UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS INTERDISCIPLINARES SOBRE MULHERES, GÊNERO E FEMINISMO

FABIANA DOS SANTOS ROCHA

“BOTOU FOI A GENTE NO FOGO! QUERIA VER A GENTE SE QUEIMAR!”: um estudo sobre as Mulheres da Paz de São Cristóvão, Salvador-BA

Salvador - BA 2013

FABIANA DOS SANTOS ROCHA

“BOTOU FOI A GENTE NO FOGO! QUERIA VER A GENTE SE QUEIMAR!”: um estudo sobre as Mulheres da Paz de São Cristóvão, Salvador-BA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo.

Orientadora: Profa. Dra. Márcia Santana Tavares

Salvador – BA 2013

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R672

Rocha, Fabiana dos Santos “Botou foi a gente no fogo! queria ver a gente se queimar!”: um estudo sobre as Mulheres da Paz de São Cristóvão, Salvador-BA / Fabiana dos Santos Rocha. – Salvador, 2013. 223 f. : il. Orientadora: Profa. Dra. Márcia Santana Tavares Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2013. 1. Mulheres – Movimentos sociais – Salvador (BA). 2. Políticas públicas 3. Gênero. 4. Violência. 5. Conflito - Mediação. I. Tavares, Márcia Santana. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. III. Título.

CDD – 305.4 ______________________________________________________________________

FABIANA DOS SANTOS ROCHA

“BOTOU FOI A GENTE NO FOGO! QUERIA VER A GENTE SE QUEIMAR!”: um estudo sobre as Mulheres da Paz de São Cristóvão, Salvador-BA

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 21 de outubro de 2013

Banca Examinadora

Márcia Santana Tavares – Orientadora _________________________________ Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia, Brasil. Universidade Federal da Bahia

Lina Maria Brandão de Aras___________________________________ Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, Brasil. Universidade Federal da Bahia

Rosamélia Ferreira Guimarães______________________________________ Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. Universidade Federal da Bahia

A minha linda e amada filha Laura. O seu Encanto ilumina a minha Vida. À memória de Camila, minha irmã, amiga e companheira que se foi precocemente e que permanece viva em minhas lembranças.

Agradecimentos

A Laura pela força, pelo carinho, pela paciência e compreensão pelos momentos nos quais estivemos distantes. A minha família, principalmente aos meus pais Edina e Renildo, por me mostrarem caminhos para a Liberdade e para a Luta. A Tedy que me trouxe ternura e serenidade nos momentos mais difíceis, tornando mais doces as tormentas. As minhas amigas Mari, Cíntia, tia Lúcia, Rita e Sil, pela atenção, amizade, apoio e carinho. E por me aturarem, mesmo estando tão ausente. As Mulheres da Paz que participaram da construção deste trabalho dando vida e sentido às minhas inquirições, que de forma grandiosa e generosa depositaram confiança em mim, recebendo-me em seus lares. A estas mulheres que compartilharam comigo o seu tempo, as suas histórias e sentimentos, os mais íntimos, aos quais devo carinho, respeito e gratidão. As coordenadoras das equipes do Projeto Mulheres da Paz que disponibilizaram encontros tão preciosos e fundamentais para a pesquisa. Sou-lhes grata pelo aprendizado, por desfrutar da inteligência, dinamismo, competência e garra, que as acompanham em sua vida profissional. A Profa. Márcia Tavares pelos ricos questionamentos, contribuições, paciência, receptividade, pelos retornos frequentes, todos imprescindíveis para o desenvolvimento do trabalho. As Profas. Silvia de Aquino e Alinne Bonetti pelas colaborações e críticas. As professoras do PPG-NEIM, principalmente Profa. Cecilia Sardenberg, pelas portas abertas. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A outras pessoas que não mencionei, mas que apoiaram mesmo de forma indireta e não menos importante. Muito obrigada pelas possibilidades criadas para que se tornasse concreto esse projeto, favorecendo o meu crescimento profissional e humano.

É vista quando há vento e grande vaga Ela faz um ninho no enrolar da fúria e voa firme e certa como bala As suas asas empresta à tempestade Quando os leões do mar rugem nas grutas Sobre os abismos, passa e vai em frente Ela não busca a rocha, o cabo, o cais Mas faz da insegurança a sua força e do risco de morrer, seu alimento Por isso me parece imagem e justa Para quem vive e canta num mau tempo.

Sophia de Mello Breyner Andresen (1967)

Resumo

A pesquisa, de caráter descritivo-analítico, visa analisar como mulheres elaboram e traduzem a formação como ―Mulheres da Paz‖, promovida pelo PRONASCI, Ministério da Justiça, através de um estudo de caso com as mulheres beneficiárias da referida política no bairro de São Cristóvão, Salvador-BA. Para tanto, selecionou-se nove mulheres envolvidas, sendo sete Mulheres da Paz e duas coordenadoras que compuseram as equipes de trabalho dessa política. Dentre as Mulheres da Paz, seis participaram das turmas sediadas no Colégio Municipal de São Cristóvão, por formarem um grupo com bom aproveitamento do curso e também de melhor acesso, dado o contexto de conflitos desencadeados pelo tráfico de drogas na região onde transcorreu a pesquisa; a sétima participou da turma sediada no Colégio Estadual Brigadeiro Eduardo Gomes por se tratar de uma das lideranças e moradoras mais antiga do bairro de São Cristóvão, em virtude, portanto, do conhecimento que acumulava a respeito da história deste bairro. As entrevistas estiveram pautadas em roteiros previamente estabelecidos, padronizados para as Mulheres da Paz e específicos para as duas coordenadoras do projeto Mulheres da Paz. A abordagem passou por um enquadramento social, político e histórico no contexto de administração federal e estadual de esquerda no Brasil. A pesquisa envolve momentos de estranhamento, esquematização, desconstrução de estereótipos preconcebidos, comparação e sistematização do material em modelos alternativos; bem como se desenvolve em torno do conhecimento situado e corporificado, assumindo as perspectivas dos grupos excluídos como dotados de posicionamento político. Considera-se a violência como constitutiva da ordem social. Neste caso, o ―universo do crime‖ compreende uma complexa negociação respaldada em uma série de elementos que o retroalimentam, proliferando estados de violência. Conforme os resultados da pesquisa, o recorte de gênero sobre o fenômeno indica a baixa representatividade das mulheres nos crimes de homicídio por arma de fogo. Ainda ressalta os pressupostos maternalistas assumidos pelo Estado, fixando as mulheres das camadas trabalhadoras como responsáveis pelo cuidado dos jovens público-alvo do PRONASCI. O Estado classificou as mulheres beneficiárias como em situação de ―violência‖, e propôs o seu ―empoderamento‖ através da formação de redes de apoio entre elas. No PRONASCI, a noção de ―empoderamento‖ se restringe à constituição da autoestima do self feminino e na valorização de sua atuação junto à comunidade. O ônus recaído sobre as Mulheres da Paz representa uma face da política brasileira de transferência de responsabilidades para setores da sociedade civil.

Palavras-chave: Mulheres da Paz. Violência. Gênero. Políticas Públicas. Mediação de Conflitos.

Abstract

This is a descriptive - analytic research with the intent to analyze how women prepare and translate the training as " Women of Peace " sponsored by PRONASCI, Ministry of Justice, through a case study with women beneficiaries of the policy, in the neighborhood of São Cristóvão, Salvador - BA . Therefore, we selected nine women involved, seven Women of Peace and two coordinators who were part of the team working this policy. Among Women of Peace, six of them have participated in classes based on the Colégio Municipal de São Cristóvão , forming a group with good performance of the course and also better access, given the context of conflicts triggered by drug trafficking in the region where the research was conducted; the seventh person have participated the group based in State College Brigadeiro Eduardo Gomes for being one of the leaders and is one of the oldest residents district of São Cristóvão, due to accumulated knowledge about the history of this neighborhood. The interviews were guided by previously established maps, standardized for Women of Peace and specifically design for the two coordinators of the project Women of Peace. The approach used here is a framework for social, political and historical context of the federal government and the state of the left policy in Brazil. The research involves moments of strangeness, layout, deconstruction of preconceived stereotypes, comparison and systematization of the material in alternative models, as well as develops around the embodied and situated knowledge, assuming the perspectives of marginalized groups as having political position. Violence is considered as constitutive of social order. In this case, the "world of crime" comprises a complex negotiation backed by a number of elements that feeds back to the crime, proliferating states of violence. The finds in this research points to a gender reading on the phenomenon indicating the low representation of women in crimes of homicide by firearms. Also highlights the material assumptions, assumed by the State, setting the women of the working classes as being responsible for the care of the young, who are the audience PRONASCI. The state ranked women beneficiaries as in a situation of "violence" and proposed their "empowerment" through the formation of support networks. In PRONASCI, the notion of "empowerment" is restricted to the constitution of the female self-esteem and appreciation of their work with the community. The burden fallen on Women Peace represents a face of the Brazilian policy of transferring the responsibilities to civil society sectors.

Keywords: Women for Peace. Violence. Gender. Public Policy. Conflict Mediation.

Listas de abreviaturas e siglas AR

Administração Regional

BF

Bolsa-Família

CF

Constituição Federal

COB

Corpo de Bombeiro

CRAS

Centros de Referência de Assistência Social

CREAS

Centros de Referência Especializados de Assistência Social

DHPP

Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa

ECA

Estatuto da Criança e do Adolescente

EM

Equipe Multidisciplinar

EP

Equipe Pedagógica

EME

Estado-Maior do Exército

EUA

Estados Unidos da América

FGV

Fundação Getúlio Vargas

FNSP

Fundo Nacional de Segurança Pública

GGI

Gabinete de Gestão Integrada

GGIE

Gabinetes de Gestão Integrada Estaduais

GGIM

Gabinetes de Gestão Integrada Municipal

IPEA

Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

MOBRAL

Movimento Brasileiro de Alfabetização

MJ

Ministério da Justiça

MPs

Mulheres da Paz

ONG

Organização não Governamental

PAC

Plano de Aceleração do Crescimento

PC

Polícia Civil

PDDU

Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

PEG

Planejamento Estratégico de Gestão

PF

Polícia Federal

PFL

Partido da Frente Liberal

PIAPS

Plano de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais de Prevenção à Violência

PNEVM

Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres

PNPM

Plano Nacional de Políticas para as Mulheres

PNSP

Plano Nacional de Segurança Pública

PM

Polícia Militar

PMDB

Partido do Movimento Democrático Brasileiro

PP

Partido Progressista

PRF

Polícia Rodoviária Federal

PRONASCI

Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania

PROTEJO

Proteção de Jovens em Território Vulnerável

PT

Partido dos Trabalhadores

RMS

Região Metropolitana de Salvador

SC

São Cristóvão

SEDES

Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza

SENASP

Secretaria Nacional de Segurança Pública

SIMAP

Sistema de Monitoramento e Acompanhamento do PRONASCI

SIMPAZ

Sistema Nacional do Projeto Mulheres da Paz

SPOA

Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração

SUSP

Sistema Único de Segurança Pública

Sumário

INTRODUÇÃO 1

A POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA NO COMBATE À VIOLÊNCIA

1.1

VIOLÊNCIA, CRIME E A CONSTITUIÇÃO DE UMA ORDEM SOCIAL

1.1.1

A institucionalização da violência e suas interfaces

1.1.2

A questão da segurança e a Constituição Federal de 1988: atropelos

1.2

A POLÍTICA DE SEGURANÇA PÚBLICA

1.2.1

A política de segurança cidadã: o PRONASCI

1.3

O PRONASCI E A QUESTÃO DE GÊNERO

1.3.1

O projeto Mulheres da Paz

1.3.2

Pelo ―empoderamento‖ das mulheres - O Projeto Mulheres da Paz

1.3.3

A ―Solidariedade na Dor‖: as Mulheres da Paz e as Mães de Acari

2

TRADUÇÃO INTERPRETATIVA SUBVERSÃO

2.1

CONTEXTO HISTÓRICO-POLÍTICO DE SALVADOR

2.1.1

A participação cidadã: de ―popular‖ para um ―novo tempo‖

2.2

O PROJETO MULHERES DA PAZ NA BAHIA: A SEDES

2.2.1

A avaliação

2.2.2

A Equipe Multidisciplinar (EM) e o porquê de São Cristóvão

2.3

A ONG AVANTE E O PROJETO MULHERES DA PAZ

2.3.1

O processo avaliativo

2.4

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS SOBRE O CAMPO DA PESQUISA

2.4.1

O percurso

2.4.2

Material e fontes de pesquisa

2.4.3

A pesquisadora: representação do Estado e subversão

2.4.4

Outras questões metodológicas

2.4.5

Os saberes situados e a questão da objetividade

3

A VIOLÊNCIA EM SÃO CRISTÓVÃO

3.1

O BAIRRO SÃO CRISTÓVÃO

DE

ANGÚSTIAS

E

3.1.1

História e características

3.1.2

Os conflitos no bairro

3.1.3

O enfrentamento

3.2

AS MULHERES DA PAZ NO ―PLANETA DOS MACACOS‖

3.2.1

Do processo seletivo à formação

3.2.2

O ―Planeta‖ e o ―Colejão‖

3.2.3

As MPs em foco

3.2.3.1

Dilma

3.2.3.2

Diana

3.2.3.3

Marta

3.2.3.4

Rita

3.2.3.5

Thaís

3.2.3.6

Lourdes

3.2.3.7

Zeferina

3.2.4

A mediação de conflitos

3.3

TRANSFORMAÇÃO COMUNIDADE

3.3.1

As Mulheres da Paz por elas mesmas

3.4

O PROJETO PARA ELAS - A SUA POLÍTICA DE SEGURANÇA

3.5

A QUESTÃO DA CIDADANIA CONCLUSÃO REFERÊNCIAS ANEXOS

DA

MULHER

DA

PAZ

NA

SUA

Introdução

A partir de 2009, passei a acompanhar mulheres das camadas populares do bairro de São Cristóvão, em Salvador, formadas no Projeto Mulheres da Paz (MP), do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI- Ministério da Justiça). O projeto Mulheres da Paz objetivou a formação e o fortalecimento de redes sociais no combate à violência e à criminalidade, em que um dos eixos trabalhados abordaria o ―empoderamento‖ das mulheres. Este projeto foi inspirado no movimento das ―Mães de Acari‖, composto por mulheres das camadas populares do Rio de Janeiro, nos anos 1990, que esteve voltado para o combate à violência policial e à impunidade naquele contexto específico. Ao se respaldar no tradicional papel de cuidados desempenhado pelas mulheres, o Governo Federal criou uma política pública de combate à violência urbana em que as mulheres se constituíram como intermediárias/mediadoras para atingir os jovens expostos à criminalidade, público-alvo do PRONASCI. O projeto Mulheres da Paz foi dividido em duas fases: o curso de formação executado pela ONG Avante, no qual as participantes adquiriram conhecimentos básicos sobre Indivíduo e Sociedade, Direitos Humanos, Mediação de Conflitos, Identidade, Cultura de Paz e Políticas Públicas durante seis meses; e a atividade prática de mediação de conflitos em sua vizinhança, acompanhada por profissionais disponibilizados (as) pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (SEDES) completando os seis meses restantes. Estive com as ―Mulheres da Paz‖ como uma das profissionais contratadas pela coordenação pedagógica do referido projeto na sua primeira fase, representada pela ONG Avante, em duas turmas, Municipal I e II, no bairro de São Cristóvão, Salvador-BA, entre novembro de 2009 e junho de 2010. Neste momento, deparei-me com a política pública do PRONASCI, de combate à violência de gênero e urbana no país, a qual possibilitou aproximar-me das queixas das beneficiárias quanto à formatação estabelecida pelo programa. Com o desenrolar do trabalho executado em sala de aula, constatei as suas dificuldades para desempenharem as tarefas, assim como suas críticas sobre a falta de perspectivas para a população jovem através da mediação pela ―paz‖ proposta pelo programa PRONASCI. A priori, não estaria atendendo às questões demandadas pelas mulheres, dificultando a sua participação no desenvolvimento do projeto. Logo, passei a tomar nota de suas queixas, assim 14

como das minhas, em diários de campo, cujas observações abrangiam as nossas condições de trabalho para o desempenho da política. Retornei ao bairro em setembro de 2011, como parceira de algumas ―Mulheres da Paz‖, em pequenos projetos por nós desenvolvidos, nos quais atuei até dezembro de 2012. No intuito de desenvolver a presente dissertação de mestrado, entre novembro de 2012 e junho de 2013, acompanhei algumas ―Mulheres da Paz‖, através de um estudo de caso sobre as suas atuações como mediadoras de conflitos, a partir do projeto MP, na pesquisa social por mim empreendida. Inicialmente, o estudo tinha por finalidade a análise sobre a história de vida das beneficiárias do referido projeto, com a hipótese de que a política que lhes foi direcionada não teria atendido às suas demandas por acesso a serviços e direitos. Contudo, percebeu-se que se tratava de um estudo que necessitaria de um tempo maior do que o disponibilizado. Assim, busquei evidenciar uma análise etnográfica acerca do cotidiano das ações práticas dessas mulheres para a efetivação do programa. Entretanto, já em trabalho de campo em outubro de 2012, não senti segurança para transitar pelo bairro diariamente, em função dos constantes relatos sobre a demarcação de territórios pelas lideranças do tráfico de drogas e violência dele decorrente. Também, naquele momento, efetivou-se uma operação policial no bairro, prendendo traficantes, bem como a ocorrência do homicídio de um policial civil na porta de casa, culminando na recomendação da primeira ―Mulher da Paz‖ entrevistada para que eu não transitasse pelo bairro, dadas as circunstâncias. Novamente, modifiquei o direcionamento da pesquisa, desta vez voltando o olhar sobre como estas mulheres significam e traduzem a sua formação como ―Mulheres da Paz‖, mediante um estudo de caso pautado em entrevistas, refletindo sobre as suas condições para o desempenho do trabalho proposto, indo de encontro ao direcionamento dado pelo PRONASCI, que as classificou como em estado de ―vulnerabilidade social‖. A partir do exposto, indico como material de estudo para o presente trabalho os dados do estudo de caso e os dados etnográficos iniciais, ambos reunidos no decorrer de três anos de contato estabelecido no bairro de São Cristóvão. Os dados etnográficos constituem o primeiro momento de contato com as participantes do Projeto Mulheres da Paz, assim, os meus relatos quando integrante da equipe do projeto; como também o segundo momento, quando empreendendo a pesquisa para esta dissertação. Compreendem também como dados os relatos estruturados pela proposta de pesquisa, obtidos através das transcrições de entrevistas com as participantes, sendo elas as ―Mulheres da Paz‖ beneficiárias da referida política pública, uma integrante da Equipe Multidisciplinar do projeto, além da coordenadora da ONG Avante; 15

material institucional fornecido por algumas ―Mulheres da Paz‖ e pela integrante da Equipe Multidisciplinar do projeto MP, tais como relatórios, material didático do curso, trabalhos desenvolvidos e produzidos pelas mulheres participantes durante sua formação, cartilha e panfletos. Pretendo compreender como as mulheres beneficiárias elaboram e traduzem a formação como ―Mulheres da Paz‖, promovida pelo PRONASCI, situando a análise numa conjuntura política específica que envolve a cidade de Salvador para a caracterização do cenário em que se desenvolveu a pesquisa. Tomo como referência o período histórico-político de administração federal e estadual de esquerda no Brasil, desde 2003 até o presente momento da pesquisa, perpassado pelas alianças estabelecidas para a gestão municipal, como foi o caso de Salvador. O presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT) foi reeleito em 2006. Dentre as ações deste governo, o programa social Bolsa Família obteve repercussão política e social por representar um conjunto de medidas que mudariam o quadro social do país - a região NE concentrou o maior número de beneficiários. Na Bahia, o Partido dos Trabalhadores (PT) se coligou a quase toda a oposição baiana, criando condições de governabilidade, assim como a prefeitura de Salvador, através de João Henrique Carneiro, hoje, integrado ao Partido Progressista (PP), mas que durante parte de sua administração foi filiado ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), partido aliado ao PT. Luís Inácio Lula da Silva estabeleceu uma articulação nacional do governo federal com o governo do estado da Bahia, através do seu Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), a partir de 2007. A medida marcou uma forte centralização do poder decisório de formulação e controle de políticas públicas voltadas ao social, como sugere Dantas Neto [s. d.]. O novo campo político baiano logo procurou manter as redes de lealdade política e apoio social, já formadas pela antiga administração. No tocante à gestão na área da Justiça e Direitos Humanos, a literatura indica carência de recursos materiais, de musculatura institucional e de visibilidade no discurso geral do Governo. Dessa forma, cria dificuldades de implementação de políticas que gerem impactos efetivos na sociedade. Investidas da Polícia Militar (PM) em determinados contextos urbanos demarcam ações violentas e discriminatórias contra jovens negros e comunidades periféricas, em nome do combate à marginalidade. Configuram um número alto de assassinatos e um aspecto nocivo do sistema de Justiça brasileiro à sociedade (ESPINHEIRA, 2004; 2008). A 16

ação perpetrada por essa polícia constitui uma forma de corrupção que se mantém impune sob o silêncio de autoridades do Governo, representando um aspecto da violência institucional. Tal complacência sugere o não pertencimento da polícia à sua gerência, o que indicaria sinais de quebras da estrutura policial, passível, portanto, de intervenção mais efetiva de diretriz e de procedimentos. Com isso, pretendo indicar as bases nas quais se sedimentam a política de segurança do país, concebida como PRONASCI. Construo o meu argumento levando em consideração o cenário apresentado, indo de encontro à classificação do governo que se refere às mulheres das camadas populares como em condições de ―vulnerabilidade social‖ no contexto de violência. ―Vulnerabilidade‖ e violência são conceitos presentes nos debates sobre exclusão social (BRONZO, 2007; PINTO, 2011, p. 168), na América Latina, sua abordagem é recente e tem como objetivo ampliar a análise dos problemas sociais. Nesse caso, ―vulnerabilidade‖ está relacionada à exposição ao ―risco‖ e, consequentemente, à capacidade de resposta, material e simbólica, que indivíduos, famílias e comunidades conseguem fornecer para enfrentar as situações de ―risco‖ (BRONZO, 2007). Assim, residiria a importância das políticas públicas e programas como meios que pudessem fortalecer a capacidade de resposta, e, assim, da redução da condição de ―vulnerabilidade‖. Contudo, argumento, respaldada em Carneiro (2002), que o termo ―vulnerabilidade‖ se configura como mais uma forma de discriminação dirigida às mulheres de camadas populares, especificamente às mulheres negras. Portanto, considero importante uma abordagem sobre a pobreza e as desigualdades sociais, em que pesem as desvantagens das mulheres em relação aos homens e delas entre si, em termos de direitos, e consequente mobilidade socioeconômica (MACÊDO, 2007). Na literatura sobre violência, direciona-se atenção à atuação dos homens nos contextos considerados violentos (ESPINHEIRA, 2004; 2008; IBGE, 2009; YOUNG, 2002; ZALUAR, 2000). Eles aparecem, ora como autores, ora como vítimas nas situações de violência urbana, engrossando as estatísticas sobre a criminalidade – geralmente, são homens negros pobres. As mulheres, nesses estudos, estão postas como se vivenciassem em grande parte a situação de violência doméstica e familiar, naturalizando este tipo específico de violência para este grupo em particular. Desconsidera-se, portanto, as situações cotidianas de conflitos gerados pela violência urbana que enfrentam em determinados contextos, seja como autoras, ou como vítimas. Por isso, acredito que as formas de violência são expressões de um determinado 17

contexto sociocultural demarcado pelas interfaces sociais – de gênero, raciais, de classe, geracionais, dentre outras demarcações socioculturais –, o que reforça o meu interesse em compreender a atuação de mulheres no contexto específico de violência urbana e de gênero na capital baiana. A partir dessa pesquisa, constatei a reprodução de preconceitos com base no gênero, principalmente por parte do Estado com a política Mulheres da Paz sobre as mulheres dos contextos urbanos marginalizados. A política permitiu que estas mulheres alcançassem conhecimentos que obtiveram ao longo de suas vidas. Em alguns casos, a partir da política avançaram por novos caminhos na busca por acesso a serviços, bens, segurança e bem-estar social; em outros, não conseguiram conquistar as suas aspirações por mudança de condições de marginalidade social. Neste sentido, defendo o argumento de que as várias lacunas deixadas pela estruturação da política do PRONASCI na Bahia permitiram que mulheres fossem expostas a condições conflituosas frente às atividades que deveriam desempenhar nos territórios-foco. As ―Mulheres da Paz‖ foram oneradas ao serem designadas para o trabalho de mediação de conflitos urbanos, representando uma faceta da política brasileira de transferência de responsabilidades para setores da sociedade civil. Para tanto, desenvolvo a seguir o percurso de construção do argumento apresentado. Esta dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro capítulo, A Política de Segurança Pública no Combate à Violência, apresento uma contextualização a respeito da problemática que envolve a segurança pública do Brasil. Desenvolvo uma discussão sobre a violência como constitutiva da ordem social, situando os conceitos de crime violento e violência como um grande problema para a segurança pública brasileira. Assim, demarco o seu processo de institucionalização pelo Estado através do racismo, da pobreza, da desigualdade de gênero e da brutalidade policial instaurada. Discuto problemas presentes na política de segurança pública brasileira, a partir de estudos já realizados anteriormente, bem como os antecedentes para a constituição do programa PRONASCI, como a polícia comunitária e a criação de órgãos e secretarias na área. Em seguida, apresento a política de segurança no país, representada pelo PRONASCI, que, segundo alguns autores (FGV, 2008; RIOS et al, 2011), ―inova‖ no conceito de participação cidadã de forma superficial, através da inserção da sociedade civil na atuação contra a criminalidade. Por último, desenvolvo uma argumentação em torno da maneira como a questão de gênero é concebida no PRONASCI, 18

apresentando uma reflexão sobre a noção de ―empoderamento‖ do programa de segurança, a partir do projeto ―Mulheres da Paz‖; posteriormente, estabelecendo relação entre estas com as mães de Acari, para indicar as inspirações para a criação da referida política voltada para mulheres, que reproduziu e reafirmou desigualdades, estabelecendo a mediação social como atributo das mesmas. No segundo capítulo, O Contexto da Pesquisa, apresento o percurso para chegar ao objeto do presente trabalho, começando por uma explanação da conjuntura política de Salvador, em que considero como recorte analítico a administração de esquerda do governo brasileiro entre 2003 e 2010. Saliento a sua importância para compreender os processos de execução da política Mulheres da Paz. Em seguida, exponho as duas instituições – SEDES e ONG Avante - executoras da referida política do PRONASCI, bem como as suas respectivas avaliações sobre o projeto e analiso a especificidade atribuída ao bairro de São Cristóvão para a execução da política. Por último, desenvolvo considerações metodológicas referentes à realização do presente trabalho de pesquisa, abordando desde o primeiro contato com as ―Mulheres da Paz‖ (MPs) no curso de formação, em 2009, até o desenvolvimento da pesquisa; enfatizo o lugar da pesquisadora no processo de construção do campo, apontando algumas questões éticas e de conflitos (NUNES, 1978). No terceiro capítulo, A Violência em São Cristóvão, apresento a história do bairro de São Cristóvão para fazer uma contextualização do local de atuação das Mulheres da Paz, sujeitos da presente pesquisa. Analiso conflitos e formas de enfrentamento por parte das MPs. Neste espaço, foco nas atividades desenvolvidas por elas, os seus sentimentos e escolhas para compreender como elas traduzem a sua atuação como ―Mulheres da Paz‖. Nesse momento, será fundamental desenvolver o argumento em torno da sua contribuição como mediadora de conflitos na sua comunidade a partir de suas próprias reflexões, como também em torno de uma possível transformação provocada pelo curso formativo, indicando as formas de apropriação da política pública. Por último, indico como estas MPs vislumbraram os processos de transformação de suas vidas dado o contexto de marginalidade social.

19

1 A política de segurança pública no combate à violência

1.1 Violência, crime e a constituição de uma ordem social

A violência se insere numa complexa negociação em torno dos significados e das ações estabelecidos no mundo, em que novas formas de interações sociais possibilitam reações conflituosas entre os atores sociais que se amoldam ao contexto histórico-social. No Brasil, o cenário criminoso contemporâneo expressado pela crise e quebra de valores comuns é bastante complexo e tem uma base histórica no período do domínio colonial português, que institucionalizou e legitimou a violência com fins de ordenação social (MONTES, 2000). A manifestação da violência está presente em todos os tempos e povos. Entretanto, ainda hoje, surgem afirmações a respeito de um aumento da violência, que desconsidera o passado histórico demarcado pelo uso desta – como pudemos observar com relação à escravidão e suas implicações no país, bem como, mais recentemente, com relação aos processos antidemocráticos durante a ditadura militar. Uma nova forma de violência que se firmou no país, desde finais da década de 1970 até hoje, com aumento expressivo das taxas de homicídios, sobretudo, nas capitais e regiões metropolitanas e, com grande número de execução por parte de agentes da segurança pública do país. Mediante redes e organizações complexas que ultrapassam os limites das classes sociais, o crime violento se tornou parte dos processos globais econômicos e socioculturais – geralmente, atribuídos ao tráfico de drogas, cujas implicações incidiram sobre o aumento do crime de homicídio – associado ao aumento da violência institucional. De um lado, configura-se o fomento do medo e preconceitos, através da ―fala do crime‖, direcionados a determinados segmentos da população – a pobre e negra; de outro lado, convivemos com as estatísticas sobre a incidência dos crimes, mas também com a sua ocultação pelas mídias, que direcionam os debates sobre o fenômeno conforme interesses políticos. Assim, para entender as manifestações atuais da violência, cabe observar os reais mecanismos que a fomentam. Distancio-me das explicações atribuídas que estabelecem uma relação de causalidade entre criminalidade violenta e pobreza, como também entre violência e a ―inexistência‖ do 20

Estado em contextos marginalizados. No meio acadêmico, a fragilidade e a baixa legitimidade estatal são consideradas a causa da violência urbana. Essa ausência institucional é encarada como uma possibilidade de ocorrência da violência em meio à grande diversidade das relações sociais e de possibilidade de eventos violentos. Assim, também sucede quando é estabelecida, equivocadamente, a relação do tráfico de drogas com as limitações econômicas. Mais uma vez, uma possibilidade é confundida como causa (SILVA, 2008). Entre os fatos sociais há fluidez de causalidade. Estes resultam de ações diversificadas dos indivíduos, inclusive com relação aos sentidos atribuídos ao desenvolvimento em curso nas sociedades (ZALUAR, 1998). A partir deste constructo, a violência se apresenta atuante em toda a parte, sem uma forma definida, sem atores determinados e sem causas que se possa delimitar e definir de maneira exata, ou a partir de determinações preconceituosas. Na relação existente entre a violência e algumas nuanças específicas para o caso brasileiro, identificaríamos as mudanças rápidas na organização familiar, fragmentada pelos conflitos provenientes do tráfico de drogas, como também pelas mudanças nos padrões de relacionamento afetivo-sexual, em que a liberdade sexual – uma importante conquista para as mulheres no exercício de sua sexualidade plena – é atropelada pela falta de políticas públicas para adolescentes e mulheres adultas. Mulheres engravidam sem planejamento, sem assistência social e política e entram em um processo de pauperização com os seus baixos ou inexistentes salários1. As mudanças nos padrões de consumo também interfeririam na sociedade de diversas formas – como é o caso do processo de incorporação do consumismo, possível pelo advento do processo ―globalizador‖ –, associadas à falta do sentimento de solidariedade e de padrões para uma sociabilidade positiva. Contudo, de acordo com Zaluar (1998, p. 303), esses aspectos não explicam o universo do crime se não forem consideradas questões como: o ―enraizamento do crime organizado nas instituições, mediante as estratégias de corrupção dos atores,‖ a partir das quais o crime cria raízes; ―o funcionamento desigual do sistema de justiça, em razão das práticas organizacionais‖ perpetradas pelos indivíduos que nele atuam; bem como a manutenção do Código Penal, da época da República, que permite a perpetuação da impunidade, quebrando noções de justiça necessárias à formação da cidadania e do Estado democrático. 1

Este fenômeno se associa à chefia feminina de lares nos quais elas são o único elo entre os dependentes, ao mesmo tempo em que têm uma remuneração baixa, nas camadas populares, geralmente, inferior aos dos homens (MACEDO, 2007).

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Dessa forma, podemos chamar de ―universo do crime‖ os elementos que envolvem a falência do sistema judiciário, os abusos da PM, a privatização da justiça, a ―fortificação‖ das cidades e destruição dos espaços públicos. De acordo com Caldeira (2000), o universo do crime também engloba as narrativas sobre o crime, ou a ―fala do crime‖. Neste caso, a fala ou narrativas sobre o crime dizem respeito às experiências maciçamente relatadas sobre violência, frequentemente, cheias de riqueza de detalhes e horror, fazendo dessas narrativas produtoras e legitimadoras de reações violentas e ilegais. Essas narrativas são capazes de combater e reproduzir ao mesmo tempo a violência através da associação estabelecida com o medo; juntos (fala do crime e medo) produzem interpretações, geralmente, permeadas pelo uso de estereótipos, reorganizando os espaços a partir dos novos sentidos que lhes são atribuídos. Como resultado do sentimento de perplexidade, horror e vingança no meio social, e também como novo elemento agregado ao ciclo de violência, cresce a contratação da segurança privada e o apoio aos justiceiros, diante da falha institucional de ordem2. As narrativas do crime produzem preconceitos, estereótipos e racismo. Ao mesmo tempo em que combatem a violência, reproduzem-na, reorganizando simbolicamente o mundo através da discriminação de grupos específicos. A fala do crime faz-se mediadora da violência e criminaliza os pobres e negros, tornando-os vítimas incontestes da violência; fomenta o medo; deslegitima as instituições de ordem; privatiza a justiça; e legitima atuações de vinganças violentas e ilegais. Dessa forma, a segregação social e espacial, largamente produzida pela fala do crime, contrapõe a ordem democrática, os direitos de cidadania e o próprio combate à violência. Tomo a análise de Caldeira (2000) para relacionar o crime violento ao aumento dos crimes de homicídio, tentativas de homicídios, lesão corporal dolosa, estupro, tentativa de estupro, roubo e latrocínio. Estes, associados ao aumento da violência institucional, que contribuem para a elevação da violência, com o agravante da contribuição das instituições de ordem sobre esse acréscimo, quando deveriam combatê-la. As estatísticas sobre o aumento do crime produzem sobre a realidade social visões particulares distorcidas. Primeiro, no Brasil, como nos demais Estados Modernos, as 2

A segurança pública é o principal elemento da ordem pública e deve ser exercida em sua função. Neste trabalho, o conceito de ordem pública é concebido no sentido de ordem do Estado democrático para preservar o que preza a Constituição. No entanto, como um conceito jurídico indeterminado abre espaço para ambiguidades e possibilidades de legitimação de práticas autoritárias de manutenção da ordem, cuja pacificação social, por vezes, preserva uma ordem para uns em favor da ―desordem‖ de outros. No decorrer da história do Brasil, as polícias garantiram o status quo e resguardaram as classes sociais mais altas em detrimento das outras (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009, p. 144).

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estatísticas têm um poder disciplinar que é representado pelas instituições de segurança pública, que impõe as suas construções a respeito da imagem dos padrões de crime e conduta criminosa (FOUCAULT, 1987). A Polícia Civil, por exemplo, produz registros moldados em suas práticas e percepções sobre a realidade. Segundo, muitas pessoas deixam de registrar queixas de roubo, agressões físicas, estupros, etc. Assim, vários delitos deixam de ser representados nos registro e isso ocorre em função do descrédito por parte da população diante das instituições policiais e da justiça. Mulheres em situação de violência doméstica deixam de ir à polícia por temerem o constrangimento a que são obrigadas a passar, provocado pelo assédio dos policiais e pela humilhação nos exames corporais para comprovação do delito. Terceiro, é possível observar um padrão peculiar que se repete nas instituições policiais do Brasil. A polícia brasileira se utiliza de uma forma de classificação própria sobre o crime e o comportamento criminoso fora das metodologias formais e legais, o que chamo de ―lógica em uso‖, de acordo com Caldeira (2000). Conforme a lógica em uso, os crimes de corrupção e de tortura praticados pelos policiais deixam de compor os números oficiais da criminalidade. Quarto, as pessoas criminosas das classes médias e altas frequentemente subornam os policiais e se livram dos registros. Quinto, os registros sobre as mortes violentas envolvem uma série de instituições distintas que desenvolvem registros paralelos, sem compartilhamento de dados e com diferenças alarmantes. Logo, os indícios sobre o crime são distorcidos e representados por estatísticas pouco confiáveis sobre a realidade social. A conivência e participação dos policiais e outros atores políticos na rede do crime possibilitam os entraves para o enfrentamento e prevenção desse fenômeno. Mantêm-se livres os mais ―fortes‖ na hierarquia estabelecida no crime (políticos e policiais corruptos e os grandes traficantes), enquanto os pequenos traficantes e alguns usuários (pobres e negros) são privados da liberdade e, frequentemente, assassinados. O sistema de justiça também oferece um funcionamento desigual em razão das práticas organizacionais criadas e mantidas por seus agentes, assim como em função do Código Penal que ainda se encontra respaldado na formatação da estrutura e dos valores que não envolvem os processos atuais (ZALUAR, 1998; ADORNO, 1993; 2006). Os problemas decorrentes da ineficiência do Sistema Judiciário do Brasil refletem no fenômeno atual da violência. Poucos juízes e poucas varas para julgamento dos processos implicam em morosidade no fluxo de processos e abertura de espaço para pagamento de propina a funcionários administrativos. Isso encarece e retarda as decisões judiciais, 23

proporcionando o desânimo das partes e prejudicando, principalmente, os pobres que não podem entrar no esquema de suborno de agentes – os apenados são as principais vítimas. As ideologias naturalizadas dos agentes jurisdicionais (juízes, promotores, advogados, defensores públicos) implicam na incidência de várias verdades, preconceitos, conflitos interpessoais e na construção moral da pessoa do ―suspeito‖, interferindo fortemente na condução do processo. Usuários pobres e pequenos traficantes ficam presos, já que não podem pagar bons advogados, nem os subornos aos funcionários de todo esse sistema; enquanto os grandes distribuidores de drogas e de armas raramente o são (ZALUAR, 1998). Segundo Silva (2008), ―violência urbana‖ é uma categoria coletivamente construída que serve para designar uma ordem social em que a força direciona e firma as práticas, no decorrer do tempo, através da apresentação de um ―ator típico‖ – geralmente, associado ao traficante de drogas3. Assim, constitui-se numa forma de vida autônoma, cujas práticas são mediadas pela possibilidade latente do uso da força. Cria-se, a partir daí, um problema social com vítimas reconhecidas como subordinadas a duas ordens existentes. De um lado, orientadas pela restrição da violência via monopólio formal (da violência) – o Estado –, portanto, considerada institucional-legal e ―mais convencional‖, cujo princípio norteador seria o de prevenção e pacificação das relações conflituosas. Do outro lado, a vida das pessoas fica orientada para o uso da força como ―recurso universal‖ do seu princípio de organização, entretanto, no campo da ilegalidade. Na visão do autor, configura-se um paralelismo, permeado de conflitos, edificado pela fragmentação da vida cotidiana (idem, p. 39). Nesse desenho, a representação da violência urbana reconhece o padrão da sociabilidade violenta, cuja principal característica é a passagem do uso da força como meio para atingir interesses, para um princípio coordenador das ações. De meio, a força é ressignificada como princípio ou fundamento e, dessa forma, rege as condutas e transforma as relações sociais, permitindo a repetição de conflitos, principalmente em contextos periféricos urbanos, porque são marginalizados e negligenciados pelo Estado e sociedade (SILVA, 2008). Para a compreensão do padrão da sociabilidade violenta, Silva (2008) toma o conjunto de restrições normativas, éticas ou afetivas como secundário. Isto porque na dimensão

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O ator típico abarca a categoria do ―criminoso‖ que para Caldeira (2000, p. 78) constitui ―uma categoria classificatória que atua na vida cotidiana e cuja função principal é dar sentido à experiência‖, ―embutida na prática cotidiana e que simbolicamente organiza e dá forma a essa prática‖. Nos padrões atuais, (perpassados pelo preconceito de raça, classe e gênero) esta categoria simplifica ―radicalmente‖ a realidade social situando o ―criminoso‖ no espaço da marginalidade, poluição e proliferação do mal, cuja origem advém, segundo o senso comum, da favela, da periferia, dos cortiços e dos lugares marginais da sociedade.

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subjetiva de formação de condutas, neste aspecto da sociabilidade, o mundo de objetos é que serve, apropriadamente ou inapropriadamente, à satisfação dos desejos pessoais. As pessoas obedecem à resistência material, que pode se apresentar (e geralmente se apresenta) pela força de outros ―humanos-objetos‖, portanto, pela força implicada pelos agentes produzidos pela reiteração das demonstrações factuais, permeadas pela violência (idem, p. 42). Neste padrão, é reconhecida uma distribuição hierárquica dos agentes entre o ―dominador-portador‖ da ordem social estabelecida e os dominados ou subalternos. Atribui-se aos chamados criminosos (civis e policiais) a dominância nessa tessitura, na qual as formas de interação se constituem como técnicas de submissão dos demais participantes. Embora entre essas posições haja uma série de situações, permanece a obediência dos que reconhecem a sua submissão diante dos agentes que dispõem da força, através das punições físicas e letais. Na análise de Silva (2008), é salientada a coexistência de forças na geografia e ecologia dos contextos referidos. Convivem na distribuição territorial das cidades duas formas de sociabilidade conflitantes, marcadas pela tensão constante entre os dois universos: o da força identificada como estatal, ou institucional-legal e o da força proveniente das práticas violentas ilegítimas. Contudo, enfatizo que a atuação policial como autores dos homicídios nas grandes capitais e RMs brasileiras abarca o campo da prática violenta ―ilegítima‖, porque é arbitrária, corrupta e discriminatória. Estas tensões limitam a ação dos indivíduos, ao mesmo tempo em que abrem possibilidades de condutas pautadas pelo medo, pela fixação de preconceitos e fomento às desigualdades sociais, como será discutido no tópico que se segue.

1.1.1 A institucionalização da violência e suas interfaces

De acordo com Caldeira (2000), a violência é constitutiva das várias dimensões sociais. Isto inclui dimensões consideradas ―mais legalistas e individualistas‖ (idem, p. 139), como aparece no trabalho de Silva (2008). No caso da polícia brasileira, a violência se estabelece como norma institucional que vem moldando as suas práticas no decorrer da história. As ações violentas de policias são cotidianas e controlam a população, sob a proteção da lei, tratando desigualmente as elites e as classes pobres. As camadas médias e altas têm 25

formas (geralmente, através de dinheiro) de garantir ações policiais mais brandas sobre os seus delitos, enquanto que a população pobre é alvo de tratamento violento explícito. Observamos respaldo legal sobre as desigualdades conferidas a estes grupos pelas ações das instituições de ordem para a situação de prisão, quando, por exemplo, deparamo-nos com as distinções legais para a detenção de portadores de grau universitário e dos não portadores, na maioria, pobres. Também no âmbito doméstico a violência se constitui como norma para ações das autoridades identificadas nas figuras de chefia do grupo familiar, manifestando-se na forma psicológica e através do espancamento de crianças e mulheres (sobre estas, muitas vezes, finaliza com óbito) 4. Embora haja o respaldo legal que coíbe este tipo de violência, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Pena), ainda enfrentamos o respaldo sociocultural que admite, em muitos casos, a perpetuação da violência como punição ou método disciplinar sobre os dois grupos sociais. Assim, em conformidade com o pensamento de Caldeira (2000), atribuo à violência uma ―linguagem regular da autoridade‖, seja ela institucional ou doméstica, representada pelo Estado e pelo (a) chefe de família. ―A violência é constitutiva da ordem social‖ (idem, p. 139-140). A força policial reconhecida como institucional-legal, para Silva (2008), manifesta-se através de sociabilidade violenta. A polícia pratica crimes de corrupção ou lança mão de uma força violenta ―ilegítima‖ sobre a população, em especial, a negra, parda e pobre. Estes policiais criminosos representariam os dois universos ao mesmo tempo, o institucional-legal (indicado pelo autor como monopólio formal da violência) e o violento, criando um ambiente de frequentes tensões entre a população e o corpo policial. Na sua análise, o autor separa as ações policiais em dois campos, da legalidade e das ações violentas. Assim, o Estado e a lei compartilhariam o mesmo espaço com a criminalidade estabelecida, desencadeando mais conflitos entre a população. Contudo, acredito que na própria constituição da polícia, mediante as suas práticas para o controle da população, invoca-se formas violentas, as quais se apresentam como um princípio regulador das suas ações. Portanto, a instituição policial é violenta sob o aparato legal. O princípio regulador das ações policiais – a violência – se agrava conforme as suas condutas escapam do campo da legalidade. A brutalidade institucional conflagra a violência contra os direitos humanos e contra as determinações constitucionais. Frequentemente, os ―suspeitos‖ são assassinados e torturados 4

Para a discussão sobre o ciclo da violência doméstica sobre as mulheres e as distinções sobre a ocorrência da violência com base em gênero, ver Machado (2010).

