Maria, Pedro e Madalena Heitor herculano dias

1 Maria, Pedro e Madalena Heitor herculano dias Capa: wanilde barreto © Heitor Herculano Dias 2017 2 3 Acredito que toda experiência que não c...
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Maria, Pedro e Madalena Heitor herculano dias

Capa: wanilde barreto © Heitor Herculano Dias 2017

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Acredito que toda experiência que não conduza ao obscurantismo é válida desde que contida pelos limites da sabedoria humana. HHD

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MARIA, PEDRO E MADALENA Dos cadernos de Lucas Aqueles dois homens de semblantes pesarosos que a passos lerdos, cabeças baixas, afastavam-se das escadarias da secretaria de segurança, destacavam-se da multidão exultante que deixava escapar exclamações esporádicas em apoio àquele ato recém findo. A grande concentração popular ia se desfazendo como uma mancha a se diluir por todo o entorno daquele prédio governamental, agora em pequenos grupos ou mesmo vultos solitários deixando alegremente a sede do Doutor Herodes a caminho de seus lares. Mas os dois homens sobre os quais a plena curiosidade de Lucas se concentrou 6

pareciam-lhe perdidos, atormentados, vez ou outra ainda se voltando para olhar as imponentes escadas de acesso à repartição policial. Logo sua atenção foi bruscamente interrompida por um grito de dor bem alto, doloroso, um clamor humano em timbre feminino que explodiu e ecoou por toda a praça fronteiriça à secretaria de segurança, espalhando-se entre as ressequidas árvores e por baixo dos frios bancos de mármore, afugentando perambulantes cães vadios, galgando os degraus marmorizados como indisciplinadas vagas marinhas. Era o pranto de Maria, mãe daquele homem até poucos minutos atrás exposto a toda sorte de maus tratos e ofensas, até desaparecer da vista de todos quando arrastado para o interior de um automóvel policial ao som de dezenas de vozes prenhas de pragas.

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Surpreendido, Lucas a princípio ficou estático, ferido tão profundamente em seu coração pelo punhal agudo e exasperante que somente a dor materna pode produzir diante a perda inesperada de um filho. Recuperado em parte ele observou que aqueles dois homens alquebrados foram os primeiros, logo demonstrados como os únicos, a acorrer em socorro da mulher. No momento ela se encontrava parada a poucos metros de um dos vértices da fachada do majestoso prédio, e abraçada a ela outra mulher cingia-lhe os ombros em atitude consoladora. Lucas viu quando um deles beijou-lhe respeitosamente a mão direita, enquanto o segundo, logo em seguida, buscou lhe afagar a cabeça oculta sob longo véu negro. Mesmo ainda à distância, percebeu que aquelas quatro pessoas já se conheciam.

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Agora, curvado em frente ao baú escancarado, Lucas dali retira, uma a uma, folhas manuscritas que vai colocando no chão junto aos pés. Distribui sob um olhar atento e amoroso seus amados rascunhos, alguns em papel pardo, outros como notas ligeiras feitas em folhas de caderno escolar, além de rabiscos entremeados em palavras soltas. Diante de alguns escritos interrompe sua tarefa para relê-los, muitos por mais de uma vez. Há vezes em que, traído pela memória e não confiante cegamente em seus olhos de velho, tem que se socorrer de uma potente lupa. Não é por outro motivo que já a tem sempre posta no bolso da camisa todas as vezes em que se dispõe a dar uma revisão a mais em seus hieróglifos, como batizou suas tantas anotações. Há muito que perdeu a paciência para sentar-se diante de uma daquelas 9

maquininhas esquisitas dos médicos de olhos, tendo ele a um lado e o doutor a manejar o esquisito aparelho do outro, tudo para ao final receitar-lhe um colírio e lhe dizer que precisa trocar de óculos. Todo ano a mesma coisa, mas já se sente velho e considera a progressiva perda da visão a partir de certa idade uma coisa tão normal como perder os dentes, a memória e muitas capacidades mais. Sua lente de aumento vai por enquanto lhe resolvendo o problema, mas não se ilude, Quando se sentir completamente cego, fechou-se a cortina, nada mais a fazer, pois não poderá se dar ao luxo de ter uma secretária a quem ditar seus tristes pensamentos, memórias e divagações. Das anotações antes misturadas e lançadas de qualquer jeito no interior do baú, vai agora, num rigor classificatório por nomes e datas, formando capítulos em 10

que não faltam para alguns até mesmo notas de rodapé. Aqui estão anotadas as passagens julgadas mais importantes e concernentes ao histórico do que foi o fenômeno Messias, com o seu surgimento em meio ao povo humilde da Judéia, este pequeno pedaço de terra comandado com mãos de ferro por um imperador estrangeiro, onde se entrechocam velhos idiomas e ambições políticas e religiosas. Neste instante, Lucas tem um ar de tristeza e enfraquecimento porque, por mais que tente enganar a si próprio com palavras incentivadoras, seus escritos e os fatos que estão acontecendo na Judéia conduzem-no à certeza do fracasso da missão do mestre Messias.. No que deu sua luta? Pergunta Lucas internamente, cessando por instantes a separação criteriosa de suas anotações. Neste instante suas mãos dele tremem 11

quando pinçam do interior do baú um maço de folhas acinzentadas, meio amassadas e unidas por um clipe onde o nome Maria aparece no ângulo superior esquerdo da primeira delas, escrito em letra arredonda e firme, ligeiramente tombada para a direita. Lucas se emociona (foi aqui que tudo começou, recorda sob um sorriso apagado em desilusão). Não foram, porém, duas nem três vezes as oportunidades em que esteve a ponto de arrastar este baú, afinal de contas não tão pesado assim, para lançá-lo fora da cabana e incendiá-lo com toda sua papelada para apreciar sua mortal contorção entre as labaredas insensíveis. Com vagar, principia a leitura, ou melhor mais uma das muitas releituras do que escreveu. “Maria não sabia como contaria para seu noivo o que lhe estava sucedendo. Na 12

manhã em que despertou com a lembrança daquele sonho estranho chegou até a achar graça. Ficou imaginando a cara de José quando lhe dissesse que um anjo, em sonhos, previra que ela, sendo embora virgem, ficaria grávida de um menino antes de conhecer homem. Segundo as calmas e seguras palavras do anjo Gabriel essa criança viria ao mundo para refazer a mente e o espírito dos homens. “José, entretanto, estava viajando a trabalho no dia em que sua noiva despertou intrigada com o tal sonho, mas quando regressou, duas semanas depois da noite em que sua noiva havia recebido em sonho a visita do anjo,, ela já havia se esquecido do fato.. Passados uns dois meses desde aquele sonho, Maria começou a se sentir inquieta e temerosa, pois seu corpo já revelava certas transformações

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bastante significativas quanto à previsão daquele anjo. “ “Aproveitando o ensejo de sua irmã Isabel estar grávida, Maria armou-se de coragem e contou-lhe o que estava lhe acontecendo. Surpresa, Isabel procurou tranquilizar sua irmã lhe acenando com a possibilidade de alguma disfunção uterina. Ademais, Isabel não hesitou em qualificar como completamente absurda a hipótese de Maria conceber um filho sem haver conhecido homem. “Maria, contudo, não alimentava mais quaisquer dúvidas de que uma criança estava se formando dentro dela. Por isso muniu-se de coragem e foi conversar com o noivo José a respeito. Não foi fácil, evidentemente. Sentou-se em frente a ele, aproveitando um instante de tranquilidade mútua, e lhe narrou o sonho com o anjo Gabriel, sem tirar nem pôr. 14

“José, que sempre fora um homem tranquilo e bom, respeitador da castidade de Maria, ficou boquiaberto e sem palavras quando sua noiva concluiu o relato do sonho e o fez sentir seu ventre em estado de crescimento. Então, à medida em que a narrativa de Maria a respeito do sonho prosseguia, mais arregalados ficavam os olhos de José, sentado ali, atento e atônito. Ele não queria acreditar naquilo tudo, mas ao mesmo tempo sua mão direita, que a doce Maria comprimia com leveza sobre o próprio ventre, via a verdade insofismável — um ser se encontrava em formação no interior da noiva de José. Mentiria ela para ele? Afinal de contas, por trás de toda aquela candura e recato habitaria a pior das adúlteras, aquela que traria como dote para um casamento ainda não efetuado a mentira de uma falsa virgindade? Mas tal hipótese sequer ameaçou assaltar o 15

coração do bom e apaixonado José. Casaram-se sem mais delongas perante um juiz de paz. Na curta e simples cerimônia estiveram presentes apenas uma colega de pensionato da pobre Maria e sua prima Isabel acompanhada do marido Zacarias. Por sinal, estes dois, que lhe serviram como testemunhas, tiveram que se revezar nos cuidados com o recém nascido João quando da assinatura do competente termo de batismo”' Lucas já leu e releu estes parágrafos em diversas oportunidades, satisfeito pela forma, para ele leve e objetiva dada aos fatos referentes à gestação de Maria. Dali em diante muitas e muitas folhas de papel preencheu para narrar o nascimento, o desenvolvimento enquanto uma criança e, finalmente, a maturidade de Messias, até seu mergulho no turbilhão de intrigas e

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perseguições movidas pelos poderosos da Judéia. Antes mesmo de se dedicar de corpo e alma à narrativa do que foi a vida de Messias, registrou aspectos especiais nas vidas de Maria e José que encheram de tristeza o seu sensível coração observador. Neste exato instante ele tem às mãos uma folha de papel pardo onde escreveu: “Antes de Messias completar onze anos de idade, as atenções e os cuidados normais de José para com ele entraram num decréscimo assustador. Apesar de seu ofício de carpinteiro estar lhe propiciando a oportunidade de prover a família do necessário sustento e um relativo conforto material, José ia a cada dia mais se fechando em si mesmo. Maria, desde criança uma pessoa retraída, órfã de pai e mãe aos sete anos de idade e criada por parentes, jamais logrou vencer a barreira 17

da timidez, apesar de seus contatos de trabalho como operária numa fábrica de tecidos e a coabitação com outras moças num orfanato. Não lhe era tarefa fácil, por conseguinte, saber de José o verdadeiro motivo de seu flagrante alheamento aos assuntos tocantes à vida da família, salvas suas obrigações de cunho alimentício e material. “Havia ocasiões em que Maria se postava a observar José calado a um canto da sala, e aí mentalmente se admirava de como conseguira reunir tanta força para confessar ao então noivo a extraordinária gravidez de Messias. Quando rememorava isso, Maria tinha em mente inclusive a cativante e inesperada demonstração de José quanto à sua plena e absoluta crença na fidelidade e virgindade de sua noiva, e, quando isso acontecia, mais aumentava o

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seu amor e carinho por um homem tão singular. “Mas o fato presente era que o distanciamento de José não podia ser negado, e muito menos ter quaisquer eventuais razões esclarecidas dada à assumida inabilidade de Maria em buscálas. A princípio ela ainda tentou se aconselhar com Isabel, sua eventual confidente, mas cedo percebeu que o fato de ambas terem dado à luz filhos homens e únicos, com uma pequena diferença de datas, ao invés de uni-las estava erguendo uma estranha barreita de rejeição e ciúme entre as duas irmãs. “O menino João Batista, por sobrenome do pai Zacarias, muito cedo demonstrou fortes tendências para uma existência contemplativa, não escondendo dos pais sua preferência pela leitura de livros de natureza mística e o estudo das 19

escrituras dos rabinos, em detrimento dos próprios trabalhos de escola praticados pelas crianças de sua idade. João, por muitas vezes, desatendia aos chamados de seus pais para sentar-se com eles à mesa de refeições, enfronhado em suas leituras cabalísticas e textos talmúdicos. Alguns rabinos já o conheciam de nome e se interessavam mesmo em trocar ideias com ele, sem embargo das diferenças de idade e seus aprofundamentos político-filosóficos e doutrinários. “Nas ocasiões, cada vez mais raras, em que o principal tema da palestra entre Isabel e Maria versava sobre os filhos, a primeira não perdia oportunidade para valorizar os conhecimentos filosóficos e religiosos de João, ademais sendo ele um menino nascido de pai e mãe “como todos os outros”, Isabel fazia questão de frisar.. Essas observações, que foram crescendo 20

em paralelo ao afastamento de João da rotina dos estudos e lazer dos meninos da sua idade, cavaram um fosso que foi se aprofundando dia a dia entre Maria e Isabel, até que a frieza e o desinteresse mútuo praticamente as desuniu. “Messias, por sua vez, mantinha um bom relacionamento com o primo, dedicado como este ao aprendizado dos segredos e revelações filtrados através de conversas e práticas rituais de adultos frequentadores das sinagogas. Não se tratava de tarefa simples, pois os sentimentos religiosos de José e Maria eram bastante superficiais e indefinidos, sem comprometimentos espirituais. Mas a grande oportunidade para Messias ter em mãos um texto religioso, pelo menos semelhante àqueles de que tanto lhe falava João, surgiu através de um trabalho de seu pai. Aconteceu quando o rabino Jacob 21

Salem encomendou a José a reforma de toda a estrutura de madeira de sua vastíssima biblioteca, que ocupava duas salas da residência do rabino, uma alta casa de paredes de pedra circundada por robustos castanheiros e amendoeiras e dotada de um vasto e frondoso pomar aos fundos. José mereceu a confiança para o ingresso diuturno por largo tempo naquela casa, para que pudesse efetuar o trabalho necessário em toda a estrutura das altas, largas e robustas estantes e seus armários aderentes. “A biblioteca ocupava praticamente as quatro largas paredes de dois grandes cômodos, do piso ao teto numa altura de mais de sete metros. “Messias, não obstante esse flagrante distanciamento a ele e Maria ultimamente dado por seu pai, seguia amando-o e não perdia oportunidade para apreciar José em 22

seus trabalhos, visitando frequentemente a oficina de carpintaria mantida por José como um anexo no terreno aos fundos da residência da família. Por isso que ele se habituou a seguir o pai nos calcanhares, humildemente, todas as vezes em que José ia trabalhar na casa do rabino Salem. “Para tornar possível o trabalho de José com tantas prateleiras, portinholas e suportes das enormes estantes, o rabino se encarregou de desocupar grandes espaços da portentosa biblioteca armazenando provisoriamente todos os livros, estampas, catálogos e vários objetos decorativos no espaçoso sótão da casa. “Ali foram empilhados os valiosos volumes, em grande maioria protegidos por ricas encadernações com lombadas marcadas em hebraico. Bastou uma ocasião em que José, envolvido com a conferência da metragem exata de algumas 23

tábuas, descuidou-se em vigiar Messias, para que ele se embarafustasse pelo sótão a dentro. Apesar da pouca luminosidade interior Messias escolheu ao acaso um livro que logo de início atraiu sua curiosidade. Virando a grossa capa do pesado volume e desprezando de imediato a folha em papel de seda que a seguia, coberta de lindas filigranas feitas em traços escuros, vislumbrou emocionado a página seguinte. Ali estava a palavra Genesis, ao centro da página, em letras desenhadas, graúdas e negras. Naquele instante Messias se recordou de uma conversa mantida com João quando seu primo, com os seus olhos esbugalhados e exaltadíssimo soube repetir pausadamente as palavras decoradas que, segundo ele, compunham um dos mais importantes trechos do livro que em seus entusiásticos dizeres narrava a história da criação do 24

mundo por um deus todo poderoso e único. João sorria extasiado, ademais, em repetir que sem a leitura daquele livro nenhuma pessoa seria digna sequer de ser vista como tal pelo criador da terra, das aves, dos peixes e de tudo que está no universo, inclusive e principalmente o ser homem. “Sim, exultou Messias: por uma simples coincidência ele havia encontrado entre as centenas de livros do rabino Salem aquele livro cuja leitura seu primo declarou ser a coisa mais importante na vida de qualquer pessoa. E assim sucedeu: durante quase bem dois meses, tempo dispendido por José para executar todo o trabalho na biblioteca. Poucos foram os dias em que Messias não conseguiu dar um jeito de ludibriar a vigilância do pai para se internar naquele penumbroso sótão e,

