FADO DE BANDARRA (Thiago Amud)

DE PONTA A PONTA TUDO É PRAIA-PALMA (2013) FADO DE BANDARRA (Thiago Amud) Esquadra abandonada, solidão de velas pandas Vento, légua de mágoa Lua velh...
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DE PONTA A PONTA TUDO É PRAIA-PALMA (2013)

FADO DE BANDARRA (Thiago Amud) Esquadra abandonada, solidão de velas pandas Vento, légua de mágoa Lua velha, mal de Luanda Torvelinho de mil algas assombrando a flor das águas E a mão do destino incerto Lavrando-me em suas tábuas Portugal no vão do peito Desconcerto de guitarra: Mar que separa Mensagem, madrugada, continente adivinhado Vento, rota de saga Lua nova, mastro sagrado Preces fundas, brancas vagas espumando o não das pragas E o coração do encoberto Calando-me a mesma fábula Quinto Império, chão eleito Vaticínio de Bandarra: Mar que prepara Miragem prateada, timbre verde na bandeira Vento, orla de brilho Lua plena, céu de Vieira Reis de etérea dinastia dilatando a fé no exílio E o ventre do mundo aberto Trazendo-me o novo filho Hora vasta, tempo feito Sol quebrando agora a barra: Mar que depara DE PONTA A PONTA TUDO É PRAIA-PALMA (Thiago Amud)

De ponta a ponta tudo é praia-palma Quebranto na vertente das montanhas As aves evasivas embalsamadas País de saúva e mar Vivi pra te desvelar Mercúrio, chumbo e césio nas aguadas Quilombos entocados na caliça As alegrias azinhavrando as almas País de febre e luar Morri pra te decantar Quando olhei a terra inteira Ardendo em vasto fogaréu Eu vi que o morro da Mangueira Parecia um inferno no céu Grassou Saturno, tudo está em transe O presidente zambo, a musa louca Mas súbito as nascentes destilam sangue País que agoniza luz Teu nome é a minha cruz Não permita Deus que valhas Menos que o teu coração Teus flancos de maracangalhas Tua língua de Grande Sertão De ponta a ponta tudo é praia-palma

DEVASTAÇÃO (Thiago Amud)

Devastação, paisagem calcinada Onde evapora o derradeiro choro Onde a carcaça ri-se arregaçada Em meio a pedras, fogo-fátuo e couro Outrora chão, agora sumidouro De ramas, almas, águas, tudo, nada Ali só restam pássaros d’agouro Em cada frincha, em cada vão de ossada Devastação, e o anjo não assoma As horas passam, o ar fica trancado No fosso, na garganta, no epicentro E os olhos carcomidos de glaucoma Nem sabem se é o mundo devastado Ou se é a vida definhando dentro

PAPOULA BRAVA (Thiago Amud)

Risonho, tresvariado Depois de sondar arcanos, oráculos, teoremas, escrituras e profundidades O poeta, todo ancho, lírico feito um demônio Tatuou na cabeça dum alfinete Os números ocultos constelados na miúda joaninha Ô, mascou um naco de papoula brava Ô, mascou um naco de papoula brava Quem o viu adormecer dentro daquela pedra de litoral? Quem o viu adormecer dentro daquela pedra de litoral? Quem o viu adormecer dentro daquela pedra de litoral? Quem o viu adormecer, hein? Montanha e promontório Doravante embalarão lagoa, enseada, oceano com a cantilena do poeta Retumbante fole mudo, híbrido de praga e prece E cada vez que o Verbo se consubstancia Lá vão as joaninhas apressadas rodear aquela pedra Ô, mascou um naco de papoula brava Ô, mascou um naco de papoula brava Quem o viu adormecer dentro daquela pedra de litoral? Quem o viu adormecer dentro daquela pedra de litoral? Quem o viu adormecer dentro daquela pedra de litoral? Quem o viu adormecer, hein?

