tem sócio... Décimo não cobiçar As coisas alheias, Só cobiço a Maria Porque é minha sereia...

São Luís-MA - 19/06/1967.

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FOLCLORE DA SECA

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ADVERTÊNCIA PARA O MEU FUTURO

A 18 de agosto de 1932, meu pai instalava um fornecimento para operário na povoação de Lucrecia, no município de Martins. Ali havia sido atacada, recentemente, a construção de um dos maiores reservatórios d'água da região, o qual ao ser inaugurado pelo então Presidente Getúlio Vargas, recebeu o nome do lugarejo. Fui companheiro de meu progenitor em tal empreendimento (vendia pão na parede do açude) chegando mesmo um dia antes, a 7 de agosto, à noite, em companhia de seu irmão Seledon - o Doutor, na intimidade. Nesta mesma data, antes de nossa saída, o Sr. Joaquim Almeida da Silva havia assassinado em Patú, na sua própria residência, o escrivão João Carlos da Silva. Ainda não me fugiram da memória os horrores por que passara aquele aglomerado de seres humanos, que para ali afluía em massa, faminto e esmolambado, à procura de pão e trabalho para não morrer de fome, até que "Deus mandasse o bom tempo". Era um formigueiro humano. Homens, mulheres e crianças se debatiam numa luta cruel e desigual contra a natureza madrasta, com um único objetivo - um pouco de alimento que lhes prorrogasse a vida por mais alguns dias, alguns meses em "Um adiantamento eterno que se espera, Numa eterna esperança que se adia". Atravessávamos a terceira seca, uma após outra. Os administradores da construção do açude de Lucrecia, indiferentes aos bons propósitos do Chefe da Nação, desprezando também os mais rudimentares sentimentos de humanidade, não escondiam sua ganância pelo dinheiro do povo, que ali estava sendo aplicado em seu próprio proveito, em hora tão oportuna. Operários eram suspensos do serviço porque, debilitados pela fome, não chegavam rigorosamente para atender ao "ponto", quando soava a "cachorra" na Residência. Cortavam-se turmas inteiras, quando tentavam qualquer resistência contra a desumanidade e prepotência de certos funcionários, ou do fiscal geral, uma espécie de Mussolini barato. A despeito de tanta miséria, os dirigentes do serviço, enteados dos deuses, se banqueteavam nos seus confortáveis palacetes bem iluminados, num franco desafio ao sofrimento daquelas criaturas desprotegidas da sorte, que a alguns metros morriam à fome, sem um candeeiro que lhes velasse o último instante da vida. A rigor, não havia um serviço sanitário. O médico encarregado do serviço, por sinal, residente na cidade de Martins, visitava aquele ajuntamento de fantasmas, distribuindo do alto de sua montaria, algumas receitas apressadas, parecendo-nos mais evitar o contato direto com os doentes. Meu pai, como muitos outros, também lá contraiu o mal que o levaria ao túmulo alguns meses depois. Foram inúteis os esforços tentados pela recuperação de sua saúde. Achava-se longe da família, sem conforto, pessimamente alimentado, despertando diariamente às quatro da manhã, dormindo após as vinte horas, trabalhando para ter assegurada a alimentação de seus filhos. Não resistiu ao mal, infelizmente, falecendo na tarde de 25 de janeiro de 1933, na cidade de Patú, no meio de sua família. Certo dia, cerca de catorze horas, estávamos, meu pai e eu, no armazém, em Lucrecia. Sentado num tamborete e com os pés sobre o mesmo, o indicador direito forçando o 51

maxilar inferior esquerdo, onde tinha um dente infeccionado, há tempo, ele, vendo-me em frente, sobre um saco de milho, me falou tomado da mais profunda tristeza, certo já do seu próximo desenlace. - Quantos anos você tem, meu filho? - 13 anos incompletos, papai. Respondi automaticamente com lágrimas nos olhos. - Só, meu filho? - continuou ele - era o meu maior desejo vê-lo aos 20 anos, mas estou certo que não terei este prazer. Vou morrer logo, não há jeito. Muito criança ainda, mas senti bem dentro do meu coração a profundeza da mágoa que envolvia o meu pai, naquele instante patético de sua existência. "Vou morrer logo, não há jeito". Momento supremo para um pai moribundo e um filho criança, mas que se compreendiam e se estimavam, sentindo já, os dois, as mesmas dores, as mesmas asperezas da vida. Dezessete anos rolam sobre o abismo daquela hora, e a vassoura impiedosa e destruidora do tempo ainda não conseguiu varrer do meu pensamento as angustiosas palavras de meu pai. Onde quer que me encontre, relembrando aquele momento, transporto-me espiritualmente ao nosso fornecimento, em Lucrecia, reconstituo o quadro, sentindo as lágrimas rolarem-me pela face... As palavras de meu pai, nos últimos dias da sua existência, tiveram a sua ação preponderante na formação do meu caráter. Fiquei, pois, sem o guia certo e indispensável que me encaminhasse os primeiros passos na longa e sinuosa estrada da vida, quando mais se fazia mister. Por isto, ao me jogar ao mundo, só e desajudado, para não ser pesado a ninguém, sem experiências, não é de admirar que tenha tropeçado, nos primeiros dias da jornada. Entretanto, na hora oportuna e decisiva de minha vida, refleti na grandeza das palavras paternas - "era o meu maior desejo vê-lo aos 20 anos... mas estou certo que não terei este prazer..." Reagi. Elas ressoavam, como ressoam ainda, nitidamente na minha memória, como uma grande advertência no meu caminho, para o meu futuro, para minha vida. Tenho, em suma, sempre procurado viver, ou levar a minha vida, de modo que, se meu pai fosse vivo, sentisse realmente prazer de ver o seu filho - "aos 20 anos". Estas palavras me salvaram...

Teresina, 24/10/1949.

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UM POUCO DE FOLCLORE17

SEU PAI MATOU PORCO? Diverti-me na maior das camaradagens entre companheiros de infância, com esta interessante Parlenda, que aprendi no Rio Grande do Norte. Ela jamais saiu da minha imaginação, fixando uma época das mais risonhas da minha vida: - Seu pai matou porco? - Perguntava ao amigo. - Matou - Respondia-me. - Você teve medo? - Não. - Deixe ver... - Soprava na cara do companheiro. (Se baixasse os olhos, seria um mentiroso, pois teve medo). Em Teresina, colhi uma variante não menos interessante. Ei-la: - Seu pai foi à caça? - Foi. - Ele matou onça? - Matou. - Você teve medo? - Não. Finalizando como a primeira, o interlocutor sopra nos olhos do companheiro, ficando este invariavelmente por mentiroso. Bate sempre as pestanas...

PARA AFUGENTAR COBRAS São Bento, água benta, Jesus Cristo no altar. Quem estiver no caminho, Arrede, deixe eu passar...

PARLENDAS, DE VERÍSSIMO DE MÉLO À medida que fui penetrando nas curiosas páginas de Parlendas, que me foi gentilmente oferecido pelo autor, dei-me ao trabalho de anotar algumas variantes às parlendas por ele recolhidas em Natal. Tais variantes são conhecidas na zona Oeste potiguar. Chico-chicote, Nariz de taboca, Vendeu a mulher, 17

Nota da organizadora - Transcrito do caderno de anotações de Raimundo Rocha, omitindo-se o que foi utilizado em trabalhos incluídos por ele na seção Observando e Anotando.

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Por um derrés de pipoca. Veríssimo de Melo recolheu no seu livro Parlendas, algumas formas de rima infantil QUEM VAI AO AR, aliás uma, puramente regional. Ele nos apresenta também esta versão: - Quem vai ao vento, perde o assento. É muito conhecida a resposta da vítima, mesmo no Rio Grande do Norte, a qual não encontrei no livro do escritor conterrâneo. O prejudicado contra-diz, francamente aborrecido: -E sem vergonha é quem se senta...

MOLE E QUENTE Pisando de propósito, ou casualmente, no pé do companheiro, este se torcendo, tem quase sempre a satisfação de fazer uma advertência embora tardia: - Quando vê mole e quente, é pé de gente... Pé quente é pé de gente. pé frio é pé de jia. (É uma versão colhida na capital piauiense).

O QUE É DO HOMEM O que é do homem, o bicho não come... O que é da mulher, o bicho não quer... Se o menino aparecia com a calça no meio da canela, ouvia-se do outro: - F., você vai passar riacho? ou então, - F., você vai pegar marreca?

TRAVALÍNGUA (Estas palavras serão pronunciadas com rapidez) - Toco cru pegando fogo - Toco cru pegando fogo... - Peba magro, peba gordo - Peba magro, peba gordo... 54

VOCÊ QUER? - Você quer? - Quero. - Pois coce o pé... - Você queira? - Pois coce a virilha... - Não quer não? - Pois coce a mão... No Piauí, encontrei esta variante: - Você queria? - Pois coce a barguilha...

QUEM TEM BARBA Quem tem barba, puxa barba, Quem não tem, puxa bigode. Eu como não tenho barba, Puxo na barba do bode... Na Seara Piauiense: Quem tem dente chupa cana Quem não tem Come banana.

QUEM TEM RABO No Grupo Escolar, na hora do recreio, às vezes, pegávamos um “rabo” e pregávamos na camisa ou no paletó do colega, sem que este percebesse. Passávamos em seguida a gritar: - Quem tem rabo é peru, - Quem não tem é nambu... Também, passando alguém a cavalo, gritávamos: - Ei! O rabinho caiu! Muitas vezes, a vítima, furiosamente, respondia: - Apanhe e bote na mãe!

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Ainda se algum colega pegava em algum objeto que lhe não pertencia, recebia esta: - Tire a mão da peia, Que a besta é alheia!...

MAMÃE LUA Constituía um dos mais belos passatempos para mim, no JUNCO, Patú, entre primos e minha irmã mais velha, recitar à boquinha da noite, à Mamãe Lua: A benção, Mamãe Lua, Me dá pão com farinha, Para dar a meu galinho, Que está preso na cozinha... - Chô!.. chô!.l meu galinho, Vá pra tua camarinha...

EU IA POR UM CAMINHO Encontrei em Teresina uma versão desta parlenda. O menino repete a última palavra dita, aumentando a expressão “doido”: - Eu ia por uma caminho... -Caminho doido. - Encontrei um homem... - Homem doido. - Encontrei uma vaca... - Vaca doida. - Encontrei um caipora... - Caipora doido. - Encontrei uma menina... - Menina doida. - Encontrei um boi... - Boi doido. - Encontrei uma mulher... - Mulher doida. - Encontrei um morro... - Morro doido!

VACA PRETA Também me TRAVALÍNGUAS:

era

familiar

esta

- Quero ver você dizer, Cinco vezes encarrilhadas, 56

quadrinha,

que

pode

figurar

entre

as

Sem errar, sem tomar fôlego, Vaca preta e boi pintado...

PALMINHA DE GUINÉ Minhas esposa aprendeu de sua mãe esta versão: Palminha de guiné Pra quando papai vié. Papai dá a papinha, Mamãe dá a maminha, E vovó a palmadinha, Na bundinha da bichinha...

CASINHA DE BAMBOÊ... Um, dois três, Quatro, cinco, seis, Sete, oito, nove, Para doze faltam três. Casinha de bamboê, Coberta de bamboá, Boê... boê... boê... Boá... boá... boá...

MEDICINA PRODIGIOSA Põe-se a pálpebra superior sobre a inferior, ou esfrega-se o indicador no olho do arqueiro, rezando-se em seguida esta oração: Corre, corre, cavalheiro, Vai à casa de São Pedro, Diga à Santa Luzia Que mande o lencinho dela, pra tirar este arqueiro...

MNEMÔNICAS 1 - Anum 2 - Arroz 3 - Pedrês 4 - Pé de pato 5 - Pé de pinto 6 - Francês 57

7 - Canivete 8 - Biscoito 9 - Automóvel 10 - Besta tu és

POSSÍVEL ORÍGEM DO NOME DE CIDADE DO PATU Dizem que havia dois irmãos indígenas e que moravam na mesma região. Eram amigos, mas separavam-se de comum acordo, ficando um onde temos atualmente a cidade, enquanto o outro foi residir onde existe hoje, no lado oposto da serra, o lugar PATU - de FORA. Certamente, aproximando-se o fim da sua vida, este dizia aquele: - Fulano, quando eu morrer isto aqui fica "Pa tu". O irmão respondia com o mesmo sentimento de gratidão: - E se eu morrer primeiro, isto aqui fica "Pa tu". Daí o nome da cidade. E existe Patú, a cidade, onde teria morado um, e do outro lado da serra, Patu-de-Fora, uma propriedade, onde o outro teria residido.

ORAÇÃO DE SANTA MARGARIDA Jesus me fez, Jesus me consagrou com sua santa semelhança, Jesus me aconchegou, chega Jesus filho da Virgem Maria, para hoje neste dia eu ser feliz salvo tou, salvo tarei, salve meu corpo com a cruz de Deus. Amém. Valha-me minha santa Margarida Nem estou prenha nem estou parida sou de Deus favorecida, tirou-me estas carnes mortas de dentro de minha barriga com o poder de Deus Padre, de Deus Filho e da Virgem Maria. Amém. Repete-se estas palavras de valha-me minha santa Margarida até a mulher se safar. (Esta oração é recitada pela "cachimbeira" Neném e repetida pela parturiente da cidade de Pau dos Ferros-RN. A parteira não deixa de estar sempre "mascando uma raminha" um pouco alcoolizada, para fazer o serviço melhor. Copiamos sem alterar nenhum vocábulo).

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ADAGIÁRIO Dizia-me um comerciante de Teresina: - "Eu sou comerciante e sou diferente de muitos dos meus colegas". E prosseguindo: - "não denuncio contrabando, pelo contrário, eu até gosto deles. Certo dia o fiscal "V", veio guardar um em meu armazém, cujo prejuízo para a Fazenda Estadual era superior Cr$ 1.000,00. Resultado: comprei tudo muito barato porque o "sujeito" não achou quem comprasse... " E dando boa gargalhada concluiu: - "Não importa que marica morra, quero que changa corra...".

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PARECE MENTIRA, PARECE18...

OCRIDO OU EUCLIDES? Comerciante e Secretário da Prefeitura de São Miguel, Rio Grande do Norte, o Sr. Euclides foi procurado certo dia, em sua residência, por um matuto, para solucionar, se não me engano, uma questão de terra. Batendo palmas à porta da autoridade municipal, o tabaréu foi atendido por uma preta empregada. - O que era? - perguntou-lhe secamente. - "Seu" Ocrido está? - Vige, grande coisa besta, - corrigiu ela, - não sabe nem chamar "Seu Eclides...

DELEGADO "IMPROIBIDO" O Sr. Marcelino, era comerciante em Pau dos Ferros, próspera cidade da zona Oeste potiguar. Na frente de seu estabelecimento existem duas frondosas árvores, nas quais, habitualmente, os feirantes amarravam seus animais aos domingos. Nomeado delegado, o Sr. Marcelino resolveu tomar algumas medidas relacionadas a seu cargo, e acabar com o abuso dos feiristas, deixando o dia todo os animais na porta do seu estabelecimento. Pegou uma folha de papel almaço, a pena e a tinta, escrevendo em seguida, de próprio punho, a proibição, na qual se lia entre outras palavras: "... fica improibido, a partir desta data, amarrar animais nestas árvores"... etc. etc... (Esta me foi contada por um seu colega)

QUESTÃO DE VERNÁCULO Certa vez conversávamos no estabelecimento do Sr. Antônio Holanda, em Pau dos Ferros-RN, quando o Sr. Balduíno, velho respeitável de boa palestra, ouvindo falar de Francisco Raimundo, criador no município de Portalegre, dissera: - Para mim, todo homem, ou toda pessoa, que tem dois nomes próprios no seu nome, não tem pai... José Francisco, continuou ele, Manuel José, e assim por diante...

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Nota da organizadora - Transcrito do caderno de anotações de Raimundo Rocha, omitindo-se nomes de família das pessoas citadas.

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A esta altura, despretensiosamente, perguntei o seu nome. - Balduíno José do N., respondeu ele, enfaticamente. Como era de esperar, os presentes caíram em profunda gargalhada....

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ONDE MORREU JESUÍNO BRILHANTE19 A leitura de uma carta do escritor Raimundo Nonato da Silva, datada de 01/09/67, Rio-GB, contribuiu para reforçar a dúvida que alimentamos quanto ao local exato da morte do cangaceiro Jesuíno Brilhante. A história de sua Terra Natal não tem segredos para o autor de Zona do Pôr do Sol, especialmente no que diz respeito à chamada zona Oeste, campo das peripécias de bandoleiros que infestavam em tempos idos, aquela região sertaneja norteriograndense. Raimundo Nonato é um sujeito incorrigível, filho da serra do Martins, cidade pequena, hospitaleira, excelente pelo seu clima ameno, onde se conhece a vida de cada habitante, com todos os pormenores. O autor de Memória de um Retirante, por isto mesmo, indagador, observador, não podia deixar de ser bisbilhoteiro. Pesquisador de água doce, remexe gavetas, papéis velhos empoeirados, lá atirados sabe Deus quando. Não guarda segredo, "bate logo com a língua nos dentes", como se costuma dizer. É perigoso, engraçado e, às vezes, até inconveniente. Permanece ainda em nossa lembrança os repentes gostosos que divulgou nos seus livros, sobre a dupla impagável de irmãos Chicão e Justino Cocada, Vicente Praxedes, Vitorino da Caeira e tantos outros. Vive agora a escarafunchar a vida de cangaceiros. Falou de Lampião. Lampião em Mossoró, é obra indispensável a quem quer que se dedique ao estudo do banditismo no nosso país, mormente sobre a vida daquele que espalhou terror em todo o Nordeste, durante longos anos, ora matando para satisfazer o seu instinto sanguinário e perverso, ora saqueando e deixando o mal por onde passava com sua horda de malfeitores e desalmados. Raimundo Nonato, desta vez, se apresenta investigando a vida do cangaceiro Jesuíno Brilhante, filho de Patú, então município de Martins, portanto nosso conterrâneo, "o maior cangaceiro do século XIX," como classificara o historiados Gustavo Barroso. Raimundo Nonato, com a dupla autoridade de homem de letras e conterrâneo de Jesuíno Brilhante, vai revelar para o Brasil, o que não foi dito ou focalizado por Gustavo Barroso, em Heróis e Bandidos, e que permanece na memória do povo, em toda a área que serviu de palco às aventuras extraordinárias e audaciosas, praticadas por Jesuíno, entre três ou quatro Estados do Nordeste. Escreve Gustavo Barroso, em seu livro Heróis e Bandidos, às páginas 189/90: "Nos últimos dias de dezembro, uma força guiada pelo Preto Limão conseguiu separá-lo da Casa da Pedra. Emboscou-se, disposto a vender cara a sua vida e talvez mesmo a acabar com ela fatigado da tanta luta, no lugar Santo 19

Nota da organizadora - Publicado no Jornal do Maranhão a 22/10/1967, p. 6; no Jornal da Cidade de Pinheiro a 22/10/1967, p.3; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 51, dez. 2011, p. 15. A primeira metade desse artigo foi incluída por Raimundo Nonato em JESUINO BRILHANTE – O CANGACEIRO ROMANTICO (1844-1879), Rio de Janeiro, Pongetti, 1970 (p. 189-191). A obra traz a seguinte dedicatória: “A memória de RAIMUNDO ROCHA – nascido em Patú, na mesma gleba de Jesuíno Brilhante – que tanto me incentivou para fazer este livro e que não chegou a ve-lo publicado porque foi alcançado pelo fim, no meio do caminho. A homenagem do autor”. Sobre a segunda parte do artigo comentou, em carta de 16/11/1967, seu cunhado José de Aquino: “Muito admira que fatos tão recentes dêem margem a tamanha divergência entre os historiadores. Acredito que seu artigo tem o mérito de suscitar a questão, ao tempo em que contribui com um fato novo – a narração de seu padrinho – onde se corrobora a versão da sobrevivência de Brilhante ao episódio da traição di Inácio Seleiro”.

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Antônio, entre Caraúbas e Campo Grande. Ao se aproximarem os soldados, os velhos companheiros, Manoel Piry, Pagehú e João Delgado recusaram-lhe obediência, repeliram-no, resolvendo dispersar-se. Jesuíno Brilhante, cheio de amargo desgosto, foi ao encontro dos inimigos e morreu, morte digna do vaqueiro exímio, do cangaceiro heróico que era". Na carta a que nos reportamos acima, Raimundo Nonato confessa: "Pelópidas afirma que o Brilhante morreu quando foi receber uma sela que encomendara." Reconhecemos o peso da autoridade e o valor da sua afirmação. Dr. Pelópidas foi Juiz de Direito durante muitos anos em Martins, expoente máximo e que enobrece a magistratura potiguar, cidadão íntegro, estudioso, inteligente e culto, e, por cujos atributos, sempre mereceu o respeito e simpatia de todos os seus conterrâneos. Nasce aí na sua afirmação a Raimundo Nonato, porém, um terceiro local atribuído à morte do herói - bandido patuense. Voltemos às páginas 184/85, de Heróis e Bandidos e vejamos a descrição do episódio ocorrido na casa do velho Ignácio Selleiro" o qual vale a pena transcrever na íntegra para que se tenha uma idéia da coragem, da audácia desse bandoleiro, que soube deixar um halo de admiração e simpatia, na memória daquela gente em toda a zona Oeste potiguar: "Passando na Várzea de Antônio - diz Gustavo Barroso - Jesuíno encomendou uma sella ao velho Ignácio Selleiro, ficando de vir buscá-la em dia marcado. Chegou uma força da polícia a Caraúbas e o selleiro manhosamente, de acordo com um filho, resolveu fazer prender o cangaceiro, demorando a entrega da sella até que os soldados chegassem. No dia determinado, Jesuíno desconfiou da demora do velho em acabar de colocar os ilhós e do seu olhar assustado. Ficou de orelha em pé. O seu sentido auditivo apuradíssimo avisou-o de que vinha gente pela estrada e depressa. Saltou do cavalo, embebeu a faca no peito do traidor e entrincheirou-se na casa. Quando a tropa surgiu correndo pelo caminho, derrubou um soldado com certeira pontaria. Os outros deram uma descarga. O Brilhante entrincheirado continuou a matá-los um a um, ora atirando da frente da casa, ora de traz, o que lhes fazia supor que havia mais de um inimigo. Retiraram. O cangaceiro ganhou o mato e "foi ter à sua furna." (o grifo é nosso). Cabe, nesta oportunidade, registrar uma cena que teria acontecido em Patú, que permanece na memória popular, a qual teve como protagonista o Brilhante. Ela nos foi transmitida por meu padrinho Rafael Godeiro da Silva, aliás falecido faz poucos meses, prestigioso chefe político de Patú, homem pacato e respeitável pela sua correção moral. "Jesuíno conversava com um amigo, certo dia, no fim da feira o sol já se pondo - disse-me meu padrinho Rafael - no local onde hoje se ergue a igreja Matriz, quando viu passar por suas costas, um indivíduo andrajoso, com uma criança às costas, acompanhado de uma mulher. O Brilhante o reconhecendo, quis investir contra ele dizendo que ia matá-lo. Seu amigo surpreso e compadecido, o detém: 63

Não mate este miserável! Basta o que ele está sofrendo! Jesuíno Brilhante recua dois passos, escarra, e aponta uma mancha de sangue e furioso: Por causa deste traidor é que estou morto!” Era o filho do velho seleiro que passava... Este episódio que nos foi transmitido pelo meu padrinho Rafael Godeiro, em nossa terra, no local das lutas de Jesuíno Brilhante, sem nenhuma pretensão "publicatória", como o depoimento de Gustavo Barroso, mostram que o célebre bandoleiro Jesuíno Brilhante não "morreu quando foi receber uma sela que encomendara." O nosso mestre Câmara Cascudo, cuja autoridade ninguém ousa contestar, assim descreve a morte de Jesuíno, em sua afamada ACTA DIURNA (A República Natal-RN, 1942?): "Em fins de 1879, no sítio "Santo Antonio" município de Brejo do Cruz, na Paraíba, água do Riacho dos Porcos, Jesuíno, com seis fiéis, caiu numa emboscada e foi ferido de morte. Carregaram-no agonizante. A tropa não o perseguiu. Enterraram no lugar "Palha", no meio do mato. Anos depois, um seu amigo, o médico Francisco Pinheiro de Almeida Castro, exumou o esqueleto, levando a caveira para Mossoró. Esteve o crânio na Escola Normal longamente. Por ordem do Dr. Castro, o Dr. Rafael Gurjão entregou-a ao Dr. Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Está possivelmente, perdida para os efeitos da identificação. "Caveira não tem letreiros". Em 1941, vimos a fotografia de uma caveira, em exposição, em frente ao Foto Otávio, em Mossoró, com a seguinte inscrição abaixo: "CRÂNIO DO CANGACEIRO JESUÍNO BRILHANTE". E José Otávio era jornalista e um estudioso, apaixonado pelos problemas de sua Terra. Por fim, onde morreu realmente Jesuíno Brilhante? Várzea do Antônio, Santo Antônio, no município de Caraúbas; ou quando foi receber uma sela que encomendara, ou no sítio Santo Antônio, município de Brejo do Cruz, na Paraíba?" Tenha a palavra quem quiser prestar a sua contribuição para que Raimundo Nonato no-la transmita no seu "A GESTA DO CANGACEIRO JESUÍNO BRILHANTE", pois Já mataram Jesuíno! Acabou-se o valentão... Morreu no campo da honra... Sem se entregar à prisão... NOTA BIBLIOGRÁFICA: Heróis e Bandidos – Gustavo Barroso (João do Norte), Livraria Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1917.

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São Luís, MA. 02/10/1967.

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EU CONHECI ANTÔNIO SILVINO20

A casa grande de meu avô paterno era o ponto certos das reuniões de pessoas da família, de moradores que residiam em sua propriedade no Junco, ou que moravam perto. Era um bate-papo agradável à "boca da noite, à luz de lamparina", na época da colheita, quando se fazia a debulha do feijão. Estavam presentes o contador de estórias, e o cantador que animava as reuniões. Comentavam-se também os últimos acontecimentos da região e do País. As notícias eram transmitidas de "boca em boca", pois ainda não havia o rádio, e os jornais sé existiam nas grandes cidades, como Mossoró, ou na capital do Estado. O tema predileto da palestra era sobre o banditismo, todas as noites. Lampião havia atacado Mossoró em 1927. Era o assunto do dia. Entravam em cena outros bandoleiros, dos quais alguns já não existiam, mas permanecia na lembrança do povo a sua fama. Antônio Silvino, recolhido à penitenciária de Recife, cumprindo sua pena, era discutido sempre. Eu contava apenas oito anos de idade. Imagine-se o medo, a angústia, que me dominavam ouvindo as estórias e façanhas violentas, que tinham como autor os cangaceiros que infestavam o sertão nordestino. Jesuíno Brilhante, Antônio Silvino, Lampião, para só falar na trindade suprema, porque havia um número apreciável, de bandidos em escala decrescente, menos famosos, porém igualmente perversos e temíveis. Alguns já desaparecidos, outros em plena atividade, praticando toda espécie de atrocidade entre cinco Estados. Clamando por minha avó paterna, implorando socorro as mais das noites, eu acordava apavorado, aos gritos, pois sonhara que o bandido da Vila Bela, com seu grupo, atacava nossa casa, ou outras vezes, as casas dos nossos vizinhos. Incendiavam propriedades, praticavam horrores e cometiam toda espécie de violência e atrocidade, contra a população rural indefesa. Jamais passou pela minha cabeça, na minha infância, que mais cedo ou mais tarde, teria que me defrontar com um desses cangaceiros, em carne e osso, autêntico bicho-papão da gurizada de minha geração, flagelo do sertanejo de minha terra-natal. Patú, então vila pertencendo ao município de Martins miniatura de FAR:WEST potiguar, imortalizada na crônica do cangaço por ter sido berço das extraordinárias façanhas do "maior cangaceiro do século dezenove", Jesuíno Brilhante - no dizer de Gustavo Barroso. O sr. Joaquim de Oliveira, de saudosa memória, engraçado, sisudo, falador da vida alheia, sem maldade, nos falava das lutas, das mais recentes escaramuças de cada um desses cangaceiros, na costumeira "rodinha" pela manhã e à tarde, na calçada da bodega de Manoel Mota, meu cunhado, no mercado Público. Tínhamos para cada encontro, mais novidade, um detalhe, com que conseguia com inteligência, prender a atenção dos ouvintes, graças à sua imaginação e retentiva privilegiadas. Antônio Silvino, o “Rifle de Ouro”, era o herói de sua 20

Publicado no Jornal do Maranhão, em 17/3/1968; no Boletim da Comissão Maranhense de Folclore, nº 50, ago. 2011, p. 16.

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simpatia, de sua preferência, ainda vivo, e, sobre o qual havia um halo de simpatia e admiração por onde passava e até onde chegava sua fama. Não porque o sertanejo admirasse o cangaceiro, mas porque gostava do homem valente, do homem disposto, que uma vez ferido na sua honra, resolvia a parada sem pensar nas consequências. Fulano de Tal (dizia Joaquim de Oliveira, citando o nome) certa vez foi visitar Antônio Silvino na Penitenciária do Recife. Depois de alguma conversa, pensando em agradar, resolveu comprar um abotoadura de cabelo de animal, para punho de camisa, de fabricação do velho e temido cangaceiro. Solicitou que mostrasse os botões de sua fabricação, indagando o preço. - Oitocentos réis, cada par! - informou o velho Capitão-de-mato, de dentro de sua cela. - O Sr. faz uma diferença? - perguntou o visitante, no seu costume, muito do gosto do sertanejo, de pedir abatimento. - É, se eu tivesse do lado de fora, você não me pedia diferença - trovejou o bandoleiro, como fera enjaulada, recolhendo o artigo de seu comércio. O tempo passou. A civilização penetrou no sertão adentro. Os cangaceiros famosos foram aos poucos desaparecendo. Mataram Lampião e, com ele foram os seus desalmados companheiros de cangaço. Meu mano Lourival, em 1942, se não me trai a mente, me surpreendeu com esta pergunta à queima-roupa, em Campina Grande, na Paraíba. - Você já viu Antônio Silvino?... - Ô chente... Antônio Silvino? aquele bandido do nosso tempo de menino? Onde? - Sim, ele mesmo, em carne e osso... ele aparece sempre pela manhã nos cafés da Avenida João Pessoa... Procurei francamente encontrar-me com o herói, que me roubou muitas noites de sono, na minha infância. E, certo dia, observei-o, saindo de um bar, na Avenida João Pessoa, em Campina Grande, caminhando em minha direção, um cidadão idoso, tórax ligeiramente caído para frente, suportando nos ombros o peso de seus sessenta e sete janeiros. Identifiquei sem esforço, pelas características apresentadas, que eu estava realmente na frente do famoso, legendário, Antônio Silvino, que anos atrás, se considerava o "Governador do Sertão" nordestino. Procurei enquadrar no homem que se achava à minha frente, sem que ele me percebesse, o destemido cangaceiro de Afogados de Ingazeiro, que não temia forças do governo, pronto para enfrentar a luta a qualquer momento, o valentão que não temia adversário, que contava com um grupo por ele próprio adestrado, como cantava o poeta das feiras dos mercados do Nordeste: Já ensinei aos meus cabras a comer de mês em mês, Beber água por semestre, Dormir por ano uma vez... Atirar em um soldado E derrubar dezesseis! 67

Estava à minha frente, a alguns metros, um cidadão idoso, encanecido, estatura mediana, risonho, chapéu de massa de aba longa, usando terno de brim cáqui, e, na lapela do paletó, uma rosa vermelha, bengala á mão, aparentando calma e tranqüilidade. Desmoronava-se para mim um ídolo, naquele instante, cuja grandeza, fama e poder, seria impossível se medir. Detive-me ante o herói-bandido de tantas estórias impossíveis ouvidas na minha infância, no Junco, e pus-me a pensar nas determinações do destino. Estava ali o "maior cangaceiro do século XX", homem que manteve toda a população do nordeste à mercê de seus caprichos, em polvorosa, durante vinte longos anos. Ora atacava cidades, vilas e povoados, ora assaltava fazendas de inimigos, ora defendendo a honra de moças pobres, distribuindo aos humildes e famintos o dinheiro subtraído aos ricos, aos seus inimigos. Dupla personalidade, tipo curioso que bem merecia ser estudado profunda e cuidadosamente sobre os diversos ângulos de sua vida. Senti, em suma, ao conhecer o legendário cangaceiro, recuperado socialmente, após longos anos vividos na Penitenciária do Recife, tremenda decepção. Estava liquidado o ídolo do cangaço de uma época. Antônio Silvino dava-me a impressão de um pastor evangélico, com a sua expressão de humildade e mansidão. Nada pois existia nele que lembrasse o cangaceiro "jamais igualado na sinistra fama, nunca excedido no criminoso mister". "O maior vulto de criminosos dos sertões do Nordeste" na opinião do historiador Gustavo Barroso. Foi assim que conheci ANTÔNIO SILVINO.

