O ser humano e o meio ambiente

2 Ana Lúcia Brandimarte Déborah Yara Alves Cursino dos Santos 2.1 Introdução 2.2 Agroecossistemas modernos versus agroecossistemas tradicionais 2.2....
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Ana Lúcia Brandimarte Déborah Yara Alves Cursino dos Santos

2.1 Introdução 2.2 Agroecossistemas modernos versus agroecossistemas tradicionais 2.2.1 Tecnologia empregada 2.2.2 Objetivos 2.2.3 Subsídios energéticos e produtividade

2.3 Eficiência cultural 2.4 A Revolução Verde 2.5 Principais impactos decorrentes das práticas agrícolas modernas 2.5.1 Impactos ambientais 2.5.2 Desmatamento e fragmentação de habitats 2.5.3 Explosão de pragas agrícolas e surgimento de espécies resistentes aos pesticidas 2.5.4 Efeitos sobre a ciclagem de materiais 2.5.5 Efeitos sobre a atmosfera 2.5.6 Efeitos sobre os solos 2.5.7 Efeitos sobre os ambientes aquáticos 2.5.8 Perda de biodiversidade

2.6 Impactos sociais 2.6.1 Aspectos nutricionais e de saúde 2.6.2 Dependência de combustíveis fósseis e dependência tecnológica

2.7 O contínuo desafio de alimentar a população mundial 2.8 Conclusão Referências

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2.1 Introdução Desde o surgimento dos primeiros Homo sapiens, houve um elevado aumento da população humana global, sobretudo a partir da Revolução Industrial, que alavancou o surgimento de novas tecnologias. Esse fato foi tão importante que, como visto na aula anterior, marcou o início de uma nova fase da história da humanidade, caracterizada por um consumo alto e crescente de energia, tanto somática quanto extrassomática, e de materiais. Nesta aula, analisaremos como as novas tecnologias resultaram em alterações do modo de produção dos sistemas agropecuários - ou agroecossistemas - em comparação com os sistemas tradicionais de produção de alimento, sobretudo no que se refere à agricultura. Para atingirmos tal objetivo, um primeiro passo é apresentar uma definição das práticas agropecuárias que seja adequada ao contexto explicitado. Assim, a agropecuária pode ser considerada como uma atividade em que as pessoas manipulam processos naturais a fim de redirecionar a energia solar através de plantas e animais pré-selecionados para produzir alimento ou, ainda, como uma forma de concentrar energia ao longo de vias úteis para a sobrevivência da população humana. Portanto, como resultado há um aumento da concentração de espécies de interesse para alimentação, e diminuição das espécies que não interessam para esse fim. Torna-se importante salientar, no entanto, que, embora o foco principal desses sistemas resida na produção de alimento, também são plantados vegetais para produção de fármacos e outros produtos relevantes para os seres humanos. Do mesmo modo, são criados animais para obtenção de produtos voltados para vestimenta e outros fins.

Assim sendo, a agropecuária está fundamentalmente relacionada ao aproveitamento das produtividades primária e secundária pela espécie humana.

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2.2 Agroecossistemas modernos versus agroecossistemas tradicionais A introdução deste texto permite ao leitor antever que a diferença primordial entre os agroecossistemas modernos e os tradicionais reside no emprego de processos altamente tecnológicos nestes últimos (Figura 2.1). De fato, desde a transição industrial, os agroecossistemas têm-se beneficiado das novas tecnologias, culminando nos sistemas altamente mecanizados que conhecemos atualmente. Vale a pena lembrar que, nesse sentido, a tecnologia bélica desenvolvida nas duas grandes guerras mundiais, sobretudo na segunda, impulsionou a fabricação de máquinas e implementos agrícolas. A seguir, estes tipos de agroecossistemas serão comparados em alguns aspectos importantes: a

b

Figura 2.1 Aragem do solo em um agroecossistema tradicional (a) e um moderno (b). / Fonte: Thinkstock.

2.2.1 Tecnologia empregada Como resultado do progresso tecnológico, passamos de sistemas tradicionais, nos quais as principais tecnologias eram o fogo (agricultura de corte e queima – volte ao tema “Crescimento populacional humano e o uso de energia” se necessário) e o arado a tração humana ou animal, para os sistemas atuais, nos quais a utilização de combustíveis fósseis, tanto para o funcionamento de máquinas e dos sistemas de irrigação quanto para a produção de sementes, fertilizantes e pesticidas, é um elemento fundamental. Nesse sentido, houve alteração não apenas do tipo de tecnologia como também da quantidade de tecnologia utilizada e, associado ao aumento de

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tecnologia, obviamente houve aumento da energia utilizada para garantir a produção dos itens de interesse (Figura 2.2).