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paulatinamente, ir conhecendo como o decantado deus de João fez o mundo. “José, apesar de seu mutismo e isolamento, dava a impressão a Messias de não ignorar o motivo pelo qual o filho o acompanhava quase que diariamente e lá por dentro da enorme casa desaparecia por largo tempo. Messias ansiava que José o interpelasse sobre tamanha insistência, pois, ainda que o pai viesse a repreendê-lo, mostraria pelo menos que reparava na presença do filho junto a ele. Aquela atitude de fingida ignorância de José quanto à constante presença do filho junto a ele produzia imensa tristeza no coração do menino. Messias gostaria que José, em algumas ocasiões enquanto estivessem juntos na residência do rabino, mostrasse algum interesse em saber o que tanto o atraía naquela enorme e sombria casa tão

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desguarnecida das primordiais atrações para um menino. “Apesar do imenso gosto em ir se aprofundando mais naqueles escritos ditos sagrados pelos rabinos, Messias sofria com aquele rotineiro acompanhamento do pai àquela casa como se fosse um cãozinho qualquer, indigno de alguma palavra, ainda que repressora. “Ao final da tarde ambos regressavam ao lar e Maria, depois de beijar o filho e passar-lhe carinhosamente a mão pelos cabelos revoltos, tentava em tímidas perguntas ouvir de algum dos dois as razões dos sumiços de Messias. Mas o máximo que lograva obter eram evasivas de Messias alegando gostar de ver o pai trabalhar na madeira. Quanto a José o que ela sempre ouvia não ia além de resmungos inaudíveis escudados em protestos de cansaço. 27

'Quem muito se alegrou com as leituras secretas de Messias foi João, que logo a partir dos primeiros comentários do primo sobre haver lido bastante do livro Genesis na casa do rabino Jacob Salem, por sinal um dos religiosos admiradores do precoce interesse de João em assuntos religiosos, viu a oportunidade de poder praticar seu proselitismo religioso diante do primo. “O trabalho feito por José na biblioteca foi, contudo, o último de grande monta para ele. Passadas umas duas semanas desde o encerramento daquela encomenda, José sentiu-se acometido de fortíssimas dores em todo o tronco que o impediram mesmo de trabalhar em sua carpintaria. .Messias, como sempre um bom filho, apesar do crescente desprezo que sofria da parte do pai, esmerava-se em acompanhar Maria a todas as localidades 28

onde houvessem médicos dispostos a atender José, prostrado no leito e gemendo de dores. Foi uma tarefa árdua encontrar um clínico que aceitasse se deslocar até a casa de Maria e José, situada em área de difícil acesso ao sul do bairro da Cananéia, sem uma garantia de pagamento pela consulta. Após muitas andanças e viagens em coletivos, surgiu-lhes o doutor Adriano por mero acaso, quando mãe e filho, fatigados, pararam em um botequim para pedir um copo d'água. Perguntando apenas por perguntar se o homem que os atendeu ao balcão conhecia algum médico ali por perto, ouviram soar lá dos fundos do estabelecimento uma voz que dizia: – Precisam de um médico? Quem está doente? “Um homem idoso que estava sentado com mais duas pessoas em volta de uma mesinha de tampo de mármore e 29

coberta de copos e garrafas de cerveja ergueu-se e veio na direção de Maria e José. Disse-lhes ser médico clínico e que talvez pudesse atender ao pedido deles, justificando ter sido encontrado ali, num humilde botequim, por motivo de ele estar festejando com alguns de seus amigos a aposentadoria de um deles. Ofereceu-se para levá-los de automóvel até o seu consultório em Vila Jeremias, mas Maria declinou do convite e lhe pediu que a acompanhasse e ao filho para examinar seu marido que se queixava de fortíssimas dores sem poder sequer se levantar da cama. Apesar dos seus olhos injetados e um forte hálito de cerveja, o doutor inspirou confiança a Maria, mesmo porque suas pernas latejavam depois de tantas caminhadas difíceis e seguidos embarques e desembarques em ônibus, acrescidos ao

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escoamento de suas minguadas finanças com o pagamento das passagens. “José foi examinado pelo doutor, e a cada apalpadela pelas laterais de seu tronco, onde dizia sentir mais dores, tinha que cerrar fortemente os dentes para não gritar. O atencioso médico se justificou da impossibilidade de um pronto diagnóstico conclusivo e aconselhou que José fosse submetido a exames mais aprofundados, inclusive radiográficos, mas não aceitou o dinheiro que em humildade Maria dizia ser todo o que possuía naquele instante. Rabiscou um bilhete dirigido a um outro médico, segundo ele seu amigo e atendente do hospital público da Judéia. No dia seguinte, bem cedo, um vizinho levou José, Maria e Messias em sua caminhoneta de trabalho ao hospital, onde o médico indicado pelo doutor Adriano submeteu

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José a demorados exames com chapas radiográficas e exames de sangue. “Iniciou-se ali então, para José, um caminho que lhe seria bem curto e pobre em expectativas bastante doloroso, com o aumento incessante de dores que não mais se restringiam ao tórax. Cabisbaixos e apreensivos, Maria e José voltaram para casa após ouvirem do médico a definição de que José deveria ficar internado para observação e que novos exames seriam realizados. 'Na manhã em que Messias e Maria deveriam retornar ao hospital público para se inteirarem do verdadeiro estado de saúde de José, deu-se o incidente que provocou o afastamento entre Messias e João, que duraria até ambos os primos atingirem a idade adulta. “Sucedeu que João, indo à casa de Messias bem cedo, como frequentemente o 32

fazia a fim de convidá-lo para lerem juntos um exemplar das escrituras recebido como presente de um rabino, surpreendeu-se ao encontrar o primo e Maria justamente de saída para o hospital. Apesar de informado pela própria tia do que estava sucedendo com José e constatando o alto grau de preocupação de Messias pela saúde do pai, João mostrou-se irritado e acusou o primo de estar virando as costas para o Criador. Disse-lhe, exasperado e em altos brados, que em se recusando a acompanhá-lo para participar da leitura do Genesis Messias estaria praticando uma heresia. Ambos discutiram e Messias declarou que o deus de João não era aquele com quem ele sempre sonhara, mas sim um ser excessivamente autoritário, senhor das guerras, mandante do sacrifício de crianças, velhos e animais, incentivador de matanças entre muitos povos irmãos e 33

desconhecedor do que seria o verdadeiro amor entre os seres humanos. “A certa altura, João, descontrolado, lançou uma cusparada em pleno rosto de Messias, que reagiu no ato empurrando o primo e passando a dar-lhe socos e pontapés aos gritos de que o deus de João só existia para o rabinos mas não para os pobres iguais a seu pai. Rolaram-se no chão empoeirado sob os nervosos apelos de Maria para que cessassem com aquilo, pois eram primos de sangue e, ademais, Messias iria acompanhá-la imediatamente ao hospital. Foi necessária a intervenção de vizinhos para que Messias e João fossem apartados. Este último, dada sua frágil complexão física, comparada com a de Messias, bem mais robusto e superior em estatura, sofreu maiores danos com a briga. Enquanto Maria afastava seu filho, João, de olhos injetados e rosto arranhado, 34

bradava irado nomes de demônios contra o primo. “Somente após dezoito anos, Messias e João voltaram a conversar, já então com suas existências bem dedicadas ao trabalho espiritual em meio ao povo de toda a Judéia, embora não totalmente envolvidos em idênticos meios e objetivos. “José, diagnosticado como portador de um câncer que permaneceu torturandoo com repetidas e insuportáveis dores, apenas periodicamente amainadas com o emprego da morfina, faleceu em dez dias contados daquela mesma manhã em que seu filho e o João encetaram cada qual seu caminho próprio” Lucas põe de lado as folhas e esfrega as pálpebras cansadas. À sua memória acorrem em turbilhão, quase como se desfilassem diante de seus olhos, as marcantes passagens que envolveram as 35

vidas de Maria e José. Muitas vezes ele se interroga, diante de seu velho baú, como conseguiu captar tantas coisas, tamanhos e distintos os eventos, sem havê-los de fato presenciado. Reconhece que o fato de ter estado ocasionalmente em meio à multidão presente à apresentação de Messias, preso, ao secretário de segurança, o cruel Doutor Herodes, incutiu-lhe bem no espírito o compromisso de escrever a biografia daquele admirável e incomparável homem. Contudo, não há como negar que muito acima de seu desejo em se aprofundar na vida do então severamente maltratado e humilhado prisioneiro, predominou como seu fio de conduta e orientação um poder estranho e supremo jamais por ele sentido anteriormente. Embora espremido entre dezenas de ombros, e com os ouvidos violentados por gritos transbordantes de ódio, Lucas pôde 36

absorver, ainda que alguns metros distantes, toda a beleza daquele olhar numa face despida de sentimentos de sofrimento e ódio. Ele jamais esquecerá os instantes onde a insensibilidade, o despeito e os mais rasteiros desejos que o ser humano é capaz de abrigar enquanto anônimo na multidão, foram confrontados por um único e especial homem armado apenas com seus olhos amorosos. Foi vendo aquilo tudo nas escadarias e no saguão de entrada da secretaria de segurança da Judéia, que o solitário e octogenário Lucas, cidadão judaiense, convenceu-se de que dedicaria o resto de sua vida a escrever a história de Messias e daquelas pessoas que mais de perto o acompanharam

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Pedro Aquela noite horrorosa já se foi, assim como Messias também se viu tragado pela violência dos asseclas de Caifás e a insensibilidade de Pilatos, manifestada diante das testemunhas que não arredaram pé da secretaria de segurança. Ninguém se afastou dali, apesar de as trevas da noite estar surgindo sobre a triste província; ou melhor, houve um vulto que escapuliu à atenção geral, apesar dos exaltados protestos de alguém na multidão. Até agora ninguém entendeu o porquê do Doutor Herodes ter permitido a presença de tantos curiosos naquele suntuoso saguão do majestoso e pomposo edifício governamental, enquanto ao telefone decidia com o governador Pilatos o destino de Messias. Mas a ansiedade popular não se prolongou por demais. 38

Tudo de repente pareceu decidido, sem meio termos ou evasivas quando Messias foi agarrado bruscamente por dois policiais e arrastado para o interior de uma caminhoneta esverdeada, que partiu em exagerado arranque com seus pneus a esbravejar. “Dizem que levaram ele para o Morro da Caveira”, o comentário ganhou asas e se espalhou pelas esquinas, praças e becos das imediações da sede de comando do secretário de segurança, Douto Herodes. Nas duas favelinhas agarradas como lagartixas aos barrancos nodosos e escuros que rodeiam o mal afamado Morro da Caveira houve gente que jurou ter avistado ao longe as chamas a crepitar lá em cima. Alguns, de bons pulmões, falaram ter aspirado esparsos resquícios de cinza trazidos pelo vento desde o alto da mal longínqua e triste colina. Todos, porém, 39

concordavam em que o cheiro de borracha queimada foi idêntico ao outrora percebido com inusitada frequência quando do auge daquela intensa campanha policial de erradicação da larga escória de viciados, estupradores, sodomitas, e ladrões que aterrorizavam os respeitáveis bairros dos rabinos e comerciantes. Eles, os infelizes despachados para onde a lei das sinagogas dizia ser o seu lugar — o Inferno —, podiam assim ser contemplados na manhã seguinte lá em cima, com seus membros retorcidos e empolados envoltos por fios de arame, todos eles meras carcaças humanas enegrecidas, portadoras de cabeças esturricadas onde alguns dentes arreganhados surgiam de buracos que em vida foram bocas, caladas ao final em meio a um pedido de perdão ou alguma praga.

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“Cada traição merece um preço”, estas palavras de João, aquele adolescente de língua muitas vezes bastante ferina, pensa Pedro a caminho de casa, atingiramno em cheio. Mas uma coisa, porém, ele deve creditar a João, que é tê-lo poupado diante dos demais discípulos de Messias. apesar de não poder estar seguro se, além de João, algum outro seguidor sabe ou não o que se passou quando o mestre foi praticamente arrastado até a presença de Herodes pelos cruéis homens de Caifás. Madalena estava lá, sim, ela, com toda sua beleza e determinação, a enfrentar os policiais que queriam pôr atrás das grades uma pobre menina acusada do furto de um pão. Ela, Maria Madalena, para todos uma vulgar prostituta que teria dormido com Messias, o homem que se jactava, segundo Herodes, de seguir a abstinência sexual. Pedro presenciou quando ela foi 41

escorraçada da sede dos agentes de Caifás, mas mesmo assim suficientemente forte para levar dali a pobre órfã. ‘”Aqui está o sujeitinho, senhor Secretário!”, foi mesmo assim que um dos auxiliares de Caifás apresentou Messias ao secretário de segurança pública. Pedro, em meio a um grupo de curiosos que se acotovelavam no largo saguão, buscava naquele instante se certificar se aquele homem de camisa esfarrapada e rosto ensanguentado seria mesmo Messias. Já corria no quarteirão a nova de que haviam prendido o tão falado agitador, aquele estranho primo de João Evangelista, este por sinal, segundo os sacerdotes e os burocratas da província, outro nocivo visionário. Pedro se recorda que galgou os primeiros degraus de acesso ao espaçoso saguão de entrada da suntuosa secretaria de segurança. Por uns curtos momentos 42

viu-se lado a lado com Madalena, que a cotoveladas buscava abrir caminho entre os curiosos para levar dali uma chorosa menininha Se ela olhou, mesmo de longe, para Messias, Pedro não pode afirmar com certeza absoluta porque havia muita gente em volta. Todos queriam ver o mestre agarrado por alguns guardas que, vez por outra, lhe aplicavam socos e pontapés; e quando ele caia seus agressores logo o erguiam para reiniciarem com os violentos golpes. Pedro se lembra também de ter ouvido acima de toda a algazarra a voz zombeteira do Doutor Herodes. “Só me trouxeram ele? Por que não me pegaram todos eles juntos, esses subversivos amaldiçoados?” O secretário de segurança estava de pé sobre um dos primeiros degraus da escadaria de mármore que condus ao andar 43

superior do prédio, de mãos à cintura. Aconteceu que em meio aos curiosos e agentes de segurança se encontrava um velho rabino da sinagoga existente a poucos metros daquele mesmo prédio, e de repente Pedro se viu observado por ele com insistência. Aquele par de olhos negríssimos e brilhantes, para o horror de Pedro o fez lembrar-se de um sonho em que uma ratazana o perseguia sem tréguas. Apesar de ser um homem miúdo, velho e encurvado, estando ademais imprensado pela vociferante multidão que lotava aquele átrio, o rabino, na ponta dos pés e com o auxílio dos magros braços agitados num frenesi, logrou chamar a atenção de todos ao gritar: “Ali está mais um deles! Ali, ao lado da meretriz, um lacaio do demônio!” Bastou isso para que Pedro se visse, de crivado de olhares inquisidores e posto 44

numa clareira entre as dezenas de circundantes, que num piscar de olhos abriram em volta dele um círculo que mais lhe pareceu um colar feito de olhos e bocas amaldiçoadores. “Calúnia! Mentira! Jamais vi este homem!”, Pedro respondeu alto com os olhos fixados em Herodes, que lá por trás da maré daquele agitado mar de cabeças o olhava. Pedro supôs que Messias, com os olhos inchados e a visão prejudicada pelo sangue que lhe descia testa a baixo, não o avistou naquele instante, mas uma certeza ele tem: o Mestre pôde ouvir perfeitamente a sua voz contestando conhece-lo. Messias captou todas as palavras ditas por seu querido discípulo naquele momento, mas talvez não tenha assistido à sua imediata e ignóbil retirada, desde aquele tumultuado recinto, acossado pelas