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no Brasil. Embora o país, sob a Lei 11.455/1997, considere o crime de tortura como inafiançável, cuja pena varia entre dois e acima de quinze anos de prisão, a depender da gravidade; e que se infligida por agente público, este perderá o seu emprego e cargo, sendo interditado para o desempenho da função. Entretanto, convivemos com a impunidade e a aceitação popular sobre esses delitos. O que define essa institucionalidade é a repetição das dinâmicas de corrupção e brutalidade classificadas por Soares (2012) como genocídios legitimados pela omissão, pelo silêncio e sentimento de vingança da sociedade (ADORNO, 2006). Nesse formato, o Estado retoma elementos opressivos do seu passado sobre a vida cotidiana da população historicamente discriminada. Os crimes de tortura, as execuções perpetradas pelos grupos de extermínio ou justiceiros, respaldando as execuções extrajudiciais, a violação constante dos direitos humanos, as desigualdades na aplicação das leis, configuram as práticas genocidas que assombram a sociedade. Num estudo realizado pelo jornalista Caco Barcellos sobre o processo de investigação criminal e judicial, entre as décadas de 1970 e 1992, em São Paulo, foram reunidos dados que indicavam uma série de problemas que comprometem o acionamento da justiça pela população: havia contradições contínuas entre os laudos do IML e as versões policiais, com relação ao número de balas e sua localização nos corpos das vítimas; simulações de socorro com o transporte do corpo da vítima para hospitais, o que indicava a falta de preservação do local do crime; muitas vítimas inocentes, sem antecedentes criminais; erros graves nos inquéritos policiais militares, facilitando a defesa dos mesmos; testemunhas em favor das vítimas nunca eram ouvidas, favorecendo a absolvição dos oficiais militares por parte da justiça militar; numerosos sumiços dos corpos das vítimas das ações violentas da Polícia Militar, que não apareciam nas estatísticas, mas eram indicados como casos de desaparecidos. Por fim, foi detectado o arquivamento de processos de acusação contra policiais em quase 100%. Essas falhas e atos de corrupção comprometem a apuração dos fatos, sempre em favor dos policias, o que legitima o uso da força por estes agentes, ou melhor, a sua responsabilidade sobre o crescimento da violência, não só em São Paulo, como em todo o país (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009). Nem todos os profissionais destes grupos mantém este tipo de conduta, entretanto, a cultura de enfrentamento e de abuso da força letal pelas polícias brasileiras constitui um grave problema. Nesse sentido, a população e alguns políticos cobram ações que deem conta deste 27

entrave à democracia. Constatamos esforços governamentais voltados para formação e capacitação de profissionais da área de segurança, como também de setores da população. Trata-se de iniciativas que prezam pelo rompimento desses elementos de cultura institucional, através da implantação de novos conceitos para as políticas de segurança pública e novas formas de atuação policial (idem). Os policiais devem se conscientizar sobre o trabalho de prevenção e iniciativa, no entanto, sem lançar mãos de princípios bélicos, relacionados à lógica de guerra e de combate ao ―inimigo‖. Devem se direcionar aos cidadãos democraticamente e equitativamente, prestando os serviços que lhes são designados. Entretanto, a sua orientação é a ―disciplina rígida, hierarquia forte, além de condicionamento físico e psicológico‖ que, para alguns, deveria se submeter exclusivamente ao estatuto administrativo militar, não ao estatuto comum do funcionário público civil (idem, p. 152). O policial militar criminoso, conforme o documento constitucional, deve ser julgado pela justiça especial. Na atual conjuntura, esta arguição cria total abertura para julgamentos, de acordo com os interesses dos envolvidos, em detrimento da própria Constituição Federal. De um lado, a justiça rígida para as transgressões disciplinares; de outro lado, julgamentos permissivos sobre os crimes cometidos contra o cidadão no exercício do policiamento. Constitui um agravante a constituição de um juiz militar, que para sê-lo basta possuir patente ou posto superior ao do policial que está sendo julgado. Neste formato, a organização policial se faz como um palco para a impunidade no país dos crimes cometidos por policiais militares. Portanto, essas questões conflituosas somam atributos para termos uma polícia altamente violenta, que opera na lógica da ―guerra contra o crime‖, cujo ―inimigo‖ é o traficante, ou ―bandido‖, o morador dos contextos marginalizados (idem, 2009). A brutalidade está diretamente relacionada às manifestações de racismo e aos preconceitos com base na classe social e no gênero (CARNEIRO, 2002, 2011; ESPINHEIRA, 2004; 2008; SOARES, 2012). Os valores discriminatórios e os valores democráticos se situam na articulação entre o cultural e o institucional que, em nosso contexto nacional, está cercado de ambivalências. Tal como a negação de direitos de cidadania a alguns grupos sociais, como mulheres, negros, portadores de deficiência, homossexuais etc., ao lado dos privilégios gozados pelos homens e mulheres brancos das classes altas – levando também em consideração a desigualdade de gênero estabelecida no interior dessas classes sociais (ZALUAR, 2000). 28

Para Velho (2000, p. 14), uma das diferenciações produtoras de tensões e conflitos entre os atores sociais é a desigualdade social. Ela se estabelece segundo a complexidade social que é ―ao mesmo tempo consequência e produtora das diferenças‖, diferenças estas que geram mais diferenças, ―num processo de especialização contínua‖. No caso das desigualdades de gênero, os conflitos se dão em processos que geram exclusão para mulheres e homens de forma peculiar. Gênero é tomado como uma categoria de análise, ―[...] que pretende dar conta das variadas elaborações culturais que diferentes sociedades [...] constroem em torno das diferenças percebidas entre machos e fêmeas e delas se apropriam na prática social‖ (SARDENBERG, 2002, p 54). Mulheres e homens constituem tipos-ideais de identidades de gênero em contextos ocidentalizados. As diferenciações sociais são criadas e apropriadas pelos indivíduos em constante processo de elaboração de significados para e na prática social. As pessoas demarcam seus corpos num processo de frequente naturalização, a partir da apropriação de características físicas e de comportamento, conforme o tempo e o espaço de uma sociedade que projeta e pensa atributos, distinções e semelhanças. É a partir do corpo gendrado em norma cultural, definida num determinado momento histórico-social, que as tensões sociais se estabelecem, cujas inscrições coercitivas envolvem a aceitação voluntária dos atores e atrizes sociais. Os corpos são produtos da história, portanto, lugares de emblema da situação social de um determinado indivíduo (GUILLAUMIN, 1994). Como expõe Sardenberg (2002, p. 56), a nossa aceitação indica ―subjetividades corporificadas‖, já que estamos no mundo através de nossos corpos. Nesse sentido, o corpo e o gênero assumem valores e importância dentro de um contexto social específico, produzido no interior do agenciamento social sobre os sujeitos. A necessidade de inserir o constructo ―gênero‖, de acordo com Azeredo (1994), envolve a complexificação da categoria, historicizando-a e politizando-a, o que possibilitará agregar outras relações de ―opressão‖, apresentando novas desigualdades dentro dos grupos. É assim que gênero se apresenta como ―elemento constitutivo da razão simbólica‖ (idem, p. 211), além de configurar uma categoria de análise, e uma das formas de ―opressão‖ numa sociedade capitalista dotada de tensões raciais, cujas bases advêm do regime colonialista brasileiro. Acredito que análises parciais advindas de diferenças entre os grupos abrem caminhos para novas análises sobre relações de gênero e, especificamente, para alianças entre mulheres diferentes. É, então, nesse sentido, que reconheço a parcialidade/perspectiva sobre a

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questão de gênero na análise, de modo que reconheço, particularmente, o racismo presente na sociedade e o (possível) interesse em superá-lo. A abordagem acerca das tensões de gênero e raciais se torna necessária para produzir observações sobre relações humanas desiguais, especificamente em contextos ocidentalizados da atualidade. As mulheres têm conquistado importantes espaços de decisão no caminho de ruptura com as desigualdades de gênero e étnico-racial. Para Guillaumin (1994, p. 232), o que difere as mulheres é o ―modo político de gestão de sua comunidade‖, a tecnologia, a acessibilidade a recursos e o desenvolvimento econômico do grupo do qual fazem parte. Assim, suas prioridades divergem entre as sociedades, segundo, portanto, suas condições de vida. Zaluar (2000) salienta a importância de situar os valores democráticos na articulação entre o cultural e o institucional que, conforme já mencionado, em nosso contexto nacional, está cercado de ambivalências. Tal como se dá a negação de direitos de cidadania a alguns grupos sociais – mulheres, negros, etc. – ao lado dos privilégios gozados por outros – homens e mulheres brancos (as), das camadas médias e altas, por exemplo. A construção de gênero, articulada ao recorte racial, indica práticas discriminatórias refletidas no cotidiano peculiar das mulheres negras de contextos sociais de baixa renda. Conforme afirma Carneiro (2011, p. 120), esse tipo de abordagem revela ―o caráter determinante‖ que as práticas discriminatórias ―têm na pobreza e marginalização social dos afro-latino-americanos‖, além da questão das ―múltiplas formas de opressão que a conjugação de racismo com sexismo produz nas mulheres afrodescendentes‖. A autora congrega a problemática que envolve estas mulheres numa ―asfixia social‖ marcada pela falta de recursos e oportunidades que lhes garantam uma vida produtiva. A análise sobre a forma diferenciada e desigual como os problemas sociais afetam os diferentes grupos apresenta o complexo padrão discriminatório das desigualdades estabelecidas segundo origem étnica e racial para mulheres e homens. Os homens negros e pardos formam os grupos vitimados e criminalizados pela violência. Contudo, as mulheres negras também são polarizadas em espaços desprivilegiados (CARNEIRO, 2011). Estas estão inseridas numa situação de ―dominação racista‖, conceituada por Morais (2005, p. 16) como a ―imposição da hegemonia de um povo sobre outro‖, cujo instrumento de ação ―é a ideologia do supremacismo branco‖, pautada na cor dos indivíduos, em contextos determinados. Para o caso brasileiro, tomo o racismo como fonte do colonialismo e da escravidão, cuja construção de gênero e raça tem sua origem no ―estupro colonial‖ que preponderou nas 30

relações sexuais entre colonizadores brancos e as mulheres indígenas e negras em estado de escravidão (CARNEIRO, 2002, p. 169). Relações nas quais os filhos gerados foram, de forma geral, marginalizados, excluídos dos processos educacionais e de inserção no emprego. Após a Abolição da Escravidão, estes indivíduos deixaram de ser inseridos como cidadãos tanto pela política, como pela sociedade brasileira. Esses padrões discriminatórios, portanto, permanecem vigentes, assimilados nos contextos atuais de discriminação e preconceito, como identificamos nas formas de atuação policial nos espaços que abrigam a população historicamente marginalizada. Para Gonzalez (1983), a ideologia do branqueamento se manifesta sob a lógica da dominação que se oculta mediante a internalização e a reprodução dos valores ―brancos‖ ocidentais. Nesse sentido, mecanismos ocultam a violência simbólica que recai sobre a população negra, a partir de referidos modos de ocultação do preconceito, de não assunção da própria castração, expressos na satisfação de dizer que somos uma democracia racial. O pensamento da autora perpassa as noções de consciência – enquanto alienação, esquecimento e saber do discurso ideológico – e de memória – como o lugar de restituição de histórias em que a verdade se estrutura como ficção. Dessa forma, a consciência, discurso dominante, oculta a memória com a (sua) verdade hegemônica. As relações humanas desiguais em contextos ocidentalizados atuais geram incertezas, mal-entendidos e preconceitos frequentes no contato entre os grupos sociais. Firma-se uma heterogeneidade marcada pelas práticas intencionais, pelas restrições diversas e pela crise da moralidade. São comuns atribuições negativas sobre a população pobre e negra, determinada como ―suspeitos‖, alvos constantes de assédio e ações de violência extremada, tanto por parte de policiais e outras instituições públicas, quanto da própria sociedade. Esses elementos indicam formas de impedimento à democratização do país. A sociedade se beneficia e apoia a brutalidade policial instaurada. O sentimento de vingança alimenta o apoio popular com relação à arbitrariedade policial e das seguranças privadas sobre a população identificada como causadora da situação de violência (ADORNO, 2006). Segundo Caldeira (2000), os meios privados e/ou ilegais utilizados pela sociedade para se proteger da criminalidade alimentam o ciclo vicioso da violência. As instituições de ordem não contêm a criminalidade e, sob o apoio popular, negligenciam direitos civis – fundamentais para a liberdade individual e saída da condição de desigualdade social – daqueles que são considerados ―suspeitos‖. 31

Na análise de Caldeira (2000), prevalece no meio social um discurso sobre os direitos humanos baseado em três estratégias de legitimação. Primeiro, retira-se do criminoso a sua condição de humanidade, já que teria violado a natureza humana, detido o mal dentro de si e já não possuiria laços familiares, nem com o meio social. Assim, colocam-no como contrário ao gênero humano. Como é estabelecido na fala do crime, o discurso contra os direitos humanos se baseia em estereótipos. A segunda estratégia configura o processo democrático, através do investimento da administração pública no estado de direito, como incentivador do aumento do crime e da violência. A terceira estratégia estabelece uma associação entre as políticas de humanização das prisões como concessão de ―privilégio de bandidos‖. Sob este aspecto, os cidadãos honestos teriam os seus direitos negligenciados em detrimento dos ―bandidos‖ (idem, p. 348-349) 5. A violência afeta mais direta e profundamente as camadas populares. As pessoas que vivem em contextos urbanos marginalizados se deparam com vários entraves para a efetivação do processo de inclusão na cidadania, por isso não podem ser culpabilizadas pelo ostracismo e estagnação política e econômica que atravessam. Ao contrário, a população sempre procura criar novas práticas que lhes renda algum dinheiro ou condições para o seu sustento e sobrevivência. Em alguns casos, busca aproximação com relação ao padrão das classes médias e altas, por meio da aquisição de bens materiais, por exemplo (CALDEIRA, 2000). Já outros se reúnem em grupos de jovens pelo funk, samba ou pagode. Os chamados ―biscateiros‖, por exemplo, têm considerável importância na população economicamente ativa do Brasil, lançando mão de estratégias para angariar recursos possíveis para se inserirem nas relações sociais (ZALUAR, 1985, 1998). A pobreza é tomada como um conjunto de restrições materiais atravessadas pela ―real exclusão dos pobres nos campos ocupacional, educacional e político‖ (ZALUAR, 1985, p. 41). Vista desse modo, temos a pobreza como uma das faces das relações de poder nos variados contextos sociais, de status e posição social, entre classes subalternas e classes dominantes. A condição de pobreza está presente no universo das desigualdades sociais fomentadas pela ausência ou ineficiência de políticas públicas brasileiras destinadas aos setores populacionais tradicionalmente marginalizados. Portanto, configura-se como mais uma expressão da institucionalização da violência pelo Estado.

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A autora desenvolve a sua análise sobre o contexto do estado de São Paulo, entretanto, são questões que se estendem aos demais contextos regionais brasileiros.

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Mecanismos institucionais sugerem formas de interação social em que tanto a liberdade quanto as restrições se desenvolvem nas formas de sociabilidade, entre classes trabalhadoras e classes dominantes. Os pobres urbanos se integram na sociedade de forma marginalizada, porque, longe de serem avessos às revoltas contrárias ao sistema social excludente, criam formas de transitarem nos espaços que lhes são negados – o que gera ojeriza e desprezo entre as classes altas. Incluem-se, então, em suas ações, estratégias de inserção legal e convencional pelo trabalho formal ou informal, muitas vezes precário. Em alguns casos, não na maioria, adotam padrões de comportamento violento (ZALUAR, 1998). Entre os pobres, quem precisa resolver os seus conflitos fica à mercê das subjetividades dos atores do Sistema de Justiça. Sobre as desigualdades relativas às condições de defesa, os julgamentos são respaldados numa construção moral sobre a pessoa do (a) acusado (a), perpassada pelas diferenças de gênero, classe e raça. Segundo os estudos de Zaluar (1998), as mulheres e as pessoas brancas usuárias ou traficantes de drogas ilegais são alvo de maior clemência por parte dos agentes do sistema de justiça. As primeiras, devido ao peso da tradição cultural sobre as suas formas de atuação na sociedade, de cuidado aos familiares. Já as últimas obtêm clemência por causa do racismo, concebido como outra forma de violência estabelecida na sociedade brasileira, que exime de ―culpa‖ pessoas classificadas como brancas, sem a devida apuração dos fatos. As lógicas paradoxais operam nos discursos sobre a violência. Assim, pode-se pontuar: o ciclo da violência de acordo com a ordenação institucional cotidiana, principalmente, a partir dos abusos, desrespeito aos direitos, injustiças e preconceitos por parte dos policias; a segregação sócio-espacial; a larga utilização da segurança privada e apoio à violência policial por parte da sociedade; e a pouca vontade política em estabelecer medidas consistentes de combate à criminalidade, respeitando noções de cidadania, direitos e democracia. O crime fornece uma linguagem que dá sentido à ordenação social, mas também representa a resistência popular à democratização. A repressão policial, por sua vez, deveria ser tratada como uma questão social, mas permanece direcionada às resoluções públicas como caso de polícia. Diante das tensões que embasaram o processo constituinte, é possível aferir sobre os desacertos dos parlamentares constituintes no que diz respeito aos direcionamentos sobre a questão da segurança pública, principalmente, sobre as atribuições das polícias, como o (a) leitor (a) poderá observar no próximo subtópico.

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1.1.2 A segurança e a Constituição Federal de 1988: atropelos

A sociedade crê e delega ao Estado legitimidade enquanto aparelho burocrático que detém o monopólio da violência legítima (WEBER, 2004). Por outro lado, o Estado deve preservar o direito dos cidadãos, dentre os quais o direito à vida, à igualdade, à segurança, à liberdade e o acesso à justiça (MONDAINI, 2006). Porém, o Estado não tem controlado a sua exclusividade perante o uso da coerção, como também tem descumprido o seu dever de garantia dos direitos civis. Dessa forma, encontra-se em processo de perda de legitimidade, principalmente na área de segurança pública. A partir da Constituição Federal de 1988 (CF/88) e, ao longo dos sucessivos governos, foram mantidas as regras e práticas institucionais fundamentais à lógica do período da Ditadura Militar, estabelecidas de forma autoritária e violenta, atuantes tanto na sociedade quanto no Estado. A CF/88 preservou dois decretos do período da Ditadura Militar que põem a PM numa condição ambígua diante da sociedade. Com o Decreto-Lei nº 1.072/1969, a PM foi responsabilizada pelo policiamento ostensivo, sendo vetada a possibilidade de criação de outras polícias estaduais. Neste caso, torna-se sua incumbência a manutenção da ordem pública. Já o Decreto-Lei no 667/1969 subordinou as PMs e os Corpos de Bombeiros (CBs) às Forças Armadas, definindo-os como forças auxiliares, integradas ao Estado-Maior do Exército (EME). Assim, organização, legislação, efetivos, disciplina, adestramento e material bélico das corporações estaduais permanecem sob a gerência da Inspetoria-Geral das Polícias Militares (IGPM), entretanto, sob dois comandos paralelos (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009). Neste caso, é possível afirmar que no trabalho de produção constitucional sobre a questão da segurança pública aparecem controvérsias, ao se manter a forma dual das polícias e a subordinação das PMs ao Exército. Ambas as formas foram consolidadas no regime militar. A elaboração dos artigos constitucionais envolveu uma série de tensões que passaram pelo lobby formado por 13 oficiais nomeados pelas Forças Armadas em prol de interesses militares aliados aos parlamentares constituintes (ZAVERUCHA, 2005 apud FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009); assim como foi marcada pela atuação inexpressiva das esquerdas que não representaram os interesses de defensores dos direitos humanos e juristas da área criminal que eram favoráveis à desmilitarização da polícia. Com base nestes dados, 34

concluo que, no contexto constitucional, foram atendidas as demandas corporativistas sobre o aperfeiçoamento das políticas públicas. A Constituição Federal de 1988 inaugurou um capítulo dedicado à segurança pública, contudo, manteve a associação ambígua entre a segurança pública e as questões de segurança nacional, conforme se vê no Título V. A ambiguidade se expressou no entendimento sobre a segurança pública, a qual fora destinada a garantir a segurança do Estado, não como serviço público voltado para o cidadão. Nesses termos, a segurança é posta como um serviço público, direito inalienável de todos os cidadãos. Entretanto, invoca a participação da sociedade na participação e controle das políticas, na socialização dos indivíduos, no controle social através de mecanismos informais – como o caso particular do PRONASCI, o qual será discutido mais adiante. No capítulo em questão, o Art. 144 estabelece os seguintes órgãos responsáveis pela segurança pública: as Polícias – Federal (PF), Rodoviária Federal (PRF), Ferroviária Federal, Civis e Militares –, além dos Corpos de Bombeiros Militares. Conserva-se um desenho institucional único para as organizações policiais estaduais e aos municípios com população a partir de 50 mil habitantes, permite-se a constituição de guardas civis com porte de armas, somente em serviço. Já que não aciona o papel do Ministério Público, do Judiciário ou dos agentes penitenciários neste aspecto, incorpora o sentido de repressão policial que limita e torna ineficientes as políticas públicas (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009). Fontoura, Rivera e Rodrigues (2009) destacam quatro pontos de continuidades na CF/88, entre limitadores da aplicabilidade da segurança pública no país e benefícios à democracia. Primeiro, a dualização das polícias em PC e PM, a primeira destinada a apurar infrações e a segunda responsável pelo policiamento ostensivo. Esta forma de agrupamento de funções retrata um modelo ―extraorganizacional‖, já que se dá num mesmo espaço geográfico, diferente, portanto, da organização estabelecida em outros Estados como nos EUA – em que a polícia se reparte internamente entre as atribuições concernentes a cada uma. Tal peculiaridade brasileira se agrava, ao mesmo tempo em que suscita disputas entre as polícias, seja por poder, salário, ou espaço, implicando em pouca eficiência para a resolução de conflitos6. Soma-se à questão o modelo inquisitorial estabelecido pelo inquérito policial 6

Alguns destaques sobre as tensões entre as polícias: geralmente, não há respeito por parte da PM pela cena do crime, inquéritos policiais da PC pouco qualificados, favorecendo numerosas faltas de esclarecidos de crimes, violência e o despreparo nas PMs, modelo inquisitorial da PC que possibilita prisões mesmo sem provas, poder exacerbado dos delegados de polícia para selecionar e criminalizar, com o agravante respaldo legal. Cabe ainda, citar o que não é estabelecido por lei, mas constitui rotina nas ações policiais, para que se desenvolva o inquérito

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atual brasileiro, largamente defendido pelos ―delegados de polícia e por um grupo de advogados criminalistas que se beneficiam com os inquéritos desqualificados, facilitando a defesa dos réus‖ (idem, p. 152). Segundo, o fato de as PMs se constituírem como forças auxiliares do Exército demarca dois problemas fundamentais para a questão da segurança. As PMs reúnem em sua organização centralização e militarização da segurança pública, datadas do Regime Militar e respondem a um duplo comando. Tanto os governos estaduais quanto o Exército submetem as PMs, gerando uma ―crise de identidade‖ (idem, p. 152) marcada pela confusão entre a defesa de cidadãos (ãs) e a defesa do Estado. Logo, para manter o caráter civil, e não o de combate ao inimigo, as duas defesas não podem ser misturadas na atribuição policial como se encontra (ADORNO, 2006; FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009). Os demais pontos de continuidade expressos na CF/88 são, então, a permanência da justiça militar que se aproxima da questão referente à organização policial; e pontos que tratam dos direitos do apenado, ratificados pela CF, porém sem terem sido, até o presente momento, levados a sério. Todos esses pontos indicam impedimentos para a efetivação do processo democrático no país, mesmo em seu período de reabertura democrática, o que classifico como um atropelo à ordem estabelecida num Estado de direito democrático. É quando, para acalmar os ânimos da população, principalmente dos (as) defensores (as) dos direitos humanos e da efetivação do processo democrático, a política brasileira propõe um ―novo‖ modelo de prevenção e repressão à criminalidade violenta: o PRONASCI. Então, no próximo tópico, será abordada a configuração da política mencionada, apresentada à população como ―inovação‖, apesar de já havermos presenciado tal modalidade de combate no país, em políticas de segurança de outras administrações públicas, conforme discutiremos mais adiante.

exclusivamente nos casos em que o culpado já é conhecido; e o conflito que envolve as atuações do MP e da PC. Esses problemas desfavorecem o sistema de segurança pública do país (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009).

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1.2 A política de segurança pública

A crença na erradicação do crime e da criminalidade se constitui como um fenômeno relacionado à descrença na reinserção do egresso do sistema. Uma de suas facetas é a emersão de programas que agregam mecanismos que exacerbam a punição, veiculados por ―fobias raciais‖, como é o caso do Tolerância Zero, do Direito Penal do Inimigo e do Movimento de Lei e Ordem (SHECAIRA, 2009, p. 170). O mix de programas repressivos produziu taxas recordes de encarceramento, na atualidade, nos Estados que adotaram essas medidas – os norte-americanos e o brasileiro, especificamente. A população carcerária brasileira, por exemplo, passou de 129.169 encarcerados, em 1994, para 435.551 presos em 2008. Isto porque a exclusão e o encarceramento de pessoas são menos custosas para os governos do que incluir essa população no processo produtivo, como salienta Shecaira (2009) 7. O governo investe mais dinheiro no controle do crime, em sistemas de justiça criminal, mas não garante proteção aos cidadãos nem a diminuição do fenômeno, como observou Young (2002) sobre a política de controle do crime estadunidense das últimas décadas – também incorporada pelo Brasil. Young (idem, p. 37), sob a perspectiva da exclusão, afirma que ―o aumento rápido da taxa de criminalidade é o motor principal da transformação dos comportamentos e atitudes públicas no desenvolvimento de aparato do controle do crime‖. Conforme o tipo de administração da justiça e a intensidade do combate às drogas de cada país, surgem efeitos danosos, por exemplo, sobre a ―exclusão penal‖, evidenciados pela necessidade equivocada de combate ao crime. A quantidade de encarcerados nos EUA aumentou consideravelmente e o número de ―excluídos‖ também, segundo análise do autor. No Brasil, que recebe a influência norte-americana, a política de Tolerância Zero tem o seu ápice em períodos de eleição, legitimando ações violentas contra pobres, autorizadas por políticos locais. O impacto dessas medidas atinge não somente o apenado como também toda a sua família, em virtude da ―[...] deterioração da situação financeira, desagregação das relações de amizade e vizinhança, enfraquecimento de vínculos afetivos, distúrbios na escolaridade dos filhos e perturbações psicológicas graves decorrentes do sentimento de 7

No processo encarcerador, a função da pena se explica pela punição enquanto neutralização e exclusão do ―inimigo‖ a ser combatido (os pobres, negros e imigrantes). Nesse bojo, ratifica-se o Race profiling como uma ideia de que pobres negros e favelados seriam naturalmente propensos ao crime, tornando aceitável a violência investida pelo Estado (SHECAIRA, 2009).

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exclusão‖ que ―aumentam o fardo penal imposto aos pais e cônjuges de detentos.‖ (SHECAIRA, 2009, p. 173). A aproximação entre o desenvolvimento da política social brasileira e a estadunidense surge na medida em que importamos o sistema de controle desse país, sem resolver as desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, as pessoas marginalizadas tornam-se bodesexpiatórios no contexto da criminalidade (YOUNG, 2002). Na Bahia, segundo o Secretário de Segurança do Estado, Maurício Barbosa, entre 2009 e 2010, ocorreu queda de 16% nos índices de homicídios e Salvador seguiu tal tendência com 13,5%. A redução das taxas de homicídio na Bahia teria sido decorrente da implantação das ―diversas ações do governo para combater a criminalidade‖, afirma o Secretário. Assim, destaca o programa Pacto pela Vida e a criação do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) – este, no caso, seria responsável pelo aumento nos índices de ―elucidação‖ dos crimes (SSP-BA, 2011; SECOMBA, 2012). A política do PRONASCI aparece como uma proposta de intervenção tida como ―inovadora‖ por agregar o conceito de prevenção no combate ao crime. Assim, desloca sua atenção para os sistemas informais de controle da criminalidade – a saber, família/mulheres e comunidade – apontando a importância das instituições da sociedade civil em regime de parceria de forma duvidosa. O quadro geral da Segurança Pública do país é considerado grave e preocupante. Até certo ponto, a atual crise da violência serve aos interesses de políticos, que se utilizam disso para a ascensão política e conquista do eleitorado, erroneamente, pautados em ações de repressão, com projetos falaciosos de conquista da ―paz‖8. No entanto, a literatura aponta vários problemas, geralmente, de ordem estrutural, sobre a gestão pública brasileira. Enfrentamos a diminuta ―capacidade de gestão, de planejamento estratégico e de avaliação das ações empreendidas‖ (FGV, 2008, p. 11). São elencados uma série de limitações que barram ações que mudariam a situação na qual se encontra a questão da segurança no país. 8

A cultura de paz reúne uma série de ―[...] valores, actitudes y comportamientos que reflejan el respeto a la vida, al ser humano y a su dignidad y que ponen en primer plano a los derechos humanos, el rechazo a la violencia en todas sus formas y la adhesión a los principios de libertad, justicia, solidaridad y tolerancia, así como la comprensión entre los pueblos, los colectivos y las personas.‖ (DISPUTACIÓN DE BARCELONA; ESCOLA DE CULTURA DE PAU, 2013). A partir deste conceito presente na ―Declaración sobre una Cultura de Paz‖, a Assembleia das Nações Unidas elaborou, em 1999, um Plano de Ação para promover a Cultura de Paz para o decênio de 2001-2010. Nesse sentido, o desenvolvimento da ―cultura de paz‖ abarca como eixo de intervenção a educação, o desenvolvimento econômico e social sustentável, o respeito a todos os direitos humanos, igualdade de gênero, participação democrática, tolerância e solidariedade, comunicação participativa e livre circulação de informação e conhecimentos e o desarmamento (NAÇÔES UNIDAS, 1999).

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As dificuldades são: a fragmentação das unidades da segurança pública, ministério, departamento e secretaria; a impotência da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) para a locação de políticas – visto que a secretaria somente gere o Fundo para distribuição dos recursos; faltam responsabilidade e autoridade do município sobre a questão da segurança, contrastando com as responsabilidades que lhe são conferidas sobre educação, saúde, assistência social e outras áreas; a vinculação da PM ao Exército, que distorce o objetivo da atividade policial; o respaldo social manifestado somente sobre a atuação da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e a Polícia Federal (PF), que obtém êxito, em dissonância com a Polícia Militar e a Civil, as quais apresentam deficiências nas estruturas organizacionais (SOARES, 2013). A atribuição policial, por exemplo, representaria a garantia dos direitos e liberdades de cidadãos e cidadãs, de forma pacífica ou pelo uso moderado da força para casos extremos, não como rotina, associado à mediação de conflitos. Contudo, diverge do que é estabelecido legalmente e do que está estipulado pela declaração dos direitos humanos, como vivencia a população, especialmente a negra e de contextos de baixa renda. Um dos principais problemas é a vinculação subordinada à força do Exército brasileiro, que não faz sentido, pois as atribuições dessas forças são bastante distintas. Portanto, qualquer projeto que implique transformação, segundo Soares (2013), deveria passar por sua desvinculação com o Exército, apoiando-se no tripé diagnóstico-planejamento-avaliação. Os problemas organizacionais pelos quais passam as polícias civil e militar estão representados pela crise de gestão, entendida como planejamento, avaliação, monitoramento, distribuição de funções, conhecimentos e recursos de poder, estabelecimento de rotinas e readequação organizacional. Não há, por exemplo, uma avaliação sobre as ações policiais, como também não há unificação do ciclo de seu trabalho, entendido como funções ostensivas, de prevenção e de investigação. As duas primeiras funções são de competência da PM, já a última, atribuída à PC. Sem a devida gestão, fica impossível aplicar políticas de segurança com resultados satisfatórios (SOARES, 2013). Para uma liderança eficaz da PM, considera-se elementar a valorização desses trabalhadores9, o que implica em melhoria nas relações de trabalho. Primeiro, porque as melhorias salariais evitariam o trabalho paralelo com segurança privada. O Estado se omite e assume uma posição de cumplicidade, permitindo o financiamento ilegal deste tipo de 9

À categoria não é permitida nem a sindicalização (SOARES, 2013).

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segurança. Segundo, porque a valorização se liga às melhorias das condições de trabalho – consideradas também desumanas –, a promoção de qualificação para constituir a sua carreira, que não é unificada, apoio psicológico permanente, quebra de códigos disciplinares rígidos que ferem os direitos elementares desses indivíduos e mudanças no sistema de gestão (SOARES, 2013). Numa análise desenvolvida pela FGV Projetos (2008), foram entrevistados profissionais da área de segurança e membros da sociedade civil – do movimento social – no intuito de traçar um panorama da segurança pública no Brasil. Sob a perspectiva desses grupos, o quadro geral é considerado caótico e a responsabilidade é atribuída aos problemas sociais, tais como violência urbana, pobreza e crime violento como causadores dos males. Subestima-se a participação das instituições locais, estaduais e federais da área de Segurança Pública, cujos problemas institucionais – corrupção, violência policial e gestão desestruturada – constituem forte empecilho ao desenvolvimento da democracia no país. Para os entrevistados, até esses problemas específicos foram considerados como reflexos da pobreza. Segundo o mesmo estudo (FGV Projetos, 2008), entre os profissionais evita-se criticar suas práticas e sua eficiência, por conseguinte, torna-se um empecilho para a configuração de uma polícia eficaz. Não assumem as falhas e indicam outras razões para a atual crise. No tocante ao número do efetivo policial, por exemplo, surgiu entre as respostas a necessidade do aumento de profissionais nesta área, aumentando a repressão à criminalidade. Instaura-se o pensamento de que o fortalecimento institucional estaria relacionado ao aumento da repressão à criminalidade violenta, dando conta, portanto, do seu fim. Conforme discutido anteriormente, esta inclinação para a repressão só fomenta a constituição do crime. Ainda como resultados do mesmo estudo (FGV Projetos, 2008), foram contempladas outras categorias, surgidas das falas desses profissionais e da sociedade civil. Primeiro, desenharam os sentimentos de desestímulo e de desqualificação dos profissionais de Segurança Pública – posicionamento mais evidenciado entre os profissionais da polícia civil e militar. O estado da Bahia, por exemplo, paga os mais baixos salários, possibilitando atividades paralelas (e ilegais) entre os policiais – a segurança privada – para complementarem a sua renda. Neste caso, atribuíram a questão da crise aos baixos salários ou à falta de ascensão profissional nessas corporações. Em seguida, os entrevistados apontaram: a fragilidade na articulação entre os entes federativos, prejudicando ações articuladas e a aplicação de algumas políticas públicas locais; 40

a imagem negativa da polícia, que favorece o seu distanciamento da sociedade – uma percepção que emerge dos representantes da sociedade civil, visto que as desigualdades e dificuldades no acesso à Justiça quebram a confiança da população nas instituições. Com isso, o Estado também acaba perdendo a sua legitimidade. Também foi pontuado o desconhecimento sobre a administração dos recursos financeiros pelos governos municipal, estadual e federal, que dificultam a análise precisa sobre os gastos em Segurança Pública – somado ao ―estágio embrionário‖ na utilização das Tecnologias da Informação (FGV, 2008, p. 42). Por fim, surgiu como dado o déficit de informação sobre o novo programa (PRONASCI) e, a consequente necessidade de maior comunicação institucional sobre a transmissão dessas informações. Na Bahia, um entrevistado afirmou que somente acompanhou o processo de apresentação do PRONASCI. Os demais grupos de policias e profissionais da área também não tiveram acesso às informações necessárias sobre o novo programa. Isso constitui um erro de gestão e influenciará negativamente sobre ações empreendidas nos territórios-alvo pelos grupos beneficiários pelo programa – policiais, jovens e mulheres. Porém, esta questão será desenvolvida no próximo tópico e no capítulo terceiro. A sociedade, o movimento social, os trabalhos científicos e os grupos políticos assumem posturas aquém das propostas reais de transformação. Num momento, a população é conivente com arbitrariedades perpetradas pelos profissionais de segurança, quando alimentada pelo sentimento de vingança contra os segmentos mais pobres, que, constantemente, são identificados como responsáveis pelas mazelas sociais e pela violência. Somado a isto, os movimentos sociais não avançam no que toca a uma sistematização de projetos de reforma, deixando para os representantes políticos, identificados como responsáveis pela agenda pública. Contudo, muitos políticos alimentam preconceitos, geralmente, respaldados na receptividade da opinião pública, vislumbrando as próximas eleições, em lugar de defenderem projetos que impliquem em transformações sociais e perdurem para além dos próximos governos (SOARES, 2013). A CF/88 responsabiliza a população propondo a sua participação (informal) no combate à criminalidade do país. Para tanto, invoca um padrão de policiamento comunitário, incorporado de países considerados desenvolvidos, que pressupõe uma relação de parceria entre a polícia e a população. Uma polícia comunitária sugere união entre forças policiais e cidadãos para a perpetuação da segurança pública sem números elevados de crimes, tampouco 41

de sentimento exacerbado de medo da violência. Reconhecido como ―progressista‖ e ―avançado‖ nos contextos industriais ocidentalizados, este modelo aciona a polícia para uma maior responsabilização sobre as suas atuações, bem como maior respeito nas relações estabelecidas com a comunidade, cuja filosofia esboça o respeito mútuo e as relações de proximidade (SKOLNICK; BAYLEY, 2006 apud FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009, p. 169). Por outro lado, a população deve colaborar como coprodutora da segurança, ao lado da polícia, exercendo atividades coordenadas. O modelo para policiamento comunitário nesses contextos nacionais democráticos e fortemente industrializados reúne critérios que demarcariam a sua eficácia no combate ao crime e à violência. Seria, então, a prevenção do crime abalizada na comunidade; uma reorientação das atividades no sentido de que as patrulhas possam ressaltar os serviços não considerados emergenciais; uma maior responsabilização tanto da polícia como da comunidade; além da descentralização do comando. Acrescenta-se ao modelo um policiamento concernente às especificidades das distintas comunidades. Somados esses pontos, o policiamento comunitário conferiria especificidade na concepção e execução da atuação policial (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009). De acordo com Fontoura, Rivera e Rodrigues (idem, p. 177), a assimilação do conceito de polícia comunitária no Brasil ―coincide com o próprio processo de democratização do país e com a nova CF, a partir dos quais ganham centralidade os conceitos de direitos e liberdades individuais em oposição às forças de repressão e a proteção da vida e da propriedade frente ao crime‖. O principal elemento sobre o qual atua o policiamento comunitário parece ser a redução do medo da população e maior confiança nas instituições policiais. Nesse sentido, em 2002, registrou-se a existência de 14 experiências de polícia comunitária em diversos estados do Brasil – São Paulo (SP), Espírito Santo (ES), Pará (PA), Paraná (PR), Sergipe (SE), Rio Grande do Norte (RN), Rio Grande do Sul (RS), Distrito Federal (DF), Ceará (CE), Pernambuco (PE), Paraíba (PB), Minas Gerais (MG), Santa Catarina (SC) e Bahia (BA). O caso particular brasileiro aponta para tensões políticas relativas à adoção do modelo de policiamento comunitário nos estados. Geralmente, políticos costumam não adotar grandes mudanças em suas gestões para manter alianças, eleitores, dentre outras razões. Os governos estaduais são responsáveis pela política de segurança pública e cabe aos municípios a preparação de iniciativas próprias, as quais devem estar de acordo com a coordenação estadual. Entretanto, as unidades federativas 42

de diferentes direcionamentos político-partidários contribuem para os fracassos atribuídos ao programa de policiamento comunitário, já que arriscam pouco nesta área tão complexa. Outro problema apresentado pelo estudo do IPEA (idem), considerado com forte elemento desintegrador, perpassa a persistência de práticas e conceitos arraigados para as políticas de segurança pública e novas formas de atuação policial – forma dual das polícias e a subordinação das PMs ao Exército, que permite a associação ambígua entre a segurança pública e as questões de segurança nacional. Desde a década de 1990, o governo federal vem dedicando atenção à questão da segurança pública, abrindo campos para a implementação de medidas voltadas para prevenção do crime e da violência. A pressão social fez retroceder a tendência humanista da reforma da legislação penal, conforme a análise de Adorno (2006). Assim, tendências das políticas de segurança e justiça penal adotada pelos governos democráticos nos últimos 20 anos contemplaram interesses particularistas e fatores geradores de conflitos. Foram criados alguns órgãos e/ou programas como o Programa de Integração das Informações Criminais (1995), a Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) (1997), o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) (2000), o Plano de Integração e Acompanhamento de Programas Sociais de Prevenção à Violência (PIAPS) (2000) e o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP) (2001). Estes se configuraram como primeiras medidas, atrelando ações sociais no combate à violência, no entanto, não houve avaliação, nem continuidade com relação à implementação de projetos, que já foram marcados por considerável dispersão. Na mudança de gestão, em 2003, essas medidas foram encerradas (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009). Na partilha dos recursos previstos em orçamento, sobressaem os interesses de atores e agências que interferem na disputa pela definição institucional das políticas de segurança e de justiça criminal (ADORNO, 2006). Além disso, lidamos com a mudança de gestão governamental e conflitos entre os níveis federal – quem conduz diretrizes nacionais de políticas públicas – e estadual – quem controla a ordem pública civil – da intervenção governamental, que cessam ações em andamento e desorientam o processo de execução das políticas. De acordo com Adorno (idem), durante o primeiro mandato de Lula da Silva (20032006), foram mantidas linhas de ação da gestão anterior10. Entretanto, foi renovada a capacidade propositiva e de execução das políticas.

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Estados e municípios em regime de cooperação na esfera da segurança pública, acessibilidade da justiça, reorganização de órgãos de segurança e aperfeiçoamento do sistema penitenciário (ADORNO, 2006).

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Apesar das transformações econômicas, sociais e políticas nas últimas décadas, repercutindo na queda da pobreza e da extrema pobreza, intensificou-se a desigualdade de direitos e de acesso à justiça. As instituições incumbidas da segurança de cidadãos e cidadãs permaneceram respaldadas em tradicionalismos quanto ao controle social, deixando de acompanhar o processo de complexificação da sociedade, bem como da violência. No segundo mandato (2007-2010), a gestão manteve os preceitos da lei e da ordem, articulando enfrentamento à criminalidade e ações sociais no PRONASCI (ADORNO, 2006). Sob a perspectiva da SENASP, a prevenção dos crimes e da violência, considerando a sua complexidade, integra ações e projetos do tipo social, comunitário e institucional juntamente às ações sobre as instituições policiais. Ao mesmo tempo em que ocorreu uma ruptura com os programas criados, desde a década de 1990, a partir de 2003, a política de segurança foi aprofundada, inclusive com a criação de banco de dados sobre as práticas preventivas. Seguindo este caminho, em 2007, o MJ lançou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), com o caráter principalmente preventivo, como será discutido no próximo tópico11. Nesse sentido, o governo brasileiro criou mecanismos de gestão e apresentou o PRONASCI, que cria expectativas, dada a aparente inovação. A partir do novo programa federal, seriam abertas possibilidades de mudanças nas ações policiais, pautadas nos princípios da legalidade e da equidade, com a inserção da comunidade em alguns planos de ação, como veremos a seguir.

1.2.1 A política de segurança cidadã: o PRONASCI

O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007, pretendeu modernizar a gestão pública com a meta de melhorar o ambiente de investimentos e de obras de infraestrutura. O PAC teve o PRONASCI como um dos programas na área de Segurança e representou a campanha de governo do ex-Presidente Luís Inácio Lula da Silva, culminando 11

Outras medidas prezaram o controle externo das atividades dos profissionais de segurança, tais quais: Conselhos de Segurança e Ouvidorias de Polícia, constituição de uma Política Nacional de Polícia Comunitária e Segurança Comunitária e a sistematização pela SENASP das denúncias de violação dos direitos humanos por policiais – esta medida seria fundamental para a prevenção e punição de abusos cometidos pelos policiais (FONTOURA, RIVERO, RODRIGUES, 2009).

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numa segunda fase, a partir de 2011, nomeada de PAC 212. A proposta era a diminuição de 25 homicídios por 100 mil habitantes – número, portanto, indicativo de violência epidêmica, segundo a Organização Mundial da Saúde – calculada em 12 por 100 mil. Dessa forma, o PRONASCI foi estruturado no Plano Plurianual 2008-2011, com a meta de intervenção qualificada no âmbito da segurança pública no país. Os pressupostos para a execução do programa envolveram a cooperação intergovernamental e a prevenção, cujos principais focos foram identificados como: etário (jovens e adolescentes na faixa etária de 15 a 29 anos), social (jovens e adolescentes em situação de ―risco‖13social, egressos do sistema prisional, em conflito com a lei e/ou membros de famílias expostas à violência), territorial (destinado às regiões metropolitanas (RMs) e aglomerados urbanos que apresentavam altos índices de homicídio e de crimes violentos) e repressivo (combate ao crime organizado) (RIOS, CERQUEIRA, ALVES, 2010). As ações abrangiam medidas de prevenção sobre situações causadoras da violência e do crime, bem como ações de repressão, combinadas a aspectos de justiça e integração entre Estado e comunidade. Os três entes federativos (União, estado e município) se articularam e trabalharam pela consolidação das informações do Sistema de Monitoramento das Ações do PRONASCI (SIMAP) 14, que foi resultado da parceria entre a Fundação Getúlio Vargas (FGV Projetos) e o Ministério da Justiça (MJ).

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Nesta fase, as ações foram distribuídas nos eixos Cidade Melhor, Minha Casa, Minha Vida, Água e Luz Para Todos, Transportes, Energia e Comunidade Cidadã. No eixo Comunidade Cidadã, a meta era a ampliação do Estado nos bairros populares, mediante concretização de serviços considerados essenciais, como creches, postos de saúde, espaços de esporte, cultura e lazer e, postos policiais. Para os postos policiais, os serviços abrangeriam a implantação de Postos de Polícia Comunitária, com segurança descentralizada voltada à prevenção ao crime e a redução do tempo de atendimento das ocorrências policiais (BRASIL, 2011). 13

A noção de ―risco‖ se aproxima da noção de ―vulnerabilidade‖ que, no campo da proteção social, é utilizado para designar uma variedade de situações que envolvem a possibilidade de perigos naturais, de saúde, ligados ao ciclo de vida, ambientais, sociais e políticos (BRONZO, 2007). 14

O monitoramento do SIMAP envolve o conceito de desenvolvimento institucional do setor público, como atividades que possibilitem desempenho eficiente da instituição, gerando inovação e transparência a caminho do processo do que chamam de ―institutional building‖ (FGV, 2008, p. 10). A estratégica adotada pelo sistema integrou o modelo desenvolvido pela FGV Projetos para o acompanhamento dos gastos em segurança pública no Brasil, justiça criminal e cidadania, relacionando-os à questão da redução da violência e criminalidade e adequação de instrumentos para tal, ou seja, acompanhamento financeiro e orçamentário, da execução física e social. Além disso, o SIMAP pretendeu integrar os dados recebidos periodicamente dos sistemas externos SIAFI (Sistema Integrado de Administração Financeira), SISFOR (Sistema Nacional Bolsa-Formação), Caixa Econômica Federal, conventes (SIAFEMS - Sistema Integrado de Administração Financeira para Estados e municípios) e GGIs (Gabinetes de Gestão Integrada).

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O programa federal foi implantado no segundo mandato do ex-presidente Lula, com previsão de investimentos de R$ 5.860 bilhões até o fim de 2011 15, chegando ao investimento total de R$ 6,707 bilhões até o fim de 2012 (RIOS, CERQUEIRA, ALVES, 2010). O PRONASCI foi instituído pela Medida Provisória (MP) nº 384, de 20 de agosto de 2007, convertida posteriormente na Lei nº 11.530, de outubro de 2007 e, alterada pela Lei nº 11.707, de junho de 2008. A dimensão da gestão assumiu a coordenação em vários níveis de governo (interfederativa), entre diferentes órgãos governamentais (intergovernamental) e dentro dos órgãos (intragovernamental). A Coordenação interfederativa correspondeu à implementação descentralizada nos estados e municípios, contudo, assumindo uma formulação federal. Sob esse aspecto de coordenação interfederativa, foram criados Gabinetes de Gestão Integrada Estaduais (GGIE), os quais deveriam permitir a operacionalização do sistema de interlocução entre a SENASP, as secretarias de Segurança Pública estaduais e os departamentos de Polícia Federal (DPF) e de Polícia Rodoviária Federal (DPRF). Além disso, foi reconhecida a atuação do município para o combate à criminalidade, através das Guardas Municipais – nos Territórios da Paz, instituíram-se os Gabinetes de Gestão Integrada Municipal (GGIM). Ainda que as singularidades locais exijam modelo particular de gestão para cada convênio, todavia, prevaleceu o formato único (RIOS, CERQUEIRA, ALVES, 2010). 16 Na dimensão intragovernamental, o diálogo se estabeleceu entre as secretarias, Executiva e de Planejamento, Orçamento e Administração (Spoa). Não houve garantia de recursos para todas as ações, em função do complexo contexto de planejamento financeiro, como também por causa da distância entre a elaboração do orçamento e a sua execução – posteriormente foram efetuados cortes na Lei de Orçamento Anual e no Decreto de Contingenciamento (idem). A iniciativa PRONASCI compreendeu dez ações orçamentárias, distribuídas em 94 medidas, ligando políticas de segurança a ações sociais, definidas em Planos Internos do Programa (FGV, 2008). Dentre as ações, destaca-se a Concessão de Bolsa-Formação a policiais militares e civis, agentes penitenciários, guardas-municipais, bombeiros e peritos criminais, de baixa renda e o Apoio à Implementação de Políticas Sociais – especificamente,

15

Segundo dados do SIAFI e SIMAP, a previsão anual era de 1,4 bilhão/ano no Orçamento Geral da União (FGV, 2008). 16

Até o final de 2010, foram firmados convênios com 25 estados e o Distrito Federal e 174 municípios (RIOS, CERQUEIRA, ALVES, 2010).

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o Projeto Jovem Cidadão. Reunidas, receberam mais de R$ 40 milhões do orçamento. Basicamente, a ideia era descentralizar as ações entre União e entes federados através de setenta e quatro (74) unidades gestoras – 28 na Polícia Rodoviária Federal, 27 na Polícia Federal e 19 entre outros Ministérios e Poderes, tais como Fundação Universidade de Brasília, Ministérios do Esporte, Saúde, Tribunal da Justiça do DF e Territórios17. A sua principal ação, considerada inédita, foi destinada à concessão de bolsas para aperfeiçoamento dos recursos humanos das polícias e demais profissionais da segurança pública. O processo de capacitação e valorização dos profissionais de segurança pública se daria pelo desenvolvido de cursos de formação com novas metodologias e matriz curricular, cursos de pós-graduação, implantação de Sistema Integrado de Formação e Valorização Profissional, formação das guardas municipais, implantação de Centros de Atendimento de Saúde Mental, entre outros (FONTOURA, RIVERA, RODRIGUES, 2009). O novo modelo de segurança tem como base a responsabilização dos entes federativos através de atendimento integral ao problema da criminalidade violenta. A capacitação, equipamento e desenvolvimento das polícias, o atendimento às populações consideradas em ―alto risco‖ de violência e a reinserção social de populações marginalizadas abrangem tais atuações. A FGV Projetos (2008) ponderou a importância de se estabelecer uma sintonia entre governo federal e unidades subnacionais, considerando o papel das capitais para o desenvolvimento e continuidade do programa. No processo de elaboração do PRONASCI, estavam envolvidos os Ministérios da Justiça, Educação, Saúde, Trabalho, Cultura, Esportes, Cidades, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Casa Civil; as Secretarias: Nacional Anti-Drogas, Nacional da Juventude, Especial de Direitos Humanos, Especial de Políticas para as Mulheres e Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, bem como, posteriormente, os representantes das secretarias estaduais de segurança pública e de movimentos sociais, além de membros de instituições de pesquisa sobre segurança pública. Por fim, foi discutido com o Poder Legislativo Federal (IPEA, 2007; 2008). A característica do PRONASCI, segundo a análise da FGV (2008), está na sua ―inovação‖ ou ―mudança de paradigma‖, quando envolve a aproximação entre cidadania, justiça e segurança, agregando um conjunto de ações distintas. Na análise, foi pontuado o

17

Além disso, o Ministério da Justiça assumiu compromissos internacionais com a Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura.

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desenvolvimento considerado satisfatório quanto ao imediatismo e complexidade no primeiro ano de vigência e execução do Programa. Contudo, segundo o mesmo estudo, foi possível identificar pontos a serem reconsiderados, tais como um mecanismo mais eficiente para o funcionamento dos Gabinetes de Gestão Integrada (GGIs), por ser órgão de concertação de políticas públicas, com visão privilegiada do que ocorre em campo; melhoria das ações orçamentárias referentes à concessão de bolsas a profissionais de segurança – implicando em nova forma para efetuar pagamentos, maior associação de ferramentas de educação à distância; estabelecimento de procedimentos conjuntos para utilização dos recursos e maior difusão de procedimentos de avaliação e monitoramento (FGV, 2008). A pesquisa da FGV Projetos (2008) considerou o contexto sobre o qual as políticas do PRONASCI foram construídas e ponderou recomendações básicas. O Programa e suas políticas continuaram operando em um contexto marcado pelo paradigma de ações isoladas e fracionadas, demandando por melhoria da comunicação entre MJ e entes federados para maior esclarecimento de conceitos estruturantes do PRONASCI, bem como de suas ações; como também maior incentivo para que a sociedade civil entendesse e incorporasse os conceitos nas práticas cotidianas. Assim, a FGV propôs a vinculação do investimento à eficácia, apontando a necessidade de maiores resultados na aplicação de recursos financeiros e a padronização dos sistemas de informação e métricas, objetivando o estabelecimento de monitoramento e avaliação do sistema de segurança pública – não só como aquisição de equipamentos tecnológicos, mas principalmente como estratégia maior de mudança no paradigma da segurança pública, conforme proposto. Outra recomendação diz respeito à articulação com as demais áreas de atuação política de competência do governo. As áreas fronteiriças à segurança, educação e saúde, devem, segundo a FGV (2008, p. 106), receber ações PRONASCI específicas ―para promover pontes de políticas públicas‖: inclusão curricular de princípios cívicos e de direitos de cidadania; discussão sobre a justiça e a importância da legalidade e ordem pública como princípios basilares de uma sociedade democrática e economicamente próspera; suporte às vítimas para além do atendimento emergencial. Recomenda ainda ações PRONASCI específicas para o desenvolvimento de gestores de segurança pública e processos administrativos da gestão de segurança pública, coibindo práticas violentas e inserindo atores antes distanciados das práticas democráticas, em benefício do investimento cívico construído pela sociedade brasileira ao longo de sua história. 48

De acordo com a análise do IPEA (2008, p. 265), o programa assumiu uma face de ―política‖ por apresentar uma divisão entre ―ações estruturais e projetos locais‖, que envolve ―frentes de atuação de diferentes naturezas e com diferentes objetivos‖. Sobre as ações estruturais, pesaram metas e impactos mais abrangentes, ―ligadas às diretrizes gerais de uma política de segurança‖, sem dar conta do público-alvo e dos territórios selecionados de fato. As ações nas comunidades das regiões priorizadas se resumiram aos projetos locais. As referidas ―ações estruturais‖ foram agrupadas em três conjuntos, assim distribuídos: a) ―modernização das instituições de segurança pública e do sistema prisional‖, b) ―valorização dos profissionais de segurança pública e agentes penitenciários‖ e c) ―enfrentamento da corrupção policial e do crime organizado‖. Destacou-se também entre as ações a proposta de ―remissão de pena por estudo regular e a realização de nova Campanha Nacional de Desarmamento‖ (FGV, 2008). As ―ações locais‖ previstas foram representadas por um conjunto de programas sociais federais já existentes, modificando somente os focos definidos no PRONASCI, abrangendo a combinação das ações policiais ―cidadãs‖ e das ações sociais. O grupo de ações se dividiu em três conjuntos: o ―Território de Paz‖, que compreende a criação de vários mecanismos de articulação político-social; a ―Integração do Jovem e da Família‖; e o conjunto ―Segurança e Convivência‖, que abarcou a implantação da polícia comunitária e de outros programas e projetos já em execução em diversas áreas do governo federal – tais como a recuperação de espaços urbanos e áreas degradadas, a melhoria da infraestrutura urbana, além de ações de esporte e de cultura nos territórios selecionados (idem, p. 266). Resumidamente, entre os principais eixos do PRONASCI sobressaem a ―valorização dos profissionais de segurança pública; a reestruturação do sistema penitenciário; o combate à corrupção policial; e o envolvimento da comunidade na prevenção da violência‖ (BRASIL, 2010). Nesse sentido, o Programa apresenta certa inovação em termos de articulação entre a segurança pública e a sociedade no exercício de sua cidadania, bem como a integração de ações diversas, mas não obteve o êxito esperado porque a articulação não foi bem estruturada e não conseguiu atingir verdadeiramente os pontos principais dos problemas brasileiros, tais como a crise de gestão. A gestão do programa foi dificultada pela combinação de ações díspares entre si. No campo da segurança pública ocorreram projetos sociais já existentes e alguns novos. A crítica, neste caso, é sobre a montagem das ações, que parece não ter criado efetivamente uma 49

política com relações visivelmente instituídas entre o que era previsto e os resultados esperados. Como administrar tantas ações e atores, o que dificulta uma avaliação precisa e, assim, o alcance das metas (IPEA, 2008). O Programa federal dedicou-se ―à prevenção, controle e repressão da criminalidade‖ (LEI 11.530/2007), a partir de projetos como: Reservista-Cidadão, Proteção de Jovens em Território Vulnerável (Protejo), o Bolsa-Formação e o Projeto Mulheres da Paz, ―voltado‖ às mulheres. A bolsa destinada aos policiais, por exemplo, a partir do Projeto Bolsa-Formação, surge como um paliativo à baixa remuneração desses profissionais, em vários estados brasileiros. Ou seja, não retifica as distorções existentes dentro da corporação policial e, assim, deixa de alcançar a meta de ―valorização‖ da categoria. Outro problema identificado na análise do IPEA (2008) foi a ausência de definição exata do que se configura como ―risco social‖ para o jovem e de quais indicadores determinariam a sua dimensão. A noção de ―risco‖ sugerida no programa é resultado da falta de especificidade no seu edital (GOMES; SORJ, 2011), quando indica como público-alvo do Protejo o (a) jovem ou adolescente em situação de ―vulnerabilidade social‖, de ―risco‖ ou de ―violência doméstica ou urbana‖. Portanto, deu-se margem para se pensar na inserção de quase todos os jovens e adolescentes destes universos selecionados, com o agravante de não haver vagas suficientes para a integração de um contingente populacional tão grande, como foi sugerido por algumas Mulheres da Paz (MPs) do Rio de Janeiro, no estudo empreendido por Gomes e Sorj (2011), como de MPs do bairro de São Cristóvão em Salvador – portanto, análise que será desenvolvida no terceiro capítulo. Também não ficaram bem definidos os territórios a serem contemplados pelo programa. No meio de todas as deficiências analisadas, no sistema de segurança pública brasileiro contamos com possíveis caminhos para a sua resolução. Primeiro, é válida uma menção à mobilização social e apoio às políticas que prezam o valor da equidade e contemplam o respeito aos direitos humanos. Segundo, encarar a segurança pública como um bem universal, tal qual o Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), proposto em 2003, assim como são tratados outros setores, como a saúde e a educação básica18. O caminho da valorização da SENASP, em que a União se responsabilizaria pela articulação com as

18

Vale indicar que o SUS e a educação básica têm sido alvo de críticas, portanto estão passiveis de melhorias. Entretanto, esses sistemas implantados pelo Brasil configuram um passo para a efetivação da democracia através do acesso a serviços públicos essenciais.