Figura 2.2 Agroecossistema e evolução das atividades humanas (a largura da seta indica a quantidade relativa de energia e tecnologia utilizada). / Fonte: modificado de Ghersa et al., 1994.

2.2.2 Objetivos Outra diferença importante é os sistemas tradicionais serem itinerantes, característica que persiste até hoje em determinados locais, tendo como objetivo central a policultura para subsistência. Assim, o fluxo de energia solar é redirecionado através do sistema e o alimento é consumido localmente. Do mesmo modo, a ciclagem de nutrientes é mais fechada dentro do próprio ambiente, uma vez que, via de regra, quase não há importação ou exportação de material para fora dos limites do ecossistema. Por outro lado, os grandes sistemas agrícolas atuais são totalmente dependentes da entrada de energia extrassomática e materiais vindos de fora do sistema (máquinas, combustíveis fósseis, pesticidas, fertilizantes) e têm como foco principal a monocultura para exportação. Além disso, muitas vezes, o alimento produzido não é diretamente utilizado na alimentação humana, sendo direcionado para outros fins, como a produção de ração na pecuária, suinocultura e avicultura. No Canadá, mais de 75% de todos os grãos consumidos são utilizados na alimentação animal. Em países como o Brasil, Estados Unidos, Argentina, Rússia e na Europa, esse valor está entre 51 e 75%.

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2.2.3 Subsídios energéticos e produtividade Desde o surgimento da agricultura até os dias atuais, o aumento do emprego de tecnologia e energia extrassomática resultou na alteração da forma como o trabalhador rural vem realizando seu trabalho ou, em última análise, dos subsídios energéticos utilizados para garantir a produção. Como visto em Fluxo de Energia da disciplina Bioenergética e Ciclos da Natureza, os subsídios energéticos são entradas de energia auxiliar que se somam ao fluxo energético principal, realizando parte do trabalho de automanutenção dos organismos, de modo que mais energia pode ser direcionada ao crescimento e à reprodução, levando a um aumento de produtividade. No caso dos sistemas tradicionais, os subsídios energéticos são representados, por exemplo, pelo fogo, quando utilizado, pelo trabalho das pessoas, na lavoura e no cuidado com os animais, e pelo trabalho dos animais. Como visto na aula anterior, como resultado da utilização da queimada na agricultura tradicional, as cinzas restantes no solo contêm nutrientes, que serão utilizados pelas plantas cultivadas. Além disso, o fogo pode eliminar insetos que atuariam como pragas para as plantas. Assim, o fogo atua como um subsídio energético para as populações de vegetais, pois gastarão menos da energia solar, convertida em biomassa por meio da fotossíntese, na obtenção de nutrientes, uma vez que o solo está enriquecido. Da mesma forma, menos de sua energia será desviada para defesa contra as pragas. Esses dois aspectos resultam em maior disponibilidade de energia para as plantas crescerem e se reproduzirem e, portanto, a produtividade primária será maior. Isto significa que a utilização do fogo propicia uma maior produção de alimento, ou seja, aumenta a produtividade da lavoura. Os agricultores tradicionais gastam parte de sua energia em trabalho braçal na lavoura, entre outras atividades, arando e semeando o campo e retirando ervas daninhas que competiriam com as plantas de interesse por espaço, água e nutrientes. Portanto, o trabalho humano representa um subsídio energético para as espécies vegetais de interesse, pois resulta no aumento de sua produtividade. Do mesmo modo, o trabalho humano no pastoreio representa um subsídio energético para o gado. Ao levar os animais para locais em que a oferta de alimento seja maior, o homem despende energia que se soma àquela obtida pelo gado via alimentação. Desse modo, o gado emprega menos energia na procura por alimento, o que resulta em maior energia disponível para crescimento e reprodução. Portanto, mais uma vez, o que se vê é um aumento de produtividade, desta vez secundária, em virtude da entrada de um subsídio energético.