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insistentes palavras que lhe gritava o indignado rabino. “É esse aí mesmo! Prendam-no! Prendam-no!” Ainda sob um dos altos pórticos trabalhados com gravuras em alto relevo de entidades mitológicas gregas, Pedro teve seus passos embargados por outro inflamado acusador que chegou mesmo a segurá-lo pela fralda da camisa. “Não fuja, covarde! Assecla do terrorista!” Pedro parou e, com um violento empurrão, livrou-se do perseguidor, que desequilibrado caiu sentado na calçada. Agasalhado pela noite que principiava a cair sobre a Judéia, embrenhou-se pelos cantos mal iluminados daquela avenida, onde a sede da secretaria de segurança se impunha por seu volume e ostentação diante dos modestos prédios 46

comerciais e algumas residências de funcionários graduados. “Vocês todos estão loucos! Doidos varridos! Jamais conheci aquele homem!”, estas palavras bradadas, mais que um grito um choro pusilânime, foram ouvidas desde o negrume noturno por aquele homem que em vão tentou detê-lo. Pedro não reteve seus passos; não havia mais como voltar atrás e apagar a mancha ignominiosa. Ele agora se lembra de como tudo se passou naquele final de tarde e início de noite quando tudo poderia ter se passado de maneira tão diferente e de suprema honradez para si mesmo.. Deveria ter saído correndo, sim, mas ao encontro de Messias, para abraçá-lo, beijálo e dizer em alto e bom som para todos aqueles policiais e o populacho que agredia o Mestre, xingavam-no e lhe

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cuspiam, que sim, ele Pedro, é um dos discípulo de Messias, o Filho de Deus. Mas, acovardado, apressou o passo, correu mesmo, empurrou quem lhe embargava o caminho, fugiu para o mais longe possível de onde aquele homem extraordinário e único no mundo, a quem havia prometido seguir em quaisquer circunstâncias e aonde fosse, estava sendo espancado e exposto ao escárnio público. Contornado o quarteirão onde se eleva o imponente prédio da secretaria de segurança pública, palco da degradação de Messias, Pedro entrou em uma viela escura, onde suas pernas trêmulas não se desviaram a tempo de evitar o choque com uma lata de lixo, sobrevindo-lhe um tombo que fez seus joelhos doerem terrivelmente. Mal ele se levantou, viu-se surpreendido por dois ferozes cães vira-latas que logo lhe alcançaram as calças, rasgando-as, para 48

que seus afiados caninos encontrassem com mais facilidade aqueles seus músculos da perna cansados com a covarde fuga. Pedro se defendia em desespero, intentava desgovernados pontapés que nada mais encontravam se não o ar congestionado da viela decrépita. Seu corpo rodopiava sobre uma das pernas colhidas por mandíbulas cruéis, enquanto que o pé liberto fazia a dança do desespero num giro de compasso desesperado. Numa ousada tentativa de atingir a qualquer um dos agressores, Pedro se curvou e se lançou, ambas as mãos crispadas como garras, em busca do corpo de um dos animais, mas o que obteve em troca da almejada liberdade da perna enclausurada entre raivosos dentes foi ter um pulso abocanhado pelo segundo cão. A luta agora acontecia sobre a escura calçada de onde emanava o mal cheiro de restos de comida apodrecida e urina 49

humana. Os dois animais atacantes estavam agora sobre o corpo curvado de Pedro, e se mostravam cada vez mais inclementes em sua intenção desenfreada de morder, rasgar, lançar seu molho de saliva gosmenta e fria sobre a pele daquele homem. Súbito, soa um ruído de feroz vergastada, seguido do ganido de dor de um dos cães, e a um segundo estrépito, que aos ouvidos de Pedro pareceu o estalar de um longo e bem manejado chicote, ambos os cães desembestaram em amedrontada carreira, lançando para a noite seus sonoros queixumes de dor. Foi quando Pedro, sentado no cimento frio, arquejante, cheio de dores pelo corpo, procurou em sua volta qualquer sinal do inesperado atacante da dupla canina, seu anônimo defensor, mas somente o silêncio, que voltou a reinar 50

naquele beco escuro e pleno de odores pútridos lhe fazia companhia. Gemebundo, cansado, e atônito em face daquele inusitado socorro, ele se ergueu para examinar as condições em que o ataque deixou suas roupas, e mais ainda a profundidade dos rasgões e furos em várias partes das pernas produzidos pelos dentes afiados da dupla atacante. Pedro se sentia cansado, deprimido pelo ato pusilânime que há minutos atrás praticara contra Messias e a própria integridade do grupo de discípulos, mas acima destes sofrimentos residia sua estranheza quanto à origem daquela estranha intervenção vinda em seu socorro. De fato, nenhuma viv'alma se apresentava ao seu redor para se qualificar como autora das chicotadas que afugentaram os cães. Depois de mais uma vez olhar para todos os lados, e avistar unicamente o vulto da lata de lixo 51

tombada em que tropeçara antes do ataque dos cães, Pedro iniciou uma caminhada trôpega e dolorosa através das ruas escuras e desertas, sentindo-se como um navio perdido em um oceano pleno de rochedos perigosos, quando, ao final de um apertado e negro beco, brilharam as lâmpadas amareladas de uma triste e deserta pracinha. Lá mais ao fundo, semi escondido pelas copas negras de algumas árvores, aquelas letras iluminadas em azul e vermelho lhe deram o sinal característico da existência de algum estabelecimento comercial, com quase toda a certeza ainda aberto. Pedro manteve por alguns minutos, enquanto caminhava com vagar, a esperança de que aquele anúncio em neon pertencesse a uma farmácia, onde pelo menos ele encontraria tratamento adequado ao combate a eventuais doenças transmissíveis por cães vadios. Ele mal se 52

recordava se em algum dia andara por aqueles lados da província, mormente à noite, mas naquele instante sentiu pulsar no peito uma ânsia incontrolada de mergulhar em alguma espécie de mar, ou um esconderijo desconhecido e profundo onde seu sofrimento físico e moral pudesse pelo menos ser aplacado. Quando atingiu o centro da deserta pracinha, onde um chafariz ressequido produzia não mais que a caricatura de algum monstrengo em repouso, seus olhos cansados puderam divisar bem as letras desenhadas num caprichado chamariz. Não se tratava de uma farmácia, como ele chegara a desejar ardentemente, mas sim do Bar Cervantes, cujo chamariz colorido possuía, em letras menores abaixo do título, o qualificativo de “aberto 24 horas”. Um morcego em voo cego passou zumbindo a menos de um metro da sua 53

cabeça, mas isso não o assustou porque naquela noite nada mais poderia lhe causar espanto nem surpresa. Maria Madalena “Pedro, por hoje chega!”, quem diz é Madalena num tom de voz onde há medo e advertência. O aviso vem em razão de sua experiência por tantos encontros e desencontros numa vida pontilhada de esperanças frustradas e humilhações. Ela tem medo do que possa acontecer neste ambiente, o Restaurante e Bar Jerusalém, onde qualquer um, desde o gerente Zé Pelado até o lavador de pratos não hesitaria em cortar o pescoço deste velho ébrio aqui ao lado dela. Todos sabem que o Doutor Herodes , além de se rir de orelha a orelha com a façanha, daria ao autor do

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acontecido vantagens e significativas propinas. “Só a saideira, Madá, palavra, depois a gente vai pra casa, prometo”, a voz de Pedro é rouca, baixa, prejudicada pelo excesso de saliva nos cantos da boca. Madalena se recosta na cadeira metálica e abre os braços em cruz, punhos fechados num gestual de espreguiçamento. No gesto empina os belos e expostos seios, duas semiesferas alvas pontilhadas por pequeninas sardas. Inclinando-se para adiante, quase colando a testa no rosto de Pedro, ela sorri seu alvo sorriso ao segredar-lhe devagar: “Pras nossas casas, não é mesmo, meu querido?” O sorriso que Pedro deixa escapar diante da explícita insinuação de Madalena é o sorriso de um homem acabado. Seus fracos músculos faciais demonstram haver 55

perdido toda a arte do sorrir. Por seu turno o olhar de Madalena é uma mistura de profunda pena pelo homem que está à sua frente, mas não livre de um irreprimível desprezo. Calados, cada qual leva seu copo de cerveja aos lábios, momento em que apreciam num relance a monotonia do recinto. “Madalena, hoje não estou nada bem“, Pedro se queixa ao repor o copo na mesa; seu olhar mortiço está pousado no infinito. “Isso passa, meu querido. O mundo não se acabou, afinal de contas“, Madalena responde sem olhá-lo, mais interessada em chamar a atenção do garçom. “Rogério, meu querido, veja aqui por favor quanto devo“, ela estica o braço para alcançar a manga da jaqueta do

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garçom ignorando o que Pedro tenta dizer em palavras embrulhadas em catarro. “Deixa comigo, homem! Outro dia você paga o cafezinho”. "Outro dia, outro dia...", pondera em pensamento Madalena ao considerar que tanto um dia quanto o outro têm sido para ela sempre a mesma coisa. Já não mais existe razão para quaisquer fantasias ou esperanças de que um novo dia lhe traga de volta aquele olhar sincero, meigo e ao mesmo tempo determinador de todos os seus gestos e atitudes. ‘Dizem por aí que lá em cima, no Morro da Caveira, tudo se acabou, mas eu gostaria de ter forças o bastante para convencer a todos, a mim mesma em primeiro lugar, que aquilo que dizem ter acontecido foi apenas o princípio. Este pobre e derrotado Pedro, com seus olhos de remela e baba aos cantos da boca, 57

muitas vezes chega a me dar nojo. Mas não somente ele me causa esta estranheza, aliás repulsa mesmo. Onde andam Tiago, João, André e todos eles? Quem fez alguma coisa, removeu uma palha, clamou por socorro a favor de Messias? Nada disso, pois correram todos, cada qual para um lado que nem barata tonta. Culpam agora a Pilatos e seu secretário de segurança, aquele sanguinário Herodes, que dizem ter deixado Caifás fazer o que fez. Mas sabem que no fundo Pilatos não passa de um pau mandado do Imperador, uma simples marionete dos poderosos estrangeiros. Meu adorado Messias ficou sem ninguém mesmo, só ele e no deus em que ele acreditava’ “Obrigada, aqui está”, Madalena passa às mãos do garçom o valor da conta apresentada, e acrescenta:

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“Ah, pergunta ao Honorino se ele viu o Gracindo por aí, por favor”” “Deixa pra lá, Madalena, a gente pega um circular mesmo!“ intervém Pedro começando a se erguer da cadeira numa dificuldade que não escapa à atenção de Madalena. “Que ônibus que nada, querido! Você está lá se aguentando nas pernas. Andar cinco, seis quadras pra esperar um circular que só aparece de hora em hora“ Diante desta repreensão Pedro se deixa cair pesadamente na cadeira, ombros descaídos, olhos postos nos quadriláteros negro e azul do escuro piso do restaurante. "Me aguentando das pernas!!!", Pedro medita na observação de Madalena. ‘Não é apenas das pernas que mal estou me aguentando, não! É desta minha vida toda, arrasado, mal dormindo, indo pra cama tarde da noite, quase sempre bêbado, pra 59

ter de acordar no dia seguinte e enfrentar aquele trabalhinho miserável. Sentir aqui na nuca os olhares de gente que sabe como me portei com ele, pessoas que jamais me perdoarão. À noite, o sono não vem nem com o álcool. Parece que o vejo em meu quarto, com aquele olhar de perdão e ao mesmo tempo de quem já sabia como eu me portaria quando a hora chegasse. Mas o pior de tudo mesmo é estar junto a Madalena, esta mulher que o amou e foi amada por ele, a quem eu desejo. Esta mulher a quem encontrei depois de meu ato covarde para com Messias, e que me acolheu como a um cão sarnento e sem dono, que muitas vezes me olha no fundo dos meus olhos sem me dizer uma palavra. Quando ela me olha daquele jeito, eu sei que ela busca me convencer de que não poderei me deitar com ela porque fui um covarde para com seu imenso amor. Por 60

isso, eu sei, ela me diz sem abrir a boca que minha covardia merece dela toda esta atenção com que finge me perdoar, embrulhada nessa zombaria disfarçada de companheirismo. Castiga-me em se fingir de fácil, e brinca com esta minha inesperada e traiçoeira impotência. ‘Não vejo outra saída se não me afogar no cheiro dela, sentir seu hálito de hortelã, abraçá-la como irmão, olhar-lhe os seios, o ventre, as pernas longas e bem desenhadas, pegar em suas mãos e fazer meus dedos passearem por entre sua enorme cabeleira, deslizar minhas unhas em todos os seus pelos para depois acabar chorando e vê-la partir com uma expressão de seriedade na face, mas sorrindo por dentro, afogando mil gargalhadas diante de minha sorte maldita’ “Madalena, o Gracindo não está lá no ponto, não“ aparece junto à mesa 61

Honorino, mão esquerda nos quadris, do braço direito pendente um guardanapo, todo o seu gestual de maneira a demonstrar sua extrema má vontade em atendê-la. “Obrigada, Honorino” “Vamos, Pedro, a gente arranja outro táxi por aí”. Embora não olhe para trás enquanto se dirige para a saída do recinto, quase arrastando Pedro por um dos cotovelos, Madalena sabe estar sendo alvo dos olhares de deboche do efeminado Honorino. Mas isto é um percalço do qual sabe que jamais poderá se ver livre enquanto viver aqui na Judéia. As zombarias deste garçom, que à boca miúda comenta-se viver amancebado com Gracindo, o taxista, são como inofensivos sussurros frente aos rugidos e uivos dos apaniguados de Pilatos. 62

~‘Não me perdoam por ter sido eu aquela pecadora, no dizer deles, a quem Messias amou assim‘, reflete ao pisar na calçada.. Aqui fora, a noite já é dona e senhora das ruas e vielas da amortecida Judéia, plena de cães vagabundos se esgueirando por entre muros e postes, e casas de beira de rua onde suas tristonhas janelas espreitam um céu de lua cheia. Madalena e Pedro pôem-se a caminhar, ela desenvolta e fagueira, ele, vez ou outra trocando as pernas. A cada tropeço uma praga baixa é soltada, quase totalmente silenciada por sua grossa saliva. Ao longe um rádio lança a voz de um locutor nervoso. O futebol enche neste instante as mentes de alguns habitantes desta pacata província do grande império europeu, imagina Pedro de repente retirado de sua carapaça letárgica. 63

