Larissa Rossi da Silva 1

10. O LUGAR DO DESEJO NA CRIANÇA SEXUALMENTE ABUSADA Larissa Rossi da Silva1 As práticas sexuais, atualmente, designadas como abuso sexual infantil, ...
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10. O LUGAR DO DESEJO NA CRIANÇA SEXUALMENTE ABUSADA

Larissa Rossi da Silva1 As práticas sexuais, atualmente, designadas como abuso sexual infantil, são relatadas desde épocas muito remotas e assumiram diversas conotações, conforme o período histórico que percorreram. Na contemporaneidade, o abuso sexual aparece como um problema social, que requer uma intervenção, cujo objetivo é tratar a vítima, punir o agressor e mitigar os danos (BRANDÃO JUNIOR, 2008). O abuso sexual infantil é, portanto, considerado um ato de violência, perpetrado contra alguém em estágio de desenvolvimento psicossexual menos avançado e capaz de provocar sofrimento físico, social e psicológico (ABRAPIA, 2002; REZENDE, 2008). Diante desse contexto, questiona-se: o sujeito está implicado no abuso sexual, do qual, via de regra, ele foi objeto? Esse trabalho tem por finalidade discutir sobre o lugar da criança como sujeito desejante nos casos que receberam o nome de abuso sexual, assim como, explanar de que maneira a psicanálise contribui frente a essa demanda. Para atingir esses objetivos, o trabalho se baseou fundamentalmente nas teorias de Freud e Lacan, além de Lévi-Strauss, Ariès e da experiência agregada pela psicanálise. Foi realizada uma pesquisa qualitativa de caráter teórico, elencando conteúdos de livros, dissertações de mestrado, artigos datados dos últimos dez anos e documentos técnico-científicos. Tomando como ponto de partida uma análise histórica, de acordo com o estudo realizado por Rezende (2008), a criança é um conceito social que se desenvolveu vagarosamente ao longo dos séculos, até que pudesse se tornar um significante instituído pela cultura e uma categoria com suas peculiaridades. Ariès (2006) chama atenção para o despontamento do chamado “sentimento de infância”, primeiramente no seio familiar, sobre a forma de “paparicação” e, posteriormente, no meio eclesiástico e dos homens da lei, preocupados com a disciplina e a prudência dos costumes. Sobre o viés da sexualidade, destaca o autor, que a sociedade moral deve abster as crianças de qualquer alusão a assuntos e práticas de ordem sexual, os quais, outrora, faziam parte do cotidiano e das brincadeiras das crianças sem que chocassem o senso comum, uma vez que “(...) se acreditava que as crianças impúberes fossem alheias e indiferentes à sexualidade” (p. 80). Ariès (2006) aponta para o fato de que os contatos físicos entre adultos e crianças que se fizeram corriqueiros da antiguidade até meados do século XVII, hoje, provavelmente, seriam vistos como uma anomalia sexual, da qual, pelo menos publicamente, ninguém ousaria praticar. Entretanto, a psicanálise parte do princípio de que o sujeito é perverso-polimorfo, portanto, desprovido de naturalidade. Neste sentido, Brandão Jr. (2008) destaca

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Acadêmica do 6º período do curso de Psicologia, Escola de Saúde e Biociências da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) –

Campus Londrina. Endereço: Rua Piracicaba, 28, Cambé – PR. Contato: (43) 9814-5261. E-mail: [email protected].

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que onde intervém o Outro (quem geralmente o sujeito chama de mãe), haverá consequências que perturbarão o curso “natural” do desenvolvimento. Lacan (1964) assinalou que o sujeito é constituído no campo do Outro, “(...) o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder presentificar-se do sujeito, é o campo desse vivo onde o sujeito tem que aparecer (...) chamado à subjetividade, que se manifesta essencialmente a pulsão” (p. 194). Como observou Freud (1905/2006), mesmo na mais tenra idade, a criança se relaciona com seu corpo de maneira autoerótica, movida por pulsões parciais que se satisfazem através da estimulação de uma zona erógena e, em fase ulterior, são desviadas para objetos externos. Partindo do legado freudiano, Lacan (1964) ensina que a pulsão, por sua essência de pulsão, não diz de algo que se admite no campo biológico, mas sim no campo do Outro – lugar do significante. Por outro viés, a antropologia de Lévi-Strauss (1908/1942, p. 43) também dá subsídio para pensar que a natureza não habita o homem, pois: [...] se o homem é um animal doméstico é o único que se domesticou a si próprio. Assim, é possível esperar ver um animal doméstico, por exemplo, um gato, um cachorro ou uma ave de galinheiro, quando se acha perdido ou isolado, voltar ao comportamento natural que era o da espécie antes da intervenção exterior da domesticação. Mas nada de semelhante pode se produzir com o homem, porque no caso deste último não existe comportamento natural da espécie ao qual o indivíduo isolado possa voltar mediante regressão .