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Finalmente, a energia do próprio gado pode atuar como uma forma de subsídio energético para a lavoura. Se o agricultor utilizar arado a tração animal, a energia despendida pelo animal representará uma entrada auxiliar de energia que resultará em aumento da produtividade primária. Além disso, em certos sistemas agrícolas, o esterco é utilizado como adubo para a plantação, funcionando como um subsídio energético, uma vez que também resultará em aumento da produtividade primária. A quantidade e variedade de subsídios energéticos tenderam a aumentar com o desenvolvimento de novas tecnologias, de modo que os agroecossistemas atuais são altamente subsidiados. Entre os subsídios energéticos utilizados, os combustíveis fósseis são os primordiais, pois, além de permitirem o funcionamento de máquinas no próprio campo (ex.: preparo do solo, colheita, irrigação), são utilizados na indústria para a produção de outras categorias de subsídios energéticos, entre os quais podem ser citados fertilizantes, pesticidas (principalmente herbicidas, fungicidas e inseticidas), sementes, vacinas e hormônios animais etc. Além disso, os combustíveis fósseis também são utilizados para o transporte de mercadorias do campo para os centros consumidores e de aportes para o campo. Observa-se que, com o aumento da mecanização, a contribuição da energia humana como subsídio energético tendeu a diminuir progressivamente.

Agora é a sua vez Realize a Atividade Online Produtos empregados na agricultura moderna e contribua com sua opinião sobre o tema que aborda os produtos empregados na agricultura moderna e sua atuação como subsídios energéticos.

Uma vez que os agroecossistemas modernos recebem uma quantidade maciça de subsídios energéticos, sua produtividade é muito superior à dos sistemas tradicionais.

2.3 Eficiência cultural Podemos afirmar que, indubitavelmente, os grandes avanços tecnológicos tiveram um efeito positivo sobre a produção mundial de alimentos, ou seja, um maior retorno energético sob a forma de alimento (Tabela 2.1). No entanto, como esse aumento é resultante da aplicação de uma grande quantidade de subsídios energéticos, o que, como veremos mais adiante, traz

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significantes impactos ambientais, é interessante pensarmos na eficiência dos agroecossistemas altamente subsidiados quando comparados aos tradicionais. Tabela 2.1: Retorno anual de energia (KJ.m-2.ano-1) para os seres humanos de sistemas não subsidiados e altamente subsidiados. / Fonte: modificado de Tivy e O´Hare, 1981.

Sistema Coleta primitiva de alimento

Retorno Energético mínimo

máximo

0,8

42,0

Agricultura sem uso de combustível fóssil

104,5

4.185,0

Agricultura com uso de combustível fóssil

4.185,0

41.850,0

No tema Fluxo de Energia da disciplina Bioenergética e Ciclos da Natureza foi apresentado o conceito de eficiência ecológica como a razão entre a saída e a entrada de energia de um determinado nível trófico. De forma análoga aos sistemas naturais, podemos calcular a eficiência de agroecossistemas utilizando o conceito de eficiência cultural, ou seja, a razão entre a produtividade de um determinado sistema produtor de alimento (saída total de energia) e a soma dos subsídios energéticos (entradas de energia auxiliar) empregados para obter tal produtividade: eficiência cultural = S saídas de energia / S entradas de energia auxiliar Tomemos como exemplo a produção de milho em dois sistemas que diferem quanto ao emprego de subsídios energéticos (Tabela 2.2). Para se analisar a tabela, é necessário lembrar que a produção de ferramentas e máquinas também consome energia e que, por isso, há uma entrada de energia associada a esses elementos. Embora o trabalho humano no sistema mexicano (589.160 kcal/hectare) seja aproximadamente 92 vezes maior que no norte-americano (5.580 kcal/hectare), a produção final de milho é cerca de 3 vezes menor (6.901.200 kcal/hectare × 19.148.700 kcal/hectare). Essa diferença pode, portanto, ser computada à quantidade muito maior dos demais subsídios energéticos utilizados, que chega a ser 123 vezes maior no sistema norte-americano. No entanto, como a produtividade significativamente mais alta nesse sistema se deve ao fato de ser altamente subsidiado, sua eficiência cultural (2,93 kcal/hectare) é aproximadamente 3,7 vezes menor que a do sistema tradicional (10,74 kcal/hectare), ou seja, em termos do balanço energético entre entradas de energia adicional e saídas de energia, o sistema mexicano é mais eficiente que o norte-americano.