“Já deve ter começado o segundo tempo“, diz mais para si mesmo. “Não sabia que você gosta de futebol“, retruca sem olhá-lo, Madalena. “Quando era jovem acompanhava mais. Agora, ouço de vez em quando, mas só quando é um bom clássico”, a informação vem acompanhada por um encolhimento de ombros. Madalena estanca o passo para olhálo. “Isso foi antes de você conhecer Messia?“, ela faz a pergunta enquanto pousa suavemente a mão nas costas dePedr, abaixo da linha dos ombros, em quase um arremedo de abraço. Pedro não diz nada, e ambos retomam a caminhada, seus passos ecoando livres dentro da noite. Um automóvel vindo em sentido contrário reduz a marcha ao

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emparelhar com a dupla, e alguém grita desde seu interior: “Madalena! Oh Madá!” Ambos de pronto identificam Gracindo, que ao volante e pondo a cabeça para fora do veículo deixa-se identificar por sua larga cara amorenada sob a iluminação de um poste não muito distante. “Olá, meu querido”, responde Madalena à saudação, e logo acrescenta. “Está indo pra onde, Gracindo?” “Pra onde você quiser. Passei agorinha mesmo lá no Jerusalém e disseram que você estava me caçando!” “Roda lá pra casa, homem. Você foi a salvação da lavoura!“, ela ordena já com a mão na maçaneta da porta traseira do carro, a um só tempo agarrando Pedro pela manga da camisa. Ao curvar-se para

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embarcar, Pedro percebe um brilho travesso no olhar do motorista. Durante alguns instantes seguem os três em silêncio no táxi que trilha os tristes caminhos desta feia parte da Judéia, com suas ruas e vielas margeadas por habitações humildes e em quase nada distintas umas das outras. São as moradias com que o governo da província agracia a quem limita sua existência dentro das normas superiores ditadas pelo governador Pilatos e seu secretário de segurança Herodes Antipas. “Sabem quem eu vi hoje lá no hospital?“, Gracindo quebra o silêncio dominante no escuro interior do veículo. “Hos-hospital?“, espanta-se Madalena mas sem voltar seu rosto, distraída em acompanhar a monótona repetição dos postes distribuidores da luz mortiça reveladora de uma sucessão de portões 66

baixos, latas de lixo e fantasmagóricos tufos de capim entre os muros e as fendas das calçadas. “É! Estive lá de tardinha levando um passageiro“, relata Gracindo de olhos fixos no caminho mal iluminado. Como seus dois passageiros não demonstram interesse em saber quem o motorista viu no hospital, ele p: “O Seu Zacarias e a dona Isabel” “O que houve com eles?“, Madalena diz, agora sem ocultar seu interesse, buscando divisar no espelho retrovisor o rosto de Gracindo. “Sei bem, não, mas parece que não foi coisa séria. Não demoraram muito tempo lá” ‘Dona Isabel, da última vez em que vi essa mulher, ela estava que era um caco só, acabadíssima, talvez pior do que eu’, quem assim medita é Pedro com a cabeça 67

pendente para a frente e o queixo quase a tocar o peito. ‘Também, não era para menos depois do que fizeram com o filho dela. Assim, sem mais nem menos, cortarem a cabeça do homem, tudo por causa de uns comentários sem muito fundamento. Mas acho que não foi uma coisa assim apropriada para ele esse negócio de sair por aí a criticar logo quem — Herodes! Mas a provocadora de tudo foi aquela mulher-víbora chamada Salomé. De que adiantou o Evangelista fazer aquilo? Mexer com o poder do Imperador e desta gente da Judéia só pôde dar no que deu. A Salomé está por aí, pra quem quiser ver, cada dia mais linda e enfeitiçadora, uma verdadeira Jesebel para quem pagar seu preço’ Pedro vai remoendo estas ideias alheio ao que se passa à sua volta.

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“Eu vi a Isabel há mais ou menos uma semana atrás, e ela me pareceu uma morta viva“, a voz de Madalena interrompe as divagações de Pedro. “Não é pra menos, perder um filho daquele jeito“, Gracindo opina em voz baixa pondo os olhos em Madalena através do espelho. “Pois é ...“ O táxi trafega por mais uns dez minutos conduzindo seus silenciosos ocupantes. Gracindo está ciente da inutilidade da perseguição de uma possível troca de opiniões sobre o ocorrido com o filho de dona Isabel, enquanto Pedro permanece afundado em amargas recordações jamais afogadas nos copos de cerveja. Madalena conserva o punho comprimido contra o peito, num concentrado esforço para conter seu calado pranto. 69

Afinal, após uma curva fechada para a direita, Gracindo faz parar o veículo em frente a um sobradinho acanhado espremido entre um decrépito galpão e o muro de um terreno baldio. “Diz quanto deu aí Gracindo?“ diz Madalena enquanto recolhe a bolsa caída no piso do carro. “Por favor, Madalena, deixa ...“, Pedro procura protestar com o braço esquerdo molemente apoiado no ombro de Madalena. “Dez césares estão bem, Madá. Dá pra gasolina“ afirma Gracindo, corpo girado em direção ao banco traseiro, mão entreaberta à espera. “Só para a gasolina, não, meu querido“, Madalena retruca enquanto põe um dos pés para fora do veículo. “Te pago o preço justo!”

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“Palavra, Madalena, dez é o preço mesmo“, Gracindo tem a voz embargada “Pega aqui por favor“, Madalena estica o braço direito para que Gracindo alcance duas cédulas, ao mesmo tempo em que mantém aberta a porta traseira para que o trôpego Pedro desembarque. “Ande logo, Pedro, que o nosso amigo tem que trabalhar” “Ué! Eu não levo ele, não?“, grita Gracindo. “Não. Pedro ainda vai tomar um cafezinho”, a voz de Madalena sai com floreios burlescos sem que ela possa sufocar uma risadinha baixa e triste enquanto espera que Pedro abandone o veículo. O táxi arranca, mas o ruído do motor não abafa o dito debochado de seu motorista. “Só um cafezinho, hein!” 71

Aos ouvidos de Madalena outros sons veem com a despedida de Gracindo. Parecem-lhe ter sido pelo menos umas duas gargalhadas libertadas janelinha do táxi a fora. “Que os deuses perdoem esse infeliz sodomita“, enquanto Madalena se desabafa aprecia a escurecida fachada da moradia à sua frente, onde outrora aconteceram aquelas tantas coisas inesquecíveis. A Queda Deitado de bruços com o rosto enfiado no lençol amarrotado, a primeira sensação de Pedro é que sua cabeça se acha comprimida contra o leito de um modo tal que o impossibilite erguer-se ou mesmo mudar de posição. Este leito não lhe é nada estranho; já dormiu aqui outras vezes, conhece este leve aroma de 72

amêndoas trituradas. Lembra-lhe os pães que sua mãe preparava para ele e seus irmãos antes da partida de todos para compartilharem as agruras do trabalho no mar com o pai. Pedro não sabe por que se lembrou agora desses detalhes, pois há anos que se desligou de toda a família para seguir o mestre Messias. Mas neste instante não é somente o aroma de amêndoas amassadas que lhe ronda as narinas, pois há alguma coisa adocicada, que de alguma forma para Pedro a identifica como produto do ser humano, não associada a excrementos, tampouco a sangue, catarro, nem suor. Ele gira com dificuldade a cabeça para o lado contrário àquele em que despertou há pouco mais de um minuto, e quando assim o faz alguns fios dos longos bigodes se colam aos pegajosos lábios. Instantaneamente, o desconhecido odor se 73

metamorfoseia em paladar num gosto que lhe penetra mucosas a dentro e lhe empapa as laterais da língua, atingindo-lhe o palato. O vômito, desde as profundezas de suas entranhas forradas em cerveja, dá seus primeiros sinais de revolta e vem se espremendo quente e azedo por entre os visguentos lábios. Pedro se convence de que aquela escura forma geométrica posta ao alcance de seu braço na beirada do leito abriga todos os segredos e nascedouros dessa mistura de cheiros e sabores. O triângulo, onde em sua visão distorcida parecem pousar dezenas de brilhantes e agitados insetos negros, vai paulatinamente se revelando ser de fato curtos e encrespados tufos de um pelo negro banhados em suor. Gotículas prateadas tornam todos aqueles montículos num ajuntamento de asas de zangões apalermados. 74

Conhece aquela nudez em todas as suas certezas e incertezas, mais ainda o palmo compreendido entre os crespos fiapos alinhados num triângulo de base invertida até o umbigo feito ao jeito de um olho de pálpebras sonolentas. A Pedro são bem familiares todos aqueles espaços epidérmicos abrangentes dos quatro pontos cardeais daquele corpo ali, com suas protuberâncias e poros, onde em manhãs frias rebentam milimétricas partículas sebáceas. Suas curtas unhas lascadas e descuidadas já se familiarizaram com o gostoso roçar meditativo de todos estes detalhes que estão postos neste instante à sua contemplação. Maria Madalena, de joelhos dobrados e sentada sobre os calcanhares, numa posição que somente o faz recordar heréticos e nauseantes idólatras, revela-se ocupada em separar e dobrar pequenas 75

peças de vestuário feminino. Ele procura melhor se ajeitar, sair desta posição que o impede ver melhor à sua volta e, mais ainda, contemplar o rosto daquela que sabe agraciá-lo com as únicas migalhas de prazer físico às quais sua acentuada derrocada física e emocional ainda pode alcançar. Quer olhá-la bem dentro dos olhos e sem palavras compreendê-la, enxergar-lhe inteiramente a alma e saber o porquê dessa concessão a mais outorgada na noite que já se foi. O debochado Gracindo gritou — “O cafezinho" —, pois bem que poderia ter aquele atrevido sodomita previsto, no momento do grito zombeteiro, a dádiva de alguma forma oferecida dentro dos olhos vivos e brilhantes dela. Ali estão, portanto, as marcas do adivinhado prêmio em forma de odores em suas narinas e de um distante sabor em seus lábios. 76

“Pensei que não fosse acordar nunca!”, vem-lhe a voz num tom alegre, inocente e cristalino. Com vagar ele força os antebraços para erguer o tronco e girar o corpo na direção de Madalena, quando sente o deslizar sereno do lençol que lhe escorre desde os ombros rumo à cintura para fazêlo sentir frio e perceber-se despido. “É, dormi demais“, diz enquanto tenta puxar o lençol para se proteger contra um frio repentino, intentando a priori não se expor por muito tempo àquele olhar capaz de transmitir tanto o amor quanto o desprezo. “Que horas são?” “Não sei, estou sem relógio” a resposta de Madalena coincide com um farfalhar de panos sacudidos no ar, toda ela concentrada em suas rotineiras tarefas domésticas. 77

Lá fora soa o barulho de um veículo que passa apressado, com suas rodas estrondando no calçamento irregular da rua, misturado aos gritos de crianças bem junto à janela, onde uma cortina envelhecida se remexe molemente ao sabor da leve brisa invasora do quarto. Pedro tosse e puxa um pigarro engolindo o gosto de um vômito reprimido. Lembra-se de outras ocasiões neste mesmo quarto, quando ataques diarreicos contribuíram para calcá-lo ainda mais sob a dependência das esmolas de palavras piedosas e encorajadoras de Madalena. “Tenho que ir embora”, ele diz timidamente sem olhar para o rosto dela, observando com mais atenção suas próprias roupas — a camisa amassada e as calças de tecido grosso e escuro lançadas sobre o assento de uma cadeira. Madalena, em movimentos rápidos, ergue-se da 78

beirada da cama e, por um momento enquanto se afasta, uma réstia de sol que repousava sobre o armário alcança-lhe o corpo nu. Um arranhão de luz dourada risca de imediato sua coluna desde os omoplatas até se aninhar entre um par de nádegas robustas e douradas como campinas cobertas em flor de linho ao sol nascente. ‘Tenho que ir embora’, esta frase, ouvida por Madalena de Pedro, sempre funcionou como uma espécie de senha para que ela o deixe mais à vontade após as noites de arremedo de amor, quando Madalena se afastando permite que ele vista um corpo de que sente vergonha, ou ódio algumas vezes. É um sentimento que se exacerba como uma rapsódia crescente ao compasso do que lhe provoca a contemplação daquelas coxas e nádegas em retirada. Com mais nada, reconhece 79

Madalena, pode ela brindar a Pedro, com a suspeita de não existir, em toda a Judéia, mulher alguma disposta à concessão gratuita desses simulacros de amor a este homem derrotado — Pedro, o tíbio amigo de Messias e, para muita gente, tão traidor quanto Judas Iscariot. Aquelas outras, as que vegetam e chafurdam no vício, as herdeiras de Jesebel, as prevaricadoras arrecadadas e alimentadas para os bordéis de Herodes, as meretrizes dependentes do vício comercializado por Salomé, as prostitutas e feiticeiras que abrigam escorpiões sob suas saias, estas podem aceitar a Pedro do jeito em que ele se encontra. Madalena as conhece e sabe que é por todas odiada, ou no mínimo desprezada, porque apesar de na língua dos idólatras e dos grandes sacerdotes estar classificada como uma rameira a mais, foi amada por Messias, aquele homem único e 80

insubstituível em toda a face da terra e que jamais conspurcaria seus límpidos olhos diante das apodrecidas mensageiras do vil pecado vendido. Um pranto e duas Marias Duas leves batidas na porta tiram de Madalena a atenção sobre a tarefa doméstica de que se ocupa no momento, a retirada das pequenas impurezas misturadas aos grãos de lentilha postos em uma peneira de cânhamo equilibrada sobre os joelhos. A tarde já é finda. Reina o silêncio no exíguo quarto iluminado por uma lâmpada segura pelo longo fio que desce do teto desprovido de forro. “Sim, quem é?”, ela faz a pergunta sem tirar os olhos dos grãos de lentilha. “Sou eu. Maria”, diz a voz num timbre de cansaço. 81

Com vagar Madalena coloca a peneira sobre a mesa estreita, descruza as pernas e ajeita as dobras do vestido. ‘Maria, essa pobre e miserável Maria’, pondera acerca visitante a quem ela tem ultimamente evitado encontrar, mudando até de calçada, abaixando a cabeça no mercado ou fingindo pressa. A mãe dele, uma mulher com o coração, sabidamente por todos os habitantes da Judéia, despedaçado. Maria, aquela viúva conduzida à execração pública por Pilatos e todos os algozes de seu filho, esquecida até por muitos que cerraram fileiras em torno de Messias, sumidos na poeira do tempo. “Um instante, Maria”, grita enquanto se ergue, sabendo-se condenada a engolir e sufocar nas entranhas muitas lágrimas e queixas que também são suas. “Entre, Maria” 82