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"PELO SINAL” DO SERTANEJO21

A fome está devastando Os nossos Estados do Norte E eu que estou perto da morte PELO SINAL Se a chuva não for geral Logo no mês de janeiro, Não fica um só fazendeiro DA SANTA CRUZ Eu por mim já me dispus A morrer de fome: é feio! Mas de pegar no alheio LIVRA-ME DEUS Aqui mesmo entre os meus Pretendo a fome passar Porque me há de ajudar NOSSO SENHOR Ele quem anda a favor Dos mal arremediados Traz agora aperreados DOS NOSSOS Mas hei de acabar os ossos E no alheio não bulir, Para não adquirir INIMIGOS Desprezam-me os meus amigos E, para não perder a bola, Vou dar pra pedir esmola EM NOME DO PADRE

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Nota da organizadora - Recolhido do folclores nordestino e encaminhado por Raimundo Rocha a Alceu Maynard Araújo, sendo por este publicado em Pentateuco Nordestino, São Paulo, Ed. Brasbiblos, 1972, p. 3238.

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Se implorando a caridade, Não me matarem a fome Eu ainda peço em nome DO FILHO E se eu seguindo este trilho Não me derem um só vintém Eu peço em nome também DO ESPÍRITO SANTO Se não enxugarem o pranto Eu, que morrer não desejo, Me mudarei para o Brejo AMÉM

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LEMBRANÇAS DE PATÚ

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OLHO D'ÁGUA DO PINGA22

Partimos, naquela madrugada fria, como ficara combinado, sob o peso do imprescindível farnel, em demanda do "Olho D'água-do-Pinga", na serra do Patú. Ao deixarmos a cidade, nosso bloco era composto de cinco pessoas: Prof. João Guerra, organizador da excursão - o Tarzan, Ezequias de Freitas, José de Sousa, eu e Aristides Inácio que, conhecendo a palmo o terreno, fez questão de ser nosso guia. Às seis e trinta, mais ou menos, havíamos rompido a primeira etapa. Além, via-se a aproximação do astro-rei que já espalhava sobre o dorso das elevações seus primeiros jatos de luz. Estávamos sobre a serra, à residência do sr. Benvenuto Matias a quem denominei de "Fernão Dias Patuense," não porque procurasse ali "pedras verdes," ou tentasse descobrir um novo El-Dorado, mas porque fora ele, a meu ver, o autêntico desbravador dessa eminência inculta, dando de ombros aos perigos que o cercavam. Levara, num completo êxodo, sua família e alguns animais que possuía, movido pela convicção de encontrar, mais perto de Deus, muitas outras jóias que lhe oferecia aquele tesouro inexplorado. Foi-nos oferecido um café e neste ínterim, tiramos algumas fotografias, onde permanecemos fazendo ligeiras observações sobre o que realizara anonimamente esse sertanejo pobre, num período relativamente curto, como que num desafio aos endinheirados comodistas que, quase sempre, permanecem numa eterna e carinhosa indolência. Dedicara-se especialmente ao cultivo do feijão, milho, mandioca e "ouro-branco", obtendo compensadores resultados. Uma de suas primeiras preocupações, não fora apenas a realização de uma ladeira que tornasse mais accessível sua moradia, foi a construção de um açudinho que lhe garantisse água no verão. Contornando essa pequeno reservatório, encontram-se, atestando a ubedade do terreno, verdes e frondosas bananeiras, além de várias mangueiras. Seguidos agora pelo Sr. Benvenuto e um de seus filhos, transpusemos a parte mais elevada da serra, onde há um belo símbolo de nossa fé, com sentinela atenta de braços abertos a velar, constantemente, pelos destinos dessa risonha URBE, que pompéia lá em baixo. Descortinam-se, desse local, para todos os recantos daquele sertão, as mais enternecedoras paisagens. Ali, no dia da bênção do cruzeiro, ouvi Pe. Valentim Ginter, surpreendido com o panorama, essas palavras que me ficaram, ressoantes, na memória: MONTES... MONTANHAS... E COLINAS... Muito ao longe, vislumbram-se lindos burgos. Caraúbas, quase a se confundir com a cinza, no horizonte; Olho D'água dos Borges, Umarisal, Açude de Lucrecia, Estação da EFM; em Almino Afonso. Ao sopé desse gigante de granito, temos a cidade, sonhadora e feliz, cujas casas vistas do alto, parece não se elevarem a mais de dois metros do solo e seus habitantes não passam, à nossa vista, de crianças em movimento pelas ruas. No centro, completando o 22

Publicado em Centelha Abolicionista, Ano II, nº 5, 30 de setembro de 1947, Mossoró, p. 9.

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quadro, entrecortado por um sem número de pequenos cercados, açudes e estradas que serpenteiam, para todos os lados, vê-se a aproximação de uma locomotiva a se arrastar como lesma por aquele sertão referto de fartura assinalando sua passagem por longo fio de fumaça e desprendendo da chaminé alarmante silvo que repercute de maneira curiosíssima pela serra. Foi ainda nesse lugar que tivemos uma dos mais gratos passatempos, constituindo em remover grandes pedras, precipitando-as sobre o despenhadeiro, as quais produziam, à sua passagem, de quebrada, estrondos formidáveis, mutilando árvores, deixando, enfim, um caminho de destruição e ruínas. Rumamos, em seguida, ao Olho D'água, por entre a mata raquítica, andando quase sempre curvados. Era porém, um terreno um pouco acidentado, de vegetação mais variada, no qual descobrimos, à semelhança do "cantor mudo da natureza virgem" de Afonso Arinos, um grande cajueiro. Este vegetal nos faz recordar seu irmão, que floresce em Parnaíba, no Piauí, um amigo de infância, cujo destino revive na lembrança de todos, através das páginas admiráveis do grande escritor patrício que foi Humberto de Campos. Tendo, à nossa frente, novo e soberbo panorama, do lado oposto da serra, que liga Patú-de-Fora a Brejo-do-Cruz, sob um sol causticante, chegamos ao " Olho-D'água-do-Pinga", lugar que, para muitos patuenses, não passa de mera ficção. Sentimo-nos, então, recompensados pelo sacrifício enfrentado, ante as incomparáveis belezas que, amiúde, contemplamos prazerosamente. O turista, a par dos aspectos naturais que oferece essa pitoresca região, fica surpreso, frente aos magníficos painéis vislumbrados. Desprendem-se de gigantesca rocha, paulatinamente, cristalinas gotas d'água, como lágrimas a rolar dos olhos de alguém que ali permanecesse a carpir eterna pena. Esses pingos d'água caem sobre uma pedra quase plana, já perfurada um pouco, em cuja concavidade é retida cerca de uma xícara d'água fria e limpíssima. Nosso guia informou que é necessário uma hora para ser captada uma lata de 18 litros da linfa preciosa. Foi este o ponto escolhido para nossa "xepa". Mas outras chapas fotográficas foram batidas, em que aparecem, quase todos, sentados, devorando seu pedaço de queijo, rapadura ou frutas; enquanto outro, pacientemente, com um copinho à mão, recorre à fonte, para mitigar a sede. Estava, portanto, concluída a nossa aventurada excursão, embora nos restasse, ainda, sob o fardo de nossa canseira, uma etapa mais penosa a vencer. O REGRESSO...

Mossoró, setembro de 1947.

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DIVAGANDO23

Voltei a Patú, minha cidade natal, após a ausência de alguns anos. Não tive, propriamente, intenção de visitá-la, porém, fi-lo mais por imposição de itinerário. Regressava de Paú-dos-Ferros e já era quase meia-noite, hora em que não me foi possível encontrar alguém que me indicasse a residência de Chiquinho, meu irmão, onde me hospedaria. Sentime, nessa ocasião, um estranho em sua própria terra, entre sua gente. Saí, então, pelas ruas desertas, revendo os lugares por onde passei uma infância feliz, brincando "de camisa, aberto o peito", ao lado de meus irmãos, de meus primos e alguns amigos. Alimentava a esperança de encontrar, por ali, um de seus parias que me fizesse chegar ao ponto desejado. Fiquei momentos de pé, reconstituindo todo esse passado, lobrigando, a curta distância, a bela eminência de granito, que mais parecia um monstro adormecido; suas praças e ruas, a igreja em reconstrução, o sobrado velho, testemunhas de gerações que se foram, na voragem dos tempos. No alto, o firmamento todo pontilhado de estrelas, onde se não via sequer, um retalho de nuvem a embaciar a pureza daquele poético luar de setembro, que se projetava sobre a cidadezinha, entregue aos divinos caprichos de Morfeu. O silêncio era absoluto. Nem um "vira-lata" ao menos alarmando a noite. Apenas, quebrando a quietude doce, a concentração feliz de seus habitantes, o ciciar das folhas de fícus, que se espalham pela cidade, acariciada pela aragem noturna. Revejo saudosamente suas casas, e, em cada uma, leio um capítulo de sua história, seu passado. Relembro, aqui, um incidente terrível, ocorrido entre companheiros de infância; acolá, uma travessura de minha meninice. Ainda na praça João Carlos, vejo a casa em que vim ao mundo e em que ensaiei os meus primeiros passos. Ela é para mim um recanto de saudades, repleto das mais belas recordações. Nela, presenciei a luta heróica enfrentada por meu progenitor, num esforço sobre-humano, pela conquista do pão de cada dia. Era, invariavelmente, o primeiro a chegar ao trabalho e o último a deixá-lo. E, hoje, dia consagrado aos mortos pela Igreja Católica, ouvindo a saudação triste e comovente dos sinos dos templos sagrados, transporto-me à minha terra dentro daquela noite de verão, em companhia do mano, indo à sua necrópole, em vista dos mortos queridos. Entro e vejo, ao lado, o túmulo do meu pai, tendo como eterna companheira, sua mãe que o adorava. Foste, meu pai, desconhecendo os sentimentos egoísticos e hipócritas, um justo, um santo, vítima de tua própria boa-fé, causa do teu pouco sucesso neste vale de lágrimas. Foste sempre meu amigo, tolerando-me nos instantes difíceis que juntos passamos, quando me desprezavam... Adeus... Aqui te deixo, meu inesquecível pai, o testemunho de minha saudade e de minha veneração, de minha amizade e de meu respeito. Mossoró, 2/11/1947 23

Publicado em Centelha – Edição do Natal, Mossoró, 1949, p. 24-26.

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FIGURAS PATUENSES - JOÃO DE HOLANDA24

João de Holanda foi, pelo seu tipo, uma das figuras que mais me chamou a atenção, ao voltar para a casa de meus pais, em Patú, no fim de 1926, ou nos primeiros meses do ano seguinte. Tornei-me desde logo ouvinte assíduo de suas histórias imaginosas e divertidas, cercando-o mesmo, pela sua mansidão, de uma auréola de simpatia e respeito, que vem se prolongando mesmo depois de sua morte. Baixo, muito gordo, calmo, de cabeleira escassa e nívea, Holanda usava invariavelmente chapéu de massa preta, de aba-grande. Trajava de preferência cáqui, e arrastava na sua marcha tranqüila uns chinelos de rosto fechado, tão em gosto no tempo. Um de seus habituais ouvintes me informara ser ele pernambucano. Alcancei ainda o seu estabelecimento no Mercado Público da cidade, no qual se notava quase completa ausência de mercadoria para vender, a não ser algumas latas de querosene cheias de feijão, mas ele ali era encontrado diariamente, sentado no seu tamborete de couro cru, a contemplar os transeuntes que desfilavam pela rua, e por sua calçada. Posteriormente, regressando de Mossoró o Sr. João Ferreira da Silva, Holanda lhe vendera o ponto comercial. Nessa época, então, conheci uma particularidade que bem retrata o lado pitoresco de sua personalidade. Passando nos últimos dias pelo seu estabelecimento, notei que dentro do balcão havia uma ruma de caixas de fósforos. Como é natural, não resisti à curiosidade nunca ausente na criança, perguntei-lhe se tudo aquilo era também para vender. Certamente, caso contrário, me interessava para aumentar o meu estoque. A resposta foi duplamente negativa. Sem, contudo, esconder o interesse persisti: - E para que o senhor quer, "Seu" João? - Para nada - respondeu-me mansamente - entendi de guardar todas as caixas de fósforo secas, então aí... A vida é assim, de tudo nos oferece. Uns guardam recortes de jornais, retratos, selos de todos os países, guardanapos dos restaurantes, enquanto outros colecionam dinheiro cédulas ou moedas. O gosto desses maníacos varia muito, existindo uns até extravagantes. Não quero incluir entre estes o meu conterrâneo pelo coração, o seu lugar será entre os primeiros. Conheci um em Assú, que tinha uma coleção de talo de carnaúba, do maior ao menor, e também tinha uma coleção idêntica de colher-de-pau. Verdade é que não sou testemunha ocular ou não cheguei a conhecer o "museu" do velho da terra "dos verdes carnaubais". Mas, pessoas da terra me asseguraram a sua veracidade. Holanda era tido, porém, como "uma das maiores fortunas" da época no Patú, era um dos que mais tinham dinheiro "no fundo da mala". A propósito, conservo ainda uma anedota que, na sapataria de Elpídio Lopes, há muitos anos, ouvi a seu respeito.

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Publicado em Bando, Ano II, nº 14, fev. 1950, p. 12, Natal-RN.

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- "No ano passado -dizia alguém - o inverno foi muito pesado e o sol foi muito pouco. Eu ia passando para a cacimba-do-povo, e ao chegar ao portão da casa de "seu" João Holanda, vi "ele" pelo buraco da fechadura do portão, no muro, sentado num caixão de querosene Jacaré, com uma pistola na mão. Continuei olhando para me certificar do que estava acontecendo, verifiquei que ele havia tirado todo aquele horror de dinheiro que estava no chão, de dentro do chão, botou no sol para limpar o mofo, e estava pastorando com a FN em punho. Foi uma tentação". Doutra feita, o velho Godeiro - Joaquim Godeiro - que conseguiu juntar boa fortuna e gozou de franco prestígio político no Município, desafiara João de Holanda a mostrar seu dinheiro, pois tinha, "desconfiança” que o dinheiro de João de Holanda era pouco, porque ninguém via. Este, de pronto, aceitara o desafio, saindo de casa preparado para o encontro com o velho Godeiro, quando seria decidido qual dos dois teria mais dinheiro. Em cada bolso do paletó, em cada bolso da calça, Holanda havia posto um "bolo" de dinheiro para enfrentar o seu colega. No entanto, como este não apareceu no local, à hora aprazada, João Holanda, vitorioso, saiu mostrando seu dinheiro e contando o caso entre seus amigos no comércio local. Holanda tinha seus pontos preferidos para dar curso às suas histórias. A sapataria de Elpídio era um deles. Suas histórias eram quase sempre sobre aventuras da sua mocidade. História de "assombramento", de lobisomem, mulas, etc., em que ele próprio, a mais das vezes, aparecia fazendo o papel de um dos personagens de maior relevo. Ora enfrentava uma visagem, em certa cidade, a qual estava aparecendo altas horas da noite, metida numa capa preta em plena chuva; ora ele se escondia nas proximidades do cemitério, para desvendar os mistérios da burra-preta, que passava todas as sextas-feiras, à noite, rumo à bebida, assombrando o povo do lugar. E assim, histórias idênticas ele contava para deleite de seus ouvintes. Quase todos esses mistérios, em suma, eram desvendados sempre com uma estrondosa vitória sua. Tendo-se em cada passagem ou ser fabuloso - uma bela filha de Eva... quase sempre envolta num grande romance de amor...

Dezembro/1949.

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SINHA PROFESSORA

Foi, sem dúvida, a minha primeira professora particular, por volta de 1926 ou no início de 1927, em Patú, quando voltei à casa de meus pais. Seu título de professora era do Império, assim informava Francisco Felício de Moura, seu genro, com o que deixava transparecer um pouco de orgulho. Já a alcancei aposentada, em plena velhice, mas sempre dedicada ao ensino, sem jamais se curvar ao peso dos seus anos. Era tida como a melhor professora, na época, em Patú, merecendo sua escolha a preferência não só dos meninos, como também de seus pais. Deixando à margem as inovações que se sucedem dia após dia, sua escola conservava o método rotineiro e brutal das lições decoradas, cujo elemento de correção e castigo consistia na palmatória ou puxavante de orelha. Os chamados professores públicos, cheios de inovações impostas pelo governo, com a constante troca de livros, "não ensinavam ". Tinham nela forte concorrente. E enquanto os salões, as carteiras dos grupos escolares permaneciam quase sempre semivazios, Sinha Professora, Elisa Caipora, com métodos rotineiros e antiquados, mantinha suas salas, seus bancos superlotados de alunos. Embora gozando de plenos poderes para castigar seus educandos, quando julgasse necessário, jamais presenciei que minha "mestra", ao contrário de seus colegas, pusesse em prática a sua respeitável palmatória, para se impor aos seus alunos. Chegavam estes, e logo recebiam a lição ou iam fazer caligrafia, enquanto a professora entrava para o interior da casa, onde passava momentos esquecidos, deixando a meninada à mercê da sorte. Nem por isto, faltava à classe uma certa ordem, e relativo silêncio. Morena, muito baixa, cabelo pouco ondulado, sempre cuidadosamente penteado, formando um cocó à nuca, e grisalho, Sinha Professora usava o clássico pince-nez que me fazia lembrar constantemente um tal de Machado de Assis, dos livros escolares, o qual mais tarde vim a saber que, saindo das mais baixas camadas sociais, de uma oficina tipográfica, fundara e presidira a maior e a principal instituição cultural do país, sendo por isto mesmo, uma das figuras mais representativas das nossa letras. Ela, fora de qualquer dúvida, bem conhecia a vida de cada um dos habitantes do lugar, com todos os seus altos e baixos, tornando-se, por isto mesmo, uma das figuras mais tradicionais da terra de Almino Afonso. Guardo ainda, com saudades, quantos incidentes triviais que, na sua escola, certamente a muitos passaram despercebidos, no entanto, por uma particularidade qualquer, permanecem gravados para sempre, no metal ordinário da minha imaginação, resistindo a tudo e à própria ferrugem destruidora do tempo... Na mesa de trabalho, disposta num canto da sala, eu fazia, certa vez, uma cópia a tinta, em pé, quando notei a aproximação de minha "mestra". Ela havia observado a maneira inconveniente e incorreta como eu segurava a pena para escrever. Irrompendo num barulho tremendo, Sinha Professora investiu, pela primeira e única vez, contra a minha orelha, mostrando-me em seguida como devia pegar na pena. Doutra vez, aparecendo na sala de aula, o Sr. Padre das Traíras, como era vulgarmente conhecido, eu fazia novamente uma cópia ou uma caligrafia e, chegando-se a mim, o visitante pegou na minha mão que empunhava verticalmente a caneta, fazendo enérgica admoestação: 77

-Isto é jeito de se escrever?... ou de se pegar na pena?.. -Deite mais a pena, senão você não escreve que preste!... E a partir dessa época, justifica-se a guerra que declarei à pena, tomando como único elemento de defesa, o lápis. Com este e o auxílio de uma borrachinha de 200 réis, eu poderia apagar ou substituir uma letra, uma palavra mal feita, que não ficasse ao meu agrado. As lições eram decoradas em voz alta. Certa feita, a nossa "mestra" nos ensinava o nome dos Estados e capitais do país, sem levar muito em conta as alterações nos últimos anos: - "Amazonas, capital - Manaus; Pará, capital - Belém; Pernambuco, capital Recife; Paraíba, capital - Paraíba; Sergipe, capital - Aracajú; Goiás, capital Goiás... Nessa altura, ressoou o protesto de seu genro, que se aproximava: "Não, hoje a capital da Paraíba é João Pessoa e já podemos ensinar aos meninos que a capital de Goiás é Goiânia...” Aceitando a sugestão do genro, ela passava a ensinar: "Paraíba, capital - João Pessoa; Goiás, capital - Goiânia!..” Os alunos repetiam as mesmas palavras, uníssonos. Recordo ainda que Saudade! era o livro adotado, cujo autor é Teles de Andrade. Embora contendo bonitas narrações, belas histórias sentimentais, o mesmo me causara certo desprezo ou descaso pelos estudos. Esse descaso, verificou-se notadamente em face da quase completa ausência de "figuras" nas suas páginas, o que tornava a obra insuportável, monótona e paulificante, ao contrário das anteriores por que havíamos estudado. Estes eram ricos em "figuras", excediam pela policromia das suas ilustrações. Nem mesmo o sentimentalismo de suas narrativas fizeram com que eu mudasse da atitude. Não houve jeito. Entretanto, ao reviver essa quadra risonha da minha infância, vem-me invariavelmente à lembrança uma pequena passagem de um dos capítulos dessa obra. São uns versinhos que, certamente por sua popularidade, jamais esqueci: "Minha barriga está com fome, Minha boca quer comer; Para furtar não pode ser! Como há de ser, como há de ser... Fiz chocar minha Galinha Debaixo da Goiabeira Os ovos goraram todos E os pintos... Saíram na carreira. Levara toda a sua existência metendo nas cabeças dos meninos vadios de minha terra, as letras do alfabeto, nas duas gerações, Sinha Professora, mesmo aposentada, continua 78

anonimamente no seu nobre apostolado. Ela passara por mim, sem que eu jamais conhecesse o seu verdadeiro nome. Hoje depois de sua morte, mergulhando no mar dos tempo idos, nas minhas pesquisas, nas minhas indagações, só encontro como resposta à minha curiosidade, simplesmente "a Velha professora" da cidade, "a Sinha Professora" dos alunos a "mãe Nana" de seus netos. Daí o atribuir que Ana fosse seu nome. E, agora, que já não existes mais na comunhão dos vivos, ó minha "mestra", eu venho humilde depositar na tua cova, talvez confundida entre muitas outras, sem uma inscrição que denuncie o teu nome, eu venho deixar sobre a tua derradeira moradia, esta singela coroa. Há nela algumas flores que se destacam não pela sua fragrância, ou por outro pequeno detalhe, mas é justamente, porque, quando só falamos em aniquilamento, em bomba atômica, denunciando o endurecimento do coração humano, elas constituem em nossos dias uma preciosa raridade, sofrendo a ameaça de desaparecer. Olha bem, minha "mestra", não esqueças, o seu nome é Gratidão..... Amor..... Saudade.....

Teresina, 24/01/1950.

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BICHO DO MATO

Tive em Patú, precisamente, em 1927, o meu primeiro professor público. Trago ainda indelével na memória a sensação daquela hora, do primeiro dia em que entrei em contato com a escola pública, a chamada escola do governo, no grupo Escolar "João Godeiro". Sua professora, Eulália Diniz, moça de um coração boníssimo, uma santa cuidando do mais heterogêneo grupo de meninos das diversas camadas sociais da então vila do Patú. Baixa e magra, alva e de temperamento brando, delicada. Não tenho lembrança de que tenha ouvido jamais um grito seu, na classe, reprovando um aluno. Era um mimo de candura, e, por isto mesmo, renunciou ao magistério leigo, para atender ao chamamento do Divino Mestre, dedicando os seus melhores dias, ao magistério de Deus, ingressando na Ordem do Amor Divino, na qual, há poucos anos, santamente fechara os olhos para este mundo, tão cheio de ódio e tão mau. Meu pai num evidente gosto pela iniciação da instrução de seu filho, preparara um caixãozinho, mas relativamente grande para resumido número de cadernos e livros, e para o meu tamanho, e me entregara. Demandando ao educandário, eu o acompanhei levando preso ao braço o caixão com os apetrechos escolares, tomado de um misto de satisfação e acanhamento de menino "matuto" que entra em contato com o viver da cidade. Feita a matrícula, a professora facultara o meu comparecimento para o dia seguinte. E eu volto à casa com meu pai. Volto e levo preso ao braço direito o meu caixãozinho. Meus colegas da cidade, antes que o "beradeiro" transpusesse a primeira porta gritaram: - Olhe o baú!.. Que tem dentro dele?... Deixe a mala!.. Beradeiro do caixão!... Não dou ouvido e sigo com meu pai. A vila, elevada por nós a cidade, estava como que nos seus primeiros dias de núpcias com a natureza, muito verde, bonita, sua areia bem molhada. Era começo do inverno. Na rua, a meninada impossível e completamente livre, brincava, corria, gritava feliz. Tudo exprimia vida, enfim. Compareço à aula no dia seguinte. Sento-me na carteira, desconfiado, tímido e triste. Não falava. Conservava-me sempre isolado e medroso. Mas eu era a "novidade", o "calouro" da classe, natural que todas as vistas se voltassem para mim. E, logo, sibilavam pelo espaço "as terríveis" indiretas, os insultos dos veteranos: - Matuto..., bicho do mato!.., beradeiro!.. Eu não tomava represália, não sabia brigar. Vinha de uma fazenda, onde vivi a minha primeira infância sem colegas, amigos com quem vez por outra pudesse exercitar-me. Portanto, o meu único consolo era chorar. Chorava pelos insultos de meus colegas, chorava com saudade do "Junco". Nesse mesmo educandário de minha terra, tive outro professor que, desde início, não escondera a demonstração de sua amizade para comigo. Não sei se pelo meu retraimento, pela minha calma ou pelo meu comportamento em face dos outros colegas. Foi o professor Raimundo Soares de Andrade. Filho de pais paupérrimos, residentes na próspera cidade de 80

Mossoró, onde demonstrara pela tenacidade, pelo seu esforço, que o saber não é um privilégio dos ricos e dos afortunados. Estou a ver sua caligrafia miúda, bem feita e uniforme, a qual muito me esforcei para imitar. Dessa época, lembro-me que as minhas notas eram quase invariáveis 1 no comportamento, 1 no aproveitamento, ou 1 e 2 ou 2 e 1. Meu pai então, com a alegria iluminado a face, pegava a caderneta, mostrava aos seus amigos, às pessoas presentes, tendo sempre palavras de estímulo para seu filho. Guardo do meu professor e daquela risonha quadra da minha infância, as mais gratas recordações. O professor Raimundo Soares também era dado às aventuras. Após sua aula, em companhia de alguns alunos de sua preferência, (e eu era reconhecidamente um dos infalíveis), ia caçar, mais notadamente "passarinhar", no sítio de Miguel Godeiro, no pé da serra do Patú. Aí ficávamos quase o resto do dia, matando pássaros, limpando cajueiros e chupando também, à sobra amiga, os seus deliciosos frutos. Certa vez, perguntara-me o professor: - "Mundico, você já deu algum tiro?... - Não - respondi-lhe -Pois pegue a espingarda, continuou ele, vá àquele cajueiro, lá você dará um tiro..." Obedeço. Atiro num corrupião, mas sinto que só a espoleta da espingarda havia explodido. Hesitante deixo a arma, ponho o indicador, o olho, no seu cano, de onde saía um fio de fumaça. Desconfiado faço nova pontaria, e, quando menos esperava, ouço o tiro, atingindo o alvo. Peguei ainda com vida a infeliz vítima, com a satisfação de haver acertado o primeiro tiro, mas aterrorizado com a hipótese de que, questão de minutos, não fora eu mesmo vítima da minha imprevidência. Posteriormente, a mesma arma detonara, ao saltar uma cerca de arame, cravando-se vários caroços de chumbo nos dedos do Professor Raimundo Soares. O nosso companheiro de aventuras fabricava bombas, levando-as quase sempre para soltar nas suas excursões sobre a grande serra que tem o mesmo nome da cidade. Para chamar a tenção do povo do lugar, levava o material necessário, uma lata de soda cáustica vazia, que servia de modelo ou de forma, e lá fazia bombas formidáveis. Soltando todas do alto da eminência, explodiam muito embaixo, produzindo grandiosos estrondos, seguidos de espessas nuvem de fumaça. A nossa amizade, entretanto, teve o destino de muitas outras. Certa feita, deixando o portão do estabelecimento de ensino, procurei tirar desforra do insulto de um colega, na classe. Apesar de estar fora do grupo, o professor Soares achou que ainda tinha o direito de me castigar, aliás pela primeira vez. Convidou-nos a voltar à classe. Desobedeci-lhe, abandonando a escola de uma vez por todas, para o meu mal, sem que isto nunca chegasse ao conhecimento de meu pai.

Teresina, 17/2/1950.