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instâncias de governos e com o Congresso Nacional, uniformizando categorias e metodologias, garantiria a eficiência pelo sistema de informações (SOARES, 2013). A ―nova‖ política adquire pretensões de favorecimento aos valores de cidadania pautados no estereótipo de gênero, pois concebe mulheres como responsáveis pelo cuidado dos jovens em situação de violência. As mulheres não compõem expressivamente as estatísticas sobre este tipo de crime, seja como autoras, seja como vítimas19, daí também serem designadas a assumir a função de mediadoras dos conflitos urbanos, conforme estabelecido na política de segurança pública designada como PRONASCI (SILVEIRA, 2009). De fato, não dá para fazer uma análise mais segura sobre os efeitos do PRONASCI. De um lado, ele, em sua concepção, apresentou expectativas de resultados em médio prazo – e passaram-se apenas seis anos desde o lançamento. De outro lado, o programa não definiu bem suas metas diante da fluidez do público-alvo e foco territorial. Para além da falta de precisão já mencionada, cabe ainda uma crítica sobre a proposta de trabalho visando o ―empoderamento de mulheres‖ (BRASIL, 2010). No próximo tópico, será analisado como a partir das ações previstas e executadas pelo Projeto Mulheres da Paz o ―empoderamento‖ foi apresentado como uma das metas a serem alcançadas através da fixação das beneficiárias no lugar de ―cuidadoras‖ dos conflitos da comunidade (GOMES; SORJ, 2011, p. 3).

1.3

O PRONASCI e a questão de gênero

Há dois elementos iniciais capazes de justificar o desenvolvimento de uma análise pautada na variável ―gênero‖ para os estudos sobre a violência e a criminalidade violenta. Conforme mencionado anteriormente, os homens representam a população mais criminalizada e vitimizada nos crimes de homicídio, 90% dos grupos de apenados, em diversos países, são de homens, enquanto as mulheres são protagonistas dos movimentos por promoção de justiça

19

As mulheres engrossam as estatísticas na incidência da violência doméstica e familiar (Ver MACHADO, 2010), o que não significa estarem fora de situações delituosas nos padrões referidos, seja como autoras ou como vítimas.

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e apuração de crimes para casos de violência perpetrada por agentes públicos – geralmente, na condição de mães, filhas, irmãs, cônjuges e afins (SENTO-SÉ, 2009). O paradoxo que envolve a questão de gênero é tomado pelo Estado como elemento conciliador para a formulação de políticas públicas. Em particular, para a formulação da política direcionada às mulheres para mediação de conflitos – o Projeto Mulheres da Paz –, como também de outra área social, com o programa Bolsa-Família. O Estado se apropria do constructo – gênero – fixando mulheres em condições de subalternidade, no primeiro caso, ao cooptá-las para o trabalho de ―multiplicadoras da paz‖. No entanto, deixa de assimilar pautas levantadas por grupos de mulheres e feministas, fundamentais para a transformação das condições de desigualdade social. O principal programa do presidente Luís Inácio (PT), o Bolsa-Família (BF), obteve repercussão social e política. O programa, as alianças político-partidárias, o carisma, dentre outros elementos, ratificaram a reeleição de Luís Inácio conquistada em 2006 (DANTAS NETO, [s. d.]). O BF unificou os Programas de Transferência de Renda, Bolsa-Escola, BolsaAlimentação, Vale-Gás e Cartão-Alimentação, com o conceito de transferências monetárias a famílias pobres20. Inserido na Estratégia Fome Zero, teve como foco o atendimento a famílias com renda per capita familiar de R$ 60,00 (na Linha de Indigência) e R$ 120,00 (na Linha de Pobreza), dentre outros critérios de elegibilidade, com o objetivo maior de combate à fome, à pobreza e às desigualdades, mediante inclusão social. Até 2005, beneficiou 8,7 milhões de famílias e atingiu 100% dos municípios brasileiros. Em 2007, atendeu 45,6 milhões de brasileiros (SILVA, YASBEK, GIOVANNI, 2008, p. 139). As condicionalidades atreladas ao benefício (―manutenção de filhos em idade escolar na escola, frequência de mulheres gestantes a exames de Pré-Natal, retorno de adultos analfabetos à escola‖), dentre outras, foram assumidas pelas famílias beneficiárias com o fim de romper com o viés assistencialista das Políticas Sociais brasileiras (idem, p. 139). A mulher se apropriou do direito sobre um benefício financeiro, envolvida em uma rede de obrigações com as ações estatais. Criaram-se possibilidades de mudança, mas não se garantiu transformação em suas condições de vida.

20

Lei Nº 10.836, de 09 de janeiro de 2004, regulamentada pelo Decreto Nº 5.209, de 17 de setembro de 2004. O benefício mínimo concedido às famílias variava entre R$ 20,00, o mínimo, R$ 85,00, médio e R$ 182,00, o máximo concedido. Foi implantado pelos municípios de forma descentralizada sob a coordenação nacional da Secretaria Nacional de Renda de Cidadania do Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (SILVA, YASBEK, GIOVANNI, 2008).

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Segundo Libardoni e Suárez (2007), o programa Bolsa-Família aumentou o poder de compra das mulheres beneficiárias, entretanto, sem gerar inclusão social. Para as beneficiárias, os relacionamentos comerciais foram alargados, ou até conquistados para quem não tinha acesso, porém, não promoveram aumento do prestígio social das mulheres. O impacto se estabeleceu exclusivamente no campo da sobrevivência, portanto, longe da efetivação da cidadania, visto que a ideia do governo era a de saída da extrema pobreza para a condição de pobreza. Para as autoras, a capacidade de compra das mulheres teria plantado caminhos para ―[...] alterações na hierarquia familiar pelo fato de as mulheres poderem, agora, fazer escolhas e, principalmente, negociar sua autoridade no âmbito doméstico‖ (idem, p. 144). Contudo, o programa BF não mudou as relações de gênero e, em alguns casos, culminou em um processo de intensificação de desigualdades nos contextos familiares. Em primeiro lugar, o aumento do poder de compra está diretamente associado ao ―bom‖ desempenho da maternagem entre as mulheres. Tanto a maternidade – relacionada à procriação e/ou ao lugar social de mãe – quanto a maternagem – o cuidado de familiares desempenhado por outra mulher, que substitui a mãe – são funções focalizadas pelo BF. A mulher-mãe ou aquela que eventualmente a substitui na função de maternagem tem como responsabilidade, dentre outras: a) a realização do Cadastro Único para inclusão da família no programa; b) a atualização do referido cadastro quando ocorre alguma modificação na situação familiar; c) o recebimento do recurso repassado pelo programa; d) a aplicação do recurso de modo a beneficiar coletivamente o arranjo familiar; e) o controle sobre crianças e adolescentes, tendo em vista o cumprimento das condicionalidades do programa; e f) a participação em reuniões e demais atividades programadas pela equipe de profissionais responsáveis pela execução e pelo acompanhamento do programa (MARIANO, CARLOTO, 2009, p. 904). A estratégia de inclusão e de interpelação das mulheres supõem a seguinte operação ideológica: mulher = mãe ou família = mãe. A consequência é o fortalecimento da identidade feminina, tradicionalmente atrelada ao cuidado dos filhos e demais familiares e controle da renda. No BF foi vislumbrado o abrandamento das dificuldades das mulheres dentro do padrão das relações de gênero. Entretanto, sem atacar diretamente a questão da ―subordinação feminina‖ e sem alterar o padrão das relações sociais de gênero. As suas necessidades, nesses casos, são interpretadas em relação à situação de pobreza, sem levar em consideração a situação de desigualdade que se apresenta em seu cotidiano. Substituíram a demanda por ―empoderamento das mulheres‖ por demandas que visam ao fortalecimento das famílias – 53

políticas familistas – reforçando a associação da mulher à maternidade. Logo, minimizam a responsabilidade dos homens e produzem a responsabilização das mulheres com o cuidado de crianças, adolescentes, doentes e idosos (ALVAREZ, 2000; MARIANO, CARLOTO, 2009). No que toca à proposta de benefícios adicionais, além da renda distribuída, não foi possível visualizar o resultado esperado de autonomização das famílias. Adultos das famílias beneficiadas pelo BF seriam encaminhados para capacitação profissional, para o trabalho, para o curso de alfabetização, além de outros serviços e atividades sócio-educativas. Todavia, foram apontadas dificuldades com relação à inserção desses adultos no mercado de trabalho e a falta de articulação sistemática entre programas, serviços e ações (SILVA, YASBEK, GIOVANNI, 2008). Além disso, sabe-se que os Programas de Transferência de Renda são a única fonte de renda para muitas famílias no país. Assim, as condições sócio-educacionais do grupo de beneficiados, atreladas ao contexto nacional de problemas sociais históricos, limitam as melhorias. Portanto, os resultados positivos vislumbrados no campo educacional – com o BF especificamente – condicionam-se a melhorias em outras áreas sociais, mediante a ausência de políticas locais de suporte para a adequação do atendimento aos beneficiários (idem). Em segundo lugar, esta fixação das mulheres como cuidadoras favorece um ambiente de violência, contraditoriamente ao que se pretende nas políticas de gênero. A diminuição da violência doméstica foi sentida pelas beneficiárias do Bolsa-Família, porém obsrvou-se a falta de independência nas mulheres, a permanência da sua baixa autoestima e a impossibilidade de separação do marido, já que as mudanças promovidas pelo benefício foram discretas (LIBARDONI, SUÁREZ, 2007). A mulher é a proprietária do cartão, portanto, a gestora desta renda. Entretanto, muitos maridos reafirmam a chefia do lar reclamando para si o poder sobre o cartão – sobre o dinheiro – dessas mulheres, configurando uma face da violência doméstica. Outro impacto do Programa BF diz respeito à percepção das mulheres em serem parte da cidadania brasileira. O fato de ingressarem como beneficiárias fez com que muitas (principalmente de zonas rurais) tivessem acesso a documentos que não possuíam; além disso, a inclusão no BF favoreceu o retorno das mulheres à escola, o que motivou maior acesso à informação e, a partir daí, um aumento da autoestima, em alguns casos; já na área da saúde, foi possível observar o aumento do acesso aos programas de planejamento familiar, mas não

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houve redução dos índices de gravidez entre o grupo por causa da atenção maior sobre as adolescentes em detrimento das mulheres adultas (SUÁREZ, LIBARDONI, 2007) 21. O II Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM) definiu uma série de prioridades quanto ao ―enfrentamento de todas‖ as formas de violência contra as mulheres (BRASIL, 2004; 2005). O PNPM é um dos planos de ação referentes à Agenda Social do Programa de Aceleração do Crescimento, que centra suas ações nas violências doméstica, sexual, institucional, tráfico de mulheres e exploração sexual comercial de mulheres adolescentes e jovens. A partir desse plano, elaborado pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, desdobra-se a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (PNEVM) 22 dentre as suas prioridades. A PNEVM lança uma definição de enfrentamento que abrange vários segmentos de provisão de bem-estar social e individual. Logo, concebe ―enfrentamento à violência‖ como a prevenção, o combate, a assistência e a garantia de direitos nos diversos setores (saúde, educação, assistência social, segurança pública, cultura, justiça entre outros) com ações articuladas. Com isso, pretende combater as desigualdades e discriminações de gênero e promover o ―empoderamento‖ das mulheres (BRASIL, 2004; 2005). Entre as prioridades e ações da política nacional foram apresentadas a capacitação de lideranças comunitárias e profissionais das áreas de segurança pública, saúde, educação, e assistência social na temática da violência de gênero. No PRONASCI, foi possível a execução desses processos formativos para algumas lideranças constituídas de mulheres, junto ao interesse do governo em desviar jovens do mundo da criminalidade violenta. Dessa forma, estabelece-se um desvio de foco das pessoas beneficiárias para o foco nos jovens, quando as mulheres deveriam ser público-alvo, conforme o previsto na PNEVM, como o (a) leitor (a) poderá observar no próximo subtópico.

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O Programa Bolsa-Família reuniu pressupostos liberais = assegurando um mínimo de subsistência sem desestimular o trabalho – e distributivo – distribuição equitativa de bens e serviços sociais – como uma política pró-família, pró-criança, pró-educação. Pensou-se numa melhoria das condições de vida das futuras gerações. A sua originalidade, segundo Silva e outros (2008) configurou a retirada de crianças e adolescentes (o públicoalvo) do trabalho. Os primeiros resultados foram a diminuição da evasão e melhoria do rendimento escolar, maior frequência de crianças em postos de saúde, diminuição dos casos de desnutrição entre as beneficiárias e diminuição da extrema pobreza. 22

A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (2003) está em consonância com a Lei 11.340/2006 (―Lei Maria da Penha‖ - LMP) e com convenções e tratados internacionais, Convenção de Belém do Pará 1994, CEDAW 1981 e Convenção de Palermo, 2000. No entanto, só em 2004, com a I Conferencia Nacional de Políticas para Mulheres e a construção do PNPM, é que se consolida o eixo de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres.

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1.3.1 O projeto Mulheres da Paz

O eixo do PRONASCI que envolve a comunidade, as famílias e as mulheres é o Projeto Mulheres da Paz (MP). A partir do MP seriam formadas líderes comunitárias, residentes em territórios que foram classificados pela equipe do governo como ―vulneráveis e violentos‖, para construção e fortalecimento de redes sociais de prevenção e ―enfrentamento‖ à violência, a partir de administração autônoma por parte dos estados e municípios23. As beneficiárias foram escolhidas por meio de processos seletivos públicos realizados pelos gestores locais (municípios ou estados). Em 2009, foram beneficiadas 4.586 MPs e, até 31 de julho de 2010, 4.288 MPs, segundo a Secretaria Executiva do PRONASCI. Elas passaram por treinamento para visitar as famílias da comunidade para identificar casos de violência, abusos, uso de drogas, evasão escolar, entre outros, que seriam registrados e encaminhados para a Equipe Multidisciplinar (EM), equipe técnica do projeto referido e para o CRAS. Através de suas ações, foi vislumbrada a reinserção dos jovens na comunidade por meio de atividades culturais, educativas e de capacitação profissional. Também constituiu objetivo a oportunidade de as mulheres participarem de cursos profissionalizantes que lhes possibilitassem realizar atividades produtivas sustentáveis (RIOS, YASBEK, GIOVANNI, 2010)24. Na divisão territorial, a seleção deveria abarcar a estrutura demográfica dos diferentes territórios. Entretanto, houve variação na prática, em função da disponibilidade de recursos e das particularidades locais. As maiores estimativas para a distribuição regional das MPs foram sobre as regiões Sudeste (SE) e Sul (S), nas quais RJ e SP receberam a maior quantidade, respectivamente, 2350 e 1900 MPs; seguidas da região Norte (N), em que o PA recebeu a estimativa de 600 MPs; depois, o Nordeste, com BA e PE recebendo a estimativa de 500 MPs cada. A Bahia acabou contemplando 669 mulheres beneficiadas ao final, segundo dados do SIMPaz. O projeto MP foi lançado em Brasília, no final de 2007, com a participação de 200 mulheres das regiões metropolitanas constituídas como foco territorial do PRONASCI. Os 23

No primeiro momento do projeto, apenas o Rio de Janeiro e Acre conveniaram-se, seguido de Pernambuco. A capital do Rio de Janeiro foi a primeira na implantação do Projeto e, em todo o estado, foram selecionadas 2.550 mulheres através de edital aberto em 2008 (GOMES, SORJ, 2011). 24

Que não foi o caso da Bahia, como será abordado no capítulo segundo e terceiro.

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convênios e a descentralização das ações foram preteridos por causa da escassez de recursos humanos e a falta de capilaridade, portanto, para melhor adequação às particularidades. A supervisão do projeto MP ficou sob a responsabilidade da SENASP através do SIMPaz25; enquanto que os gestores locais, que também passariam por processos de capacitação, assumiram outras responsabilidades – identificação e seleção das mulheres da paz, estruturação física e pessoal de equipe multidisciplinar, capacitação das mulheres da paz, desenvolvimento das atividades de resgate e reeducação dos jovens em situação de ―risco‖ social e em conflito com a lei. Uma comunicação se estabeleceu entre os entes federados conveniados e a secretaria e a Caixa Econômica Federal. O (a) gestor (a) local comprovaria o cumprimento das metas individuais das MPs e repassaria as informações à gestão federal (SENASP), a responsável pela homologação e emissão da ordem de pagamento para a Caixa Econômica Federal (RIOS, YASBEK, GIOVANNI, 2010). Os (as) gestores (as) dos estados e dos municípios deveriam acompanhar o projeto a partir de reuniões – em que seriam expostas as principais dificuldades, obstáculos e resultados do programa nos estados e municípios – com gestores (as) locais, com beneficiárias, ações in loco e à distância e auditorias. Naquele momento, foi possível detectar dificuldades no projeto, em virtude da falta de capacitação dos (as) gestores (as) locais, direcionando a secretaria a fornecer cursos de capacitação para algumas equipes (idem). A coordenação do projeto MP acatou ao nível inter e intragovernamental, à participação de entidades civis como organizações não governamentais, movimentos sociais e associações de vítimas da violência. Na análise de Rios, Yasbek e Giovanni (2010), este constitui o seu caráter singular, já que demandava a necessidade de articulação da atuação dos estados com organizações sobre as quais os (as) gestores (as) não têm governabilidade. Embora tenha havido controle efetivo marcado pelo sistema integrado de intercâmbio de informações (através do SIMPaz), necessário para monitorar uma política de descentralização de recursos e federações, foram constatados processos em que surgiram deficiências. A troca de informações foi necessária para certificar-se sobre o repasse de recursos, bem como verificar as metas de trabalho, entretanto, o controle, monitoramento e

25

O Sistema Nacional do Projeto Mulheres da Paz (SIMPaz) foi criado para atualizar as informações sobre a execução do Projeto Mulheres da Paz. Esse sistema reuniu dados pessoais das participantes, informações sobre as atividades exercidas, assim como sobre os benefícios que lhes foram concedidos, sob a responsabilidade de registro pela coordenação da equipe multidisciplinar. Assim, o termo de adesão do projeto ficou condicionado ao fornecimento das informações ao SIMPaz, mediante atualização de dados cadastrais e de inclusões e exclusões de beneficiárias (Ver Decreto Nº 6.490, de 19 de Junho de 2008).

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avaliação tiveram limitações provocadas pelo acesso restrito entre as instâncias de gestão e pelo descumprimento de algumas etapas. O (a) gestor (a) federal acessava somente informações cadastradas pelos (as) gestores (as) locais, ―[...] sem uma forma de controle efetivo da veracidade e acuidade dos dados‖ (RIOS, YASBEK, GIOVANNI, 2010, p. 361). Como também foram identificadas falhas na relação entre as gestões federais e a SPOA (Subsecretaria de Planejamento, Orçamento e Administração) do MJ, ratificadas pela insegurança quanto aos recursos disponíveis e pela ausência de planejamento de dotações para o projeto (idem). Além disso, não havia um sistema de avaliação capaz de projetar ações futuras a partir da análise dos resultados. Embora houvesse um contrato com consultoria externa para avaliar o PRONASCI, não ocorreu uma avaliação expressiva, o que confirma a prática brasileira nesse sentido, como salienta Rios, Yasbek e Giovanni (2010). Assim, configurou-se um desafio construir indicadores de avaliação, já que deveriam ―[...] responder qual o efetivo impacto dos trabalhos dessas mulheres em suas comunidades.‖ (idem, p. 364). A continuidade do programa envolveria, segundo alguns gestores, a existência de mecanismos de avaliação legítimos que confirmassem a efetividade do programa e a aprovação e adesão do públicoalvo. Outro desafio para o projeto MP foi a criação de espaços de negociação entre os atores envolvidos. Considerando o que fora indicado como ―inovação‖, de tentar aliar líderes comunitárias à política de prevenção e mitigação da violência, não constituiu um campo de ―amplo diálogo‖ com os (as) envolvidos (as), ao contrário do que estabelece Rios, Yasbek e Giovanni (2010). Como será evidenciado nos próximos tópicos, a política não contribuiu para o avanço do pacto federativo, já que houve problemas na execução em alguns contextos estaduais. Na Bahia, surgiram divergências político-partidárias entre o estado e um dos municípios, Lauro de Freitas, as quais assumiram o ambiente e formataram o desenvolvimento das ações de forma conflituosa. Além disso, não houve diálogo satisfatório entre gestores (as), acadêmicos (as), lideranças civis e o público-alvo de mulheres a serem beneficiadas pela política a ser executada. Com isso, dificultou-se a possibilidade de o caráter considerado ―inovador‖, ao aliar ―repressão, prevenção e proteção social‖, tomar corpo e marcar um passo à frente na questão nacional da segurança pública. De acordo com Rios e

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outros (2010), tais elementos configuraram a presença de fragilidades antigas e persistentes da forma de gerir políticas públicas no país.

1.3.1 Pelo “empoderamento” das mulheres: o projeto Mulheres da Paz

A política para a família ―à brasileira‖ inclui a ―não-ação governamental‖, caracterizada pela falta de intervenção estatal efetiva frente aos problemas sociais. O formato dessas políticas sociais sempre foi influenciado pela tradição de ―autoproteção‖ da sociedade em sua relação com o Estado, na qual este partilha suas responsabilidades com a sociedade, a instituição familiar (PEREIRA, 2010, p. 28-29) e as mulheres. De acordo com Mariano e Carloto (2009) e Alvarez (2000) as políticas familistas, voltadas para o fortalecimento das famílias, reforçam a correlação entre mulher e maternidade. Dessa forma, é difícil afirmar a existência de uma política social (familiar) no Brasil, produzindo efeitos positivos. A instituição de políticas está assentada em estereótipos forjados nas famílias, através das mulheres – as responsáveis pelo cuidado dos entes e do trabalho doméstico segundo a tradição de gênero. Funcionam como espaço de reprodução de desigualdades e preconceitos. Então, a proposta de ações comunitárias estabelecidas pelo projeto MP reproduz tradicionalismos de gênero atribuídos às mulheres. A entrada da política Mulheres da Paz, do PRONASCI, na agenda governamental, marcou uma interlocução do MJ com grupos da sociedade civil, de forma conflituosa. Foi mantida uma abordagem na qual a decisão de formulação e implementação de uma política pública envolve os níveis hierárquicos superiores da burocracia, neste caso, conhecida como top-down (OLIVEIRA, 2006). Em 2007, governo, academia e sociedade civil se reuniram em colóquios temáticos, principalmente, tratando do lugar social tradicionalmente estipulado para mulheres no atual processo de atuação do poder público no combate à violência. Houve também centros de debates com grupos sociais como as ―Mães de Acari‖ e a Central Única de Favelas (Cufa), quando foi destacado o conceito de comunidades ―maternocentradas‖, que se refere ao significado da figura das mães nesses contextos periféricos metropolitanos, com ―grande carga de respeito‖. 59

A partir do conceito de comunidades ―maternocentradas‖, criou-se um primeiro projeto, Mães Ouvidoras, que originou o MP. No processo de formulação, inicialmente, foi encaminhado ao Congresso Nacional o projeto portando o nome de Mães da Paz. Contudo, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) e parte da militância de defesa dos direitos das mulheres argumentou que ―mães‖ limitava o papel dessas mulheres na sociedade, além do que a assistência aos jovens seria de obrigação do Estado e não de mulheres da sociedade civil. O único resultado foi a mudança de nome (Mães da Paz) para Mulheres da Paz, pela Medida Provisória, nº 416, de 2008 (RIOS, YASBEK, GIOVANNI, 2010; GOMES, SORJ, 2011). O Estado reconhece a instituição familiar e as mulheres ―[...] como uma base para a construção das redes de segurança para a população pobre‖ (GOMES, SORJ, 2011, p. 150). Influenciados por políticas neoliberais do modelo europeu e estadunidense de 1980, além de sua experiência na proteção social, os governos brasileiros aproveitaram a participação autonomizada e voluntarista da ―família na provisão do bem-estar de seus membros‖. Em condições de ingerência do Estado, famílias, comunidade e mulheres improvisam formas para lidar com os inconvenientes da escassez de recursos, lançando mão de aspectos de ―solidariedade‖ entre determinados grupos, caracterizando-se, assim, como ―fontes ou agentes‖ do setor informal (ABRAHAMSON, 1992 apud PEREIRA-PEREIRA, 2010, p. 32). A prioridade, ou o público-alvo, do PRONASCI eram os jovens considerados em condições de ―vulnerabilidade familiar e social‖ (BRASIL, 2007). O lugar das mulheres, também consideradas nas mesmas condições que as dos jovens, ficou representado pela função de cuidadoras desses jovens, contrariando investiduras de mulheres e feministas para o enfrentamento à violência de gênero 26. Nesse bojo, o Estado aloca as mulheres pobres como sua substituta na provisão de bens e serviços sociais básicos (PEREIRA, 2010), no lugar de dar continuidade aos critérios evidenciados no PNPM. Portanto, abrange a especificidade do seu cotidiano em situação de violência. Esta especificidade no planejamento de políticas sociais já constitui uma prática nos programas de transferência de renda. Na análise de Gomes e Sorj (2011, p. 148), envolve discursos e práticas díspares entre si, por um lado, na mobilização de ―noções e pressupostos 26

Aqui, o conceito de ―violência de gênero‖ se refere à violência produzida no espaço das relações sociais, cuja ênfase é dada ao seu caráter relacional num contexto de desigualdades de gênero. Essas relações, de forma complexa e contraditória, abrem possibilidades às práticas sociais, inclusive de lutas individuais e coletivas em que os indivíduos envolvidos recriam suas vidas, reafirmando ou rompendo com as desigualdades (ALMEIDA, 2007).

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maternalistas, associados à feminilidade‖; por outro lado, na reunião de novas abordagens sobre cidadania baseadas na individualização dos sujeitos, mediante ―valorização da autonomia e do autodesenvolvimento‖, conforme a ideia de ―empoderamento‖ especificada no referido projeto. As autoras ressaltam que:

Diferentes discursos sobre a valorização das mulheres como agentes políticos da mudança cohabitam o universo programático das políticas sociais contemporâneas no Brasil e, em particular, do Programa Mulheres da Paz (MP). Comunicam percepções de gênero distintas que, no jogo administrativo das políticas, adquirem variadas configurações: oposição, disputa, aliança, acomodação (GOMES, SORJ, 2011, p. 151).

O MP insere as mulheres como cidadãs ativas em processo de ―empoderamento‖. Para tanto, fundamenta o conceito de ―empoderamento‖ na constituição da autoestima do self feminino e na valorização da atuação junto à comunidade. Nas atividades de formação, as mulheres eram convidadas a construírem narrativas do self em que surgiam identidades ―empoderadas‖, mostrando-se adequadas ao protagonismo social e à autotransformação. Foi dado foco ao engajamento e agência social das mulheres para o combate à violência logo na apresentação do curso para as beneficiárias (AVANTE, 2009; GOMES, SORJ, 2010). Todavia, na função de ―provedoras de bem-estar‖, as mulheres assumiram uma posição de desvantagem por conta de seus parcos recursos para a almejada provisão27. Isto porque, no lugar de políticas públicas de gênero – proposta feminista que indica transformações nas condições de vida das mulheres e da população de modo geral – o governo, através de apropriação peculiar do constructo, adota políticas voltadas para as mulheres dentro dos padrões tradicionais atribuídos ao universo feminino, logo, políticas reprodutoras de desigualdades de gênero. A forma particular de o Estado conceber a questão de gênero através da execução de políticas públicas esboça uma das formas de desigualdade inseridas nas relações de poder dentro das instituições estatais no Brasil (ALVAREZ, 1988). Com relação à noção de ―empoderamento‖ não é diferente. O Estado não é neutro acerca das questões de gênero, repete o poder dos interesses masculinos sobre as resoluções 27

Para Pereira (2010), é a família que assume um lugar de desvantagem diante da transferência de responsabilidades adotadas pelo Estado, como provedora de bem-estar social.

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das pautas das mulheres (ALVAREZ, 1994), lança projetos reprodutores dessas desigualdades estabelecidas no interior do espaço político-partidário, com concessões aos grupos sociais discriminados, espelhando a relação conflituosa entre a subordinação da mulher na sociedade e o poder político institucionalizado. Assim, distancia-se da perspectiva feminista que concebe ―empoderamento‖ como escolhas ou autodeterminações, ou ainda, o poder de fazermos escolhas estratégicas, de forma que administremos nossas vidas na gama das relações e da expansão de limites sociais. Esse processo envolve, portanto, as (pré) condições de recursos para fazermos tais escolhas, e envolve também as ações dentro das possibilidades postas, assim como as suas concretizações (IORIO, 2002; SARDENBERG, 2006). O destaque do projeto MP direcionado à agência humana ou ao protagonismo social conectou as mulheres entre os níveis micro e macrossociais, tornando a atividade de capacitação o ápice do projeto. A mulher passaria a se reconhecer como participante ativa dos processos sociais, como protagonista da sua história. Nesse sentido, configura-se o deslocamento do nível do ―empoderamento‖ individual para o ―empoderamento‖ via comunidade, no qual elas desempenham o papel de cuidadoras dos jovens em situação de violência (GOMES, SORJ, 2010). As duas vertentes – ―empoderamento‖ individual e via comunidade – abrigam tensões entre as mulheres beneficiárias. Algumas mulheres se satisfizeram com os processos formativos porque puderam voltar à sala de aula, representando um passo para novas conquistas que viessem a realizar, enquanto outras expuseram o vazio criado pela política pela falta de perspectivas de mudanças significativas em suas vidas. Conforme observado entre as MPs do Rio de Janeiro, de um lado, a ação de cuidar dos jovens foi muito valorizada entre elas por abrir a oportunidade de ganharem reconhecimento e distinção na comunidade; por outro lado, elas pressionaram os gestores do programa e demais atores políticos para formularem políticas de ―[...] inserção no mercado de trabalho, de educação formal e de capacitação profissional‖ (idem, p. 156), já que esta seria a forma efetiva de se ―empoderarem‖. As contradições que envolvem a concepção de ―empoderamento‖ dentro da política social contemporânea brasileira, em especial, no Projeto MP, denotam as diversas formas de conceber a questão de gênero dentro da administração política. No próximo tópico, serão analisadas as contradições envolvidas na concepção do projeto, no que se refere à ideia de

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mulher atrelada à identidade de mãe, assim, estabelecendo o seu lugar de cuidadora e pacificadora de conflitos.

1.3.1 A “Solidariedade na Dor”: as Mulheres da Paz e as Mães de Acari

Os atributos femininos, no formato do projeto MP, funcionam como capital para uso do Estado no combate à violência. A relação estabelecida pelo Estado se contrapõe aos preceitos feministas no que se refere ao princípio da equidade de gênero 28 e, assim, ao processo de ―empoderamento‖ das mulheres (GOMES, SORJ, 2011). Na política, recuperamse antigos encargos domésticos direcionados ao grupo, incluídos nos planos governamentais como solidariedade informal, para ultrapassarem os espaços domésticos e atuarem como mediadoras de conflitos nas ruas. Neste caso, as mulheres alcançam os indivíduos dispostos nas vizinhanças, tentando convencê-los pelo fim da violência através da multiplicação de uma ideologia de paz promovida pelo programa, dentro do contexto maior da atual problemática da segurança pública. No Projeto MP, registra-se um choque de concepções e identidades de gênero que fragilizou o status de cidadã, autônoma e trabalhadora das participantes. O Estado fixou o lugar social das mulheres num ideário de salvação da sociedade, pela educação informal pautada em tradicionalismos de gênero, para mitigar a violência. Entretanto, a SPM, em confronto com as ideias tradicionalistas advindas de membros do governo e das demais entidades envolvidas no processo de formulação do projeto, estendeu a responsabilidade do cuidado dos jovens também para os homens. Com isso, propôs também a responsabilização dos homens sobre a educação e o cuidado dos jovens em situação de violência. No entanto, esta questão foi desconsiderada, ao ponto de o projeto MP representar a institucionalização do movimento de mães no combate à violência (GOMES, SORJ, 2011). Caso o argumento da SPM fosse levado em consideração, e os homens fossem dispostos para o trabalho de mediação ao lado das mulheres, presenciaríamos um passo para 28

O conceito de ―equidade‖ implica no acesso de todas as pessoas aos direitos que foram considerados ―universais‖ através da adoção de ações afirmativas voltadas às especificidades dos grupos historicamente discriminados (BRASIL, 2011).

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inovações no que se refere a um aspecto das desigualdades de gênero no país. Entretanto, permaneceríamos no abismo político, educacional e social marcado pelas intensas desigualdades sociais, que distancia a população pobre, negra, de mulheres, homossexuais, portadores de necessidades especiais, ainda sem alcance do acesso aos princípios de cidadania, aos processos democráticos. O debate público envolve coalizões provenientes dos agrupamentos heterogêneos presentes na sociedade, que se organizam segundo pontos de identificação. Sejam lideranças comunitárias, segmentos de intelectuais, instituições, movimentos sociais, etc., numa democracia, cada grupo integrante deve afirmar a presença dos demais e suas especificidades e perspectivas sobre os acontecimentos sociais, abrindo espaço para o apoio mútuo às petições dos outros e consequente distanciamento de princípios unitários (YOUNG, 1996). Contudo, a falta de entendimento entre os grupos políticos, especificamente sobre os caminhos a trilhar na área da segurança pública, evidencia-se com relação às questões levantadas e discutidas. Isso desorganiza o debate público, demonstrando a falta de consenso com relação à problemática da segurança no país, o que Soares (2009) atribui como um caráter ―babélico‖. Segundo o autor, este caráter aponta para a:

Polifonia que se verifica no interior de cada subuniverso político-ideológico, fraturando-os – sem torná-los, entretanto, mais permeáveis à dialogia que mereça esse nome. Em outras palavras: algumas posições relativas à ―segurança pública‖ ganham identidade, no espectro político (ainda que de forma imprecisa, ambivalente e contraditória), mas sem consciência de todas as operações semânticas, políticoideológicas, sociais, simbólicas, e psicológicas, que a constituem. Os contendores não sabem exatamente sobre quê, em cada momento, divergem, ainda que elejam algumas referências objetivas para justificar a marcação das identidades – referências que não são ilusórias, é claro, mas nem por isso são suficientes para caracterizar a oposição política forjada. (SOARES, 2009, p. 140).

Assim, a natureza babélica se expressa pela falta de, ou pouca consistência interna das posições em sua plenitude. Para Soares (2009), ―inconsistência interna‖ implica na ―[...] combinação de posições, valores e propostas incongruentes entre si, as quais são expostas como contrárias às outras, em certas conjunturas, com as quais, entretanto, mais se identificam do que seus autores estariam dispostos a admitir‖ (idem, p. 141). Os elementos de consenso desaparecem na confusão ideológica e política, logo, são impedidos de ser inseridos nos debates, na agenda pública e na estruturação das políticas de intervenção. 64

Soares (2009) identifica como possível explicação para a natureza babélica predominante nos espaços de debates sobre a segurança pública a inexistência de um campo29. Num dos aspectos apontados, os policiais assumem uma posição de protagonismo profissional e institucional na área, atendendo a regras ambivalentes de defesa do Estado e de cidadãos (ãs). Contudo, sob um Estado restritivo e rígido, o grupo tem a sua participação política limitada e mantém o ranço da repressão que outrora fora designado a desempenhar. Isso também dificulta que uma nova forma de relação com a sociedade pós-CF/88 tome corpo e enraíze princípios democráticos na área da segurança30. Outro aspecto sugerido por Soares é o fato de que os diversificados posicionamentos políticos tenham ignorado, por muito tempo, a problemática da segurança. Tal cenário tornou inviável o debate público sobre a questão com discussões pouco expressivas e sem geração de resultados fecundos. Ora, os debates públicos são palco para disputas de poder que fornecem o caminho para os constantes dissensos, representando o ―narcisismo das pequenas diferenças‖ (idem, p. 153). Soares afirma:

O que se destaca são táticas de guerra, de pedagogia vertical, ou de negociação, todas – cada uma à sua maneira – visando resultados em uma perspectiva utilitária e estratégica, isto é, isolando adversários (ou discursos alternativos) e maximizando alianças em torno de temas corporativos ou doutrinários. [...] Muitos falam, mas não entre si sem ouvirem-se mutuamente e sem a preocupação de incorporar contribuições alheias, e de tecer uma narrativa comum – falta diálogo, no sentido argumentativo ou comunicativo. Há emoções, mas predominantemente, apenas aquelas competitivas, do combate, da disputa, da inveja, do ressentimento. Trata-se antes de reafirmar o que já se sabe (ou supõe-se saber) e quem se é (ou o que se é), do que construir coletivamente. (SOARES, 2009, p. 153-154).

Percebemos, contudo, novas tentativas para a construção de agendas públicas pautadas nos interesses dos grupos. Os grupos marginalizados, de mulheres, de povos indígenas, de trabalhadores, de camponeses, assumem o protagonismo em alguns exemplos de experimentos auto-organizativos institucionalizados de forma pública (YOUNG, 1996). No caso particular de uma conferência de mulheres no Rio Grande do Sul, analisada por Soares (2009), as mulheres assumiram ―outro regime de representação e de dialogia‖, num ―processo

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Nas palavras de Soares (2009, p. 141), um ―campo‖ se estrutura nos ―sentidos compartilhados, linguagens comuns, identidades reconhecidas, alinhamentos, coalizões e conflitos organizados, mobilização social, definição de interesses e de projetos, disputas e regras.‖. 30

Soares (2009, p. 145) defende que os policiais foram cooptados pelo Estado como mecanismo para sua reprodução, encapsulando-os num ―invólucro corporativista‖.

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orgânico (e interativo) de engendramento de significações‖ marcadas pela valorização dos diversos posicionamentos. A perspectiva (YOUNG, 1996) proporciona a formação de uma pauta conjunta em que os particularismos se deslocam para um campo pluralista. Consequentemente, passa-se para a construção de métodos e construções coletivas de saberes, indicando a possibilidade e necessidade das pessoas se distanciarem de seus interesses próprios para discutir propostas públicas, e isso não fará com que abandonem as suas localizações sociais. Vale destacar que, com isso, não desloco o teor parcial que compreende as discussões públicas críticas, já que a imparcialidade não é possível de ser alcançada, como também não constitui um objetivo nessa arena. Ao contrário, a parcialidade é fundamental para desenvolvermos políticas que alcancem demandas sociais de grupos historicamente silenciados e desprezados política e socialmente, mediante a sua inserção nos espaços políticos de representação (YOUNG, 1996; 2006). Agora, constitui-se o perigo de novas formas de cooptação, vide interesses do Estado (espaço masculinizado), das atrizes políticas que se destacam nas discussões e nas mobilizações sobre a segurança no país. O constructo ―gênero‖, conceito fundamental nos debates feministas, é tomado como elemento perpetuador de tradicionalismos em que as mulheres são evocadas e mantidas em espaços desvantajosos, através de políticas que as contemplam enquanto ―mulher‖ num lugar social restritivo e sufocante – como é o caso das limitações do programa BF e do projeto MP. Segundo Soares (2009, p. 155), a questão de gênero é fundamental por que:

Se relaciona à atribuição à mulher do papel de mediação social, em cujo domínio ela se movimenta (intelectual, afetiva e praticamente), orientando-se com base na ponderação de sua responsabilidade face ao outro significado (filhos e pais, maridos e agregados eventuais, como enteados e irmãos), a cujo cuidado destina parte considerável de suas energias e compromissos. Mediação entre os membros da família nuclear (filhos e marido), entre gerações (avós e netos), entre consanguíneos e afins (genros, cunhados, etc...), quando não entre os universos espiritual e material, público e privado. Elo, via de acesso e de interdição, canal de comunicação e, sobretudo, de tradução: o gênero feminino, culturalmente construído, associa-se, em nossa sociedade, sobretudo nas camadas mais pobres à função estratégica do brocker. 31. (SOARES, 2009, p. 155, grifos do autor).

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Para Soares (2009), o conceito de ―broker‖ está associado ao lugar social das mulheres, que, fixadas na condição de ―mães‖, intermediam conflitos enquanto agentes do cuidado em relação aos (às) demais na sociedade.

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Soares (2009) reconhece o dinamismo e a pluralidade presentes nas agremiações formadas por mulheres, como também o lugar social que ocupam enquanto sujeito ―conectivo‖. As mulheres se inserem em redes pessoais ―familiares transfamiliares‖, sentindo e agindo sobre o mundo, constituindo campos heterogêneos e transversais. ―Uma mulher fala por si, pelo marido desempregado, pelo filho preso, pelo irmão policial, pelo pai alcoólatra e agressor, por outro irmão traficante, pela filha universitária, pelo genro médio-empresário [...]‖ (idem, p. 156-157). Ela evoca novas possibilidades, matizando suas posições e avançando em ―novas negociações sobre o sentido, o valor e a ação‖. Tal moralidade caracteriza o ―feminino‖ construído socialmente, chamando a sua multiplicidade produtiva de ―hesitação, ambivalência, ponderação‖ 32, que inibiriam práticas excludentes e violentas. Esse processo de subjetivação do feminino, para o autor, faz das mulheres intrinsecamente opostas à violência e, assim, agentes pela ―paz‖. Na sua argumentação, Soares (2009) se refere ao ―discurso feminino‖ e à ―práxis feminina‖ que compreende a sua responsabilização sobre os seus próximos. Portanto, não se utiliza dos debates feministas no que se refere à adequação da questão de gênero para a transformação das condições de desigualdade33. Bonetti (2000; 2003) reitera os espaços de atuação política de mulheres de grupos populares nas limitações de seus bairros de moradia, através da criação de grupos sociais e de instituições estabelecidas. Neste caso, prevalece na participação política destas mulheres o laço pelos atributos femininos tradicionalmente configurados e reproduzidos socialmente. A ambiguidade presente no processo de institucionalização do movimento de mães no combate à violência foi ratificada em ocasião da Cerimônia de Certificação das Mulheres da Paz da Bahia em 2010. A representante do Secretário pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (SEDES) referiu-se em seu discurso à importância das Mães de Acari para a concepção do projeto MP. Foi destacada a atuação política persistente dessas mulheres, justificada como fruto da essência/instinto maternal na experiência feminina. A relação estabelecida no evento entre os dois grupos se expressou na interpretação teatral, realizada por MPs baianas, recém-formadas, de um poema feito por Lélia Gonzalez, que remete à história vivenciada em Acari (RJ). À medida que davam vida às 32

Para Soares (2009), hesitação e ambivalência são conceitos éticos porque contrapõem autoritarismos e arbitrariedades. 33

Soares (2009) considera casos em que as mulheres são autoras de violência. Nos lares brasileiros, mulheres desconhecem, ou ignoram o ECA e o Estatuto do Idoso, quando agridem crianças, adolescentes, e velhos (as), forjando formas de educação.

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personagens do poema, choravam pela sua identificação com a história reproduzida, provocando comoção na plateia 34. O ―Caso Acari‖ se refere a jovens assassinados por policiais militares do Estado, na cidade do Rio de Janeiro, na comunidade de Acari, nos anos 1990. As mães das vítimas de assassinatos reivindicaram justiça e explicações para os crimes que vitimaram seus filhos. Nenhum dos jovens apresentava envolvimento com o crime. Freitas (2002) analisa o protagonismo político de mulheres das camadas trabalhadoras que se valeram da condição de mães e da situação de violência para se organizarem, pontuando o surgimento da ―nova‖ figura das ―mães que lutam‖, estabelecida no contexto de chacinas que acometem bairros marginalizados nas últimas décadas. A especificidade na trajetória das ―Mães de Acari‖, segundo Freitas (2002), expõe a condição de classe e raça atravessada pela violência policial. A violência motiva a união das mulheres para estabelecerem laços e legitimarem as suas lutas solidárias a partir de seu cotidiano de ―mãe‖, portanto, de uma imagem socialmente construída. As mulheres se aproveitaram da categoria de ―mães‖ de jovens desaparecidos, constituindo uma ―experiência associativa‖ em torno da tragédia compartilhada. Conforme especifica a autora, logo assumiram uma identidade pública que lhes propiciou mudanças de postura advindas de uma ―solidariedade na dor‖. De acordo com Caldeira (1987), defendo que a mobilização social das mulheres antecede a sua condição de mãe, envolvendo a luta pela defesa de interesses próprios, para além dos interesses de cunho maternal. Geralmente, os interesses referidos pelas mulheres dizem respeito às questões familiares e do bairro de origem – no caso das mulheres pobres. De acordo com a autora, as motivações das mulheres para a luta são diversificadas, mesmo lançando mão da identidade de mãe nos processos de negociações de interesses próprios do seu grupo, ou ainda interesses particulares, junto a entidades, instituições públicas, ou até mesmo para barganhar a permissão do cônjuge para a saída do lar. A imagem de mãe é manipulada pelas mulheres em luta quando entendem que, para galgarem respaldo social à mobilização, devem fazer parte deste grupo culturalmente estabelecido como do universo maternal. Assim, configura-se a ambiguidade, já que essas mulheres, em nome do tradicionalismo de gênero, obtém prestígio social e ganham liberdade para legitimarem suas reivindicações fora do espaço doméstico (CALDEIRA, 1987). 34

Estive presente na referida cerimônia, como convidada, junto à equipe pedagógica instituída na ONG Avante.