Com a entrada da visitante penetram ao mesmo tempo no aposento sons de grilos e ruídos maiores associados ao movimento humano da vizinhança. Maria não é mais que um pequeno vulto coberto de negro, o que a faz assemelhar-se às demais sombras reinantes no interior do pequeno quarto-e-sala de Madalena. Trocam os protocolares beijinhos na face. De início apenas o rápido arrastamento de uma cadeira, oferecida por Madalena à visitante é o único sinal de vida no aposento. “Estas lentilhas têm mais terra do que não sei o quê” diz Madalena mais para ter o que dizer. “É, está tudo cada vez mais difícil”, a voz de Maria é baixa e fatigada. Madalena toma assento ao pé da cama, móvel que juntamente com um estreito armário possuidor de uma porta 83

espelhada contribui para a qualificação do local como quarto-e-sala, e se volta em direção a Maria, que à primeira vista não lhe parece estar confortável. Com seu torso murcho como que espremido entre a cadeira rústica e a mesa, e o longo xale negro a encobrir-lhe quase que totalmente, Maria se mantém inerte. As laterais de sua face e da fronte lembram um mapa apergaminhado pleno de vincos e rugas, e alguns duros pelos produzem uma sombra melancólica no queixo estreito e sobre o lábio superior . Seus olhos estão baixos, mal revelados sob as pesadas pálpebras que aparentam a proximidade de sono, dirigidos para a parda toalha de linho que cobre parte da mesa. Madalena cruza as pernas e eleva a mão direita ao alto do crânio, deixando-se por alguns segundos a caçar imagináveis fontes de coceira ou algum cisco 84

escondido na revolta cabeleira. Ela sabe que a vinda de Maria a estas horas, já ao anoitecer, não tem nada de visita social. Na verdade gostaria que esta mulher não mais lhe aparecesse, pois que lhe é imensamente doloroso voltar a tocar em assuntos relacionados com Messias. Está mais do que evidente que Maria veio para falar dele, lembra-la do filho e na certa cair num pranto prolongado, prostrahdo-se à espera de piedade e conforto. Madalena gostaria de poder amar a mãe de seu sempre adorado Messias, uma mulher precocemente envelhecida que neste momento está ali sentada com os ombros vergados, suas mãos recolhidas sob a mesa, toda ela uma imagem de derrota e desamparo. Mas está além de suas forças, é a certeza que a domina, poder abraçar e beijar terna e carinhosamente Maria como se esta fosse sua própria mãe. Gostaria de 85

poder enxugar as tantas lágrimas que já viu cair daquele rosto amassado e trespassado por rugas negras e profundas, e até mesmo ter a coragem de lhe pedir perdão por tanto distanciamento. Mas Madalena se reconhece portadora ainda da crueza e insensibilidade de que as meretrizes não conseguem se limpar por mais que se banhem nas frias águas cristalinas do arrependimento. Coragem lhe falta para lançar-se aos pés desta mulher e reconhecer-se uma meretriz, uma ordinária e desprezível pecadora indigna da misericórdia divina, bem pior do que a peçonhenta Jesebel. Ela sofre a dor do fracasso, sem coragem sequer para se olhar no espelho neste momento, mais ainda para rogar a Maria, mãe daquele homem a quem ela mais amou na vida, que a perdoe por conceder esmolas de prazer justamente

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a Pedro, aquele triste e acabado homem que renegou seu perante os carrascos. Vêm-lhe à memória os gestos e a mistura de soluços e gemidos de um Pedro alcoolizado, com seu rosto escondido e babado a fuçá-la como um porco em meio à lama. Esta lama está aqui neste cômodo decrépito, mais precisamente encharcando estes lençóis em que toma assento para agora receber a derrotada Maria, mãe de Messias, aquele que a entronizou como a mulher mais pura de toda a Judéia. “Como tem passado, Maria?” Madalena acha que deve facilitar tudo; sabe qual o rumo que a conversa entre as duas tomará, e por isso julga que quanto mais cedo começar mais cedo terminará; mas a resposta da visitante não vai além de um ligeiro encolher de ombros.

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“Você aceita um pouco d'agua?”Está fresquinha” “Não, obrigada” responde Maria alçando os olhos rumo a um ponto qualquer dentro do quarto. “E sua irmã, melhorou?”, quer saber Madalena. “A Isabel?”, Maria, desta vez, encara Madalena, e complementa. “A gente quase não se vê” “Fiquei sabendo que ela teve que ir pro hospital um dia desses”, ela prossegue em sua tentativa de descerrar mais uma vez as cortinas desse desagradável palco dos queixumes e lamúrias que a espera. “Eu quase não saio, ela tem mais tempo e disposição do que eu para andar por aí se queixando com todo mundo!”, as palavras ditas por Maria saem, desta vez, livres de qualquer cansaço. Madalena pressente com isto o prenúncio de uma 88

tempestade da qual não poderá escapar. Por isso procura se armar de calma e disposição para ouvir o que já espera e talvez mais alguma coisa de novo. Pode ser até, calcula, que os dedos em sua ferida sejam desta vez apertados com muito mais força e sem clemência alguma. Madalena muda de posição na extremidade da cama e senta-se mais inclinada para a frente, pois não quer perder nenhum brilho nos olhos de Maria, e muito menos relaxar na observação dos menores gestos e expressões desta mulher que lhe causará mais sofrimentos. “Eu também não vejo a Isabel há bastante tempo”, diz de um jeito como se calculasse esse mesmo tempo, e adiciona. “Foi um motorista de táxi que me falou que viu sua irmã lá no hospital”

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“Hã”, resmunga Maria, mas após alguns segundos de hesitação, apruma-se na cadeira e fala pausadamente: “Madalena, Tiago, Joãzinho, mais o André, já me disseram, mais de uma vez, que continuam a trabalhar naquilo que meu filho ensinou a eles, mas …” “Fico feliz em saber, Maria, mas o que tem mais além disso?”, Madalena procura facilitar, com estas palavras iniciais, a tarefa de que sabe ser Maria portadora, embora pressinta naquela interrupção algo mais nunca antes ventilado, quiçá mesmo durante as maiores crises de choro e desespero da mãe de Messias. “Todos eles se queixam de como virou a vida de Pedro, mais ainda o André, que é irmão dele” “Como assim, do que reclamam eles?”, Madalena calcula que pela frente 90

virão ondas mais violentas e até então inesperadas na tormenta que involve sua existência e ameaça tragar o resto de sua calma. Maria não responde de pronto, mexese na cadeira e ajeita o grosso e longo véu sobre a cabeça. Madalena espera e a olha fixamente. “Ah..., dizem que o Pedro abandonou a causa e só quer saber de beber e ...”, Maria fala de olhos baixos, faz passear as pontas dos dedos entre as dobras da toalha de mesa; toda ela é só desconforto neste instante. Madalena chega a imaginar que Maria vai se erguer e abandonar o aposento, temerosa de sua reação, pois é certo que a mãe de seu amado Messias não se ilude quanto à delicadeza do assunto. Mas o primeiro passo foi tomado, e Maria não duvida de que Madalena esteja preparada para ouvir o restante. 91

“O que mais eles falam, Maria? Você veio aqui para me contar isso, não é verdade?” “Na verdade, Madalena, quem mais se queixa é o André. Ele fala para os companheiros que o irmão dele só quer saber de andar nos bares e que anda atrás de você como um cachorrinho”, Maria solta a revelação e de imediato se debruça sobre a mesa com tamanho ímpeto que um de seus braços faz oscilar a bandeja de lentilhas, quase lançando-a ao chão. Madalena se ergue de um salto de sobre a cama e se põe a caminhar pelo quarto-e-sala em largas passadas. “Pedro e eu; eu e Pedro, não é, Maria? Eu sabia que mais cedo ou mais tarde iriam falar a respeito de nós dois!”, sua exclamação é raivosa. Ela não se pode conter, apesar de não ter sido colhida totalmente de surpresa, mas o que mais a 92

repugna é não poder afastar da memória, excluir definitivamente da retina, os contornos da hirsuta cabeça de Pedro num esbanjamento que a homem algum Madalena jamais proporcionou. Por segundos tem seu braço direito movendose rumo às costas recurvadas de Maria; e parece-lhe que seus dedos, suas mãos, seu braço inteiro, todo esta o seu corpo se rebelou contra si mesma e intenta se aconchegar às costas da pobre Maria num carinho que a Madalena repugna conceder. Os soluços de Maria persistem, suas costas são presas de um repetido tremor como se dali fosse explodir a qualquer momento um verdadeiro vulcão que lhe rompesse as carnes em lavas de angústia. Enquanto isso Madalena, de pé, aguarda a melhor oportunidade para prosseguir no diálogo que, de antemão, ela sabe, trará a estas duas mulheres apenas mágoas 93

calcadas em imagens e episódios de triste memória. Maria agora se apruma na cadeira, afasta o magro peito da mesa, e assoa com vigor o nariz numa ponta do longo xale. “Madalena, sei que você não...”, volta a falar Maria, que logo se cala. Madalena percebe que a outra quer vê-la de frente agora, olhá-la nos olhos, e por isso contorna o corpo convulsivo da fragilizada mulher, voltando a assumir a mesma posição em que se encontrava ao início da conversa, sentando-se à beirada da cama com o torso retorcido de frente para Maria. “Eu o quê, Maria? Pode dizer” O minuto em que Maria permanece calada, mantendo ainda entre os dedos da mão direita a ponta do xale onde limpou o muco do nariz, lhe parece a uma eternidade.

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“Meu filho, você sabe, se afastou de mim, vivia apenas para a luta que era, para ele, tudo na sua vida, enquanto eu fiquei sozinha, uma mulher viúva, sem ninguém”, diz pausadamente Maria de olhos fixos no chão, dando a impressão a Madalena que voltará a cair em prantos. Mas após esta mera impressão ergue a cabeça e deixa que seus olhos passeiem em volta sem detê-los diante de Madalena. “Messias não abandonou você, Maria, mas foi ele, ele sim, que foi abandonado por todos, até mesmo por seus discípulos”, Madalena põe na voz a melhor dose de neutralidade de que se acha capaz neste instante. Sem dar oportunidade a Maria de argumentar, ela adiciona: “Pelo que sei, apenas João quis seguir com ele para o Morro da Caveira,

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mas o resto meteu o rabo entre as pernas, sumiu todo mundo” “Ele era meu filho, meu único filho, estava vivendo apenas para a causa que ele jurou defender, mas não podia, não podia mesmo desprezar a própria mãe, Madalena. Não podia!”, estas palavras saem num atropelo lancinante. “Ele sempre falou de você com muito carinho, com amor, acredite”, Madalena fala mansamente. “Não, não! Sempre que eu e os filhos do pai dele íamos visitar Messias ele nunca tinha tempo para nós, mandava dizer que a família dele eram aqueles que seguiam ele por toda a parte” “Maria, vamos ser claras as duas, uma para a outra”, enquanto fala Madalena gesticula com a mão direita erguida, a palma voltada para adiante.

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“Eu não posso responder pelas atitudes que Messias tomou em vida e muito menos pelo procedimento atual do Pedro” “Mas eu não estou acusando você de nada”, a voz de Maria segue alterada, nervosa, ligeiramente interrompida quando funga os resquícios do muco gerado pela crise de choro. “Você chegou aqui falando que tem gente comentando que Pedro só faz é beber e andar atrás de mim, não foi isso mesmo?”, Madalena reforça as palavras com palmadas sobre a perna esquerda dobrada, mantendo o tornozelo escondido sob as nádegas. “São os outros que falam, é Tiago, é André também” Para Madalena é evidente o embaraço de Maria, e por segundos atravessa em seu pensamento a vontade de parar com este 97

diálogo cujas consequências, bem pode calcular, serão apenas mais mágoas e lágrimas, talvez até dela mesma também. A figura de Maria, ali sentada e enrolada em panos negros, como se biparte neste instante entre o que de mais sofrido pode haver na mãe de um filho morto violentamente e, de outra face, o aspecto repulsivo de uma mulher porta-voz de intrigas com o nome de seu sempre amado Messias. “E o que esses outros sabem de mim, de Messias, de Pedro? Conhecem por acaso, essas línguas venenosas, o tanto de amor que eu dediquei a seu filho, Maria, um amor incomparável, sem enganos? Um amor espiritual que jamais existiu entre um homem e uma mulher, sem posse, livre de ambições carnais e imune a todos os inimigos e a todas as más palavras e ações

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vis? Um amor sem passado, presente, e futuro, Maria?”. Enquanto fala Madalena vai descruzando as pernas e se erguendo da cama para se colocar de pé diante da mesa, a poucos palmos à frente da ora assustada Maria, que se recosta na cadeira e ergue a cabeça. “Madalena, mas eu ...”, a voz de Maria é quase um gemido. “Ouça-me bem, Maria, ouça uma mulher que foi prostituta, sim, mas libertada da execração pública e salva da morte vil por Messias, o seu filho, Maria!”, Madalena tem a voz embargada, começa a temer cair nas malhas de uma emoção que a conduza ao pranto, pois não gostaria que Maria visse suas lágrimas, porque lá no fundo de sua alma prossegue a luta ferrenha entre uma piedade que gostaria de transmitir à mãe de Messias 99

contra seu orgulho em mostrar-se vencedora diante de todos. “Saiba você muito bem, Madalena, que eu jamais pude compreender por que meu filho enfrentou toda a Judéia para livrar você das pedras!”, grita Maria, que de imediato se levanta e empurra a cadeira. Madalena, surpresa, dá um passo atrás temerosa desta mulher que, neste instante, não tem nada daquela recurvada e murcha viúva, a mãe de Messias. Ergue-se agora uma outra Maria, revoltada, desafiadora mesmo, e Madalena se sente perdida; assaltam-na dúvidas de como prosseguir na discussão. “Tem horas que chego a admitir que realmente o seu filho não deveria ter me livrado da condenação, Maria” No semblante de Maria se mostra por inteiro o sinal de que acaba de ser

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surpreendida por uma confissão de Madalena. “Pelo amor de Deus, Madalena, eu não guardo nenhum rancor contra você”, retruca Maria com enquanto se concentra em repor a cadeira para junto da mesa e, ato contínuo, ajeitar um dos lados do xale que havia quase que inteiramente se desprendido liberando alvoroçadas mechas de cabelos bem esbranquiçados. “Fico feliz, Maria, em ouvir você falar o nome de deus, qualquer um que seja”” As duas mulheres ficam em silêncio: Maria, imóvel, retesada, ambas as mãos postas sobre o espaldar baixo da mesma cadeira que ela há instantes atrás empurrara com violência. Madalena, também de pé, massageia os pulsos com dedos nervosos.