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POPULARES DO PATU

Era bem elevado o número de populares que encontrei em Patú, por volta de 1927, a movimentar e a divertir a meninada solta que enchia suas ruas. Ainda existem alguns, enquanto outros colhidos pela morte, perduram na lembrança de quantos os conhecerem. Num esforço da memória, o mais recuado desses tipos que vou identificar, é a preta "Mãe Rosara". Louca, acorrentada, se me não engano, vivia só, á sombra de um telhado, na margem dum caminho que levava ao "Açude-do-Governo". Impunha isto que "Mãe Rosara" fosse constante e involuntariamente visitada. Era uma espécie de bicho-papão para as criancinhas e, um vai e vem eterno, dava-me a idéia da fêmea do orangotango, presa pelo pé. Lembro-me, por exemplo, da primeira visita que lhe fiz, arrastado pelo meu primo Hildo. O seu nome, por si só, me causava terror. Vendo-a na corrente, não me aproximava, temendo que, num acesso de desespero, ela se libertasse, pegando-me em seguida para me estrangular. Eu via "Mãe Rosara" na sua prisão e sentia até desejo de ouvir suas palavras, observar os seus trejeitos mais de perto, contudo, tímido, ficava à distância, evitando assim uma possível traição. Em cores mais nítidas, surge a "Mãe Rainha". Talvez a mais idosa do bando. Solteirona, cabelos sempre em desalinho, era muito alta, demonstrando ainda certa graça através de suas linhas gerais, fazendo-nos crer que vinha de boa família. Já a conheci só no mundo, vivendo na sua mei'água da rua da Cadeia, transferida depois para o Beco da Lama. Nela cabia apenas sua rede toda fuxicada, alguns cacarecos inúteis pelo chão. A um canto havia um monte de pedaços de tijolos, pedras, tampas de latas, certamente para sua própria defesa. Foi indiscutivelmente, uma das figuras mais populares da Terra de Almino Afonso. Durante o dia, falando só, era vista pelas ruas, observando o movimento das formigas, as quais chamava gringa. Batia com a mão, constantemente, à cabeça, onde já havia, bem visível, uma coroa. Mas ficava em desespero, quando lhe mostrávamos suas gringas, ou simplesmente pronunciávamos tal nome. Numa descomponenda terrível, investia contra a meninada, a gritar, sapateando e cantando, onde quer que se encontrasse. Sua curiosa figura permanece viva na lembrança de seus "netinhos". E ainda hoje, lá, não falta quem nos conte uma passagem da sua vida. "Foi muito rica" - diz um; "o sobrado velho da Prefeitura foi seu", - confessava outro. Morreu velhinha em extrema penúria, porém não vivia a pedir esmola, aceitava-a, espontaneamente, um dava-lhe uma moeda; outro levava-lhe o pão. EDSON é o Copérnico patuense, que "não teve mestre, nem livros", servindo-me da expressão agripiniana. A Astronomia era o seu fraco. Manso, forte, hercúleo, "Edisson ou Disson", como o chamávamos , soltava suas palavras paulatinamente , acompanhadas de um riso macabro, que aterrorizava as crianças. Era um gastrônomo na mais ampla acepção do termo. Costumava comer um alguidar de barro em nossa casa, entalando-se do começo ao fim. E, para aliviar tal situação, dava-lhe formidáveis murros no tórax, que ressoavam por toda casa. "Bolia no alheio", por índole. Havia um cercado do Sr. Rafael Godeiro, no local onde hoje está edificado o Mercado Público, no qual, durante o inverno, se encontravam boas 82

melancias. À calada da noite, após grandes chuvas, Edson ia ao cercado do padrinho, e roubava as melancias que bem podia transportar à sua casa. Na manhã do outro dia, chegava ao estabelecimento do "padrim Rafaié", para ouvir os comentários. Falava-se nos roubos das melancias, e o "velho Edson" com um sorriso prolongado, estirando as palavras, confessava: - " Foooi eu... qui tiiirei... deepois daquela chuuuva grande!... Edson foi longe com a sua rapinagem. Estabelecido em Patú, meu pai notara que estava sendo roubado. Isto acontecia sempre que entrava para o interior da casa. Mas, sem alarmar, agindo de certo modo, pegou o esperto em plena atividade. Era o Edson. Entregou-o à Polícia que o açoitou muito de facão. E o gatun, com a maior das naturalidades, dizia-me alegre, decorridos alguns anos: "Não dei nem um gemido... contei todas as facãozadas"...(e dava a conta de 26 ou 28). "Comi muito doce de lata, concluía, e tirei o dinheiro que encontrava na gaveta". Informado que Edson conhecia, "como ninguém na cidade, os mistérios da Astronomia", eu passei a procurá-lo para conversarmos no patamar da Igreja, nas noites límpidas e estreladas, crivando-lhes as mais disparatadas perguntas, submetendo-o a rigorosa prova. - "Disson", - perguntava eu, quando a lua vai ser cheia? - No mês que entra, tal dia, às tantas horas, - respondia ele em cima da bucha. - E no mês passado ela foi nova em que dia? - Tal dia, e tais horas... - E quando vai ter um ano bissexto? A resposta não se fazia demorar. E o modo como aprendera tudo aquilo, constituía uma dolorosa interrogação para minha imaginação infantil, que tudo queria saber. Zé Alinhado, descendo a serra de São Miguel de "Pós de Ferro" fez um estágio em Patú, e dizia a plenos pulmões - "Isto é terra boa pra doido!..” Creio que foi em 1930, para depois fixar-se em Mossoró. Levava os dias a imitar o "andar da praça!” Empaletosado, gravata extravagantemente vermelha, boné, Zé Alinhado passava o dia e entrava pela noite a andar vexadinho, exibindo o seu "andar da praça", fazendo discurso para divertimento de seus ouvintes, jovens desenfreados, que o faziam desprezar a tribuna quase sempre a pedradas. E o HONÓRIO, que “se faz de doido para melhor passar" tipo mais ou menos quixotesco, maníaco por viagens a cavalo. Tem estatura mediana, e usa quase sempre calça e polaina, paletó e camisa desabotoada, empunhando na destra uma chibata, sem chapéu, mesmo quando viaja, mostrando o crânio reluzente; à primeira vista deixa-nos a impressão de que está com o "pé no estribo" para viajar. Fala muito e tem prazer em exibir vez por outra a sua carteira com algumas cédulas. Honório sai de propriedade em propriedade, no município, cobrando e recebendo borregas que lhe prometeram. Procura também tirar maior partido nesse rendoso mister. Tenta receber borregas de pessoas que jamais lh'as prometeram. A sua conversa é de quem está aborrecido, Zangado. "Quero logo, vamos deixar de conversa!.." - grita ele com superioridade.

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Uma vez na cidade, Honório passa nos cobres "as marranzinhas", mete o dinheiro na bolsa, e diz a quem passa: - "Olha aqui, está roendo? Não quer ser eu, hein?" Tem lugar ainda nessa galeria, o JOÃO BASÍLIO, que bem caracteriza toda essa "fauna". De boa família, alto, metido invariavelmente numa calça e blusa "joffre", alpercata de correia na venta, e o chapéu de massa já deformado pelo tempo e pela idade, João Basílio não sentia os bafejos da sorte na velhice. Era cego de um olho e, para tormento de seus últimos dias, tomava uma “caninha”... E com isto, suponho, caíra na popularidade. Os meninos vadios, a molequeira, traziam-no em constante tormento. O velho passava, e, logo, se ouvia um grito, seguido de muitos outros: - Olhe o toco!.. - Alevante o pé!.. Ele ficava enfurecido. Às vezes, deixava que se esquecessem fingindo não estar zangado. Continuava seu caminho, calado. No fim do primeiro quarteirão, dobrava e, veloz, tendo à mão o chapéu e bengala, pegando na surpresa alguns peraltas, fazendo-lhes perguntas, enquanto os outros corriam assombrados para todas as direções. E passando o pânico, continuavam o estribilho, com mais entusiasmo: - Olha o toco!.. - Alevante o pé!.. A respeito das “canas” do "Velho João Basílio", existe até uma anedota bem interessante. Viajando na sua égua, ao passar pelas areias da "Cacimba do Povo", João Basílio se apeou para atender certamente a ligeira necessidade fisiológica. Estava completamente "cheio", não conseguindo, por isto, montar sem o auxílio de alguém, valendo-se de Nossa Senhora. Mas nada conseguiu. Porém teve raiva, e, numa das vezes, pisou firme no estribo, passou a perna e estendeu-se no solo do outro lado. Gritou nessa ocasião: - “Foi demais, Nossa Senhora!”...

Teresina, 5 de maio de 1950.

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SOBRENOMES E APELIDOS25

Não conheço os trabalhos do renomado folclorista Veríssimo de Melo, divulgados na imprensa potiguar, sob o título acima. Tenho, entretanto, sobre a banca de trabalho, o instrutivo Boletim Bibliográfico, da Biblioteca Pública Municipal de Mossoró, referentes aos meses de março e abril do ano em curso, que me vem sendo pontual e gentilmente remetido pelos amigos - Vingt-un Rosado e Assis Silva, nos quais li sobre o assunto os artigos de Assis e de Raimundo Nonato. Devorei-os francamente com absoluto interesse, concluindo por fim que não pertence ao Aracati a primazia na arte de apelidar seus filhos ou mesmo adventícios que, à ventura, cruzem as suas ruas, às carreiras, para se livrar do batismo de Da. Castorina. É hábito nosso, de brasileiro, pregarmos na testa do amigo, do parente, ou pessoa do nosso desafeto, um apelido bem sonoro que se ajuste perfeitamente ao tipo. E alguns deles se enquadram de certo modo que imortalizam o autor e a vítima. Da leitura de tão curiosa colaboração, decidi-me cevar-lhe esse "punhadinho", por intermédio de Boletim Bibliográfico. Terei, porém, o devido cuidado de não repetir alcunhas já relacionadas nos artigos em referência, a menos que seja para trazer à luz uma particularidade que pareça interessante por motivo qualquer. Encontrei ainda, entre os motoristas de Mossoró, o Zé Gavião, Briga e Gatinho. Meu Louro foi, positivamente, o primeiro chofer mossoroense que conheci. Tinha as pernas tortas, e trabalhava com João Neceras. Na época, o "fraco" do divertimento da meninada em Patú, era o pião. E Meu Louro, voluntariamente, me levara um pião bem torneadozinho, feito em Mossoró, o qual ficou o conhecido pelo nome de "mossoroense". Taxando telegramas, encontramos o Selê, enquanto Chico Vermelho ou Chico do Retiro apanha o ouro branco na Serra Mossoró. Caenga é sobejamente conhecido como vendedor do melhor sal da Terra de Baraúna. Entre os operários da BRASIL OITICICA, temos Maricota, Irmão, Amor e Samú. Em Assú, conheci o popularíssimo Bonzinho, “Bobage”, Gigante, Seu Perigo e a família Tribusana. Em Macau, Zé de Sinhá Dona (carteiro). Este mascou uma ramazinha na Terra de Mané Cachimbinho. Quando o conheci, meia dúzia de soldados não o levavam para a cadeia. Guéla ou Filho de Nosso Senhor, era louco. Aperreado, corria para a lama do Rio Manuel Gonçalves, ou se enterrava nos montes de areia encontrados nas ruas. Mais das vezes, enfurecido, enchia as mãos de pedras miúdas, pondo-as na boca, engolia todas. Tatu, usando óculos escuros, um cacete, vivia a tremer, pedindo esmolas. A "fauna" pauferrense está menos explorada: ANTONIA GOIPEBA, ANTONIO GETÊ ou XANDOCA, ANTONIO MARICUTA, ANTONIO BUFINHA, BALAIO, BADU. Este é um repentista exímio. Certo bodegueiro encontrando-o embriagado, gritara-lhe: Cachaceiro/... A resposta ecoou em cima da bucha: 25

Publicado no Boletim Bibliográfico da Biblioteca Publica Municipal de Mossoró, nº 32, 31/01/1951.

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- Errou, meu branco, eu sou consumidor, cachaceiro é você... Prossegue o "Team": Bicão, Bispo, Bogodino, Boré e Bafute. Catu, Cuaça, Cabriolé, Correio do Padre Cícero, Caixa d'Água, Caretinha, Catôta, Chico Gato, Chico “Chofer” (é falso), Couro Pintado, Cabeça de Cupim, Comunista (jamais se conformou com tão injusto apelido, dizia-se "cego de um olho e estrupiado do outro"). Chico Amargoso, Dr. Pinote, vulgo Feiticeiro, Dahora, Elviro Capuxi, e Escada. Faísca, cuja paternidade pertence a Pitanga, pai de Espinho. A negra fica com a "mulesta" dos cachorros. Família Flor, Ferro Velho e Fum. Formiga Preta, Guela de Perú e Gabão, João Biró, Jucá, Jatobá (hoje industriário em Mossoró). João Perninha, Chico Palheta, Moreirinha. Esse era vendedor de ovos. Para convencer a freguesia, costumava dizer: “Taqui, comade, os ovinhos tá fresquinho, foi pôdo hoje, foi pôdo hoje...” Maria Pede Esmola, Maria Mole, Manuel Maracanã, família Morimbeca, Mestre Frade, Manuel Muqueca e a celebérrima Maria José dos Bodes. Os seus apelidos são impagáveis e se ajustam bem aos "cujos". Certo amigo a quem tratávamos na intimidade por Cabeçudo, noivou. Uma abelha zoou nos ouvidos de Maria José. Passando por ele, a tresloucada perguntara à queima-roupa: Enh Cabeça de Caboré de Ôco, você vai casar com aquela Cara de Prato Raso?... Manuel Boi, "foi do finado Chiquinho Bernardino, Iº escrivão de Pau-dos-Ferros do interior". Bebia muito, era couveiro, com mania de fazer discurso. Costumava dançar na rua, cantando estes versos: Aqui vai sapato Aqui vai chinelo (Bis) Aqui vai o rasto de Manuela, As “cadeiras” da mulata É quem mata a gente... Negro Estevão é branquinho da silva, Neco Bacamarte, Neco Capuxu, Potoquinha, Peba, Taralo, Vela Branca, Zé Cavanhaque, Zé Banana, Zé Azedo, Zé Pão Doce, Vigário, Bigodão e Zé Guiné. Em Patú: Antonio do Saco, Badalo, Barrão, Badete, Berro Forte, Bruzega, Birigô, Compaso, Cambraia, Cimentinho, Curiboca, Codó, Chica Patú, Chico Macaco, Divó, Dr. Cebola, Gigi e Gonçalo Cotó. João Pirão, Japonês, João Gordo (bastante magro). Jararaca, Joaquina Caipora e Maria Dentão, família Melengo, Olinto Maçaroca, Mouco Velho, Pedro Chato, Padre, Pelado e família Peba. Quido, Quixaba e Quidú. Rafael Cumaru, Seu Gê, Sabacuim,Tamboeira, Tia Batata, Tibibinha, V-8, CAangalha de Besta, Xavião, Carombê, Zé Canção, Zé Buraco e Zé Preá. Mucuim e os "Vage de Cima". E o Velhinho de Nossa Senhora?, em Almino Afonso. Ainda em Patú, apareceu o briguento Chico Cururu. 86

Em Martins: o impagável Justino Cocada... Em Goiana, Pernambuco: Espiciá, vendedor de gelo. Do Ceará, encontramos Sucata, Parafuso de Aço, Chico Mingau e Chico Pingado. Todos do óleo. Penetrando na seara paraibana, Bulinha e Vevu. Na trinca do óleo (?): Manga Rosa, Nino, Alvim, Barra Branca, Barra Mina, Zé do Mundo, e Antonio Pão Doce. De Teresina: Pingo de Aço, Cara de Vaca, Tire o Pé da Bota, Macaquinha, Ferreca, Totó, Dodô, Chico Batelão Azul, Chico Cabeludo, Agostinho Danado, Pé de Crepe, Ponhonhon. Pessoas aqui que não tem nada de santidade, são conhecidas por Santo ou Jesus. O último serve para os dois gêneros. De sorte que Jesus no Piauí, tanto pode ser homem quanto mulher. Sinhazinha, é qualquer elemento do belo sexo, cujo nome se ignore. Finalmente, no Rio Grande do Norte, um sujeito alvo, corado, cabelos afogueados, de modo geral, chamamos de RUZAGÁ, GAZO, SARARÁ, etc, enquanto que na Terra de Mafrense, existe apenas um termo para esse tipo - é FOGOIÓ (Ex: Luís Carrilho de Oliveira...). Não mereço, de certo, ser anatematizado por qualquer dos meus amigos, com a minha bisbilhotice. Os responsáveis naturais por quase tudo isso devem ser os que me precederam no assunto... E quem é em suma, que não traz, desde os saudosos tempos da infância, um apelidozinho, causa de continuadas brigas, e cabeça lascada?.

Teresina, 12/6/1950.

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JUNCO - PARAÍSO INFANTIL26

Fui criado no Junco, propriedade rural de meu avô paterno, então município de Patú, no Rio Grande do Norte. Hoje é município. Desconheço a data em que me levaram. Mas sempre ouvi minhas tias e minha avó dizerem que "quando eu fui para o Junco, já corria tudo, tinha dois anos". Não tive companheiros de infância para brincar, como meus irmãos, na vila de Patú. Levei uma infância muito isolada, que me causou algumas dificuldades na adolescência, ao voltar ao convívio na cidade. Porém, para contrabalançar, eu tinha a imensidade dos campos, na fazenda de meu avô, onde vivia em completa liberdade, brincando e me divertindo da maneira que muito bem desejasse e entendesse, embora sem ter com quem dividir as minhas diabruras. Apareciam, às vezes, em nossa casa, a Casa-Grande, alguns meninos, filhos do vaqueiro ou de moradores e brincávamos alguns minutos. No inverno, alguns de meus tios que moravam na cidade, vinham com a família passar dias na fazenda. A vida nesses dias, mudava completamente de ritmo. Perdíamos a noção do tempo, e saíamos pelos campos, perseguindo pássaros, tirando seus ninhos, ora com ovos, ora roubando os filhotinhos. Para variar, passeávamos a cavalo, perseguíamos animais e, assim, passavam-se os dias alegres e felizes. Não obstante haver sido criado naquele isolamento, sem a permanência de companheiros para brincar, eu me sentia satisfeito ao lado dos entes queridos que me estimavam. Sentia-me inteiramente integrado com a natureza. Admirava os campos verdes, ficava a observar as vacas leiteiras urrarem ao sair do curral, onde ficavam os bezerrinhos presos. Era, enfim, um pequeno príncipe, tendo o Junco como meu campo, para minhas aventuras de infância. Não pensava em livros, não havia professores, ignorava inteiramente a necessidade que tinha de estudar e aprender. Não tinha obrigações nem afazeres, pensava apenas em comer, brincar e dormir. Habituei-me a acordar cedo, desde a infância, e conservo essa costume na maturidade. Levantava-me às cinco da manhã, ia ao curral, ao lado direito da nossa casa, bebia leite “mugido” até não querer mais. Às vezes, variando, trazia o leite para comer com mugunzá quente, tirado da panela a ferver, ainda nas trempes. No Junco, gozávamos de uma vida feliz, inteiramente ignorada do menino da cidade. Vivíamos numa constante sucessão de aventuras, que só a vida nos campos nos podia proporcionar, em contato com os "bichos", as aves, os campos cultivados, enfim, a natureza. Tínhamos um açude a cem metros da nossa casa. Aí, na estação invernosa, passávamos as manhãs a tomar banho. Pegávamos peixinhos, gritávamos e corríamos com o 26

Publicado no Boletim do CNR, nº1, p.2, dezembro de 1966.

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aparecimento inesperado de uma cobrinha. Apavorados com a cobrinha, que mais das vezes acabava com o banho, alguém ensinava uma oração para afugentá-la: "São Bento, água benta Jesus Cristo no altar Quem tiver no caminho "Arrede", deixe eu passar..." Havia sempre um grupinho para o banho, crianças e adultos. O homem do campo vive uma vida simples sem maldade, não se escandaliza fácil, como o homem da cidade. Lá não se conhecia o uso do calção, do short. Tomávamos banho como Deus nos botou no mundo. O açudinho era um campo largo para nosso divertimento, nadávamos, mergulhávamos, trocávamos "cangapé". Nessa folgança, havia disputa, para vermos quem nadava melhor, quem tinha maior fôlego, quem resistia passar maior tempo submerso. E eis senão quando um se destacava com uma pedra na mão, e gritava: - Galinha cheia! - Cozida ou assada?... Perguntavam outros. - Assada... - Pois vamos a ela... A pedra era jogada n'água, e todos mergulhavam a um só tempo para pegá-la. Quem a encontrasse, voltaria rápido à tona, e reproduzia a cena. Recordo hoje, feliz, os dias de minha infância simples, sem companheiros e sem cinema, no Junco, um verdadeiro Paraíso Terrestre, recebendo os carinhos de minha avó paterna - Mãe Velha, e os afagos de minhas tias que me adoravam, às quais rendo esta homenagem em pleno outono da vida.

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FAMÍLIA ROCHA

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FAMÍLIA ROCHA (genealogia)27

JOÃO DE OLIVEIRA ROCHA, n. em Catolé do Rocha, Paraíba, † em 14.V.50, com 85 anos, em patú, RGN. Filho de Joaquim Dantas da Rocha e D. Luiza Rocha. C. c. d. Maria Dantas da Costa (Cotinha), sua prima, n. em Pombal, PB.† 24.V. 1935, em sua propriedade Junco, Patú. Filha de Pedro Dantas da Costa e d. Iliminata Costa. Proprietário, criador, João de Oliveira Rocha, ou ainda o Professor ROCHA, nasceu dotado para as coisas do espírito, naquela época, num meio rude, muito cedo, abraçou de corpo e alma o magistério particular até os últimos anos de sua vida. Católico, demonstrava muita leitura, falando sempre nos grandes escritores da época, etc... Exerceu as funções de Juiz Distrital por três vezes, em Patú, sendo a última em 1930. Mestre-escola de conceito, homeopata exímio, "eram seus medicamentos muito aprovados". Casando-se, fixou residência na sua propriedade "JUNCO", no município de Patú, RGN, onde nasceram e se criaram quase todos os seus filhos. É descendente das famílias (sic) Assiz, Dantas (formiga), Rocha, que têm as suas raízes em Portugal e Teixeira, Paraíba. Pais de: F1) Pedro Dantas da Rocha (Din) n. 25.VI.1891, Junco, Patú, RGN, de seu pai: mestre-escola, comerciante, rábula, ocupou diversos cargos públicos - Juiz Distrital, Adjunto de Promotor, Secretário da Prefeitura, lugar em que respondeu pelo Prefeito repetidas vezes em Patú. C. c. d. Noemi de Melo Andrade n. 29.X.1901, Olinda, Pe., † 14.VI.1953, Alto Santo, Ceará. O casamento civil foi celebrado "no único Cartório do Riacho do Sangue, Ceará". Filha de Sidronio de Melo Andrade, † em Belém, PB., de um colapso cardíaco, proprietário, criador de gado no Ceará, e de dona Francisca Ercina Cortez (Chiquinela)*. Pais de: N1) Hilda, n. 14.V.1918; em 10.IX.19535, c. c. Manuel Francisco da Mota. Residem em Campina Grande. Pais de: B1) Marilda, n. 30.VII. 1936. Em 8.XII.1958, c. c. Benedito da Silva Cavalcanti. Pais de: T1) Marília, n. 9.IX.1959, em João Pessoa. B2/8) Marilsa, n. 22.IV.1941; José Nilson, n. 27.X.1944; Miraídes, n. 1951, †; Marta-Maria, n. 27.III.1952; Maria -José, n. 7.IV.1953, † 7.VI do mesmo ano. * Francisca Ercina Cortez (Chiquinela) era filha de NICOLAU CORTEZ, n. Itália, 1850 † 25.IV.1925, em Patú (RGN) Brasil. C. c. Clara da Silva Cortez, † em Patú. Chegaram ao Brasil em 1864. Pais de 11 filhos: 1 - Francisca Ercina Cortez com 80 anos 2 - Braz Antônio Cortez com 79 anos 3 - Ana da Silva Cortez com 78 anos 4 - Miguel Arcanjo Cortez † com 23 anos 5 - Salvador Cortez Sobrinho com 70 anos 6 - Filomena da Silva Cortez com 67 anos 27

Concluído em 12/07/1960 e publicado na Revista Genealógica Latina, vol. 13, Ano 13, 1º e 2º semestre de 1961, p. 39-43. Baseado em estudo divulgado no Boletim Bibliográfico da Biblioteca Municipal de Mossoró, nº 25, de 30/06/1950.

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7 - Maria da Silva Cortez com 66 anos 8 - Nicolina da Silva Cortez (Boró) 65 anos 9 - Nicolau Cortez Filho com 64 anos 10 - Vicente Antônio Cortez com 63 anos 11- Júlia da Silva Cortez, † N2) Raimundo Rocha, n. 21.IX.1919, em Patú (Rio Grande do Norte) (o autor deste artigo), em 2.X.1934, em Fortaleza (Ceará) c. c. Maria do Carmo Correia de Aquino, n. 21.III.1924, na fazenda Venezuela, em Pau dos Ferros (Rio Grande do Norte), filha de Manuel Alexandre de Aquino, comerciante, criador e proprietário em Pau dos Ferros, e de Júlia Correia de Oliveira. Pais de: B9/16) Mundicarmo-Maria, n. 26.VI.1944; Pedro, n.20 VI 1945; Ana Maria, n. 2 V 1947; Manuel-Alexandre, n. 26.V.1948; Raimundo, n. 26.I.1950; Maria-Auxiliadora, n. 24.V.1952; Fernando-Roosevelt, n. 21.VII 1954; e Julia-Maria, n. 15 V 1957. N3) Lourival Rocha, n. 21.V.1922, em Bom Jardim, Pereiro (Ceará) sendo registrado em Patú. Em 23.IX.1947, em Patú, c. c. Ruzinete Dantas, ali nascida, a 23.IX.1931. Pais de: B17/20) Lení, n. 10.X.1948; Nelí; Lourival e Wallace, † N4) Francisco Rocha, n. 28.X.1924. Em 24.VI.1945, em Patú, c. c. d. Dinorá Leite. Pais de: B21/32) Francisco-Tarcísio, n. 21.III.1946; Jailma, n. 2.VII.1947; Maria das Graças, n. 4.IX.1948; Antônio, n. 13.VIII.1949; Maria das Dores, n. 15.IX.1950; Terezinha, n. 28.IX.1951; Cesar, n. 29.IX.1952, † ; Francisco, n. 27.I.1954; Ivete, n. 15.VI.1955; TâniaMaria, n. 10.VII.1956; José de Ribamar, n. 12.I.1959; e Júlio-César, n. 30.I.1960. N5) Ivone, n. 22.XI.1926, em Patú. Em 4.VII.1947, em Mossoró, c. c. Paulo Costa Gomes, † 23.IV.1950, afogado. Pais de: B33/34) Marta, n. 20.II.1949; e Antônio, n. 9.II.1950, ambos em Mossoró. N6) Sebastião Rocha, n. 26.XII.1929, em Patú. C. c. Raimunda. Pais de: B35/37) Robson, Rosie-Meire e outro N7) Pedro Rocha Filho, n. 14.VII.1931, em Patú. C. c. Maria Ivonilde Henrique. Pais de: B38/40) Noeme, n. 20.VII.1956; Noelí, n. 4.IX.1958; e Noelma, n. 23.IV.1960. F2) Joaquim de Oliveira Rocha, n. 25.VII.1893, comerciante agricultor e criador, tendo talvez a maior área cultivada mecanicamente na zona Oeste potiguar, produzindo ótimo algodão fibra longa; e possui um dos melhores rebanhos da região. entre outros cargos foi Juiz Distrital. 1ª vez, em 9.IX.1916, c. c. Helena Fernandes (Rocha),† 24.III.1935. Pais de: N8) Hildo, n. 16.V.1918, comerciante em São Luís do Maranhão. Em 27.XI.1938, c. c. Nilsa Amorim. Pais de:

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B41) Nilda, n. 21.IX.1939. C. c. Jório Rocha. Pais de: T2/3) Jório, n. 19.II.1959; e Hildo-Augusto, n. 22.IV.1960. B42/48) Hilton, n. 16.VIII.1940, † com 4 meses; Hilton, n. 31.X.1941; José Nicodemus, n. 3.IX.1943; Maria-Ilza, n. 18.X.1945; Hildo, n. 20.II.1947; Maria-Helena, n. 9.II.1949; e Joaquim. N9) Maria, n. 1919, † com 3 meses. N10) Antônio, n. 13.VI.1920. Em 1947, em São Paulo, c. c. d. Zilá de Andrade. Pais de: B49/51) Antônio-Sérgio, Maria-Helena e Nelson, nascidos em São Paulo. N11) Rita, n. 1921, † com 4 meses. N12) Francisco, n. 30.X.1923, em Patú, contador. C. c. Dione Dantas; residem no Rio de Janeiro. Pais de: B52/53) Ana-Cristina e Júlio-Cesar. N13) Maria-Rita, n. 1925, † aos 6 meses. N14) José Deusdedit Rocha, n. 9.I.1927, comerciante em São Paulo, onde reside e em 1949 c. c. d. Dalva Galvão. Pais de: B54/56)Carlos-Alberto, Maria-Helena e Debora, nascidos em São Paulo. N15/17) Manuel-Cesar, n. 1928, † com 8 meses; Maria-Teresinha, n. e † em 1929; e Raimunda, n. e † em 1930. F2) Joaquim de Oliveira Rocha, 2ª vez, em 15.II.1936, c. c. Maria Carmelita Morais. Pais de: N18/27) Joaquim, n. 2.XII.1936; Olimar, n. 31.V.1938; Otoni, n. 10.VI.1939; Olivete, n. 14.I.1941; Maria-Lúcia, n. 22.VIII.1942; Maria da Salete, n. 18.IX.1943 (+ 11.V.1944); Maria Helena, n. 16.XI.1944; João-Bosco, n. 14.IV.1948; Zilá, n. 1.II.1949; e Pedro, n. 26.IV.1950. F3) Santino Rocha, n. 26.IX.1895, comerciante e criador. Em 25.II.1924, c. c. Maria Sebastiana de Sousa Martins. Pais de: N28/29) Manuel (Eldí), n. 16.III.1925 (C. c. Joaquina); e Jací, n. e † em 1926. N30) Aloisio, n. 19.IV.1928, † 26.VI.1960, c. c. Francisca de Almeida. Pai de: N31/36) Geraldo, n. 29.VI.1930; Maria, n. e † 1932; Teresinha, n. 11.X.1934, Maria do Socorro, n. 11.II.1936; José-Tadeu, n. 16.IX.1938, † 1939; e Zita, n. 11.X.1944. F4) Amadeu Dantas da Rocha, n. 2.XI.1898, comerciante. Em 5.II.1924, c. c. Francisca Chavantes, n. 16.XI.1902, s. s., porém criou 4 filhos alheios.