Segundo o mesmo autor, a lei do incesto representa o ponto de passagem da natureza para a cultura e existe na ordem do impossível, visto que firmar tal proibição sequer atravessara o pensamento, mas cuja transgressão disseminaria o horror. A obra de Lévi-Strauss (1908/1942) vem ao encontro com os postulados da psicanálise que, por sua vez, permite compreender que a proibição do incesto está na base da vida humana e o fato de ser um tabu, denuncia um desejo inconsciente (FREUD, 1913/2013, p.74-75): [...] no inconsciente não há nada que gostariam mais do que transgredi-las [as proibições do tabu], mas eles as temem; eles as temem justamente porque gostariam de transgredi-las e o medo é mais forte do que o desejo [...]. O fundamento do tabu é um ato proibido para o qual existe uma forte inclinação no inconsciente.

Destarte, a proibição do incesto gira em torno de romper com algo que é da essência humana. Não há uma aversão inata ao incesto, de tal modo que a primeira escolha que o sujeito faz de um objeto para amar é incestuosa (REZENDE, 2008). A mãe é o objeto de amor primordial do sujeito, bem como, protótipo de suas futuras relações

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(BRANDÃO, JR., 2008; MIRANDA e ALBERT, 2012). No registro do imaginário, a criança se identifica com o falo, e quer, ela mesma, constituir-se como falo da mãe. A passagem para o simbólico na teoria lacaniana inicia na constatação por parte da criança de que existe um objeto no desejo da mãe, devido o advento da função paterna, operação simbólica instituída pelo significante Nome-do-pai, que impõe um limite ao gozo, inscrevendo a castração. Logo, a criança ganha acesso à estrutura simbólica, com a possibilidade de nomear o seu desejo de e constituir-se enquanto sujeito, marcado pela falta do objeto perdido, que por ser estrutural, nunca é encontrado, e que movimenta o desejo de uma completude que jamais poderá ser alcançada (BRANDÃO, 2005). Portanto, conforme Lima e Pollo (2005) mencionaram, “(...) o encontro com o real do sexo é sempre traumático (...)” (p. 559, grifo nosso) para o sujeito, e isso não significa que uma situação de abuso tenha sido perpetrada, mas que suas experiências e impressões sexuais, mesmo as mais remotas, deixam marcas definitivas em seu corpo. Ademais, como salientou Rezende (2008), para a psicanálise qualquer ato é um ato sexual, pois implica a libido. Sendo assim, o sujeito está subjetivamente implicado em todas as suas experiências, inclusive as de caráter sexual (PIZA E ALBERT, 2014). O discurso psicológico, que permeia os diferentes segmentos de assistência – psicológico, jurídico e social ao abuso sexual infantil, tem sido incorporado a uma série de dispositivos, serviços e programas a fim de oferecer um tratamento para as crianças vítimas de abuso sexual. Entretanto, frequentemente, esse tipo de abordagem está calcado em um pensamento psicobiológico e, nesta perspectiva, situa o abuso sexual como um evento traumático que desencadeia efeitos patogênicos na criança, em função da mesma ter vivenciado estimulação sexual em um período precoce de seu desenvolvimento; ao passo que o “abusador” é entendido como alguém desenvolvido e, por conseguinte, apto psico e biologicamente para manter relações sexuais (BRANDÃO JR., 2008). Em contraponto, a psicanálise compreende que o sujeito, subordinado a rede de significante, somente poderá dar sentido as suas vivências a posteriori. Deste modo, o sujeito não se encontra no sentido, mas sim nos furos desse sentido, nas entrelinhas de seu discurso. (BRANDÃO JR., 2008; MIRANDA E ALBERT, 2012). Além disso, ao nomear o efeito traumático de antemão, assim como, colocar o sujeito numa posição de vítima, de passividade e de desamparo em relação ao adulto, corre-se o risco de aboli-lo, na medida em que se coloca previamente um lugar para ele, e a consequência disso pode ser tão ou mais deletéria do que a própria situação experienciada. (BRANDÃO JR., 2008; PIZA E ALBER, 2014). A proposta da psicanálise está sustentada pela ética que assume frente a criança, conferindo a ela o lugar de sujeito desejante e, deste modo, exonerando-a da posição de objeto em que foi colocada. A psicanálise trabalha pela via da responsabilização, haja vista que somente com o reconhecimento por parte do sujeito da implicação de seu desejo, é que ele poderá vir a se responsabilizar subjetivamente pelas escolhas das quais toma parte, sendo esta