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É Maria quem afinal rompe o silêncio: “Eu jamais me afastei de Deus, Madalena” Madalena afasta-se em direção ao leito, senta-se na beirada do colchão e se põe de torso avançado e cotovelos fincados sobre os joelhos. Sente-se de repente muito cansada, desanimada em prosseguir com um diálogo que, para ela, já se mostra por demais cruel. Por isso prolonga seu mutismo na esperança de que Maria volte a falar; mas esta não dá sinais de querer prosseguir na discussão; deixa-se permanecer imóvel, envolta no baço foco de luz que desce da única lâmpada existente. Ambas as mulheres já estão convencidas de que qualquer outra palavra soada nada acrescentará ao orgulho de uma ou de outra como se fosse um trunfo

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garantidor de uma retirada vitoriosa no embate. “Madalena, eu já nem sei mais por que vim aqui”, Maria fala envolvendo as mãos no xale, voz baixa, fatigada. “Se você não sabe, eu muito menos”, ditas estas palavras, Madalena contorna a mesa, passa por Maria sem olhá-la e se dirige para a porta, ansiosa, mais do que nunca, em voltar a ficar sozinha e poder derramar todo o pranto que lhe ribomba dentro do seu peito ansioso por explodir num lamento em busca de piedade. Mas ela sofre por saber que apenas seu amado Messias poderia, mais uma vez em sua vida , conceder-lhe o conforto piedoso de que carece. A caminhada de Maria até a porta lhe parece durar uma eternidade, enquanto observa este alquebrado vulto de uma pessoa por quem, tem a certeza, deveria 103

nutrir pelo menos algum carinho. A mãe de seu adorado Messias passa diante dela como se fosse uma frágil embarcação que atravessa um lago de águas poluídas. “Então fique com Deus, Madalena”, Maria se despede, quando Madalena pode vislumbrar em seus olhos tristes apenas humilhação e arrependimento. “Vá em paz, Maria!” Madalena fecha a porta com a sensação de que em menos de quarenta e oito horas saíram desta humilde habitação duas pessoas que lhe deixaram cravados em seu coração espinhos difíceis de ser retirados. Sente-se atingida na alma por uma dor incomparável com qualquer uma das muitas dores que sofreu na vida. Repugna-lhe reconhecer que se vê neste momento envolta em uma camada lodosa cuja matéria prima é sua vergonha. Madalena agora é apenas um sentimento 104

de asco por seu corpo, este mesmo conjunto de pele, ossos, gordura, nervos, carne e pelos com os quais jamais se importou quando por muitos anos eles foram usados, cuspidos e lambuzados por todos os tipos de matérias passíveis de ser expelidas pelo corpo humano. A diferença é que desta vez o que provocou sua repulsa foi o fato de ela se rebaixar em desprezo, raiva, maus tratos, zombaria e desfrute contra duas pessoas que muito significaram em amor e dedicação para um homem que foi tudo na vida dela. Os desgrenhados cabelos de Pedro no ato vil e os olhos tristonhos de Maria ao se retirar ficarão por um largo tempo colados em sua retina e pulsantes dolorosamente dentro de seu coração. Sem pressa ela retoma a tarefa interrompida de separar os bons grãos de lentilha pela chegada de Maria, trabalho 105

que a faz lembrar que amanhã terá que retornar ao posto de abastecimento para receber seus cupões de alimentos básicos concedidos pelo governador Pilatos aos habitantes da empobrecida Judéia. Queixas André estira as longas pernas sobre um pequeno e tosco banco de madeira; sente-se fatigado pela longa caminhada empreendida desde o amanhecer, e agora, afinal alcançado o objetivo da longa caminhada, medita antes de qualquer palavra ao velho Lucas. Após aquele encontro com Pedro, Tiago, João, Bartolomeu, e Natanael, para ele uma reunião absolutamente fracassada, ele sentiu necessidade de ouvir algumas palavras de Lucas. André se ressente da visível ameaça de fragmentação entre os 106

discípulos de Messias, sinalizada com os renitentes desafios de João a Pedro. Por isso quer ouvir algumas palavras de Lucas, que mesmo sem estar trabalhando diretamente com os discípulos do Mestre, tem acompanhado a todos com assuidade e interesse. Neste instante, Lucas se acha de pé junto a um fogão de lenha, enquanto separa alguns gravetos aproveitáveis para o lume. O interior do casebre é sombrio, enfumaçado. Há uma pequena janela onde uma das bandas encontra-se desprendida das dobradiças deixando penetrar ambiente a dentro uma luz amarelada de final de dia. Lucas afasta os longos cabelos embranquecidos de sobre a fronte, e por instantes a vermelhidão das chamas se reflete em seus óculos de aros metálicos. Seus braços finos, flácidos e de pele esturricada como pergaminho, escorrem das mangas curtas de uma camisa 107

estampada em motivos florais. Quando ele se volta para André, sorri um sorriso de lábios escurecidos e dentes amarelados. Suas mandíbulas são estreitas, e o pescoço amolecido de peru é plantado comr tufos desordenados de barba branca. “Finalmente, algum de vocês me aparece” diz ele mais em sentido de queixa do que de admoestação. André, sem ocultar a expressão de que o dito não o surpreende, retira os pés de sobre o banco e apruma a coluna em busca de uma melhor posição de assento. “Natanael e João se comprometeram a procurar você, mas acabaram se dispersando”, André informa e faz um gesto vago de mãos. “Pois é, estou sabendo que a pressão das sinagogas está aumentando, e por outro lado o trabalho de vocês parece que arrefeceu, André!” 108

“Você está certo quando diz que o pessoal das sinagogas está pressionando, os rabinos querem que o Governador acabe de vez conosco” André, à medida em que se pronuncia, vai elevando voz e corpo, e logo está de pé a pouco menos de dois passos em frente a Lucas. “Mas por outro lado nosso trabalho não foi e nunca será abandonado. Jamais trairemos Messias, Lucas, lembre-se disto!” Lucas arremessa para longe o pequeno pedaço de madeira que pretendia introduzir na boca do fogão. “Se houve um traidor, quem me garante que outros traidores não surgirão?” Lucas faz a pergunta e rodopia nos calcanhares, com suas velhas sandálias de couro, sobre o piso de barro batido. “Você se refere ao meu irmão Pedro?” 109

Lucas se afasta para apanhar o galho de lenha que atirarara ao chão. “André, você está vendo este velho fogão a lenha, não está?” Lucas faz a pergunta com os olhos fixados no brazeiro que estala e se contorce dentro da rubra garganta de concreto antigo. “Pois ele é exatamente como esta província em que nós vivemos, esta Judéia, uma verdadeira indústria onde do culto aos deuses múltiplos deste império que nos domina, misturado à prepotência discriminatória dos rabinos, é feita a mordaça, o tampão pesado que Herodes e Pilatos insistem em pôr sobre todos aqueles que seguem os princípios de Messias” “Traidor, para mim, Lucas, só houve um, e você sabe muito bem a quem eu me refiro!” “A traição do infeliz Iscariot foi assim como um só ato, desapiedado, 110

covarde, imundo, André. Mas traição ao Messias também é a desídia, a acomodação aburguesada, a rendição aos prazeres mundanos, como principalmente à bebida, à lascívia nos prostíbulos, ao envenenamento da mente e do corpo nas drogas” “Lucas, você não precisa tergiversar, pode claramente falar que está se referindo a Pedro quando pensa em bebida” André faz acompanhar suas palavras ditas em alta voz com palmadas nervosas da mão direita sobre a coxa. “O que eu não entendo, Lucas” prossegue André, ligeiramente recurvado no intuito de olhar nos olhos do velho. “O que eu não consigo entender é por que cada um de nós está indo por um caminho diferente, sem aquela união pregada e exemplificada por Messias, tendo agora na mente e no coração apenas o 111

procedimento de Pedro, o meu amedrontado e beberrão irmão Pedro” “É você quem está dizendo isso, André!” a voz de Lucas sai tristonha. “Eu sei ler nas entrelinhas, como dizem os mais letrados, e percebo que em nossas reuniões as palavras bebedeira e luxûria são a custo sufocadas, para evitar que venham à tona certas atitudes que meu irmão vem tomando ultimamente” André fala e martela a palma da mão esquerda com a ponta do indicador , incapaz de disfarçar sua impaciência. “Todo o grupo sempre admirou Pedro, e o considerava uma espécie de líder, uma pessoa que podia falar em nome de qualquer um diretamente ao Messias, como se tivesse procuração escrita do grupo” Lucas fala e se afasta em direção a uma pequena prateleira onde estão arrumados um bule esmaltado, três xícaras 112

de latão, dois potes de louça, e alguns copos. “Deixa eu coar um cafezinho rápido” “Sim, Lucas, mas então por que agora ele, parece, caiu em desgraça diante de todo mundo, assim da noite pro dia? João, por exemplo, é dono de uma agressividade impressionante. Só falta pular na garganta de Pedro, aquele rapaz!” Lucas, concentrado em abrir um dos potes que retirou da prateleira, não é capaz de ocultar um sorriso cínico ao murmurar em pausa: “Mas isso foi assim mais ou menos sem motivos, da noite do que pro dia?” “Não entendi aonde você quer chegar?”, André diz isto em avançando para se situar bem próximo a Lucas, quase esbarrando no pote que este tem às mãos. “Como é mesmo o nome daquele barzinho noturno lá pros lados da Vila do 113

Éden? Jerusalém, uma coisa assim”, Lucas pergunta e responde, concentrado na tarefa de preparar o coador e o pó de café. André olha para o alto, concentra sua atenção por alguns segundos nos caibros enegrecidos, onde densas teias de aranha misturadas a restos de fuligem ocupam vários pontos do escuro teto do casebre de Lucas. Ele sabe perfeitamente aonde o outro quer chegar, e portanto aguarda que Lucas se defina, afinal, quanto ao alvo de suas queixas. “Não sou de frequentar bares noturnos. Você deveria saber disso” diz André quando retira sua curiosidade visual do teto do velho casebre para novamente se fixar na pessoa de Lucas. “Sei disso, André, sei disso muito bem, mas tampouco eu saio por aí a desgastar meu trabalho de continuador da missão a nós legada por Messias em 114

companhia de prostitutas” Lucas se afasta do fogão de lenha enquanto se manifesta. Seus olhos não focalizam André, muito mais passeiam em torno, parecendo em busca de alguma coisa perdida. “Onde botei esse açúcar afinal?” explica-se ele. “Quem de nós anda com prostitutas?” André, cenho franzido, deixa escapar sua exasperação ao empurrar com o pé um pequeno banco de madeira. Lucas demonstra estar mais preocupado em encontrar seu açucareiro do que responder ao ora notadamente agitado André, que em voz alta insiste: “Me diga, Lucas, por favor, quem de nosso grupo anda com prostitutas!” “O nome Maria Madalena diz alguma coisa pra você?” “Maria Madalena? Maria Madalena, Lucas?” a pergunta de André é quase um 115

berro em que o timbre de sua voz parece embaralhado em ameaça de choro contido, travado numa saliva grossa que lhe tolhe a língua. “Quem não viu Messias praticamente livrar da morte Madalena? Tirá-la das mãos de uma meia dúzia de doidos que queriam lhe beber o sangue?” “Eu assisti, e você também, além de Natanael, Tiago, João, Bartolomeu, quase todos nós, e mais ainda aquela turba toda de insanos e outros insensíveis” Lucas fala em pausa, aparenta querer evitar se contaminar pela fúria de André. “Sim, mas e depois disso, heim?” André se mantém agitado; procura se aproximar mais de Lucas, que lhe dá as costas. “Responda-me, Lucas. Não fique com subterfúgios, por favor. Nossa causa não admite esse tipo de insinuações!” 116

“André, não se exaspere. Sente-se, espere só mais um minutinho enquanto termino de passar este cafezinho. Se não a gente vai acabar se queimando” diz Lucas curvado sobre o fogão de lenha, sobre o qual acaba de colocar uma pequena chaleira. André se abaixa para desvirar o banquinho que há pouco pôs de pernas para o alto, e emite um prolongado suspiro; todos os seus gestos traindo neste instante sua ansiedade, um nervosismo de que é presa. São sentimentos que André reconhece estar se amplificando dentro de si em virtude das esquivas de Lucas em dizer, com todas as letras, que seria Pedro o apóstolo que estaria se misturando com prostitutas. Para André, Lucas demorou, mas acabou falando pelo menos um nome: Maria Madalena. Mas até aí, para ele, o velho caminhou muito pouco porque todos 117

os apóstolos ficaram sabedores, ou mesmo testemunharam quando o Mestre arrancou Madalena das mãos dos radicais das sinagogas que estava prestes a espancá-la até a morte. Quanto ao envolvimento de Pedro com aquela mulher, murmúrios já lhe chegaram aos ouvidos por mais de uma vez, mas ele sempre se recusou a dar crédito ao que considera meros boatos. Contudo, no que alcança o consumo frequente de bebidas alcoólicas, André não tem como inocentar o irmão. ‘Eu sei que Pedro está se tornando um alcoólico’, é com imensa tristeza que Lucas guarda a certeza de que essa idéia está impregnando o pensamento de André neste momento. Como homem mais velho, não apenas em relação a André mas mesmo frente ao amadurecido Pedro, ele se habituou a ler nas entrelinhas os corações de todos os integrantes deste 118

mais dedicado e constante grupo de seguidores de Messias. Não é de hoje nem de um mês atrás que Lucas tem acompanhado o trabalho dos apóstolos, ainda que distante muitas das vezes em questões de presença física, premido por uma cada vez mais dolorosa artrite que o proibe de intentar longas caminhadas. Somente por isso ele é obrigado a limitar seu trabalho para a causa de Messias guardando em seus próprios escritos, feitos com sofreguidão nas dezenas de laudas já cobertas por sua letra graúda e de talhe elegante, os fiéis testemunhos do que tem sido a vida do Mestre e a atividade paralela dos dedicados discípulos de Messias. Lucas não quer morrer antes de dar por concluído o relato de toda a passagem de Messias pela vida terrena, e já confidenciou a alguns dos apóstolos sua crença de que algum dia seu trabalho 119

escrito há de superar, em importância para toda a humanidade, aqueles "sebentos e empoeirados livros" das sinagogas. Lucas conseva seus escritos num baú revestido em couro de cabra, de tampa abaulada, reforçado em todos os seus vértices por cantoneiras de cobre. Seus pensamentos e reflexões vão sendo quase que diariamente despejados ali dentro em folhas nem sempre semelhantes em qualidade e tamanho. Há até mesmo papel originário da tendinha onde ele vai cedinho pela manhã comprar seu pão. Ali ele vai lançando o que espera ser, pelo menos, o arcabouço da maior história escrita sobre a vida de um homem que na verdade não foi pura e simplesmente um ser humano como todos os demais habitantes do planeta. Para Lucas, Messias foi um homem em torno de quem se reuniram outros homens com afinco, 120

dedicação, e renúncia a seus interesses materiais ou mesmo espirituais, para juntos buscarem fazer ver ao povo da Judéia o que está muito mais além do que dizem os rabinos e os autodenominados sábios religiosos. Além de estar dedicando os últimos anos de sua vida ao estudo e consagração de Messias, Lucas ainda encontra tempo disponível para, vez por outra, agir como uma espécie de consultor espiritual para alguns discípulos de Messias, que, como seres humanos bem mais aquém de seu Mestre em caráter e espiritualidade, pecam pela divergência ostensiva entre si, mentem, e até se aproximam do abismo da perdição. Por isso ele sabe que necessita de muita paciência e compreensão neste momento, quando o confuso André se sente magoado pelas veladas críticas a Pedro. 121

“Tome, veja se está bom de açúcar” diz Lucas quando interrompe suas divagações momentâneas para estender às mãos de André uma xícara de ágate esverdeada. “Eu já boto o açúcar na água antes de coar, mas se achar amargo...” André recebe a xícara em silêncio, de cabeça baixa. Lucas percebe o desconforto do outro, e arrasta para junto do ensimesmado André uma cadeira. “André, me ouça com atenção, por favor” Lucas fala um tanto desajeitado ao segurar o café com a mão esquerda, enquanto a direita é reservada para uma palmada afetuosa no ombro de André. “Olhe, talvez eu exagere, mas você tem idade para ser meu filho, assim como João, penso eu, para ser meu neto. Ademais, você veio até aqui para me ouvir pelo menos um pouco. Não foi?”

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André se mantém de cabeça baixa, com seus cotovelos firmados sobre os joelhos, ambas as mãos de dedos fechados em torno da xícara de café. “Daí que tomo a liberdade de usar de franqueza neste assunto de Pedro” Lucas prossegue, olhando bem de perto o perfil do silencioso André. “Quando se perdoa a um ladrão, ou a um assassino, não se está dizendo que aquele não roubou nem que este não matou. Messias perdoou Madalena diante dos hipócritas irados que desejavam esmagá-la, mas não declarou jamais que ela não estava infringindo a lei da Judéia em se prostituindo” “Nós não podemos, porém, em hipótese alguma, deixar que controvérsias e picuinhas envenenem a causa que abraçamos em nome daquilo a que Messias dedicou a própria vida” estas palavras, Lucas as diz baixinho, quase 123

colando a boca ao ouvido de André. Em seguida ele se afasta, como se fosse para melhor avaliar a reação às suas palavras, quando aproveita para bebericar um pouco do seu café. O tempo decorre, quase um minuto em que o silêncio é dono e senhor do modesto casebre. “Lucas, quantos de nós sobraram do grupo, depois que Messias cumpriu aqui na Terra sua missão?” manifesta-se afinal André, agora não mais curvado na cadeira, mas sim dando à coluna vertical uma posição ereta, com o rosto voltado para o velho. Lucas enxerga-lhe nos olhos um brilho de intenso sofrimento. “Pelo que sei, ninguém do grupo debandou”, ele diz encolhendo os ombros, cenho franzido.