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F5) Iluminata Rocha (Mimosa), n. 10.VII.1900, † 1.IV.1940, em Demétrio-Lemos (Rio Grande do Norte). Em 10.IX.1935, c. c. Jofre Sales. Pais de: N37) Irenice, n. 15.II.1937, † com 3 meses. N38) Cesimar, n. 26.III.1940 (batizada como Cesimar e registrada como Teresinha). C. c. Paulo e residem em Uberlândia. F6) Santina Rocha, n. 13.VII.1902. Em 18.VII.1920, c. c. Raimundo Teixeira de Lira, comerciante. Pais de: N39) Maria, n. 17.VII.1921. Em 16.VI.1949, c. c. Raimundo Antenor Ferreira. Pais de: B58) Maria das Graças, n. 24.IV.1950; e outros. N40) Aderson, n. 18.X.1923. Em XII.1941, c. c. Isabel Diniz. Pais de : B59/64) Maria de Lourdes, n. 10.IX.1942; Francisco, n. 15.VI.1943; Deusdedit, n. 12.X.1944; Maria do Socorro, n. 10.IX.1945; Raimundo, n. 9.VIII.1946; † com 6 meses; e Antônio, n. 6.X.1947, † com um mês. N41/42) José, n. 23.VI.1925, † e Antônio, n. 23.VIII.1927. N43) Eurídice, n. 3.IV.1929. Em 21.XII.1948, c. c. Nelson Avelino. Pais de: B65) Neide, n. 25.IV.1950. N44/49) Miguel, n. 24.VIII.1931; Teresinha, n. 12.III.1934; Gutemberg, n. 15.VIII.1937; Raimundo, n. 2.XI.1939,† 5 meses; Francisco, n. 25.XII.1941, † com 2 meses; e Maria do Socorro, n. 30.I.1943. F7) João Rocha Filho, n. 5.VI.1905, 1ª vez, em 27.X.1927, c. c. d. Elvira Morais, † em 10.II.1937. Pais de: N50) Maria de Lourdes, n. 30.X.1928. N51) Lívia, n. 2.III.1929. Em 30.VI.1946, c. c. Mario Leite. Pais de: B66/67) Francisco, n. 13.V.1947; e Maria das Graças, n. 28.IX.1949. N52/56) Francisca-Edila, n. 30.IV.1930,† 2.II.1933; Teresinha, n. 10.V.1931, † 3.III.1934; Raimunda, n. 4.I.1932, † com 2 meses; Francisco (Chiquito), n. 24.XII.1933, casado; e Raimundo, n. 5.XI.1934, † 5.I.1935. F7) João Rocha Filho, 2ª vez, em 22.III.1937, c. c. sua cunhada Olivia Morais, † em 26.XII.1941. Pai de: N57/58) Raimundo, n. 4.II.1939; e Salatiel, n. 8.VII.1941, † 12.XI.1941.

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F7) João Rocha Filho, 3ª vez, em 20.VII.1943, c. c. Irinéa Leite, sem prole. F8) Maria Marola Rocha, n. 8.VI.1904. Em 7.I.1927, c. c. Pedro Almeida e Silva, n. 23.II.1904, em Patú, †, comerciante em São Paulo. Pais de (todos residentes em São Paulo): N59) Miguel, n. 18.X.1927. Em 28.I.1950, c. c. Olga Matos, n. 26.I.1932, em São Paulo, com prole. N60/68) Wilson, n. 24.IV.1929, casado; Neuton, n. 30.III.1930, solteiro; Teresinha, n. 23.III.1931, † em 21.VI do mesmo ano; Maria Teresinha, n. 12.II.1932, † em 14.VII.1932; Pedro, n. 25.XI.1933; José, n. 31.XII.1935; Severino, n. 18.II.1937; Francisco, n. 28.V.1940; e Maria de Lourdes, n. 18.II.1942. F9) Seledon Dantas da Rocha, n. 21.X.1909. Em 30.VIII.1931, c. c. Virgínia Maia. Pais de: N69/82) Paulo, n. 6.VI.1932, reside em São Paulo; Teresinha, n. 2.IV.1933, professora; Alberto, n. 7.VIII.1934, reside em São Paulo; Maria Luiza, n. 30.XI.1935; Hermínio, n. 7.VI.1937, Maria de Lourdes, n. 8.VII.1938; Pedro, n. 28.VII.1939; João e José (gêmeos), n. 28.I.1941, † com 3 meses; José, n. 8.I.1942, † com 21 dias; Raimundo, n. 31.VIII.1944, † com 3 meses; Adalberto, n. 3.I.1946, † com 3 meses; Antônio, n. 17.I.1948; e Maria das Graças, n. 13.IV.1949. F10) Luiza Rocha, n. 8.VI.1910. Em 8.VII.1939, c. c. João Anastácio Leite, contador. Pais de: N83/85) João Batista, n. 13.III.1941; José-Américo, n.12.X.1942; e Maria da Salete, n. 18.XII.1943. F11) Hermes de Oliveira Rocha (Rochinha), n. 30.XI.1911, † em 28.VII.1959. Em 4.V.1938, c. c. Joanita Monte. Pais de: N86/88) Hermenilton, n. 14.IX.1939, funcionário do Banco de Mossoró; Fátima-Maria, n. 17.VI.1942, † com 8 meses; e Hermes, n. 2.I.1945. F12) Maria das Mercês (Iaiá), n. 1914, † com 11 meses.

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MÃE VELHA

Por mais que recue no passado de minha primeira infância, isto é, do período que vai do meu nascimento até os seis anos da minha idade, quase nada encontro digno de nota, a não ser que me vou encontrar ao lado de meus avós paternos, na sua propriedade JUNCO, no município de Patú, no Rio Grande do Norte. Com esforço, reconstituo, embora de modo vago, alguns quadros, os quais vou fixar entre os quatros até aos seis anos de minha existência. Certa feita, vindo passear em Patú, deve ter sido no ano de 1924, encontrei na casa de meus pais um belo presente, dos raros que recebi na minha meninice. Minha madrinha Adélia, esposa do meu padrinho Antonio Firmo do Monte, então alto comerciante da importante praça de Mossoró, me havia mandado uma linda roupinha enfeitada de sutache branco e uma bengala que me proporcionaram alegria e muita felicidade. Na época, a família Rocha tirou um retrato em grupo, no qual apareço com minha irmã mais velha junto a meu pai, exibindo a roupinha que me presenteara a minha madrinha. Tudo isto, se não me engano, aconteceu na casa onde nasci, a qual, anos mais tarde, passou a se chamar "a casa do motor", em conseqüência de, nela, papai haver instalado um maquinismo para beneficiamento de algodão, na atual praça João Carlos. Recordo ainda, por exemplo, de minhas viagens com minha avó a Patú, a três grandes léguas do JUNCO, cuja trajetória fazíamos, eu e ela, a cavalo, sem outra companhia. Mais tarde, essa viagem passou a ser feita quase invariavelmente a pé. Minha avó era disposta e corajosa, temendo apenas "os castigos de Deus". Já por essa época, lembro-me que minha avó confessava ter eu "mais de dois anos de idade" ao chegar a sua casa e "já corria tudo". Entretanto, posteriormente, jamais me passara pela mente fixar essa data. Certo é que banhado em lágrimas causadas pela separação de meus pais, cheguei ao JUNCO, para ficar em companhia dos meus avós, de onde saí, decorridos alguns anos, em companhia de meu progenitor, também em prantos, sem querer separar-me daqueles que tão carinhosamente me receberam, não como neto, mas como filho estimadíssimo. Conservo indelével na memória a santa imagem de minha querida "Mãe-Velha". Alta, elegante, solícita, de um moreno claro, cabeleira grisalha e longa, usava invariavelmente a saia cobrindo-lhe os pés. Ela, indiscutivelmente, assumiu para mim o lugar de minha mãe legítima, sendo também a "Mãe Velha" de um bem respeitado número de netos, por quem era disputadíssima. Era carinhosa e boa, tolerando as nossas travessuras, as nossas arengas, sem um "bolo", sem barulho. Nossos atos reprováveis sempre por ela combatidos com demonstração de um exemplo edificante, tendo para todos nós os seus carinhos, bons conselhos, merecendo desta maneira de seus netinhos obediência e veneração. Minha avó reunia em si as belas e raríssimas qualidades de uma perfeita dona de casa, ótima esposa e mãe dedicadíssima. A nenhum ela faltava em qualquer das circunstâncias. Era sempre a primeira a chegar, quando surgiam por acaso os eternos problemas de família, tendo um jeitinho para tudo e pronta solução a certas dificuldades, as mais das vezes, antes de chegar ao conhecimento de seu esposo, João de Oliveira Rocha. Ela não se limitou apenas às atividades do seu lar. A família crescia de ano para ano, com o aparecimento de outro neto para criar, tomara espontaneamente a tarefa de ampliar seus afazeres, auxiliando seu marido a tocar para frente a grande "carga". Costurava para ambos os sexos até certas horas da noite, fazia negócios e, mais ainda, dispunha de tempo para tratar de 96

seu plantio de fumo, arroz, porque "não tinha coração para ver perder-se os terrenos do açude ao lado da residência". Também ela sabia manobrar uma enxada, pois "não podia ver o mato comendo o legume" - dizia ela. Era, como se diz modernamente, uma mulher-máquina, incansável. Temos ainda vivos na memória da família, os exemplos que falam da sua dedicação, de seu desvelo pelos seus entes caríssimos. Certa ocasião, "Mãe-Velha" mergulhada em profunda tristeza, teve a desventura de saber que seus filhos estavam visitando a maldita “mesa-verde”. Antes de mais nada, sem dar o sinal de alarme, convidou-os todos para passarem, naquele ano, um dia na Semana Santa, em sua estância do JUNCO. Foi atendida. E, se não me trai a mente, foi na Quinta-Feira Santa que ela, à mesa, encontrou o momento psicológico para fazer o seu pedido aos seus filhos ali reunidos. -"Quero saber - disse ela - quero saber qual é o filho que me tem como mãe, que me estima e pode fazer-me um pedido". Todas as vistas para ela se voltaram nesse instante, como os apóstolos do Divino mestre, quando este predizia a sua Paixão. -"Quero saber quem de vocês me promete deixar de jogar"... - concluiu. E estou certo que tais palavras tiveram o efeito que se esperava. Eles certamente prometeram satisfazer-lhe o pedido, pois deixaram de jogar. Lembro-me ainda e com orgulho, um sem número de demonstrações de seu afeto para o seu filho-neto, o filho de Pedrinho. Uma ilustração. Alguns de seus filhos gostavam de me fazer chorar, pelo simples fato e pelo prazer de me verem chorando (pois sendo eu muito mimado, não podia deixar de ser um chorão), mas a sua reprovação em minha defesa não se fazia tardar e com energia. "O filho que me tiver como mãe - dizia ela - não bole com este menino. Ele representa Pedrinho, nesta casa. Por isso, quero mais bem a ele que aos meus próprios filhos e não fico satisfeita quando bolem com ele"... Poucos meses antes de sua morte, minha avó, Maria Dantas da Costa, foi visitar em Assú duas de suas filhas - Marola e Luizinha e, possivelmente, seu neto que lá também se encontrava. Levara em sua companhia Newton, filho da primeira, criado em sua casa. Lá tirara o seu último retrato que nos deixou, como derradeira lembrança. Foi nessa oportunidade que tive o prazer de dar-lhe os meus últimos beijos, os últimos abraços. "Mãe-Velha" regressou e, ao sair, confessara às filhas que sabia não vê-las outra vez. Faleceu a 24 de Maio de 1935. Hoje, Mãe-Velha, já decorreram catorze anos que nos deixaste, evoco a sua imagem seráfica, deixando nestas palavras a minha gratidão - um ramalhete de saudade.

Teresina, 02/12/1949.

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MÃE MIMOSA28

Além de minhas avós, chegando ao JUNCO, passei a chamar mãe a duas de minhas tias, irmãs de meu pai. Uma é Marola, dedicada esposa de Pedro Almeida da Silva; a outra era a "Mãe Mimosa" para o resto da vida. Seu verdadeiro nome era Iluminata, no entanto usava o anagrama de ASOMIM. Mandara mesmo, certa feita, fazer um broche em fio de ouro, no tempo muito em gosto, formando em letras tipo manuscrito - ASOMIM, e usava no vestido. Era forte, baixa, cabelos castanho-claros, lisos e sedosos. De temperamento um tanto enérgico e, ao mesmo tempo, emotivo. Ninguém mais que ela amava a família. Possuía um coração boníssimo e sempre disposto a perdoar, segundo o preceito cristão. Prevenindo possíveis complicações, tia Marola procurou reduzir o número de minhas mães, fazendo que desistisse logo do tratamento de mãe, chamando-lhe apenas tia. Sua irmã, porém mais velha, certamente habituada a criar menino, tomou a si, com sua mãe, a tarefa de criar o sobrinho, como se fosse seu filho, filho de seu irmão, Pedro Rocha. "A memória - disse Humberto de Campos - é um grande museu de fotografias, em cujos muros consagramos determinado espaço de cada criatura querida. Uma vez cheio esse espaço, temos que retirar os retratos mais antigos, pondo no lugar outros mais recentes, da mesma pessoa". Hoje, revendo a galeria que ainda me resta nas paredes da memória, em cujas fotografias são focalizadas cenas e pessoas da época, no JUNCO, destaca-se Mamãe Mimosa na maioria delas, ora levando-me em sua companhia a rever os campos verdes e a colher flores silvestres, na estação invernosa, ora agasalhando-me para dormir, cantando modinhas tristes e saudosas, das quais gravei bem "Meus oito anos" de Casimiro de Abreu. Noutras a vejo preparando o altar para rezar as novenas em homenagem à Virgem Santíssima, anualmente , no mês de maio, ou mais notadamente, aquele quadro patético em que Mamãe, quase em desespero, alta noite, me entregava Irenice, sua filhinha de tenra idade, agonizante. Seu esposo chorava, chorava Newtinho, enquanto eu, resistindo a tudo aquilo, fazendo da fraqueza, força, segurava a vela na mão daquele anjinho que desaparecia ao despertar para a vida. Foi, sem exagero, uma das cenas mais tocantes que presenciei na minha vida. A família tinha nela a enfermeira cuidadosa e dedicada em todas as horas. Adoecendo quem quer que fosse, Mamãe tomava para si, voluntariamente, o duro encargo de tratamento. Não se confiava de pessoa alguma, julgando-se com isto muito feliz, porque "sempre os seus doentes ficavam para contar a história". Não seria muito um exemplo. Regressando de Lucrecia para Patú, dado o seu precário estado de saúde, papai encontrara em seu socorro, como era de esperar, a sua solicita irmã. Entretanto, reavivados certos desentendimentos entre ela a sua cunhada, viu-se Mamãe Mimosa forçada a desprezar seu irmão em estado tão desolador. Ao ter ciência do que se estava passando, de Lucrecia, onde me encontrava, tomei a iniciativa própria de escrever à 28

Nota da organizadora - Para preservar a intimidade da família foram omitidas as três últimas linhas do texto original.

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minha mãe adotiva, pedindo-lhe que "não deixasse meu pai naquela hora, fechasse os olhos ao que havia contra ela, em nossa casa, pois eu estava certo que, se ela voltasse, papai ficaria bom; do contrário, papai morreria". Posteriormente fui informado que Mamãe me atendeu. Mandara voltar sua bagagem assistindo meu pai até seu derradeiro momento de vida, satisfazendo também o pedido de seu "filho" que apenas completava 13 anos de idade. Após o falecimento de sua mãe, Mamãe Mimosa contraíra núpcias com seu primo Jofre Jales, indo morar no JUNCO, de onde saíram para a vila de Demétrio-Lemos, no município de Martins, no Rio Grande do Norte. Em 1940, trabalhando em Pau-dos-Ferros, tive oportunidade de ir encontrar-me com tio Amadeu, em Almino-Afonso, e, ao passar por Demétrio-Lemos, Mamãe me recebera com uma satisfação sem precedente, insistindo para eu ficar com ela alguns dias. Reclamava o tempo que não nos víamos, queria matar saudades, Disse-me do seu estado, da marcha dos negócios; falou-me do Newtinho, frisando que este obedecia mais a mim do que a ela, a despeito da minha ausência. Não me foi possível satisfazê-la dessa vez, prometendo-lhe, entretanto, voltar por ocasião da Semana Santa. Ela duvidou do que eu estava prometendo... Acontecera o imprevisto, antes daquela semana. Mamãe estava esperando dar à luz. Como estava retardando, Jofre foi a Mossoró para fazer compras, havendo ela descansado na sua ausência. O parto foi um pouco laborioso, pois foi necessária a intervenção médica. De regresso, Jofre encontrou sua esposa com uma infecção e com pouquíssimas possibilidades de sobreviver. Contraste. Há poucos dias, ela tão cheia de vida, alegre, tudo nos fazendo crer que teria uma longa e útil existência para seu lar, para sua família; volto após alguns dias a encontrá-la tão sem esperança, mal me reconhecera... E, talvez por uma ironia da sorte, parecendo uma pilhéria, uma brincadeira, Mamãe Mimosa saía da comunhão dos vivos a 1º de abril de 1940, deixando uma filhinha que está sendo criada por seu irmão, Amadeu, ora residindo em Mossoró. Repousam no cemitério de Demétrio-Lemos, os seus restos mortais, talvez sem uma cruz, sem uma inscrição que assinale, aquela que, em vida, sacrificava sua própria existência pelo bem-estar da família. A primeira tentativa feita para a remoção de seus ossos para o túmulo onde dorme a sua mãe, partiu não de seu esposo, e sim de tio Amadeu e seu filho adotivo, que hoje escreve esta página de saudade, mas foi inútil, porque a Prefeitura não permitia abrir o túmulo antes de dois anos. Deixei o meu Estado, não me sendo possível outra tentativa no devido tempo, e, voltando a ele, procurei por intermédio de Aderson, meu primo e também seu filho de criação, concretizar o meu desejo, dando-lhe repouso no lugar que bem merecia, mas outra vez tive a tristeza de ver que estava sendo inútil o meu esforço. (...)

Teresina, 07/12/1949.

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PROFESSOR ROCHA, MEU PRIMEIRO MESTRE29

O professar Rocha, João de Oliveira Rocha, meu avô paterno, foi o meu primeiro mestre. Foi ele que chamou a si a penosa tarefa de me ensinar as primeiras letras do alfabeto. Sua escola funcionava na sua própria casa de residência, no JUNCO. Um casarão, o mais alto que vi na minha infância, e que, por isto, chamávamos a Casa Grande, tinha o piso elevado, cuja sala de frente se estendia por toda a largura do prédio. Na parte externa, da cumeeira para frente, era rebocada e caiada. O restante, tijolo “em preto”. A sala de frente e a alcova eram reservadas às aulas. Os bancos enormes, de madeira escolhida, eram dispostos ao pé da parede, em volta à sala, sobre os quais se sentavam os alunos de todas as idades, democraticamente, sem distinção de cor, nem posição social ou econômica, verificando-se entre eles perfeita ausência de qualquer preconceito. Às moças, por precaução, o professor Rocha reservava a alcova ao lado. Sua mesa, entretanto, era disposta de certo modo que, à sua esquerda, ele observava todos os movimentos do belo sexo, ficando em sua frente os marmanjos. Apesar do cuidado que ele tinha em isolar os dois sexos, as moças tinham duas oportunidades, por aula, para pôr o "rabo de olho" no seu Príncipe Encantado, mas de modo que não chegasse ao conhecimento do mestre. A primeira, quando eram designadas para lavar as lousas, o que acontecia levando-se em conta o merecimento de cada uma. A segunda, na hora da lição. Havia detalhes curiosos na escola do professor Rocha. Pendente à parede, à esquerda, na sala, havia uma "licença", espécie de palmatória que tinha a ponta do cabo um pouco mais larga. Numa de suas faces revestida de papel almaço, havia um F, bem gordo e bem feito. Na outra extremidade, um D. Se o aluno de ambos os sexos, precisasse atender a uma natural ou inesperada necessidade fisiológica, teria aflitamente de examinar aquela indicação convencional. Se mostrasse o D, o aluno teria que virá-la, deixando aparecer o F, denunciando a sua pretensão, e saía. Essa indicação era respeitada. Ninguém poderia sair. E quantas vezes ficava uma pobre vítima a suportar, sentada, os vexames, às vezes banhada em suores frios, provocados pelas cólicas ou certa desordem intestinal. Haviam certos encargos também reservados aos melhores alunos. Para os mais estimados do mestre, para os mais atenciosos. Vez por outra um boi ladrão, os bodes, invadiam o cercado, devorando a plantação. Em socorro, eram designados dois ou três alunos mais amigos do mestre. O Otacílio Pinto, preto alto, esperto, pouco inteligente, também algumas vezes descascava um pilão de milho ou de arroz. O professor Rocha era enérgico, qualidade que o fazia credor de apreciável reputação e estima entre os alunos e seus progenitores. Estatura mediana, cabelos ligeiramente grisalhos, bigode sempre aparado, o professor Rocha mantinha o aspecto grave e respeitável, sem, ser contudo um carrasco. A palmatória jazia sobre a mesa, como fiadora ativa da ordem e do respeito em sua aula. Ao usá-la, firmava-se nos pés, pegando na ponta dos dedos da vítima, vibrava nas mãos do infeliz uma boa meia dúzia de "bolos", cujos estalos ressoavam por toda 29

Publicado no Boletim CNR nº 2, p.15, mar. 1967

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a casa. O quadro-negro, a um canto da sala, adivinhava as arengas e diabruras dos escolares, em caminho ou na aula, transmitindo tudo ao professor por meio de um orifício nele existente. Ele o interrogava, o velho quadro-negro, surdamente tudo confessava. Nada escapava ao conhecimento do professor Rocha, que nada deixava sem o devido reparo. Para o aluno mais rebelde, havia punição mais severa. Era colocado sob a mesa de trabalho, à vista dos colegas, ou, ainda, colocava na cara do vadio uns óculos de couro ou de papelão, durante a aula. A despeito de tudo isto, o professor Rocha era querido e estimado. Os alunos viam nele, não a personificação do terror, o Anti-Cristo, mas o apóstolo anônimo do saber, abnegado e esquecido, cuja existência era devotada de corpo e alma ao combate à ignorância. Meu mestre transferiu certa vez a escola para lugar cujo nome não recordo. Sua esposa, minha inesquecível Mão-Velha, assumira a direção do meu aprendizado. Sentada à máquina de costura, todas as tardes, no JUNCO, fazia-me sentar ao seu lado, procurando meter-me na cabeça o mistério daqueles sinaizinhos negros da carta de ABC. “Diga, meu filho: Isto é um A, isto é um B, isto é um C...” (Obedecia, reproduzindo as mesmas palavras). "Agora leia por cima” - continuava: "A - B - C". Eu tinha sono. O sono chegava infalivelmente, todos os dias, àquela hora. Retorciame e abria a boca, naquela prisão que me atormentava os dias felizes da minha infância. Apareciam visitas, enfim, das quais eu tirava proveito. Mãe-Velha, a professora, começava a conversar, esquecia os alunos, eu e minha irmã mais velha, sorrateiramente fugíamos para o interior da casa. Apercebendo-se do logro, a professora irrompia em ameaças, deixando sempre para o dia seguinte as represálias...

São Luís, 07/02/1967.

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MEU PAI30

Meu pai nasceu no dia 25 de junho de 1891, no JUNCO, hoje município do mesmo nome, no Rio Grande do Norte. Recebeu o nome de Pedro, homenagem ao Grande Apóstolo, escolhido pelo Divino Mestre, para comandar seu rebanho e sua igreja na terra. Primeiro filho do casal João de Oliveira Rocha e D. Maria Dantas da Costa. Alto, magro, cabelos avermelhados e pele sardenta. Os traços fisionômicos do exPresidente Kennedy fazem lembrar meu pai. A sua maneira de pentear o cabelo era idêntica. Muito jovem, pensava como adulto, encarando a vida de maneira séria e de modo objetivo. Era respeitado e obedecido pelos irmãos. Todos lhe tomavam a benção diariamente. Mestre-escola aos vinte anos, em 1911, em Noruega, município de Brejo da Cruz, na Paraíba, contratado pelo Sr. Ubaldo Fernandes Pimenta. Constatando perfeito equilíbrio nas suas atitudes e senso de responsabilidade no jovem professor, o Sr. Ubaldo convidou-o para formarem uma firma comercial que funcionou por muitos anos, em Patú, sob a razão social de FERNADEES & ROCHA. Data dessa época, nova fase na sua vida. Casou-se. Ocupou sucessivamente vários cargos na então vila do Patú: Juiz Distrital, Adjunto de Promotor, Secretário da Prefeitura, Agente Fiscal Federal, Rábula. Foi advogado dos seus amigos, de seus compadres, dos pobres, e dos injustiçados, como se diz hoje. Jamais recebeu qualquer remuneração pelos seus trabalhos, no exercício dessa profissão. Advogava pelo dever sagrado de ser útil ao próximo. Pacifista por índole, embora convivendo num meio perigoso, dominado por "velhos trabuqueiros e empiquetadores", no dizer de Raimundo Nonato. Abnegação, honestidade e lealdade, eram os traços mais marcantes de sua personalidade. Gostava de ler, meu pai era um homem esclarecido, de boa palestra, comunicativo. Encontrei artigos de sua autoria publicados em O NORDESTE, famoso jornal de seu amigo, José Martins de Vasconcelos, que circulou e fez época por muitos anos, em Mossoró. Ubaldo Fernandes, seu ex-sócio e compadre, em 1947, em Mossoró, me fez esta confissão, alguns meses antes de falecer: - "Seu pai era meu amigo, - disse ele. Amigo e compadre. Homem de vergonha, honesto. Foi para minha casa ensinar, quando resolvi abrir uma casa de negócios com ele, de sociedade, em Patú. Nunca fui assistir a um balanço. Ele fazia tudo direitinho e me apresentava o resultado no fim de cada ano". Meu pai faleceu na tarde do dia 25 de janeiro de 1933, em Patú, numa casa ao lado da igreja Matriz, com apenas quarenta e um anos e sete meses de idade. Deixou-me com treze anos, dois meses e quatro dias. Não vi morrer meu Pai. Ele havia me deixado em Lucrecia, na construção de um grande açude, no município de Martins, e regressou a Patú, para tratamento de saúde. Fiquei à frente do nosso fornecimento de gêneros para operários, daquela 30

Publicado no Boletim CNR nº 3, p. 22, jun. 1967; Baseado em trabalho mais amplo, escrito em Teresina, em 1950, não incluído nessa coletanea para evitar a divulgação de problemas íntimos de família.

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construção. Meus tios se reuniram após a morte de meu pai, tomaram a deliberação de não me mandarem vir para dar o último Adeus a meu pai, atitude reprovada intimamente, por mim, a qual só a muito custo perdoei. Decorridos trinta e quatro anos da sua morte, quando de raro em raro, volto à minha terra, ainda ouço estas confissões de seus amigos e contemporâneos: "Seu pai era o homem da família Rocha. Ele fechou os olhos, tudo mudou. Era um amigo certo da pobreza". Transcorrendo este mês, o seu septuagésimo sexto aniversário de nascimento, deixo nesta página a minha homenagem, a minha saudade, o preito de gratidão pela grande e imorredoura herança que nos deixou: - o seu nome sem mancha, que honra a sua família, orgulho de seus filhos.

São Luís, junho/1967.

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VERSO DO AÇUDE DO SALÔBO31

Agora quero que os senhores Todos me prestem atenção De uma couza que aconteceu No açude da nação Este açude é do Salôbo De Inácia da Conceição Berro Forte ou Calisto Este agora eu vou falar Convidou o Luduvico Amigo vamos pescar Eu só temo é a Velha Que não venha abodegar Cícero, meu filho, este É grande no landuar Hoje aqui não fica peixe Com a Velha vou me atar Ludovico não esmoreça O peixe vamos pegar Diria porém não posso Em coiza fina falar Só o compadre Pedro É quem pode advogar Vá lá para o açude Para todos prezenciar Eu já ia me esquecendo De João Grande e Tibertino Abedias e João Jales Bento de Circundino O Augusto e o Raposo Precisa ter muito tino Felizmente meus amigos Pescadores vou dizendo João Pereira e Toinho Estes estão me maldizendo Vicente este não se fala Está no tanguí remechendo 31

Nota da organizadora - Verso de poeta popular do Rio Grande do Norte, falando em Pedro e João Rocha – pai e avô de Raimundo Rocha – e, possivelmente, de outras pessoas de sua família. Foi encontrado namuscrito em sua pasta de correspondências recebidas. Na transcrição respeitou-se a grafia do texto original.

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Grita a Velha com razão Mas não lhe prestam atenção Joaquim Jales quando chegar Vai com gente ao facão Para estes deixarem os sapos Do açude da nação Horas e momentos se passam Eu não posso me esquecer Dos pescadores que teve De nada puder fazer Dona tenha paciência Se não pode enlouquecer Ilustres querem ver Este homem sem ventura Cristalino também vai Com nome de criatura Deu uma grande queda Andou perto da sepultura José Diniz e Zé Cancão Também trouce camarada Para ajudar a levar o peixe E a tarrafa sem chumbada Amigos cuidamos em ir embora Que a água já está cuada Kilo de lágrimas já houve De quem botou pescado Assim como Rafael Que nada aproveitou A lastimar sua sorte Com Pedro professor Lastimando ficou Dina Em Vicente fazer chamada Vio Chiquinho vá machando Que eu já estou arrumado Vicente nada pegou Dina ficou na caçuada Vicente meu amigo Um conselho eu vou lhe dar Vá vender umas taraíras Para café você comprar Para quando avistar João Rocha Mandar Niculino torrar. 105

IRMÃOS ROCHA - NOTAS32

1944 - Mundicarmo Nascimento 26/06/1944, na residência de seu avô, Manuel Alexandre de Aquino, à praça da Matriz, em Pau dos Ferros, às 20 horas e 10 minutos do dia 26 de junho de 1944, segunda-feira (pesou quase 3 kgs.). Nome O nome escolhido fora Maria do Socorro porém aceitamos, em parte, a sugestão de Milton (dada em telegrama) ficando: Mundicarmo Maria Rocha. O carrinho Comprei um carrinho de madeira para Mundicarmo, do qual ela gostou muito. Verificou-se que, ao sentá-la ficou muito satisfeita. Batia com as mãos e os pezinhos, sorrindo. Viu-se então que ela já percebia as coisas. Ao parar seu "veículo" chorava muito, só se calava quando se reiniciava a marcha. Sua posição nele era a inicial, pois temia que lhe aparecesse algum "amigo da onça"... para retirá-la (set. 1944).

1945 - Mundicarmo Em Venezuela (fazenda dos avós) Fui hoje (10/06/1945) à Venezuela, onde deixei Mundicarmo com Da. Júlia (avó). Deve permanecer lá até sua mãe dar à luz. Ficou satisfeita e sua mãe chorando muito com saudade. Com Dulce (tia) Mundicarmo tem se admirado muito com o gado, ovelhas, bezerros e especialmente, com os borreguinhos. Ao ver um cavalo na porta chora até andar um pouco nele, o que faz com satisfação. Dulce lhe tem ensinado algumas expressões: "Ai meu Deus", "Ô beleza", que são por elas pronunciados de uma só maneira "Ai doê!". Conta também os cincos dedinhos e pronuncia as vogais; pede água e alguns alimentos; e, quando tem raiva, chama aquele nome anatematizado pelas mães, embora não o deixe de pronunciar constantemente - "babo" (diabo). 32

Nota da organizadora - Até 1952 Raimundo Rocha acompanhou de perto o desenvolvimento físico e psicológico dos filhos, registrando suas observações em um caderno de notas. Em 1954 essa prática foi quase abandonada, uma vez que suas atividades comerciais o obrigavam a viajar freqüentemente e a passar muitos dias longe da família. Assim, em 1955 e 1956, escreveu apenas sobre o seu filho homem mais moço, e, a partir de 1957, somente uma página com ocorrências ligadas ao nascimento de suas quatro ultimas filhas (teve 11 filhos). A leitura da correspondência recebida de escritores amigos, de 1954 a 1969 (ano do seu falecimento) e o artigo de seu cunhado José Correia de Aquino “Homenagem a Mundico (Carta a Mundicarmo)” - ver Raimundo Rocha para escritores e amigos -, mostram que em suas cartas falava freqüentemente dos fílhos, orgulhando-se com o seu progresso. Foram transcritas aqui apenas algumas das notas encontradas sobre seus filhos. O caderno tinha uma seção para cada filho com muitas outras informações. Em cada uma delas uma havia pelo menos uma poesia transcrita. Para essa publicação fizemos uma seleção do material encontrado, dando prioridade às notas escritas pelo autor sobre os seus filhos, e reunimos todas as que foram escritas no mesmo ano, a fim de permitir o acompanhamento simultâneo do desenvolvimento deles.