NO CONTRATEMPO (Thiago Amud) O dia daqui

bate no contratempo do dia de lá. Bem na hora em que o sol do Japão começava a sumir, cá terminava a batucada. Então, fui dormir e, porque não custa nada sonhar, me acordei pra dentro e, quando percebi, entrei num túnel pra lá... ...parei numa cidade onde a gente era por natureza mulata de verdade e completamente japonesa. Bandeira não havia. Havia apenas o estandarte da escola Que estampava, todavia O sol nascente encarnado numa bola Ingressei num trem bala destino Portela Pra ajudar a Surica a fazer o sushi Bambas do shamisen vinham lá da favela Pra curtir quatro dias sem harakiri Velha Guarda largou o xogun no palácio Todo o clã tava pronto para o carnaval (-Carnaval!) Quando o mestre Bashô, partideiro do Estácio Repicou na curimba um haicai tropical E tal legal Deixa eu contar o final Não me acordem já não, que ‘tá chegando a hora Olha a gueixa e a cabrocha adentrando o batuque (ai...) Mascaradas, com seus tornozelos de fora (ai...) Era um pouco umbigada, era um pouco kabuki Fui bancar o esperto e quase que morro (Socorro!) Pois dediquei às duas o tal do haicai E a gueixa era cacho do dono do morro (Que horror!) E a cabrocha era noiva de um samurai! Ai Despertei, fui lá fora checar meu regresso Um expresso corria no meu coração O sol se retirava aqui de Bonsucesso E um trem bala o levava de volta ao Japão

CARNAVAL NA MESOPOTÂMIA (Thiago Amud)

Vou passar o carnaval na Mesopotâmia Simbora, simbora agora Cê querendo eu sei um truque Simbora, simbora agora Cê querendo eu sei um truque Tá quase raiando a aurora Encare o sol até surgir a imagem Do deus sumério Shamash Vem chegando Chame a chama Vem cegando Chame-a E de repente em pleno Rio Baixa e fica o Rei de Uruk De repente em pleno Rio Baixa e fica o Rei de Uruk Gilgamesh que mexe que mexe que mexe que mexe... Vem amar de novo Vem saudar o povo Vem dançar no topo do eletro-zigurate Vem de bate-bola Vem entrar de sola Vem vencer o sono, que a morte é disparate Vem ter uma ideia Da epopéia que não acaba Vem, vem que a gente sua Pra te ver brigar e sentar a pua Em Humbaba no meio da rua Sentar a pua em Humbaba no meio da rua Vou esconjurar o pesadelo da história Para maior glória desse povaréu Hoje é quando o sonho engolfa a memória E eu beijo a escória E devoro a carne de mito e de medo do Touro do Céu Hoje o Ocidente não me serve de escudo No furor do entrudo eu vou me acabar Não sou nada, o mito é o nada que é tudo Tô vivo e desnudo Pra ser devorado por sacerdotisas da deusa lunar Adeus Anu-u-u-u-u-u-u É quarta-feira no Vale do Ur Javé traçou a meta Abraão levou a Sara Hebreus em linha reta Babilônos no samsara

A SAGA DO GRANDE LÍDER

(música de Edu Kneip/letra de Thiago Amud) Nasci num paradeiro que chamavam de Brasil No mês do carnaval de um já remoto ano dois mil Tô velho e deslembrei do seio que murchei Mas lembro das porradas sob as quais eu desmamei Ainda meninote, eu intuí o meu lugar O dente da ambição me acicatou a jugular Tomei um semancol e num piscar do sol De sub-aviãozinho virei dono do paiol Mas isso não bastou, pra mim era humilhante Examinar o espelho e achar um mero traficante Até que ouvi uma voz: “Escuta, meu rapaz Me entrega teu destino, liberdade e tudo o mais Que eu faço teu futuro da maneira que te apraz” Porém, passaram anos de marasmo e ramerrão Baladas e chacinas, primavera e caveirão E tome pancadão e tome inferno astral Compadres no monturo, inimigos no jornal A década acabou e eu vi na minha frente Um comitê de gringos com seu líder sorridente E conheci a voz daquele chanceler Notei nas suas têmporas sinais de Lucifer Sujeito de palavra que auxilia quem malquer Que veio colocar minh’alma no penhor E em troca me alçaria à estatura de senhor... Que amor, que amor! Faria da favela um território above the law Um éden de heroína e de cheirinho-da-loló Pro homem do amanhã ter trip cidadã E o Rio de Janeiro ser melhor que Amsterdã E completou: “myboy, I’m gonna give you what you miss Teu morro será quase como fosse outro país Um tipo de Hong Kong na aba de uma ONG De iogues-comissários de gravata e de sarongue E tu serás a lei!” – Oh, yes, I am the boss! Tornei a olhar o espelho e me flagrei tomando posse Dobrei os meus rivais, tramei reviravolta E agora o fisco existe pra bancar a minha escolta E as forças desarmadas vão calar sua revolta O novo catecismo são meus ditos no pasquim Meu nome é traduzido em esperanto e mandarim Os gringos me mantêm, o lumpem me quer bem E a alta burguesia do meu pó virou refém Reservas, tribunais por sob as minhas patas Eis-me o mais orgânico dentre os aristocratas Tudo que eu sofri agora é meu troféu É meu salvo-conduto pra moldar o povaréu E ser glorificado antes de assar no beleléu No mês do carnaval nasci no ano dois mil E abri mais uma estrela em teu pendão com meu fuzil, Brasil, Brasil...