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Tabela 2.2 Entradas e saídas de energia por hectare em dois sistemas produtores de milho: um tradicional (México) e um moderno (Estados Unidos). / Fonte: Baker, 1993.

Quantia/hectare Kcal/hectare México Entradas Trabalho humano

1.144

h

589.160

Machado e enxada

16.570

kcal

16.570

Sementes

10,4

kg

36.608

Total

642.339

Saídas Produção de milho

1.944

Kcal saídas/entradas

-

kg

6.901.200

Produção de proteína

175

kg

-

Trabalho humano

12

h

5.580

Máquinas

31

kg

558.000

Óleo diesel

112

L

1.278.368

Nitrogênio

128

kg

1.881.600

Fósforo

72

kg

1.881.600

Potássio

80

kg

128.000

Calcário

100

kg

31.500

Sementes

21

kg

525.000

Irrigação

780.000

kcal

780.000

Inseticidas

2

kg

86.910

Herbicidas

2

kg

199.810

Secagem

426.341

kcal

426.341

Eletricidade

380.000

kcal

380.000

Transporte

136

kg

34.952

10,74

Estados Unidos Entradas

Total

6.532.071

Saídas Produção de milho

5.394

Kcal saídas/entradas

-

Produção de proteína

485

kg

19.148.700 2,93

kg

-

Agora é a sua vez Realize a Atividade Online Eficiência cultural e analise diversos sistemas que dependem de subsídios energéticos.

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2.4 A Revolução Verde A utilização de variedades altamente produtivas de sementes contribui para a alta produtividade da agricultura atual. O uso de tais sementes intensificou-se a partir de meados da década de 1960, quando começaram a ser aplicadas maciçamente com o objetivo de aumentar a produção de alimentos, sobretudo grãos, de modo que a fome passaria a ser um problema do passado. Esse processo recebeu o nome de Revolução Verde e teve como mentor o agrônomo norte-americano Norman Borlaug, sendo que a tecnologia necessária para sua implantação passou a ser amplamente empregada. Como resultado, a área ocupada pela plantação de cereais altamente produtivos, como a soja, cresceu rapidamente em poucos anos (Gráfico 2.1) e continua a aumentar. Somando-se as áreas plantadas com trigo e arroz, a área Gráfico 2.1 Evolução da área ocupada por plantação de soja. / Fonte: modificado total ocupada aumentou mais de 1000 de Brown, 1996. vezes entre 1965 e 1970. Embora a Revolução Verde tenha resultado em aumento da produção de grãos em nível global, é necessário salientar que as bases do seu sucesso estão assentadas no uso crescente de energia fóssil, no aumento da intensidade da produção agrícola (em termos energéticos) e no uso de variedades de vegetais que possam tolerar a aplicação de quantidades elevadas de fertilizantes no solo. Além disso, a tecnologia foi desenvolvida para determinadas circunstâncias, a saber: disponibilidade de terras relativamente férteis, abundância de água durante a fase de crescimento das plantas e condições financeiras que permitissem obter as sementes e fertilizantes no momento certo e nas quantidades corretas, além de máquinas e sistemas de irrigação, entre outras. Como resultado da utilização maciça das técnicas da Revolução Verde houve um aumento da produção mundial de grãos e os efeitos do movimento com ela iniciado ainda são sentidos. No ano de 2000, por exemplo, Bangladesh obteve um superávit de grãos pela primeira vez na sua história, superando em 1 milhão de toneladas a quantidade de grãos necessária para o seu

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consumo e isto após 30 anos de déficits, que variaram de 1,5 a 2 milhões de toneladas. No entanto, como esse sucesso esteve associado à utilização de combustíveis fósseis e fertilizantes, e como muitos produtores visassem ao lucro imediato, nem sempre respeitando os limites do solo, muitos foram os efeitos ambientais e sociais associados, como se verá no próximo item. Mais recentemente, a partir de meados da década de 1990, entrou em curso uma nova revolução ligada à agricultura. Trata-se da Revolução Genética, associada ao uso de organismos geneticamente modificados ou transgênicos, nos quais são introduzidos genes de outras espécies a fim de torná-los mais resistentes ao ataque de pragas ou mais nutritivos, por exemplo. Os defensores da sua utilização afirmam que tal tecnologia é necessária para alimentar uma população crescente, particularmente no Hemisfério Sul. Assim como ocorreu com a Revolução Verde, a área ocupada por plantações de variedades transgênicas aumentou rapidamente (Gráfico 2.2) e, atualmente, apesar da obrigatoriedade imposta por certos governos como o brasileiro, de informar se alimentos industrializados, ou não, contêm elementos transgênicos, é relativamente difícil ter Gráfico 2.2 Evolução da área ocupada por culturas transgênicas no mundo em milhões de hectares. / Fonte: modificado de Folha certeza sobre a sua procedência e composição. de São Paulo, 28/4/2003.