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Primeiro encontro com o maninho Ele estava sobre a cama e Mundicarmo, muito admirada, foi em sua direção. Aproximando-se do maninho procurou botar o dedo no seu olho ou na boquinha - como estávamos perto evitamos tudo. Com muita alegria cheirava-o, alisando e chamando "maninho"... Em Venezuela, quando os borreguinhos berravam Mundicarmo reproduzia, imitando. Aqui, Rocha Neto chora e ela, lembrando-se dos filhotezinhos, berra também: "mé... mé... mé"...

1945 - Rocha Neto Nascimento: 20/06/1945 - quarta-feira, em nossa residência à praça da Matriz em Pau dos Ferros, às 21:20 horas. Pesou 2.700 kgs - era muito pequeno. Razão de seu nome Era propósito meu prestar uma homenagem especial à memória de meu pai na pessoa de meu primeiro filho homem, dando-lhe o nome do meu progenitor. Vejo, portanto, o meu desejo concretizado ao nascer o segundo filho cujo nome é Pedro Dantas da Rocha é a ocasião mais oportuna, é certo, para expressar minha eterna gratidão àquele que seguiu meus primeiros passos na estrada sinuosa da vida. Digna é de imitação sua existência, toda ela ilustrada de belos exemplos que ainda perduram na lembrança de quantos o conheceram, no meio onde nasceu, se criou e morreu. Honestidade e abnegação eram os traços predominantes de sua personalidade. Prudente, conservador, pouco afeito às aventuras quer políticas, quer amorosas. O seu lema consistia em: a todos servir à altura de suas possibilidades, de suas forças, sem nada aceitar por retribuição ou recompensa (...).

1946 - Rocha Neto Primeiras palavras (07/01/1946) "Papa", "Tata", "Dede" Desprezando a mamadeira (jun.1946) Quando esteve doente deixou o consolador (chupeta) de uma vez por todas, facilmente. E, em Venezuela sua avó fez com que ele deixasse, sem dificuldade, a mamadeira. Andando sem engatinhar Já está procurando andar e vê-se que o consegue sem primeiro engatinhar. Primeiro beijo Veio de Venezuela dando beijos a quem o pede...

1946 - Mundicarmo Carta de Maria (mãe) da Venezuela (11/05) Os meninos vão passando bem e Rocha Neto melhor que Mundicarmo. Esta tem sido acometida de um grande fastio. Gostam muito dos passeios à tarde. Mundicarmo 107

pergunta a todos os dias por “papaizinho no cavalo”. Apossou-se de toda a fazenda para ela e o maninho, todo gado que ela vê diz: “lá vai o meu e o de maninho”. Na primeira tarde foi ao curral e com o copo na mão pedia: “Dulce, bote aqui um curralzinho” (pensando que o leite é que se chamava curral)". Declamando no seu 2º aniversário Na mesa, na presença de "vovô" José de Paula, Zeneide e Liada, Mundicarmo declarou que quadra que sua mãe lhe ensinou: Batatinha quando nasce, deita a rama pelo chão; Mundicarmo, quando dorme, bota a mão no coração. Houve muito riso e palmas. Mediu 80 cm. Rezando Nessa idade, ela já reza o Padre-Nosso e canta a Ave-Maria. Consolo (chupeta) Regressando de Apodi, onde visitou a avó, sua mãe resolveu fazer com que ela deixasse o consolador mas para isso ela deu muito trabalho (12/08/1946).

1947 - Ana Maria Nascimento: 02/05/1947 - sexta-feira. Ana Maria nasceu nesta data, às 19:20 horas, em Mossoró, na rua Lopes Trovão, 163 - data consagrada no calendário católico a Santa Mafalda. (Pesou 4 kgs). Seu nome Não houve sugestão de alguém para essa escolha - foi preferência do seu progenitor após a leitura de Olhai os lírios do campo (Érico Veríssimo). Ela ao Nascer Chegou com muita rapidez, contudo, parece que nasceu sem "fôlego" sendo necessário que a parteira lhe desse umas tapinhas. É muito forte. Chorando, Rocha Neto aproximou-se de sua rede dizendo com ênfase: "se cale já!.. se cale já!... viu!"... Encontro com os maninhos Mundicarmo estava começando a dormir, não se apercebendo da chegada da maninha. Entretanto, Rocha Neto retardando a dormida aconteceu logo que havia novidade em casa e quando ouviu o choro de Ana Maria alarmou sem demora. - "qué aquilo, papai?...qué aquilo?... E continuou, "lá está, eu quero olhar, vamos... o nenenzinho"... Foi grande sua alegria ao ver a recém-nascida e adiantou: "é de mamãe, deixe eu olhar!, é mimosinho"... Com isso, e pretendendo ficar com o bebê deu trabalho para dormir. 108

Na manhã seguinte, Rocha Neto percebendo o choro de sua irmãzinha, muito vexado começou a dizer: "a bichinha quer sair"... "chega, Lalá (sua tia), a bichinha quer sair!"... "tire ela"... Ao meio dia Lalá foi mudar os paninhos e ao emborcá-la ela chorou muito. Vendo isto, Rocha Neto, fazendo uma carinha de choro disse em aflição: "chega Lalá, a bichinha vai caindo!... ela vai caindo, pegue ela!..." Nesse ínterim Mundicarmo notando o consolo que estava na boca de Ana Maria disse: "vige, como eu estou com vontade de chupar esse consolo”... (Estava com saudade do seu, tomado, isto é, desprezado à força...) Rindo (03/07/1947) A qualquer movimento dos meninos Ana Maria ri muito.

1947 - Rocha Neto O "gozado”... (08/06/1947) Antevê-se nele o espírito brincalhão, repentista e afetivo. Há poucos dias Dodô (a empregada), jogando uma bacia d'água no muro, sem notar, deixou cair uns salpicos em Rocha Neto que, muito assustado, veio à cozinha fazendo, sem demora, esta observação: - Você me molhou, hen "sinha danadinha"?! ...eu não quero mais bem a você... - Eu irei embora para o sertão..., retrucou-lhe a empregada. - Então, continuou ele, não vá não... eu quero bem... não vá mais não... Doutra feita, Dodô estando na sala de jantar no momento em que ele passava cantando perguntou a ele: - Para onde vai, meu bichinho?... Lembrando-se de "Salada Política (música da época), ele respondeu cantando: - “Eu vou até Moscou... Estão judiando de mim”. Antevejo em Rocha Neto uma bela inteligência. Sempre aprende com extraordinária facilidade os discos que ouve, muito especialmente os que compro, passando a cantar as músicas constantemente: "Torna", "No meu pé de serra", Eu vou pra roça", "Asa Branca", "Marina", "Você foi e não voltou", "Copacabana" e muitos outros. Um sucesso lítero-musical (10/08/1947) Como de costume, na tarde de hoje, domingo, saí com Rocha Neto e Mundicarmo ao jardim. Porém, quando ele viu passar a caminhonete do Melhoral, (onde seu tio fazia propaganda daquele produto), não houve mais jeito senão levá-lo para ela. Entrou e dela não saiu mais, de sorte que teve que acompanhar Milton pelo subúrbio, enquanto fazia sua propaganda, utilizando-se de aparelho sonoro. Aquele carro é o "sonho dourado" de Rocha Neto. Seu tio soltava o microfone e ele pegava fazendo declamações, cantando com extraordinário êxito as marchinhas de propaganda da Ross, etc, a despeito de sua pequena idade. O povo que contornava o carro não se continha! No dia seguinte o tio foi a nossa casa onde fez um programa exclusivamente com Mundicarmo e Rocha Neto. Havia muita gente e eles "abafaram" e receberam de presente, como prêmio pela grande vitória, 2 latas de talco, 2 sabonetes e 2 tubos de pasta Ross e comprimidos de Melhoral (aos 2 anos mediu 81 cm).

1947 - Mundicarmo 109

Em Tibau (23/08/1947) Ela gostou imensamente da viagem, ficando encantada com aquela praia. Brincou muito em companhia do maninho e dos primos, onde gozavam de absoluta liberdade. A princípio tiveram medo do banho na praia porém, quando se acostumaram, era uma luta para voltarem para casa. Juntar búzios constituía o principal " passa tempo" de Mundicarmo. Natal de 1947 Papai Noel nesta noite feliz da petizada foi mais pródigo deixando para Mundicarmo presente idêntico ao do maninho: passas, ameixas, chocolates, bombons e um violãozinho... Ela dormiu cedo para o velhinho não demorar muito. Ao despertar, no dia seguinte, antes de deixar a rede, olhou os sapatinhos no chão verificando com muita alegria que, de fato, havia sido também contemplada. Retirou tudo com muita pressa e foi-nos mostrar na cama.

1948 - Ana Maria Primeiro aniversário 02/05/1948 - data risonha de seu primeiro aniversário natalício. Ana Maria está muito alegre e bem forte. Já diz algumas palavras e é muito brincalhona, a ponto de sua mãe continuar dizendo que é a mais alegre e a mais sabida dos três. Não se contém ao ver o pai se aproximar de casa, não se cansando de ficar em pé sorrindo, para demonstrar que muito breve andará sem o auxílio das cadeiras ou da parede como o está fazendo. Hoje, por coincidência, nasceu o 6º dente, aliás foi um incisivo inferior direito, quando devia ser um superior do mesmo lado.

1948 - Alexandre Neto Nascimento 26/05/1948 - quarta-feira: Alexandre Neto nasceu às 22:20 horas, em Mossoró, na Rua Juvenal Lamartine nº 9, data consagrada a Santo Agostinho pela Igreja Católica (Pesou 4 kgs). Seu nome Quando, há alguns meses, cogitamos da escolha do nome que teria o bebê, se por acaso fosse do sexo masculino, Mundicarmo e Rocha Neto opinaram pelo de Alexandre Neto - nome do vovô. Ficaram daí se referindo a este nome quando desejavam falar no futuro maninho. Houve a coincidência, e o seu avô, pelas suas belas virtudes, algumas delas atualmente tão raras, bem o merece. Ao nascer Foi um pouco vagaroso, mas o parto correu normalmente. É bem forte e muito calado, causando por isso surpresa aos progenitores. Mundicarmo vendo a pele vermelha do recémnascido perguntou se ele era de "borracha"; Rocha Neto disse que não viu quando ele chegou porque estava dormindo e Ana Maria acordou logo ficando muito alegre quando ouviu o choro do maninho, fazendo muito movimento com os braços e as perninhas. 1948 - Mundicarmo Em trabalhos domésticos (20/02/1948) 110

Vem demonstrando muita facilidade e gosto para os trabalhos domésticos à despeito de sua tenra idade. É muito interessante ela retirar a pele do tomate para sua mãe fazer doce, tem um cuidado extraordinário, sem deixar sequer de remover uma pequena pelezinha da fruta. Ajudava a Dodô lavar a louça e também acalentar sua maninha que ainda não anda. Muito limpa e cuidadosa, gosta de cantar, contando para isso muita facilidade para aprender as músicas. Escola no ar Facilmente também aprende as estórias contadas por seu pai e sua mãe, lidas no Tico-Tico e alhures. Já aprendeu a subdividir as várias partes do corpo humano; quem descobriu a América, o Brasil, a data desses feitos e o celebrante da primeira missa. Pelo Carnaval conseguiu enriquecer seu repertório com as marchas que mais lhe agradam. Matrícula no colégio Há semanas insistia Mundicarmo para matricular-se no Jardim de Infância do Colégio Sagrado Coração de Maria (Mossoró) mas só queira se ficasse lá, "sem voltar para casa"... No primeiro dia viu-se muito aperreada com o grande movimento feito pelo seu irrequieto maninho no Colégio. Saía a procurá-lo e encontrando-o dizia: "Oh! Meu Deus, esse menino não quer estudar!... quando chegar em casa vou dizer a mamãe"... Suportou bem todo o horário da aula ficando à minha espera com a porteira. Está bem compenetrada e já pediu uma sombrinha para se proteger contra a chuva e o sol (25/04/1948). Hoje Mundicarmo já não foi mais ao Colégio, isto é, resolveu voltar da porta (04/05/1948). Com a vovó Deixei que Mundicarmo fosse com Zuleide (tia) nas férias de junho passar uns dias com a sua avó. Ela sempre tem mandado dizer que não volta mais. Está satisfeita. 1948 - Rocha Neto Músicas carnavalescas Sem muita dificuldade Rocha Neto aprendeu as músicas do Carnaval deste ano e achou-as lindas. Arranjei um livrinho da RCA Victor contendo as letras de suas gravações e Rocha de posse do mesmo abria e perguntava: - papai, onde é aqui "Bem-te-vi"? Eu lhe mostrava e por sua vez ele abria o livrinho colocando-o ante a vista, dando a impressão que era míope e que estava lendo, e cantava a marcha até o fim perfeitamente. Terminando aquela música fazia novas perguntas - onde é "Quer ir mais eu"?, "Pau de sebo", "Princesa de Bagdá", "Como é burro o meu cavalo", "Alô beleza" etc, etc. Mestre do Vernáculo (17/09) Eram 17:30 horas aproximadamente. Jantávamos. A empregada, Dodô, havia dado leite e Ana Maria e foi vestir nesta o chambre para dormir usando dessa expressão: - Vamos vestir o chambre, minha filha, "mode" o frio... Rocha Neto ao meu lado, à mesa, gritou: - "Mode” não! diga, por causa... Não suportamos, o riso foi geral.

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Pagando uma promessa A 12 de dezembro fomos ao "Lima" onde pagamos uma promessa feita quando Rocha Neto esteve doente, em 1946. Ele subiu a ladeira a cavalo com seu tio Chiquinho e desceu a pé. Ele deu uma esmola a Nossa Senhora dos Impossíveis e trouxe desta santa um vultozinho. Foi uma viagem excelente. Rocha gostou demais, aproveitou muito. Natal Na véspera do Natal Rocha Neto sonhou com a visita de Papai Noel na maior noite de cristandade, e, alta madrugada, dormindo cantou: - "Papai Noel, Papai Noel Traga presente para mim também"... E o velhinho de barbas níveas atendeu ao seu chamamento. Trouxe-lhe um aviãozinho de matéria plástica e um saquinho de guloseima. Ele ficou muito feliz por merecer tanta coisa bela. Carta a Rocha Neto no seu 3º aniversario Rocha Neto, meu caro filho: Beijo-o afetuosamente neste dia risonho da sua existência, almejando-lhe completa felicidade. Transcorre hoje, meu filho, o seu terceiro aniversário, acontecimento este de alta satisfação para nós. Você é muito criança ainda, e, por isto, não pode compreender as palavras sinceras de seu progenitor, embora já me tenha dado provas evidentes sobre sua inteligência. Eu gostaria, nesta data, de lhe dizer algo sobre o que, vivendo a própria vida, aprendi, o que, indiscutivelmente, não deixa de ser um aviso prévio ao iniciar a sua jornada "por esse vale de lágrimas". Aguardarei o tempo oportuno, se é que o alcançarei. O tempo passa rapidamente e quem sabe se não estou a poucos passos de minha derradeira moradia? Venho de muito longe, percorrendo uma estrada penosa e só, razão por que não é de admirar que, chegando a esta altura, sinta o dealbar dos primeiros desânimos para levar de vencida o resto da jornada. No entanto, meu estimado filho, insisto em lhe escrever, deixando-lhe assim uma prova concreta do meu grande amor paterno. E com a alma prosternada, eu o entrego a São Pedro, para que seja seu advogado, protegendo-o em toda a sua vida, proporcionando-lhe uma existência feliz, tranqüila, útil e digna. É necessário para isto que colabore com o seu protetor e, de minha vez, farei tudo o que for possível, no sentido de orientar os seus primeiros passos nessa caminhada, primando pela formação de seu caráter que, se Deus quiser, não poderá deixar de ser íntegro. Espero que o seu modo de viver seja idêntico ao do seu avô, que lhe dera o nome. Ele viveu em paz com a sua consciência, jamais praticou uma ação de que viesse posteriormente a se envergonhar. Sempre teve o senso da responsabilidade e cumpriu as suas obrigações. Seu pai não tem vícios e tem verdadeira aversão ao jogo. Gosta, porém, dos bons livros. Foram estes os melhores e mais sinceros amigos encontrados. A leitura bem orientada é um dos mais agradáveis divertimentos. É o mais instrutivo. Com o pensamento voltado para você, que será o modelo para seus irmãozinhos, pois é o mais velho dos homens, tenho organizado uma biblioteca, na qual já se encontram as obras mais importantes dos melhores escritores nacionais e alguns estrangeiros. Lendo-os empreendi viagens audaciosas por todos os recantos da terra. Acompanhei as extraordinárias conquistas de Alexandre Magno e Napoleão; assisti ao incêndio da cidade dos Casares; a 112

libertação de Jerusalém; conheci as célebres Pirâmides do Egito; visitei Bagdá, a encantadora cidade do sonho da fantasia. Foram momentos indescritíveis, vivi-os entre esses "mestres mudos", valendo-me da expressão do grande Vieira. Estou certo que vocês saberão utilizar-se delas com muito proveito. Pois são bons livros, e entre eles, tem alguns que conservo com carinho, porque foram de meu pai33. Quero, meu filho, que seja estudioso, - o saber não se herda, conquista-se - seja inteligente, sensato, para que os seus irmãos tenham em você um verdadeiro exemplo, sejam acima de tudo unidos. Não tenho dúvidas que você terá satisfação em render inteira obediência aos seus pais, em todas as fases da sua vida. Não esqueça que eu sempre procurei "ensinar com o exemplo". Preocupe-se primeiramente com os seus estudos, tendo como lema estas palavras do primoroso Coelho Neto: - "Instrui-te, para que possas andar por teu passo na vida, e transmite a teus filhos a instrução, que é dote que não se gasta, direito que não se perde, liberdade que não se limita". Medite também sobre este conselho de RUI, o maior de nossos mestres: - "Não vos fieis muito de quem desperta já sol nascente, ou sol nado... até agora, nunca o sol deu comigo deitado, e, ainda hoje, um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser um madrugador, madrugador impenitente". Não quero finalizar estas linhas, meu estimado filho, sem falar no “irrequieto garoto de Miritiba”: refiro-me a Humberto de Campos. Órfão aos seis anos, presa de inúmeros obstáculos, porque era pobre e desprotegido, ele não se deixou vencer. Lançou-se, criança ainda, ao trabalho. Exerceu os mais humildes misteres: ajudante de alfaiate, tipógrafo, caixeiro, guarda-livros, jornalista... Leu muito. Adquiriu cultura. Venceu. Escreveu quarenta livros, cada qual deles melhor. Pertenceu à Academia Brasileira de Letras. Chegou a ser Deputado Federal. Memórias, sua obra-prima, é um livro maravilhoso. Quero que você o leia, releia, é mesmo indispensável à sua formação. No prefácio ele faz esta confissão: "Escrevo a história da minha vida não porque se trate de mim, mas porque ela constitui uma lição de coragem aos tímidos, de audácia aos pobres, de esperança aos desenganados, e, dessa maneira, um roteiro útil à mocidade que a manuseie". Seja feliz, Rocha Neto, e deixo aqui o meu sincero e afetuoso abraço, acompanhado de uma benção especial no dia do seu terceiro natalício. Seu pai. Mossoró, 20 de junho de 1948 Raimundo Rocha

1949 - Alexandre Neto Primeiras palavras Nessa mesma idade (10 meses) Alexandre Neto iniciou a dizer as primeiras palavras. Ao ver um urubu ele diz "bubú"; um cachorro chama "au au". Já sabe pedir - "dá". Está, enfim, muito 33

Nota da organizadoa – Só conseguimos identificar na biblioteca de Rimundo Rocha um livro que pertenceu ao seu pai: PALHARES, Victoriano. As noites da virgem. 2ª ed. ver., Rio de Janeiro: H. Antunes & Cª, s.d.

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interessante. Sopra procurando apagar a lamparina, dá "psiu", bate palma e chama papai com as duas mãos... Engatinhando Hoje, 1º de junho, Alexandre iniciou a engatinhar. Mamãe está se queixando: "o Alexandre já passou o dia bulindo na penteadeira, na máquina de costura"... Andando (09/06) Hoje Alexandre deu as primeiras passadas só. Ele sentiu tamanha satisfação com isto que ficou contentíssimo. Depois, esforçou-se fazendo nova tentativa e deu mais três passadas rindo muito... Cantando (09/06) Ele é chamado em casa o Rocha Neto Segundo. Parecem-se física e espiritualmente e são amigos. Para Rocha Neto só Alexandre Neto é seu irmão, as duas meninas são "outra irmandade"... Quando o Rocha sai de casa Alexandre Neto dá pela falta e fica inquieto. Procura a casa toda, chama e chora chamando: "Ó... Ó... Ó..." Para ele seu pai é assim uma espécie de ídolo. Chama por ele até dormindo, abraça-o, beija-o, pega no queixo para olhar melhor e mais de perto e ri. Está falando bastante. No seu "vocabulário" chama todos os de casa, embora não se entenda palavra. Imitando os irmãos, é deveras interessante vê-lo tomar uma revista ou almanaque, passando página por página, contando história animada, satisfeito e gesticulando... Cada dia que passa mais vai gostando de música. Chora e pede para botarmos discos na vitrola. Não quer ouvir músicas sentimentais. É louco pelas sanfonas de Dilú, Luiz Gonzaga e Mário Zan e a clarineta de Luiz Americano. Ele procura dançar e cantar no chão ou em nossos braços. 1949 - Ana Maria Cantando (março/1949) Como seus irmãos gosta muito de música, especialmente de música alegre. Ela canta, embora só se compreenda algumas palavras salteadas, "Chiquita Bacana", "Jacaré Paguá", "Copacabana". Um disco de sua preferência é a "Clarineta do Garapa", do Luiz Americano. Este disco ela pede cantando a introdução... É impagável... O Tico-Tico (mar/1949) Ana habituou-se a chupar a língua e o lábio inferior. Ela, sabendo que se briga, procura satisfazer esse vício às escondidas. Ao ser pega de surpresa e diante da pergunta "quem está chupando a língua?" ela responde: - É o Tico-Tico. - Quem é o Tico-Tico? - É "minha"... Ela tem um extraordinário apego ao vocábulo "minha" - "mamãe, desça minha", leve minha", "cai minha"... Perdendo-se em Mossoró Na manhã de 26/05, em Mossoró, seu pai foi comprar pão numa padaria vizinha à casa de seu compadre João Anastácio, onde estavam hospedados, levando consigo Mundicarmo, Rocha e Ana. Esta vexou-se pelos pães, pediu o pacote e saiu para entregá-lo em casa à sua mãe, 114

enquanto seu pai ficava na padaria comprando biscoitinhos para os outros. Ana, que havia chegado à noite, não acertou entrar logo na porta imediata e seguiu na calçada até a Praça da Redenção, quando pessoas amigas, verificando que ela estava perdida, pegaram-na e saíram à procura de seus pais. Nesse ínterim já havíamos dado pelo triste incidente, estando seu pai a correr pelas ruas, como um louco, à procura de Anica que se exibia pelas ruas, ingênua e indiferente ao perigo a que estava exposta, conduzindo ainda um pacote de pão debaixo do bracinho frágil. (Com 2 anos mediu 79 cm e pesou 11 kgs). Também é inteligente (29/09) Ana "seguindo a trilha" de seus irmãos também gosta de cantar e tem dado sobejas provas de sua inteligência. Graças à sua boa memória ela tem certa facilidade para decorar tudo. Além de cantar sambas, marchas, choro, xote, declama. E, sempre que sua mãe lhe conta uma estória ou Rocha e Mundicarmo contam "história" ou declamam quadrinhas aprendidas no Jardim da Infância, ela guarda na sua cabecinha, que sempre reproduz em determinadas horas para todos de casa. Canta hinos escolares, religiosos e balança o seu pai durante a sesta cantando: Durma, papainha sá mãe tem que fazer vai lavar e engomar a camisinha pa você Durma, papainha sá mãe foi passeá quem tem fio não passeia para ele não chorá... E assim vai longe com outras variantes, versos ou coisa que o valha. Outra amostra: Cabeça pelada (em vez de lagarta pintada) quem te pelou foi a veia cachimbeira que aqui passou No tempo da areia fazia poeira puxa lagarta pu essa "ureinha" (pega na orelha) Quase sempre, todos os dias, chora para ir ao Jardim de Infância com seus irmãos. Ela os adora e quando regressam do Jardim ela fica muitíssimo alegre, abraça-os e beija-os.

1949 - Rocha Neto Surpreendente revelação (26/06) Evitando uma possível ciumada entre seus pais, Rocha Neto jamais confessara que tinha mais amor a um que ao outro. Entretanto, em sua recente viagem a Pau dos Ferros, aproximando-se de Mossoró, ele não resiste mais. Chamou o pai e disse no seu ouvido:

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"Eu quero mais bem ao pai do que à mãe"... - Por quê?, interrogou-lhe o pai. - "Porque tudo que o filho quer, o pai faz - por isso o filho quer mais bem ao pai do que a mãe... (Mesmo assim, esse cidadão de 4 anos, preferiu que a mamãezinha continuasse ignorando essa revelação). Em defesa da irmã Indo apadrinhar a boneca de Mundicarmo no dia 09/10 no Jardim da Infância, Rocha Neto verificou que ela era chamada por alguns de seus colegas de "sinhazinha". E, ao chegar em casa, disse ao pai: "Papai, eu vi os meninos chamando Mundicarmo "sinhazinha", no Jardim da Infância. Eu vou agora todo dia, quero acabar com esse negócio! O nome dela não é "sinhazinha", é Mundicarmo!... No gabinete do Dr. Chagas Franco (25/10) Rocha Neto e Mundicarmo estão fazendo tratamento de dente com o Dr. Chagas Franco. No dia 21/10, sexta-feira, chegaram lá cantando. No gabinete o dentista perguntou quem cantava (...) Cante uma coisa para eu ouvir.. E Rocha Neto cantou um número de sua especialidade: "Como é burro o meu cavalo", gravação de Bob Nelson. O Dr. Franco gostou muito, fez seu elogio e repetiu seu pedido para que ele cantasse sábado, na rádio, para ele o ouvir em sua residência. - Quantos anos você tem? Perguntou surpreso. - Quatro. Você está gostando de Teresina? Eu não gosto muito de Teresina porque faz mais calor de que na minha cidade. - Qual é a sua cidade? Mossoró. - E por que você saiu de sua terra, que é melhor, para vir morar aqui em Teresina? - Porque mamãe queria vir "praqui", eu fui obrigado a vir também. E assim esse diálogo se prolongou muito e bem animado. Improvisando histórias (out/1949) Mundicarmo reproduz bem direitinho as histórias que suas professoras contam no Jardim de Infância, mas o Rocha Neto, a gente nota logo, conta histórias tão "bem contadas" que se vê logo que é da cabeça dele. Sabemos que não foram contadas pelas professoras porque Mundicarmo não sabe de tais histórias (palavras de sua mãe).

1949 - Mundicarmo A boneca que chora (set/1949) Regressando de Pau dos Ferros seu pai deliberou comprar a tal boneca há tanto tempo solicitada por Mundicarmo. Comprou-a no Edifício Beleza, por Cr$ 80,00. Ela está muito feliz e vai batizar sua "filha" no Jardim de Infância. Já escolheu o "padre", os padrinhos, e diz serem seus pais - quer queiram ou não - os avós da boneca. O padrinho é seu irmão Rocha Neto. Genealogia de Maria do Socorro 116

É francamente admirável uma criança com 5 anos, entrar em tão complicado caso, chegando a estas palavras: "Papai é o avô da minha boneca, mamãe a avó - quer queira, quer não. Rocha Neto é o padrinho, Ana e Alexandre Neto são os tios". Seu pai, notando que ela não se incluía, perguntou: - E você, o que é? - Mãe... Falando com Da. Zaíra (03/11) Ontem passamos pelo Jardim da Infância, eu e Maria do Carmo, para falarmos com Mundicarmo e Rocha Neto, e também com suas professoras. Dona Zaíra mostrou-nos o caderno de Mundicarmo e disse-nos: "- Mundicarmo é bem disposta, não tem preguiça, sempre está fazendo alguma coisa"...

1950 - Rocha Junior Nascimento Raimundo ROCHA JUNIOR nasceu em 26/01/1950, às 6:20 hs, "hora velha", à Rua Arlindo Nogueira, 2495, em Teresina (PI). Esta data pela religião católica é consagrada a São Policarpo (dia de quinta-feira). Pesou 4 kgs e tomou o primeiro alimento com 24 horas. O nome ROCHA JUNIOR (carta a Dolores - 29/01) A responsabilidade da imposição de tal nome, recai sobre Rocha Neto e Mundicarmo. Ao regressarem das Bodas de Ouro dos avós disseram: "se for homem, será o Rocha Junior; se for mulher - Maria das Graças". Não desejo contrariá-los numas tantas coisas... De minha vontade o seu nome seria outro - maior em número de letras, mais sonoro, um pouco mais raro e de alta projeção mundial. Seria (depois de tudo isto...) ROOSEVELT, a quem reputo um dos maiores estadistas do mundo, em todos os tempos. Ao nascer O parto foi rápido, muito rápido - sua mãe, se muito, sofreu 15 minutos. Gordo e calado, todos os irmãos ficaram muito alegres quando ouviram o choro do maninho esperado. Rocha Neto tem beijado muito sua mãe, perguntando se ela está bem e se não se sente mal, enquanto Mundicarmo procura esclarecer que "vai criar o seu irmãozinho". Ana não sabe o que fazer com tanta satisfação, e o Alexandre, "o gordo", tenta furar com o dedo o olho de seu irmão recém-nascido, o "neném". Bem esperto (abril/1950) Rocha Junior está bem esperto. Forte, ri muito e grita com raiva. Já tem suas preferências por alguns dos manos. Deitado na cama com a barriguinha para baixo, levanta bem a cabeça.