ESTIGMA (Thiago Amud) As montanhas, as flores, manchaste Com teus olhos escuros e maus E roubaste da luz os contrastes A dança das cores e constelações Só por causa dos teus espantalhos As cidades sujaram as mãos E de noite pousaram nos galhos Mil fábulas tristes sobre os animais Quando então minha reza e meu gesto Terão força pra te esconjurar E quebrar tua imagem de pedra Pra ter primavera ao invés de teu olhar? A vergonha, no espelho escondeste Para os olhos herdarem os teus Engendraste esse estigma, essa peste Trancaste-me as águas, vedaste-me os céus

OUTRO ACALANTO (Thiago Amud) Nem jangada nem rede nem remo Onda não pedra não peixe não concha não Nem lagoa nem lua nem vento Só o corpo e a cor do algodão Só as pétalas de tantas lágrimas Polvilhando de amor o caixão Ele estava bonito, afogado Já depois da barra da visão Ele estava sereno, minguado Bem pra lá de outra arrebentação Ele estava tão longe, tão triste Ele estava no meu coração Tantas coisas não vemos, que existem E que, tanto quanto somos, são Pescarias, clarins para Dora Maricota, Marina, Valentão E esse travo da morte de tudo E de tudo a continuação Ancião, dê seu beijo nos anjos E descanse no fim da canção

ANCESTRAL

(Thiago Amud) Sou velho Minha raça limita com a dos patriarcas Sou velho Fui ninado pelas parcas E hoje a memória turbada E a língua pesada De nomes e recitações Confundem concílios e ciclos e clãs Com novíssimas rebeliões Sou velho Minha tribo nasceu do vapor do aguaceiro Sou velho Fui sagrado pelo arqueiro E hoje o silêncio trancado E o sangue pisado Por bestas e musas venais Implodem de raiva e de dor no tumulto Vastíssimo dos carnavais Às vezes um fogo me impele Por dentro e eu lembro Que a tempos não tenho pele que tisne Às vezes eu canto em falsete Mas são mãos do tempo Torcendo meu gasganete de cisne Sou velho Minha fé recusou dez bezerros de ouro Sou velho Fui alçado pelo touro E hoje a linhagem traída E a força partida Nos atos e músculos meus Definham nas cátedras sob o conluio Cultíssimo dos fariseus

TOANTE (Thiago Amud)

Tempo repousa há milênios No vale da eternidade Rumina todo o silêncio

Da paragem Tempo se lança com as aves Entra da seta do vento Franqueia a pele dos ares Desde dentro Talvez sua fala Se alastre na mata Que nem um incêndio Mas entre fogo e palavra Cadê o tempo? Talvez o seu bombo Adormeça o relâmpago E rache o cristal Mas essa coisa toando Foi um trovão As velas passam da barra Os homens jogam a rede O tempo vira a jangada No sumidouro dos peixes Depois a onda devolve Um corpo quase salsugem E o tempo então se recolhe À escuridão do ataúde Tempo repousa há milênios No vale da eternidade Rumina todo o silêncio Da paragem

SILÊNCIO D'ÁGUA (Thiago Amud) Silêncio das águas Silêncio d'água

Move o monjolo, fonte primitiva Alaga o vale da retentiva E a lama da várzea Mágoa A lágrima clara Lava Silêncio das águas Silêncio d'água Paira na praia em sons evaporados Entra no ouvido dos afogados Marulho pras almas Salmo Murmúrio das algas Algo Silêncio das águas Silêncio d'água Pára o moinho, dorme na cisterna Mina perdida e sempiterna Nem noite nem alva Pausa Nem sopro nem vaga Nada