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Nesse sentido, as mulheres assumem a responsabilidade de tentar uma ―nova ordem social‖ com estratégias que diferem das masculinas. Segundo Freitas (2002), há uma relação dicotômica posta e confirmada nos relatos das ―Mães de Acari‖, apresentada como a habilidade de conversar, aprender e de ―se solidarizar‖, ―como uma prática essencialmente feminina‖, como se os homens não pudessem desenvolver laços fraternos e solidários entre si e, entre eles e as mulheres. Logo, às mulheres caberiam valores como ―afeto, amor e solidariedade‖, de forma essencializada. A análise de Freitas (2002) é justificada pelas diferentes formas de atuação entre os pais e as mães frente à tragédia que envolveu os seus filhos. Os ―pais de Acari‖, diferentemente das ―mães de Acari‖, não se apresentavam em público porque ―não gostavam de aparecer‖. Não se envolviam e o seu sofrimento se manifestava no silêncio, afastados da luta travada pelas mulheres (CALDEIRAS, 1987; FREITAS, 2002). Por outro lado, as mulheres consolidam a sua participação no movimento social pela busca de justiça, de forma ativa, pública e incessante. Assim, marcam a sua vivência de mulher na luta por seus interesses e, consequentemente, galgando o reconhecimento social na família, nas relações de afeto e na vizinhança. Estabeleço um distanciamento da assertiva de Freitas (2002) quando põe as ―mulheres em luta‖ como produtos dos filhos ou mesmo como produtos da experiência da maternidade. Ao contrário, reconheço na luta das mulheres – ou mães –, no espaço da ―solidarização da dor‖ e das condições de desigualdades sociais, a emersão de mulheres enquanto sujeitos que buscam melhoria de suas condições, que ultrapassam a identidade de mães, de trabalhadoras ou até mesmo de pobres. De acordo com Caldeiras (1987), essas mulheres se unem por se encontrarem em condições cotidianas semelhantes e se aproveitam da identidade de mães, (acrescento: trabalhadoras, marginalizadas, pobres) socialmente aceita para as mulheres, para barganharem soluções junto a políticos e demais atores sociais. O governo, com o projeto MP, aproveitou o padrão de cidadania ―feminina‖ para transferir-lhes responsabilidades, propondo a sua emancipação. Com o ―empoderamento‖ direcionado pela formação de redes de solidariedade entre as mulheres, foi criado mais um fardo para o grupo, já que deveriam encaminhar jovens para programas sociais, quando elas demandavam transformações reais em suas condições de vida. Logo, a estratégia do Estado representa o esvaziamento da política social como direito de cidadania (PEREIRA, 2010), na

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medida em que alarga a possibilidade de privatização das responsabilidades públicas, rompendo, assim, com a garantia de direitos. A tendência de distanciamento do Estado tem sido ceder, cada vez mais, espaço para a sociedade exercitar a sua suposta ―solidariedade‖. De acordo com Pereira (2010, p. 35), com isso, caem as obrigações exclusivas e se forma um novo pacto social em regime de ―coresponsabilidade ou parceria e solidariedade‖. O pacto se dá a partir da criação de redes informais e comunitárias para a prestação de assistência social não institucionalizada, aglutinando forças, recursos públicos e privados, reconhecendo expressivamente o trabalho voluntário e doméstico no ideário de ―mulher‖. A falta de reconhecimento do Governo Federal sobre as dificuldades das mulheres para a execução do trabalho proposto – evidenciando exclusivamente a experiência de união das mães no contexto de Acari – corroborou para a fixação de valores e de identidade das mulheres no campo do cuidado – da família para toda a sociedade. Nas atividades propostas pelo projeto federal foram desenvolvidos, paradoxalmente, valores de sociabilidade e de costumes a partir da dimensão materna conferida às mulheres, ao mesmo tempo em que disponibilizaram conteúdos de base feminista, destacando condições de desigualdade nas quais as mulheres estariam inseridas (AVANTE, 2009; GOMES, SORJ, 2011). O foco nas mulheres provocou cisões e conflitos ideológicos e de interesses em torno do que vem a ser uma política de gênero. O conceito de ―Mulheres da Paz‖ partiu de uma ligação, forjada pelo governo, ao ideário de ―Mães da Paz‖ que, no Rio de Janeiro, foi bastante presente por causa da mobilização das ―Mães de Acari‖, aproximadamente duas décadas atrás. Entretanto, a SPM se posicionou de forma contrária ao princípio de essencialização do feminino sobre as mulheres e defendeu a promoção do ―empoderamento‖ das mulheres, considerando o seu processo de autotransformação e autodeterminação (GOMES, SORJ, 2011). A SPM propôs o deslocamento da questão do cuidado exclusivamente voltado para as mulheres. Neste caso, a noção de cuidado seria estendida aos homens, de forma a incluí-los como ―operadores locais‖ do projeto de segurança cidadã proposto pelo PRONASCI. Assim, o projeto receberia o nome de ―Lideranças da Paz‖, envolvendo os dois grupos nas atividades de pacificação (SORJ, 2011, p. 152). Entretanto, a proposta foi negada pelas demais vertentes da equipe técnica do governo, confirmando, com as ―Mulheres da Paz‖ e suas implicações, a

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institucionalização das desigualdades presentes na administração pública brasileira (CALDEIRA, 1987). Ainda que a proposta feminista de inclusão de homens no processo de pacificação nos moldes do programa federal fosse alcançada, seriam mantidas outras desigualdades e a omissão por parte da administração pública. Com o problema da transferência de responsabilidades do Estado, sejam para as mulheres, ou para os homens, ou para os dois atores sociais, permaneceriam as condições de pobreza e dificuldade de acesso aos serviços públicos, inviabilizando processos de transformações das suas condições de pobreza. Portanto, o Estado permaneceria distante – quando deveria ser promotor desses processos de transformação - da inclusão da população marginalizada no acesso aos direitos e serviços públicos de qualidade. Os governos brasileiros aproveitaram a participação autonomizada e voluntarista da mulher na provisão do ―bem-estar‖ de seus membros no decorrer dos processos administrativos. Isto porque o formato das políticas sociais brasileiras sempre foi influenciado pela tradição de autoproteção da sociedade em sua relação com o Estado. Desde o pós-guerra ao esquema ―neoliberal‖, as políticas sociais têm chamado a sociedade e a família para assumirem maior responsabilidade nas questões sociais, lançando mão de um modelo de ―sociedade providência‖ ou ―de bem-estar‖ (PEREIRA, 2010). A noção de ―sociedade providência‖ concebe membros sociais envolvidos em responsabilidades sociais com recursos precários, juntamente ao mercado. Este setor potencializa seus lucros mediante filantropia, configurando a sua parcela da responsabilidade, enquanto a população é onerada pela falta de recursos nos serviços de assistência. A ―mistura assistencial‖ entre a sociedade e o mercado caracteriza o esvaziamento da política social, que só faz sentido quando em acordo com a noção de providência, representada pela oferta de bens e serviços para satisfação de necessidades básicas e proteção social (PEREIRA, 2010, p. 31-32). A identidade de ―promotora da paz‖, no esquema de sociedade providência, apresenta reminiscências de uma constituição do sujeito ―feminino‖ moldado pelo Estado brasileiro em velhos padrões, cujas propostas indicam o aceitável dentro do espaço social para mulheres pobres e negras, em sua maioria. A iniciativa da política do governo brasileiro se distancia da tentativa de reverter o quadro de desigualdades sociais e, até mesmo, da sua proposta de enfrentamento à criminalidade no país, a partir do combate a ―preconceitos de gênero e 71

étnico-raciais‖ (BRASIL, 2010). Com a política de segurança do país, conformou-se o interesse de conter a violência sem distribuição de renda e mitigação das desigualdades sociais, sem projetos efetivos que implicassem em transformação social tanto para as mulheres, como para os jovens, portanto sem destacar princípios democráticos. A política pública de segurança MP foi indicada como de gênero, porém, esteve voltada às mulheres enquanto sujeitos conectivos. As mulheres se colocaram em situações conflitantes, direcionadas pela responsabilidade de mediarem os conflitos nos quais os homens jovens são autores e vítimas na maioria dos casos (ZANOTA, 2010). Além disso, de público-alvo, passaram a assumir uma função de mediação entre os jovens (principal públicoalvo do PRONASCI) e o Estado. Dessa forma, mulheres brasileiras pobres (na Bahia, particularmente, negras) assumiram uma participação no campo da assistência social informal de forma onerosa, sem a garantia de direitos35. Para tanto, foi fincada uma base no estereótipo que as dimensionou no campo da ―solidariedade na dor‖ e da (im)provável ―oposição‖ à violência, sequenciado pela formação de redes para enfrentamento da violência. A mulher que se mobiliza socialmente contrasta com o tradicional porque indica a extrapolação dos espaços domésticos à vida pública. Essa estrapolação no seu cotidiano se constrói com referência ao contexto masculino da política, legitimada pela diferença estabelecida entre o seu movimento político e a política desenhada pelos homens. Segundo os estudos de Caldeira (1987), as mulheres de determinados contextos enfatizam os seus interesses comunitários e igualitários em contraponto aos interesses particularistas da política partidária. O cotidiano das mulheres nos movimentos sociais de bairro demarca transformações nas formas de se fazer política, denotando a sua politização. Ao mesmo tempo em que denota uma constituição identitária como mulher, indica a agregação de valores de solidariedade e igualdade na mobilização política. Esse distanciamento das práticas políticas tradicionais demarca, principalmente, o cotidiano de quem atravessa dificuldades próprias de quem vive em bairros pobres periféricos (CALDEIRA, 1987). Nesse sentido, cabe apresentar o contexto sociopolítico das MPs de São Cristóvão, com o objetivo de trazer a especificidade de suas atuações como ―reeditoras sociais‖ na Bahia.

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Assim como aconteceu ao lograrem, as mulheres, a entrada no campo da política disputado pela elite masculina (HERNES, s/d). E este campo, da assistência social, considerado de menos prestígio no universo político, ao mesmo tempo em que é procurado por elas, também é destinado a elas na estrutura de divisão sexual do trabalho.

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2 Tradução interpretativa de angústias e subversões

2.1 Contexto histórico-político de Salvador

O Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva (PT), ao longo de sua gestão, obteve aceitação recorde da população e foi reeleito em 2006. Através de sua política, a partir de 2007, o presidente fomentou uma articulação nacional do governo federal com os governos dos estados através do PAC. A medida marcou uma forte centralização do poder decisório de formulação e controle de políticas públicas voltadas ao social. A Bahia, embora tenha sido um dos colégios eleitorais responsáveis por sua vitória, além da grande aceitação popular em relação ao presidente, não permitiu logo a mudança no governo estadual, que só contou com um candidato eleito apoiado pelo presidente do PT na eleição seguinte, em 2006, até os dias atuais. Na Bahia, o PT se conectou a quase toda a oposição baiana, criando condições de governabilidade, assim como a prefeitura de Salvador, através de João Henrique Carneiro (PP). O novo campo político baiano manteve as redes de lealdade política e apoio social, que já teriam sido formadas pela antiga administração (DANTAS NETO, [s. d.]). Entre 2007 e 2012, a Bahia estaria vivenciando um período político de convergência político-partidária dos governos federal, estadual e municipal através da eleição dos seus respectivos gestores pelo voto popular. A aliança ao presidente Luís Inácio (PT) foi largamente utilizada nas campanhas estaduais e municipais, por causa do índice de aceitação da população em relação ao governo federal em atividade. Já a prefeitura de Salvador, entre 2005 e 2012, teve como prefeito João Henrique Carneiro, integrado ao Partido Progressista (PP), mas que durante parte de sua administração compunha o PMDB, partido aliado ao PT. Expectativas positivas foram criadas entre a população, especificamente a de Salvador, com a vitória de João Henrique (PP) como prefeito, já que contariam com o (bom) relacionamento entre as instâncias de poder para a formulação e execução de políticas públicas, assim como a garantia da sua participação nesses processos. Nesse período de alternâncias partidárias pelo país, em seus estados e municípios, é que se situa o desenvolvimento da política do PRONASCI. 73

A participação cidadã, na Bahia, reflete a estrutura política que prevaleceu por um largo período sob o comando de famílias tradicionais da elite baiana. Atualmente, ainda prevalece uma cultura política regional que reproduz um estado patrimonialista autoritário e associado a relações sociais mediadas pelo corporativismo e clientelismo. Essa inclinação política mantida na cidade de Salvador, por exemplo, diminuiu a prevalência de processos democráticos, tornando difícil a mitigação das desigualdades sociais e a distribuição de bens públicos entre a população (DANTAS NETO, [s.d.]). A partir do alvará régio de 29 de março de 1959, foi criada a cidade de Salvador, cuja organização atual está submetida à lei estadual nº 687, de 30/12/1953. A capital baiana está entre os 417 municípios, com uma área de 693,27 km² e população de 2.675.656 habitantes (IBGE, 2013). Já foi capital do Brasil, concentrando o eixo econômico e político do país, entretanto, recentemente, encontra-se em uma das regiões que recebe o menor investimento em relação ao eixo Sudeste e Sul. Além disso, Salvador vem passando por uma série de problemas nas gestões administrativas que se sucedem. O período político em que se estabeleceu o PRONASCI, em Salvador, é de transição partidária, com a esperança da população de investimento estatal em políticas públicas que vislumbrassem mudanças no quadro social. Nesse contexto, o prefeito eleito, em 2004, João Henrique, manteve como slogan de sua gestão a frase ―Prefeitura de Participação Popular‖, indicando a inserção de cidadão (as) nas resoluções públicas. Quando reeleito, em 2008, mudou o slogan para ―Prefeitura de um Novo Tempo‖, deixando transparecer para a população a ideia de mudanças das antigas estruturas políticas, através de processo de ―modernização‖ da capital baiana. A partir da sua gestão, foi mantido um discurso sobre a inclusão da participação da sociedade civil, bem como o seu controle sobre os processos de formulação das políticas públicas. O discurso sobre a inserção popular, contudo, fez parte da política de esquerda no país, a qual teve em sua base o antigo movimento operário. Entretanto, no período recente da administração municipal de Salvador, permanece uma baixíssima participação popular nas resoluções públicas, em que a população não conquistou o poder de reivindicação. Ao ponto de vermos o seu ―despreparo‖ para a deliberação política e possível influência nas decisões políticas do município, como estabelece Milani (2006, p. 193). Sobre as políticas atuais, bem como a relação estabelecida entre a população e os processos de suas formulações, três casos, dentre outros, são ilustrativos do contexto baiano: 74

as experiências na área da Saúde, na elaboração do atual Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) e no Planejamento Estratégico de Gestão (PEG). Ambos configuram um caminho oposto ao que seria um ideal democrático do princípio participativo (MILANI, 2006; AVRITZER, 2007; 2008). Foi possível perceber como a iniciativa da população para as resoluções municipais (e estaduais) é incipiente, ou negligenciada por gestores públicos. Primeiro, as instituições participativas ligadas à saúde, por exemplo, compreenderam a política de nomeação de grupos econômicos locais e grupos religiosos para representar a sociedade civil. De um lado, temos interesses particulares pelo lucro, representando pequenos grupos econômicos; de outro lado, uma moralidade religiosa – ainda também pelo lucro – sobressaindo e atropelando os interesses públicos sobre problemas sociais. Esta forma de atuação ―anti-participativa‖ indicou a não democratização das políticas de saúde, como também pode ser estendida às demais áreas da administração pública (AVRITZER, 2007). Já o Planejamento Estratégico de Gestão (PEG), entre 2005-2009, representou outra iniciativa da prefeitura visando à integração do princípio participativo na formulação de políticas. Através de discussões em dois fóruns populares, propuseram a inserção da população local na tomada de decisões públicas, a partir das administrações regionais (ARs). As ARs configuram um espaço público para a participação de cidadãos (ãs), em princípio descentralizadas, que foram reativadas e redinamizadas na gestão do prefeito João Henrique. Ainda assim, considerando a sua importância, as ARs foram marcadas pela falta de institucionalidade e ―pela manutenção de um perfil emergencial e assistencial da oferta de seus serviços‖ tais como a poda de árvores, a iluminação, a contenção de encostas durante o período de chuvas, a limpeza e coleta de lixo, a pintura de meio-fio e a pavimentação tipo ―tapa-buracos‖ (MILANI, 2006, p. 197). Com relação ao PDDU de Salvador, resta destacar que foi uma das poucas grandes cidades brasileiras que teve o seu Plano Diretor Municipal anulado judicialmente, ainda sob a gestão municipal de Antônio Imbasssahy (PFL)

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, por uma ação movida pelo ministério

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Segundo a determinação do Estatuto da Cidade e a exigência da Federação de Associações de Bairros de Salvador (FABS), de alguns movimentos ambientalistas e da Ordem dos Advogados do Brasil (Bahia), o plano deve envolver diretamente o debate com a participação direta da população. Contudo, uma consultoria privada elaborou a proposta do plano sem o estabelecimento de comunicação com as associações da sociedade civil ligadas à questão da reforma urbana – que desconheciam, inclusive, a existência da consultoria contratada. Só o Diário Oficial do município divulgou as (duas) audiências públicas para o plano, contribuindo com a baixíssima presença da população em 2003. A prefeitura de Salvador, sob a administração de Antônio Imbassahy, enviou a proposta do PDDU à Câmara Municipal antes de qualquer debate sobre o mesmo junto à população. Os principais beneficiários do projeto para o PDDU foram as empreiteiras e o grupo de interesses do mercado imobiliário, representado pela Associação de Empresas do Mercado Imobiliário (ADEMI). As entidades da

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público da cidade pedindo a declaração de nulidade do plano e o julgamento do prefeito Imbassahy por improbidade administrativa. Contudo, o plano acabou sendo aprovado, com pequenas ressalvas que não garantiram a participação desejada da população (AVRITZER, 2008). Somente na administração seguinte, do prefeito João Henrique, foi organizada uma audiência pública que reuniu 800 presentes entre ativistas e representantes de ONG‘s. Em 2005, no primeiro ano de sua gestão, o prefeito João Henrique decidiu pela revisão do Plano, arbitrariamente aprovado na gestão passada, em favor da inserção da sociedade civil na sua elaboração. Contudo, o lobby do mercado imobiliário e do setor hoteleiro manteve o seu domínio sobre os gestores municipais, direcionando o prefeito para um plano que considerou ―mais arrojado‖ e que beneficiaria estes grupos em detrimento dos interesses democráticos (da maioria da população). Nesse momento, é estabelecida uma contradição entre a política municipal e o slogan definido pela frase ―Prefeitura de Participação Popular‖. Logo, a gestão reeleita deu seguimento aos projetos políticos submetidos às grandes empreiteiras, com consequentes benefícios particulares junto a elas, admitindo um novo slogan, ―Prefeitura de um Novo Tempo‖, que criaria ares de processos de modernização da cidade de Salvador.

2.1.1 A participação cidadã: de “popular” para um “novo tempo”

As instituições participativas variam segundo o contexto de organização da sociedade civil e de unificação do apoio dos atores políticos sobre os processos participativos. Ainda, o sucesso dos processos participativos depende da forma de articulação entre desenho institucional, contexto de organização da sociedade civil e inclinação política de implementar desenhos participativos. Através de uma comparação entre as capitais do país, Avritzer (2008) apresenta uma Salvador cujo associativismo comunitário é inexpressivo porque possui fraca presença da sociedade civil nas políticas públicas. Apesar do número bastante alto de associações civis existentes na capital baiana – em seu estudo somavam 2.500 –, o número de associações civis ligadas às políticas públicas é que é baixo (AVRITZER, 2007). Na análise sociedade civil, então, formularam representação à Promotoria de Meio Ambiente, solicitando ao Ministério Público Estadual que providenciasse o debate. (MILANI, 2006; AVRITZER, 2007).

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do autor, a razão para a pouca expressividade da população organizada na formulação das políticas públicas se encontra nos reflexos da política ―carlista‖ conservadora e ―antiparticipativa‖ adotada, pelo menos, até 2004 (idem, 2008, p. 58). Salvador, até o ano referido, foi a capital brasileira que menos aderiu às novas formas de participação, permitindo que governos conservadores implantassem políticas urbanas sem negociação com a sociedade civil. No sentido de enfrentar essa estrutura política, Avritzer (2007, p. 59) propõe o desenho institucional da ―ratificação pública‖, que assume a capacidade de anulação de políticas ―particularistas‖ e, assim, antiparticipativas. Para o autor, Salvador se destaca por contar com a operação do instrumento de sanção – no caso da ação judicial contra o PDDU elaborado na gestão do prefeito Antônio Imbassahy – diante da sociedade civil ―débil‖ e do sistema político anti-participativo (idem, 2007, p. 61). Embora a administração do Município de Salvador, a partir de 2005, tenha sido submetida a uma coligação de partidos de esquerda sob a liderança do PDT, com referência à participação popular, não foi identificado avanço nas práticas participativas da gestão pública. Ao contrário, a participação popular foi simbólica e restrita ao período de eleições – sem falar nas associações de bairro que pouco têm interferido nas resoluções políticas indicativas de transformações sobre a realidade local. Mesmo com o clima de mudança política, com a troca de partidos políticos na administração nas esferas municipal, estadual e federal, não foi possível identificar transformações efetivas no quadro sociopolítico local. Como sugere Milani (2006),

O crescente interesse pela participação dos cidadãos na gestão pública local baiana não parece compensar a apatia política dos cidadãos, nem o considerável descaso popular por assuntos públicos. Tampouco há uma demanda claramente formulada por atores expressivos da sociedade civil em prol da renovação das relações governo-sociedade e de uma redefinição do papel da representação política. Experiências de participação genuínas e longevas são raras e não têm o impacto desejado nos níveis elevados de corrupção na administração pública municipal, denunciada semanalmente na imprensa local (MILANI, 2006, p. 201).

No período em que a coligação de esquerda assumiu o governo da Bahia, houve uma campanha pela participação popular na tentativa de reverter antigas estruturas políticas

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(DANTAS NETO, [s. d.]).

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Contudo, não passou do plano do discurso e de iniciativas que

pouco modificaram a anuência da população nos momentos decisórios do município. Ainda vale lembrar o problema da corrupção dos políticos que desviam parcela significativa do dinheiro público, concedem licitações duvidosas e deixam de atender às demandas sociais históricas (MILANI, 2006; DANTAS NETO, [s. d.]). Ainda segundo Milani (2006), este contexto atravessado pela Bahia (e Salvador) configura uma forma de ―autoritarismo social‖, que funciona como barreira ao processo efetivo de democratização das relações entre Estado e sociedade na região. Além disso, o ―autoritarismo social‖ fomenta formas de sociabilidade excludentes, reproduzindo desigualdades e refletindo na promoção de vários problemas, tal como o da violência urbana. Na análise do autor, entre 1997 e 2001, por exemplo, o perfil das vítimas de mortes violentas em Salvador era composto por adolescentes e jovens entre 15 e 39 anos (70% dos casos), pardos e negros (90% dos casos), analfabetos ou tendo concluído somente o primeiro grau (76% dos casos) (p. 201). No mapa atual da violência, constaram 1.799 mortes por arma de fogo na capital, em 2008, perdendo somente para o Rio de Janeiro (WAISELFISZ, 2013). Ainda outro fator impeditivo de uma gestão pública participativa na Bahia diz respeito ao ―mito da comunidade‖, já difundido há tempos. O ―mito da comunidade‖ resume a comunidade e a relação entre as pessoas a um padrão homogêneo, estático e harmônico, desconsiderando todas as diferenças existentes – de idade, classe, gênero, raça, religião, ocupação, orientação sexual, local de moradia, etc. A partir desse modelo de ―comunidade‖, a administração pública lança projetos que se valem do mito em áreas como a do turismo e da proteção social38. Nesta última, alia-se às ONGs e congrega a noção de ―empoderamento comunitário‖ na formulação de seus projetos sociais, como salienta Milani (2006, p. 203). Adotado o conceito de ―empoderamento comunitário‖, gestores propõem técnicas de participação em que as pessoas trabalham ao lado de técnicos (as) que funcionam como mediadores (as) locais. Entretanto, não são desenvolvidas atividades promotoras de mudanças nas condições limitativas de diversos grupos sociais, como foi possível observar através dos projetos advindos do PRONASCI. A ideia difundida nessas políticas é de que através de 37

Ver também Dantas Neto (2003; 2005; 2006). A imagem do (a) baiano (a) ―hospitaleiro‖ e ―alegre‖, além da imagem da baiana – particularmente a negra – ―exótica‖, ―quente‖ e ―sexual‖, é expressamente alimentada pelo governo através das campanhas de publicidade para entrada de turistas na Bahia (e Brasil). Através do mito forjado, favorecem, por exemplo, a sedimentação do turismo sexual e a exploração sexual de meninas e mulheres negras na região por turistas brasileiros e estrangeiros (CARNEIRO, 2002; 2011). 38

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processos educativos não formais, com oficinas de capacitação, galgaríamos à transformação das nossas consciências e à criação de vínculos duradouros de sociabilidade (MILANI, 2006). Na assertiva de Milani (2006), as expectativas dos gestores locais com esses projetos seriam ingênuas frente às motivações dos indivíduos diante das oficinas desse tipo de capacitação. Para além da ingenuidade, creio que as propostas endereçadas à população, em especial à pobre, negra, jovem e de mulheres obedecem aos projetos políticos de manutenção do status quo. Prevalece a negligência de gestores a respeito da necessidade de políticas construídas junto à população, que proponham soluções reais, principalmente através de suas queixas, precisamente, provenientes de sua organização política. Para Milani (2006, p. 205), cinco ordens de fatores explicam, resumidamente, a ―dimensão estrutural subjacente‖ às dificuldades de uma gestão pública com participação popular na Bahia. O autor considera: o dualismo indicativo da permanência de velhas estruturas sociais e institucionais que ―permite a convivência entre o arcaico e o moderno, [...] o coronel e a modernização gerencialista, deixando em suspenso a relação política de cidadania com o Estado‖; o ambiente político baiano ambivalente que agrega truculência e carisma, controle da sociedade civil e investimento sobre as bases eleitorais dos grupos conservadores rivais – neste caso, trata-se de um coronelismo sofisticado (no governo ―carlista‖) que subordina oligarquias tradicionais decadentes, alicia quadros políticos rivais, coopta empresários, parte do mundo artístico e líderes comunitários (as); a conservação do passado pelo poder ―individual, familiar e/ou dinástico‖, cuja rede de sociabilidade se baseia na ideia de impunidade – este poder mantém desigualdades ―e se fundamenta no exercício do mandato político enquanto sinecura em benefício próprio‖; a ausência de competição entre partidos políticos e patrimonialismo estabelecido nas relações entre o setor público e o setor privado, especificamente, na cidade de Salvador; por fim, o mito da baianidade prevalecente num discurso estereotípico e ideologizado, através do qual a Bahia é forjada em torno de uma ideia de tradição e cultura, dos temas da mestiçagem, da democracia racial e do culto ao popular. Essa estratégia política da elite produz no espaço público um consenso pernicioso que, nas palavras de Milani (2006, p. 208), ―[...] visa à manutenção do padrão de dominação e à reprodução de uma multiplicidade de bens simbólicos negociados [...]‖, que cria uma ―realidade desigual, tensa, violenta e contraditória‖, principalmente ―quanto à cor da pele das pessoas‖.

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No próximo tópico, será exposta a forma como a gestão estadual executou o projeto federal Mulheres da Paz (MP), cuja argumentação evidenciará as particularidades locais. Sob este aspecto, analiso a forma como o Estado, através dos políticos, coopta lideranças e como, a partir dessa relação entre políticos e população, controlam a comunidade. Com isso, pretendo favorecer um debate sobre a problemática da participação cidadã nas resoluções políticas na área da segurança pública.

2.2 O projeto Mulheres da Paz na Bahia: a SEDES

A execução do projeto MP na Bahia foi possível mediante convênio entre Ministério da Justiça e Governo do Estado, sob a responsabilidade da Secretaria de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (SEDES). Dois projetos relacionados foram conveniados em julho e dezembro de 2008. O primeiro, Convênio nº 181/2008, teve por objetivo selecionar e capacitar 700 mulheres na cidade de Salvador, que receberiam uma bolsa de R$ 190,00 mensais, paga pela Caixa Econômica Federal, por 12 meses, totalizando o valor do projeto em R$ 1.084.222,80. Também incluiu a contratação da equipe de trabalho e aquisição de equipamentos para a Comissão Local. O segundo projeto, Convênio 569/2008, teve por objetivo selecionar e capacitar 300 mulheres nas cidades de Simões Filho, Camaçari e Lauro de Freitas, apresentando um recurso de R$ 300.811,00. Para tanto, a SEDES ficou reconhecida como instituição de gestão do projeto na Bahia. As ações da SEDES estão distribuídas em 6 grandes eixos compreendidos como Proteção Social, Segurança Alimentar, Formação e Cidadania, Inclusão Produtiva, Transferência de Renda e Defesa Civil. Na área da Proteção Social, a SEDES congrega programas e centros de referências que prestam serviços à população baiana. Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS). Os CRAS são unidades públicas prestadoras de serviços e programas socioassistenciais de proteção social básica, distribuídos principalmente entre os bairros pobres, no caso de Salvador. O CREAS, especificamente, lida com situações de violação de direitos como o abuso, a exploração sexual e outras formas de violência contra crianças e adolescentes. Além desses centros, a SEDES também administra os programas 80

Bahia Acolhe, que atende pessoas em situação de rua, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, programa federal que compõe o Sistema Único de Assistência Social pela erradicação do trabalho infantil no país, a Casa de Acolhimento à Mulher, para mulheres em situação de violência doméstica, entre outros programas. Já na área de Formação e Cidadania, contempla um único programa, que está voltado para o desenvolvimento dos jovens na faixa etária de 16 a 24 anos (BAHIA, 2013). O atual Governador do Estado da Bahia, Jaques Wagner (PT), por meio do Ministério da Justiça, na pessoa de Tarso Fernando Herz Genro, assinou o convênio para a promoção da institucionalização do PRONASCI, visando à adesão do Estado ao programa federal, a partir do disposto na Medida Provisória nº 384/07, convertida na Lei 11.530, de 2007, na Lei nº 8.666/93. Esta última estabelece normas gerais sobre licitações e contratos administrativos no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (Art. 1o) – com base no Decreto nº 93.872/86 – que faz menção à ―unificação dos recursos de caixa do Tesouro Nacional‖ e na Portaria/GM/MJ nº 1.411/07. Nesses termos, o PRONASCI foi apresentado como ―sistema federativo e democrático de gestão das instituições de Segurança Pública e das políticas de redução da vulnerabilidade criminal no país‖, em que a SEDES faria parte do grupo de secretarias executoras. A partir do Convênio de Cooperação Federativa, foi reconhecida a necessidade de cooperação entre governos e instituições, de efetivação de políticas públicas com base nos ―direitos fundamentais‖ e na promoção da ―cidadania‖. Dessa forma, a Bahia foi o único estado que não repassou responsabilidades para o município, como nos demais estados onde foi executado o programa federal, repartindo entre diversas secretarias a responsabilidade sobre as ações. As suas ações foram distribuídas em focos estratégicos, separados segundo atribuições gerais no que se refere aos sujeitos-foco dessas ações. Então, as atribuições gerais nortearam a) ações formativas em Direitos Humanos; b) sobre os profissionais e operadores de Segurança Pública, com 4 ações específicas – ampliação dos estudos em Segurança Pública, tanto na Matriz Curricular Nacional dos profissionais da área, quanto nos programas da Rede de Altos Estudos em Segurança Pública para Operadores de Segurança Pública e Justiça Criminal (de graduação e pós-graduação e extensão), fomento à educação superior de qualidade, ingresso no programa ―Bolsa Formação‖ e estruturação de programa de habitação; c) sobre os jovens e familiares através da priorização na execução do Programa Integração do Jovem e da Família, assim como assegurar o percurso social e formativo deste público dentro das ações do PRONASCI e inclusão no Sistema Nacional de Defesa do Consumidor-SNDC – 81

através dos Programas ―Canal Comunidade‖, ―Monitoramento Cidadão‖ e ―Geração Consciente‖; d) sobre a constituição de Núcleo de Justiça Comunitária como meio alternativo de resolução de conflitos, principalmente em ―regiões pobres‖; e) sobre a construção de estabelecimentos penais especiais para jovens entre 18 e 24 anos, para mulheres, com módulos de saúde e educação e assistência jurídica aos presos e familiares, de modo geral, através da constituição de núcleos especializados de Defensoria Pública. Além das ações específicas indicadas para o público jovem e para as mulheres apenadas, aparece outro ponto com foco nas mulheres. Trata-se da consolidação de ações garantidoras dos direitos àquelas que se encontrassem em situação de violência doméstica e familiar, em prol da efetivação da Lei 11.340 de 2006, ―Lei Maria da Penha‖, com delegacias especializadas e núcleos especiais de Defensoria Pública. Conforme a Secretaria de Comunicação Social do Estado da Bahia (BAHIA, 2007), as grandes ações do PRONASCI foram repartidas entre as seguintes secretarias: Secretaria de Desenvolvimento Urbano, na coordenação da recomposição do tecido social; Secretaria de Segurança Pública, na coordenação de políticas de segurança; Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, no eixo da cidadania e dos direitos humanos; e SEDES, no amparo aos jovens em conflitos com a lei. Entretanto, as ações do Projeto ―Protejo‖, destinadas aos jovens, ficou sob a gestão do Instituto Anísio Teixeira, enquanto que, para a SEDES, foi atribuída a gestão do Projeto MP. Houve dispensa de licitação para a contratação da entidade de apoio ao projeto devido ao pequeno número de entidades capazes de executá-lo. Então, mediante pesquisa de mercado, a SEDES analisou propostas de três entidades, selecionando a que mais se adequava à filosofia do PRONASCI, a Avante – Educação e Mobilização Social.

2.2.1 A avaliação

Os critérios seletivos apresentados pelo relatório desenvolvido pela Comissão Local do Projeto MP, na SEDES, apresentaram pequenas distinções em relação ao que fora divulgado no edital de seleção das mulheres a serem beneficiadas pela política, como também em relação ao que fora destacado na avaliação da ONG Avante. O processo seletivo das 82

mulheres teve início em março de 2009 e contou com 2.000 inscrições. No relatório da Comissão Local, as mulheres beneficiadas pela política deveriam pertencer às redes sociais ou de parentesco dos jovens, público-alvo do PRONASCI, que tivessem vivenciado situações de espancamento, morte, violência, ou diferentes situações de ―risco social‖; associado ao seu conhecimento prévio acerca do local de trabalho – ―condições físicas, geográficas, códigos sociais e culturais‖ que garantissem ―a segurança dos jovens‖ –, assim, demarcariam os territórios e reconheceriam as lideranças locais. A importância do diagnóstico prévio e do trabalho desenvolvido pelas Mulheres da Paz (MPs) nos territórios escolhidos pelo Ministério da Justiça se revela no que estas expõem sobre a existência e inexistência dos serviços e políticas nesses locais de execução do projeto. Com isso, são geradas, para o Estado, demandas a respeito da fragilidade dos serviços públicos nos contextos marginalizados. O relatório produzido pela Comissão Local (SEDES) pretendeu apresentar os aspectos formais da implementação da política, foram expostos os desafios de sua execução, indicando o seu sucesso, a médio e a longo prazo, somente com a concretização da articulação dos sujeitos institucionais responsáveis, com a sedimentação do pacto federativo e a formalização da rede de proteção social junto aos envolvidos na política. Com relação à articulação institucional entre Município, Estado e União, a Comissão afirmou que a instância municipal colaborou pouco, ficando a cargo da SEDES as logísticas do projeto. Como é sabido, o curso de formação ―Mulheres da Paz‖ compreendeu duas etapas. Primeiro, a capacitação, depois as atividades de encaminhamento estabelecidas pelas MPs, porém, assistidas pela Equipe Multidisciplinar (EM) do projeto formada pela SEDES. Após o primeiro mês de capacitação, as MPs contaram com reuniões semanais com a EM, contabilizando um segundo momento de capacitação com carga horária em média de 40 horas por turma, como atividade complementar, que se estendeu até o final da formação, agregando mais 50 horas. Ao todo, entre aulas teóricas e práticas, foram contabilizadas 240 horas. No início das atividades transversais, a EM constatou dificuldades entre as mulheres com relação aos conteúdos e às práticas enquanto MPs. Neste caso, ficou a cargo da EM aprofundar os pontos de dificuldade, como uma das atividades de monitoramento das MPs. Como resultado do processo formativo, sem contar o crescimento pessoal das participantes – resultados indicados no relatório da Comissão Local – a SEDES destacou a construção da cartilha Rede Socioassistencial, reproduzida para ser utilizada como uma base para as visitas 83

domiciliares das MPs. Foram distribuídas 1500 cartilhas para a contribuição do trabalho das MPs, já que nelas constavam informações sobre os centros e serviços da rede social dos sistemas de saúde, justiça e segurança pública, de atenção à mulher, à família, à criança e ao adolescente, secretarias, centros educacionais, dentre outros. A EM foi composta por 10 profissionais, sendo 8 delas envolvidas diretamente no acompanhamento das turmas. Durante as aulas, as integrantes atuaram conjuntamente com as professoras, de forma a contribuir com o processo formativo. Dentre as ações, compreenderam a seleção das mulheres, a articulação com lideranças e instituições públicas, acompanhamento de grupos, elaboração de relatórios e alimentação de dados no SIMPaz para o pagamento das bolsas. Neste caso, as participantes deveriam ter uma frequência mínima de 75% nas aulas de capacitação, participarem das reuniões semanais e acompanharem 10 famílias do território PRONASCI. Além disso, a EM deveria recolher, avaliar e discutir as fichas de acompanhamento das visitas domiciliares realizadas pelas MPs. Cada MP acompanhou 10 famílias mensalmente, por até 6 meses, levantando o perfil socioeconômico, a estrutura familiar, a inserção em projetos sociais além de outras demandas. A atividade teve como objetivo o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos na capacitação, numa perspectiva voluntária, para a formação de uma rede de prevenção à violência, representando o ápice do projeto. No início das atividades, surgiram as primeiras queixas e reclamações das mulheres, primeiro, com as famílias visitadas que esperavam retorno como cesta básica ou dinheiro, segundo, por conta das ameaças recebidas nas ruas. Neste caso, as MPs foram identificadas como informantes da polícia, ou ―X9‖. Estes problemas foram atribuídos ao desconhecimento da população sobre as ações do projeto, então, a SEDES passou a divulga-lo em site oficial e no da Assessoria Geral de Comunicação. O desafio encontrado nas atividades desenvolvidas pelas MPs – além das várias formas de violência, tráfico e uso de drogas, desemprego, problemas com moradias, abuso sexual contra crianças e adolescentes, etc. – era o envolvimento de algumas delas com traficantes. A partir do levantamento realizado pelas MPs, veio o sentimento de frustração entre elas, provocado pela falta de rede atuante em todos os municípios. Mesmo contando com parcerias, o fortalecimento da rede caracterizou outro desafio para a realização das atividades do projeto. Em Salvador, especificamente, a dificuldade se deu pela inexistência de um Gabinete de Gestão Integrada Municipal (GGI-M) e a falta de envolvimento da Prefeitura nas ações do PRONASCI. 84

As MPs também desenvolveram atividades extras, tais como: participação no 12º Congresso das Nações Unidas (ONU); concurso de redação; mutirão para cadastramento no CAD Único para o programa Bolsa-Família; promoção da campanha ―Doe o que lhe sobra‖, para ajudar vítimas da chuva no bairro de São Cristóvão; e participação na rádio comunitária de Simões Filho. Segundo dados do SIMPaz, 659 mulheres foram matriculadas, 183 delas em São Cristóvão. Logo, a SEDES avaliou o projeto como satisfatório no que concerne à melhoria da autoestima entre as envolvidas no processo, com diminuição da violência nesses locais. Com a bolsa, as mulheres puderam realizar tratamentos dentários, comprar móveis, enxovais de casamento, de bebê ou fazerem reformas em suas casas. Com isso, defendeu-se a ideia de que mudanças fossem estabelecidas nas vidas dessas mulheres, por possibilitarem, por um ano, a saída da linha de extrema pobreza; por promoverem mudanças de posturas dessas mulheres frente à violência, especificamente, doméstica e familiar, com o rompimento das relações violentas nas quais se encontravam. Para além das MPs, os benefícios teriam atingido, indiretamente, cerca de 7000 famílias em Salvador e Região Metropolitana (RMS) e, por isso, a equipe propôs a continuidade do Projeto MP, para garantir o ingresso de novas mulheres no processo formativo. O que não foi, entretanto, viabilizado pelo Estado39.

2.2.2 A Equipe Multidisciplinar (EM) e o porquê de São Cristóvão

A EM foi composta por profissionais de diversas áreas – psicologia, direito, assistência social, sociologia, educação. Durante a pesquisa, estive em contato com duas coordenadoras da Equipe Multidisciplinar (EM), contratadas pela SEDES para a execução do projeto. Com uma delas, realizei entrevistas de posse de roteiros previamente estabelecidos, já com a outra, obtive informações através de conversas informais. Uma das coordenadoras foi selecionada de forma peculiar, era conhecida por funcionários da secretaria por conta do trabalho social que desempenhava no bairro em que residia, São Cristóvão – considerado muito violento –, também por manter atuação política em partido aliado ao governo. Ela 39

A análise desenvolvida neste tópico partiu dos resultados que constavam no relatório elaborado pela Comissão Local, ao qual obtive acesso. Assim, consta neste espaço a avaliação da Comissão sobre o Projeto MP.

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recebeu o convite por telefone para participar de uma entrevista, na qual foi destacada a sua atividade de liderança no bairro que agregava repercussão social. Essa mulher é microempresária, tem 49 anos de idade, aqui, chamada de Fátima, solteira, com 3 dependentes, negra, 3º grau completo e ―filha de São Cristóvão (SC), nascida e criada‖, onde desenvolve liderança comunitária. Começou a mobilização política no bairro há 20 anos, a partir de movimentos estudantis, tendo como referência os trabalhos sociais desenvolvidos por sua mãe, que era educadora e evangélica, numa igreja do bairro quando viva. Sua mãe ajudava as pessoas a regularizar situações conjugais, adiantando a tramitação para a realização do casamento civil de quem a procurava e promovia campanhas sociais nas festas natalinas e Dias das Mães. ―E isso aí, a gente diz que já vem no sangue!‖, diz Fátima. A sua afirmação é logo explicada pela apresentação do grupo familiar de origem, do qual veio sua inspiração para o trabalho comunitário. Numa família de 11 filhos, é a única com tal perfil na família, em suas palavras, que ―abraça a causa social, que ajuda, que não me recuso a tirar do meu para investir em determinada pessoa por acreditar que aquela contribuição minha, a vida daquela pessoa vai mudar.‖. Em torno dos seus 18 anos, começou a desenvolver esses trabalhos, obtendo em troca o sentimento de renovação, a cada momento que concretiza uma determinada ação para os projetos dos quais participa. Segundo Fátima, a sua realização pessoal se manifesta quando, ―através desse projeto você começa a visualizar resultados na vida daquelas pessoas, resultados positivos. [...] isso me renova, renova minhas forças. E eu encontrar uma pessoa e dizer ‗você fez minha vida mudar, transformou a minha vida, a minha vida mudou a partir do momento que eu te conheci‘, pra mim é muito gratificante.‖ Atualmente, Fátima trabalha em projetos com mulheres e com jovens na questão do resgate e da prevenção da violência. Sobre o bairro de SC, Fátima descreveu várias situações em que a violência se faz presente. Contudo, defende a ideia de que o bairro passou por um processo de ―marginalização‖, portanto, foi negligenciado pelas instâncias públicas. Ao afirmar que gosta do bairro de SC, critica moradores (as) que ascendem socialmente no local, através do comércio, e, posteriormente, deixam-no por medo da violência. Para ela, trata-se de atitude covarde já que esses (as) pequenos (as) empresários (as) recebem o dinheiro da vizinhança e não retribuem de nenhuma forma. No seu argumento, deixam de planejar ações que possam reduzir os danos no local, causados pelo processo de marginalização. Ela se orgulha do seu trabalho e da sua persistência em viver em SC, atestando o sucesso na educação de seus filhos 86

e filhas, que se encontram independentes, inclusive com um deles morando fora do país. Assim, ela afirma:

Mas eu não tenho intenção de sair de SC. Eu quero dar a minha contribuição, porque SC já tem uma história inicial, uma história de sofrimento, uma história de falta de oportunidades, de violência contra os jovens. A gente perde um jovem, praticamente todo dia em SC. Violência contra a mulher, crescente e todos os dias... Jovens, perde os jovens para o crime todos os dias e as mulheres que sofrem violência doméstica também todos os dias. Então, eu acredito que essa história de sangue, de jovens cumprindo medidas sócio-educativas, vidas ceifadas enquanto ainda crianças praticamente. Jovens que... Eu me sentiria agindo de forma covarde abandonar algo. Hoje, eu tenho a escola em SC, então, tudo o que eu tenho é fruto dessa escola. E quem foi que acreditou no meu trabalho? Os moradores de SC. Então, que muitos façam, mas eu não vou fazer. Então, eu quero, enquanto educadora, enquanto liderança sou referência em SC de ser liderança comunitária. Então, eu quero sim, as pessoas e o bairro... ‗Fátima, eu não quero desistir de SC‘. Fazer história em SC. Eu quero que, lá na frente, quando eu faltar, como hoje que me abraçam, que... Valorizam essas iniciativas que eu venho oportunizando. Uma minoria, né. Que é aquela metáfora do beija-flor, uma minoria, mas que eu me sinto gratificada em estar fazendo a minha parte, né. Às vezes, eu me sinto impotente porque não acho apoio, nem da própria comunidade, nem dos governantes. E eu me sinto impotente, mas nada que me iniba e tire a minha força e a minha vontade de continuar lutando para o meu bairro. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

Assim, o bairro de ―São Cristóvão foi escolhido justamente por causa de Fátima!‖, relata a coordenadora. Portanto, diferente dos demais, Beiru / Tancredo Neves, no caso de Salvador, e dos outros locais de execução da política na RMS. Esses outros locais foram escolhidos porque configuravam uma continuidade para o programa Territórios de Paz40 que teria contemplado esses espaços com as suas ações. A coordenadora continua:

Território de Paz foi lá, no Cabula, em Narandiba... Aí, o governo escolheu. Porque o Beiru, como São Cristóvão, chegou um momento que estava em primeiro lugar em violência e criminalidade. Então, o Território de Paz, dentro do diagnóstico, do estudo que ele já havia fazendo desde 2008, que foi escolhido para ser o Território de Paz. Mas porque o Território de Paz? O Território de Paz [...] tinha outras ações, que ficou um elefante branco, que também ficou vazio. Tá vazio lá. 40

O Território de Paz é parte conceitual do PRONASCI, constituído de um bloco de ações que objetivam pacificar territórios do ponto de vista da segurança pública e das condições de convivência social nos espaços conflagrados, na Bahia, lançado em Salvador e Camaçari. O lançamento do Território de Paz em Salvador foi realizado no dia 29 de julho de 2009, com a presença de 300 mulheres, de jovens do Protejo, Defensoria Pública, PROCON, secretários do estado, prefeito de Salvador, governador do estado e Ministro da Justiça.

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Fátima se refere ao programa que deveria ser realizado no bairro do Beiru, todavia somente obteve uma obra de construção da sede, que não chegou a ser utilizada para a execução do programa Território de Paz. Foi criado um espaço físico de referência no bairro Beiru, que segundo seu relato, permanece abandonado, sem utilidade social. Assim, também ocorreu com as ações do Protejo, que também ―desandaram‖ na Bahia, no início, ocasionando o insucesso do projeto no estado. O fato de Fátima fazer parte da EM por causa do seu trabalho social conferiu uma especificidade para São Cristóvão. Foi a única moradora de um território-foco do projeto MP que fez parte da equipe da SEDES. Enquanto moradora do bairro de SC, conhecia os problemas que o afligiam. Esta peculiaridade foi sentida no modo como Fátima se colocou diante das colegas e de toda a equipe do projeto, bem como na maneira de se posicionar diante da sua vizinhança. A sua experiência de mobilização social conferiu-lhe uma posição de destaque, visto que frequentemente levantava propostas de trabalho para a intervenção da equipe nos territórios. Ao ser convidada para compor a equipe, Fátima tratou de realizar diagnóstico do local, ao contrário das demais coordenações na EM. As suas colegas tiveram pouca iniciativa como esta, por causa do desconhecimento sobre os territórios-focos do projeto, mesmo nos casos em que as profissionais possuíam algum tipo de experiência na área. Em seu relato, a coordenadora afirmou:

Quando eu fui contratada pelo projeto foi em 29 de julho de 2009. Então, eu já estava desde abril, maio, já contribuindo com o projeto, como? Fazendo o diagnóstico. Você sabe que São Cristóvão é fatiado. Eu comecei a ler o que era o Projeto Mulheres da Paz, qual era a proposta do projeto, que o MP é o PRONASCI, quando eu vi que era para trabalhar com mulheres, buscar mulheres, mães de meninos que estavam cumprindo medidas sócio-educativas, que tinham filhos cumprindo... Detentos, que tinha meninos... Quando ele me falou, me convidou dizendo que o projeto era a minha cara e aí que eu fui buscar instrumentalizar, estudar pra saber o que é de fato o projeto, aí, eu vi que tinha que ir a campo. Que eu tinha que começar a identificar, a andar nas comunidades vulneráveis, mesmo, para eu buscar, para eu identificar aquelas mulheres que seria interessante para elas. Então, eu reuni, eu fui ali... No Yolanda Pires. Eu comecei... Qual é o ponto de referência? É o CRAS. Eu fui à coordenadora do CRAS para falar sobre o programa e que provavelmente eu seria uma das coordenadoras em São Cristóvão e que ia precisar da parceria. Aí: ‗ah, Fátima! Excelente! A gente queria uma ação como essa... Tem mulheres sofridas aqui...‘ Daí, como o MP oportunizou trabalhar aqui

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em rede, nós tínhamos de fato, que buscar as instituições públicas para estar fortalecendo as ações macro que era o MP. O diagnóstico foi iniciativa minha, sim. Foi uma busca minha! Eu sabia que ia ter outras pessoas trabalhando, mas aí, então, como chegaram ‗é a sua cara!‘ e aí, é São Cristóvão!... Então, eu achava que toda a responsabilidade seria minha. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

O fato de ser moradora de SC se tornou uma vantagem em relação às suas colegas, conferiu-lhe posição de destaque na EM, liderando-a ou representando-a nos eventos e encontros que se sucederam. Dessa forma, apresentou o programa e os resultados, porque as colegas da EM não se sentiam confortáveis para falar em público. ―Aí, ficaram conduzindo de lá, mas quem fez a explanação fui eu. Foi aí, que eu fui vista pela nova equipe. Eu tava chegando na SEDES, nesse programa...‖. Se por um lado, a sua desenvoltura em torno do projeto, bem como a sua experiência como liderança, aproximou as suas colegas de equipe da realidade local, por outro lado, custaram-lhe momentos desconfortantes e angustiantes diante da gestão do projeto. A gestora do projeto MP não aceitava a sua liderança e experiência, a ponto de transformar a sua iniciativa de realizar o diagnóstico num entrave para o bom relacionamento entre membros da equipe e o próprio desenvolvimento do projeto. A coordenadora Fátima, no momento que antecedeu o processo seletivo das mulheres beneficiárias, teria sugerido que a EM buscasse parcerias com diretoras de escola, gestoras do CRAS, entre outras referências nos bairros, de postos de saúde e de hospital, para que as mulheres sentissem segurança em se inscrever no projeto. Contudo, a ideia teria sido desprezada pela gestora que não ofereceu, em contrapartida, nenhuma alternativa. Assim, Fátima descreve os momentos de tensão com a gestora:

Você já pensou o que é você estar trabalhando com uma pessoa... Na reunião, eu não tinha o direito de falar! Ela me abafava. Ela ouvia todo mundo, mas não me ouvia! Então, assim, chegou um momento que eu me anulei! Eu disse, ó, eu não vou ficar batendo de frente, eu vou deixar. Comuniquei à gestão maior, porque era o meu contato, eu não queria um embate com ela, porque a minha conversa era com a pessoa que disse: ‗eu quero você no meu projeto! [...] Você tá chegando num projeto... Já te falei do negócio da vaidade da gestão... Que hoje, eu te dizer, o nosso gestor, os políticos são os nossos gestores, totalmente despreparados! Mas, porque ele teve 300 000 votos, então ele vai assumir a secretaria tal... E vai representar a gente que ele nem conhece, não sabe o perfil da secretaria. Aquela secretaria é um perfil para trabalhar com quem? Com qual público? Aí, viu, quais setores, com as pessoas para conduzir o trabalho deles... Foi um dos meus embates. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

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Com a crise que se estabeleceu entre ela e a gestora do projeto MP, H., Fátima teceu críticas sobre o despreparo dos gestores públicos na Bahia. Enquanto liderança, ela foi reconhecida e contratada para coordenar grupos de mulheres para a mediação de conflitos, ao mesmo tempo em que teve a sua voz negada pela gestora H., que era uma mulher sem experiência para o tipo do trabalho, altiva, embora com outras habilidades reconhecidas pelas demais da equipe, segundo seu relato. A gestora representava a elite política do governo e não admitia as propostas de Fátima, externando conflitos de interesse de classe e raciais, na medida em que teve a sua postura confrontada por uma mulher negra, de um contexto marginalizado, porque não sabia sobre o projeto MP. Diante das tensões que se instalaram no desenvolvimento do projeto, muitas provenientes da sua postura, ela deixou o projeto, que ficou sem gestor. Quem acabou assumindo foi uma das coordenadoras da EM, para que o projeto tivesse continuidade. Segundo o relato de Fátima, a renúncia da gestora veio acompanhada de uma carta escrita e entregue à EM, desculpando-se pelos problemas causados e reconhecendo o brilhantismo de Fátima. Assim, descreve o episódio:

No final, ela me chamou. Quando ela pediu pra sair, ela fez uma carta descrevendo o perfil, do terror de cada membro da equipe, e quando ela falou da minha altivez, da minha ousadia, que São Cristóvão só tinha a ganhar com isso e me pediu desculpas por muitas vezes não ter respostas para as minhas perguntas, mas também não ter a humildade de dizer que não sabia... Foi a carta de despedida. Tá lá, tá documentado, tá registrado. Pra mim o importante é isso, é o que eu digo para as pessoas, ninguém sabe mais do que o outro, a gente sabe diferente. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

No meio da tempestade de conflitos dentro da organização do projeto MP, as equipes multidisciplinar e pedagógica partiram para a seleção das mulheres nos bairros. Fátima afirma que as equipes selecionaram as mulheres em situação de violência doméstica, mulheres com algum trauma, usuárias de drogas, mulheres que tinham os filhos cumprindo mediadas socioeducativas, que tinham os maridos e filhos cumprindo pena, em detenção. ―Então, aquelas mulheres habituadas a estarem em filas de detenção, revistas, nós tínhamos muitas aqui... O público era esse, apesar de que nós tivemos um grupo diferenciado‖. Com isso, se 90

referiu às agentes comunitárias, também aprovadas para facilitar a inserção do projeto nas comunidades, por possuírem ―o traquejo‖ de transitar dentro do bairro. A equipe de coordenação pedagógica, na Avante, defendeu a necessidade de atividades de capacitação para a EM lidar com aquelas MPs e, então, desempenhar o trabalho de coordenação das turmas. Isto porque, a partir de certo ponto, cada EM passaria a liderar grupos de 30 mulheres, sem o auxílio da equipe pedagógica, que, àquela altura, já haveria concluído o trabalho com as MPs. Nessa segunda etapa do curso, estabeleceram-se mais momentos de tensão, decorrentes do desempenho da gestão. A coordenadora P., da Equipe Pedagógica (EP), ao expor para a antiga gestora do projeto, H., a necessidade de capacitação, teve a sua recomendação também descartada, sem uma resposta coerente para o impedimento. Assim, argumenta a coordenadora P.:

A gente lutou muito para capacitar no primeiro ano, não conseguimos. Aí, foi uma questão de cabeça-dura da coordenação da SEDES. No segundo ano, como era outra coordenação e como a gente conseguiu estender o programa, aí, a gente conseguiu na segunda etapa, digamos assim, que começou em novembro, a gente conseguiu fazer, a partir do convencimento que, como elas iam ficar sozinhas sem vocês, professoras, as lideranças do grupo, que a gente deveria fazer a formação delas para coordenar grupos e como levar as coisas. Foi aceito e nós tivemos uma mínima formação de novembro até o final. A gente se encontrava mensalmente o dia inteiro, com base no conteúdo social, trazendo a realidade delas. (Coordenadora P., 28/06/2013).