1950 - Alexandre Neto (junho/50)

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O homem avestruz É hábito de Alexandre Neto comer ameixa engolindo o caroço... Quando os irmãos soltam os caroços das que comem ele os apanha e engole. Está engolindo também os caroços de laranja com a mesma facilidade... (Com 2 anos mediu 82 cm e pesou 12 kgs). 1950 - Ana Maria Querendo mudar o nome (carta a Pe. João - 08/02) Aninha está forte e muito sabida mas pedindo sempre para mudarmos o seu nome, ora para Sônia Maria, ora Tânia Maria, preferindo sempre o tratamento de "minha filhinha"... 1950 - Rocha Neto O crucificado (abril/1950) As freiras do Colégio Sagrado Coração de Jesus, de Teresina, contaram aos meninos, no Jardim da Infância, a história da Paixão de Jesus. Como sempre, observaram tudo sem perder o menor detalhe e uma vez chegando em casa resolveram por conta própria dramatizá-la. Mundicarmo juntou sua roupa do Colégio, a de Rocha e a de seus irmãos menores e vestiu cada um a seu modo. Rocha seria o crucificado, assim, foi metido na farda de Mundicarmo. Na calçada da frente crucificaram o Cristo, junto à parede. Ele estava de braços abertos e olhos fechados. Imitando Jesus, Rocha disse: "quero água"... Mundicarmo deu-lhe algo dizendo que era fel. Nesse ínterim Rocha cai e ela corre com os irmãos para se trancarem no quarto, com medo da alma de Jesus. Entrando no quarto, deu volta na chave quando, de chofre, aparece o "Crucificado", de ponta de pé ou nas pontas dos dedos, de braços abertos e fazendo "munganga". Apanhada de surpresa Mundicarmo, temendo ser o cão (o demônio), deu um grito monstruoso alarmando toda a casa. Sua mãe ainda a encontrou "sem sangue". Esclarecendo o caso, todos caíram numa onda de gargalhada quase sem fim... A caridade (maio/1950) No Jardim da Infância as freiras ensinaram aos meninos que a caridade era uma bela virtude, etc. Certo dia Rocha Neto levou a sua merenda habitual e lá um seu colega pediu-lhe um pedaço. Rocha vendeu por 10 centavos. No caminho, no dia seguinte, encontrando um mendigo implorando a caridade pública, Rocha Neto deu-lhe os 10 centavos. Seu pai perguntando-lhe pelo dinheiro ele disse alegre: - "eu fiz uma caridade!... dei a um pobrezinho no caminho do Colégio...

1950 -Mundicarmo Mudando de Jardim de Infância (20/03) Mundicarmo teve ótima impressão das freiras. Assistiu à primeira aula e chegando em casa disse: "Papai, as freiras são calmas e delicadas"... 1951 - Mundicarmo Encontro com o pai (depois de uma viagem) Quando cheguei a Fortaleza ainda encontrei Mundicarmo acordada. Ela, muito alegre, jogouse sobre mim e deu-me um fortíssimo abraço. Está passando bem e satisfeita (08/02). 118

1951 - Alexandre Neto "Sonhei cum papai"... Maria do Carmo, ainda em Fortaleza, escreve-me no dia 5/3 falando dos meninos. "... Alexandre deu para sonhar com você, até dormindo de dia. Tem sido uma graça.... E, o mais interessante é que ele sabe contar. Vou-lhe transmitir dois com suas palavrinhas: - "Mamãe, eu sonhei cum papai sá noute agarrado cum eu, caiu e eu solei..." - "Mamãe, eu sonhei cum papai sá noute virando tamanduá e tomeu um pinto"... (Este para ele foi um sonho engraçado, tanto contava como dava gostosas risadas...)". Papai Noel (23/12) Alexandre Neto queria conhecer Papai Noel. Sua mãe saiu às lojas com ele e Ana Maria na véspera daquela Noite Santa para mostrar-lhe o Papai Noel do "Bazar Chic". Eles ficaram grandemente surpreendidos com o velhinho de barbas brancas cuja cabeça se movia por meio de eletricidade, num gesto de quem tudo concede ou promete incondicionalmente a quem quer que lhe peça alguma coisa... O Alexandre muito alegre, aperreado, vexadinho, com sua pronúncia atrapalhada, na sua doce inocência perguntava ao velhinho pródigo: - "Papai Noel, você me dá uma corneta?” (o velhinho moveu a cabeça num gesto afirmativo)". - "Papai Noel, você me dá um revólver?!..." - "Papai Noel, você me dá um cata-vento?!..." E, agoniado, sem saber o que pedir mais, perguntou a sua mãe: "mamãe, o que eu vou pedir mais?". Havia outras pessoas que presenciando a cena riram muito...

1951 - Ana Maria Ana sabe satisfazer o pai (08/02) Ana foi acometida de alguns tumores em Fortaleza. Teve, para combatê-los, de tomar 2 Despacilinas-reforçadas (injetadas). Atendendo ao pai prometeu não chorar. Após a aplicação ela ficou a embalar-se com a mãe numa rede de corda. Maria notou uma marca de dentes na mãozinha dela e admirada perguntou: - "O que foi isso, minha filha?!..." - "Foi eu que mordi para não chorar, respondeu ela. Eu prometi a ele que não chorava..." 1951 - Rocha Neto Usando calça comprida Rocha Neto tem muito desejo de crescer, de ficar rapaz. Quer estar sempre no escritório ajudando o pai, deseja ir só à praça etc. Vivia pedindo-nos uma calça comprida insistentemente e agora foi atendido. Sua mãe fez uma "silac" e mandou fazer a calça de acordo com o seu desejo. Ele usou a primeira vez em 12/08. Ficou deveras satisfeito. Desenvolvimento intelectual (out/1951) Tem sido uma coisa notável o desenvolvimento intelectual de Rocha Neto, pois desde os 6 anos, que ele faz ditado, cópia, lê sozinho qualquer lição ou revista e tira conta de multiplicar 119

por dois números - sem ter freqüentado nenhuma escola, só recebeu aulas em casa. Certo dia seu pai adquiriu um folhetozinho da autoria de Monteiro Lobato, O Jeca Tatu, e ofereceu a ele, prometendo lê-lo à noite, quando regressasse do trabalho. Mas o garoto, não suportando a demora, pôs "mãos-à-obra", passou o dia sentado lendo o folheto. Resultado, quando seu pai chegou em casa ele reproduziu toda a história lida para ele e sua mãe. Fiquei francamente surpreendido. 1951 - Rocha Junior O amigo da onça (dez/1951) Certo dia o Junior despertou antes de todos da casa - é ótimo madrugador - e saiu à procura de sua mãe. Encontrando-a na rede dormindo chamou-a e perguntou: - "Madama, cabelo ou barba?!..." (Ele se lembrou de uma piada do "Amigo da Onça", em O Cruzeiro, onde uma dona barbuda foi ao barbeiro e este era o célebre tipo criado por Péricles, e lhe fez a pergunta: "madame, cabelo ou barba?)... Ele está muito desenvolvido, faz lembrar o Rocha Neto em idade idêntica, fala tudo e aprende o que se ensina. 1952 - Mundicarmo Início do curso primário Mundicarmo foi matriculada no Colégio Sagrado Coração de Jesus. Está satisfeita e com gosto, nota-se que está aproveitando. (mar/1952).

1952 - Ana Maria Jardim de Infância Ana Maria passou a freqüentar, agora oficialmente, o Jardim de Infância no Colégio Sagrado Coração de Jesus. Quase não se conformou com a separação de Mundicarmo, que passou a estudar no Curso Primário. Um dia chegou aborrecida, com a cara de quem não estava nada satisfeita e disse a sua mãe: - Ô mamãe, eu não sei porque eu não gosto daquela "rapousinha" do Colégio... Ela queria falar do repouso, quando ficava com a cabeça sobre os braços recostada à carteira (mar/1952).

1952 - Maria Auxiliadora Nascimento Maria Auxiliadora nasceu às 08:01 hs à Rua Arlindo Nogueira, 249-S, em Teresina (PI) - dia consagrado pela Igreja a Nossa Senhora Auxiliadora. Nasceu num dia de sábado. Pesou 3,750 grs. 1952 - Rocha Junior Baixa rede...

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No resguardo de Maria, o Junior passou a dormir com o Alexandre na sala de visita. Certa manhã seus pais acordaram ouvindo a voz de Juninho: - "Rede, baixa rede..., ou rede, tu baixa?..." A rede fora armada um pouco alta e ele ficou pendurado sem poder descer, pedindo calmamente que a rede baixasse para que ele pudesse alcançar o chão (mai/52). No 2º aniversário mediu 83 cm. 1952 - Alexandre Neto 4º aniversário (26/06) A festa de Alexandre este ano foi um pouco fraca, pois a mamãe estava de resguardo. Porém Regina (empregada) fez um bolo e creme. O presente foi um avião de matéria plástica.

1952 - Rocha Neto Na escola Rocha Neto passou a freqüentar a escola particular da profª. Donana Cordeiro no dia 05/03. A princípio a professora, não olhando bem para os seus seis anos e meio, achou-o fraquinho entre colegas de 8 a 12 anos que, ao contrário do Rocha, já haviam freqüentado ou freqüentavam escolas nos grupos da cidade. A pedido dos pais, a professora estava preparando essa turma para o 2º ano primário. Logo decorridos alguns dias o "papa-jerimum" começou a mostrar que tem inteligência. No dia 19/04 a professora chamou seu pai dizendo-lhe do grande progresso do garoto que já considerava melhor que os outros em diversos casos... 7º aniversário Hoje é uma data muito importante na existência do Rocha Neto - aos sete anos já assumimos algumas obrigações, alguns deveres; início dos estudos de modo mais sério. Por esse motivo seus pais lhe ofereceram uma caneta Parker Junior, com esta gravação: Rocha Neto, 20/06/1952. O Rocha movimentou a casa e a rua, convidou seus colegas de aula e recebeu muitos presentes. Seus maninhos o presentearam com um jogo - quarteto - "Escritores Célebres".

1953 - Maria Auxiliadora Andando (13/06) Maria Auxiliadora, muito medrosa, está dando as primeiras passadas e pronunciando as primeiras palavras.

1954 - Alexandre Neto e Ana Maria Cidade da Criança (fev/1954) Alexandre Neto está matriculado no Jardim da Infância - 3º Período. Ana está satisfeita e gostando muito da alfabetização.

1954 - Rocha Junior 121

No Jardim Está bem compenetrado mas já fugiu uma vez, tendo conseguido chegar em casa incólume, graças a Deus. Atravessou só, uma das ruas mais movimentadas de Fortaleza.

1954 - Maria Auxiliadora 2º aniversário (24/05). Mediu 81 cm. Está muito sabida e mimosa.

1954 - Rocha Neto Estudos em Fortaleza Em 1953 Rocha Neto estudou, juntamente com Ana Maria e Mundicarmo, no Ginásio Agapito dos Santos. Em 1954, no Ginásio "Santa Lúcia". Tem aproveitado muito, chegando a se destacar entre os colegas, alcançando o 1º lugar vários meses consecutivos, apesar dos estudos serem muito puxados.

1954 - Mundicarmo Nos estudos (julho/54) Está satisfeita e aproveitando muito no Ginásio "Santa Lúcia". Também tem se destacado.

1954 - Fernando Nascimento Fernando Roosevelt Rocha nasceu a 1:23 hs do dia 21/07, na Casa de Saúde "Dr. César Cals", em Fortaleza (CE). No calendário católico é dia consagrado a Santa Olga. O nascimento verificou-se num dia de quarta-feira. Pesou 3.800 kg e mediu 53 cm. Seu nome Há vários anos era desejo de seu pai homenagear o grande estadista norte-americano FRANKLIN DELANO ROOSEVELT, na pessoa de um de seus filhos, como se poderá ver em carta dirigida a Dolores, sua cunhada, por ocasião do nascimento do Rocha Junior. Maria do Carmo (sua mãe) fez promessa a Santo Antônio para pôr seu nome se o seu rebento fosse homem. Respeitando esse compromisso combinamos botar o nome do glorioso franciscano recebido na pia batismal - FERNANDO - juntando-lhe o de ROOSEVELT, também um grande benfeitor da humanidade.

1954 - Fernando Roosevelt Engatinhando Ele com 10 meses engatinhou. Está muito forte, sadio e bonito. Nestlé 122

Mandamos algumas fotografias do Fernando Roosevelt para a Cia. Nestlé, no Rio de Janeiro, em agradecimento, recebemos duas belíssimas cartas e alguns brindes... 1955 - Rocha Neto e Mundicarmo Telegrama pela aprovação no admissão Teófilo Otoni (MG), 14/12/1955 - Recebi com grande satisfação resultados exames meninos. Mundicarmo desejo faça por continuar merecendo elogios. Rocha mando-lhe minha palavra de estímulo, persistência, força de vontade para que possa dominar habilmente a ciência dos números tornando-se num futuro próximo verdadeiro mago das finanças. Abraços todos, beijos mamãe. Possível ir Rio próxima semana - Rocha.

1956 - Fernando Roosevelt 2º aniversário (21/07/56) Fernando Roosevelt fez hoje seus 2 anos. Está muito sabido e muito inteligente, engraçado e simpático. Conquistou a simpatia de todos da rua. Houve bolo e recebeu alguns presentes de seus irmãos e amiguinhos. Seu pai abriu uma conta no Banco da Lavoura de Minas Gerais para ele. O depósito inicial, como presente de aniversário, foi Cr$ 100,00. Ele mediu 80 cm.

1957 - Julia Maria Rocha Nascimento 15/05/1957 às 2 hs, na Maternidade do Hospital Português, em São Luís (MA), no quarto "São Miguel Arcanjo". Essa data é dedicada a São Torquato, no calendário católico. O nascimento verificou-se numa quarta-feira. Pesou 3,600 kgs e mediu 49 cm. Nome Homenagem a sua avó materna - JULIA.

1957 - Fernando Roosevelt Carta à viúva do Presidente Roosevelt - 07/11/1957 São Luís, Maranhão, 7 de novembro de 1957 Mrs. Franklin Delano Roosevelt 598, MEDISON - Av. NEW-YORK CITY Meus respeitosos cumprimentos,

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Tomo a liberdade de formular a presente para comunicar à Sra., embora tardiamente, um ocorrido em meu lar, que constituo motivo de grande felicidade para todos de nossa família: No dia 21 de julho de 1954, nasceu na maternidade "DR CESAR CALS", em Fortaleza, capital do Estado do Ceará, o meu 7º filho, que recebeu o nome de FERNANDO ROOSEVELT ROCHA. Na pessoa do meu filhinho, como se vê, prestei a minha especial homenagem póstuma ao seu falecido esposo, Frankin Delano Roosevelt, maior estadista do mundo na minha opinião, o qual tanto fez pela humanidade. Era meu desejo botar o nome completo do presidente Roosevelt, porém a minha esposa havia feito uma promessa (é católica) de botar o nome de Fernando, em homenagem a Stº Antonio, se a criança fosse do sexo masculino. Nesse caso chegamos a um entendimento ficando FERNANDO ROOSEVELT. Mais de 3 anos são decorridos e já o meu filhinho vem demonstrando e dando boas esperanças que não me decepcionará e, como diz a sabedoria popular, "o espinho que tem que furar, de pequeno traz a ponta”, tenho certeza que o meu filho saberá honrar esse nome e com muito orgulho. Estou juntando a esta 3 fotografias nas quais se vê o Roosevelt. Uma delas é da família, naquela época. Estas fotografias foram feitas há mais de ano e depois já nasceu uma menina, nesta cidade, sendo 8 atualmente os meus filhos. Terminando, receba o meu protesto de alta estima e de grande consideração, Atenciosamente Raimundo Rocha

1958 - Alexandre Neto Salve mamãe! Discurso pronunciado por Alexandre Neto no dia das mães, em nossa residência, com a presença dos Irmãos Maristas Luiz Venceslau e Tarcísio, os quais almoçaram conosco (11/05/1958). “Salve Mamãe! É sua esta festinha. É simples, humilde e singela, mas é portadora do mais puro sentimento de nossos coraçõeszinhos. Jamais poderemos deixar passar um dia tão grande sem torná-lo alegre e feliz. É por isso, mãezinha, que estamos reunidos ao seu lado, não para lhe prestar uma homenagem pomposa, de gala, mas uma festinha promovida pelo nosso amor filial, para lhe dizer mais uma vez que lhe queremos muito e que a nossa mãezinha é a melhor mãe do mundo. Com beijos dos seus filhos...”

1960 - Maria de Lourdes Correia Rocha Nascimento Nasceu às 6:15 hs do dia 08/10/1960, na Maternidade do Hospital Português, em São Luís, no quarto Nossa Senhora de Lourdes. Nasceu no sábado, pesou 3,700 kgs e mediu 43 cm (?). Nome

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Foi escolha e imposição de seus irmãos. Para isso contribuíram várias coincidências, inclusive a visita de sua prima Lourdinha, filha de Enedina, a nossa casa nessa época.

1962 - Maria do Carmo Nascimento Nasceu no dia 31/01/1962 às 4:20 hs, na Maternidade do Hospital Português, no quarto São Miguel Arcanjo. Pesou 3,800 kgs e mediu 50 cm. Houve complicação horas após o parto. Nome Escolhido por promessa de sua avó materna.

1964 - Julia Maria Poesia Infantil O dia do papai É alegre como o Natal Alegre os irmãozinhos Alegre os passarinhos Alegre os pequenininhos Alegre os filhinhos Salve o papai Abraços, beijos. (Publicada no Jornal do Maranhão de 19/01/1964, p. 7 por Pedro Augusto).

1965 - Cristina Nascimento Nasceu no dia 07 de fevereiro de 1965. Batismo Batizada a 21/02/1965 na Igreja de São Pantaleão, pelo Pe. Cornélio, tendo como padrinhos Lourival Rocha (tio) e Maria Ruzinete Rocha.

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FIGURAS NOTÁVEIS

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HUMBERTO DE CAMPOS34

Em Miritiba, no Estado do Maranhão, nasceu Humberto de Campos a 25 de outubro de 1886, filho do comerciante Joaquim Gomes Veras e de sua consorte D. Ana de Campos Veras. Órfão aos seis anos, Humberto acompanhara sua mãe, já sem recursos, para Parnaíba, no Piauí, onde reiniciariam a grande luta pela vida. Sem o guia indispensável para a orientação de seus primeiros passos, o filho de D. Anica, além de outros fatores, sofrendo a influência do meio, caíra numa ociosidade perigosa, ingressando, automaticamente, na escola do vício, do crime e da perdição. Não tardara muito, porém, o milagre da sua regeneração, graças ao espírito invencível de sua mãe, símbolo de heroísmo e abnegação. Nas horas de prece e do recolhimento, ela pensa no futuro de seu filho pobre e recomenda-o ao Altíssimo. Queria trabalhos para Humberto e encaminhá-lo numa profissão condigna. Ele não podia continuar realizando "maldades inocentes e aventuras atrevidas.". Matriculando-se numa escola de primeiras letras, Humberto é impulsionado por um ardente desejo de se libertar da cegueira mental que o dominava, aproveitando todos os momentos de folga, à noite, recorrendo "à claridade do lampião, curvado sobre o abecedário", na ânsia de "decifrar o enigma daqueles caracteres negros, daqueles sinaizinhos confusos e misteriosos que viriam a ser, mais tarde, meu encanto e meu tormento". Sua mãe tomara a iniciativa de encaminhá-lo para a oficina tipográfica, em fins de 1899, em Parnaíba, recebendo então as palavras entusiásticas do Dr. Sampaio: "Era, disse ele, a profissão de Benjamin Franklin... e quem sabe se o meu amiguinho não acabará aperfeiçoando o pára-raios?... "Nessa tipografia, diz Humberto, comecei, então a adorar minha mãe e prometi, num juramento feito a mim mesmo, torná-la feliz, compensando-lhe assim, as amarguras que lhe causara no tempo de colegial e de vadio, espelho de maus exemplos, vítima de más companhias." Iniciando sua peregrinação, Humberto de Campos, a convite de um parente, embarca para São Luís, onde sofre as primeiras desilusões com as promessas irrealizáveis dos homens. Delibera, então, enfrentar, sem lar e sem pão, essa grande cidade, à procura do acaso. Não voltaria a Parnaíba, levando apenas o humilhante fardo do insucesso de que fora vítima. Passara rapidamente pelo balcão, porém, foi arrastado pelo seu destino, que o jogou na profissão que o seduzia. É um anônimo operário da oficina do Jornal da Manhã. Mas, o destino, sempre cruel nas suas deliberações, forçara o filho de D. Anica a regressar à casa materna, mais uma vez, fazendo-o passar por uma oficina de alfaiate, por lavador de copos de botequim e caixeiro de balcão...

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Publicado em Centelha Sanjoanesca, Ano I, jun. 1947, p. 19-21, Mossoró-RN

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Não era entretanto, o mesmo. Tivera oportunidade de presenciar, preso a um balcão, o grande movimento feito pelo gênio de Coelho Neto, em sua Terra Natal. Um raio de luz penetrara o seu cérebro. Previa a aproximação de novos horizontes, possuindo, para enfrentálos, grande inteligência e uma extraordinária força de vontade. É sob a influência divina do grande mestre Coelho Neto, que contemplamos o desenrolar de sua vida. Viajou à Amazônia, chegando até o Purus, Madeiras e Juruá. Aos 22 anos, foi gerente de Seringal, no Baixo-Amazonas, sendo então dominado por enorme indignação, escreve para a imprensa do Pará os seus artigos de protestos contra as injustiças e arbitrariedades que ali presenciara, praticadas contra os desafortunados e infelizes. Dessa lendária região, com suas raras virtudes de fino observador, entrevia no Rio, as portas da casa de Machado de Assis, à qual pertenceria mais tarde. Aceitando o lugar que lhe oferecera A província do Pará, o órgão do Partido do senador Antônio Lemos, Humberto inicia uma nova fase de sua existência, surge então o político. Ocupa cargos de projeção no Partido Situacionista e é distinguido por outros, sucessivamente, de alta projeção no governo daquele Estado. Humberto de Campos, reclamado pelo Sul, não pode mais permanecer no Norte. Embarca, finalmente, para o Rio de Janeiro, onde receberia a sua merecida consagração. Funcionário público, Deputado Federal, em várias legislaturas, acadêmico, sendo o jornalismo, em toda a sua existência, a carreira de sua paixão. "Desajudado de todos os atributos físicos e morais”, Humberto de Campos galgou os últimos degraus da escada que o levara à glória, à imortalidade, presenciando assim, os dias mais felizes de sua popularidade, na sua marcha vitoriosa. Candidatando-se à Academia Brasileira de Letras, na vaga de Emílio de Menezes, foi o seu nome sufragado na sessão de 30 de outubro de 1919, conseguindo 27 votos dos 29 acadêmicos presentes. Saudado por Luís Murat, Humberto de Campos foi recebido a 8 de maio de 1920, coincidindo que a solenidade foi presidida por Carlos Laet, que anos antes, ao sair o seu livro de poesias, havia escrito num de seus celebres "Micro cosmos": "Mais alguns anos e teremos o Humberto na Academia coroado de louros com um discurso por cima e não seja eu quem lh'o faça para lhe não desbotar o triunfo." Presa de terríveis sofrimentos físicos, porém, não deixa de distribuir aos jornais os seus artigos diários, os quais são disputadíssimos pelos maiores jornais do país. É nessa época que Humberto passa a ser mais compreendido, tornando-se um médico, um conselheiro, e um confidente. Ele não pertence mais ao Maranhão, tornando-se então um vulto nacional. Recebe de todas as regiões do país, constantemente, cartas de noivas solicitando um conselho para o seu caso, de prostíbulos pedindo um remédio para suas misérias, e de cárceres implorando uma palavra de conforto para lenitivo de seus infortúnios. as suas obras se sucedem e as edições se esgotam rapidamente. Sua glória cresce dia-a-dia, graças ao seu estilo simples, claro e maravilhoso. 128

Os Parias, Sombras que Sofrem, Destinos, Sepultando os meus Mortos, são suas principais obras, culminando o seu triunfo com a publicação de Memórias, livro que reputo indispensável a todo pai de família, pelas grandes lições que nele se encontram. Sua pena brilhante estava sempre na defesa dos fracos, dos humildes e dos desgraçados, os quais eram tudo para Humberto de Campos. Certa vez, seus amigos, sugeriram-lhe a idéia de tirar uma edição especial de Memórias para ser vendida aos milionários ao preço de 200,00 o exemplar, cujos lucros seriam revertidos em benefício de sua saúde. Humberto, enfermo e paupérrimo, não fez tardar o seu protestos sempre franco: - O livro é mercadoria que não deve ser vendida por preço incomum. O excedente desse preço é uma esmola a quem o vendesse. Recebendo duzentos mil réis dum milionário, por um exemplar que não valesse mais que oito, eu ficaria impedido, por cento e noventa e dois mil réis, de insurgir-me quando esse nababo escorchasse um proletário. E, eu quero, na minha pobreza, conservar livres para as grandes campanhas em favor dos humildes, a minha consciência, a minha voz e a minha pena". E, no dia 5 de dezembro de 1934, o Brasil perdia, na pessoa de Humberto de Campos, um dos seus filhos mais eminentes, a quem a quirologia pela boca de Sana Khan e Jorge Chacarian, havia dito que a par de altas posições, honrarias e dinheiro, ainda teria muitos anos de existência.

Mossoró, junho de 1947

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VASCONCELOS - OPERÁRIO DA AGULHA E DA PENA35

A 22 de dezembro de 1947 tombou, vencido pela morte, o jornalista José Martins de Vasconcelos, com 73 anos de idade. Filho da cidade de Apodi, nasceu a 11 de novembro de 1874, porém cedo veio para Mossoró, onde por si próprio adquiriu cultura, e viveu toda a sua existência devotado ao bem, ao trabalho e ao progresso. É imperioso dizer que Martins de Vasconcelos, no início de sua formação, levando de vencida numerosos obstáculos que lhe surgiram, "representou a figura sugestiva do autodidata sertanejo", como afirmara C. Cascudo. Historiador e poeta, folclorista e CONTEUR, compositor e músico, Vasconcelos também brilhara como jornalista de grandes recursos, homem de combate, que jamais recuou ante a luta por mais séria que ela parecesse. Na vida prática, vítima de algumas dificuldades de ordem financeira, José Vasconcelos teve de trabalhar de alfaiate e no comércio local, sem contudo prejudicar a sua privilegiada vocação intelectual. Em 15 de outubro de 1916, fundou O Nordeste, órgão de interesses gerais, que constituiu marco na vida cultural da terra potiguar. Há um tempo, foi seu diretor, repórter, tipógrafo, revisor etc. Seu jornal sempre lutou em defesa dos fracos, dos oprimidos e dos sofredores, batendo-se pelos ideais democráticos, pela justiça e pelo direito. Fiel à sua vocação, consagrou os melhores dias da sua existência às letras, à arte, ao soerguimento do nível intelectual de nossa terra, Martins de Vasconcelos deixou matéria inédita em poesia que daria dois grossos volumes; publicou em 1905, Psaltério da saudade, dois anos após o falecimento de Da. Francisca L. de Vasconcelos. "Aspira-se, nele, como dentro de uma seiva risonha em primaveras abertas, o inebriante e suave perfume de um lirismo sadio e novo, com toda a sua gama de notas cristalinas e ternas, que a algum conforta e alenta, como um divino bálsamo odorante..." Apareceu em 1915, Renovos d'Alma (versos), "fruto do amor" e de "um novo lar". O poeta contraiu segunda núpcias com Da. Sílvia F. de Vasconcelos. Sob o pseudônimo de Jomarvas, deu-nos ainda, em 1918, o poema “Sultão”. Em prosa, publicou Histórias do Sertão, obras que foram muito bem recebidas pela imprensa nacional. Pertenceu a várias agremiações culturais e foi sócio correspondente do Instituto Histórico do Estado. Diretor-Professor do Grupo Escolar "30 de Setembro", Secretário da Intendência de Mossoró, Promotor Público interino e Agente Fiscal Federal, em Mossoró. Não tenho dúvidas em afirmar, por tudo isto, que o autor de Histórias do Sertão foi não só um animador, mas um agitador construtivo do movimento cultural da sua época, causando o seu desaparecimento, no meio social e intelectual mossoroense, um vácuo que não será preenchido facilmente. Ao passar o primeiro aniversário que esse homem de letras dorme no seio da terra, recapitulando as lembranças soltas que me restam da mocidade, relembro o meu primeiro encontro com o poeta de Renovos d'Alma, em companhia do meu nunca esquecido progenitor. 35

Publicado na Polianteia José Martins de Vasconcelos, por ocasião do primeiro aniversário de sua morte – Mossoró-RN, 1948 (?).

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Dezenove anos rolam sobre esse incidente que o tempo não conseguiu apagar da minha imaginação. Os primeiros caminhões iniciavam sua marcha sobre o sertão norteriograndense, quando recebi de meu pai o convite para vir a Mossoró, a Capital-do-Oeste, a título de tomar a benção ao meu padrinho, então um dos mais conceituados comerciantes desta praça. Tratados todos os negócios, antes de regressarmos, papai se dirigiu ao estabelecimento comercial de Martins de Vasconcelos, seu velho amigo, para a costumeira e infalível visita. Ao entrar, havia apenas uma pessoa no interior do prédio, onde se viam algumas máquinas sujas de tinta e de óleo, as quais, mais tarde, vim a saber que eram os prelos que imprimiam O Nordeste. Percebendo nossa presença, Vasconcelos veio ao nosso encontro e abraçaram-se, estabelecendo-se, então, entre eles longo e amistoso bate-papo. Ainda hoje, tenho inalterável na memória esse quadro belíssimo, no qual se defrontam esses varões, irmanados pelos mesmos sentimentos, pelos mesmos ideais. Martins de Vasconcelos, saído das mais humildes posições, deixou um exemplo edificante de heroísmo, de trabalho, de honestidade e de desassombro, que bem honra o seu nome e sua família. Recebe, pois, meu amigo, nestas despretensiosas palavras, o preito sincero da minha eterna e comovida admiração.

Mossoró, 05/12/1948.