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“Com exceção do traidor” André é quem complementa. “Claro, claro, mas com esse não se conta” “Sim, mas e então..”, André se interrompe para terminar o café. “Daí que o que eu quero que você entenda é o seguinte: tanto eu, quanto você, seu irmão Pedro, Tiago, João, Bartolomeu, quem quer que seja, nenhum do grupo é perfeito!”, Lucas faz acompanhar o que diz com gestos largos, de pé diante de André, que permanece sentado, mas agora de cabeça erguida e com os olhos fixadosem Lucas. “Eu tenho meus pecados, todos têm os seus próprios pecados” Lucas, ao falar, afasta-se apenas para depositar sua xícara sobre a baixa plataforma feita em concreto, lateral ao fogão a lenha

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“Quem não tinha pecados foi-se embora, pois os enlouquecidos rabinos, cúmplices de um império que vive no mundo das trevas, acabaram com ele, ou melhor, deram fim ao seu corpo” Lucas está de pé, bem diante de André, que vê seu rosto e seus longos e desgrenhados cabelos brancos recortados pela luz amarelada que vem de fora através a velha janela de robusta e encarquilhada moldura marrom. “Então você, pelo menos em parte, me dá razão quando fala que todos nós temos pecados”, André faz menção de levantar, mas se deixa cair no assento. Deposita ao chão de barro, junto aos seus pés, a xícara vazia, enquanto nos traços de seu rosto de um homem jovem um enorme cansaço vai desenhando as marcas de um homem velho.

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“Mas não podemos, apesar de nossos pecados, agredir a quem queremos conquistar para a causa de Messias com atitudes que, bem analisadas, não passam de provocações, desafios!” Lucas eleva repentinamente a voz. “Ora! Desafios, Lucas? Quem está desafiando, e a quem?” a voz de André vem arranhada pelo desespero. Suas costas são imprensadas de encontro ao baixo espaldar do raquítico assento de madeira, que geme em atrito com a parede. “Pedro precisa parar de se mostrar em companhia dela, a Madalena, ainda mais bebendo!” Lucas fala as palavras com vagar, como um professor fatigado de tantas explicações. “É isso, é isso, meu querido André, que eu quero que você entenda! Ou melhor, que Pedro entenda!”

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‘Sim, Lucas deu voltas e mais voltas para chegar aonde ele sabia que queria chegar’, no pensamento de André esta constatação ressoa como um martelo irritante a soar com estridência sobre a bigorna.. “Essa mulher está sendo levada à pira das imolações, como o povo das sinagogas conta a história de Abraão, mas no fundo o que aqueles detratores de meu irmão têm contra ele é outra coisa” André num repente se ergue e fala alto, em tom esbravejante. “Que pira das imolações, coisa nenhuma, querido André! Discordemos dos rabinos, mas não coloquemos essa mulher em canto sagrado, meu filho!” “Mas é a mais pura das verdades, Lucas. João, de todos aqueles críticos de Pedro o mais declarado, na certa inveja Pedro pelas intimidades que ele possa ter 128

com Madalena, mas não tem a coragem de confessar que sente vergonha de haver abandonado Messias às feras” “Não penso assim, André. Desculpeme, mas você está prejulgando o jovem João” “Não estou, não, Lucas. O que ocorre é que o erro de Pedro diante de Messias ficou muito mais marcado do que o abandono do Mestre por seus discípulos, inclusive por mim mesmo, mas ninguém quer falar isto de peito aberto porque tem o telhado de vidro!”, André fala e principia a caminhar a passos largos, indo até o fogão e regressando, e novamente encetando o mesmo percurso diante do atônito Lucas. “Querido André, eu não quero vê-lo assim tão exasperado. Você está magoado pela aparente oposição que Pedro estaria sofrendo dentro do grupo, principalmente por parte de João, mas o que posso fazer, 129

ou melhor, aconselhar é que na próxima reunião este assunto seja posto em pratos limpos”, Lucas fala e procura abraçar André e fazê-lo sentar na cadeira mais próxima. André se reconhece fragilizado neste instante diante da força das argumentações do velho Lucas. Em seu íntimo ele aceita que é um erro tentar defender Pedro, tanto no que diz respeito ao notório hábito da bebida quanto no relacionamento com Madalena. Mas André se contorce por dentro em mágoa quando lhe vêm à mente os repetidos desafios gratuitos de João. “Saiba, Lucas, que eu acato com humildade seus conselhos, que reconheço como frutos naturais de sua imensa sabedoria solidificado em seus tantos anos de vida e contato com nosso povo” “Você não imagina o bem que estas palavras suas me fazem, André” 130

Lucas remexe aleatoriamente nas xícaras e copos dispostos sobre a fina prateleira logo acima do fogão, sem contudo poder esconder de André o impacto benéfico que as recentes palavras deste lhe causaram. “Saiba, meu caro, que eu apreciaria muitíssimo se pudesse ter a oportundade de conversar mais vezes com você, e por que não com qualquer um dos outros, especialmente com aquele garoto rebelde que é o João”, Lucas se volta para André ao lhe endereçar estas palavras. Em seus olhos é visível o brilho da gratidão de um homem velho para com a atenção de um jovem. “Se você me permite, Lucas, mesmo me curvando diante de sua sabedoria, eu lhe peço licença para que eu mesmo, pessoalmente, na primeira oportunidade cobre do João explicações sobre as 131

atitudes dele perante meu irmão”, André fala com a mão esquerda posta na improvisada maçaneta de madeira da porta, num sinal explícito de que considera encerrada a entrevista com o velho conselheiro e historiador. “Faça como seu bom e misericordioso coração ordenar, André, mas jamais deixe fugir de sua mente as lições de humildade e desapego ao rancor deixadas por Messias” Sem mais palavras, André puxa a pesada porta da humilde morada de Lucas e se afasta a passos lentos, mas firmes. Tormento de uma pecadora Por mais de duas semanas tem sido assim sua existência, plena de cansaço físico e espiritual, o que a fez até mesmo perder a referência de sua própria casa e o 132

emprego naquela miserável estamparia. Agora, enquanto procura tirar do corpo as marcas dos vários dias em que perambulou sem rumo certo, gravadas nuns pés cheios de cascas de ferimentos meio cicatrizados sobre uma pele avermelhada pelo esforço de longuíssimas caminhadas de sol a sol, Madalena chora em silêncio. Mais que as pequenas porém desagradáveis dores pelas chagas e bolhas nos pé, magoam-na terrivelmente, pelo mal lhe fazem à alma, as palpitações em volta do púbis e no interior vaginal, gravadas como memória torpe de uma noite onde a posse violenta a vitimou sem possibilidades de socorro. A sós, abrigada em meio a uns escombros do que foi até talvez uma aprazível residência há décadas passadas, Madalena tem como companhia fugidias lagartixas em aparições rápidas por entre escuras cavidades e tijolos podres largados 133

ao chão úmido. Acima, no que restou de uma laje que certamente protegeu das intempéries sazonais e dos traiçoeiros perigos noturnos existências mais alegres do que a dela, penduram-se pelos pés horripilantes e adormecidos morcegos. Já é dia, e o sol despeja raios amarelados que invadem este tugúrio que tem sido seu lar por quase uma semana, desde que sua esperada paz noturna sob o viaduto na fronteira com a Filadélfia foi quebrada com a aparição daqueles três homens, irmanados entre eles pela bebida ordinária, o mau cheiro de seus dentes apodrecidos e a voracidade de seus sexos. Ela se lembra agora que quando o endoidecido trio a deixou estirada por entre uns tufos ásperos de capim, nua na escuridão onde a lua temia penetrar, ela em soluços e endoidecida de dores chegou a sentir saudades de Pedro, o pobre e doce 134

bêbado Pedro, o humilde e conformado amigo com aqueles simulacros de amor que ela se permitia lhe oferecer. Seguir em frente, talvez para reencontrar Messias, pouco ela tenha feito ainda, porque não seria somente ralando os pés e saciando o apetite bestial de alguns ébrios que Madalena seria alçada ao nível necessário para poder olhar nos olhos daquele deus dos empobrecidos e deserdados, o cerne das palavras de Messias. Há muito ainda a descer, Madalena assume esta verdade neste momento em que, com a ponta de uma unha imunda, arranca um comprido naco de sangue seco de entre dois dedos do pé esquerdo. É necessário, por outro lado, não perder de vista os ora tão dispersos e confusos companheiros de Messias, muito embora acompanhar o pobre e iludido João, cujos tristes e revoltados olhos de 135

menino traem aquela paixão à qual ela não pode corresponder, esteja acrescentando mais uma dose à sua imensa tristeza geral. Dos demais, poucas notícias lhe têm chegado. Madalena tem guardada em sua alma, como vontade que deseja tornar indestrutível, a observância de tudo aquilo que seu amado Messias queria daqueles que a ele se ao juntaram. , A derrocada Jogam-no assim como um traste inútil qualquer, contra um chão duro e frio onde impurezas escorregadias e mal cheirosas aderem à palma das suas mãos no ato de seu soerguimento. Os dois homens que o trouxeram aos trambolhões bateram com violência a grossa porta e se afastaram às gargalhadas. O espaço é negro, a porta é 136

negra. Há somente uma pequena mancha amarelada, não mais que vinte centímetros quadrados, percebida por Pedro a uma pequena distância ao nível de seu corpo vergado. A mancha está fracionada em quatro quadriláteros separados por dois largos traços escuros, em forma de cruz. É a crua projeção da solitária claridade que penetra neste fétido cubículo pela pequena janela de sua única porta. "Daqui a pouquinho eles voltam", a voz é cansada, branda, soa-lhe como se soprada aos ouvidos, e Pedro tem um tremor assustado. Ergue-se com a relativa rapidez que lhe permitem as forças de seu corpo tão duramente espancado. Não são apenas essas palavras quase que sussurradas, ainda que de um jeito meio perverso, os únicos sinais da presença de mais alguém nesta cela escura. Um forte odor de corpo mal lavado, um cheiro acre 137

de gordura azeda, ao qual se mesclam os resultantes de fezes bem recentes e urina humana suplantam os demais aspectos de imundície aqui imperantes. Ele permanece totalmente estático, embora ainda dominado pelo intento de se orientar dentro desta negritude e, pelo menos, se certificar de onde vieram as palavras recém ouvidas. Há entretanto a certeza de que o dono da voz masculina se encontra junto a ele, bem perto, talvez a uma distância inferior a um braço. O estranho pode abraçá-lo, ou estrangulá-lo se quiser, pois que pelo absurdamente repugnante odor que lhe assalta as narinas, trata-se de alguém quase colado a ele. Para complementar a desconfortável sensação de Pedro em se reconhecer tão vulnerável, sua face é alvo agora de uma expiração morna rescendente a cáries e alimentos mal digeridos. 138

"Quem..., quem é você?", ele se anima a perguntar, ainda imóvel e de pé, os braços dobrados com os cotovelos firmados contra as costelas e os pulsos nivelados aos ombros, o máximo que pode idealizar para se proteger de uma eventual agressão. "Não tenha medo. Não vou lhe fazer mal", vem a resposta sem que os sinais da proximidade desagradável daquele corpo arrefeçam. "Aqui é muito escuro, você não me vê e por isso tem medo", prossegue a voz. "Não estou com medo de você, mas...", ele hesita, mente, sente que não pode colocar verbalmente a repugnância física como causa de seu atual desconforto. "Hmm", limita-se o estranho, sem esconder uma leve risadinha denunciante do pleno reconhecimento do verdadeiro

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escrúpulo de Pedro na ocultação do motivo maior de seu desconforto. Após isso, sons quase imperceptíveis do atrito produzido pelo deslizamento das palmas de pés sobre um chão liso, sujo e escorregadio coincide com o arrefecimento da carapaça nauseante que oprimia seu olfato . "Está tudo bem. Não tenho pressa", diz quem dá a impressão a Pedro de se refugiar em qualquer canto oposto a ele. Por um segundo vislumbra um antebraço esquálido e trigueiro transpassando o facho luminoso que vem desde a janelinha da porta. "O que você quis dizer com 'daqui a pouco eles voltam?", Pedro agora se relaxa um pouco, deixa pender os braços ao longo do corpo quando imagina que o desconhecido já se afastou pelo menos alguns passos. 140

A resposta não é mais que o silêncio acompanhado alguns segundos depois por novos sinais de plantas de pés no piso escorregadio juntos com um sutil roçar de pele e talvez apodrecidas vestes contra superfície mais resistente. Dois estalidos peculiares ao dobramento de juntas ósseas envelhecidas se unem ao gozoso suspirar de relaxamento físico. Pedro entende que seu misterioso acompanhante de cela acaba de se acocorar em algum ponto na escuridão escorregando com lentidão as costas e as nádegas na parede. Chegam agora aos seus ouvidos apenas os estertores de um grande cansaço a passear com tristeza por cima do apavorante cheiro dominador de todo o ambiente. "Mas afinal você ainda não me disse", Pedro fala agora mais livre, na certeza de que por enquanto existe uma considerável 141

distância entre os dois. Persiste, lá do outro lado e talvez apenas a poucos palmos do quadrado posto na parede pelo fio de iluminação jorrado desde a janelinha, o som daquela respiração bem alquebrada, preguiçosa. Afinal, precedida por um angustiado sugar do tão pesado e fétido oxigênio disponível, diz a voz apagada: "Já lhe disseram alguma vez que o diabo é esperto porque é velho?" A súbita menção ao nome do maligno ser faz os maltratados músculos de Pedro estremecerem como alcançados por uma elevada descarga elétrica, sacudindo-o por inteiro. Por pouco ele não é arremessado ao piso da cela. "Assustei você, não?", o estranho fala e tosse ao mesmo tempo, cruel, divertido. Pedro procura não falar imediatamente. Passa os dedos calosos, onde algumas juntas lhe doem pelas agressões sofridas 142

quando de sua prisão, sobre os cabelos cortados curtos em meio aos quais há tufos formados por sangue coagulado. Depois, com vagar, volta-se em direção à porta, cuja aspereza de madeira grosseira suas mãos podem constatar pela primeira vez, e põe o rosto colado à pequena abertura, seus olhos cerrados, inspirando profunda e vagarosamente. Em seus pensamentos começa a se instalar a suspeita de que foi jogado a uma masmorra ocupada por um ser que pouco tem de normal, humano, ainda que suas eventuais tosses e demonstrações externas de velhice possam negar isso. Ele se concentra em Messias, faz, ainda que com esforço devido ás dores em várias partes do corpo, seu pensamento viajar aos dias em que privou da companhia do mestre e pôde se abeberar de tantos ensinamentos concernentes ao amor e à paz à busca de 143

algo maior para todos os humildes, bem além dos ídolos imperiais e o difícil, irascível, cruel e assaz vingativo deus dos rabinos. Mas, considera, se a partir do dia em que se uniu ao mestre e seus discípulos para trabalharem em prol de um novo homem, despiu-se das crendices injetadas nos judaienses pelos cultivadores de uma miríades de deuses e superstições, não pode agora fraquejar diante de qualquer estranho que intente fazê-lo se perder nos meandros da incerteza quanto à vida humana e as inúmeras fantasias que a cercam. Mas por que então o negou tão vergonhosamente diante de Herodes e toda sorte de prevaricadores? Apenas para, como um suíno doente e acovardado, procurar depois se refugiar