A partir desses encontros, a coordenação pedagógica percebeu o grau de insatisfação da EM diante de tantas falhas na execução do projeto. A coordenadora P. afirmou:

Essas meninas (as integrantes da EM) estavam angustiadíssimas! A angústia que havia entre as mulheres (MPs) era triplicada na EM! Porque elas também se viram, aquelas jovens que eram contratadas pela SEDES, a maioria que tinha mais ou menos experiência, porque tinha uma senhoras também, né, elas viram que o que elas esperavam também não tinha. Foi dito a elas como a coisa deveria ser, mas não tinha! Foi muita angústia pra elas! Quase piraram! Eu estou falando sério, de deprimir, de não saber o que fazer, aí, a gente fez encontro com base na psicologia social, de coordenação de grupo, de fortalecimento do vínculo delas. Terminou que na segunda etapa, a gente trabalhou elas! Porque elas iam trabalhar diretamente com as mulheres, cada uma tinha 30 mulheres para trabalhar, mas com todas as dificuldades de falta de um sistema além! Pela própria dificuldade do estado. Tipo assim: as meninas ficavam um tempão sem receber, porque atrasou, na virada do ano, atrasou o pagamento. Era convênio, não repassaram pra gente. Teve carnaval, não repassaram no carnaval. Chegou a um ponto, das meninas se reunirem e dizerem

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para a secretária que iam pedir demissão, todas de vez. Estavam sem pagamento, trabalhando sem pagamento. Então, tinha essas maluquices. De um ano pra outro fecha o orçamento, muda o ano fiscal e fecha também o do estado. No ano do Mulheres da Paz, de 2009-2010, nunca ficou tanto tempo fechado o orçamento. Deus sabe porquê. Mas ficou fechadésimo um tempão! (Coordenadora P., 28/06/2013).

Além do conflito proveniente do atraso no pagamento da EM por causa da mudança de Orçamento da União, desta vez, instaurou-se uma tensão entre integrantes da EM e as MPs. A EM, nesta fase, liderava encontros semanais, depois quinzenais, com as MPs, com o objetivo de orientá-las no trabalho de mediação de conflitos e encaminhamento das famílias aos (poucos) programas existentes em Salvador. Entretanto, segundo as minhas observações, como também as da coordenadora P., a falta de uma rede que atendesse aos encaminhamentos vislumbrados pelas participantes despertou sentimentos de angústia e revolta, tanto entre algumas integrantes da EM como entre as MPs. Neste espaço, mencionarei um dos conflitos, já que outros serão desenvolvidos mais adiante, no próximo capítulo. Uma das coordenadoras da EM, mulher branca, com idade superior a 50 anos, experiente na atividade política em partido de situação, passou a acompanhar as turmas nas quais eu assumia a liderança. Ali, pude observar a forma como ela se posicionava diante das MPs, de maneira intimidativa, e diante de mim, frequentemente, estabelecia embates, desconsiderando os vínculos criados e solidificados com o grupo. A coordenadora Z., diferente das demais da EM, inibia as mulheres por sua postura. Seja por ser mulher branca, pela sua condição de classe, oriunda da elite, que fazia questão de impor seus valores e costumes ao grupo; seja pela forma como se vestia, com roupas ―elegantes‖ e maquiagem no rosto, que destacava uma posição de poder sobre as outras mulheres presentes. Apenas pela aparência impunha a submissão das mulheres. Mantinha também tom de voz irritadiço e alto, com que cortava e calava as vozes das mulheres, de forma rude. Numa ocasião, pude abordála e criticar a sua postura diante da turma, a qual estaria atrapalhando o andamento das oficinas. Em seguida, a coordenadora Z. me pediu desculpas, passando a ponderar suas colocações nas aulas seguintes. Entretanto, foi por pouco tempo. Ela voltou a manter posturas consideradas equivocadas e eu procurei a coordenação pedagógica, que intercedeu chamando a sua atenção e redefinindo o papel a ser desempenhado pela EM nas oficinas ministradas pelas professoras.

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Posteriormente, quando a coordenadora Z. assumiu a liderança das turmas, em particular, daquelas ministradas por mim, outros conflitos se manifestaram. Tomei conhecimento dos problemas que se apresentavam nos encontros com a coordenadora através do contato que mantive com algumas MPs. Não foram poucas as ocasiões em que algumas MPs ligaram para mim – depois de terminada a primeira fase, na qual eu era a instrutora – para me perguntar o porquê da coordenadora não ter comparecido à reunião. Ou ainda, entraram em contato comigo, durante a reunião com a mesma, para criticar o encontro e demonstrar a sua perplexidade diante da sua postura, que ratificava as ações de acompanhamento de jovens que as MPs deveriam desempenhar, mesmo com as adversidades. Em entrevista com a MP Dilma, observei como esta coordenadora, particularmente, lidou com as falhas do projeto quanto à falta da rede. Ela se dirigia ao encontro com as turmas do Municipal I e II sem propostas de trabalho, sem temas para discussão, sem conteúdos para transmitir-lhes, chegando ao ponto de provocar a revolta das participantes, que não mantiveram a submissão de outrora e reagiram às arbitrariedades impostas pela referida coordenação. Dilma salienta: ―Z. botou a gente no fogo, queria ver a gente se queimar! Ela chegava, sentava na cadeira, cruzava as pernas e dizia que não queria saber quem foi e quem deixou de ir. Ela chegava lá e perguntava: vocês querem falar de que hoje? Ah! Mas um dia Quitéria se danou e disse na cara de Z.: eu não vejo mais sentido nos encontros depois que F. parou de dar aula!‖. Ela continua:

Ninguém entregou o relatório, foi tudo enrolação, depois eu vi... As mulheres só faltou bater nela! Porque ela dizia que não era pra ficar só de coisinha de BolsaFamília. Era uma briga danada. Z. só botava fogo, não era como você que jogava o lençol molhado... Ela dizia que o objetivo do projeto era acompanhar os jovens envolvidos! Dizia que era esse o sentido! As mulheres brigavam muito... Era uma confusão retada. (MP Dilma, 05/12/2012)

A coordenadora Z., como as outras integrantes da EM, estava descontente com a falta de pagamento e com a falta da rede para o encaminhamento das famílias aos serviços e programas sociais. Todavia, assumiu uma postura que divergia das suas colegas de trabalho, não elaborando planos e estratégias para os encontros com as MPs. Ao contrário, manteve uma postura autoritária, submetendo as MPs a situações arriscadas. Por exemplo, duas 93

participantes, MP Olívia e MP Taísa, mantiveram a ordem dada de encaminhamento de jovens envolvidos com o tráfico ou com o uso de drogas41. A MP Olívia se arriscou tentando encaminhar um jovem envolvido com o tráfico, porque ninguém da sua família poderia saber. Havia familiares envolvidos. O rapaz queria sair, mas tinha medo, Olívia não soube orientar e fez o cadastramento do rapaz, em segredo. Dilma afirma que a coordenadora Z. não estabeleceu nenhuma orientação, porque era despreparada para fazê-lo, apenas incentivando a MP Olívia a continuar o contato com o rapaz. Já a MP Taísa, insegura em relação ao trabalho de coordenação de Z., segundo relato da MP Dilma, procurou-a pedindo apoio e ela lhe respondeu da seguinte forma: ―Você é doida, é?! Você vai na onda de Z? Você ia pra aula pra ficar dormindo e não ouvia o que F. dizia... Ela dizia pra gente não ir, não dizia na cara, mas a gente entendia que ela tava dizendo.‖ Observa-se, portanto, que Olívia não sabia como abordar as pessoas para a mediação, mas não se dirigia à coordenação para pedir ajuda, preferindo aconselhar-se com a colega para desenvolver as atividades. A inexistência da rede de atendimento afetava diretamente as MPs, não só porque não tinham para onde encaminhar as pessoas ―mapeadas‖, mas também recorrerem elas mesmas aos serviços. Então, enfrentaram dificuldades para realizar a mediação. Até casos mais complicados, entre as próprias MPs, não foram encaminhados, como o (a) leitor (a) identificará no próximo capítulo. Mesmo com adversidades, as MPs pediam pela continuidade do projeto, já que obtiveram alguns (poucos) benefícios42. Entretanto, o prazo para o fim das atividades, em 31 de dezembro de 2010, foi mantido, contrariando as expectativas das participantes, sem iniciativa do novo governo para dar seguimento ao projeto. Por outro lado, após o curso, o grupo formado pela EM se reuniu e formou a ONG Mais, sob a liderança da coordenadora Fátima, que ainda não está totalmente legalizada, mas já é reconhecida devido à figura da coordenadora e pela atuação social. A ONG Mais conta com o apoio da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), que a convoca para projetos voltados para a questão de gênero. Essa articulação fez com que Fátima desse continuidade ao trabalho desenvolvido com as MPs, por iniciativa própria. Assim, assumiu com a ONG um projeto público, contemplando 40 mulheres, dentre as quais, algumas MPs, dando origem a um novo grupo, agora, chamado de Mulheres da Paz em Ação, cujo orçamento, com relação ao projeto do PRONASCI, decresceu de R$ 400 mil para R$ 50 mil. 41

A orientação do projeto a respeito das atividades das MPs era de que acompanhassem jovens em situação de violência. Entretanto, sugeri que elas encaminhassem casos mais simples, por causa do risco que nós corríamos, principalmente, as MPs. Porém, este ponto será desenvolvido em outro tópico. 42 Esta questão será desenvolvida no próximo capítulo.

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A adesão das MPs foi ainda menor em relação ao projeto do PRONASCI, visto que elas buscavam trabalho e formação profissional. O novo projeto se destinava a um curso de empreendedorismo e negócios, e teve duração de 4 meses. Estavam previstos lanche, fardamento, material didático, transporte para os eventos. Porém não previa bolsa, e por isso o número de mulheres fora reduzido em 70%, segundo a observação de Fátima. O novo grupo, Mulheres da Paz em Ação, formou-se com 50% de MPs do PRONASCI e 50 % de ―novas MPs da comunidade‖. Ao longo do curso, durante uma capacitação em empreendedorismo, Fátima novamente realizou um diagnóstico para identificar o tipo de formação profissional desejado pelas participantes. Assim, as MPs sugeriram a formação em cozinha industrial, que deveria ter sede no bairro. O curso de cozinha industrial, para ser efetivado, deveria contar com novo financiamento público e funcionaria como uma extensão desta última formação. Contudo, ainda não foi viabilizado. Eu estive presente na cerimônia de encerramento do Mulheres da Paz em Ação e percebi o sentimento de realização nas participantes, por conta da esperança que mantinham na aplicabilidade do processo formativo que viria depois, caso o governo aprovasse a iniciativa de Fátima. Movidas pela busca ―do saber‖, pela construção do conhecimento, almejavam a qualificação profissional, além de algumas desejarem cursar faculdade. De fato, 5 delas conseguiram ingressar no ensino superior, a partir da parceria estabelecida entre Fátima e faculdade privada, que oferecia financiamento dos estudos, mediante o compromisso de futuro pagamento pela estudante. Fátima afirma:

O Mulheres da Paz em Ação é desdobramento do meu trabalho social em São Cristóvão, não é fruto do PRONASCI, cê tá entendendo? A luta e a busca que isso permaneça é minha. É uma luta árdua. Continuo batalhando e articulando por outros equipamentos públicos. Eu poderia fazer como minhas colegas fizeram. ‗Acabou o projeto, eu vou ficar em casa dormindo‘. Ela andou aí comigo um dia e disse ‗você é louca!‘ (Risos) e tô aqui hoje com você querendo conversar mais sobre o Mais. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

Fátima mantém um bom relacionamento profissional com a SEDES, sempre solicitada para a execução dos projetos que surgem no órgão. Atualmente, participa do ―Vida Melhor‖, que faz parte do eixo de Inclusão Produtiva da Secretaria, mas sofreu uma interrupção. Ofereceram-lhe a função de coordenação, entretanto, não aceitou por entender que a função 95

iria tolher suas ações, ―eu não quero ficar presa‖, disse. Além disso, rejeitou a oferta de coordenação no Bairro da Paz ou em Cajazeiras 43, afirmando:

Eu não quero nem uma nem outra. Eu quero fazer um trabalho técnico que eu fique flexível, que eu dê conta da minha escola, que eu dê conta do meu trabalho social do Mais, e do projeto Vida Melhor, ou outros que virão. Mas eu não quero estar amarrada dentro de uma sala. Você já pensou eu dentro de uma sala? Eu chego lá na minha sala, eu chego resolvo e já me mando! [...] Não fico não. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

Fátima concluiu a entrevista fazendo análise do trabalho social que desenvolve em São Cristóvão. A partir do seu discurso, destaco a forma como ela estabelece alianças, que, muitas vezes, deixam de atender às expectativas de grupos com os quais lida diariamente, como as alianças com políticos em candidatura e de situação, as quais representam raras oportunidades de atingir visibilidade e processos de mudança na vida das mulheres e jovens pobres do bairro em que mora (PINTO, 1993). Assim, Fátima finaliza a entrevista da seguinte forma:

E tem outra coisa que eu digo pra elas, eu posso até ter ela lá dentro, coordenadora G, mas tem que ficar alguém no mundo levando e ventilando mostrando para alguns públicos que as mulheres desejam, que os jovens desejam que a comunidade carente deseja, que existe o discurso e é diferente da prática, que você vai ter a ousadia, que vai chegar lá e dizer, porque eu não vivo do salário deles. Então, eu chego lá e digo! (risos). Liberdade de colocar as minhas agonias, as angústias das pessoas, me sinto veículo porta-voz dessas pessoas. Eu sou uma liderança comunitária, não posso dizer que detesto político, eu tenho que entender de político para estar lá debatendo com eles. É como eu disse, eu saí candidata uma vez, em 2000, eu não me vejo mais nunca! Porque se eu quero ser liderança comunitária, se eu quero lutar pelo social eu não posso estar em dois palanques. Eu tenho que estar no palanque me fortalecendo e poder estar cobrando, que se eu for uma liderança com pretensões políticas, eu vou ser uma liderança que qualquer dinheiro me bota no bolso. E a ousadia que eu tenho de estar falando isso com um deputado, é quando eu digo pra eles ‗eu não trabalhei com vocês em sua campanha, eu colaborei visando um retorno para a minha 43

O Bairro da Paz surgiu na década de 1980, a partir da ocupação espontânea de moradores que declararam guerra ao poder público, para garantir a posse das terras ocupadas ilegalmente. Por conta deste estado de conflitos, contemporâneo à Guerra das Malvinas (entre a Grã-Bretanha e a Argentina, pelo controle do arquipélago do Atlântico-Sul, Ilhas das Malvinas), o local ficou conhecido como Invasão das Malvinas. Hoje, o Bairro da Paz envolve as localidades: Praça, Areal, Baixa do Tubo, Bela Vista, Morro da Felicidade, Setor II e Área Verde. A sua população totaliza 17.438 habitantes. Já os bairros de Cajazeiras (IV, V, VII, X, VI, II – sequencia cronológica de surgimento) datam da década de 1970. No projeto inicial para o local, constava a construção de uma cidade de porte médio, que teria sistema viário, esgotamento sanitário, abastecimento de água, luz e equipamentos comunitários. Atualmente, a região se encontra desmembrada, cuja população soma 39.504 hab. (SANTOS et al, 2010).

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comunidade na saúde, na educação, na oportunidade para os jovens, para as mulheres, um saneamento básico, na iluminação. A gente trabalha quando recebe. Eu não recebi pra trabalhar com você e eu sou liderança não sou cabo eleitoral. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

Lideranças que atuavam como intermediárias entre a classe política e os eleitores, passaram a participar da política institucional (OLIVEIRA, 2009). Fátima, quando se aproximou do espaço político institucional, teria se deparado com o jogo político e, por isso, optado pela permanência no movimento social. De fato, não se pode ignorar a cooptação de lideranças comunitárias por gestores (as) e políticos (as), neste caso, na operacionalização do combate à violência urbana. Essas lideranças são acionadas por políticos que, a partir dessas relações estabelecidas, passam a controlar a comunidade sobre a qual eles pretendem atuar, especificamente através da transferência de responsabilidades sobre a execução de políticas sociais às ONGs, como será discutido no próximo tópico. Outra forma de atuação na gestão pública se refere à perpetuação das desigualdades de gênero na formulação das polícias. A equipe do governo brasileiro considerara a expressividade nas taxas de mortes por arma de fogo, que apresentam 94% dos casos para o público masculino, contra 6% do feminino (WAISELFISZ, 2013) e, sobrecarrega as mulheres, recaindo numa situação de violência de gênero perpetrada pelo Estado – como será discutido no próximo capítulo.

2.2 A ONG AVANTE e o projeto Mulheres da Paz

A nova Constituição de 1988 marcou um momento de mudanças políticas no Brasil, com a acentuação dos princípios de legalidade e de publicidade viabilizados pelo controle externo e descentralização nas ações do Estado. Assim, no governo de Fernando Henrique (1995-2002) foi criado o Plano Diretor da Reforma do Estado, que definiu como tarefas do Estado o poder sobre a aplicação de seus recursos, centralizando a formulação e o domínio das políticas públicas e da lei. A partir daí, as secretarias ou departamentos cuidariam da 97

efetivação, descentralizando e transferindo às agências executivas e reguladoras autônomas, ou a organizações sociais como as ONGs, a execução das políticas sociais (MONTAÑO, 2007). As Organizações Sociais surgiram a partir da década de 1970, vinculadas aos movimentos sociais que lutavam por maior participação nos processos sociais e políticos. Na década de 1980, com a crise instaurada sobre os movimentos sociais, mediante a saída das agências financiadoras internacionais do cenário social, bem como do ressurgimento dos sindicatos, as ONGs ganham força e absorvem parte da militância social. Logo, essas organizações de direito privado, sem fins lucrativos, assumiram também uma forma despolitizada, por vezes, de caráter empresarial, buscando parceiras para obtenção de fundos (IPEA, 2011). Através da reforma política, a partir da década de 1990, as ONGs passaram a concentrar atribuições de órgãos públicos, nos termos do Programa Nacional de Publicização, aprovado pela Lei 9.367, de 15 de maio de 1998. Esta lei delibera, pelo Poder Executivo, a transferência de execução de serviços públicos e gestão de bens e pessoal públicos a entidades consideradas qualificadas, tais como as Organizações Sociais, cuja parceria com o Estado estaria formalizada pelo intermédio do Contrato de Gestão. De acordo com algumas críticas sobre a transferência de atribuições públicas às Organizações Sociais, não há compensação qualitativa nem quantitativa das políticas sociais deixadas pelo Estado. As ações, assim administradas, funcionam como ―paliativo voltado para as necessidades mais urgentes da população, não proporcionando à população a construção de valores que posteriormente venham a levar os sujeitos à emancipação política e posteriormente humana‖ (IPEA, 2011). Entre 1992 e 1996, um grupo de amigas e partidárias de questões ideológicas em comum se juntou, oferecendo serviços nas suas ―expertises‖ na área de educação e de recursos humanos, como Avante Consultores Associados. A equipe era formada por uma socióloga, uma psicóloga, uma historiadora e duas pedagogas, distribuídas em trabalhos numa empresa privada (banco), como funcionárias públicas (uma pelo estado e duas pelo município), a última como autônoma. Ambas se encontravam insatisfeitas com o trabalho que desenvolviam profissionalmente, pois já haviam conquistado amadurecimento profissional em suas respectivas ocupações, entretanto, sem chances de ascender profissionalmente. Buscavam, também, uma nova forma de relacionamento profissional e pessoal com a sociedade. A parceria com a Fundação Odebrecht, em 1996, firmou a instituição como uma ONG. A Fundação Odebrecht contratou o grupo para coordenar a execução do ―Prêmio Odebrecht 98

96 – Adolescentes por uma Escola Melhor‖ no Brasil, nos estados da BA, PE, RS, SP e RJ. A Avante contribuiu na concepção do prêmio, indicando o quê, como seria e quais os seus produtos, numa época em que os programas educacionais estavam ―estourando‖, inclusive com a criação da Lei de Diretrizes Básicas,

44

em dezembro de 1996, como comenta a

coordenadora P.. Com o prêmio, pretendia-se envolver os adolescentes nas questões da educação, como sujeitos desse processo. Mobilizaram 165.000 adolescentes indiretamente e, diretamente, mais de 1.000, nas escolas, através da realização de ações, oficinas, tribuna livre, etc. Dessa forma, a Fundação Odebrecht ganhou com o projeto um importante prêmio nacional, dada a sua relevância e alcance social. Com os bons resultados do projeto, a Avante também ganhou visibilidade e, a partir daí, o grupo Unicef e a Fundação Odebrecht as questionaram sobre a identidade da instituição, que teria mais um perfil de ONG

45

e não

apenas de consultoria. Então, aceitaram a sugestão e criaram a Avante – Qualidade, Educação e Vida, que se tornou depois Avante – Educação e Mobilização Social. Conforme o relato da coordenadora P., a Avante – Educação e Mobilização Social passou por vários processos, cuja raiz estava centrada na área de educação, criando dois núcleos de ação – educação e mobilização social, de um lado e, políticas públicas, de outro. Os eixos envolveram a promoção de direitos em processos educacionais distintos do escolar; questões democráticas na saúde e na educação; formação de conselhos; formação e mobilização de lideranças; e controle social. Com o tempo, as ações se tornaram mais amplas, principalmente no último eixo, até que chegaram às quatro atuais linhas de atuação: de formação para educação e tecnologias educacionais, de mobilização e controle social, de formação de agentes culturais, de formação para o trabalho, emprego e renda. Embora todos atravessem o eixo maior: educação. A linha de mobilização e controle social tem se transformado e obtido excelência na questão da luta pela garantia dos direitos, especialmente para crianças e adolescentes. Nas quatro linhas de atuação, os projetos são financiados por várias instituições de governo federal, estadual e municipal, principalmente na área de educação. Também 44

Em 1996, o Presidente Fernando Henrique Cardoso estabeleceu as diretrizes e as bases da educação brasileira em torno dos processos formativos desenvolvidos na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais; e disciplinou a educação escolar, que deveria estar vinculada ao mundo do trabalho e à prática social. (Ver Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996). 45 Aqui, as ONGs são conceituadas como organizações de direito privado, sem fins lucrativos, assumindo uma forma despolitizada, por vezes, de caráter empresarial, que busca parceiras para obtenção de fundos (IPEA, 2011). À frente, tratarei da problematização acerca das ONGs e a tendência da política brasileira de transferência de responsabilidades sociais.

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instituições privadas, fundações, institutos, empresas e bancos contratam os seus serviços. A Avante participa de redes, segundo o relato da coordenadora P, chegando a sediar a Secretaria Executiva da Rede Nacional de Primeira Infância, até o ano de 2012. Atualmente, a ONG desenvolve relações de parceria apenas com a referida rede. Também integrou a Rede Latitudes, uma rede na América do Sul que tem parceria com Harvard, a ABONG, além de outras redes. O projeto Mulheres da Paz (MP) se inseriu na linha de mobilização e controle social e políticas públicas da ONG. Para a coordenadora P, entretanto, ―há a linha educação no ‗Mulheres da Paz‖, mas não é escolar, há a questão do emprego e da renda, mas não é esse o objeto. ―Mulheres da Paz‖ entrou na linha da política de segurança, no PRONASCI, uma ação de colaboração comunitária. A Avante foi indicada à SEDES pela Unicef, como organização que poderia abarcar o projeto, por sua capacidade de execução e perícia. Na época, a ONG atravessava dificuldades no setor pessoal da instituição – 6 membros da equipe estavam afastados por razões de estudos e trabalho. ―A equipe ficou desfalcada principalmente na parte da gestão institucional da Avante. A parte técnica não ficou tanto. Eu acumulei a gestão institucional, não só do projeto, mas da instituição, e coordenação do projeto.‖. A coordenadora P, acreditando na capacidade de execução do projeto MP, aceitou o convite para concorrer com outras instituições e acrescenta que ―... para a associação, pra manter, para a gente sobreviver, a gente precisa ter projetos. A Avante é muito maior. Foram dois anos de penúria de pessoas importantes. Foi nesse momento que a gente se estruturou em quatro núcleos, porque, até o Mulheres da Paz eram dois.‖. A coordenadora acredita que fora possível ganhar a licitação por causa da técnica já reconhecida e pelo preço orçado no seu projeto. Além disso, a instituição já desenvolvia trabalhos com mulheres, ou famílias. Neste caso, ―famílias‖ se transformam em ―mulheres‖ porque, segundo seu relato, as participantes dos projetos voltados para os grupos familiares, geralmente eram mulheres e mães. Os homens pouco se mobilizaram. Ela, então, afirma: ―família e escola, a família é a mãe; se você quer fazer um programa com jovens, pra qualquer foco, desde o trabalho emprego e renda a esporte, quando chama é a mãe que vem, ou a tia, ou a avó, uma mulher cuidando de jovens adolescentes e crianças‖, e continua, ―então, a gente tem essa expertise de grupos de reflexão com mulheres, balcão de atendimento às mulheres.‖. Logo, justifica a sua perícia em executar o projeto MP. Ela conclui: ―dizer que não tínhamos experiência com mulheres, 100

tínhamos muita! Fazíamos grupos de mulheres pra tudo. Desde os grupos produtivos a grupos de discussão sobre temáticas que as afligia...‖. A significativa experiência e solidez da instituição executora para o desenvolvimento da formação pedagógica com o público de mulheres representou uma vantagem em relação às outras concorrentes. Todavia, acredito que esta experiência não necessariamente induziu a instituição à perícia sobre a resolução dos conflitos dessas mulheres. É fato que a ONG executora cumpriu com as exigências e as metas estabelecidas com a firmação do compromisso junto à SEDES, entretanto, não inseriu em suas pautas de princípios e valores a discussão de gênero, no que toca às tensões de poder entre os agentes sociais que, na política, coincide com o ônus do cuidado direcionado às mulheres. Vale enfatizar, contudo, dois pontos: primeiro, o fato de que ONGs assumem um caráter despolitizado e são acionadas pelo Estado através de políticas verticalizadas em sua elaboração, as quais excluem a população/público-alvo do rol das resoluções. O segundo ponto diz respeito a não restrição da ONG Avante aos debates feministas sobre as questões de gênero. O que pode ser notado nos textos discutidos em sala como também na especificação da coordenadora P. sobre a minha experiência no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, em ocasião da entrevista na qual fui selecionada para compor a equipe pedagógica. A coordenadora enfatizou a importância da minha experiência nos estudos de gênero para desenvolver o trabalho com as MPs, assim como para articular o conceito de ―empoderamento‖ nas oficinas de formação. Ao ganhar a licitação, a Avante recebeu um Termo de Referência, que continha as principais exigências do que deveria ser a estrutura do projeto, desde número e local até os conteúdos. No termo havia pouca abertura, por se tratar de um projeto de âmbito nacional, que permitisse imprimir uma identidade ao projeto. Os conteúdos eram fechados, entretanto, a forma de distribuição ficou a critério da Avante. Assim, optaram por desenvolver três módulos, conforme a afinidade do conteúdo. Cada módulo trazia uma carta de boas-vindas às participantes, com a apresentação dos objetivos do curso; continha informações básicas sobre a orientação teórico-metodológica, sobre a área de abrangência e público-alvo do projeto MP, bem como sobre os seus eixos; por fim, tinha os textos básicos e questões norteadoras das oficinas. Todos os módulos foram editados pela Avante, que reuniu uma equipe técnica de coordenação, produção, revisão e ilustração dos textos.

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Os quatro eixos temáticos dos módulos foram destacados como: ―Relações Sociais e Direitos Humanos‖, que versaram sobre ética e valores humanos, diversidade sociocultural (gênero, raça, gerações, religiões, necessidades especiais), Declaração Universal dos Direitos Humanos, Constituição Federal de 1988, Estatuto da Criança e do Adolescente e ―Lei Maria da Penha‖, participação cidadã e controle social; ―Mediação de Conflitos e Cultura de Paz‖, que tratava de conflitos e mediações, processo judicial, violência e enfrentamento, legislação brasileira e acesso à justiça, Cultura de Paz e formação de redes; ―Questões de Identidade‖, que abrangeu cultura e meios de comunicação, preconceitos e discriminação, a noção de identidade direcionada ao exercício de mediação e relações sociais; por último, ―Políticas Públicas‖, que reuniu as formas de estruturação, a contextualização do PRONASCI e do Projeto MP, outros programas sociais, questões socioambientais, equipamentos públicos e redes sócio-assistenciais, empreendedorismo e formas de associativismo. O primeiro módulo, Compreendendo a Relação Indivíduo-Sociedade, reuniu 11 textos.

O

segundo

módulo,

Mediando

Conflitos/Demandando

Programas

Sociais/Mobilizando a Comunidade, congregou três módulos que reuniram 19 textos. Nos dois primeiros módulos, foram distribuídos os textos pelos seguintes eixos temáticos: Relações Sociais e Direitos Humanos, Mediação de Conflitos e Cultura de Paz, Questões de Identidade e Políticas Públicas. Já o terceiro módulo, Guia da Multiplicadora/Reeditora Social, como sugere o título, representou um guia para as mulheres que pretendessem dar continuidade ao trabalho social. ―Reeditoras sociais‖ foi uma atribuição da Avante para as MPs, dada a forma de atuação proposta para elas pelo PRONASCI. O curso foi estruturado em 48 oficinas, com o total de 144 horas de carga horária. Como pressupostos teóricometodológicos, apresentou a diversidade da ação educativa, a construção do conhecimento a partir das aprendizes em questão, considerando as particularidades das aprendizes adultas, além dos processos constantes de reflexão sobre as práticas educativas (AVANTE, 2009a; 2009b). Os problemas começaram a surgir, segundo a coordenadora P., a partir da forma como o projeto foi gerido. Mais uma vez, surge uma crítica à falta de abertura da gestão para o diálogo e para propostas de atividades pela equipe que o integrava. Contudo, sem interferir decisivamente nas ações da equipe pedagógica. Assim, a coordenadora P relata:

102

A coordenação na SEDES, na época, que era muito controladora, que era H. Ela é hiper-controladora! Tivemos vários embates! Porque do mesmo jeito que ela confiava mil coisas, ela queria meter o bedelho em outras coisas porque a gente dizia, ‗mas não é assim, você não tá tão próxima...‘. Aí, a ela não interessava. Mas a gente conseguiu, mesmo com essa dificuldade, essa luta com H. Na verdade, não ficou nada pra trás do que a gente tinha pensado em realizar, mas conseguimos fazer o que era preciso fazer e em pouco tempo. [...] H. competia com a gente. A gente dizia ‗isso é azul, vamos fazer assim...‘ e H. dizia ‗não, isso é verde, você está pensando que é azul...‘ No início, foi muito difícil, foi muito difícil, não sei o que aquela moça tinha, porque foi ela que participou da seleção das instituições, selecionou a Avante, porque tecnicamente era melhor. E porque ela tinha tanta... Parecia insegurança dela diante da gente, ou por disputa, alguma coisa assim. Era uma mulher competente, mas incompetentíssima em questão de gestão e das relações... Ela era muito corajosa nas suas colocações, mas péssima gestora. (Coordenadora P, 28/06/2013).

Para a coordenadora P., o projeto MP representou um grande desafio por causa das demandas das mulheres beneficiárias, pelas confusões provocadas pela gestão e burocracia do governo e pela problemática instaurada ao assumir a responsabilidade de coordenar os três municípios nesses termos. Havia diálogo com os municípios, mas também havia as interferências políticas, principalmente em Lauro de Freitas, onde as ações não funcionavam por causa das questões políticas. Nas palavras da coordenadora, ―aquela inhaca, aquela coisa de... ‗o que é que a gente vai ganhar com isso?‘... nada a ver.‖ Havia também problemas logísticos de difícil resolução, por exemplo: a distribuição de lanches para os locais de realização das oficinas. ―Era terrível! Porque, alguns lugares, os carros não queriam levar, o cara que levava na moto, os salgados ficavam amassados, porque os carros não queriam entrar! Ia fazer o quê?! Não tinha fornecedor com nota fiscal no local da oficina formalmente constituído‖, por se tratar de um convênio, a instituição tinha que prestar contas com as notas fiscais, desse modo, não pôde aproveitar os estabelecimentos nos bairros-foco como fornecedores. Assim, desabafa:

Então, tinha questões logísticas incríveis. Foram desafiantes em todos os sentidos! Atraso no pagamento da Avante, intensos, frequentes, que aí, atrasava o pagamento de vocês, da equipe multidisciplinar e era aquela confusão porque a gente ficava agoniada, sem dinheiro às vezes pra pagar lanche, porque a gente pegava emprestado de outro projeto, quando era possível, ou de um recurso mínimo que a Avante tivesse. Foi muito difícil, muito difícil. Poderia ter sido muito mais fácil se o Estado cumprisse com o acordado e se a gente não tivesse lugares tão desafiantes. (Coordenadora P, 28/06/2013).

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O Estado partiu do pressuposto de que a Avante teria parcerias locais para a execução do projeto. As parcerias precisavam ser feitas para que conseguissem o local de realização dos cursos e que contassem com algum equipamento público agregando o regime de parceria. ―Ah, não, a gente pode ir pra igreja, ah, mas a igreja não tem lugar [...] foi muito desafiante em termos de armar essa logística, foi muito desafiante esse dia-a-dia!‖. A SEDES prometera carro para levar as professoras e a EM para os lugares nos quais o transporte público fosse difícil. Contudo, deixaram de cumprir até certo ponto, como é possível notar em mais uma explanação da coordenadora P:

Então, os instrutores ligavam pra minha casa... Cansei de atender telefonema 6h15min, 6h30min da manhã, no desespero! Ah, por que eu tô aqui e não passou o carro. Aí, liga pra SEDES, ‗cadê o motorista?‘ ‗ah, o motorista foi pegar não sei o quê, foi não sei onde...‘ e eu disse não pode. Foi aí que se desistiu desse, pra Simões Filho e Lauro de Freitas porque não tinha transporte integrado. Lá, só van, de vez em quando, para chegar no local do curso, então... Acabou que a gente contratou uma cooperativa de táxi de Lauro de Freitas graças a um médico amigo meu. Olhe, menina cê tinha que inventar novidades... (Suspiro). A gente combinou com essa cooperativa eles acabaram fazendo por um preço módico. Mas era uma luta, era uma agonia. [...] Parecia plantão de médico, de 6h da manhã até... Acabar o dia aparecia era coisa. [...] O projeto tinha todo o tipo de desafio, a relação com a SEDES, em resumo, teve esses grandes desafios, da nossa relação com a SEDES, nossa relação com a EM, com as consultoras, com vocês, que era tranquilo, mas eram muitos professores, 12, 13 sei lá, uma equipe grande, que acontece alguma coisa, que é muito raro, mas que aconteceu, aconteceu. Aconteceu de tudo, de eu estar todo dia gerindo dinheiro para ver se dava para o transporte. (Coordenadora P, 28/06/2013).

A Avante, atualmente, executa dois projetos, inclusive do governo, ―mas com parceiros ótimos!‖, como salienta a coordenadora P. Ela afirma que não tem problemas com o governo, mesmo quando alguns (as) gestores (as), em alguns projetos, fazem exigências ―de última hora‖, que a coordenadora considera como dentro da normalidade. Somente o projeto MP foi destacado por ela como um projeto difícil e desafiador, como nenhum outro na história da Avante, mas que, independente das confusões, atingiu aos objetivos propostos. A ONG possui importante reconhecimento social pela forma como desempenha as suas atividades, procurando atender às expectativas dos diversos atores envolvidos de forma criteriosa. Com o exposto, saliento a importância de fazer a contextualização desta instituição 104

para a viabilidade do projeto MP na Bahia, como peça fundamental para o desenvolvimento desta dissertação, que expõe uma análise sobre o cotidiano das ações das MPs em campo. No subtópico seguinte, versarei sobre a avaliação do projeto MP realizado pela Avante a partir do seu relatório final.

2.3.1 O processo avaliativo

Para ingressarem no Projeto Mulheres da Paz, as mulheres deveriam ter idade igual ou superior a 18 anos, renda familiar máxima de até dois salários mínimos, escolaridade mínima de 4ª série do ensino fundamental, comprovada capacidade de leitura e escrita e disponibilidade de, pelo menos, 12 horas semanais para dedicação ao projeto. Neste ponto, há uma divergência com relação à especificação de atribuições pedidas pela SEDES46. Assim, 665 participantes preencheram tais requisitos, apresentando-se em idades entre 18 a 60 anos, a maioria desempregada. Apesar da escolaridade exigida na seleção, prevaleceu, durante as oficinas, muita dificuldade de leitura, escrita e interpretação de textos, por parte das MPs, já que muitas tinham deixado de estudar há algum tempo. Em geral, não entendiam os assuntos tratados, não se conheciam e tinha poucas informações referentes às comunidades onde viviam, salvo as que já exerciam alguma forma de liderança naquelas. A avaliação da equipe da Avante sobre o projeto MP foi sistemática, envolvendo as MPs e a equipe de professoras, num processo que contemplou as formas quantitativa e qualitativa de avaliação. A avaliação quantitativa ocorreu mediante formulários preenchidos pelas MPs e pelas professoras, cujas questões foram analisadas a partir da atribuição de 3 conceitos: ―acima das expectativas‖; ―dentro das expectativas‖ ou ―abaixo das expectativas‖, ou ―sim‖ e ―não‖. As beneficiárias avaliaram, então, os assuntos e temas tratados nos 46

Conforme a minha análise em relação ao relatório elaborado pela SEDES, disponibilizado para esta pesquisa, não foi especificada a exigência de disponibilidade das 12 horas semanais; além disso, foram acrescidos a) a pertença das mulheres às redes sociais ou de parentesco dos jovens que constituem o público-alvo do PRONASCI, bem como tenham vivenciado situações de apenamento, morte, violência, ou demais situações consideradas pela EM como de ―riscos sociais‖; b) mulheres residentes e atuantes no bairro que constituísse o território-foco do PRONASCI; c) por fim, o conhecimento prévio do local onde iriam atuar como MPs, aqui, conferindo destaque à segurança para o desempenho das atividades, à identificação e demarcação dos territórios e reconhecimento das lideranças locais e ―comunitárias‖.

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módulos, além da carga horária, da metodologia, dos textos oferecidos e do desempenho da professora, as contribuições para o seu crescimento pessoal e para a atuação na comunidade. Avaliaram também o espaço físico, opinando quanto à adequação das instalações e o acesso ao local do curso. Estas mulheres também desenvolveram autoavaliações sobre a sua integração com as colegas e a equipe do projeto, bem como o respeito entre elas e as professoras, e sobre os conhecimentos e habilidades adquiridas nos módulos. Já as professoras analisaram as mulheres sob o ponto de vista da assiduidade, interesse, pontualidade e participação em sala de aula, comportamento, integração com as colegas e com a equipe do projeto, respeito, compreensão dos assuntos trabalhados, qualidade da produção individual, competência e habilidades desenvolvidas. A avaliação qualitativa consistiu em averiguar as dimensões cognitivas e atitudinais; na dimensão cognitiva, verificou-se o domínio dos conteúdos estudados por elas e o conhecimento sobre a comunidade, implicando em mudanças na forma das mulheres perceberem a realidade e de se inserirem no bairro onde moram. De modo geral, o curso foi bem avaliado pelas professoras, apontando para a conquista das MPs na assimilação dos objetivos da capacitação e do programa. A bolsa-auxílio também foi avaliada positivamente entre as beneficiárias, segundo o relatório expedido pela Avante, este resultado está ligado ao fato de a bolsa constituir um forte atrativo para ajudar no orçamento doméstico, principalmente pelo fato do projeto ter sido desenvolvido em ―comunidades carentes de periferia com baixa renda e com muitas mulheres desempregadas‖. As MPs avaliaram ―acima das expectativas‖ os módulos, o conteúdo do curso, a carga horária, o desempenho das professoras e metodologia em 80 a 90% delas. O impacto negativo ficou por conta das instalações dos cursos, bem como o acesso ao mesmo. Isto porque as oficinas foram desenvolvidas em escolas municipais e estaduais, geralmente em péssimas condições estruturais, pelo medo da violência ao transitarem pelas ruas e, frequentes alagamentos, em alguns casos, como também devido à realização do curso em espaços improvisados por falta de parceria, em alguns locais. Em suas autoavaliações, essas mulheres consideraram ―boa‖ a sua integração com os colegas e com a equipe do projeto, assim como a sua compreensão dos conteúdos e habilidades desenvolvidas (mais de 60% e 55%, respectivamente, consideram ―dentro do esperado‖); e indicaram a relevância do curso por favorecer a sua atuação na comunidade, melhorar o relacionamento com a vizinhança e a família e, possibilitar o seu crescimento pessoal. Assim, aceitação da primeira etapa do curso foi superior a 90% entre as MPs. 106

Na avaliação qualitativa desenvolvida pelas MPs, no aspecto ―o que faltou ser tratado‖, prevaleceu um ressentimento com relação à falta de atividades práticas, associada à necessidade de entrar logo em ação, à falta de uma orientação sobre as visitas na comunidade e do tempo, ambos insuficientes para por os projetos em prática, principalmente para os encaminhamentos à delegacia da mulher. Numa das respostas, referindo-se à EM, uma MP afirma: ―elas não conhecem o que é discutido em sala de aula‖. Com isso, a Avante destacou a necessidade de maior acompanhamento da EM, portanto, a equipe responsável por essas atividades. No território de Simões Filho, foi realizada a capacitação em três turmas, com duas professoras. O curso foi ministrado no Centro Social Marta Medeiros, iniciado com 100 mulheres, das quais, 95 concluíram. O Centro Social passou por uma reforma, obrigando a desocupação das salas e a utilização de um quiosque para o desenvolvimento das atividades de capacitação, durante alguns meses. O calor contribuiu para agravar as condições já inadequadas das instalações, favorecendo a evasão e/ou ausências nas oficinas. No município de Camaçari, foram três turmas de capacitação, duas iniciadas em setembro de 2009 e uma em janeiro de 2010. Noventa e cinco (95) mulheres concluíram a capacitação. Analisando a motivação das participantes para a integração ao projeto, predominou a necessidade de complementação da renda familiar, pelo apoio financeiro que a bolsa proporcionara. No município de Lauro de Freitas, 100 mulheres foram selecionadas, divididas em 3 turmas, duas na localidade de Vida Nova e uma no bairro de Itinga, entretanto, apenas 73 mulheres chegaram a concluir o curso. As professoras reconheceram a evolução dos conhecimentos das mulheres, bem como na capacidade de formulação e exposição de opiniões, durante todo o curso. Novamente, a insatisfação por parte das mulheres foi direcionada à adequação das instalações, 70% reforçaram as críticas das professoras, nesse mesmo item. O acesso ao local do curso também ficou com índice abaixo das expectativas, para metade delas, 55 % das mulheres. Por fim, 64% das mulheres reclamaram da alimentação, que era distribuída diariamente. Em Salvador, o populoso bairro do Beiru

47

apresenta índice de violência alto,

justificando a escolha para o lançamento e início das atividades dos programas do 47

O bairro do Beiru/Tancredo Neves pertence à Bacia Hidrográfica do Rio das Pedras e compreende em sua história a existência de um antigo quilombo, no século XIX, na região que era chamada de Fazenda Beiru. O termo ―Beiru‖ decorre de um homem que fora escravizado à época, Gbeiru, que posteriormente recebera um lote

107

PRONASCI na região, do Programa Mulheres da Paz, com a presença de autoridades locais, estaduais e federais. As 6 turmas foram iniciadas em setembro de 2009, reunindo 205 mulheres, no total. Em duas turmas, as professoras apontaram dificuldades de relacionamento entre as mulheres e com a equipe do projeto. No bairro de São Cristóvão, 6 turmas foram formadas funcionando em escolas públicas. A primeira teve inicio em 13 de outubro e, a última iniciou o curso em 17 de novembro, 194 mulheres concluíram o curso. Na opinião das professoras, a maioria (60%) das mulheres não tiveram comportamentos e atitudes favoráveis aos relacionamentos interpessoais. Entretanto, as mulheres avaliaram muito bem a capacitação em todos os itens e, sua resposta à avaliação indica um aproveitamento dos conteúdos e habilidades, correspondente a 80%. Cabe mencionar que, segundo minhas próprias observações como facilitadora, se mostraram receptivas, mas tinham dificuldade de concentração, de expressar o pensamento e de participar das leituras e discussões. As lideranças presentes, que já atuavam na comunidade, foram imprescindíveis, pois fomentavam a participação das demais e faziam contribuições acerca do conhecimento da comunidade. As turmas da Escola Municipal Helena Mateus e do Colégio Estadual Tourinho Dantas

48

apresentaram mulheres com dificuldades de relacionamento com a equipe do

projeto, além de um grau alto de insatisfação referente às instalações das escolas. Na segunda escola, a reprovação chegou a 82%. Ainda na avaliação das professoras, as mulheres se mostravam inseguras, sem abertura para lidar com a diversidade, principalmente cultural e religiosa. Além disso, eram tímidas para expor suas ideias e seu potencial para atuarem na comunidade. Os conflitos eram frequentes entre os grupos. Uma professora expressou: ―Os problemas pessoais se sobrepõem aos debates, o que gerava muitos conflitos.‖, o que impedia o andamento dos trabalhos em grupo. No depoimento de uma MP, é possível notar como ela concebe a importância do curso em sua vida pessoal:

de terras doado pela família Silva Garcia. Dentre os principais equipamentos públicos, consta uma Delegacia de Policia, o Colégio Estadual Edvaldo Fernandes, a Escola Estadual Zumbi dos Palmares, e o Colégio Estadual Luís Eduardo Magalhães. A sua população corresponde a 45.279 habitantes (SANTOS et al, 2010). 48 A Escola Municipal Helena Matheus se constitui como uma instituição de Ensino Fundamental, com sede na Rua da Adutora no bairro de São Cristóvão. A partir de 2005, apresentou queda no Ideb - índice que mede a aprovação dos (as) estudantes associada à nota padronizada de português e matemática – que culminou, no ano de 2011, em 2,1. Assim, ficou abaixo do valor de referência, fixado em ―6‖, segundo o Portal Ideb. O Colégio Estadual José Augusto Tourinho Dantas, inaugurado em 1998, fica no Parque São Cristóvão. Trata-se de uma escola-modelo com área de 4 mil m² que, para manter a segurança de estudantes, professores (as) e funcionários (as), não permite, no período noturno, o ingresso dos primeiros nas salas de aula portando mochilas, sacola e sacos, segundo as informações extraídas do seu blog: < colegiojatd.blogspot.com.br>.

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Eu fico muito feliz de estar participando desse projeto Mulheres da Paz, hoje eu me sinto renovada, aprendi a entender as coisas de outras formas. Tenho muitos motivos para vim para o projeto, pois aprendido cada vez mais e com esse conhecimento posso passar para minha comunidade e minha família e ensinar os meus filhos a ser um homem da paz no coração, pois depois que eu entrei no projeto meu filho de 8 anos era muito desobediente e hoje é uma nova criança, por isso quero continuar no projeto conquistando mais coisas (São Cristóvão).