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uma liberdade de todo sujeito, independentemente de sua idade - mesmo que aos olhos do Outro jurídico ele pareça somente uma vítima (PIZA e ALBERT, 2014). É valido ressaltar que a responsabilização em psicanálise possui sentido distinto da responsabilização jurídica. Esta tem caráter universal e está articulada a ideia de imputabilidade pelo ato cometido; enquanto aquela aponta para uma responsabilização do sujeito face a estrutura, incluindo sua fantasia incestuosa e, portanto, sua participação subjetiva. Desta forma, aquilo pelo qual o sujeito se considera responsável diz respeito a algo que ele ainda não domina e justamente por isso é possível fazê-lo responsabilizar-se. Neste sentido, a responsabilização é um processo que propicia ao sujeito a construção de uma solução particular frente a afetação do Real (BRANDÃO JR., 2008). Com base nesses achados, a retomada histórica evidencia que a atitude social diante da sexualidade, em especial no tocante a infância é determinada de acordo com o período histórico e as mentalidades vigentes. Em contrapartida, observa-se uma tendência por parte da sociedade, influenciada pelo saber psicológico, a tratar o abuso sexual infantil sobre uma perspectiva naturalizadora e moralizante que exclui o sujeito e dificulta uma escuta singular sobre o que ele tem a dizer. Os fundamentos históricos, antropológicos e psicanalíticos permitem compreender que o homem destituiu-se de sua natureza a partir do momento em que foi atravessado pela linguagem, a qual abrange, no contexto deste trabalho, a cultura, as regras, as proibições e o que a sociedade dita acerca das funções da criança e do adulto. Mais especificamente, no que concerne a visão psicanalítica, entende-se que o Outro, pela via da falta, instaurou no sujeito a sexualidade perverso-polimorfa, na medida em que o banhou com seus significantes e o recortou com a libido, fazendo-o perder o instinto e emergir em seu corpo a pulsão. É para esse sujeito, com seus significantes, que deve estar voltado o trabalho do analista, a fim de retirá-lo da posição de objeto submetido ao desejo do adulto, a qual pode levá-lo a um contínuo sofrimento. Contudo, é somente o sujeito quem pode dizer sobre de que forma o abuso sexual incidiu sobre ele. Por fim, cabe ao psicanalista estar atento as demandas, para não correr o risco de reduzir seu trabalho a mera verificação da ocorrência de abuso, pois neste caso, não estará ocupando a posição de analista. À guisa de conclusão, verifica-se que o sujeito do inconsciente é comandado pela dimensão do desejo e não diretamente pela dimensão moral ou biológica. Diante da demanda de abuso sexual, será esse sujeito que o psicanalista irá escutar e não aquele que recebeu o nome de “vítima” como amiúde se observa. Referências Bibliográficas ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA MULTIPROFISSIONAL DE PROTEÇÃO A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA (ABRAPIA) Abuso sexual contra crianças e adolescentes: Mitos e verdades. 3ª edição, Petrópolis - RJ, 2002. ROSA, M. I. P. D. (org.) 1º Simpósio de Psicologia, v.1, n.1, 2015. Curitiba : Editora Champagnat.

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