Impactos potenciais da Revolução Genética Assim como no caso da Revolução Verde, a tecnologia empregada está nas mãos de poucos países ou empresas, de forma que pode ocorrer a mesma dependência tecnológica. Além disso, já em 2003, começaram a surgir ervas daninhas resistentes ao glifosato (nome comercial: Roundup), o pesticida associado às culturas de soja transgênica. Alguns estudos parecem mostrar que as culturas transgênicas não são mais produtivas que as culturas não transgênicas. Segundo tais estudos, a transgenia pode alterar o metabolismo, resultando em queda da absorção de nutrientes e, em geral, pode levar ao desvio de energia para expressar características não inerentes ao cultivo.

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O caso de agricultores indianos Em meados da década passada, agricultores indianos enfrentaram problemas relacionados à praga do algodão, a qual afetou mais as culturas de algodão transgênico que as tradicionais. Como as primeiras necessitam de mais inseticidas suplementares, implicam um custo de 136,26 dólares por acre contra 11,60 dólares necessários por acre do cultivo tradicional. Como resultado, 60% dos agricultores da região de Maharashtra não recuperaram os custos de sua primeira colheita de algodão transgênico, e a fuga do endividamento foi apontada como a causa do suicídio de cerca de 700 deles.

2.5 Principais impactos decorrentes das práticas agrícolas modernas A opção por monoculturas altamente subsidiadas e em grande escala permitiu avanços no que se refere ao aumento da produção de alimentos, mas, por outro lado, veio acompanhada de impactos ambientais, que podem levar à queda de produtividade, e também de impactos sociais.

2.5.1 Impactos ambientais Os impactos ambientais relacionados à agropecuária altamente subsidiada são inúmeros, de forma que neste item serão tratados apenas os mais recorrentes.

2.5.2 Desmatamento e fragmentação de habitats Um dos primeiros problemas ambientais associados à agropecuária é o desmatamento. Tal impacto está relacionado à agricultura desde o seu surgimento, mas passou a atingir escalas preocupantes com os avanços tecnológicos citados anteriormente. Assim, ao longo do tempo áreas cada vez maiores de floresta têm sido desmatadas para dar lugar a amplas monoculturas e à pecuária extensiva. A eliminação de áreas florestadas, e mesmo de cerrados como ocorre no Brasil, está associada à perda de bens (produtos) e serviços ambientais (ex.: controle de erosão, ciclagem de nutrientes, produção primária) fornecidos pela vegetação natural. Atualmente, as terras agrícolas ocupam aproximadamente 28% da superfície da Terra (excluindo-se a Groenlândia e a Antártida). Globalmente, tais áreas têm aumentado nos últimos 30 anos, embora tenham ocorrido decréscimos

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em muitos países industrializados. O Gráfico 2.3 oferece um panorama da proporção de áreas ocupadas por agricultura e pastagens nas diferentes regiões do planeta.

Gráfico 2.3 Composição das terras agrícolas. / Fonte: modificado de WRI, 2000.

Outra consequência do desmatamento é a fragmentação de habitats, ou seja, a transformação de áreas anteriormente contínuas de formações vegetais em áreas descontínuas, representadas por fragmentos com tamanhos e formatos diversos. No caso de agroecossistemas, a área entre esses fragmentos, denominada matriz, é ocupada por pastagens ou cultivos. Dependendo do tipo de matriz e da espécie analisada, há redução ou eliminação de fluxos gênicos entre os fragmentos que, por sua vez, pode resultar na diminuição de suas populações e, mesmo, à sua extinção local.

2.5.3 Explosão de pragas agrícolas e surgimento de espécies resistentes aos pesticidas A eliminação da vegetação natural favorece o surgimento de pragas agrícolas e ervas daninhas que, na ausência de seus inimigos naturais, encontram, nas áreas cultivadas, condições adequadas para o amplo crescimento de suas populações. A implantação de monoculturas também favorece essas explosões populacionais, uma vez que os herbívoros e parasitas têm altíssima probabilidade de encontrar seus alvos, ou seja, as plantas cultivadas. A ocorrência de pragas teve como consequência o aumento da utilização de pesticidas e não demorou a surgir variedades resistentes, o que levou ao uso de quantidades ainda maiores desses pesticidas, bem como ao desenvolvimento de novos produtos.