Resumidamente, a equipe Avante considerou que os conteúdos dados e a metodologia utilizada na formação permitiram que o aprendizado acontecesse de forma satisfatória, atendendo às metas do programa, assim como possibilitaram ―que uma atitude positiva, de esperança e otimismo em relação ao processo de transformação da comunidade fosse assumida pela grande maioria das mulheres‖. Destacou os conhecimentos adquiridos, principalmente sobre a legislação brasileira, através da absorção de direitos e deveres fundamentais para a vida em sociedade, relacionando os conhecimentos adquiridos à atuação das mulheres no bairro. A equipe mencionou as possibilidades criadas para transformação do comportamento individual no âmbito da família, dos grupos em que as mulheres estão inseridas e na ―comunidade‖, promovendo a disseminação de uma ―cultura de paz‖, ressaltando, contudo, os impedimentos encontrados ao longo da vida das pessoas nesses contextos sociais49.

2.4 Considerações metodológicas sobre o campo da pesquisa

A problemática sobre a qual se debruça esta pesquisa são os significados atribuídos à política pública de segurança no país por beneficiárias de programas sociais. Na análise, desenvolvo um estudo de caso sobre as Mulheres da Paz do bairro de São Cristóvão na cidade de Salvador, Bahia. O Projeto Mulheres da Paz foi uma iniciativa do PRONASCI, do 49

Todas as informações presentes neste subtópico foram extraídas do relatório final da Avante disponibilizado pela coordenação durante a entrevista.

109

Ministério da Justiça, que teve como objetivo o fortalecimento de redes sociais no combate à violência e à criminalidade, em que um dos eixos trabalhados foi o ―empoderamento‖ das mulheres, classificadas pelo Estado como em condições de ―vulnerabilidade social‖ e violência (PRONASCI, 2010). A população, através da mobilização social, chama a atenção para o recorrente afrouxamento da administração pública sobre questões sociais antigas do Brasil. Os problemas relativos ao estado de pobreza, por exemplo, agregam implicações nocivas ao exercício da cidadania, sem a efetivação de medidas de proteção e de assistência à população. Constatam-se tratamentos diversificados na oferta de serviços públicos, em muitos casos, perpassados pela discriminação social. As dimensões dos processos discriminatórios envolvem os aspectos correlacionados à raça, classe, idade/geração e, até mesmo, à ocupação profissional, entre outras. Além disso, o estado atual de violência extremada corrobora a falta de organização administrativa, que eleva os números do crime violento e demarca o país num estado endêmico. A violência urbana no país aumentou de acordo com os dados dos censos e do Datasus, de forma que, entre 1980 e 2000, considerando-se apenas os homens, a taxa de homicídios cresceu 134%. Assim, enquanto, em 1980, 21,2 a cada 100 mil homens morriam assassinados, em 2000 a proporção cresceu para 49,7 por 100 mil. Os homens jovens, de 15 a 24 anos, são os mais afetados. Em 2000, 95,6 a cada 100 mil homens dessa faixa de idade morreram, vítimas de homicídio, entre eles, os pobres, ao mesmo tempo, as principais vítimas e os principais agentes da situação de violência. Segundo o Ministério da Saúde, os homens apresentavam uma taxa de 47,7, notoriamente superior à das mulheres, de 3,9, deflagrando a diferença de gênero entre autores e vítimas de violência urbana. Entre 2000 e 2005, a região do Nordeste, aumentou o percentual das mortes masculinas por homicídio. Na Bahia, a alta foi em torno de 19 pontos percentuais, um aumento considerado expressivo diante da duplicação das taxas de mortalidade por homicídio de jovens (IBGE, 2009). Contudo, o secretário de segurança do estado, Maurício Teles Barbosa, afirmou que entre 2009 e 2010, houve queda de 16% nos índices de homicídios. A capital baiana seguiu a tendência de queda, com 13,5%, assim como a Região Metropolitana de Salvador (RMS), cuja redução foi de 8,2%. Ainda segundo o secretário, a redução das taxas de homicídio na Bahia é decorrência da implantação das diversas ações do governo para combater a criminalidade, com destaque para o programa Pacto pela Vida e para a criação do 110

Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). O DHPP seria responsável pelo aumento nos índices de ―elucidação‖ dos crimes, como divulga a Secretaria de Segurança Pública da Bahia (2011). A ênfase na repressão, como já foi discutida anteriormente, reforça o problema social ao qual se pretende sanar, visto que não transforma as relações sociais de forma efetiva. Algumas novidades surgiram no que se refere ao ―enfrentamento‖ ao crime violento com o PRONASCI. Planos e políticas classificadas como de ―gênero‖ e a inserção da comunidade como agentes sociais voluntários compõem algumas das suas ações, de forma a propor articulações para prevenir, controlar e reprimir a violência (BRASIL, 2007). Logo, o PRONASCI apresentou ações por via dos projetos Mulheres da Paz, Reservista-Cidadão, Proteção de Jovens em Território Vulnerável (Protejo), e o Bolsa-Formação. Articulou, para tanto, entidades federais, estaduais e municipais com a mobilização de mulheres e dos profissionais de segurança, no processo de sua efetivação. Notamos contribuições importantes de mulheres brasileiras na luta contra as desigualdades sociais. Vários movimentos se destacaram pelo país, como os feministas, os de mulheres negras e o das ―Mães de Acari‖, nos anos 1990. Estas últimas, unidas na busca por justiça, representaram a ação de mães de jovens vítimas de desaparecimento e morte, cujos suspeitos foram policiais militares do Rio de Janeiro. Trata-se de uma realidade social brasileira que serve como parâmetro para se pensar a complexidade do fenômeno da violência, recorrente nos bairros de periferia, assim como a intensidade da mobilização política das mulheres nesses contextos (ARAÚJO, 2007; FREITAS, 2002). O movimento das ―Mães de Acari‖ foi uma das inspirações para a criação do Projeto Mulheres da Paz pelo Governo Federal. Nesse sentido, o projeto previu o ―empoderamento‖ das mulheres nas áreas estabelecidas como seu foco territorial, através da construção e do fortalecimento de redes sociais de prevenção e ―enfrentamento‖ à violência urbana e de gênero no país. Logo, foi concebido para uma ação comunitária específica para as mulheres, dentro do que lhes é tradicionalmente estabelecido, com base nos padrões sociais de gênero. O investimento do governo nas lideranças comunitárias de mulheres é uma expressão da expectativa de seu bom desempenho no papel de pacificadoras nos conflitos proeminentes de suas ―comunidades‖. Trata-se, portanto, de uma reprodução do papel tradicional de gênero atribuído às mulheres, de mediação de conflitos e cuidado, fincando-as, portanto, nas relações conflituosas, como ―promotoras de paz‖. 111

2.4.1 O percurso

Quando finalizava o curso de Ciências Sociais, na Universidade Federal da Bahia, em 2009, fui selecionada, através de análise curricular, para compor o grupo de ―facilitadoras‖ do Projeto Mulheres da Paz, na Bahia. Em entrevista com a coordenadora pedagógica do projeto, foi mencionada, para o preenchimento do cargo, a importância da minha formação acadêmica, com a experiência de iniciação científica no Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, daquela universidade, bem como, as atividades voluntárias e pela universidade, que desenvolvi em bairros populares, também com mulheres. O projeto MP implicou em fomentar processos de ―empoderamento‖ nas mulheres beneficiárias em bairros considerados pelo governo como muito violentos. Deste modo, a coordenadora considerou positiva a minha aproximação com o debate e a política feminista, com os estudos sobre ―gênero‖ e ―violência de gênero‖, assim como a minha disponibilidade para o diálogo, identificada no momento da entrevista. Todos esses requisitos foram destacados, já que enfrentaria grupos de mulheres com demandas diversificadas, algumas conflituosas, com a possibilidade de reações hostis, a depender do meu posicionamento em sala de aula. Duas instituições executaram o projeto no estado da Bahia, entre 2009 e 2010: a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Combate à Pobreza (SEDES) e a ONG Avante. A SEDES foi responsável pela gestão e coordenação da Equipe Multidisciplinar (EM) para a formação do trabalho prático das participantes; enquanto que a ONG se responsabilizou pela consultoria e coordenação da Equipe Pedagógica (EP). A expectativa da coordenação pedagógica era que o trabalho transcorresse pacificamente, sendo importante que as facilitadoras mantivessem posturas de escuta, respeitando e considerando as vivências e valores das mulheres naqueles contextos, baseada na pedagogia de Paulo Freire (1987), que valoriza o conhecimento localizado. Na orientação para o nosso trabalho, a coordenação antecipou-nos acerca dos conflitos perpetrados pela intolerância religiosa nos grupos das mulheres e, dos conflitos provenientes do tráfico de drogas. Assim, reiterando a discrição nas nossas manifestações em sala de aula, sem, no entanto, deixarmos de tratar dos assuntos que eram tabus para o grupo, tais como a intolerância religiosa, a sexualidade e homossexualidade, o acompanhamento dos jovens em exposição à violência e a violência doméstica e familiar. 112

Na Bahia, foram contempladas pelo PRONASCI a cidade do Salvador e a Região Metropolitana compreendida por Camaçari, Simões Filho e Lauro de Freitas com o propósito de reunir um total de 700 mulheres beneficiárias pela política. A proposta de atuação para cada mulher foi o acompanhamento de 10 (dez) famílias, identificadas por elas como em situação de ―vulnerabilidade social‖, a serem encaminhadas aos programas sociais do estado, em seus bairros de residência (AVANTE, 2009). Em Salvador, foram selecionados os bairros de São Cristóvão e Beiru/Tancredo Neves, que totalizariam 400 mulheres beneficiárias. O bairro de São Cristóvão reuniu turmas que foram distribuídas nas seguintes escolas: Escola Estadual Helena Matheus, Escola Estadual Tourinho Dantas, Escola Municipal Barbosa Romeu e a Escola Municipal de São Cristóvão, o ―Colejão‖, agregando 200 mulheres no total. Coloquei-me em contato com 48 (quarenta e oito) destas beneficiárias no ―Colejão‖, assumindo duas turmas, Municipal I (com 33 mulheres) e II (com 15), pela manhã e pela tarde, respectivamente, durante o primeiro semestre do projeto, de 16 de novembro de 2009 a 01 de junho de 2010. As 48 (quarenta e oito) oficinas realizadas, para cada turma, apresentaram como eixos temáticos ―Relações Sociais e Direitos Humanos‖, ―Mediação de Conflitos e Cultura de Paz‖, ―Questões de Identidade‖ e ―Políticas Públicas‖. Concluímos a primeira etapa da formação em junho de 2010. Houve uma cerimônia de encerramento – Cerimônia de Certificação das Mulheres da Paz –, realizada em outubro do mesmo ano, na qual estive presente como convidada. A partir da finalização do curso, afastei-me das ―Mulheres da Paz‖, por conta da demanda do mestrado, mantendo contato com algumas delas por redes sociais e por telefone. Retornei o nosso contato em regime de parceria com a MP Rita, líder religiosa de uma congregação judaica e com duas integrantes da EM, Fátima – também moradora do bairro – e Amanda. No templo onde a MP Rita é liderança, funciona uma ONG, onde são ofertados vários cursos de formação para a população local. Neste espaço, o meu trabalho foi acompanhar jovens da região em atividades de dança, honrando um compromisso firmado com as mulheres, durante o processo de formação do Projeto Mulheres da Paz. Juntamente com Fátima e Amanda, mantive encontros com MPs das várias turmas de São Cristóvão. As reuniões eram realizadas no Centro Paroquial de São Cristóvão, em que eram discutidas ações e projetos e se desenvolviam atividades esportivas e de dança com o grupo. O trabalho foi voluntário e configurou uma tentativa minha de reaproximação com as pessoas em questão, antes de iniciar o estudo etnográfico e, posteriormente, optar pelo estudo de caso. Naquele momento, revi algumas MPs, ocasião em que sondei a possibilidade de reunir um grupo, com 113

o propósito de ser entrevistado para a presente pesquisa. Esses encontros foram concluídos em dezembro de 2012, com o intuito de manter o cronograma da pesquisa e disponibilizar um tempo para a análise dos dados. Busquei dados em três ambientes envolvidos diretamente com as ações da política destinada às mulheres do PRONASCI – as duas instituições executoras, SEDES e ONG Avante, bem como um dos bairros-focos da ação federal, o bairro de São Cristóvão. Selecionei 07 mulheres do bairro de São Cristóvão para compor o processo da construção dissertativa, representando um pequeno grupo das beneficiárias da política. Entre novembro de 2012 e abril de 2013, selecionei as MPs e as entrevistei no intuito de desenvolver a análise sistemática da pesquisa de mestrado. Houve mudanças no que se refere ao método empreendido para esta dissertação, decorrentes dos resultados dos meus encontros com elas no desenvolvimento do trabalho de campo. As condições onde se processaram os estudos implicaram em obstáculos para o desenvolvimento da pesquisa. Inicialmente,

pretendi

desenvolver

um

estudo

etnográfico

a

respeito

do

comportamento das beneficiárias no contexto específico de mediação de conflitos, como produto do referido processo formativo, desenvolvendo uma sistematização sobre os sentidos que as beneficiárias atribuíam à política. Entretanto, já transcorridas algumas incursões no bairro para o trabalho de campo, durante o contato com uma das primeiras MPs, Thaís, fui alertada de que não deveria ficar transitando pelo bairro, porque não seria seguro para mim. A minha presença no local poderia gerar desconfiança e interpretações equivocadas quanto aos objetivos entre traficantes da região, culminando em possíveis represálias. As lideranças do tráfico costumavam ser violentas quando se sentiam ameaçadas e não me aceitariam. Outro fator que influenciou na mudança de foco de pesquisa foi uma operação policial na região, à época, com a prisão de cinco traficantes e, posteriormente, o homicídio de um policial civil na porta de sua casa, ainda no bairro de São Cristóvão, como resposta à referida ação policial50. Um dos presos era filho de uma MP das turmas do Municipal, no ―Colejão‖, que, aqui, chamo de Carlota. Além disso, a MP Thaís e outras MPs como Lourdes, Marta e Dilma recomendaram que eu não entrevistasse ―outras‖ MPs, pensando nos riscos que eu correria, já que elas teriam algum tipo de envolvimento com o tráfico de drogas. Segundo me advertiu Thaís, a MP Márcia foi atacada a tesouradas por duas mulheres traficantes em outra 50

A ação policial de prisão dos traficantes, na ocasião, poderia estar relacionada ao fechamento de uma investigação da PC, que já ocorria desde o período de formação do projeto Mulheres da Paz. Uma MP mencionou para mim que havia um policial infiltrado entre um grupo de traficantes da região.

114

―comunidade‖, no mesmo bairro, por causa do seu envolvimento com lideranças rivais de traficantes. Logo, optei por desenvolver um estudo de caso, registrando e analisando os dados sobre o caso particular das mulheres beneficiárias da referida política pública na Bahia. As informações para o desenvolvimento do estudo foram reunidas e organizadas através do trabalho de campo, compreendendo qualquer informação documental, escrita, oral ou fotográfica. O caso constituiu, por um lado, unidade significativa suficiente para tecer críticas sobre como a intervenção estatal chega às mulheres em contextos de baixa renda; e por outro lado, serviu como um referencial para compreender as condições socioculturais complexas que envolvem vários aspectos da realidade evidenciada (CHIZZOTTI, 1991). Trago como recorte empírico as MPs selecionadas no bairro de São Cristóvão, participantes das turmas Municipal I e II do ―Colejão‖, além de uma participante de outra turma no bairro, as quais aceitaram participar da pesquisa. Para enriquecer os resultados do estudo, sem remeter à exaustão, privilegiei trajetórias individuais, com o fim de expor a ―normalidade‖ sem reduzir à sua particularidade, tornando acessível a compreensão dos fenômenos culturais relacionadas ao contexto em questão. As MPs têm realidades diversificadas entre si, porém compartilham um contexto social de violência cotidiana extremada que acomete os espaços sociais periféricos em todo o país (ZALUAR, 1985; ESPINHEIRA, 2004; 2008). Nestas populações, a imposição da problemática (violência) se torna mais perceptível à análise porque, segundo Lenoir (1998, p. 76), elas apresentam os problemas considerados sociais em duas faces – de ―caso social‖ e de ―problema de sociedade‖. A força da definição social das mulheres e de seus problemas está associada ao fato de que reúnem todas as formas de exclusão, são mulheres, pobres, negras, desempregadas e alijadas de seus direitos. Nesse sentido, o objeto social tem a problemática imposta, em meio a uma percepção social previamente construída em torno das mulheres (SAYAD, 1986 apud LENOIR, 1998). O problema social é construído socialmente, mas apresenta diferenças quanto aos seus princípios. Por um lado, envolve o reconhecimento de uma situação particular a ser considerada para análise, no intuito de atuar sobre a mesma; por outro lado, envolve a legitimação através da promoção do problema, a fim de que seja considerado relevante. Então, faz parte de uma série de ações de atores e atrizes políticos (as) que se mobilizam em torno de interesses considerados comuns, para sua inserção na pauta política. No caso das 115

mulheres, as reivindicações se dão de forma diversificada, as quais dependem do lugar de onde falam. Reivindicações feministas, geralmente, indicam pronunciamentos de mulheres que têm acesso aos meios públicos de comunicação e que advêm de classes sociais que lhes permitem falar a partir do acesso a informação e a instrumentos que lhes possibilitam refletir e refutar as suas condições de desvantagens sociais. Já outros grupos sociais de mulheres não dispõem de acesso a determinados instrumentos de revindicação. Com isso, representantes feministas ou representantes do Estado se lançam sobre tais espaços estigmatizados e discriminados, com formulações políticas prontas segundo os seus lugares de origem (CALDEIRA, 1987; LENOIR, 1998). Desconsideram, portanto, a fala de quem pode expressar as suas queixas e propostas de transformações de suas condições de desigualdade social – das mulheres de contextos periféricos e marginalizados. Levando em consideração que a constituição de um problema como ―problema social‖ é legitimado quando as instâncias estatais o reconhecem como tal, desenvolvo a pesquisa buscando os espaços de formulação dessas políticas, analisando as características dos (as) agentes envolvidos (as) e os discursos institucionais. As projeções das políticas sociais dependem desses agentes políticos, assim, de todo o contexto nos quais estão inseridos. A partir das transformações na vida cotidiana e consequente legitimação com elaborações públicas, culmina o processo de normalização das ações estatais (LENOIR, 1998). A minha hipótese é de que a atividade das mulheres beneficiárias da política de mediação de conflitos, proposta pelo programa federal PRONASCI, impingiu-lhes um ônus, primeiro, por causa da série de impedimentos que teriam enfrentado na execução das atividades; segundo, por causa do direcionamento do Estado para lidar com o fenômeno da violência no país, reunindo mulheres de contextos periféricos em formação de redes solidárias, sem, no entanto, disponibilizar uma rede de atenção e prestação de serviços à população em questão; como também, sem garantir processos reais de transformação de suas condições de marginalidade, dimensionados no conceito apresentado de ―empoderamento‖. Durante a pesquisa sistemática, tivemos encontros discretos e fechados por recomendações das MPs, dentro de suas casas ou no centro religioso judaico – que fica numa rua comercial com grande circulação de pessoas. Resolvi aceitar suas indicações, levando em consideração as atuações das MPs Rita, Thaís e Lourdes como lideranças comunitárias, a discrição e o respaldo que obtinham entre a vizinhança. Também considerei os frequentes 116

relatos pessoais acerca dos problemas do bairro que as MPs compartilhavam comigo, desde o período do curso de formação, consolidando, assim, a relação de confiança estabelecida entre nós ao longo do processo. Dessa forma, o estudo de caso, através de entrevista semiestruturada, mostrou-se mais seguro e, possibilitou certa liberdade para direcionar as situações abordadas, de forma a explorar amplamente as questões, a partir de perguntas abertas, num ambiente de conversação informal. Foi seguido um roteiro de tópicos específicos do problema apresentado, sem uma ordem rígida das questões propostas, de forma que novas questões surgiram no desenrolar do trabalho de campo, com a sondagem das razões, motivos e esclarecimentos necessários, sem obedecer a uma estrutura formal. A partir daí, foi possível desenvolver uma análise das atitudes e condutas das personagens da pesquisa, avaliando as conjeturas. A pesquisa enveredou-se para uma análise de como as mulheres beneficiárias traduzem a sua formação como Mulheres da Paz, refutando a condição em que o Estado as coloca, isto é, de ―vulnerabilidade social‖. Então, procurei identificar as lideranças de mulheres, e as não líderes, do bairro de São Cristóvão, que passaram pelo curso de formação do Projeto Mulheres da Paz; analisei as suas percepções sobre o Projeto Mulheres da Paz; além da análise sobre a apropriação da política pública por estas mulheres no contexto de violência. Com a realização do estudo, ambiciono discussões que criem novas possibilidades de formulação de políticas públicas para mulheres pobres, que fomentem, de fato, seu acesso aos direitos, à educação formal de qualidade, à entrada no mercado de trabalho e à sua organização e mobilização política. Então, a melhores oportunidades de desenvolvimento pessoal que lhes rendam saúde e bem-estar e processos para efetiva conquista de espaços de poder.

2.4.2 Material e fontes de pesquisa

O material de análise para esta dissertação apresenta variados momentos, desenvolvidos desde o primeiro contato com as MPs, em 2009, até junho deste ano. O corpo de dados compreende relatos em diários de campo; entrevistas transcritas com as MPs, com 117

coordenadoras da EM (SEDES) e coordenadora da EP (ONG Avante); material institucional fornecido pela coordenadora da EM, pela ONG Avante e por uma MP – relatório da EM, formulários, questionários aplicados às participantes do curso e às famílias em acompanhamento, material desenvolvido pelas MPs; material didático do curso; pesquisa documental envolvendo registros referentes às MPs; além de fotografias, panfletos e material informativo sobre as MPs e o seu campo de atuação.

2.4.3 A pesquisadora: representação do Estado e subversão

Representar o Estado como integrante da equipe de formadoras do projeto MP gerou conflitos pessoais, bem como alguns impasses entre mim e o grupo estabelecido. Fui ao encontro das duas turmas de São Cristóvão com metas de trabalho a serem cumpridas, mas acabei realizando adaptações nas propostas das atividades, segundo os meus princípios éticos e políticos. Determinadas vezes, posicionei-me de forma contrária à estrutura do programa, contudo, de um modo geral, procurando o respaldo da coordenação pedagógica. A partir desses impasses, passei a tomar nota dos nossos encontros, desenvolvendo diários de campo. Deparei-me com vários problemas que se instauravam nas aulas e fora delas. Primeiro, nas duas turmas havia forte segregação entre as mulheres participantes. Os embates por questões religiosas e diferenças no estilo de vida dificultavam o desenvolvimento das atividades e a meta de união e formação de uma rede de mulheres atuantes no bairro, através da mediação de conflitos. Num dos conflitos estabelecidos, por exemplo, coloquei-me em defesa da legitimidade do candomblé enquanto instituição religiosa. A minha postura de mediação entre essas diferenças religiosas, presentes no interior do grupo, permitiu a manifestação hostilizada de uma parte das participantes, que me julgou como adepta, isto é, ―de candomblé‖, portanto, uma mulher de baixa credibilidade para elas. Posteriormente, o clima ―hostil‖ foi, aos poucos, modificando-se. Em outro conflito, duas mulheres, no ―oitavo mês‖ de gestação, agrediram-se verbalmente, sendo necessária a nossa interferência para que as agressões não se tornassem físicas. A motivação para o desentendimento teria sido causada

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por desencontros em antigos relacionamentos amorosos, desde a época da adolescência, além do fato de uma delas ter envolvimento com pessoas do tráfico de drogas. Segundo, determinadas mulheres se defrontaram com dificuldades na leitura e realização dos trabalhos escritos, além da timidez e sentimento de baixa autoestima. Muitas recusavam a fazer as atividades de leitura e escrita ou as atividades que implicavam em sua exposição no grupo. Tais posturas provocaram outras cisões no grupo, devido à insatisfação de algumas sobre a falta de iniciativa das colegas. Esses problemas foram trazidos por algumas MPs nos momentos de intervalo e descanso. As mulheres que não tinham coragem de tornar público os seus problemas, como era comum no desenvolvimento das atividades, procuravam-me nos intervalos das aulas e até depois da oficina do dia. Algumas apareciam enquanto eu almoçava, na escola, para deixarem a sua queixa – sobre situação de violência doméstica sua ou de alguma colega, sobre abusos sexuais sofridos na infância por pais ou padrastos, sobre experiência de estupro por desconhecidos, situação de prisão de familiares, problemas com pensão alimentícia, situação de fome, assédio sexual, violência policial, brigas de vizinhos, conflitos entre colegas e entre as colegas e as instrutoras. Esse comportamento – de trazerem queixas para mim fora dos momentos da oficina – foi motivado pela fé na minha provável influência sobre ―o governo‖, de que eu como integrante do projeto poderia resolver os seus conflitos. Ao tomar conhecimento destes problemas, passei para a coordenação pedagógica no intuito de que a SEDES estabelecesse algum tipo de encaminhamento. Entretanto, a SEDES, ciente dos problemas, não tomou providências, visto que o ―empoderamento‖

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, na forma

como foi concebido pelo programa, não incluía o atendimento dessas demandas elencadas. Essas mulheres deveriam desconsiderar os seus problemas para acompanharem outras famílias em semelhantes condições de pobreza e consequentes dificuldades de acesso a direitos e serviços, já que o público-alvo do PRONASCI eram os jovens. Diante da falta de intervenção da SEDES frente aos problemas apresentados, questionei a minha participação no projeto, pois já não encontrava sentido na concepção de

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Conforme já especificado no primeiro capítulo, o conceito de ―empoderamento‖, a partir da concepção do PRONASCI, esteve voltado à constituição da autoestima do self feminino e na valorização da sua atuação junto à comunidade. Com as suas narrativas do self, essas mulheres construiriam identidades ―empoderadas‖, desta forma se adequando ao protagonismo social e à autotransformação (AVANTE, 2009; GOMES, SORJ, 2010). Aqui, assumo a análise desenvolvida por Iorio (2002) e Sardenberg (2006) que concebe ―empoderamento‖ como o poder de fazermos escolhas estratégicas, para que administremos as nossas vidas na gama das relações sociais e da expansão dos limites sociais estabelecidos. Trata-se de um processo que envolve (pré) condições de recursos para podermos escolher os nossos caminhos, a partir de ações e concretizações dentro das possibilidades postas.

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―empoderamento‖ representada pelo projeto Mulheres da Paz, como também percebia que eu estava fazendo parte de uma política que ia de encontro aos meus princípios políticos. Além disso, e mais importante, notei que essas mulheres estavam sendo despertadas para o conceito de cidadania, sem, no entanto, terem acesso ao seu exercício, como também estavam se apoderando do conceito, particularmente, voltadas para o cuidado da cidadania dos jovens, portanto, do outro, público-alvo principal da política. Inúmeras vezes, me angustiei por estar fazendo parte da política naqueles termos. Fiquei muito confusa porque sabia que aquelas mulheres estavam tendo acesso a uma série de conceitos que até então desconheciam, mas que não seriam beneficiadas, de fato, com a nova experiência. Numa situação particular, quando discutíamos violência doméstica e familiar e direitos das mulheres, voltei angustiada das oficinas com os seus relatos, em virtude da possibilidade daquelas mulheres, munidas de novo conhecimento sobre os seus direitos em relação aos cônjuges, reclamarem diante deles. Algumas poderiam alcançar o respeito dos parceiros, mas outras poderiam sofrer novas agressões, sem nenhuma assistência. Então, pensei no paradoxo que envolvia a minha posição diante delas: eu, na condição de instrutora, informava-as, mas sabia que não havia uma rede de atendimento, nem de assistência social voltada para elas, nem políticas efetivas para que saíssem da situação de violência (OBSERVE, 2010; 2011) que lhes garantisse proteção social. Daí, a importância da minha continuação, agora, assumindo o meu posicionamento de crítica à política, assumindo a minha condição de trabalho diante delas e buscando o apoio da EP que me coordenava. Eu, na condição de mulher negra, feminista, da classe trabalhadora, vali-me destas posições para levá-las a refletir sobre o lugar que lhes foi designado com a política do PRONASCI. Neste sentido, optei por continuar o trabalho trazendo às mulheres a orientação contrária à proposta principal do PRONASCI, de encaminhamento de jovens em situação de envolvimento com o crime violento. No lugar de mapear as famílias em que se encontravam jovens nessas condições, orientei-as a buscarem as famílias com conflitos mais simples, em que havia problemas ligados a questões de saúde, de documentações pessoais, de inserção no programa Bolsa-Família, etc. Elencadas tais angústias iniciais, defendo que a política colaborou para o fortalecimento de vínculos somente entre alguns grupos de mulheres, entretanto, mais detalhes, inclusive sobre a atividade de acompanhamento das famílias mapeadas pelas MPs, serão vistos no capítulo III. Percebi que as dinâmicas de grupo de incitação à formação de uma rede solidária entre as participantes não estavam surtindo efeito. Além disso, as participantes encontraram alguns entraves para a continuidade no curso, os quais provocaram, para algumas delas, a sua 120

desistência, mesmo a contragosto. Então, baseada nas situações de impedimento para o desenvolvimento dos trabalhos, eu desenvolvi com as duas turmas atividades que estavam fora do programa, mas que foram aceitas e apreciadas pela coordenação pedagógica e, por algumas coordenadoras da EM. Destaco duas delas, atreladas entre si: a atividade de leitura coletiva de uma obra literária específica e a atividade de escrita em diário pessoal. A atividade de leitura coletiva do livro Quarto de Despejo - Diário de uma Favelada, de Carolina de Jesus, foi motivada pela aproximação que estabeleci entre as mulheres em atividade de formação e a referida escritora. As leituras eram feitas ao final das oficinas, à medida em que concluíamos as atividades do dia, muitas vezes, a pedido das participantes, ou quando eu preferia trocar alguma atividade da programação que eu não julgava pertinente para a ocasião. Pretendi com a leitura do livro que elas encontrassem um referencial feminino de resistência que se aproximasse do seu contexto, de forma que aguçasse o interesse pela leitura, pela participação política, pelas trocas em sala de aula e, portanto, pela mobilização para a saída de sua condição de pobreza. Cabe ressaltar que elas se identificaram com a autora desde a primeira leitura que fizemos em sala de aula. As mulheres quiseram adquirir o livro, algumas manifestaram o interesse em comprá-lo, outras em ganhá-lo. Estas últimas colocaram-me na obrigação de presenteá-las, pois julgaram que eu teria ―condição‖ de fazê-lo, já que ―representava o governo‖ naquele momento. As MPs me viam como uma possibilidade de resolução de seus conflitos e me esgotavam com pedidos de indicações para trabalhos, na maioria como doméstica, assim também com pedidos de ajuda – indicando forte interesse por acompanhamento psicológico, pois acreditavam que seus conflitos poderiam ser resolvidos dessa forma. A segunda atividade que apresentei foi a escrita em diários, com base no trabalho da mesma autora, Carolina de Jesus. Propus à turma que escrevesse em diários sobre a sua vida cotidiana ou sobre um tema que lhes interessasse, com o objetivo de exercitarem a comunicação e a escrita. De forma específica, desenvolvi essas atividades mediante a demanda daquelas mulheres por exporem suas queixas e sentimentos, que não conseguiam fazer verbalmente. Todavia, suspeitei que outras delas também sentissem a mesma necessidade, embora não a expusessem por conta de inibição, entre outras razões. Eu lhes dei retorno com comentários sobre os seus trabalhos, configurando uma forma de me aproximar delas, de fazê-las participarem das atividades de outras maneiras, atingindo metas do curso de formação. Saliento a existência de muitas mulheres que passaram por traumas, como assassinato de filho por traficantes, espancamento de filho por policiais, violência doméstica, 121

estupro, dentre outras situações de violência que deveriam ter sido melhor tratadas pelas políticas do Estado. A partir dos trabalhos recebidos, identifiquei situações de pobreza que poderiam criar obstáculos para a sua participação nas atividades. De que forma essas mulheres iriam retirar ―os meninos‖

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do tráfico sem ter o que oferecer substancialmente a eles, sem alternativas

mais sedutoras ou promissoras para eles? Este questionamento surgiu de algumas participantes, durante o período de formação. As dificuldades de algumas mulheres em acompanhar a execução do trabalho me chamaram a atenção, despertando o meu interesse em sistematizar um estudo aprofundado sobre o grupo. Escrevi sobre as atividades desenvolvidas durante as oficinas, sobre os conflitos que se estabeleciam dentro do grupo, sobre as dificuldades que encontrávamos no decorrer dos nossos encontros, sobre as queixas das mulheres tanto colocadas em sala de aula como feitas pessoalmente, nos intervalos das aulas, bem como sobre as nossas conquistas. A partir das aulas e do atendimento que eu oferecia às participantes nos intervalos e nos meus horários de almoço – mediante necessidade que tinham de expor problemas pessoais que afetavam negativamente a sua participação no curso – permiti-me levantar questões sobre uma realidade que se apresentava bastante complexa.

2.4.4 Outras questões metodológicas

A agência das pessoas estudadas transforma todo o projeto de produção de teoria social, visto que os resultados da pesquisa recebem interferência dos diferentes saberes envolvidos. De um lado, a minha condição de pesquisadora, que me permite agir e pensar, segundo valores e conhecimentos relacionados à minha condição de mulher negra, estudante universitária em pós-graduação, na sociedade na qual me relaciono; de outro lado, as mulheres beneficiárias da política pública, que trazem também outras categorias de identificação – sem contar com os demais agentes envolvidos. Ambos apresentam respostas 52

As mulheres da paz se referiam aos jovens e adolescentes envolvidos no tráfico como ―os meninos‖. Eram seus vizinhos e/ou tinham algum grau de parentesco com eles.

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dotadas de verdades sobre aquele contexto no qual sou estrangeira. O saber, seja científico ou não, tem base cultural e social. De acordo com Lowy (2000), é possível desenvolver uma análise científica que inclua o ponto de vista dos grupos excluídos. Com isso, abro a possibilidade para as queixas do grupo das mulheres, visando à realização das suas potencialidades nas condições de sofrimento e de privação. É a partir da exposição dos seus pontos de vistas que poderemos pensar em transformação das condições que dificultam alguns processos de crescimento pessoal e profissional. Destarte, a posição de excluída é reveladora de valores positivos e potencialidades que são, infimamente, ou quase nada, explorados, criando impedimentos à exploração de espaços de poder e saber. Ter sido ―facilitadora‖ do curso de formação marcou a minha imagem para as MPs de forma diferenciada, como já foi mencionado anteriormente. Ao mesmo tempo, a minha imagem foi associada tanto à de integrante do Estado, como à de pertencente de um lugar mais próximo ao delas, como elas mesmas afirmavam, de ―povão‖. ―Ah! Pró, você é povão!‖, – afirmaram Lourdes e Dilma em ocasiões distintas, numa das oficinas e na entrevista, respectivamente. Essas duas condições circundaram os nossos encontros para o desenvolvimento das entrevistas, trazendo-me resultados um tanto distintos entre si. Para as que me viam como representante do Estado, para além do trabalho de pesquisa a ser publicado, identificavam em mim possibilidades, mesmo que remotas, de um trabalho, ou de uma medida assistencialista, dada a minha possível influência ou articulação no mercado de trabalho e nas instâncias do governo; ou, simplesmente, eu representava possíveis represálias – ainda enquanto Estado – a determinados tipos de condutas ou posicionamentos que viessem a ter. Tomo estas tensões como parâmetro para a análise, sugerindo que algumas respostas às minhas investidas, durante as entrevistas, foram largamente influenciadas por estes pontos de vista sobre a minha atividade anterior no bairro, durante o Projeto Mulheres da Paz.

2.4.5 Os saberes situados e a questão da objetividade

Quando consideramos a agência das pessoas estudadas podemos evitar conhecimentos equivocados. As explicações de um mundo "real" dependem da relação social entre pessoas 123

que se aproximam e se afastam de acordo com os elementos que as façam convergir ou divergir no processo interativo. Portanto, as trocas que se estabelecem no processo da pesquisa social revelam conversas perpassadas pelas tensões presentes nos conflitos de interesse, como também pelas relações de poder. As (os) agentes de conhecimento 53 formam um eixo ativo, geram ―significado‖ e ―aparato da produção corporal‖. O seu poder gerativo têm sua base nas fronteiras sociais, a todo o tempo. É assim que me aproximo de Haraway (1995, p. 40), quando defende o conhecimento situado e corporificado, longe de pensar nas perspectivas dos grupos excluídos como distantes de posicionamento político. O projeto de ciência feminista implica numa relação crítica e reflexiva com o mundo, em relação a nós mesmas e às práticas de desigualdade de privilégio e opressão presentes nas diversas posições sociais. Nesse sentido, a objetividade compreende saberes localizados, ou situados, (HARAWAY, 1995), que dizem respeito à corporificação específica e particular dos agentes envolvidos nos grupos sociais. Os saberes situados se apoiam na possibilidade das redes de conexão solidária e de conversas compartilhadas entre os (as) agentes. Assim, apenas a perspectiva parcial alcança a objetividade que, para feministas, compreende a localização limitada e o conhecimento localizado, de forma que passamos a nos responsabilizar pelo que interpretamos. A objetividade é racionalidade posicionada, ―um estruturar mútuo e comumente desigual‖, em que assumimos os riscos da impossibilidade do controle das coisas ―reais‖ (HARAWAY, 1995, p. 41). As respostas das mulheres entrevistadas se diversificavam à medida que se estabeleciam os seus julgamentos sobre o meu trabalho desenvolvido anteriormente em São Cristóvão. Se, por um lado, a passada experiência facilitou o meu acesso a elas e o desenvolvimento dos nossos diálogos, por outro lado, permitiu a ocorrência de algumas suspeitas no grupo das MPs. No desenvolvimento de uma entrevista, a MP Diana não quis expor as dificuldades enfrentadas no trabalho proposto durante a atividade de acompanhamento do projeto federal, nem os problemas existentes no bairro – visto que em seu imaginário eu era a integrante da equipe do governo a colher informações sobre ela e sobre o bairro em que residia – e contra eles – para o Estado; já em outras entrevistas, algumas expuseram várias questões em tom de denúncia, com a finalidade de tornar públicos todos os problemas enfrentados, ou ainda, almejando algum direcionamento meu no sentido de providenciar medidas assistenciais. Em outras manifestações, prevaleceram por parte das mulheres os sentimentos de medo, representando os valores locais em que o silêncio mantém a integridade das pessoas (ESPINHEIRA, 2002, 53

Haraway (1995, p. 40) desenvolve a sua argumentação a partir do constructo ―objeto de conhecimento‖.

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2008; ZALUAR, 1985); como também prevaleceram os valores de amizade, confiança e desejo de transformações das condições vivenciadas. A importância em buscar as perspectivas dos grupos excluídos, como afirma Haraway (1995), está em pensarmos sobre as realidades que foram (são) desconhecidas até então. Um olhar posicionado, de algum lugar em particular, nos fornece outras explicações que podem ser mais apropriadas e objetivas, portanto, transformadoras do mundo. Dessa forma, poderemos seguir para um caminho de consolidação de uma sociedade mais distante dos eixos de dominação. O posicionamento crítico se traduz em objetividade porque constitui a base do conhecimento organizado, político e ético. De acordo com a autora (idem, p. 30-32), argumento a favor de políticas e epistemologia ―de alocação, posicionamento e situação‖, nas quais a parcialidade é a condição de ser ouvido nas propostas a se fazer para o conhecimento racional. Os meus conceitos passaram por novas interpretações, ao passo em que estabelecíamos as trocas. As ―comunidades de pensamento‖ distintas estiveram em contato permanente, e os conceitos e práticas circularam continuamente entre ―estilos de pensamento‖ também distintos. Esses elementos se tornam indispensáveis à tradução interpretativa, crítica e parcial (LOWY, 2000, p. 34). A tradução, aqui, é entendida como ―imperfeita‖, criadora e inovadora, dado o processo de interação entre a pesquisadora e as demais envolvidas na pesquisa. O processo de interação na busca pela compreensão sobre outros grupos, considerando os posicionamentos políticos, enriquece o nosso entendimento do mundo (idem). Assumir a tradução parcial de outro modo de pensamento implica também em questionarmos as nossas próprias certezas, favorecendo o desenvolvimento de um estudo científico mais produtivo – juntamente com a abertura para as potencialidades inexploradas de grupos excluídos bem como de seus diferentes pontos de vista. Para o desenvolvimento do trabalho científico (e político), cabe a interpretação e a tradução – em que uma apoia a outra – do parcialmente compreendido, ―com as ciências dos sujeitos múltiplos‖, ―com uma visão crítica, consequentemente, com um posicionamento crítico num espaço social não homogêneo e marcado pelo gênero‖, pela raça, classe, status social, geração, ocupação profissional, orientação sexual, etc. Posição não é algo estático, mas envolve ―[...] redes de posicionamentos diferenciais‖ e, a partir daí, encontramos uma epistemologia e política de posições engajadas que têm como objetivo a cientificidade (idem, p. 32). 125

Os estudos de gênero, de raça, de classe, são ilustrativos do desenvolvimento de uma ciência embasada nas desigualdades sociais. Tais estudos se originaram nos movimentos sociais – feminista, negro, etc. – centrados nos problemas de dominação e de exclusão nos quais as mulheres, particularmente, as negras, se encontravam em desvantagem social. A transversalidade de gênero nos estudos científicos, por sua vez, alavancou a produção de conhecimentos parciais e situados, ―inscritos na ação e nas redes densas de interações‖ (LOWY, 2000, p. 37). Tomando a questão do presente trabalho de pesquisa, a atuação do Estado através do Projeto Mulheres da Paz, considero que o mesmo deslocou essa raiz questionadora e transformadora do constructo ―gênero‖, propondo uma política para mulheres, no entanto, classificando-a como ―de gênero‖, ao fixar o lugar das mulheres (especificamente, as negras) como responsáveis pelo cuidado e mediação dos conflitos urbanos. Longe de posturas deterministas, o saber situado dos grupos excluídos, nos quais me identifico como mulher negra que pretende alcançar o ―status de sujeito do saber‖, produzo uma ciência que agrega angústias, ―a paixão, a crítica, a contestação, a solidariedade e a responsabilidade‖, fazendo notar a historicidade do saber científico, a ―ebulição de práticas situadas‖ e os estudos de gênero e raça, questionando a objetividade e a universalidade dos conhecimentos produzidos pelos grupos de elite (LOWY, 2000, p. 37-38). As informações são construídas no processo interativo da pesquisa. Neste trabalho de pesquisa, as mulheres se apresentam como pessoas em estudo, capazes de tecerem observações cruciais a respeito de suas ações cotidianas. O trabalho sobre as experiências das mulheres, a partir de seus próprios pontos de vista, é importante para a compreensão de processos sociais mais amplos, como também para que elas reconstruam suas histórias. É fundamental permitir que as mulheres expressem suas queixas e análises (SCOTT, 1993; SALEM, 1978) visto que, ao remontarem suas trajetórias, terão considerado tanto suas observações, quanto suas interpretações a respeito de processos que atravessaram. Tais observações podem ser consideradas como fontes primárias para conhecer experiências situadas. As experiências abrem caminhos para interpretações da realidade de uma cultura codificada pelos demarcadores sociais. Daí, a relevância da discussão das escolhas e estratégias seguidas por essas mulheres, a partir da sua própria reconstrução dos eventos dentro do contexto específico (PISCITELLI, 1989). Na sua proposta de ciência interpretativa 126

à procura de significados, Geertz (1978, p. 15) insere ―todos‖ os fenômenos sociais como sistemas de significações os quais se prendem às pessoas. A cultura – considerada como ―teias de significações‖ tecidas pelos sujeitos – é pública e se insere num contexto específico, passível de ser captado e compreensível. De forma que permita pensar as estratégias, em cada grupo, dentro da cultura local, passando por seus ideais e pensando sobre as pautas que compõem o centro de suas narrativas, considerando os diferentes lugares ocupados em sua vida cotidiana, sobre interações, conflitos, perdas e ganhos. Neste caso, a abordagem qualitativa de caráter descritivo-analítico, viabilizada pelo estudo de caso sobre as Mulheres da Paz de São Cristóvão, passa por um enquadramento social, político e histórico do comportamento humano no referido contexto. Assim, considero pertinente a estruturação proposta por Fonseca (1999, p. 66), que define cinco momentos para o trabalho de pesquisa

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, assim dividido: ―estranhamento‖ em campo; ―esquematização dos

dados empíricos‖; ―desconstrução de estereótipos preconcebidos‖; ―comparação‖ com casos análogos extraídos da literatura sobre o assunto em questão; e ―sistematização do material em modelos alternativos‖. No movimento interpretativo, as particularidades são necessárias para aprofundar a análise e para evitar simplificações rasteiras da realidade. A presente análise é desenvolvida em torno do conhecimento situado e corporificado, e ainda, assumindo as perspectivas dos grupos excluídos como dotados de posicionamento político. Assim considerado, no próximo capítulo, serão discutidas realidades que se referem à violência no bairro de São Cristóvão, apontadas pelas MPs. Sob alguns aspectos, realidades essas que se mantiveram desconhecidas até então.

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Fonseca (1999) desenvolve o seu modelo de trabalho de campo para o estudo etnográfico.

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3 A violência em São Cristóvão

Neste capítulo, apresento, inicialmente, a história do bairro de São Cristóvão, a partir de dados de pesquisas anteriormente realizadas, bem como de dados apresentados pelas Mulheres da Paz moradoras da região. Em seguida, analiso os conflitos existentes no cotidiano das moradoras que influenciaram negativamente na realização das suas atividades, exigidas pelo Projeto Mulheres da Paz, como também as formas como os enfrentaram. No segundo tópico, passo para o detalhamento das MPs e do local onde realizaram a formação para alcançar, então, as dificuldades para o desempenho da mediação de conflitos. Por último, indico como estas MPs vislumbraram os processos de transformação de suas vidas, dado o contexto de pobreza.

3.1 O bairro São Cristóvão

Na cidade do Salvador, convergem como problema social a pobreza urbana, a degradação ambiental, a violência e a corrupção. Nessas condições, outras questões são desencadeadas, produzindo mais precariedade na qualidade de vida e luta por acesso à terra e aos serviços públicos urbanos, especificamente nas regiões periféricas onde reside grande parte da população pobre soteropolitana. Os bairros são dispostos de forma desigual e desordenada, com constantes ocupações pela população de áreas desabitadas, proibidas e geralmente com risco de desabamentos de encostas. Além disso, os grupos marginalizados pela sociedade e classe política enfrentam o convívio cotidiano com o esgoto a céu aberto, com as perdas patrimoniais e de bens reunidos ao longo de suas vidas, por vezes, ocasionados por alagamento e desabamentos, em decorrência da falta de planejamento urbano e crescimento desordenado da população. Ao todo, 160 bairros delimitam a área municipal da capital baiana, segundo estudo realizado pela UFBA e SEMA recentemente (SANTOS et al, 2010). A pesquisa empreendida 128

delimitou as bacias hidrográficas da região (ao todo doze bacias), agrupando os bairros de entorno, no intuito de criar indicadores a respeito da qualidade das águas e sobre o acesso aos serviços públicos de saneamento ambiental. Para tanto, adotou um conceito de bairro, ligado às relações socioambientais, assim descrito:

Uma unidade territorial, com densidade histórica e relativa autonomia no contexto urbano-ambiental, que incorpora as noções de identidade e pertencimento dos moradores que o constituem; que utilizam os mesmos equipamentos e serviços comunitários; que mantêm relações de vizinhança e que reconhecem seus limites pelo mesmo nome. (SANTOS et al, 2010, p. 8).

Com os conceitos de pertencimento e de identidade tomados para relacionar moradores (as) aos bairros, é possível determinar mais alguns critérios específicos de delimitação. Assim, um bairro se constitui com a presença de unidade (s) de saúde, seja pública, privada ou comunitária; de unidade (s) de Ensino Fundamental II; de logradouro devidamente categorizado pela Prefeitura Municipal de Salvador; além da existência de transporte público regulamentado. Seria preciso reunir pelo menos três destes elementos para delimitar um bairro (SANTOS et al, 2010). Adoto o mesmo conceito de bairro, cujos elementos articulam dados reunidos de entidades civis, elementos censitários e da subjetividade de moradores (as). Nesses termos, na Bacia Hidrográfica do Rio Ipitanga, encontra-se o bairro de São Cristóvão, ao lado de outros 14 (catorze), estabelecendo fronteiras com vários bairros, tais como Aeroporto, Cassange, Jardim das Margaridas e Mussurunga, nas proximidades com o município de Lauro de Freitas. Nessa bacia, os bairros são parcialmente atendidos pelo Sistema de Esgotamento Sanitário de Salvador, devido à baixa densidade da rede coletora e ao afastamento dos núcleos urbanos distantes entre si. Segundo o estudo realizado, foram executadas ―obras de adensamento da rede coletora de esgotamento sanitário e ligações intradomiciliares nos bairros de São Cristóvão e Jardim das Margaridas,‖ para garantir melhor qualidade ambiental (SANTOS et al, 2010, p. 317). A partir destes dados iniciais, no subtópico em seguida, serão dispostos os elementos que fazem parte da história do bairro de São Cristóvão, bem como de seu desenvolvimento. 129

Em virtude de ser um dos locais de execução do Projeto Mulheres da Paz em Salvador-BA e configurar o foco de estudo empreendido na presente pesquisa, passo para a contextualização deste local que abriga grande número e variedade de pessoas e vem se desenvolvendo ao longo das últimas décadas. No entanto, sem contar com um planejamento de instituições públicas que deem conta das suas crescentes demandas, visto que recebe raras políticas públicas, de cunho emergencial, pouco efetivas no que se refere a conter o processo de marginalidade no qual se encontra o bairro.

3.1.1 História e características

Durante a 2ª Guerra Mundial, na primeira metade da década de 1940, foi construída na cidade do Salvador uma estrada para que as forças aliadas dinamizassem o trânsito entre duas bases nacionais – a base aérea posicionada na região onde, hoje, é o Aeroporto e, a base naval de São Tomé de Paripe. Depois de um tempo, a região ficou conhecida como Estrada Velha do Aeroporto, ou ainda ―Pista da Morte‖, devido à curva em formato de ―U‖, que oferecia perigo aos que por ali passavam. Atualmente, é a Avenida Aliomar Baleeiro e, entre outras atividades, é ponto de desova de cadáveres. No início da década de 1950, só havia essa rua principal, numa área rural com muitas árvores frutíferas, distribuídas ao longo das fazendas cercadas, pequenas casas de taipa no entorno, demarcando uma área bem menor da atualmente conhecida. A MP Zeferina (63 anos e líder comunitária), que mora na região desde o primeiro ano de idade, recorda-se de duas dessas fazendas, uma de propriedade de um homem identificado como Dr. Osório, outra pertencente à família Cachoeira. O surgimento do bairro, bem como o seu desenvolvimento, é associado ao loteamento desta última fazenda, Cachoeira, e à construção do Aeroporto de Salvador (SANTOS et al, 2010). O bairro já recebeu o nome de ―Cascalheira‖, devido ao grande número de cascalho existente na região, porém, por volta de 1970, em 25 de julho, passaram a comemorar o Dia de São Cristóvão, mobilizando a comunidade em torno da Festa Popular. Atualmente, a missão religiosa católica em homenagem a São Cristóvão dá nome ao bairro.