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DUBAS - UM MESTRE E UM AMIGO Eu tenho confessado sempre a minha admiração e o meu reconhecimento às pessoas que, de algum modo, preenchendo a lacuna aberta com o desaparecimento de meu pai, contribuíram com abnegação, pela sua virtude, trabalho e saber, para a formação do meu caráter, desviando-me do caminho fascinante do vício e da perdição, a que possivelmente seria arrastado. Manuel Jácome de Lima, ou simplesmente o Prof. Dubas, como é conhecido e estimado de quantos, como eu, tivemos a sorte de privar da sua proveitosa amizade - é uma das imagens sagradas do culto da minha comovida e sincera veneração. Filho de pais pobres, o Prof. Dubas não teve o "luxo de alisar banco de colégio" para se diplomar, o que não o demovera da vocação, para a qual nascera predestinado. Deixando o trabalho, corria ao livro, enchendo todos os momentos de folga impelido pelo grande desejo de se libertar das trevas da ignorância. Estudava e, logo, transmitia a outros os conhecimentos hauridos horas atrás. Submeteu-se a concursos na capital do Estado, onde conquistara brilhantemente o seu diploma de professor. E outra coisa não tem sido, em toda sua útil existência, senão um educador às direitas. Hoje, ao término da jornada, gozando a reputação que bem merece entre os seus pares, no magistério, o prof. Dubas detém-se e olha feliz, o caminho percorrido, sentindo a satisfação de ver cumprida a sua missão e repete, quando se faz mister, as palavras do imperador Pedro II: "Não conheço missão maior e mais nobre que a de dirigir as inteligências juvenis e preparar os homens do futuro". Católico praticante e educador exímio são os traços mais salientes da sua pessoa. Tudo nele é ordem, é método, em síntese, é a modéstia personificada, procurando ver no seu amigo, no seu ex-aluno, qualidades que são suas. Na propagação e defesa de seu credo e de seu Deus não vê barreiras intransponíveis. Intransigente e fulminante, o adversário. Não lhe falta uma argumentação segura, irrefutável, sem subterfúgio, discutindo e esclarecendo tudo, com a simplicidade e a clareza que lhe é peculiar. Estatura mediana, cabeça grande, na qual acumula boa reserva de saber, cabelo castanho escuro, cortado à escovinha, olhos negros e ligeiramente ágeis, o prof. Dubas, na rua, quase sempre vexado, deixa-nos a impressão de que vai a procura de alguma coisa importante que perdeu. Seu temperamento é, às vezes, inconstante, conseqüência talvez de sérias provações por que tivera que passar na vida. É generoso e bom, porém como certos animaizinhos mansos e inofensivos na jaula, mas que aperreados e irritados, tornam-se perigosos e quase inacessíveis. O seu revide está pronto, enérgico e desassombrado, para aqueles que, abusando da sua boa-vontade, não sabem ou não souberam colher e aproveitar a seiva preciosa da árvore dadivosa da sua amizade. Uma ilustração. Certo aluno, por sinal, das melhores famílias de Pau-dos-Ferros, demonstrando descaso pelos estudos, não tardara em receber o seu protesto, em plena classe. Neurastênico, trêmulo, o prof. Dubas explodiu mais ou menos com estas palavras: "Sr. F. Olhe, estou ensinando a rapazes, não é a crianças. É verdade que necessito ganhar, porém tenho o meu nome a defender. E não estou disposto, 132

absolutamente, como todos sabem, a levar o meu tempo quebrando a cabeça com quem não quer aprender. Seu pai, aliás meu amigo, vendo isto, pensará que é falta de interesse da minha parte. Portanto, se não quiser aprender, não volte mais à aula". Volto a Pau-dos Ferros, pela segunda vez, a chamado de meu tio Amadeu, irmão de meu pai, a 17 de agosto de 1938. E após alguns dias, recebi dele a determinação para freqüentar a aula noturna do prof. Dubas, no grupo "Cel. Joaquim Correia". Data, pois, dessa época o meu conhecimento com o professor que maior influência exerceu na minha formação, o qual, posteriormente, se convertia, para o resto da vida, num dos meus melhores amigos, cuja amizade jamais sofrera o menor acidente. Ao primeiro contato com sua aula, o que primeiro me acudiu à lembrança foram aquelas palavras de cunho profético, pronunciadas por meu pai, havia seis anos, em Lucrecia, ante a desdita de um povo que se debatia, mais uma vez, vítima de três secas seguidas: - "Breve - dizia ele - breve chegaremos a um tempo que, se a pessoa não souber ler e escrever bem, só terá direito a viver do passado". Reflito então sobre a gravidade dessa profecia e senti, fundo, nesse instante, a inadiável necessidade que eu tinha de aprender algo, para tentar a fuga àquela dura realidade da previsão do espírito esclarecido de meu pai. Não havia mais tempo a perder, pois contava com dezenove anos de idade. Senti, nesse ínterim, o despertar das células adormecidas, metendo-me em seguida, cautelosamente, no meio da turma de veteranos que estudava com o prof. Dubas, em Pau-dos-Ferros. Recapitulando, hoje, alguns episódios que ainda conservo na memória, tentarei fixar nesta página, com absoluta fidelidade, a impressão que me ficara na primeira aula desse denodado apóstolo a serviço da instrução no Rio Grande do Norte. Cada carteira fora ocupada por dois alunos, não por sorte minha, mas por deficiência de luz. O prof. Dubas, na primeira aula, determinara que fizéssemos uma cópia sublinhando verbos. Ora, eu havia desprezado, sem que meu pai tivesse conhecimento, as aulas do prof. Raimundo Soares de Andrade, no grupo "João Godeiro", em Patú, não tendo até àquela época aberto sequer uma gramática. Como podia, então, sublinhar verbos? Pude perceber, no entanto, que a minha "fachada" enganara, pelo menos, aos colegas. Eu não queria passar, de início, pela deselegância, ou mesmo, pela decepção de confessar o grau de meu atraso. Porém, como há sempre um jeitinho nessas ocasiões vexatórias e de apuros, entrou o acaso em ação, quando menos esperava. Meu colega de carteira, Jefferson Correia de Aquino, hoje meu cunhado, devia seguir dentro de poucos dias para Mossoró, onde, no Ginásio de "Santa Luzia" iria submeter-se ao exame de admissão. Logo não teria dificuldade em cumprir as determinações do nosso preceptor. Estava salva, portanto, a situação. Jefferson lia em voz baixa a cópia, mas, desenvolvendo grande atividade, eu ouvia suas palavras e, ao chegar nos verbos, ele dizia - "este é o verbo", e passava o lápis. Nada mais fiz que aplicar o "golpe". Observei todos os vocábulos assinalados, fazendo em seguida o mesmo na minha cópia. Assim, tudo corria bem, quando pela tentação do maldito, surge uma duvidazinha no companheiro. - Rocha, pergunta ele, à queima roupa - HAURIR é verbo? 133

Li a palavra, na cópia; li a frase toda, pensei um pouco na minha ignorância, e, desconfiado, respondi-lhe: - Amigo, também estou em dúvida... mas vou sublinhar!... Foi este o meu grande êxito na primeira aula do prof. Dubas, em Pau-dos-Ferros, aos dezenove anos de idade. Sorte é que, nessa noite, não fomos argüidos. A vida deste homem bom e justo tem sido consagrada às boas causas, num autêntico apostolado em prol da cruzada da instrução potiguar. Mas, nem mesmo por isto, isentara-se da fúria dos profissionais da política. Certo chefe político situacionista da zona oeste, num frisante acesso de loucura, sem olhar o mal que iria causar à sua própria terra, conseguira a remoção do prof. Dubas para outra cidade da zona do litoral, pelo simples fato deste não ler pela sua cartilha política. O prof. Dubas, como as almas boas e puras, aceitara tudo com a resignação de um justo e de um sábio, derrotando o seu gratuito perseguidor, sem uma palavra de revolta, alimentando, porém, o consolo de jamais haver se curvado aos seus caprichos e desmandos. E sabem Deus e ele com quantos sacrifícios. Mesmo assim, não houve ainda lugar para ódio no seu coração, porque aprendera a perdoar com o Mestre dos Mestres, no Livro sagrado, quando este, perdoando os seus algozes, suplicara: - "Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem"... A nossa correspondência bem demonstra o grau da nossa amizade. Há dois anos, recebendo a notícia da minha eleição para presidente do Grêmio Literário "Ferreira Itajubá", em Mossoró, escreveu-me uma carta em que leio comovido, as suas palavras generosas e amigas: - "Envio-lhe parabéns pela sua eleição para presidente do Grêmio Ferreira Itajubá, justa recompensa ao interesse que você tem sempre manifestado pela difusão das letras e das boas idéias. Merece aplausos também a publicação de um jornal. É pena que tão louváveis esforços de um pupilo de amigos das boas causas não encontre o apoio que devia encontrar no meio intelectual e social em que esses idealistas agem". Referindo-se ao retrato do patrono da biblioteca, que adquirimos, diz: - "A efígie do laureado escritor patrício (Humberto de Campos) no salão de leitura da associação será, não há dúvidas, um estímulo para seus sócios. Ninguém mais do que ele, como você sabe, lutou com dificuldade na sua carreira literária e mesmo na sua vida particular, e ninguém melhor do que ele soube vencer, legando-nos pelo seu talento e pela sua tenacidade, um patrimônio valiosíssimo para as letras pátrias". Há pouco, recebo mais uma carta sua, na qual encontro, como sempre, aquelas palavras amigas e enternecedoras, escrita com a simplicidade, que lhe caracteriza o espírito, com uma caligrafia minúscula e firme:

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- "Muito me comoveram as referências à minha obscura pessoa relativas à atuação que tive na sua formação intelectual. Nada mais fiz do que cumprir o meu dever de humilde mestre-escola. O proveito que você tirou do tempo que comigo estudou deve à sua inteligência e ao seu esforço. Em todo caso fico sensibilizadíssimo, quando vejo que um meu ex-aluno, mesmo por delicadeza e por bondade, reconhece que colheu algum proveito do tempo que comigo estudou". E prosseguindo: "estive há pouco em Mossoró. Ali, li o seu trabalho - "Benedito, mestreescola", publicado em BANDO, do mês de outubro. O outro não li, porque aqui não se assina a revista. Achei-o bem interessante". "Aposentei-me confessa-me o meu mestre e amigo - aposentei-me desde março deste ano, com todos os vencimentos". Justíssimo prêmio, na sua velhice respeitável, aos trinta e tantos anos consagrados inteiramente, de corpo e alma, à gloriosa causa da instrução na minha terra. Era talvez a maior aspiração no outono da vida, ao lado dos filhos e da sua companheira dedicadíssima. Autor de uma monografia sobre o município de Pau-dos-Ferros, a qual, se não me engano, foi premiada pelo Departamento da Municipalidade, o prof. Dubas conserva inéditos outros trabalhos, entre os quais belíssimas orações pronunciadas aos seus educandos. Toda a sua vida foi devotada ao trabalho e ninguém melhor que ele, servindo-me das palavras de Monsenhor Fulton Sheen, conhece "a satisfação do "trabalho bem feito", seja empenhado em consertar uma cadeira ou em limpar um estábulo ou em talhar uma imagem para a igreja". O prof. Dubas é daqueles que "conservam a antiga atitude dos tempos medievais, em que o trabalho era um acontecimento solene, uma cerimônia, uma fonte de méritos espirituais. O trabalho de então não era compreendido meramente em vista do lucro economicamente e sim escolhido através de um impulso interior, do desejo de perpetuar o poder criador de Deus através de nossos próprios esforços humanos". Esta é a impressão que conservo do meu mestre e do meu amigo, tal qual transmito aos meus filhos, para que, depois da sua morte e da minha, essa admiração e estima, a minha gratidão e reconhecimento, passe de um ao outro, sem jamais sofrer solução de continuidade. E posso assegurar com plena convicção que o prof. Dubas foi o mestre de si mesmo. Por isto, a sua vida pela virtude, trabalho e saber, é um belo exemplo a ser imitado. Ela, em suma, diria outra vez Humberto de Campos, "constitui uma lição de coragem aos tímidos, de audácia dos pobres, de esperança aos desenganados, e, dessa maneira, um roteiro útil à mocidade que a manuseie". Teresina, 14 de janeiro de 1950. 135

DISCURSO NA ENTREGA DA COMENDA VITAL BRASIL

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DISCURSO NA ENTREGA DA COMENDA VITAL BRASIL36

Meus Senhores Minhas Senhoras

É com muita satisfação que cumpro a honrosa incumbência, na qualidade de Chanceler da MEDALHA VITAL BRASIL, no Maranhão, pela segunda vez nesta Casa, de fazer a entrega da Comenda VITAL BRASIL, concedida ao acadêmico de Direito Pedro Dantas da Rocha Neto, em reconhecimento à sua força de vontade, aliada à sua inteligência, demonstradas durante os estudos, pelo seu dinamismo e equilíbrio comprovados à frente da firma comercial para a qual foi admitido como sócio gerente, quando contava apenas 17 anos de idade; ao poeta Carlos Cunha; e ao Professor Rubens Almeida, pela sua atuação à causa das letras, pelos seus reconhecidos méritos como grandes educadores, dedicados inteiramente ao ensino da mocidade, na Terra de Gonçalves Dias. A Medalha VITAL BRASIL foi instituída pelo Governador do Estado de São Paulo, em Decreto número 44.592, de 3 de março de 1965, como parte integrante das comemorações promovidas naquele Estado, no Centenário do Fundador do Instituto Butantã. Vital Brasil teve infância difícil e comum a todo menino pobre. Nasceu na cidade Campanha no Sul de Minas Gerais, no ano de 1865, filho legítimo do Alferes José Manuel dos Santos Pereira Junior, e de Da. Mariana Carolina. Criou-se e permaneceu a primeira mocidade na terra Natal, e nas cidades de Itajubá, Caldas e São Paulo. Nesta cidade, exerceu os serviços mais humildes que se possa imaginar: trabalhador braçal, tipógrafo, cobrador de bonde, varredor de colégio, revisor de jornal, transferiu-se mais tarde para o Rio de Janeiro, então Capital da República, onde se dedicou ao ensino primário. Escrevente de Polícia, formando-se em Medicina em 1891. Combateu a febre Amarela, varíola e outros males que devastavam Belém do Descalvado, no vale do Paraíba e em Santos. Contraiu a bubônica e foi curado pelo seu amigo Osvaldo Cruz. Escolheu a cidade de Botucatu para clinicar, onde conheceu os trabalhos de Calmette, assimilou o essencial de suas concepções sobre o ofidismo. Ajudante do Instituto Bacteriológico de São Paulo em 1896, dedicou-se a soros e vacinas, especializando-se em ofidismo. Foi nomeado Diretor do Instituto Soroterapêutico, o BUTANTAN, sua obra máxima, em 1901. Estagiou no Instituto Pasteur, na Europa, em 1904, e 1914; nos Estados Unidos, em 1914 e 1940. Criou o Instituto Vital Brasil, após sua aposentadoria em 1919, em Niterói. Voltou ao Instituto Butantã de 1924 a 1927. Em 1942, teve seu nome inscrito no Livro do Mérito Nacional. Subiu enfim pacientemente todos os degraus da escada que o levou à notoriedade, sem recuar, mostrando pelo seu exemplo que o saber não é privilégio dos ricos. (08/10/1967) 36

Proferido em 08/10/1967, em São Luís, na entrega da comenda Vital Brasil a Pedro Dantas da Rocha Neto, Carlos Cunha e Rubens Almeida.

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ROTEIRO AUTOBIOGRÁFICO

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ROTEIRO AUTOBIOGRÁFICO

RAIMUNDO ROCHA

Data de nascimento: 21 de novembro de 1919 Naturalidade: Cidade de PATÚ - Rio Grande do Norte Filiação: Pedro Dantas da Rocha e Noemi de Melo Rocha (Órfão aos 13 anos de idade, tendo uma juventude muito atribulada). Estado Civil: casado, a 2 de outubro de 1943, com Maria do Carmo Correia de Aquino, sendo o ato religioso celebrado na Igreja do Patrocínio e o civil, no Cartório de Dr. João de Deus Cavalcanti, em Fortaleza, Ceará. Participação em Instituições Congregado Mariano - Pau dos Ferros, Rio Grande do Norte. Presidente do "Grêmio Literário Ferreira Itajubá", no período de 24/03/47 a 24/03/48, em Mossoró, Rio Grande do Norte Vice-orador da “União Caixeral de Mossoró”, tomou posse em 19/10/1947. Membro Fundador da “Comissão Piauiense de Folclore” - Teresina, Piauí. Membro da “Casa de Euclides da Cunha” - Natal, Rio Grande do Norte. Membro do “Instituto Cultural Brasil Estados Unidos” – São Luís-MA, ocupando o cargo de 1º Secretário nos períodos 1967/68 e 1969/70 (reeleito). Membro do “Centro Norteriograndense do Estado da Guanabara” - Rio de Janeiro. Membro do “Clube Folclórico de Piracicaba” – São Paulo. Membro do “Instituto Genealógico Brasileiro” - São Paulo-SP. Membro da “Associação dos Profissionais de Imprensa de São Paulo”. Presidente da “Associação Comercial da Cidade de Pedreiras” - Maranhão, biênio 1962/63. Diretor da “Associação Comercial de São Luís”, 1967/68 e 1969/70. Fundador da “Companhia Telefônica de Pedreiras” - Maranhão. Vice-Presidente da “Companhia Telefônica de Pedreiras” - Maranhão. Membro da “Fundação Genealógica Brasileira” - São Paulo. Cursos: Curso de “Jornalismo” - feito sob os auspícios da Faculdade de Filosofia do Maranhão, e reconhecido pela Universidade Federal do Maranhão, 1966. Curso de “Administração de Empresa “- SENAC, 1965 - São Luís-MA. Curso de “Psicologia Educacional” (MFC) - São Luís-MA. Publicações: Colaborou e colabora em: Centelha - Revista do “Grêmio Literário Ferreira Itajubá” - Mossoró, Rio Grande do Norte. Boletim Bibliográfico, da “Biblioteca Pública Municipal de Mossoró” - Rio Grande do Norte.

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Polianteia - Revista comemorativa do 1º aniversário de falecimento do jornalista J. Martins de Vasconcelos - Mossoró, Rio Grande do Norte. Bando - Revista da “Casa de Euclides da Cunha” - Natal, Rio Grande do Norte. Legenda - Revista - São Luís-MA. Almanaque do Cariri - Revista (Centenário de Teresina - Piauí). Boletim do CNR – Rio de Janeiro. Encontro com o Folclore - Revista, Estado do Rio. Revista Genealógica Latina - São Paulo. A Dança de São Gonçalo – plaquete, em colaboração com Assis Silva - Mossoró, Rio Grande do Norte. Jornal do Dia - São Luís-MA. Jornal do Maranhão - da Arquidiocese de São Luís (católico). Cidade de Pinheiro – Jornal de Pinheiro-MA. Trabalhos citados em livros de outros folcloristas: Província Literária, de Raimundo Nonato da Silva (no capítulo: "No roteiro de uma civilização desaparecida"). Folclore Nacional (nos 3 volumes), de Alceu Maynard Araújo - São Paulo. Medalhas: Vital Brasil - 1965. Governo do Estado de São Paulo. Nina Rodrigues - 1965. Brigadeiro José Vieira Couto de Magalhães - Sociedade Geográfica Brasileira. São Paulo, 12/09/1967 Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon - 1967. Euclides da Cunha - 1967. Personalidade do ano – 1967, Natal, Rio Grande do Norte – Governo Walfredo Gurgel; organização de Paulo Macedo – Jornalista de O Potí. Atividades Comerciais: H. Fialho & Cia – exportação - Fortaleza-CE. Organização Rocha Ltda. São Luís-MA - São Luís-MA. CIEL - Importadora e Exportadora Ltda – Rio de Janeiro-GB. Cerealista Maranhense Ltda – importação e exportação - São Luís-MA. Raimundo Rocha, Representações e Comissões - São Luís-MA.

São Luís, maio 1969.

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RAIMUNDO ROCHA PARA ESCRITORES E AMIGOS

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MARCHA: DOS DEZ MANDAMENTOS37 Veríssimo de Melo38

Raimundo Rocha é um jovem conterrâneo nosso, que emigrou há anos para Teresina, no Piauí, onde fixou residência, construiu família e hoje é próspero comerciante. Mas, para desmentir a regra geral, segundo a qual os comerciantes não têm tempo para cuidar de coisas do espírito. Raimundo Rocha, ao contrário, mantém entusiástica atividade literária, escrevendo trabalhos, artigos para jornais e revistas, correspondendo-se com os amigos, animando de longe com o seu aplauso e sua colaboração os confrades de outras terras. Faz tempo, recebi uma carta de Raimundo onde ele me enviava curiosa amostra de poesia popular. Trata-se de uma paródia dos Dez Mandamentos da Lei de Deus, que ele ouviu de um tocador de viola na cidade de Campo Maior, no Piauí. Pena é que a versalhada não esteja completa, mas, assim mesmo, dará uma idéia do espírito lírico do poeta anônimo, que estabeleceu interessante paralelo entre os dez mandamentos e os encantos de uma Maria qualquer. Aí vai a informação de Raimundo Rocha, tal qual me enviou: Marcha dos Dez Mandamentos: Estes Dez Mandamentos que o meu peito encerra: Amar a Deus no céu E Maria aqui na terra Primeiro amar a Deus Meu amor, meu bem querer. Se Maria for consistente, Hei de amá-la até morrer!... Segundo não jurar Seu Santo Nome em vão, Eu juro por Maria a quem dei meu coração... Terceiro ouvir Missa, Domingos, Festas de Guarda, Eu vou ouvir a Missa Bem juntinho da minha amada. 37

Publicado em Diário de Natal, 09/02/1951. Nota da organizadora - Folclorista do Rio Grande do Norte, autor de Parlendas, Natal: Bib. Da Sociedade Brasileira de Folclore, 1949, citada por Raimundo Rocha, e vários trabalhos sobre folclore. 38

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Quarto honrar pai e mãe, Pai e Mãe eu honrarei, Pelo amor de Maria, Pai e Mãe eu deixarei. Quinto não matar, Nunca matei ninguém, Só mato as saudades, Que sinto por ti, meu bem... Pelo visto, ficam faltando mais uns cinco versos da paródia39. É o caso de pedir a Raimundo Rocha que arrume as malas, vá até Campo Maior, procure o tocador de viola e copie as estrofes restantes...

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Nota da organizadora - O texto completo foi incluído nessa edição em “Folclore do Piauí”.

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MINHA ROSEIRA DO MARANHÃO Alceu Maynard Araújo40

Em julho de 1967 estivemos no Maranhão a convite de nosso saudoso amigo Raimundo Rocha para proferir uma série de palestras na União Cultural Brasil-Estados Unidos da "Cidade de La Ravardière" - São Luís. Foram dias inesquecíveis onde pudemos ver de perto o Brasil Nordeste na sua plenitude. Caminhando pelo passado naquelas ruas de sobradões de azulejo, vielas e becos foram palmilhados. Melhor cicerone não poderia ter - Raimundo amava a tradição, sobre ela escreveu muito. Nós o chamávamos "Barão de Patú", pois era potiguar. Em a noite de 27 de julho, dia de São Pantaleão, fomos à única Igreja no Brasil que tem esse nome e padroeiro. É lenda corrente em São Luís que do Cemitério sai à noite e passa por perto daquela Igreja uma assombração. Dizem que é Donana Jânsen - a Rainha do Maranhão - que passa em sua carruagem. Ouvem-se gemidos dos negros escravos, o rodar do coche, o ofegar dos animais. Percorre o trecho fazendo arrepiar os cabelos de quem ouve o barulho e nada vê. A assombração nos decepcionou nessa noite, não compareceu. Passamos algumas noites no Bumba-meu-boi. Muitas vezes, Raimundo, que era comerciante prestigioso e nos poucos vagares escritor de mão-cheia, cansado do labor do dia, cochilava enquanto gravávamos a cantoria do bailado popular brasileiro. Visitamos a cidade nova, as largas avenidas recém-construídas e os mocambos encarapitados no baixo, construções palafíticas cuja vantagem é ser permanentemente limpa pela maré, dispensando garis e lixeiros. Tivemos a grata alegria de sermos distinguidos pelos confrades da Academia Maranhense de Letras e eleito fomos para seu quadro - o que nos envaideceu sobremaneira. Ficamos hospedados em casa do saudoso amigo e companheiro Raimundo. Que maravilha o lar cristão que ele formou ao lado de Maria do Carmo. Quantos filhos ao redor da mesa - uma dezena. Lembrávamo-nos do Salmo bíblico (128): "A tua mulher será com a videira frutífera aos lados da tua casa, os teus filhos como plantas de oliveira à roda da tua mesa". No dia que regressávamos para São Paulo, Mundico deu-nos de presente para Cecília, uma tenra muda de roseira. - "São rosas encarnadas. Espero que sejam lindas e perfumadas como as daqui, que se aclimatem no seu frio São Paulo",

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Nota da organizadora - Escritor, folclorista, professor, membro da Academia Paulista de Letras e autor de Antologia do Folclore Nacional – 3 vol. Ed. Melhoramentos, 1964 e de várias outras obras; padrinho de um dos filhos de Raimundo Rocha.

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disse-nos ao despedir-se no aeroporto. Plantamos o pé de roseira. Um dia ficamos surpresos, os primeiros botões denunciavam sua aclimatação. A roseira cresceu e foi debruçar-se no terraço. Não parou de dar rosas, rosas vermelhas (encarnadas como dizia Mundico), perfumadas, um encantamento. Ela transformou nosso pequeno jardim numa eterna primavera, durante todo o ano a dar perfumadas rosas vermelhas. Todos os dias, apanhávamos uma rosa e enfeitávamos o retrato de mamãe e papai. O pé de roseira era a testemunha permanente da amizade que nos unia ao escritor Raimundo Rocha lá no distante Maranhão. Várias vezes pensávamos em escrever-lhe contando da maravilha que a natureza nos deu e como as rosas vermelhas nos faziam lembrar de seu lar cristão. A azáfama desta vida paulistana relegava para outro dia a carta que devia ser escrita falando sobre as rosas encarnadas... Um dia estremecemos. Recebemos um telegrama de Rocha Neto, contando do passamento de Raimundo. Saímos para conversar com a roseira, desabafar em seu viço verde a mágoa que pervadia a alma dolorida e saudosa. Apanhamos um punhado de pétalas e as lançamos ao ar na direção do Norte, do Maranhão. Eram as minhas lágrimas de saudade. Passaram-se os dias, os meses. No aniversário da morte do compadre Raimundo fomos conversar com a roseira. Ela também estava triste, não tinha rosas. As suas folhas verdes outrora, verde-viçosas, eram poucas. O tronco espinhento, acinzentado. Então compreendemos - as plantas também têm alma - nós dois tínhamos saudade de Raimundo Rocha.

20/08/1970

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RAIMUNDO ROCHA - SEUS VERDES DIAS NO SÍTIO JUNCO41 Raimundo Nonato42

Imprevistamente, aquele dia deixara de ser um dia igual aos outros, diante da notícia absurdamente consternadora que veio sombreá-lo com a chegada de um telegrama "Western", indiferente à comunicação de que se fazia portador inconsciente. Tudo porque a ausência definitiva de um amigo como Raimundo Rocha produz uma parada na vida da gente, que fica a interrogar: - Mas, por que ele se foi assim, tão cedo, apenas eM meio à caminhada, em pleno vigor dos anos, resoluto, empreendedor, quando ainda tanto dele precisavam os seus, a família, agora desolada, os parentes distantes ou amigos mais próximos, enfim, quantos dos seus planos, do seu trabalho, da sua presença que imprimia encorajamento e confiança? Porém, por mais que se rogue aos céus e que se clame às potestades, ninguém jamais teve resposta a esse grito do desespero humano, que se perde na noite infinita das tristezas do nada, do fim... Minhas lembranças dele, do patuense, que viveu os grandes dias da sua meninice correndo solto nas capoeiras e nos roçados do sítio do Junco, que ficava distante da rua, conforme revelação que faz daquele tempo: "quando eu fui para o Junco, já corria tudo, e tinha dois anos". Em Mossoró, numa época inesquecível, encontrei-o já na juventude, e aí foi possível fixá-lo através de uma antena receptora de suas atividades, no tumulto dos acontecimentos provocados pelas notícias da Segunda Guerra Mundial, pois, então a exaltação era de tal ordem que se tinha até idéia de que o conflito tinha se deslocado dos campos de batalha da Europa, dos países conflagrados e das terras devastadas do Velho Mundo para ser decidido por ali mesmo, nas salinas de Mossoró, na Várzea do Assú, nas areias coloridas da Praia de Tibau ou na Chapada do Apodi, onde não havia uma gota d'água para um bode matar a sede. Por aqueles dias, o jovem da Serra do Lima, vivo, esperto, irrequieto como o diabo, atravessava as ruas de uma ponta para outra tomando parte das rodas dos "técnicos em beligerâncias de ponta de calçada", prestando atenção, ouvindo, escutando tudo, aqui e ali metendo o bedelho onde não era chamado, dando palpite, contando um boato. Depois descobre suas próprias tendências e se junta a um grupo e somando experiências e vontades se lança na publicação de uma revista - FAGULHAS (?) - de que eram figuras principais Barôncio Carlos, Assis Silva e Odilo Pinto, e que não fica só no nome, como aquela ZERO de Antonio Pinto e de sua turma de Natal, mas que mesmo, a exemplo do 41

Publicado em O Mossoroense de 27/09/1972, p. 2, e no livro de Raimundo Nonato Gerações do meu tempo, p. 115-116. 42 Nota da organizadora - Escritor potiguar, muito interessado em cangaço, com quem Raimundo Rocha trocou muitas cartas.

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BANDO de Manuel Rodrigues e outros bandoleiros, que Hélio Galvão acaba de afirmar que "foi uma das publicações mais sérias do Rio Grande do Norte". Daí, sua identificação com a vida intelectual de Mossoró, com seus órgãos de publicidade, com sua imprensa e suas instituições culturais, quebrando aquele isolamento que tivera no começo, na sua meninice vivida no meio das caatingas, quase separado da convivência de que na sua idade tanto precisam dela. E isto é ele que confessa: "Não tive companheiros de infância para brincar como os meus irmãos, na vila do Patú. Levei uma infância muito isolada, que me causou algumas dificuldades na adolescência, ao voltar ao convívio na cidade. Porém para contrabalançar, eu tinha a universidade dos campos, na fazenda do meu avô, onde vivia em completa liberdade, brincando e me divertindo como muito bem desejasse e entendia, embora sem ter com quem dividir as minhas diabruras". Vingava-se, agora, em plena adolescência, desse isolamento que mutilara a meninice, tomando parte em tudo quanto representava aglomerado, ajuntamento, vivência de grupo, onde encontrava motivações para expandir-se nas mais vivas demonstrações de solidariedade, de comunicação de idéias e de intercâmbio do pensamento. A cidade de Mossoró deu-lhe assim, a oportunidade de reencontrar-se com sua própria identidade humana, o que foi mais importante ainda, lhe ensejou aquelas condições indispensáveis para realização de uma atividade cultural, de que até então estivera afastado. Mais tarde, sua permanência na capital - São Luís do Maranhão - veio confirmar sua capacidade de intelectual e de pesquisador de fontes folclóricas, explorando temas originais, que até então vem preocupar outros de lá, como aquele a que deu curso nos seus estudos, dedicando um longo e documentado estudo sobre A PROCISSÃO DAS CARROÇAS, observada em recanto dos subúrbios da referida cidade. Por demais, foi intensa a atividade jornalística de Raimundo Rocha naquele importante centro cultural, tomando parte ativa nos seus movimentos literários e no trabalho das suas instituições em particular das que se dedicavam a promoções no campo do folclore e da antropologia. Enveredando por esse rumo, cedo ligou-se aos nomes daqueles que mais de perto tinham a responsabilidade desses estudos, no País, como Câmara Cascudo em Natal, Alceu Maynard, em São Paulo e Veríssimo de melo, em Natal. Quando, no Estado bandeirante, por iniciativa de Alceu Maynard surgiu a idéia de se lhe conferir a MEDALHA DA CASA EUCLIDES DA CUNHA, menção honrosa da CASA SÃO JOSÉ DE RIO PARDO, escusou-se sem se tornar deselegante, afirmando que, se iniciara na pesquisa folclórica, levado por minha sugestão motivo porque dividia comigo os méritos do seu trabalho. Bondade sem limite do grande coração do patuense amigo que ainda hoje agradeço.