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2.5.4 Efeitos sobre a ciclagem de materiais Por ser altamente dependente de combustíveis fósseis, fertilizantes e água, a agricultura moderna resulta na alteração da ciclagem de vários materiais (se necessário, volte ao tema Ciclos Biogeoquímicos da disciplina Bioenergética e Ciclos da natureza para relembrar alguns dos ciclos de materiais já estudados). A utilização de combustíveis fósseis interfere diretamente na ciclagem do carbono, uma vez que a sua queima completa resulta na liberação de gás carbônico para a atmosfera em velocidade e quantidade muito maiores do que em processos naturais. A produção de fertilizantes também resulta na aceleração da liberação de elementos como o potássio e o fósforo de seus estoques naturais. O mesmo pode ser dito quanto à extração do calcário utilizado para corrigir o pH dos solos e da água utilizada na irrigação. Deve-se ressaltar que a obtenção e utilização desses produtos implica o consumo de quantidades elevadas de energia extrassomática proveniente dos combustíveis fósseis. A fixação industrial do nitrogênio molecular, por exemplo, resultando na produção de amônia (NH3 ) a partir de nitrogênio molecular (N2 ) e hidrogênio (H2 ), requer uma quantidade considerável de energia para romper a ligação tripla entre os dois átomos de nitrogênio, o que torna o processo bastante caro.

2.5.5 Efeitos sobre a atmosfera Embora a poluição do ar devido a processos industriais tenha diminuído em muitos países, nos últimos tempos, em virtude do controle e sanções impostas às indústrias, deve ser lembrado que o uso de combustíveis fósseis nas indústrias para a produção de máquinas, fertilizantes e pesticidas, entre outros produtos utilizados nos agroecossistemas, e para sua posterior utilização no campo, tem contribuído para a poluição atmosférica.

2.5.6 Efeitos sobre os solos A utilização de pesticidas e fertilizantes, por sua vez, tem resultado em poluição do solo por esses produtos e seus constituintes, como metais pesados. Esse fato é preocupante, pois a tendência é a utilização desses produtos continuar a aumentar globalmente nos próximos anos,

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embora apresente claro decréscimo nos países desenvolvidos. Como mostra dessa tendência é apresentado o consumo do fósforo como fertilizante a partir de 1960 (Gráfico 2.4).

Gráfico 2.4 Utilização do fósforo como fertilizante. / Fonte: modificado de UNEP, 2011.

Além de se tornarem poluídos, os solos também são afetados por queda da fertilidade e por processos erosivos se as práticas agrícolas utilizadas não levarem em consideração que os solos precisam ser manejados cuidadosamente a fim de se recuperarem entre os plantios sucessivos. Devido aos processos de degradação e decomposição de matéria orgânica, ocorre, também, a diminuição da biota do solo que, além de promover sua oxigenação, é relevante para a manutenção da sua fertilidade. Além disso, como a irrigação é uma condição necessária para o sucesso das variedades normalmente utilizadas, o solo pode estar sujeito a encharcamento e salinização (presença de sais solúveis), processos que acabam por diminuir a produtividade das culturas. A salinização decorre do fato de se utilizar para irrigação água de locais com alta concentração de sais, o que é comum em áreas áridas e semiáridas, sendo que a concentração de sais no solo se torna ainda maior em função das altas taxas de evaporação da água. Segundo dados da FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations), 50% dos solos irrigados no mundo, correspondentes a cerca de 125 milhões de hectares, estão comprometidos pela salinização e, como resultado, cerca de 10 milhões de hectares são abandonados a cada ano. Os impactos resultantes sobre o solo em conjunto acabam levando à perda de áreas agrícolas, um problema que já afeta um quarto da população mundial, sendo que 22% das terras degradadas se encontram em zonas muito áridas ou subúmidas secas e 78% em zonas úmidas.