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Os primeiros moradores foram os fazendeiros e empregados (as) vindos de outros estados. Os proprietários das fazendas traziam os (as) trabalhadores (as) e lhes davam um pedaço de terra; estes, por sua vez, trouxeram seus parentes, que também receberam uma pequena faixa do loteamento. Havia também os empregados que compravam ou invadiam as áreas para construírem suas moradias, conta a MP Lourdes (45 anos e líder comunitária), acrescentando que a avó também comprou a sua casa, na condição de empregada. Ao longo das fazendas, em torno de 10 (dez) famílias se espalharam nas casas de ―supapo‖ feitas com ―claretas‖, palhas de oricuri e barro, ambos retirados do matagal pelos próprios moradores. Zeferina relata: ―a gente amarrava as claretas e as palhas num quadrado para pôr o bolo de barro [...] eu levantei foi muita casa!‖. Essa população tinha vida pacata, entretanto, enfrentava condições de pobreza, sem luz elétrica, nem água encanada. O asfalto se restringia à pista principal. Entretanto, mesmo diante das dificuldades, os moradores fundaram uma igreja, a Assembleia de Deus, da qual os pais de Zeferina e a maioria da população residente fizeram parte por muitos anos. A condição de pobreza também afetava a vida estudantil das jovens que queriam mudar a sua realidade. Não havia escola no povoado, apenas no bairro de Itapuã ou em Santo Amaro de Ipitanga (atual Lauro de Freitas). A opção para a conclusão do antigo ginásio ficava em Santo Amaro de Ipitanga, portanto, distante do pequeno povoado. As (os) jovens não tinham dinheiro para utilizar o transporte até a instituição de ensino, então faziam longas caminhadas, como afirma Zeferina, recordando dos seus 15 ou 16 anos de idade, já em meados da década de 1960. Logo, umas das saídas para a conclusão dos estudos, para quem não queria percorrer a distância até a escola, era trabalhar em casa de famílias com melhores condições financeiras, residentes no local, ou ainda dar banca às crianças do povoado. Essa era uma das razões para que moradores (as) do bairro se identificassem mais com o distrito de Santo Amaro de Ipitanga55, do que com a cidade de Salvador – já que o acesso aos serviços era mais facilitado no distrito. Após alguns anos, as primeiras escolas começaram a ser fundadas – o Colégio Estadual Visconde de Mauá, o Municipal Brigadeiro Eduardo Gomes e o Estadual Pedro Veloso. Em meados da década de 1960, o povoamento de São Cristóvão foi aumentando com a chegada de grupos de pessoas, oriundos de invasões e processos de desapropriação de áreas invadidas em outras áreas da cidade. Nesse bojo, o Governador Lomanto Júnior (1963-1967) 55

Em 1962, o distrito de Santo Amaro de Ipitanga emancipou-se de Salvador, transformado no município de Lauro de Freitas. Após onze anos, passou a integrar a Região Metropolitana de Salvador, juntamente com Camaçari e Simões Filho.

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desapropriou casas, a maioria da favela de Alagados, de uma área de propriedade do Estado, ocupadas ilegalmente. Essa população vivia em péssimas condições de vida, morando em casas de palafitas em situação de extrema pobreza (SANTOS, 2005; JOSÉ, SCHUTTE, 2008). A intervenção do governo da Bahia garantiu, temporariamente, a essa população, o seu alojamento num campo de futebol do bairro de destino, São Cristóvão, embaixo de uma lona improvisada, perto de onde seriam erguidas as casas. Essa medida foi tomada porque as casas ainda não haviam ficado prontas, na ocasião de desapropriação. As casas foram erguidas pela Construtora Lessa Ribeiro, que instalou uma sede no Parque São Cristóvão para a construção de todo o material que as ergueria. Assim, foram produzidas as placas de concreto que dariam forma à estrutura de habitação desses moradores. As áreas das casas variavam de tamanho, conforme a necessidade de cada família, desse modo, as casas continham um quarto, sala, banheiro e um quintal cuja área dava para erguer até mais duas casas. Lourdes relata que a região passou a ―ficar visada‖, portanto, passou a ser alvo de invasões, que totalizaram quatro, em períodos distintos. Logo após a entrega das casas aos novos moradores, ocorreu a primeira invasão. Já em 1979, em virtude da transferência da sede do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, do Pelourinho para o Vale dos Barris, ou Curva Grande, as pessoas que residiam no local também foram remanejadas para São Cristóvão (DPT, 2013). Zeferina afirma também que, mais adiante, moradores do bairro Nordeste de Amaralina também tiveram suas casas desapropriadas e foram mandados para São Cristóvão, mediante pagamento de indenização do governo, num valor muito baixo. Três anos depois, o governo enviou para o bairro mais famílias, que haviam invadido um antigo prédio na região do STIEP, para o local onde hoje é conhecido como Conjunto União Paraíso, em São Cristóvão. Lourdes e Zeferina afirmam que São Cristóvão começou a crescer nesse contexto, a partir da década de 1980, juntamente com o comércio – que crescia aceleradamente. Na Rua Aliomar Baleeiro, por exemplo, o comércio é tão forte que chega a ocupar quase 50% da área. Nesse momento, ocorreram novas invasões. Sobre a segunda invasão, ocorrida em torno de 1985, não obtive mais informações a respeito; a terceira recebe o nome de Bela Vista e aconteceu no final da mesma década, na área de uma chácara antiga, de posse do Capelão da Base Aérea; a quarta invasão, a Yolanda Pires, instalou-se nos arredores de uma chácara de golfe e vôlei, que músicos e jogadores frequentavam até mais ou menos os anos de 1994. Depois, o governo de Waldir Pires (1987-1989) construiu um prédio para alojar essas pessoas, nomeando a localidade como Yolanda Pires, em homenagem a, então, Primeira Dama, que 132

teria intervido no processo, em favor desses moradores. Yolanda Pires se manteve atuante ao lado das lideranças do bairro de São Cristóvão, e foi fundamental no envio de alguns projetos de melhorias assistenciais para a região, na época, conforme relatam Zeferina e Lourdes. À medida em que o bairro foi se desenvolvendo, cresceram também os problemas, sem a devida atenção das gestões municipais sucedidas. Por causa do racismo, por exemplo, o setor de prestação de serviços e atendimento ao público não absorvia a força do trabalho de pessoas negras. Nesse sentido, Zeferina, que tinha formação em contabilidade e acumulava experiência na área de educação pelo projeto Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), relata sobre as dificuldades de as mulheres negras serem empregadas no mercado de trabalho. Particularmente, apresenta detalhes sobre a sua experiência na seleção para trabalhar no restaurante do Aeroporto – o setor não contratava pessoas negras para trabalhar no atendimento ao público:

[...] vim me inscrever pra trabalhar no Aeroporto... Em 72. Naquele tempo... Porque o racismo não acabou. Uma negra, eu sou raçuda! Então, pra ir trabalhar num aeroporto, pra lidar com pessoas, eles só gostavam de dar emprego a meninas loiras, dos cabelos compridos, bonitas... Aí, eu fui... O administrador lá do Palheta era um amigo meu, [...] Cafés Finos Palheta, eu comecei lá. Aí, eu fui me inscrever, ‗mas você quer trabalhar aqui?‘(perguntou o administrador). ‗Sim, por que não?‘, eu respondi. E eu estava tentando o segundo vestibular... Lá as meninas entravam sem fazer teste sem nada. Eu tive que fazer tudo! Fiz teste, fiz psicoteste, eu nunca esqueço. [...] Eu fiz minha prova, assim, conhecimentos gerais, fiz tudo certinho. Passei em primeiro lugar! Aí, ele me disse: ‗ói, tinha quatro pessoas com você e você passou em primeiro lugar.‘ Eu não vi ninguém, porque eu fiz a minha prova sozinha, depois fez um psicoteste comigo, eu fui ótima, aí, ele... Assim, a coragem de dizer: ‗Elizabete, eu fiz de tudo, mas esse lugar é seu, você é merecedora, porque você... Eu coloquei as coisas mais difíceis, porque aqui há uma coisa que eles não botam muito pessoas de cor.‘ Aí, eu digo: ‗tudo bem. Mas eu quero trabalhar aqui e eu vou mostrar a você.‘ Tudo bem. Passei e me deram, sabem o que foi que me botaram? Servir cafezinho. Eu prontamente... E eu tava nova, no inglês dava pra arranhar. Aí, chega um dia de sexta-feira, chega um avião internacional, só tinha gringo! As meninas tudo lindas e maravilhosas, cabelos batendo nos quadris, com aqueles gorrinhos, aqueles gorrinhos brancos, lindas maqueadas, eu só pretinha, com meu cabelo só alisadinho, mas não fazia vergonha pra ninguém. Aí, enche o restaurante, a lanchonete enche de gringo. Eu tinha um sub-gerente de nome Pedro e o gerente era senhor Filgueiras, que era um português. Quando eu cheguei ele começou a me observar: ‗menina, tu és boa! Tu és rápida! Tu és assim pessoa de garra!‘. Então, quando chegou a gringalhada que as meninas... Eles pediam gelo e as meninas: ‗ah...‘. Aí, eu disse: ‗agora, que eu vou jogar! Agora, que eu vou mostrar quem eu sou.‘ Aí, eu saí atendendo todo mundo. ‗Biear!‘. Cerveja, rapidinho. Nesse dia, eu peguei gorjeta, o dinheiro que eu recebia num mês, eu recebi num dia. Eu disse: ‗ coisa tá boa demais!‘. E seu Filgueiras ficou besta assim, ó! E chega no final e diz assim: ‗Elizabete, tu não vais ficar...‘. Sim, eu no cafezinho e como encheu e elas não sabiam como atender os gringos, aí, eu cheguei, ele: ‗vem cá, você! Tu és esperta! Tu és esperta! Vem cá! De amanhã em diante, você não fica mais no cafezinho. Eu vou tirar uma bonita dessa e botar pra lá e você vai ficar aqui.‘. Aí, ali no Aeroporto chega muita gente, muitos conhecidos aqui do bairro, chega uma colega que tinha formado um ano antes de mim, aí, chegou no Aeroporto e me

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viu lá na lanchonete: ‗Betinha, minha filha, o que é que você está fazendo aqui?‘. Eu disse: ‗Trabalhando.‘. Ela, ‗não! Você não é pra ta aqui, não... Você, uma menina formada pra tá atrás de um balcão? Não! Cadê Cláudio?‘. Eu disse: ‗tá no escritório. ‘. Ela: ‗mande chamar ele aí, peça pra alguém ir chamar ele.‘. Ele é inquilino dela. Ela disse assim: ‗olhe, essa menina aqui é do meu nível! Ela não pode ficar aqui no balcão, de jeito nenhum! Eu peço a você, por favor, dê um jeito de... Coloque ela no escritório porque o lugar dela é dentro do escritório, não é aqui.‘ Em menos de um mês, ele garantiu e disse: ‗olhe, Elizabete, não tem problema, eu já ouvi falar bem de você, seu Pedro, seu Filgueiras, e assim que surgir uma vaga, você vai para o escritório.‘ [...] Ele chamou o gerente do restaurante que trabalhava com artistas, aí, disse o seguinte: ‗olhe, você, a partir de hoje, você vai ficar aqui no restaurante, você é uma menina desenvolvida, você tem se destacado aqui, então, você vai ficar aqui no restaurante.‘. Vai a negrinha trabalhar no restaurante. Só recebia artista. [...] Daí, ficou, e com menos de um mês, surgiu uma vaga no escritório e eu fui trabalhar no escritório. Levei quase seis anos. E eu sempre fui perseguida. (MP Zeferina, 17/06/2013).

Racismo é um elemento cultural, visível e cotidiano, representado pela opressão sistematizada de um povo. Revela-se através do ataque, ridicularização e esvaziamento de valores culturais, tais como linguagem, técnicas e comportamento. No Brasil, o racismo parece condicionado à cor da pele, entretanto, possui uma justificação cultural, cujo objeto é a forma de existir dos negros. Negros são subjugados e desumanizados segundo métodos multifacetados. No caso de Zeferina, quando afirma ―eu só pretinha, com meu cabelo só alisadinho, mas não fazia vergonha pra ninguém‖, revela-se como indivíduo ―aculturado‖ e ―desculturado‖ que, oprimido, esbarra no racismo. São-lhe negados os meios de existir e, consequentemente, culpabiliza-se (FANON, 1980). Os mecanismos de defesa da população racializada revelam o seu estado de ―mumificação cultural‖. Os grupos sociais inferiorizados procuram imitar os valores dominantes e, assim, desracializam-se, partilhando convicções, doutrinas e preconceitos. Em virtude de suas crenças serem deslegitimadas, esmorecem suas identidades ―originais‖, o que para Fanon (1980) torna sinônimos alienação e assimilação. Aderem incondicionalmente aos valores e à cultura que os inferiorizam. Portanto, culpabilidade e inferioridade introjetadas desencadeiam um processo de normalização no elemento racismo. A cultura o modela, repercutindo-o em todos os níveis de sociabilidade. Ao longo dos anos, o racismo caminhou ao lado da falta de investimento em equipamentos públicos para atender às demandas da população que crescia no bairro de São Cristóvão, tanto com as investidas do governo, como por iniciativa da própria população. A transferência da população pobre para as regiões periféricas fomentou as diferenças que se firmavam na capital, visto que não foi assegurado acesso ao emprego, ao lazer e à assistência 134

médica e escolar. Faltaram políticas que atendessem às demandas que surgiam (SANTOS, 2005; JOSÉ; SCHUTTE, 2008). Nesse ínterim, formaram-se grupos no bairro em desenvolvimento. De um lado, grupos rivais liderados por traficantes, de outro lado, grupos de lideranças reunidas em busca de melhorias para o bairro. Aumentaram as rixas entre os traficantes da região, até que uma, em particular, entre as três invasões Yolanda Pires, União Paraíso e Planeta dos Macacos, desencadeou, em 2006, na invasão da escola Municipal de São Cristóvão (o ―Colejão‖) pelo grupo de traficantes da Yolanda Pires. Além disso, técnicos do Centro de Referência de Ação Social (CRAS), que tem sede nesta última invasão, foram proibidos pelos traficantes de prestar atendimento aos residentes das outras invasões (A TARDE, 2006). Segundo Zeferina, tanto a rivalidade entre esses (as) moradores (as), como a mobilização no bairro junto às instâncias públicas tem a sua base no processo de crescimento e desenvolvimento do local. Assim, relata:

O Planeta dos Macacos e a Yolanda Pires. No mesmo local e com rivalidades. Essa rivalidade, tão logo eles chegaram aí, anos depois começou a aglomerar pessoas de... Aí, começa as drogas. Começou a haver a rivalidade porque Yolanda Pires, a mulher de Waldir Pires, como ela era voluntária social, ela tomou a frente e muita coisa ela ajudou aí. Por isso, que colocaram o nome Yolanda Pires. E aí, começou... Foi crescendo, crescendo e o bairro quando cresce, cresce os problemas também. E aí, tinha problemas de enchente, a água alagava, invadia, inundava as casas e a gente corria pra ajudar, tentar fazer alguma coisa pelas pessoas, porque não importava quem elas eram. Nós sabíamos que eram ser humano e precisavam de ajuda. Então, nós tivemos sempre essa visão aqui no bairro. [...] A gente saía pedindo para a prefeitura... Eu não conto as vezes, os dias! Que mesmo quando o meu marido já na cama, já doente, eu deixava tudo organizado e ia à prefeitura pra falar. 56 (MP Zeferina, 17/06/2013).

Grupos e gangues se impõem pela força sobre os outros, instaurando ciclos de enfrentamento marcados por ações violentas. A associação, bem como a rivalização se manifesta de forma sistemática com grupos de outras localidades, para manutenção e expansão de seus mercados ilegais. O processo de formação de grupos rivais pode operar mesmo em territórios mais restritos (BEATO, ZILLI, 2012) como enfatizou Zeferina. A partir 56

Seu cônjuge faleceu no final do ano de 2012, depois que Zeferina sofreu um AVC e ficou internada num hospital por algumas semanas. O seu companheiro, doente, teria ficado deprimido e morrido logo em seguida, depois de anos acamado, também por um AVC.

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do seu relato, podemos relacionar o surgimento das rivalidades entre traficantes em decorrência do crescente uso de drogas e sua comercialização; em virtude do pouco investimento em equipamentos públicos na região; como também pelo favorecimento de determinadas ruas, ao mesmo tempo em que negligenciaram espaços fronteiriços que demandavam iguais investimentos. Foi nesse contexto, no mesmo período da reforma do Aeroporto no final da década de 1970, que Zeferina firmou o trabalho voluntário no bairro. Teve a sua mãe como referência para o desenvolvimento da atividade comunitária, já que ela era voluntária na Assembleia de Deus, como tesoureira e promotora de bazares para as pessoas mais pobres. Por vezes, saia nas ruas pedindo comida e roupas para o bazar, ao lado da sua mãe. Ao tornar-se adulta, ingressou na Associação do Bairro em sua rua, na qual trabalhou por vinte anos, na parte fiscal. O início das atividades comunitárias no bairro tem sua base nas atividades das igrejas Assembleia de Deus e Católica (Igreja de São Cristóvão), à época das fazendas. Além das agentes evangélicas, havia a liderança do padre, que mediava pequenos conflitos do povoado. Com o desenvolvimento do bairro, surgiu a associação de moradores, cuja sede permaneceu na igreja, já sob a liderança de um antigo morador católico, frequentador da igreja. Quando o líder passou a morar no bairro de Itapuã, deixou de atender às demandas do local, desencadeando uma ação de moradores do Planeta dos Macacos, pedindo a intervenção do padre no caso. O episódio culminou na troca de liderança, em 1989, em que Egídio, um funcionário público também frequentador da Igreja de São Cristóvão, assumiu a direção da associação e permanece até hoje. Cada rua ou ―pequeno bairro‖ de São Cristóvão, como indica Lourdes, tem uma associação. Todas se comunicam e se unem por interesses comuns, estabelecendo um bom relacionamento entre si – ao contrário das lideranças do tráfico. Assim, conseguiram melhorias para o bairro, ―através de muita luta e sacrifício‖, afirma Zeferina, que conclui: ―Em 1978, as coisas estavam bem melhor‖. Quando a associação começou a conseguir benesses para o bairro, a partir de alianças estabelecidas com políticos de ocasião – tais como uma antiga vereadora de um partido de esquerda (PT) e a Primeira Dama Yolanda Pires. Na gestão do prefeito Antônio Imbassahy (1997 – 2005) elas obtiveram respostas positivas, primeiro porque a prefeitura ―concedeu a uma boa parte do pessoal do Yolanda, do Planeta, título de terra‖, segundo porque investiu nas ―rodagens, estradas, redes de esgoto, asfaltamento de algumas ruas que não foi concluído por desvio de 136

verbas‖, enfatiza a MP. As obras só teriam sido concluídas na gestão seguinte, do Prefeito João Henrique, através do vereador eleito Alan Sanches, como um ―cala boca‖ para os moradores que pressionavam os gestores. As moradoras conseguiram algumas melhorias que não foram suficientes para promover bem estar e segurança para aquela população. De acordo com Bonetti (2000), os espaços de atuação política de mulheres pobres estão limitados aos seus bairros de moradia, através da criação de grupos sociais e de instituições estabelecidas. Essas lideranças recorrem aos gestores através de representação institucional, em alguns casos, pouco expressiva, por medidas emergenciais e assistenciais para a oferta de serviços públicos básicos (MILANI, 2006). Dessa forma, não conquistam medidas capazes de mudar as condições de pobreza, asfixia e mumificação cultural. A inserção popular nas resoluções públicas permanece frágil, sem poder de reivindicação. De um lado, lidamos com o despreparo para a deliberação política e possível influência nas decisões políticas do município; de outro lado, com a negligência de gestores (as) com relação às pautas do movimento social (MILANI, 2006; AVRITZER, 2007). Neste caso analisado, prevalece na participação política destas mulheres o laço pelos atributos femininos tradicionalmente configurados e reproduzidos socialmente (BONETTI, 2000; 2003). Assim, Zeferina conclui que:

Houve períodos aqui insustentáveis. Surgiu a minha prima Fátima, ela se candidatou a vereadora, eu trabalhei na campanha dela há umas quatro eleições atrás. Nós nos ligamos e lutamos [...]. E aí, surgiu essa oportunidade, através dela, de trazer o Mulheres da Paz. Porque eles escolheram os bairros mais violentos e São Cristóvão era um deles. Porque, justamente, por crescer as invasões, cresceram os problemas e aí, foram as drogas, os vícios... a bebida também é um vício terrível. Tivemos que implantar, através da Associação, os Alcoólicos Anônimos, temos aí, no Centro Comunitário. Então, fomos tentar trazer recursos para amenizar o sofrimento das pessoas. Uma coisa é quando o bairro começa a crescer os problemas, a educação tem que suplantar. As atividades de esporte tem que suplantar pra a gente tirar os meninos das drogas, dos vícios, mas são coisas que... não é que são difíceis, mas eles não abrem muito esses espaços. Porque eu tenho certeza que se existisse uma boa educação, saúde, eu tenho certeza que as coisas... O lazer, aí, as coisas realmente seriam mais fáceis de se trabalhar porque eu tenho levado muitos meninos aqui pra centros de recuperações que eu conhecia e confiava, com o meu dinheiro. Pegava roupas de meus próprios filhos, comidas e material de limpeza, de higiene, de preparar uma mala e dizer ‗vambora‘, e de levar. Depois, visitava os jovens toda quinta-feira.

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O Estado deixa de gerir políticas de incentivo ao desenvolvimento intelectual e profissional da população pobre. O bairro de São Cristóvão, por exemplo, cresceu sem incentivo efetivo do governo na área da educação, da saúde, do esporte e do lazer. Com isso, a comunidade e, especificamente, as mulheres, improvisam formas para lidar com a escassez de recursos, lançando mão de aspectos de solidariedade entre determinados grupos. Assim, caracterizam-se como agentes do setor informal (PEREIRA, 2010). Hoje, o bairro é considerado densamente povoado, com população de 33.893 habitantes, que representa 1,39% da população de Salvador. A região reúne 1,35% dos domicílios da capital, em que 27,48% das chefias de família se situam na faixa de renda mensal de 1 a 2 salários mínimos. A escolaridade desse grupo de chefia familiar corresponde a 35,36%, com 4 a 7 anos de estudo (SANTOS et al, 2010). Consta, na região, um comércio bastante expressivo de roupas, eletrodomésticos, supermercados, pequenas empresas de prestação de serviços, feira de frutas e ervas, além da recente instalação de um grande Shopping Center, o Salvador Norte. Há também equipamentos públicos como o CRAS, escolas municipais e estaduais, Unidade Básica de Saúde, a Unidade de Saúde da Família, uma Praça Matriz, onde encontramos a Igreja de São Cristóvão, a 49ª Companhia de Polícia. Vale salientar que o fato de existirem unidades de saúde não significa que a população conta efetivamente com a prestação pública desse tipo de serviço. Durante o curso de formação, as mulheres se queixavam bastante da falta de atendimento médico para a população, bem como da péssima qualidade no atendimento por parte dos (as) funcionários (as). Houve casos de consultas agendadas para seis meses depois da marcação, na área de ginecologia. A MP Marta (34 anos) relatou um episódio em que precisou levar o filho, que estava desmaiado, no posto de saúde e, deparou-se com o segurança da unidade fechando o portão à sua frente. Marta foi impedida de entrar no posto porque os funcionários estavam em horário de descanso, logo, teve que voltar para casa sem o atendimento médico. O Sistema Único de Saúde (SUS) angustia brasileiros (as) pobres, levando as classes mais altas a procurarem por serviços ou planos de saúde privados. Enquanto os pobres não têm condições de contratarem serviços privados, convivem com os problemas enfrentados pelo SUS – falta de médicos, desrespeito nos atendimentos, em muitos casos precários, péssimas instalações. Segundo Costa e Souza, (2010), um fator para a precarização do SUS se encontra na forma como é gerido. Para tanto, indicam caminhos para as mudanças que melhorem o serviço público, que se reflete no aporte financeiro do setor, equalizando o 138

repasse de recursos, em melhor remuneração salarial para os profissionais da saúde, aliados ao estabelecimento de vínculos. Os profissionais se queixam da falta de vínculos empregatícios na sua prestação de serviço, além dos salários considerados baixos. Em decorrência, ficam desagregados e desmotivados para a prestação do serviço. Isso se reflete no atendimento da população pobre, que sofre, pagando com a própria vida, ou com a de entes familiares (MINARDI, 2009). A MP Luiza morreu de parto num hospital público de Salvador, por negligência médica em abril de 2013. ―Ela chegou ao hospital com a criança sem mexer há uns 3 dias. Eles não fizeram U.S, levando-a ao coma, quando resolveram tirar o menino já estava em decomposição, um horror‖, desabafou a coordenadora Fátima. Todavia, a população de São Cristóvão não enfrenta exclusivamente os problemas decorrentes da saúde pública, mas outros tantos conflitos que serão expostos e analisados a seguir.

3.1.2 Os conflitos no bairro

Durante o curso de formação das Mulheres da Paz, eu era sempre repreendida pelas participantes quando pronunciava a palavra ―polícia‖. Demorou um tempo até que eu me acostumasse com aquele comportamento, isto porque, de onde eu vinha, relacionava-me com policiais, ou falava sobre eles, sem tanta apreensão e medo. Com algumas ressalvas, no meu contexto social, contar com a presença de um policial é privilégio e alívio. Entretanto, as mulheres de São Cristóvão se assustavam cada vez que eu os mencionava. A questão para mim foi entender como, dentro de uma sala de aula numa escola municipal, onde crianças estudavam, eu não poderia pronunciar a palavra – polícia. Com o passar do tempo, em conversas com alguns funcionários e no próprio desenvolvimento das oficinas, pude compreender que não se tratava de um lugar ―seguro‖ como aparentava. Outrora, a escola fora tomada por grupos de jovens da invasão Yolanda Pires que subiam aos telhados da instituição para consumir drogas e pressionar os moradores (A TARDE, 2006). Coincidentemente, o acesso ao telhado se dava pela sala de aula onde estávamos em formação – eles amontoavam as carteiras até formarem uma espécie de escada até a cobertura da escola. Além disso, as crianças da escola poderiam ouvir os nossos diálogos 139

durante as oficinas – sobre a polícia – e passarem adiante em suas ruas de moradia, o teor das discussões em sala de aula. Mesmo se tratando assuntos nada comprometedores, o risco que corríamos era de que chegasse aos traficantes conversas e alusões de que as MPs seriam ―X9‖, pelo menos porque citávamos, de vez em quando, a ―polícia‖. A impossibilidade de um relacionamento seguro entre a população negra e a instituição policial, bem como as agressões e mortes sofridas pelo grupo denotam faces do racismo institucional. Segundo estudo do IPEA (2013), 61,8% da população de negros e pardos, vítimas de agressão, deixa de procurar a polícia – contra 38,2% de não negros. 60,3% porque não confiam na instituição – contra 38,7% de não negros. Além disso, 60,7% entre negros e pardos não envolvem a polícia em caso de agressões por medo de represálias. Na ocasião de formação, percebi, entre aquelas mulheres, o temor em relação aos traficantes de drogas, que proibiam os moradores de chamarem a polícia; como também notei a insegurança diante dos policiais que faziam rondas no bairro, transparecendo entre as presentes um sentimento de aversão. A partir da pesquisa desenvolvida, reuni elementos que iluminaram a relação estabelecida entre as MPs e a polícia, assim como as MPs e os traficantes da região. Indagueilhes sobre a existência de conflitos no bairro onde moravam, de forma aberta, sem direcionálas a nenhuma resposta específica. Nesse bojo, vi reações diversificadas, desde risos de ironia, até tristeza e silêncio, convergindo para uma mesma resposta, a violência cotidiana. Foi unânime o direcionamento para uma principal fonte de conflito no bairro, as manifestações de violência atrelada ao tráfico de drogas e, em consequência, às ações policiais de repressão à criminalidade. Nas queixas das MPs Thaís (44 anos) e Diana (33 anos), a omissão histórica da gestão pública, aliada à repressão policial aos moradores, é a própria fonte da violência. Em suas palavras:

A força policial gera violência, impondo o poder, ao algemar, bater, sequestrar adolescentes de 11, 12 anos, envolvidos, ou não, no tráfico. As pessoas obedecem mais aos traficantes do que à polícia. A violência no bairro é uma represália à ação policial. Não quero proteger bandido, mas eles são produtos do sistema. Os policiais recebem propina dos traficantes grandes. Entram na casa deles, fazem a batida na rua, veem as armas, mas deixa passar. (MP Thaís, 30/11/2012). Os policiais são quem corrompem toda a sociedade. (MP Diana, 05/12/2012).

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A opressão policial, somada às arbitrariedades dos traficantes da região, desencadeia uma série de problemas sociais que inibem processos de mudança nas pessoas residentes na região. A violência policial se estabeleceu como norma institucional no decorrer da sua história política. Cotidiana e protegida por lei, a violência da PM controla a população, tratando desigualmente elites e pobres, negros e brancos. A população pobre e negra é alvo do tratamento violento em sua forma explícita (SOARES, 2012; SILVA, 2008). Portanto, a violência policial se constitui como um elemento que se insere no universo do crime, ao lado da falência do sistema judiciário, da privatização da justiça, da fortificação das cidades, da destruição dos espaços públicos, além das próprias narrativas sobre o crime (CALDEIRA, 2000). Desencadeia sentimentos de ódio e revolta entre a população assediada e agredida, fomentando a perpetuação do estado de criminalidade violenta. As falas sobre o crime detalham casos de violência, dessa forma, são produtoras e legitimadoras de reações violentas e ilegais. Combatem e reproduzem, ao mesmo tempo, a violência através da associação estabelecida com o medo. Quando operados juntos, a fala do crime e o medo desencadeiam interpretações estereotipadas. Em decorrência, proliferam-se sentimentos de perplexidade, horror e vingança no meio social, também como novo elemento agregado ao ciclo de violência. Logo, narrativas do crime produzem preconceitos, estereótipos, racismo e mais violência (CALDEIRA, 2000). No entanto, cabe destacar que as mulheres são afetadas de forma particular. Na queixa de Thaís:

Outros conflitos são gerados pela violência: a baixa escolaridade das mulheres, que acabam indo trabalhar em casa de família; desemprego; mulheres, todas as mães, deixam de trabalhar e procurar trabalho longe do bairro para acompanharem seus filhos. Como é que trabalha assim? Quem vai deixar seus filhos nessas condições? (MP Thaís, 30/11/2012).

As mulheres, em virtude da sua condição de gênero, são as responsáveis pelo cuidado dos seus familiares e, principalmente de seus filhos. Convivendo cotidianamente com a criminalidade, elas sentem medo de que seus familiares sejam atingidos de forma mais direta e ficam trancafiadas em suas casas. Elas não têm dinheiro para pagar a outras ―mulheres‖ para tomarem conta dos seus dependentes enquanto estiverem trabalhando fora de casa. Assim, veem-se impedidas de buscar crescimento intelectual e emprego, por temerem a possibilidade 141

latente de que seus filhos (as), sozinhos (as), sejam agredidos (as) em casa ou nas ruas por policiais, ou ainda, que sejam aliciados para o tráfico de drogas, ou para o próprio consumo, e, mais tragicamente, que sejam mortos por armas de fogo em tiroteios. Outro grande conflito evidenciado (tanto nas respostas à minha entrevista, quanto nas atividades das oficinas do curso de formação pelo projeto Mulheres da Paz), ainda bastante atrelado aos desmembramentos do tráfico de drogas, foi a briga entre vizinhos, apontada como segundo maior conflito. Esse conflito se dá por variadas razões, a saber: disputas por pedaços de terra, aparelhos de som no volume alto, brigas entre mulheres por ciúmes de namorados ou maridos, lixos jogados às portas das casas, intrigas, questões religiosas, etc. Questões que frequentemente sofrem interferência dos traficantes, mesmo de forma indireta. Quando uma das partes dos conflitos tem qualquer tipo de envolvimento com os ―meninos‖ do tráfico, a outra parte da questão interrompe a disputa e, deixa de reivindicar direitos, por temer represálias e possíveis vinganças armadas pelo (a) vizinho (a) aliado (a) ao (à) envolvido (a) na atividade criminosa, como conta Marta:

A violência, as drogas, os desencrenqueiros, conflitos com vizinhança. A minha vizinha, veja se uma pessoa dessa tem consciência, colocou um tubo do esgoto dela passando bem pela minha porta de casa. E eu ainda ouço desaforo das pessoas que tropeçam porque pensam que fui eu que coloquei. Mas eu nem posso reclamar porque essa vizinha é assim com os meninos. Eu! Deixo prá lá. Daqui a pouco ela arma uma pra cima de mim. Já fugiram para o fundo da casa da vizinha, que é ligado ao meu. Se ele quisesse passar pra minha casa, ele passava. Ele atirou num policial e a vizinha deu passagem a ele. Eu que não dou ousadia! Aqui que eles não entram! Dou bom dia a todos, mas não me envolvo com ninguém. Fico com minha casa trancada. Eu é que não dou essa ousadia! Tive que sair de dentro de casa. Eu não posso ficar à vontade na minha casa, não posso ficar lá no fundo lavando a roupa tranquila, perco a liberdade. (MP Marta, 07/12/2012).

Moradores (as) de São Cristóvão se valem de artifícios como intriga, desgaste pessoal, xingamentos e perseguição para lidarem com as desavenças. Por vezes, empregam a força física e agressões verbais para revidarem ofensas recebidas. O indivíduo que tem a sua honra abalada, decorrente de um conflito com um vizinho, lança mão da ―porrada‖ para reverter a situação de rebaixamento e, assim, retomar a sua honra (MACHADO, NORONHA, 2002). A violência cotidiana expressa nas queixas das MPs revela outra face da violência institucional representada pelas péssimas condições na infraestrutura do local. Há frequentes 142

alagamentos em decorrência das chuvas, de forma que a água misturada ao esgoto invade as casas, destruindo os móveis, as casas, além de transmitir doenças. Além disso, com as grandes poças de água suja que se formam nas ruas, as pessoas são constantemente molhadas pelos carros que passam em alta velocidade. Esse problema foi apresentado pelas mulheres durante as oficinas de formação do projeto MPs e em minhas conversas com outras moradoras, como também pude perceber nas idas a campo. O bairro de São Cristóvão faz parte desse processo de crescimento desordenado das áreas urbanas reconhecidas como pertencentes ao Miolo, a área geograficamente central da cidade que se localiza entre a Avenida Paralela e a BR-324 e o Subúrbio Ferroviário. O Miolo se desenvolveu com a construção de loteamentos populares – a partir de 1940, com o processo de industrialização da cidade. Hoje, é marcado por habitações precárias e pela deficiência de equipamentos, serviços e infraestrutura. O padrão de urbanização da cidade de Salvador assume desafios para a efetividade do controle, ordenamento do uso e ocupação do solo. Os desafios se estendem para que seja assegurada a prestação de serviços públicos ao segmento social pobre da capital. (FERNANDES, REGINA, 2005; PEREIRA, 2008). A rotina da população nesses contextos de precariedades desperta indignação, fúria e mais violência. Numa determinada manhã em que eu caminhava pela Rua Aliomar Baleeiro, um ônibus passou em alta velocidade sobre uma dessas poças de água suja e atingiu um homem que passava à minha frente. Respingou água suja em todo o corpo dele, que, revoltado, mostrou a algumas transeuntes, inclusive a mim o seu estado. Ele se dirigiu correndo até o final de linha do ônibus, no Parque São Cristóvão, atrás do motorista, dizendo: ―Ele vai ver! Vou chamar os cara de lá da rua, eu moro lá, ele mexeu com o cara errado, vou dá uma nele, eu sei que ônibus foi, foi o Parque São Cristóvão, não foi? Eu vou lá! Ele vai ver como é bom...‖. Além das águas empoçadas nas ruas do bairro, a população enfrenta os problemas decorrentes das irregularidades no funcionamento dos estabelecimentos comerciais. Sobre os conflitos do bairro, a MP Rita revela:

É muito violento. Não gosto da infraestrutura do local, a entrada do bairro... Aquilo é horrível! O cartão-postal do bairro está horrível. Pensei que fosse mudar com o shopping, mas... Tem aquelas barracas lá, muita bebida... A gente tem medo de passar por ali, determinadas horas... Tem as mesas dos bares, ocupam a calçada, a gente não tem como passar, tem que passar pela pista ou no meio das mesas, eu é que não passo! Eu detesto andar aqui em São Cristóvão! Eu sempre pego um ônibus ali, na entrada por causa disso... Espero que mude. (MP Rita, 06/12/2012).

De acordo com a Secretária Rosemma Maluf, da Secretaria Municipal de Ordem Pública (Semop), muitos estabelecimentos extrapolam os limites decretados para a disposição 143

de mesas e cadeiras nas calçadas. Os bares e restaurantes devem respeitar um espaço de 1,5m para os pedestres, no entanto, não é assim que procedem na prática (BORGES, 2013). É possível notar ainda na Rua Aliomar Baleeiro, alguns pontos ilegais para comercialização de produtos. Não há fiscalização sobre o funcionamento irregular de muitos estabelecimentos, deixando a população responsável pelo enfrentamento direto da questão. Essas mulheres falaram abertamente sobre a violência no bairro e os seus desmembramentos. Entretanto, Diana não quis falar sobre essa questão, inicialmente. A sua resposta foi, em tom de voz baixo: ―raramente. Há, não tem não... Só quando deve o tráf... Assalto, raramente‖. Por algumas razões, ela interrompeu a sua afirmação, primeiro porque mora num dos trechos mais violentos, no Parque São Cristóvão, num lugar onde, segundo sua vizinha Dilma, ocorrem assaltos frequentes, batida policial e linchamentos; segundo, porque a sua entrevista foi realizada em sua casa que, como muitas casas da região, tem paredes finas, facilitando a escuta das conversas que se passam em seu interior pela vizinhança; terceiro, porque no nosso encontro tivemos a presença de Dilma, que me acompanhava pelo bairro. Não foi possível realizar a sua entrevista de forma particular. Percebi entre as duas MPs um clima de desconfiança. Este clima se apresentou no momento seguinte, quando fiquei a sós com Dilma. Esta última desmentiu a colega sobre o ―raramente‖, dizendo que a mesma estava com medo de falar. Por último, percebi que Diana não entendeu bem o que representava o meu trabalho no local, desconfiando que eu estivesse representando o Estado, de alguma forma. Notei que estava avançando por terrenos nos quais eu não teria autorização para prosseguir e, decidi não mais entrevistar as demais MPs daquela região, também atendendo aos conselhos que recebi das outras MPs líderes comunitárias. Desenvolvidas essas falas sobre a violência no bairro e suas implicações, passo ao próximo subtópico, em que serão analisadas as formas de enfrentamento a essas condições de pobreza e violência.

3.1.3 O enfrentamento

A capacidade de fazermos escolhas e lançarmos mão de estratégias no plano das relações sociais (de conflitos) garantem possibilidades de concretizarmos ações, segundo 144

nossos interesses próprios. Dentro da perspectiva feminista, essas autodeterminações, ou escolhas estratégicas, são concebidas como processos nos quais nós, mulheres, administramos as nossas vidas para o nosso desenvolvimento intelectual, emotivo e profissional. Associado a isto, também processos nos quais enfrentamos eventuais impedimentos no decorrer das nossas vidas cotidianas. Logo, esses processos envolvem as (pré) condições de recursos para fazermos as escolhas e concretizarmos ações dentro das possibilidades postas (IORIO, 2002; SARDENBERG, 2006). No contexto social apresentado neste trabalho, os impedimentos que surgem na vida das mulheres são permeados por uma complexidade de tensões sociais, alavancadas pelo convívio cotidiano com a criminalidade urbana e suas implicações, assim como pela violência institucional perpetrada pelo Estado. Em 2004, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres reuniu uma série de estratégias, no intuito de reduzir a exposição das mulheres a todas as formas de violência. Com vistas ao ―empoderamento‖ das mulheres, a ação estatal partiu de uma definição de ―enfrentamento‖ à violência que abrangeu prevenção, combate, assistência e garantia de direitos. Nesse sentido, deveria envolver os setores da saúde, educação, assistência social, segurança pública, cultura, justiça, entre outros, com ações articuladas. Contudo, até a culminância do Projeto Mulheres da Paz, muitas mulheres pobres não haviam vislumbrado o alcance da estratégia do Estado de combate às desigualdades de gênero e à violência. Ações foram tomadas na direção do ―combate‖ à violência doméstica e familiar como, por exemplo, a criação da Lei 11.340 de 2006, criminalizando a violência. A partir da ―Lei Maria da Penha‖, surgem propostas de uma série de medidas que complementariam o ―combate‖ e o atendimento à mulher em situação de violência, No entanto, segundo estudo do OBSERVE (2010), a aplicação da lei no país é limitada diante de tantas dificuldades, como ocorre na articulação da rede de atendimento. Para além da questão sobre os problemas na aplicabilidade da lei criada em favor das mulheres, é perceptível um processo de naturalização da situação de violência doméstica e familiar para as mulheres, camuflando a situação de exposição a outros tipos violência, também impeditivos ao seu desenvolvimento intelectual e profissional. Agora, o foco na operacionalização da política de segurança do PRONASCI fornece outro elemento indicativo da violência de gênero sobre as mulheres. O Estado coopta mulheres pobres para acolherem jovens (marginalizados) em condições de ―riscos‖ sociais. Isto é, elas passaram por processo formativo para encaminhar os jovens aos serviços públicos 145

de assistência social. Contudo, esta forma de envolver as mulheres no combate à criminalidade do país fez recair sobre elas a violência de gênero perpetrada pelo Estado, materializada pela omissão e pela sobrecarga de trabalho, aspecto que se assemelha com o Programa BF (MARIANO, CARLOTO, 2009). Com a política pública de segurança, o Estado se apropriou da condição de mulher tradicionalmente concebida como cuidadora, onerando as suas tarefas diárias, sem lhes oportunizar transformações reais nas suas vidas; como também negligenciou as suas necessidades, já que se encontravam expostas ao ―risco‖ e situações de violência, portanto, no mesmo contexto dos jovens que foram designadas a acolher. Por não terem inserido as mulheres beneficiárias da política num programa de assistência em rede, expuseram-nas ainda mais a situações de conflitos, como será discutido em outro tópico detalhadamente. Na política do PRONASCI, as mulheres beneficiárias, particularmente, as de Salvador, contaram com as suas próprias e limitadas formas de enfrentamento. Quando eu lhes indaguei sobre as suas estratégias de enfrentamento às situações de conflito relatadas, emergiu a sua condição de pobreza e solidão em suas falas, confirmando a inexistência da sua representatividade no Estado. Thaís, por exemplo, relata que enfrenta a violência no bairro ―com sabedoria‖, afirmando que:

Meus filhos ficam presos em casa, o portão é de ferro grossão e tem vários cadeados. Na semana passada, tive infecção intestinal e fui ao hospital, me botaram no soro, mas eu fugi, preocupada com meus filhos. Arranquei aqueles negoço tudo do meu braço. Dei no pé! (risos) Ia ter que dormir no hospital porque tava com febre. Como eu iria deixar eles sozinhos? Não deixo não, qualquer hora pode ter tiro... Passei na farmácia e comprei o soro da garrafinha e fiquei tomando limonada. (MP Thaís, 30/11/2012).

As mães vão aos jornais denunciar, mas outras não porque têm medo de perder a guarda dos filhos, porque vivem em condição de prostituição. Se calam. Já houve casos no bairro de prostitutas que perderam a guarda, mesmo quando cuidavam bem de seus filhos. A vizinhança não apoia estas mulheres. As prostitutas são mais respeitáveis do que as religiosas, na minha opinião. As mulheres também protestam junto aos policiais e eles as inibem. Então, se calam porque são mulheres que não tem informações. No geral, se calam. Por conta desses conflitos se aliam ao tráfico. [...] As comunidades não se aliam entre si dentro do bairro. Tem que pedir permissão para passar pelos locais, senão morre de forma muito violenta, eles tiram a cabeça. É terrível. As pessoas novas são abordadas por eles. Márcia, aquela mulher da paz da nossa turma, ela é esposa de envolvido de outra comunidade, entrou lá na Yolanda Pires e tomou tapa e tesouradas de duas traficantes, porque estava lá sem permissão. Ela foi pro hospital. E ela só queria visitar a irmã que morava lá. Imagine. Atacaram ela só porque ela é mulher de envolvido de área rival.

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As mulheres não se metem, orientam os filhos, vão embora, ou se aliam aos traficantes. (MP Thaís, 30/11/2012).

Pra lhe dizer a verdade, a gente vive com medo, a gente não sai à noite, já quando dá 6h, nem na padaria, a gente evita sair, a gente vive com medo, mesmo na casa da gente, a gente vive com medo. As mulheres vive preocupada, a gente não pode fazer nada, tem medo de ter filhos, não tem segurança. A gente vive com medo. Quem dizer, ―onde eu moro é tranquilo‖, tá mentido, em qualquer lugar tá assim,... a gente vive insegura. [...] Todo mundo cala a boca. [...] As pessoas não podem tomar as medidas cabíveis. Quem quer dá bom dia a cavalo?! (MP Dilma, 05/12/2012).

Vejo as coisas e finjo que não vejo. Não comento para continuar viva. (MP Diana, 05/12/2012).

Todos! (risos) Todos. Da parte da estrutura até... Da marginalidade. Há vários tipos de conflitos. A gente não enfrenta, né, a gente tem que conviver, né. A gente vai num canto, não vai no outro, fingindo que não vê nada e a gente vai levando. [...] A gente pede ajuda, pede pra ver um asfaltamento, uma iluminação, o negócio do esgoto. A prefeitura – ―eu vou fazer, eu vou fazer‖ - e não fazem nada. Só fica de história e mais nada. E a violência não tá pior nem melhor do que os outros bairros nenhum. Só ficam dizendo q vai melhorar, que vai melhorar, e vai melhorar onde? A tendência é piorar, cada vez mais. A gente finge que não vê, muitas se prendem dentro de casa, outras tem que trabalhar, tem que se arriscar mesmo, mas elas não podem fazer nada também, só mesmo entregar na mão de Deus e ir em frente. O que é que a gente pode fazer? Vem os dia e não muda nada. Você viu a mulher que morreu em Itinga? Ela vivia com o marido e o marido era envolvido com vagabundagem, ela acabou morrendo. Não acharam ele, aí mataram ela. Os vagabundos. A mulher de dois meses, grávida. Os parceiros dele mesmo, fazendo besteira. Aqui é a mesma coisa, não muda nada. Porque disseram que ela não tinha envolvimento nenhum, mas o marido tinha. Eles não acharam ele, acharam ela, pegou e matou ela. Os meninos que mataram ela. Ele devia alguma coisa, né! Quando deve não tem jeito, minha filha, é um ou o outro. A mesma coisa do outro de Mata Escura, ontem. Matou o irmão e matou ele. Há, minha filha, aqui acontece muito! (Risos). (MP Lourdes, 07/03/2013).

Faço de conta que não vejo, para viver, porque eu me esquento rápido e prefiro me calar, quando há algum problema com a vizinha que anda com os meninos. A gente evita confronto porque tudo é na base da arma. Veja uma coisa, uma moça que tava fazendo um curso de segurança, vazou que ela fazia esse curso, aí os meninos invadiram a casa dela estupraram e espancaram ela e a mãe, atrás da arma dela, mas não tinha, só fazia o curso. E ainda nem deixaram ninguém chamar a SAMU, disseram que ela só ia sair para o hospital no carrinho de mão pra todo mundo ver. (MP Marta, 07/12/2012).

A partir dos relatos das entrevistadas, destaco inicialmente o fator prostituição. A sociedade segrega as prostitutas. No estudo de Fonai e Delitti (2007) as contingências sociais, culturais e econômicas são motivações para o direcionamento de mulheres e adolescentes para o exercício da prostituição. Essas mulheres procuram o ―dinheiro rápido‖, a saída de ambiente 147

familiar ou social punitivo ou pouco reforçador, mudanças das condições de privação econômica, afeto e contato social. Em contrapartida, sofrem punições como críticas e afastamento de familiares, amigos ou cônjuges, agressões físicas e repressão policial. Conforme as experiências relatadas sobre o bairro de São Cristóvão, as prostitutas são hostilizadas pelas vizinhas, chegando a perderem a guarda dos filhos, mesmo quando lhes dedicam cuidado. Não contam com o apoio das outras mulheres e são ameaçadas pelos policiais. Outro fator presente é a associação de mulheres ao tráfico de drogas. O estado de asfixia social (CARNEIRO, 2011) em que vivem as moradoras da região leva um grupo a desenvolver atividades ligadas ao tráfico. De acordo com os dados do Ministério da Justiça e do Departamento Penitenciário Nacional, a população carcerária feminina aumentou dos anos de 2001 – com 5.465 aprisionadas – para 2004 – com 16.473. Em 2005, ocorreu diminuição para 12.925 mulheres aprisionadas. O principal motivo do aprisionamento é o envolvimento com esse tipo de crime (SOUZA, 2009). O Estado da Bahia representa 2,13% da população carcerária feminina nacional. Entre 2009 e 2011, o número passou de 676 mulheres presas, para 709, sendo que, em 2010, chegou a alcançar a marca de 1096 mulheres presas. Assim como na média nacional, os crimes mais praticados estão relacionados com o tráfico, representando 44,42% dos casos (DEPEN, 2011; GUSMÃO, 2011). O perfil dessas mulheres, segundo o DEPEN (2011), é de 39,20% com idades variando entre 18 e 29 anos; 57,82% de pardas ou negras, contrapondo as 10,43% de brancas. Geralmente, essas mulheres iniciam as atividades criminosas ou assumem as atividades repassadas pelos cônjuges, namorados ou irmãos, quando presos. Porém, representam detenções por criminalidade violenta em poucos casos, de acordo com o diretor do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), Augusto Rossini (DOURADO, 2013). Segundo a análise do Depen, 14 de cada 15 mulheres são responsáveis pelo sustento da família e apresentam baixa escolaridade – a metade tem ensino fundamental incompleto. Esse perfil reforça a ideia de que as presidiárias são pobres (idem), levando drogas para os maridos presos, na maioria dos casos e, por isso, não representavam perigo para a sociedade (DETTMAR, SILVEIRA, 2013). Neste caso, as estratégias judiciais e sociais devem ser discutidas em conjunto, revendo formas de reinserção dessas mulheres na sociedade. Em São Cristóvão, foi possível observar mais um elemento referente ao envolvimento de mulheres com o tráfico de drogas. Desta vez, envolvimento assimilado aos padrões 148

violentos dos traficantes de drogas da região. Linchamentos, estupros, agressões físicas, espancamentos, decapitações, assassinatos são aspectos da brutalidade praticada pelos envolvidos. Uma MP chegou a ser espancada e atacada a tesouradas por duas mulheres traficantes de drogas. A MP não estava autorizada a transitar numa das invasões, área rival à de seu cônjuge, também envolvido com a atividade criminosa. Assim, a forma que muitas mulheres do bairro encontram para se manterem vivas e longe de agressões é ficando em silêncio e aprisionadas em suas casas. As MPs afirmaram que reivindicam até certo ponto e, depois, silenciam diante da impotência em relação aos poderes públicos e dos traficantes. Associam-se o medo, o silêncio e o aprisionamento doméstico. Neste caso, a lei do silêncio se enquadra numa das formas de manutenção da ordem da criminalidade violenta (ESPINHEIRA, 2004). Há mulheres que enfrentam o medo e o aprisionamento doméstico e saem para trabalhar para sustentar a sua família. ―Se arriscar‖ é um termo que transparece esses sentimentos frente à violência e a necessidade de seguirem ―em frente‖. Algumas subestimam o perigo, ou o desconhecem e avançam para atividades que despertam suspeitas e insegurança entre envolvidos (as) com o tráfico de drogas. No caso relatado sobre a estudante do curso de segurança, a MP Marta afirma que a ação violenta dos traficantes faz parte da estratégia deles de ostentar e manter o seu poder sobre os demais. Além do estupro e espancamento, lançaram mão da humilhação, quando só deixaram a mulher ser conduzida ao hospital exposta no carro de mão, para que todos presenciassem e ficassem avisados. A condição de gênero é fator para as especificidades no que diz respeito às ocorrências de agressões e assassinatos. Mulheres são agredidas e estupradas como estratégia para a manutenção da submissão dos restantes dos moradores, representando mais uma ameaça às suas vidas; assim como, são assassinadas como pagamento de dívidas contraídas pelos companheiros com o tráfico. A condição de pobreza dessas mulheres reforça situações de aprisionamento, medo, silêncio, impotência e solidão. A mulher agredida recebeu alta depois de uns dias e voltou para casa, já pensando na venda da casa. De volta à casa, deparou-se com um novo elemento – a divisão do patrimônio entre os traficantes. Quando conseguiu o comprador, a mulher agredida fez negócio na frente dos traficantes que a violentaram, pois queriam ficar cientes dos valores para tomarem a metade do dinheiro da venda da casa. As pessoas que decidem deixar o bairro e venderem

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suas casas são obrigadas a dividir o valor com os traficantes para não morrerem. Marta confirma:

Eles só querem é arma! Onde acha que tem vão atrás. Outro dia foi com a mulher do policial. Um dia que ele foi trabalhar, invadiram a casa dele e bateram nela, acabaram com ela atrás da arma do marido dela. Nem sabe se tá lá, mas invade pra procurar. Quando o marido voltou, viu o negócio, mas não pode fazer nada. Foram embora também. Ninguém fica depois de um negócio desse. E tem uma coisa, pró, quando a pessoa vai embora e vende a casa, a metade do valor fica pros meninos. [...] É! Eles acompanham toda a negociação. A metade do dinheiro tem que ficar aqui com eles! (MP Marta, 07/12/2012).