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entre as pernas de Madalena ou afogar-se na bebida. Por onde andará a apaixonada Maria Madalena, Pedro se pergunta almejando saber se aquela maravilhosa mulher se encontrou com si própria ou caiu, como ele, nas visguentas redes de Herodes. 'Este homem a quem nunca vi, que talvez imagine que me transformará num covarde desertor da missão a que me dediquei, aproveitando-se da escuridão nesta cela, está redondamente enganado. Meus ossos e minha carne ainda doem terrivelmente por causa dos violentos golpes que recebi desde o momento em que me agarraram lá na praça, uma agressão que continuou durante todo o percurso até me lançarem aqui dentro, trancafiado num negrume em companhia desta criatura que tenta me assustar'

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Pedro medita perto da porta, quieto, buscando cercar-se do silêncio para melhor se concentrar nas palavras de Messias e na troca de opiniões havidas entre ele e seus amigos apóstolos. A primeira pessoa cuja imagem vem ocupar sua mente é o jovem João. Onde estará o contestador Joãozinho neste instante? Será que o prenderam também? ."Daqui a pouco eles estão de volta!", chega até ele a voz entre divertida e ameaçadora, desde possivelmente a parede contrária à porta. Pedro sente neste momento como se despertasse de um sonho durante o qual reviu alguns dos apóstolos, ainda que vivendo situações adversas. Outra vez o estranho busca se comunicar com ele, mas persistindo num tom de voz ferina, cruel, impiedosa, como se conhecesse e até mesmo fosse dono do que lhe está destinado. 146

Por isso ele prefere manter-se quieto, ainda com as costas coladas contra a áspera madeira da porta, enquanto ao lado do rosto corre o filão luminoso que acaba se esborrachando na parede oposta, a poucos palmos de onde o desconhecido se encontra, quieto, provocador, divertindo-se afinal. "Você não quer saber mesmo quando eles virão?", insiste a voz. O mau cheiro de toda a cela aumenta todas as vezes em que lhe soa aos ouvidos a voz cansada mas provocadora. "Eles, quem?", a pergunta o trai. Preferiria continuar como está, calado, silente enquanto colado à porta, mas quando deu por si já havia falado, do que se arrepende. "Eles... com as facas, você não sabe?", diz o estranho, e começa a rir, ou soluçar baixinho. Pedro tem dúvida. 147

"Facas, disse você?" Os arranques com que as palavras vão sendo expelidas maltratam-no. Ele bem que gostaria de olhar esse homem bem de frente, ver-lhe os olhos, bastariam seus olhos. "Eles não demoram", permanece a voz como num cântico pagão agourento. Pedro se afasta da porta e dá dois passos. Ao segundo, seu pé esquerdo desliza em alguma coisa fria e visguenta que se gruda ao dedo maior. Ele se desequilibra e agita momentaneamente os braços, ave solitária condenada ao esquecimento. Teme cair de bruços neste piso que ele não vê mas pressente estar coalhado de fezes, escarros, urina e demais dejetos humanos possíveis. "Eles são muito mais perigosos do que os vira-latas", cicia na escuridão, o desconhecido, bem perto. "Vira-latas?" . 148

"Os cães, aqueles cachorros do beco, Pedro..." 'Pedro? Ele falou meu nome ou estou delirando neste negrume, nesta quentura toda em meio a tanto mau cheiro?" pergunta-se' "Que Pedro?", grita. "Você, o apóstolo!", o tom da estranha voz, desta vez, é paciente, calmo, como que oriundo de alguém com todo o tempo do mundo. "Quem é você afinal, demônio?", Pedro grita mais forte ainda. "Covarde, você desprezou Messias e correu pela noite, um condenado. Salvei-o dos dentes daqueles vira-latas no beco" Passos fortes são ouvidos agora. São umas vozes nervosas, como se pessoas estivessem discutindo do outro lado da grossa porta da cela.

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"Não disse a você? Eles estão até discutindo, brigando...", o estranho faz uma pausa, um forte acesso de tosse o apanha em cheio. Mas mesmo assim, entre os violentos puxões pulmonares à cata de ar fresco, ele cospe palavras soltas. "Brigam...brigam pela..." "O que foi? Quem briga, e por que brigam aí fora?", Pedro se encontra agora, presume, a menos de um passo daquela voz. Já adentra o círculo limitador da zona mais nauseante e quente da cela, o pequeno entorno desse endoidecedor ser que parece querer sugá-lo para cada vez mais com seus longos e desesperados estertores. Nisto, chaves se entrechocam pelo lado de fora da porta até que ela é escancarada para dar passagem a um mar de luz amarelada e às silhuetas de dois homens de feições indistintas protegidas 150

pela claridade que apenas os colhe pelas costas. "Venha conosco, apóstolo Pedro", ordena um dos homens. "Desculpe a demora. Custamos a encontrar uma boa pedra", o segundo recém chegado fala como quem estivesse envergonhado de alguma coisa. Pedro se volta de frente para a claridade e recebe em cheio a luz de fora, que o brinda fracionada pelo obstáculo que lhe opõem os dois corpos parados no umbral. Maior do que a claridade invasora da cela é o brilho de prata da longa faca na mão do primeiro dos dois homens, aquele que adentra a fedorenta mas agora não tão escura masmorra. Pedro não sabe o porquê, mas ele instantaneamente se volta para olhar no fundo da escuridão ainda reinante num canto negro da cela negra. Dá para perceber que o frio aço emite 151

algumas chispas que vão se chocar com um par de olhos tristes e penetrantes como o aço, da faca. Aleluias Maria dormiu quase nada desde quando aqueles estranhos homens a procuraram em casa, com suas pífias desculpas de que a presença dela em uma delegacia policial se fazia imprescindível e imediata. Inspetoria Nove, lhe parece que foi o nome falado por eles, e lá se foi ela. e Desagradou-lhe ter o desprazer de dar de cara com Isabel e Zacarias lá naquele sobrado feio e encardido cheio de homens tão ou mais carrancudos e mau cheirosos do que os três que vieram bater à sua porta. Disse-lhe um dos homens que ela, Isabel e Zacarias deveriam ser afastados de suas casas por alguns dias. 152

Foi Zacarias quem tomou a iniciativa de perguntar qual a razão daquilo tudo, de tirarem sua esposa e ele do recesso do lar, assim num despropósito de sequer lhes concederem tempo de trocarem de roupa e se munirem de algumas coisas necessárias para aquela estadia forçada num lugar desconhecido. Sentada em uma velha e desgastada cadeira de vime posta no alpendre que ocupa toda a fachada desta habitação aparentemente isolada de casas vizinhas, Maria tem os olhos parados e tristes presos ao alto capinzal que se alonga desde os poucos metros de uma terra escura e socada, fronteiriços à casa até onde o que parece ser uma estradinha lá bem distante. Maria imagina tratar-se de um caminho barrento, pois há pouco viu passar um veículo que levantou volumosa nuvem de um pó avermelhado, desaparecendo logo 153

depois como um pequeno ponto negro que se desfaz. Existe uma árvore de galhos enormes e volumosa, não muito afastada do avistado caminho, pela direita de quem se dirige para a casa; mas além disso nada mais se apresenta na paisagem o suficiente para merecer maior atenção dos cansados olhos de Maria. Aqui bem pertinho e à sua direita, assim meio oculto nas sombras de um caramanchão onde se enrosca um seca galharia com miúdas uvas apodrecidas, permanece estacionado o mesmo longo e preto automóvel em que os homens a trouxeram. Ela se considera sem mais uma lágrima sequer a derramar, depois do tanto que chorou desde que se viu confinada a este lugar que, pelo pouco que pôde observar, trata-se de um sítio retirado em alguma parte da Judéia.

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:"Me disseram que isto tem a ver com uns cartazes que espalharam por aí, umas coisas dizendo que João vai reaparecer no Parque Roma", foi o comentário que Maria ouviu de Zacarias enquanto discutiam acerca deste isolamento compulsório. Mas como isso será possível, ela não pode compreender de modo algum. Mas o pior é não poder discutir o assunto com Isabel. Qualquer mãe faria tudo que pudesse para rever um filho que partiu, ainda mais em se tratando do caso de seu sobrinho, que dizem ter sido assassinado de maneira horrível, imagina Maria. No entanto Maria está a cada dia mais ciente, e orgulhosa também, de que apenas e unicamente o seu filho ressuscitará. O deus dos rabinos assim o fará, embora ela não frequente sinagogas e não entenda como podem venerar tanto a um deus que só fala em matanças e sangue. Os que preferem 155

aqueles deuses esquisitos que nem gente de carne e osso, adorados pelo Imperador, seus soldados e até mesmo o governador Pilatos, também não dizem muitas coisas de se acreditar muito, mas se Messias foi o homem que foi, ele voltará de qualquer jeito. "Andaram colando uns papéis nos postes, muros, tudo que foi lugar, todo mundo viu, chamando o povo pra ir ver João lá no Parque Roma!", Zacarias fez a explicação de um modo bem impaciente. p A reação dela foi tentar se levantar, porém ficou desequilibrada e por pouco não caiu esparramada sobre o duro piso de concreto. Agora, solitária nesta varandinha de uma casa cuja localização dentro da Judéia ela não pode imaginar onde seja, Maria se lembra da última visita que fez a Maria Madalena. Gostaria que Isabel tivesse pelo 156

menos a sinceridade da execrada pecadora, mas assim não sucede, e por isso sente-se abandonada. As lágrimas e lamúrias gastas lá naquele quartinho abafado cheirando a mofo e pecado, Maria não as lamenta. Mantém porém sua estranheza a respeito do que Zacaria falou de uma certa revista que entrevistou a ele e Isabel. "Tudo começou a ficar estranho quando veio aquele jornalista, e depois saiu umas coisas na revista dele dizendo falsidades que nós não falamos" "Que revista, Zacarias?" Maria ousou perguntar, embora receosa de que o cunhado a destratasse por sua absoluta ignorância a respeito do que ultimamente estaria acontecendo em volta deles três. Mas, para sua surpresa, Zacarias foi calmo e paciente em suas palavras: "Veio um homem que se apresentou como jornalista de uma revista de nome 157

Olhe. Perguntou se podia entrevistar a gente, nós concordámos e ele passou um tempão a perguntar um bocado de coisas sobre João, a vida dele, suas pregaçöes, como ele era, quando encontrou Messias, por aí a fora" Maria quis saber de Zacarias o que o jornalista perguntou a respeito de Messias, se recorda que o cunhado desconversou um pouquinho. Por isso ela desconfia que Isabel, mais do que o marido, tenha falado mal de Messias. De qualquer maneira está tudo muito confuso e há muita tristeza à sua volta; parece-lhe neste instante que apenas os homens que os trouxeram para cá estão despreocupados. Um deles, ou talvez mais de um, não dá para ter certeza, encontra-se dentro do carro estacionado sob o caramanchão a ouvir rádio. Agora, lá longe, meio oculto pela larga mangueira, ela imagina divisar um 158

vulto que se aproxima a passos lentos. Certamente aquele resto de poeira, que se eleva à direita e onde deve passar a estradinha, foi provocado pelo veículo que trouxe o homem. Maria tem a certeza de que quem vem lá não é uma mulher, pois de onde ela se encontra dá para distinguir perfeitamente umas calças compridas, os braços balançados, e quadris mais para masculinos. O desconhecido passa ao lado da mangueira, por um instante muda seu rumo transmitindo a impressão de que não se dirige para cá, esta casa de onde Maria, agora de pé, ambas as mãos firmemente apoiadas na grossa tora de madeira em horizontal integrante da rústica balaustrada do velho alpendre, o olha temerosa por um pressentimento. Maria percebe que de súbito tudo em volta se tornou quieto, e a musiquinha que

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tocava no rádio do imenso automóvel preto cessou. A quietude, porém, é quebrada pelas vozes roucas de dois homens que saem às pressas do carro batendo as portas com violência. Um deles vem correndo para o interior da casa e quase derruba Maria em sua pressa. Ela ouve, desde lá de dentro, um grito nervoso, parece-lhe que partido do mesmo homem que passou esbaforido, a chamar por um nome que ela não entende bem. O mesmo homem logo regressa seguido de outro, ambos, para o horror de Maria, carregando armas de fogo nas mãos, enquanto o terceiro, que ficou junto ao automóvel, porta o que a Maria parece ser um binóculo. Ele se volta para os outros dois falando baixo, mas de um jeito que soa como de enorme preocupação com o desconhecido, que agora endireitou sua 160

caminhada na indiscutível direção da casa. O que Maria percebe muito bem é que há um desentendimento entre os três homens, com a evidência de um deles, aquele que foi trazido desde o interior da casa, querer caminhar em direção ao estranho. Mas seus dois companheiros querem impedi-lo e lhe gritam frases onde o nome Morro da Caveira pode ser claramente ouvido por ela. Morro da Caveira — aquele amaldiçoado lugar onde o populacho diz seu amado filho Messias ter si morto sob a punição aviltante a ele imposta por Caifás e o maligno Doutor Herodes. O homem que demonstra vontade de correr ao encontro do recém chegado desconhecido, para o terror de Maria acaba ergue a mão direita segurando firmemente sua arma em atitude evidente de que pretende atirar. Maria, assustada, abandona 161

sua posição no limiar do alpendre e se coloca junto à porta de entrada, mas não logra tirar os olhos do homem que se aproxima, ignorando a ameaça. Ela sente as pernas lhe faltarem e se agarra. com a máxima firmeza que suas forças lhe permitem, ao tosco portal de madeira crua. Sente a boca seca, seus olhos começam a lhe trair, pois agora o que ela vê adiante dela são unicamente manchas escuras, vultos indefinidos. Maria tem a sensação de que alguém acaba de lhe banhar o globo ocular com algum líquido espesso, leitoso. Enquanto com a mão direita ela se apóia na porta, com a esquerda alcança em modo desajeitado uma das pontas do longo xale para tentar enxugar os olhos. É neste momento que soa um tiro, e ela se estremece, teme desfalecer, pendurase com ambas as mãos na folha da porta. 162

Agarra-se, como um afogado à tábua de salvação, à fouxa maçaneta da porta; sente que acabará desmaiando. Ou talvez antes disso esses homens se voltem contra ela e acabem alvejando-a, matando a todos, a ela, a Zacarias e a Isabel, num acesso de loucura e descontrole quanto ao que fazer diante daquele desconhecido que lhes impõe um medo com cuja causa Maria não pode atinar. Mas então, de um segundo para o outro e mesmo sem ter ainda conseguido clarear sua visão, ela compreende tudo à perfeição, principalmente o visível terror que se apossou daqueles três homens, porque aquela voz que vem desde aquele espaço de terra escura e batida não pertence a nenhum deles. Esta voz, Maria a reconheceria em qualquer lugar, a qualquer tempo e em qualquer situação, mesmo neste momento debaixo da ameaça 163

de sucumbir a um desmaio por força do nervosismo e da ameaça de violência ao seu redor. "Guardem tuas armas porque eu sou a justiça e a paz!", diz aquele homem que a passos firmes se aproximava da casa. Maria desmorona como um fardo amolecido, na queda abalroando o frágil parapeito da acanhada varanda, a poucos metros dos três guardas da casa, ora simples criaturas acovardadas diante da incontestável reaparição de Messias, vivo.

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