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2.5.7 Efeitos sobre os ambientes aquáticos A utilização em excesso de fertilizantes e pesticidas também tem resultado em poluição da água superficial (carreados por escoamento superficial da água para rios, lagos e oceanos) e subterrânea (carreados pela água que percola no solo). Além disso, a erosão dos solos tem como consequência o assoreamento dos corpos de água, levando à diminuição de seu volume e a alterações do fluxo de água, além de provocar aumentos temporários da turbidez da água devido à entrada de material que permanece em suspensão na água. Tais impactos têm efeitos profundos sobre a estrutura e funcionamento dos ecossistemas aquáticos. Outra questão a ser lembrada é a de que os sistemas de irrigação também têm contribuído para a redução do volume de corpos de água superficiais, assim como dos estoques subterrâneos. Alguns dos problemas associados à água serão tratados mais detalhadamente na próxima aula.

2.5.8 Perda de biodiversidade Os impactos ambientais decorrentes da agropecuária contribuem para a perda de biodiversidade tanto nos ambientes terrestres como nos aquáticos. Ao longo do tempo, com a alteração das práticas agrícolas, também tem sido documentada perda da biodiversidade de espécies agrícolas. Nos últimos 100 anos deixamos de cultivar três quartos das cerca de 7.000 espécies vegetais anteriormente utilizadas, sendo que apenas três espécies (milho, trigo e arroz) passaram a suprir quase 70% das necessidades humanas.

Agora é a sua vez Realize a Atividade Online Mapa conceitual e construa um mapa de conceito estabelecendo a relação entre atividades agropecuárias e impactos ambientais.

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2.6 Impactos sociais 2.6.1 Aspectos nutricionais e de saúde Os problemas nutricionais resultantes do modelo agrícola vigente residem na substituição, em muitos casos, das variedades empregadas na cultura tradicional por variedades menos nutritivas, o que tem implicações para a saúde das populações locais. Além disso, a utilização indiscriminada de pesticidas tem afetado negativamente a saúde dos trabalhadores rurais, ocorrendo desde efeitos transitórios como intoxicações até efeitos crônicos como paralisias, lesão cerebral e tumores malignos, entre outros.

2.6.2 Dependência de combustíveis fósseis e dependência tecnológica A agricultura moderna tem o potencial de gerar dependência dos produtores em relação à obtenção de combustíveis fósseis, além de dependência tecnológica relacionada à produção de sementes, fertilizantes e pesticidas. Assim, têm maior possibilidade de obter resultados positivos os produtores com condições de pagar por essa tecnologia. Aos demais, resta buscar empréstimos nas instituições financeiras, o que muitas vezes resulta no endividamento e perda de suas propriedades. Como consequência dessa situação, ocorre maior concentração de terras nas mãos de poucos produtores. Além disso, como há menor necessidade de mão de obra, aumenta o desemprego no campo. Como resultado final, ocorre o êxodo rural, sobretudo nos países em desenvolvimento. No Brasil, 16 milhões de pessoas deixaram as áreas rurais em direção aos centros urbanos, entre 1970 e 1990, onde dificilmente encontraram condições de vida adequadas.

2.7 O contínuo desafio de alimentar a população mundial A necessidade de prover alimentos para uma população em rápido crescimento, sobretudo a partir do século XX tornou-se um desafio para governantes e pesquisadores. Foram desenvolvidas

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sementes e tecnologias, e oferecidas linhas de crédito, que aumentaram a produtividade agrícola. No entanto, tal resultado positivo veio acompanhado de uma série de impactos ambientais, que acabam por interferir negativamente na produtividade. Além disso, o problema da fome não foi totalmente resolvido, pois ainda existem milhões de pessoas subnutridas no planeta (Gráfico 2.5) e, portanto, o desafio continua.Voltaremos a tratar desta temática em Desenvolvimento sustentável: conciliando desenvolvimento e conservação ambiental.

Gráfico 2.5 Número de pessoas subnutridas no mundo. / Fonte: modificado de WWI, 2011.

2.8 Conclusão Nesta aula, comparamos agroecossistemas tradicionais e modernos e analisamos como o desenvolvimento tecnológico propiciou alterações na forma de produção e na produtividade. Também ressaltamos que essas mudanças vieram acompanhadas de uma série de impactos ambientais, alguns dos quais relacionados aos ecossistemas aquáticos. A água, no entanto, não é essencial apenas para a agricultura e esse fato a torna um recurso seriamente ameaçado, como veremos na próxima aula.

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Licenciatura em Ciências · USP/Univesp · Módulo 4

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O ser humano e o meio ambiente