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E agora, distante da gente, Raimundo Rocha deve ter descoberto que a separação dos bons, como ele, não é causa para que a amizade se transforme no esquecimento, e porque para as pessoas de tão belo espírito como ele, já dissera Câmara Cascudo, “a morte existe, os mortos não!".

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A QUEDA DO JEQUITIBÁ NÃO ABALOU A FLORESTA43 Carlos Cunha44

Conheci Raimundo Rocha, apresentado pelo mestre Rubem Almeida, numa noite de festa espiritual que era homenageado o grande folclorista brasileiro Alceu Maynard de Araújo. Durante muitos anos, nutrimos um pelo outro admiração e respeito.Na minha primeira viagem ao Rio Grande do Norte, em missão cultural, levei uma carta sua, hoje ao grande amigo e querido mestre, Câmara Cascudo, com quem, ele, Raimundo Rocha, mantinha estreitos laços de amizade, a ponto de tirar fotografia ao lado do maior folclorista brasileiro, este de pijama, na sagrada intimidade do seu lar. Era um homem admirável, gostava de conversar, e quase todo mês reunia os amigos íntimos em seu lar, ali, na praça do poeta Catulo da Paixão Cearense, onde conheci seus filhos e a esposa, de todos, tornando-me, até hoje, leal e sincero admirador. Certa manhã, fui tomado de surpresa pela notícia do seu falecimento. O Jequitibá havia tombado em plena primavera, sem tempestades e sem ventos fortes. Caiu estremecendo a selva sentimental, que ele próprio criara no conjunto familiar. Mas, o céu não nublara, e o verdor da união continuou vivificado através dos filhos que dele receberam apenas ensinamentos bons e tiveram dentro de casa apenas lições de fraternidade e de respeito ao próximo. Quase todos os filhos estão formados. Uns professores, outros técnicos em assuntos de empresas. O mais velho dos homens, que é muito moço, porque tem apenas vinte e nove anos, o Rochinha, como o chamamos na intimidade, é o atual Secretário de Educação em substituição ao meu amigo Magno Bacelar a quem devo a fineza da publicação de Poesia Maranhense Hoje, obra já incluída no acervo literário do Maranhão. Assumiu a direção de tão importante órgão Estadual já no fim praticamente de um governo, quando a obrigação maior é executar o que foi planejado cuidadosamente de posse de pouco ou quase nenhum recurso. Mesmo assim, o moço tem procurado se conduzir com o equilíbrio herdado de seu pai e traçado metas próprias de trabalho, como a implantação da reforma do ensino, criação de oficinas técnicas para a área do 1º grau, implantação do Estatuto do Magistério que prevê e regulamenta a carreira do professor, bem como remunera, fazendo justiça à espinhosa missão que ele desenvolve na sociedade atual. O jovem Secretário implantou a unidade de inspeção escolar em pleno funcionamento à Rua da Paz, com personalidade própria, atingindo um velho sonho dos inspetores escolares, que agora poderão desempenhar mais a contento suas tarefas. Objetiva construir mais sete unidades escolares de grande porte até o fim do ano, assim como a construção de Centro de Esportes, na Capital, presumindo-se seja instalado na Vila Palmeira.

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Nota da organizadora - Publicado em O Estado do Maranhão, São Luís, 02/07/1974. Nota da organizadora - Licenciado em História, professor, diretor de colégio, poeta e jornalista maranhense.

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Uma das mais complexas Secretarias de Estado não criou dificuldades ao Governador Pedro Neiva, que inicialmente escolheu um homem de empresa para dirigi-la e depois um moço hábil e inteligente para concluir a direção, sem casos ou problemas criados ao próprio governador já tão assoberbado de tarefas e preocupações dentro do seu gabinete. Cercou-se o jovem Secretário de gente nova que tem demonstrado maturidade administrativa como se há longos anos exercesse cargos públicos. Doutor João Vicente de Abreu Neto, chefe de gabinete, intelectual Luis Augusto Cassas (vinte e um anos apenas), doutor Luís Sergio Cabral Barreto, diretor de Serviços de Administração Geral e uma equipe técnica especializada, constituída de Carlos Alberto de Campos Mendes, José Caldeira, João Carlos do Rêgo Rodrigues, José Olímpio de Castro, Rui Luna, Regina Luna, Arnaldo Serra, Arno Kreutz, Maria de Fátima Fonteles e outros nomes já identificados pela consciência do papel que desempenham em nossa sociedade. O Jequitibá tombou, meu velho amigo Raimundo Rocha, numa manhã de sol, inesperadamente, mas a floresta permaneceu densa e compacta com o mesmo verdor de tranqüilidade e harmonia dos primeiros dias, inabalável, absolutamente tranqüila e feliz.

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ARAROEIRA DO PATU - JEQUITIBÁ NO MARANHÃO45 Raimundo Nonato46

Há certas criaturas iluminadas pelos clarões da bondade que, embora quando se tenham ido desta para a outra vida, continuam presentes na memória dos seus contemporâneos, como se vivas continuassem sendo. O fenômeno não é estranho ao raciocínio, e uniu-o Câmara Cascudo, num daqueles rasgos da sua genialidade, quando determinou numa manifestação de sentimentos de afetividade que: "A morte existe, os mortos não". E por isso, e diante disso, sem discutir as prerrogativas da eternidade, intangíveis e intocáveis, evoco no instante em que recebo de São Luís, o jornal "O ESTADO DO MARANHÃO", com um admirável artigo de CARLOS CUNHA, sob o título: A QUEDA DO JEQUITIBÁ NÃO ABALOU A FLORESTA, o nome de RAIMUNDO ROCHA - o patuense - o velho companheiro de tantos planos de trabalho e iniciativas culturais, que continua vivo, no oratório dos santos das amizades. A sucessão do dia em que veio à vida exterior para ver o sol e respirar o oxigênio da continuidade, deu-lhe tempo para descobrir que, além do horizonte geográfico do seu mundo, de proporções limitadas, havia duas coisas que seriam companheiras suas, como estranha força que faz com que o homem volte sempre à terra para um reencontro com suas raízes: - O contorno impressionante pela simplicidade da Ermida Nossa Senhora dos Impossíveis da Serra do LIMA, de onde tantos milagres são contados, e o perfil sombrio da Casa da Pedra de JESUINO BRILHANTE, na SERRA DO CAJUEIRO. Depois, o rincão da sua meninice, a que chamava o seu Paraíso infantil - o JUNCO, e dele conta: - "Fui criado no Junco, propriedade rural do meu avô paterno, então município de Patú, no Rio Grande do Norte. Hoje é município”. “Não tive companheiros de infância para brincar: como meus irmãos na Vila do Patú”. “Apareciam, às vezes, na casa, a CASA GRANDE, alguNs meninos filhos dos vaqueiros ou dos moradores e brincávamos alguns instantes”. “Não obstante haver sido criado naquele isolamento... eu me sentia satisfeito ao lado dos meus entes queridos".

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Nota da organizadora - Publicado em O Mossoroense, Ano 102, 13/08/1974, p. 3. Nota da organizadora - Escritor potiguar, muito interessado em cangaço, com quem Raimundo Rocha trocou muitas cartas. 46

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"Era, enfim um Pequeno Príncipe, tendo o Junco como o meu campo para as minhas aventuras de infância". "Não pensava em livros, ignorava inteiramente a necessidade que tinha de estudar e de aprender. Não tinha obrigações nem afazeres, pensava apenas em comer, brincar e dormir". Reminiscências vivas e sinceras,que se não tivessem sido escritas para retratar um pequeno reduto da rechã do Patú, bem que poderia ter o colorido comparável a uma história de memorialista do porte de Charles Dickens. Releio do artigo da folha maranhense, admirável pelo seu conteúdo sentimental (assina-o Carlos Cunha) lembrando que a Queda do Jequitibá não abalou a floresta do clã de Raimundo Rocha. E descubro nele, quase para sugerir que, comparado aos gigantes dos matagais, Raimundo Rocha tinha a fibra inquebrantável da vetusta aroeira do Nordeste, pois esta sim, pode até tombar como o jequitibá, porém não se quebra nunca. Não é fora de propósito que, falando dela, se relembre fato histórico que põe em relevo a sua resistência. E conto. Corriam os dias tumultuados de 1930, quando a campanha da eleição do Presidente da República agitava o País, debaixo daquela alternativa apontada por João Neves da Fontoura, que vaticinara: "Vamos para o prédio das urnas, quiçá para o prélio ardente das armas". Ao tempo, ao fragor da propaganda, passa por Natal, uma caravana política da Aliança Liberal, e da Praça Pública, Edgar Shneider conclama a multidão a condenar a violência, fazendo uma profissão de fé: "O gaúcho é como Jequitibá. Se quebra, mas não enverga". E nem foi preciso esperar muito pela réplica, pois logo Assis Chateaubriand desafrontando o seu Estado, escrevia: "Geograficamente, a PARAÍBA valerá SERGIPE. Civicamente, vale uma BÉLGICA. O machado que tentar abater aquela aroeira do Nordeste, perderá o gume". E como a era justificava as grandes frases de que JOCA-BRUNO seria o herdeiro sucessor em Mossoró, quando chegava a esta cidade a caravana de BATISTA LUZARDO, ainda chamuscado da pólvora do tiroteio de Natal, o Cônego Matias Freire, do meio do povo em vibração, numa apóstrofe impetuosa bradava estarrecido: "Mossoró! há três dias que pisamos no corpo do Rio Grande do Norte! Hoje, encontramos o coração!" Meus primeiros contatos com o jovem patuense, foram ainda ao tempo em que ele fazia constantes viagens na boléia de um caminhão, correndo entre Pau dos Ferros e Mossoró. 152

Mais tarde, já residindo nesta cidade, tinha sua roda de conversas no Café do Zé Felipe, ali, bem em frente das redações de O Mossoroense e de O Nordeste. O grupo de intelectuais da nova guarda reunia no bate-papo, Raimundo Rocha, Assis Silva, Odilo Pinto e Barôncio Carlos da Silveira um bom poeta das águas do Assú, que também lá se foi... Espírito expansivo, claro, sem embutimento de ideais, mergulhou nos estudos da pesquisa e não tardou Raimundo Rocha a encontrar-se e estabelecer relacionamento com as figuras mais destacadas do campo folclórico, a exemplo de Câmara Cascudo, M. Rodrigues de Melo, Vingt-un Rosado, Veríssimo de Melo e Alceu Maynard, este de São Paulo, falecido recentemente. Seu trabalho teve o mérito da originalidade, e justificá-lo plenamente, ainda mais, pelo espírito de equanimidade com que dividia as honras de um trabalho, que ele sempre considerava de grupo, e que por isso, devia pertencer a outrem. Sua lealdade, nesse sentido, era invulgar. No caso, posso afirmar em causa própria que, ao lhe ser concedida a MEDALHA DA CASA EUCLIDES DA CUNHA, condicionou sua aquiescência em receber aquela alta distinção, ao imperativo que ele manifestava de ser o meu nome, incluído na relação dos agraciados com a dita comenda. Por essa razão e outras semelhantes, devo-lhe um dos melhores traços a lápis feito com tinta forte, a meu respeito, quando escreveu: "Raimundo Nonato é um sujeito incorrigível. Filho do Martins, cidade pequena hospedeira, excelente pelo seu clima ameno, aonde se conhece a vida de cada habitante com todos os pormenores. O autor de Memória de um Retirante, por isso mesmo, indagador, observador, não podia deixar de ser um bisbilhoteiro. Pesquisador de água-doce, remexe gavetas, papéis velhos empoeirados, lá atirados sabe Deus quando. Não guarda segredos, "bate logo com a língua nos dentes" como se costuma dizer. É perigoso, engraçado, às vezes inconveniente". Sintonizo em Carlos CUNHA na homenagem que prestou a Raimundo Rocha, um espírito brilhante, cuja memória e o valor continuam iluminando as estrelas que levam à SERRA DO PATU.

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HOMENAGEM A MUNDICO (CARTA A MUNDICARMO) 47 José Correia de Aquino48

Somente aplausos merece a iniciativa de vocês.Vejo nela a prova do amor e gratidão de filhos generosos, ao pai que se alou desta para outra vida. Vocês também desejam tê-lo presente e conseguem, agora, materializando-o na publicação de seus escritos. Pedem-me algumas informações sobre o Mundico. Revolvendo meus guardados, não encontrei mais as revistas e jornais que me enviava e que, quase sempre, traziam artigos de sua lavra. Dei com algumas das muitas cartas com que freqüentemente me honrava. Delas extraí algumas informações. Diria até que são estas um pequenino auto-retrato de quem, ao escrever, instilava no papel, assim a tinta como a própria alma. Guardo 16 cartas, com datas que vão de 1946 a 1968. Desta coleção, vem à tona o homem da família, do comércio e das letras. O altruísta, o homem de Deus. A família era o tema infalível em todas as cartas. Polarizava ela, todos os seus cuidados. Era ela todo o ideal de sua vida. Quando escrevia, podia deixar de falar de si. Da família, não. "Quero, antes de outro assunto, participar-lhe o nascimento de mais uma em nosso lar. A mesma receberá o nome de Ana Maria, cujos padrinhos serão o Pe. João e Dalila. A criança nasceu no dia 2 do corrente, pesando 4 quilos, levando, entre Mundicarmo e Rocha Neto, uma vantagem respectivamente em peso de 1 kg e 100 gramas e 1 kg e 300 gramas. É bastante forte e sadia". (Carta de 13/05/1947). "Aproveito a oportunidade para remeter-lhe dois instantâneos das crianças, para você. Foram tirados no dia do primeiro aniversário de Alexandre Neto". (Carta de 01/07/1949). "Maria homenageará o Ano Santo com mais um sujeitinho. Este é esperado a qualquer dia; aliás era para ter chegado desde a segunda quinzena de dezembro". (Carta de 05/01/1950). "Passamos bem, todos. Vai chegar mais um maranhense para fechar a casa dos 10. Desejo um homem, a torcida está forte para ficar 5 x 5. ... Todos passaram bem nos exames finais, sendo que o Alexandre Neto deu o Ponto Alto - 1º lugar (com medalha), terminando a 1ª série ginasial. Este cidadão é caprichoso". (Carta de 22/01/1962). 47

Nota da organizadora - Carta a sua sobrinha Mundicarmo Ferretti por ocasião da organização da presente coletânea de trabalhos de Raimundo Rocha, publicada em AQUINO, José Correia de. O que semeei. Natal, 2002. p.78-83. 48 Nota da organizadora - Odontólogo, natural do Rio Grande do Norte e Fiscal da Receita Federal e Posto Fiscal Aduaneiro em Santos, cunhado de Raimundo Rocha.

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"Mundicarmo vai casar dia 30 de dezembro, aqui. Quem dera que você e Pe. Aquino pudessem assistir..." (Carta de 22/10/1967). "Alexandre Neto foi vitorioso no vestibular de Engenharia, na Poli, no Recife. O galo foi duríssimo de roer. Houve massacre, na opinião da imprensa. Reprovação em massa. Mas ele mostrou que tem força de vontade. Também, não resta dúvida, é um pouco inteligente. Breve teremos engenheiro na família, se Deus quiser. O advogado sairá este ano. Ana Maria passou no vestibular para administração, aqui. Júnior está matriculado no 3º Colegial, no Marista, no Recife. Pretende fazer engenharia mecânica. Estou satisfeito. Espero ver breve o meu sonho realizado - a maior parte dos meus filhos formados. O gajo de Dodora passou também no vestibular de engenharia em Belém do Pará". (Carta de 19/02/1968). "Alexandre e Junior estudam no Recife, como sabe (...). São bons meninos. Responsáveis e estudiosos. É um prazer como filhos. (...) É uma família grande. Felizmente todos se encaminham bem. Rocha Neto se formará este ano". (Carta de 27/08/1968). Depois da família, dedica-se com arrojo ao comércio, onde conheceu a glória do sucesso. Diz-se que Macau salga o Brasil - ao que acrescenta - ria eu - mas o arroz a salgar vem do Maranhão... E quem o distribuía, anos atrás, era o Mundico. O Maranhão ele cobrirá com a doçura do açúcar. "Os negócios vão bem. Houve uma consulta à opinião pública, pela imprensa do Sul e a Cerealista ficou em 1º lugar, como quem melhor serve à população no abastecimento de açúcar no Estado. Os negócios vão bem. Mas há uma crise muito forte. Castelo sacudiu o Brasil de Norte a Sul, deixando muito gente tonta. Temos sofrido consequências dessa crise, porém vamos resistindo bem, graças a Deus. (Carta de 22/10/1967). Autodidata, como tantos outros do Nordeste, dilatou seus conhecimentos, pondo em relevo o culto da Literatura e da História. Falava com desenvoltura, quer de figuras de renome nas letras, quer de famosos vultos da História. Tanto que a mim, fazia-me inveja, ainda nos tempos de Seminário. "Passando pelas livrarias por aí, procure ver se encontra o livro de Eloi Pontes - Obras Alheias e me remeta que ficarei muito grato". (Carta de 13/05/1947). "Vai aí uma revista do Centro Norteriograndense do Estado da Guanabara. Leia a notícia da página 14, sob o título Escritor Maynard Araújo. 155

Na página 28, o necrológico do nosso inesquecível Manoel Alexandre". (Carta de 30/09/1967). "Vai também um jornal. Na página 6, há um artigo meu. Você deve conhecer o tema". (Carta de 22/10/1967). Jesuíno Brilhante era o tema e o jornal era o Jornal do Maranhão. Para o egoísta, o universo se resume nele. Não há lugar para "o outro", daí por que só cuida de si. O oposto surpreendia-nos em Mundico. Seu altruísmo, por ser grande demais, transpunha os limites do círculo familiar, para atingir, lá fora, a quantos cruzassem o seu caminho, os quais como ninguém, sabia transformá-los em amigos, enaltecê-los, obsequiá-los. "Remeto-lhe com esta, várias fotografias apanhadas por ocasião da chegada de João em Pau dos Ferros e outras no dia da celebração da missa, banquete etc. Envio também um nº de Centelha, onde se lê uma reportagem sobre a festa em Pau dos Ferros. Recebeu o couro da raposa que enviei por avião?". (Carta de 28/12/1947). "Informe se Edgar já recebeu uma sementes de oiticica que lhe enviei". (Carta de 13/05/1947). "... recebi sua carta em que dizia algumas palavras sobre Centelha Sanjoanesca que lhe remeti. Não queira saber como foi recebida essa carta pelos diretores e redatores dessa publicação. Foi arrebatada de minhas mãos e foi lida e admirada por todos do "Ferreira Itajubá". Os diretores da mesma exigiram divulgação da carta através das páginas de Centelha Abolicionista que circulará no dia 30 de setembro próximo, comemorando a data histórica de Mossoró. Aguarde um exemplar". (Carta de 27/08/1947). “Inegável que Milton tem um temperamento forte, porém possui um bom coração, é amigo e preza a família. Henriqueta também é uma criatura boníssima e adorável". (Carta de 28/08/1951). "Tenho vários amigos com os quais me correspondo no Rio e em São Paulo. Profs. Raimundo Nonato e F. Rodrigues Alves, autênticos papajerimuns da zona Oeste; e Alceu Maynard Araújo, o Cascudinho de São Paulo. Este passou suas férias do meio do ano de 1967 em nossa casa. É simpático e amigo. É também padrinho de Fernando". (Carta de 27/08/1968). De família católica, já na adolescência filiara-se à Congregação Mariana da Paróquia de Pau dos Ferros, destacando-se entre os demais congregados pelo comportamento exemplar. A Providência concedeu-lhe a graça inefável da preservação da Fé Católica, até o último alento. 156

A correspondência no-lo apresenta como quem tem os pés chumbados à terra, porém a alma livre para, em momentos alçar vôo até Deus, agradecendo - "graças a Deus"; invocando - "Deus conserve assim"; e conformando-se - "se Deus quiser". "Tudo vai bem. Não sabemos agradecer a Deus esse arrojo de felicidade que sentimos entre a família. Lamentamos apenas a perda do nosso cabeça. Estamos conformados, levando em conta a graça que Deus nos concedeu, deixando-o tanto tempo entre nós". (Carta de 22/10/1967). Agora, nos céus, ele continuará a velar pela família que estremeceu, pelos amigos que cultuou. Do tio amigo Santos, 26/11/1983

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RAIMUNDO ROCHA (MUNDICO) Um depoimento humano e sentimental José Jacome Barreto49

Conheci Mundico em Caraúbas (RN), onde me encontrava como fotografo profissional. Muito jovem ainda, comunicativo, inquieto, seus gestos refletiam a efervescência de um temperamento ardente e inflexível cujos valores se delineavam num crescente processo de afirmação. Pleno de energia e vitalidade, - demonstrava uma permanente preocupação de atingir maiores objetivos e de dominar mais amplos e generosos espaços deixados vazios por ineficazes e acomodados. Ele vinha semanalmente a Caraúbas trazendo muitos rolos de filmes fotográficos para serem revelados e copiados no estúdio de um meu colega de profissão - Raimundo Rozendo, em cuja residência me foi apresentado. O trabalho fotográfico era o resultado de um improvisado amadorismo quase profissional que ele desempenhava em Patú, onde residia e trabalhava com seus familiares, nas horas de folga dos afazeres da vida comercial que lhe absorvia quase todo tempo. Considerava aquele trabalho fascinante e o exercia com muita seriedade e extrema dedicação. Era um agradável "hobby" e que também rendia alguma compensação financeira. A esta época, já revelava bastante interesse pelos assuntos ligados ao mundo das letras já tendo lido vários autores nacionais através de uma leitura atenta e reflexiva dos seus textos. As lides comerciais e outros compromissos de família não lhe permitiram freqüentar colégios e conseqüentemente escolas superiores. Todavia, esta contingência jamais lhe arrefeceu o estímulo e a vontade férrea de alargar seus conhecimentos o que procurou dinamizar através da leitura intensiva e constante dos nossos escritores e poetas. Posteriormente, em 1940, nos reencontramos em Pau dos Ferros (RN). Ele trabalhava com seu tio Amadeu Rocha, no comércio de algodão, peles e sementes de oiticica e, integrando o quadro da Congregação Mariana da Paróquia ao qual eu pertencia. A congregação era dirigida espiritualmente pelo Pe. Manoel Caminha (hoje Monsenhor) e pelo Professor Manoel Jacome de Lima, meu saudoso pai. Pau dos Ferros a esta época, despertava para os irreversíveis caminhos do progresso por força de um determinismo histórico e geográfico. Além das nossas atividades e deveres associativos mantínhamos um pequeno orfeão destinado às solenidades religiosas da Congregação e aos demais ofícios religiosos da Matriz (missas, novenas, bênçãos, etc.). Mundico não era um grande vocalista - como era também o meu caso - mas ajudava muito com a sua assiduidade e reconhecida dedicação. Na ausência do organista Zé Nóbrega, eu assumia o teclado e dava o meu recado com regularidade e a contento de todos. Neste ambiente de sadia convivência e de ativa participação, onde se destacavam outros nomes expressivos como Francisco Bezerra, Sargento Arruda, Wilson Diógenes, José Nóbrega e outros - já se percebiam nítidos sinais do seu amadurecimento cultural, decorrência de um autodidatismo surpreendente e substancial pela sua abrangência. Apologista do pensamento moderno e renovador das novas lideranças 49

Nota da organizadora - José Jacome Barreto é filho do professor Manoel Jacome de Lima, de quem Raimundo Rocha fala em Dubas – um mestre e um amigo, incluído nesse livro em Figuras Notáveis.

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católicas, que levavam a Igreja ao encontro e dialogação em torno dos conflitos e problemas sociais que afligiam a sociedade, - enfrentava audaciosamente (como ele mesmo dizia), numa tentativa de assimilação, compreensão e interpretação, o erudito pensamento de Tristão de Atahyde, Padre Leonel França e outros monstros sagrados da sociologia cristã e do laicismo católico emergente para depois se deliciar com a sensibilidades coloquial de Humberto de Campos, Paulo Setúbal; com o romance de Alencar, Machado de Assis, Érico Veríssimo, Jorge Amado, José Lins do Rêgo e outros nomes representativos da ficção nacional. Adorava a crítica fulminante de Agripino Grieco "na sua função desmoralizadora de medalhões vazios e ocos, e no reconhecimento dos valores verdadeiros". Na poesia, preferia Raul de Leoni, Augusto dos Anjos, Pe. Antonio Thomaz e os parnasianos Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, além de muitos outros de indiscutível popularidade. No plano estadual devorava Câmara Cascudo, Raimundo Nonato da Silva, Walter Wanderley, Vingt-un Rosado e a poesia romântica de Itajubá e Auta de Sousa. Se identificava com a problemática da realidade nacional no âmbito do seu dimensionamento social, político, religioso e cultural através das colunas de "VOZES DE PETRÓPOLIS" e de "A ORDEM" e outros órgãos da imprensa estadual e nacional, sempre ao seu alcance. Depois, as conveniências e interesses profissionais de cada um, nos colocaram em caminhos e destinos diferentes. Após o seu casamento com Maria do Carmo Correia de Aquino, de tradicional família local, Mundico seguiu para Mossoró, onde continuaria a trabalhar com Amadeu Rocha por algum tempo. Posteriormente, se transferiu para Fortaleza (CE), Teresina (PI) e finalmente para São Luís do Maranhão, onde fixou sua residência definitivamente. Em São Luís, consolidou uma estável situação comercial ampliando seus negócios a níveis de exportação, operando com venda de cereais (arroz e outros produtos do Estado), atividades que lhe asseguraram o fortalecimento e ampliação de sua firma dentro e fora do Maranhão. Mesmo dispondo de pouco tempo - face aos seus negócios sempre crescentes Mundico jamais se divorciou dos labores literários. Dedicou-se à pesquisa documentária através do ineditismo de suas particularidades dentro do contexto sócio-cultural e antropológico. Buscava novos detalhes do fato pesquisado junto às fontes disponíveis e ao documento esclarecedor, o que exercia com absoluta fidelidade e conscientização informativa. E tudo isto, quase sempre à guisa de colaboração gratuita - como valiosos subsídios para os seus amigos escritores - (Raimundo Nonato da Silva, Vingt-un Rosado e outros) com os quais mantinha permanente intercâmbio cultural, pessoalmente ou através de correspondência. Escrevia constantemente para os seus velhos amigos pauferrenses enviando dados e apontamentos, fazendo sugestões e manifestando sua opinião sobre variados assuntos. Enfim, participando dentro de suas possibilidades como um informante abnegado e criterioso junto a todos que dele necessitavam neste particular. Na verdade Mundico não foi, no sentido mais amplo e profundo da expressão, um publicista no mundo das letras e nem um profissional no campo jornalístico e isto ele reconhecia muito bem dentro do seu elevado espírito de compreensão e esclarecida visão das coisas. Deixou entretanto, importantes trabalhos publicados em jornais e revistas, todos eles de grande relevância literária e de reconhecido valor informativo. Foi sim, um infatigável garimpeiro que bateava na profundidade do universo cultural as mais preciosas informações e subsídios de inestimável valor e autenticidade.

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A morte o surpreendeu no seu próprio estabelecimento comercial no desempenho dos seus afazeres cotidianos, fulminando-o com um ataque cardíaco. Esta é a minha visão pessoal, proustiana e sentimental do meu bom amigo Raimundo Rocha - o nosso saudoso Mundico, cujo desenlace prematuro interrompeu a trajetória de uma existência cujo futuro se prenunciava brilhante, dinâmico e construtivo sob todos os aspectos.

Natal, 1º de janeiro de 1984.

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FOTOGRAFIAS

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FAMÍLIA ROCHA - RIO GRANDE DO NORTE

Família Rocha (Patú-RN) – Raimundo Rocha menino (em pé, do lado esquerdo), seus pais, avós (sentados à esquerda e no centro) e dois irmãos

Raimundo Rocha – Mundico jovem) – Patú-RN

Pedro Dantas da Rocha (pai) - Patú-RN

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João de Oliveira Rocha (avô) – Catolé do Rocha-PB

Maria Dantas da Costa (Cotinha) – Mãe Velha (avó) – Pombal-PB

FAMILIA DE RAIMUNDO ROCHA

Família de Raimundo Rocha – São Luís-MA (falta Mundicarmo, a filha mais velha)

Maria do Carmo Rocha (esposa) ) – Pau dos Ferros-RN

Júlia Correia de Aquino (sogra) – Pau dos Ferros-RN

Mundicarmo e Rocha Neto (primeiros filhos) – São Luís-MA Manuel Alexandre de Aquino (sogro) – Pau dos Ferros-RN

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REFERENCIAS - RIO GRANDE DO NORTE PATÚ

Igreja antiga

Capela de N. Sra. Dos Impossíveis (Lima – 1937)

Casa onde nasceu R. Rocha (fachada ligeiramente modificada) Bica (local de banho) – Serra do Lima/Patú

Grupo Escolar em 1937 Conjunto musical popular 165

Professor Dubas Escola Municipal “Raimundo Rocha”

de



Grau

NATAL

Homenageado na Festa das Personalidades do Ano de 1967 - Natal

R. Rocha com Luis da Câmara Cascudo, folclorista potiguar – Natal

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REFERENCIAS – TERESINA (PIAUÍ)

Bumba-meu-boi - 1º Centenário de Teresina (1952). Foto de Raimundo Rocha.

Salomão - Índio Gavião do Maranhão em Teresina (1949). Foto de Raimundo Rocha.

Bumba-meu-boi “Riso do Amor” - 1º Centenário de Teresina (1952) (aparece o folclorista potiguar Câmara Cascudo). Foto de Raimundo Rocha.

Marujada - 1º Centenário de Teresina (1952). Foto de Raimundo Rocha.

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REFERENCIAS - MARANHÃO

Com Alceu Maynad Araújo, folclorista paulista, em São Luís

Prédio da Cerealista Maranhense Ltda São Luís. Foto de Raimundo Rocha.

Entregando Comenda Vital Brasil a Pedro Dantas da Rocha Neto (seu filho), em São Luís

Raimundo Rocha na Maranhense - São Luís

Cerealista

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Bumba-meu-boi em Ribamar (1956) – boi, burrinha e mascarado. Foto de Raimundo Rocha.

Bumba-meu-boi em Ribamar (1956) – caboclo de pena. Foto de Raimundo Rocha.

Bumba-meu-boi em Ribamar (1956) – pandeirões. Foto de Raimundo Rocha.

Bumba-meu-boi em Ribamar (1956). Foto de Raimundo Rocha.

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Romaria das Carroças a São José de Ribamar (1957). Foto de Raimundo Rocha.

Grupo de carnavalesco desfilando na Rua do Passeio – São Luís (1959). Foto de Raimundo Rocha.