Segundo alguns relatos das entrevistadas, há uma diferenciação entre a abordagem policial e a abordagem dos traficantes em relação às pessoas do bairro. Ambos costumam ser violentos. A ronda dos policias militares é respaldada pela corrupção na cobrança de propinas para os traficantes; quando forjam porte de drogas sobre jovens e homens inocentes, ou são truculentos contra moradores, envolvidos ou não no crime. Thaís afirma ser corriqueira a ação de policiais que sequestram crianças e adolescentes para colher informações – algumas vezes através de agressões. Quando as vítimas menores de idade são depositadas novamente em suas ruas, sem sofrerem agressão física por parte dos policiais, sofrem nas mãos dos traficantes. Moradores e traficantes veem as crianças sendo colocadas e despejadas da viatura e, na dúvida de que tenham sido ―X9‖, são assassinadas. Todos esses relatos explicam a manifestação de pânico das mulheres do curso quando falávamos sobre a polícia. Contudo, o relato de Thaís apresenta uma particularidade na ação dos (as) traficantes do local. Afirma que:

As mulheres [...] pagam dívidas dos filhos viciados, aos traficantes. Todos os dias, os traficantes batem na porta das mães, cobrando, só que fazem com educação, chamam e conversam, não fazem como a polícia que chega invadindo as casas, quebrando e matando. As mães dos traficantes são protegidas e respeitadas por eles, até as dos rivais, ninguém mexe. Nunca vi nenhuma ser agredida ou morta. Eu acho isso impressionante, eles tem normas. (MP Thaís, 30/11/2012).

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Há, portanto, um grupo de moradores respeitado por traficantes. As mães de envolvidos com o tráfico que pagam as dívidas dos filhos, ou, simplesmente porque ocupam um lugar de respeito na condição de mãe de traficante. Assim, ficam livres de agressões e assassinatos. No entanto, não foi possível aprofundar este elemento e detalhar possíveis razões. A única resposta diferente sobre a questão do enfrentamento à violência foi a de Rita (52 anos), uma liderança religiosa no local. Ela respondeu:

Eu tenho aberto as portas da comunidade para as pessoas. Temos vários projetos aqui. O Vida Saudável, para atender pessoas com problemas com o alcoolismo e para praticarem exercício físico. Temos psicólogas voluntárias. Trabalhamos a conscientização. É o que eu tenho feito. Os jovens estão ociosos. Tenho uma parceria com a Limiar, empresa de pães. Trabalho com moradores de rua envolvidos com alcoolismo. Tenho parceira com o Centro de Recuperação para usuários de drogas. Sou orientadora social do Pró-jovem. Tenho você! (MP Rita, 06/12/2012).

Rita está concluindo o curso de Serviço Social numa universidade particular e coordena uma ONG no bairro, onde funciona o templo judaico. O seu perfil se diferencia do das demais mulheres, pois conta com melhores recursos, logo, lida de outra forma com o problema. No próximo tópico, serão detalhados os perfis das mulheres entrevistadas, a forma como se apropriaram do processo formativo, bem como o cotidiano do desenvolvimento das atividades solicitadas pela política empreendida no bairro.

3.1 As mulheres da paz no “Planeta dos Macacos”

O projeto Mulheres da Paz plantou expectativas entre as mulheres nos territórios-foco. Milhares se inscreveram em seus bairros, buscando novas possibilidades para se lançarem nos espaços sociais. Quiseram erradicar a violência, buscaram pelo benefício financeiro oferecido, além de outros que poderiam vir em sequência, procuravam por conhecimento. No ―Planeta 151

dos Macacos‖, em São Cristóvão, não foi diferente. Esta zona, demarcada por frequentes conflitos provenientes do tráfico de drogas, assim como da ação repressiva dos policiais, recebeu 48 MPs no ―Colejão‖, além das outras várias nas demais escolas da região. Assim, neste tópico, tratarei de apresentar o lugar conhecido como ―Planeta dos Macacos‖, um dos locais de execução da política MP e, que reuniu as MPs que compuseram a presente pesquisa; apresentarei estas MPs; e as formas como mediaram os conflitos.

3.1.1 Do processo seletivo à formação

A maior parte das mulheres entrevistadas justificou a sua inscrição no processo seletivo do projeto Mulheres da Paz pela oportunidade de acesso ao conhecimento. Na ocasião, todas estavam sem renda fixa, com posições que variavam entre inativas, desempregadas ou exercendo o trabalho informal. Para Rita, vendedora de cosméticos na época do curso, as atividades que seriam desenvolvidas no projeto se aproximavam do que ela iria estudar na faculdade de Serviço Social, curso no qual acabara de ingressar e, viabilizaria melhores condições para ―ajudar às pessoas‖, como relata. Dilma, por sua vez, associou a sua necessidade por ―conhecimento‖ à sua necessidade ―de dinheiro‖, pois estava desempregada na ocasião. Esta última acrescenta que:

Sem trabalhar, minha vida sempre foi assim, a gente que tem filho, fica difícil, na época meus filhos estavam doentes e não tinha como trabalhar, tinha medo de sair e acontecer alguma coisa... Além da depressão, ainda estava com esse problema, tudo eu chorava ou brigava... (MP Dilma, 05/12/2012).

Já Marta, sem trabalho remunerado, assumiu a motivação exclusivamente pela bolsa que receberia, dizendo: ―Eu sempre disse, estou me escrevendo por causa do dinheiro! Muita gente mentiu sobre isso, mas eu sempre disse.‖. Esta MP se refere à tensão estabelecida, nas oficinas de formação, entre as colegas de curso que se dividiam, também, por grupos de 152

motivação de ingresso no projeto. O fato de ingressar no projeto exclusivamente pelo dinheiro provocava a rejeição das que divulgavam a inclinação para o trabalho comunitário. Algumas escondiam o seu interesse exclusivo na remuneração e cumpriam o mínimo exigido de compromisso para não perder o benefício. Além disso, o fato de não estarem trabalhando, a vergonha em assumir a condição de pobreza, como também, a necessidade que sentiam de transparecer a inclinação para as atividades propostas, temendo represálias por parte da equipe do projeto, também contribuía para a ocultação da motivação financeira. Por outro lado, a equipe das duas coordenações – pedagógica e multidisciplinar – assumiu critérios seletivos para congregar as mulheres dos territórios–foco do programa. Três etapas, então, constituíram o processo seletivo: inscrição, prova e entrevista. As mulheres deveriam ter o ensino fundamental completo para acompanhar as leituras. Entretanto, devido às condições de pobreza e suas implicações sobre os anos de estudo, as candidatas não apresentaram boa leitura, ou escrita. Sabe-se que a média de anos de estudos na Região Nordeste é de 6,4 para a população total. Já para quem vive em situação de pobreza, a média é de 4,8 anos, sendo 4,7 para a população pobre negra e 5,2 para a branca pobre (IPEA, 2011). A coordenação, então, planejou uma forma de seleção mais prática para avaliar as iniciativas e posturas entre as candidatas. Inicialmente, na ficha de inscrição, havia uma questão sobre os seu interesse em participar do programa, uma vez que elas já teriam assistido à palestra de apresentação. Uma coordenadora afirmou que, neste momento, mantiveram no processo seletivo, principalmente, os grupos voltados para a proposta, de mulheres que tinham o filho no Projeto Protejo. Logo, estabeleceu-se a segunda etapa seletiva, a prova. As duas equipes de coordenação se deslocaram para o encontro com as mulheres nos territórios. Neste ponto, houve um teste com perguntas objetivas, uma redação e dinâmicas de grupo, com o intuito de congregar um tipo de perfil específico para a atividade de mediação de conflitos. É possível observar o que seria avaliado na etapa nas seguintes palavras de uma das coordenadoras:

[...] Que desse pra gente sentir a capacidade que elas tinham de formular e juntar as ideias e botar por escrito. Foi um momento primeiro de fazer a seleção. Era mais determinante a gente captar as ideias delas do que o jeito certo de escrever. Se a mulher escrevia muito errado do ponto de vista da gramática, mas se tinha uma ideia interessante. Então, fizemos dinâmicas em grupo com elas de casos hipotéticos tirados da realidade. Nessas dinâmicas sempre tinha uma psicóloga social, em dupla com uma observadora, para avaliar as atitudes de comportamento. Tinha advogada,

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historiadora, pedagoga, de comunicação, tinha vários profissionais, vários perfis. Essa foi a segunda etapa. (Coordenadora P).

Por fim, estabelecia-se a última etapa, composta por entrevista e outras dinâmicas de grupo. As entrevistas eram coletivas e com dinâmicas nas quais as mulheres desenvolviam um tipo de atuação. Neste momento, foi avaliada a desenvoltura nas iniciativas tomadas pelas candidatas. A coordenadora P concluiu:

[...] Com as mulheres, a gente gostaria que tivesse um perfil de liderança, nem idade foi limitante, nem necessariamente um exercício de alguma liderança. Por que havia mulheres mesmo que nunca havia saído de casa, mas queriam fazer alguma coisa. Nem religião... Tinha aquelas fanáticas mais a gente não podia eliminar, por que senão a gente termina com preconceitos, inclusive, o preconceito não vem só de um lado, não é, vem dos dois. Aí, a gente procurou aspectos e critérios mais objetivos. (Coordenadora P).

As turmas selecionadas no bairro de São Cristóvão iniciaram as atividades no segundo semestre de 2009. Havia grande preocupação por parte das coordenadoras em reunir as duzentas mulheres devido à exigência do programa. A meta era formar um grupo geral de setecentas participantes entre os territórios de Salvador e RMS. Contudo, foi difícil reuni-las por causa de dois fatores: o primeiro fator é representado pela desistência de muitas inscritas; e o segundo, pela falta de interesse das mulheres dos territórios selecionados em participarem do Projeto Mulheres da Paz. Ambos se relacionam à ―dissintonia‖ existente entre o projeto e a realidade dessas mulheres, especificamente, de condição de pobreza. Aqui, formou-se a primeira grande lacuna do Projeto Mulheres da Paz. Mulheres desistiram ao perceberem as poucas chances de transformação de suas condições, como é possível observar no comentário da coordenadora pedagógica:

A gente fez uma seleção que perdemos várias, muitas mulheres, por que elas desistiram, elas verificaram que não era nada em curto prazo e não era nada que pagasse tanto para elas saírem de onde que elas estavam.

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[...] O programa tem essa limitação, de uma certa dissintonia com a realidade do mundo hoje, com as demandas do mundo hoje, das mulheres do mundo hoje, como elas são, o que elas vivem, o que elas tem que enfrentar e o que é que o programa pensa idealizadamente, pensa dessa mulher em termos desse papel que ela teria na comunidade de promover a convivência, promover o fortalecimento dos vínculos, especialmente, os familiares, fazer essa interlocução. Então, nem todas as mulheres tinham tempo, ou não estavam nesse lugar. Algumas várias que estiveram conosco [...] Cadê as outras? As outras estavam ocupadas com outro novo papel. Essas poderiam ainda ir. (Coordenadora P).

Diante desses processos de desencontro só foi possível alcançar a meta de setecentas mulheres afrouxando os critérios seletivos. Foram selecionadas mulheres que praticamente não liam nem escreviam e que não apresentavam ―perfil‖ de liderar grupos. A coordenadora da EM, Fátima, que sustentava vínculo mais estreito com as mulheres no bairro de São Cristóvão, por ser também moradora, demonstrou que não se tratava exclusivamente de alcançar a meta estabelecida pelo programa para a quantidade de participantes. Logo, salientou a importância de incluir estas mulheres ―sem perfil‖, como uma forma de lhes apresentar uma oportunidade para conhecer novos conceitos, abrindo-lhes os caminhos para a saída do ambiente de violência doméstica e familiar. Mesmo reproduzindo preconceitos de gênero, e mesmo sem oferecer reais condições de mudanças, tratava-se de uma política voltada para aquela população que, de alguma forma, iria despertá-las para formularem uma visão crítica sobre as suas realidades; como também iria contribuir, por um tempo, para que tivessem acesso a produtos com o benefício de R$ 190,00. Era o que o Estado oferecia como política pública de segurança naquele momento, apesar de toda a crítica em torno do Projeto Mulheres da Paz, dadas as limitações apresentadas à população de mulheres pobres e negras do país. Sob este aspecto, Fátima se movimentava ―de um lado para o outro‖ no bairro, tentando inserir as mulheres ―mais sofridas‖. Além desses desencontros citados pelas coordenações do projeto, há as queixas das mulheres beneficiárias sobre o cotidiano das atividades desenvolvidas que, segundo o grupo de entrevistas, originou vários conflitos. Nos próximos subtópicos, então, serão discutidos os processos de mediação estabelecida pelo programa, bem como as possibilidades de transformação nas condições de vida das beneficiárias; porém, antes, desenvolvo uma explanação sobre o local onde estas MPs entrevistadas fizeram o curso, indicando o seu contexto para a realização do trabalho. 155

3.1.2 O “Planeta” e o “Colejão”

O ―Planeta dos Macacos‖, ou ―Planeta‖, é uma área considerada de ocupação espontânea no bairro, que recebeu originalmente o nome de Conjunto Habitacional de São Cristóvão (SANTOS et al, 2010). O processo de povoamento começou na década de 1960, a partir da transferência de grupos de pessoas cujas residências de origem foram desapropriadas, motivando um processo de invasões sequenciadas – conforme exposto no tópico anterior. A origem do termo ―Planeta dos Macacos‖, segundo a MP Lourdes, remonta ao período da primeira transferência de moradores para a região, há mais de 50 anos. Os novos moradores ficaram amontoados numa área cujo chão era de terra, a qual, hoje, funciona como uma quadra esportiva improvisada. De acordo com Lourdes, quando chovia, as crianças deste grupo de novos moradores, todas negras, corriam pela lama que se formava, sujavam-se e, por isso, eram alvo das chacotas dos moradores mais antigos. Conforme ressalta:

Dizem que é porque eles ficaram na antiga quadra, ali, sabe onde é? Ali no ponto perto da passarela... Ali era com chão de barro, então os meninos ficavam brincando, pulando todos sujos de lama e as pessoas diziam: - olha os macacos! E aí ficou sendo assim. Era porque os meninos ficavam sujos... A lama secava na cara deles (risos). (MP Lourdes, 07/03/2013).

O termo ―macaco‖ é uma manifestação racializada que se desenvolve nas tensões entre os distintos grupos sociais. Sabe-se que pessoas negras são associadas aos símios por outros grupos raciais, com o intuito de lhes tirar a humanidade e dignidade. Ou ainda por negros (as) que internalizam a discriminação racial, ocultando a sua identidade racial ―original‖, num processo que se desenrola ao longo da nossa história (FANON, 1980; GONZALEZ, 1983). No bairro, o termo ―macaco‖, inicialmente, constituiu uma forma de inferiorizar moradores (as) negros (as) que vinham de outro contexto social, ou ainda, de um contexto no qual a situação de pobreza era extrema. Mas também, ―Planeta dos Macacos‖ é uma forma jocosa que os moradores tomaram para discriminar o outro grupo, como uma alusão ao filme de Franklin J. Shaffner (1968). 156

Hoje, os próprios moradores adotam a designação de ―Planeta dos Macacos‖, assumindo-a como parte de sua construção identitária. Interiorizaram a discriminação de raça e classe que permeia o constructo, denotando o processo de alienação e assimilação indicados por Gonzalez (1983) e Fanon (1980). Os (as) moradores (as) aderiram de forma incondicional aos valores culturais dos grupos que inferiorizaram os seus antepassados. A partir daí, a parceria estabelecida entre a polícia e a imprensa local desempenhou um papel, ao longo dos últimos anos, de fixar esses moradores no campo da marginalidade social. Na divulgação de dados sobre o crime pela mídia, por vezes, distorcidos da realidade, sobre as diversas regiões de conflitos urbanos da capital, a polícia e a imprensa estabelecem uma ligação direta entre o contexto violento e a designação ―Planeta dos Macacos‖. É como se ―Planeta dos Macacos‖ constituísse um espaço naturalmente inclinado para a criminalidade. Isto é, expõem as pessoas envolvidas com as ações criminosas, associando não só estes como todo o conjunto de moradores ao termo que lhes é atribuído. Na briga pela audiência e/ou venda de jornais, detalham casos permeados por uma ética própria, geralmente, responsabilizando essas pessoas pela situação de pobreza, assim como pelas altas taxas de criminalidade violenta. Essas narrativas sobre o crime fomentam o sentimento de vingança da sociedade contra a população discriminada (CALDEIRA, 2000). Logo, associam o nome ―Planeta dos Macacos‖ à violência e desordem, perpetuando tensões raciais e de classe, reproduzindo mais violência. Ao indagar sobre a origem do termo ―Planeta dos Macacos‖ às MPs mais jovens, durante as oficinas de formação, elas fizeram a associação perpetrada pela polícia. Confirmavam a designação ―Planeta‖ com risos e manifestavam a certeza de que o nome correspondia àquela realidade. Assim, as moradoras desse ―pequeno bairro‖ o referenciam ora como Conjunto Habitacional de São Cristóvão (raramente), ora como ―Planeta dos Macacos‖ (com maior frequência). No presente trabalho, utilizo a segunda designação, porque é a forma prevalecente entre os comentários das moradoras que participaram do curso MP e, mais especificamente, entre as entrevistadas. Tomei conhecimento sobre o seu nome original no momento da pesquisa. Dado o exposto, cabe uma explanação sobre um dos locais em que o curso MP foi executado – o Colégio Municipal de São Cristóvão, ou ―Colejão‖, como é conhecido na região. A escola municipal é sediada no ―pequeno bairro‖ do ―Planeta dos Macacos‖. Atualmente, a escola tem uma estrutura envelhecida, cuja arquitetura apresenta uma técnica 157

de ―encaixe‖ de estruturas de concreto das paredes. A sua estrutura permite uma boa circulação de ar nas salas e demais dependências do local, nos dois andares. No térreo, ficam os banheiros, três salas de aula, a sala das professoras, a copa, a secretaria e diretoria, uma sala de depósitos, um laboratório de informática, garagem, um jardim e, uma área grande onde as crianças brincavam nos intervalos. Algumas salas de aulas se encontravam em péssimas condições, uma delas interditada por causa de problemas na estrutura, já a outra continha uma parede rachada, prestes a desabar, escorada por um armário grande. Esta sala de aula, entretanto, não estava interditada e funcionava para as crianças menores. No andar de cima havia quatro salas de aula e, os corredores bastante expostos às vistas dos (as) moradores (as), voltadas para o fundo das suas casas, com muita proximidade. Duas dessas salas também estavam interditadas, desta vez por causa da quantidade de pombos que habitava no local, visto que a cobertura do prédio estava desgastada. Até nas salas onde funcionavam as aulas era possível sentir o odor desses animais. Ao longo das oficinas do curso de formação pelo PRONASCI, algumas mulheres e eu desenvolvemos uma coceira nos braços, atribuída ao ambiente, sempre sujo de dejetos e penas de pombos. Chamou-me a atenção o fato de haver um laboratório de informática com dez (10) computadores, contudo, sem que as crianças e demais moradores do bairro tivessem acesso. Só as professoras tinham acesso – inclusive eu. Os computadores foram doados à escola e fizeram parte de um projeto desenvolvido em outra ocasião. Todavia, permanecem no local sem serem utilizados pela comunidade escolar, por falta de iniciativa dos (as) gestores (as) em organizar um projeto de uso. Ao perguntar aos funcionários a razão de a sala estar fechada, responderam-me que faltava um projeto para que os computadores pudessem ser disponibilizados para as crianças. Assim, a sala servia também como um depósito de livros novos e tênis para distribuição aos (às) estudantes. O banheiro das crianças ficava ao fundo, num lugar bastante inapropriado, porque ficava longe das vistas dos adultos. Ao longo das oficinas, fui identificando vários problemas, ouvindo também relatos sobre a estrutura física do local. Algumas MPs criticaram a estrutura da escola pelo fato de facilitar a ocorrência de delitos entre estudantes. Thaís relatou histórias de violência sexual sofrida por algumas estudantes pelos colegas, dentro do banheiro feminino. Já outra MP, durante o desenvolvimento das oficinas, relatou que sua filha sofria assédio toda vez que ia ao banheiro. Como a gestão da escola não interviu no caso, a criança parou de utilizar o espaço, sob a orientação mãe. Além disso, em frente ao banheiro, havia um 158

pequeno matagal, em que poderia se esconder até uma pessoa adulta, representando mais perigo à comunidade que utilizava o espaço. A água do único bebedouro da escola estava contaminada pela sujeira dos pombos. Contudo, as crianças bebiam dessa água com a permissão dos adultos (gestora, funcionários e professoras). A água limpa somente era disponibilizada para as visitas. Não identifiquei nenhuma preocupação dos adultos com a saúde das crianças. Todavia, as MPs que exerciam liderança no bairro conheciam relativamente o problema e se mostravam indignadas com a situação. Nessas condições, a escola fica fora da estatística nacional de 0,6% das escolas com infraestrutura avançada, portanto, próximas do ideal para o ensino (NETO et al, 2013). Passo, agora, para a apresentação das MPs que contribuíram com as informações reunidas neste trabalho.

3.1.3 As MPs em foco

As MPs alocadas no Colégio Municipal de São Cristóvão (o ―Colejão‖) se dividiram em duas turmas bastante distintas entre si. As turmas Municipal I e II compreenderam 48 mulheres, cujas idades variavam entre os 19 e 65 anos, a maioria casadas, com filhos, mas havia também as solteiras com e sem filhos, quase todas desempregadas - com exceção de algumas poucas agentes de saúde -, alfabetizadas, como exigência do curso, com escolaridades variadas. Havia algumas lideranças comunitárias, porém, a maioria era composta de mulheres que passavam a maior parte do tempo em casa, desenvolvendo as atividades domésticas. As turmas se distinguiam em número e comportamento, sendo que a Municipal I continha 33 mulheres, bastante participativas e colaborativas no desenvolvimento das oficinas. Portanto, diferente da turma Municipal II, que, embora em menor número, 15 no total, apresentou grau maior de dispersão e conflitos, dificultando o andamento das atividades propostas. Foi possível identificar uma tensão promovida pelo convívio direto com os problemas decorrentes de um bairro segregado pela rivalidade entre lideranças do tráfico de drogas e acometido pela violência institucional. Algumas MPs eram esposas, tias, mães ou irmãs de 159

traficantes, em alguns casos, de envolvidos cumprindo pena em penitenciária ou na delegacia à espera de julgamento. Outras mantinham algum tipo de relação de afetividade com os mesmos. Nesse sentido, as suas expectativas sobre a formação eram grandes. De modo geral, elas buscaram obtenção de conhecimento sobre os seus direitos e deveres, promoção da paz e a continuidade do projeto, em suas palavras: menos brigas, mais oportunidades, trabalhos, igualdade; ou cursos profissionalizantes e ajuda para os jovens; ou boa educação, enfrentar brigas familiares, mudança total; ou uma vida melhor, mudar a vida de muitas famílias que estão sendo destruídas pelas drogas, combater a violência que está demais em nosso bairro; por fim, união, cidadania, que este projeto venha mudar a realidade atual da nossa sociedade. O perfil das turmas para o curso de MP compreendeu uma estratégia da equipe de coordenação em congregar mulheres com perfil de liderança para o desempenho das atividades de mediação de conflitos, diante de alguns imprevistos ocorridos durante a seleção. Diante da desistência de muitas candidatas, então, a equipe afrouxou critérios seletivos, inserindo as mulheres que já desenvolviam atividades de liderança. As poucas líderes fariam o papel de mediadoras dentro do próprio grupo. Conferi o destaque no perfil da turma, de um modo geral, agora, situo algumas particularidades, com o intuito de argumentar sobre a situação na qual se encontram essas mulheres. Os nomes atribuídos às mulheres que prestaram as informações são fictícios, dada a importância à preservação das suas identidades, conforme a ética no trabalho de pesquisa social e das Ciências Sociais. O anonimato das pessoas envolvidas no desenvolvimento da pesquisa implica em cuidado com relação à integridade moral e física. Levo em consideração os pontos referidos, assegurando como princípio ético a oposição a qualquer possibilidade de identificação dos relatos às identidades das mulheres envolvidas. Entretanto, vale considerar que o anonimato não é algo inteiramente conquistado, já que as histórias circulam nesses espaços e entre as próprias personagens, e dadas as posições de destaque assumidas por algumas delas. Selecionei sete mulheres do bairro de São Cristóvão para compor o processo da construção dissertativa, representando um pequeno grupo das beneficiárias da política. Para tanto, segui dois critérios. Dadas as circunstâncias de hostilidade por parte das lideranças do tráfico de drogas – como já descrito anteriormente – selecionei as participantes das oficinas dos grupos que liderei no trabalho de consultoria pedagógica pelo projeto MP. Durante a 160

formação, eu e as MPs havíamos cultivado laços de amizade e relações de confiança entre nós. Então, preferi aquelas que já vinham num processo de expor problemas no bairro, tanto nas aulas, como em conversas informais e particulares comigo nos intervalos. Portanto, as que sentiam maior liberdade de expressar suas observações e queixas. Selecionei o primeiro grupo de mulheres formado por Dilma, Rita e Thaís – as duas últimas, líderes comunitárias no bairro. Assim, como primeiro critério, procurei reunir mulheres de referência no bairro, selecionando quem já exercia liderança comunitária antes do processo formativo, assim como quem não havia passado pela experiência, mas que já fazia queixa sobre o contexto em que se deu o projeto do PRONASCI. Além disso, como segundo critério, agreguei ao grupo as MPs indicadas pelo primeiro grupo constituído, bem como pela coordenadora Fátima. Então, Diana foi indicada por Dilma, que era sua vizinha; Lourdes e Marta foram inseridas por indicação de Thaís, que me alertara, inicialmente, sobre o risco, caso entrevistasse outras MPs; por fim, incluí a líder comunitária Zeferina, por indicação de Fátima, a única participante de outra turma do curso de formação (ainda no ―Planeta‖), por ser uma das MPs mais antigas do bairro. Então, fechei o grupo de sete MPs, cujas idades se encontravam no intervalo de 33 a 63 anos. Essas MPs são moradoras do Parque São Cristóvão, da Rua Yolanda Pires, do Conjunto Habitacional de São Cristóvão (―Planeta dos Macacos‖ ou ―Planeta‖) e das proximidades da Rua Aliomar Baleeiro, com exceção da moradora da cidade de Lauro de Freitas. Durante a pesquisa, constatei uma divisão, em particular, entre as MPs segundo dois aspectos. O primeiro ponto de cisão no grupo se estabeleceu com relação ao apoio e continuidade de laços e atividades estabelecidas ao lado de Fátima. Uma parte passou a hostilizar o trabalho de Fátima, em virtude da falta de parte do pagamento de uma campanha na qual trabalharam por incentivo da mesma. É costume candidatos pagarem um valor módico pelo trabalho de distribuição de ―santinhos‖ de candidatos em dias de eleição. Então, Fátima resolveu mobilizar estas MPs para o trabalho. Entretanto, o candidato deixou de realizar o pagamento prometido, de forma que um grupo de MPs culpou a coordenadora. Por sua vez, houve outro grupo de MPs que acreditou na idoneidade da liderança e permaneceu apoiando o seu trabalho, logo depois, ingressando no outro projeto chamado de Mulheres da Paz em Ação. Oliveira (2009) problematiza o alcance dos movimentos populares urbanos no Brasil nos anos 1990, enquanto clientela política de grupos, longe de se constituírem como base de 161

um movimento político. O movimento tal como se apresenta indica a crise do sistema político cujos atores não desempenham o questionamento da organização social. Em São Cristóvão, os candidatos locais envolveram a população durante o período eleitoral, alguns se elegeram, mas se distanciaram das questões referentes ao bairro de origem. O segundo aspecto de cisão entre as MPs se estabeleceu com relação à proximidade estabelecida com os grupos de traficantes. De um lado, posicionavam-se as MPs que mantinham relacionamentos variados com essas lideranças, como também mantinham envolvimento com a atividade criminosa. Essas MPs não escondiam tais laços e despertavam sentimentos de repúdio pela outra parte do grupo. Do outro lado, ficaram o grupo das mulheres que não estabeleciam esses tipos de contatos com os (as) líderes do tráfico. Não foi possível desenvolver um estudo aprofundado sobre as MPs ―envolvidas‖, dadas as circunstâncias já mencionadas. Entrevistei as MPs que exerciam (ou não) as atividades comunitárias no bairro, sem vínculo com o tráfico de drogas. O primeiro grupo de MPs ao qual darei uma explanação particular é formado por Dilma, Diana e Marta, que não exercem atividades de liderança no bairro.

3.2.3.1 Dilma

Dilma é uma mulher de 44 anos de idade, autodefinida como parda durante a entrevista, mas nos seus escritos se coloca como mulher negra. Ela tem o Ensino Médio concluído, é casada, mãe de três filhos, desempregada e a única responsável pelas atividades domésticas em sua casa. É moradora do bairro há catorze anos. No curso, Dilma chamou a atenção da turma devido à quantidade de páginas escritas com seus pensamentos e sobre o seu cotidiano, em forma de diários – a atividade proposta, já mencionada anteriormente, para viabilizar a expressividade das participantes – como também pela constante participação nas oficinas de formação. Em sua escrita se fazem presentes críticas que tece sobre a sua condição de mulher negra, pobre, casada com um homem branco, mãe de dois filhos, moradora de um bairro com problemas como falta de transporte urbano, poluição sonora, brigas constantes

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entre vizinhos, falta de espaços de lazer em que possa estar com os seus filhos, saneamento básico, falta de água, incidência alta de violência, etc. Dilma precisava aumentar a renda familiar, por isso se inscreveu no Projeto do PRONASCI. A MP cumpriu as atividades propostas pelo projeto de forma satisfatória, conforme avaliado pela equipe pedagógica. Sobre as atividades que remetiam à sua história de vida, nos seus relatos, orais ou via diário e outras produções escritas, desenvolveu pouco sobre o seu passado, e tornou públicos, geralmente, os acontecimentos mais recentes da sua vida, principalmente, o seu casamento e a sua relação com os filhos e vizinhança. Nos breves relatos sobre a sua infância, Dilma se remete exclusivamente à situação de violência pela qual passara na casa que habitava com a família. Na época, o grupo familiar composto por Dilma (filha), pai, mãe, irmãos e um agregado eventual, numa ―casa de luxo‖, num momento em que o seu pai ―tinha condição‖. Teve uma infância marcada por situações de violência doméstica, familiar e sexual, aqui tomadas segundo a conceituação estabelecida na Lei 11.340/2006, como violação dos direitos humanos de mulheres e meninas no que tange à negligência, discriminação, exploração, opressão e agressões verbais/físicas/sexuais. Nesses termos, Dilma sofria agressões físicas e humilhações de sua mãe quando não correspondia às suas expectativas, principalmente, quando urinava na cama enquanto dormia. A mãe relatava aos familiares e vizinhos o problema da filha que, como punição, era alvo de chacotas, o que provocava a perda de respeito diante dos irmãos. A situação de violência física e psicológica era alimentada pelo assédio moral ou sexual praticado pelos familiares, vizinhos ou agregados. Dilma descreve o período da seguinte forma:

Eu não fui feliz na minha infância, porque a minha mãe me humilhava muito [...] ela falava para todas as pessoas conhecidas [...] que eu nunca ia me casar, e dizia: quem vai casar com uma mijona, e todos davam risadas. Minha mãe me batia muito e eu ficava tão triste e revoltada... (Atividade de escrita em Diário/Projeto Mulheres da Paz, 2010).

A condição de violência física e psicológica a levou à tentativa de suicídio aos oito anos de idade, bebendo querosene. No ano seguinte, aos nove anos de idade, foi violentada 163

sexualmente no quarto, enquanto dormia, por um agregado que passava uma temporada em sua casa. Dilma afirma ter sido ―a coisa mais horrível‖ que lhe aconteceu. O quadro foi agravado quando sua mãe, ao ouvir dela o que havia acontecido e depois de ter visto o lençol sujo de sangue, ignorou a violação chamando-a de ―louca‖ e permitiu a permanência do agressor na casa, favorecendo, dessa forma, outras tentativas de estupro. A atitude de sua mãe se diferencia do que se observa no comportamento das mães de crianças e adolescentes vitimados sexualmente (LIMA, 2008) que percebem os abusos e denunciam o agressor. Na ausência da mãe, Dilma livrou-se de seu agressor sexual atacando-o com pimenta em seu órgão sexual exposto. Desde então, passou a ser tratada pela família como ―doida‖, o que contribuiu para outras tentativas de abuso sexual praticadas por outros rapazes que frequentavam a sua casa. Dois primos mais velhos, adolescentes com idade entre quatorze e dezesseis anos, assediavam-na sexualmente de forma constante. Dilma pedia ajuda da mãe, entretanto não contava com o seu apoio. Sua saída foi defender-se, novamente, mediante uma resposta violenta, queimando o rosto de um dos agressores com o ferro de passar roupas que usava no momento. Assim, aumentou a sua fama de ―doida‖ dentro da família. Diante da falta de assistência de seus familiares e da violência que se configurava em sua vida, as tentativas de suicídio rondaram seus pensamentos até os seus dezessetes anos de idade, quando deixou de estudar e foi trabalhar como empregada doméstica. Assim, teria mais liberdade e melhores condições de custear as suas necessidades básicas, longe da família. A convivência com o patrão, médico, possibilitou uma melhora na sua saúde emocional e psicológica e, sua autoestima aumentou quando passou a tomar remédios receitados por ele, depois de ouvi-la sobre o seu problema de depressão. A melhora no quadro de sua saúde foi possível porque, pela primeira vez, sentiu-se respeitada. O seu problema de depressão foi tratado com a atenção médica do patrão, alguém fora do seu contexto familiar, portanto, fora do espaço que considerava como base para o acolhimento. Assim, afirma em seu diário:

Foi aí que tudo começou a fazer muito sentido na minha vida, e comecei a dar muito valor à vida, aquela tristeza que sentia desapareceu. É por isso que tenho problemas hoje, mas não pior como os problemas de antes. Falar sobre o passado é como se eu tivesse vivendo tudo de novo. Eu não gosto muito de falar sobre isso. (Atividade de escrita em Diário/Projeto Mulheres da Paz, 2010).

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Dilma relatou a sua história de violência na infância para todas as mulheres presentes na sala de aula, durante uma das oficinas, movida pela necessidade de expor, pela primeira vez, o sofrimento que guardava represado em sua memória. Foi, portanto, uma forma de romper com o silêncio e a angústia que trazia com relação ao passado, que abrigava a experiência de estupro, assédio e negligência. Entretanto, recusou-se a continuar relatando sobre sua infância, a ponto de não tornar conhecida a ocupação de seus pais e o lugar do seu pai na sua vida, assim como detalhes sobre as condições em que vivia com a sua família. A vida atual de Dilma é desgastante e lhe causa frustração, como afirma em sua narrativa. Não está satisfeita com o seu casamento por causa da rispidez e ―irresponsabilidade‖ do seu ―marido‖, mas também com a falta de recursos financeiros para levar uma vida tranquila, em que possa se alimentar bem e desenvolver atividades de lazer. Segundo seus escritos, parou de ir ao cinema quando casou, além disso, vê-se impedida de viajar e de ―passear‖ com seus filhos por falta de dinheiro para se locomover na cidade e custear as despesas. Relata, então, no seu diário:

Não é muito que ganho nesse Projeto, mas dar pelo menos para sair um pouco com meus filhos. [...] Vivo uma vida de faz de conta, fecho os olhos um pouco e fico delirando em pensamentos, sempre pensamentos bons. (Atividade de escrita em Diário/Projeto Mulheres da Paz, 2010).

Em alguns momentos do seu diário, Dilma menciona ―fugas‖ para a sua condição de falta de dinheiro e de trabalho remunerado. Geralmente, para esquecer os seus problemas, ela desenvolve as tarefas domésticas até ficar esgotada, para depois dormir durante a tarde. Assim, trabalha sem reconhecimento do cônjuge, dorme ―fora de hora‖ ou se perde em pensamentos nos quais desenvolve projeções fantasiosas sobre a sua vida. Dilma deixa o lar de seus pais, onde realizava tarefas domésticas e vivia em situação constante de violência, para viver com seu cônjuge e filhos também de forma desgastante. A transformação da ―menina‖ em ―mulher‖ é perpassada pelo modelo de submissão feminina. Mesmo quando Dilma desautoriza o marido em determinados momentos, não rompe com a condição de violência que permeia o seu lar, desta vez, não mais física, mas simbólica. Pois, ela é obrigada e se obriga a abdicar de um trabalho remunerado em defesa dos padrões 165

tradicionais que sustentam os grupos familiares, em que se espera da mulher as atividades de cuidado dos entes do grupo (TAVARES, 2010). Nos lares de chefia masculina, cujos padrões morais se baseiam na autoridade do ―homem que é homem‖, a contrapartida da mulher é ser ―boa dona de casa‖. A mulher ―boa dona de casa‖ deve acompanhar as conquistas do companheiro trabalhador. Ela faz com que o dinheiro, apesar de pouco, dê para o suprimento das necessidades da família, motivo pelo qual é respeitada. Entretanto, recebe a menor fração da comida feita por ela, além de assumir a obrigação de servir o companheiro com presteza e subserviência e passar por situações em que são violentadas fisicamente, moralmente. São padrões nos quais se mantém muitas famílias brasileiras (SARTI, 1996). O racismo é outra forma de violência que relata em seu diário. Num dos episódios, a agressão partiu da mãe e da irmã do seu cônjuge, numa visita à casa das mesmas. Ela desabafa assim: ―Elas me chamaram de preta do cabelo duro, e disseram que a maior infelicidade delas foi ver ele casando com uma preta, uma negrinha e que ele foi o único a dar esse desgosto para a família‖. As implicações da hegemonia da branquitude no imaginário social se manifestam nas relações sociais como uma violência invisível e repercutem negativamente na subjetividade das mulheres negras (CARNEIRO, 2002; 2011). Com uma história de vida atravessada por situações cotidianas de violência, Dilma assumiu a sua expectativa com o curso do PRONASCI em lutar contra a depressão que a afligia, contraditoriamente, perpetuando a sua suposta obrigação em relação ao outro, ―ajudando a comunidade no que for possível, com a ajuda do grupo, com a união de todos.‖.

3.2.3.2 Diana

Diana, com 33 anos de idade, estudante universitária, declarou-se parda, em união estável, com dois dependentes, sem renda mensal, cadastrada no programa Bolsa Família. O seu cônjuge também está desempregado, mas é ela quem assume sozinha a execução das atividades domésticas. Vive em situação de violência doméstica e familiar e, mantém convívio com o agressor por causa da ajuda financeira que recebe dele, dos ―bicos‖ que faz, 166

para custear os seus estudos. Ela é moradora do bairro de São Cristóvão há cinco anos e a sua religião é a confiança que deposita em ―Deus‖. Afirma: ―creio no Ser Supremo, que fez os céus e a Terra.‖. A partir da sua postura e produção nas oficinas do curso, foi possível perceber alguns aspectos da sua personalidade e, da forma de se relacionar com as pessoas ao seu redor. Diana era bastante participativa, mostrava-se sempre sorridente e solícita para desempenhar as atividades propostas. A MP se definia como uma pessoa amorosa, sensível, alegre e, assumia os seus defeitos, vaidosa, ciumenta e nervosa. Algumas vezes, reportou-se a mim para pedir orientações sobre como agir em situações que envolviam seus filhos. Num momento, queixou-se da falta de apoio financeiro por parte do pai de sua primeira filha, ela não sabia como mover uma ação na Justiça para pedido de pensão alimentícia; no outro, não sabia como agir diante da vontade que a sua filha de 10 anos tinha de viver com o pai e não com ela, que vivia com outro homem e o filho do novo casal. Em seu contexto familiar, sentia-se ―insignificante‖, o que desencadeava um sentimento de inferioridade em relação aos outros, especificamente, em relação ao seu atual cônjuge. Os indivíduos e a cultura legitimam pactos, diferenças, acuando e sobrepondo definições aos demais. Os sistemas simbólicos propagam e impõem desejos e ordens de um grupo sobre o outro, o que conhecemos como violência simbólica. Assim, as relações de força são alimentadas e sustentadas, mantendo o ciclo da violência. 57 Numa atividade proposta durante o segundo mês do curso, em que as participantes deveriam estabelecer um paralelo entre os ―papéis‖ das mulheres e os dos homens na sociedade, Diana se remete à sua condição própria de desigualdade cotidiana. Para ela, a atribuição da ―mulher‖ é ―cozinhar, passar, cuidar dos filhos; trabalhar fora; outras não têm responsabilidade; não fazem nada vezes nada.‖. Já que não se satisfaz com essas condições postas para o universo feminino, a MP estabelece uma série de pontos nos quais as mulheres encontram formas de realização pessoal. Então, as mulheres devem ―conquistar o seu espaço; ser mais decisivas nos assuntos; não deixar que o homem baixe o seu alto estima; deixar os filhos com o marido e se divertir; se profissionalizar para ser dependente dos seus direitos.‖ Os seus desejos passam pela conquista da sua cidadania (YOUNG, 1996), pelo respeito aos seus direitos, fim da violência e pela conquista do mercado de trabalho.

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Sobre a violência simbólica, ver Bourdieu (1998).

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Por outro lado, Diana determina os espaços considerados masculinos como a falta de responsabilidade sobre os assuntos familiares. Segundo sua observação, os homens não desenvolvem as atividades domésticas, não cuidam dos filhos, como também ―não ligam para a mulher quando é dia de domingo, pois é dia sagrado para eles de jogar bola.‖. Segundo as suas afirmações, a falta de atenção e responsabilidade dos homens, de modo geral e, em particular, do seu cônjuge, é confrontada pelos poucos casos de homens que assumem o sustento familiar e desempenham atividades domésticas. Este último padrão se aproxima do que ela espera de um homem, que respeite a mulher e a ajude nas responsabilidades ―educativa e emocional‖, que seja paciente e menos ―machista‖, que converse e tenha momentos de lazer com a família, por fim, que dê atenção às colocações da mulher. Nesses padrões, a ordem moral é recortada pelas relações de gênero (SARTI, 1996). A entrevista foi realizada em sua casa, que era pequena, com dois quartos e móveis envelhecidos, abrigando uma mesa cheia de livros que seriam lidos por Diana para as atividades na faculdade. O seu ―marido‖ estava do lado de fora da casa, sentado à porta, conversando com outro vizinho, não muito satisfeito com a nossa presença. Eu estava com Dilma, que se disponibilizou a me acompanhar até a casa de Diana, já que era perigoso o meu trânsito solitário pelo bairro, naquelas imediações. Dilma acabou acompanhando toda a entrevista e se manteve em silêncio, como eu já havia pedido anteriormente. Falamos baixo o tempo todo para evitar que o seu marido e vizinhos escutassem pela parede da casa, que era muito estreita. Diana sempre criticava o seu marido e acabou confessando que pretendia se separar, para não mais se submeter a sua violência. A ―família‖ abriga importância no mundo social quando se transforma num componente de mediação entre indivíduo e sociedade. Mediante a ausência de representações públicas eficazes, a ―família‖ se constitui como elo afetivo mais forte, o substrato da identidade social, que reafirma a autoridade masculina na mediação com o mundo externo – no caso de lares chefiados por homens. As famílias pobres atravessavam dificuldades financeiras e situação de desemprego ou subemprego por parte dos membros que a constituíam. Nesse momento, a autoridade assume valor positivo à medida em que o homem se coloca como seu provedor. Destacadas, portanto, as qualidades morais que sustentam o ―homem que é homem‖ nas ―situações adversas‖. Legitima-se a autoridade pelo fato de ser homem, mesmo quando enfrenta dificuldades na manutenção do lar (SARTI, 1996).

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Diana não encontrava possibilidades claras, nem imediatas de resolver a situação de violência doméstica, mantendo-se no ambiente de hostilidade e humilhações frequentes. Ela afirmou: ―antes eu ficava chorando, tinha problema emocional, me achava inferior. Agora superei. Estou me arrumando mais. Meu marido faz com que eu me despreze. Estou tentando me separar, mas preciso dele para pagar meus estudos.‖. Para ela, o processo formativo Mulheres da Paz contribuiu para que se fortalecesse ―emocionalmente‖, elevando a sua autoestima e incentivando a continuação dos seus estudos. A partir do curso do PRONASCI, ela pode se valorizar e buscar uma saída, através dos estudos, para dar um basta à situação de violência à qual estava submetida.

3.2.3.3 Marta

Marta tem 34 anos de idade, declarou-se ―preta! ‗tifun‘, com muito orgulho!‖. Encontra-se em união estável, com dois dependentes. A única entre as entrevistadas que declarou como renda o benefício do programa Bolsa-Família, embora as outras também sejam cadastradas. Assim, recebe com o benefício o valor de R$ 134,00 mensais. Ela, como as colegas, é quem assume, em casa, a responsabilidade pelo desempenho das atividades domésticas, como ―boa-dona-de-casa‖ (SARTI, 1996), chegando ao ponto de não sentir vontade de sair com seus familiares, no final da semana, por causa do forte cansaço que sente. Também vive em situação de violência doméstica e familiar. Tem o segundo grau completo e mora em São Cristóvão há treze anos. Católica, Marta acredita que a ―fé move montanhas‖ e, é através da sua fé que encontra esperança de mudar as ações violentas do seu cônjuge. É uma mulher de voz e temperamentos fortes, que faz com que as pessoas a temam e respeitem. O tempo todo, durante as oficinas de capacitação do PRONASCI, ela defendia as suas ideias e criticava com veemência aquelas com as quais discordava. Contudo, é possível notar a sua sensibilidade e sentimento de empatia com relação aos que lhe são próximos, demonstrando também respeito à diferença entre ela e as outras mulheres. Marta se considera uma pessoa amiga, compreensiva e sincera que, por vezes, também se mostra ―nervosa, chorona e pensativa‖. 169

Como forma de preconceito, assume a aversão que sente com relação às drogas, sendo possível compreender, por causa dos conflitos que envolvem o uso e o tráfico de entorpecentes, principalmente no contexto onde mora. Marta mora numa zona de intensos e frequentes conflitos provocados pelo tráfico de drogas. As pessoas convivem amedrontadas, ―à flor da pele‖, com ânimos alterados por terem vivenciado situações de trauma, envolvendo vizinhos e familiares. Entre os casos relatados, destaco a impossibilidade dos (as) moradores (as) de usarem o aparelho telefônico móvel nas ruas, por ordem dos traficantes. As pessoas que se arriscam a utilizar os aparelhos nas ruas, ou mesmo as desavisadas, tomam tapas, coronhadas e sofrem ameaças por parte destas lideranças. Estes traficantes temem, com o uso do aparelho celular nas ruas, a passagem de informações pelos (as) moradores (as) para a polícia ou traficantes rivais. A violência se manifesta nas ocorrências diárias, indicando regras e condutas que favorecem agressões e dificultam a socialização das novas gerações (MACHADO, NORONHA, 2002). Marta já presenciou um caso destes e, com o projeto do PRONASCI, ela alimentava esperança de que mudasse o clima e ambiente de violência no bairro de São Cristóvão. Entretanto, foi quem mais esboçou críticas sobre a política, que teria deixado de intervir nos problemas mais sérios da região, de forma efetiva. Então, esse foi o grupo composto por mulheres que não havia desenvolvido atividades de liderança antes do processo formativo em MPs, que fizeram parte das turmas realizadas no ―Colejão‖, sob a minha liderança. Estas entrevistas transcorreram nas casas das mulheres, numa comunidade religiosa cedida pela diretora do espaço, e por telefone, em tentativas póstumas de recuperar informações mal compreendidas, extraídas do trabalho de campo. A seguir, disponibilizarei ao (a) leitor (a) informações sobre o outro grupo, composto pelas MPs, líderes comunitárias, em que temos Rita, Thaís, Lourdes e Zeferina.

3.2.3.4 Rita

Rita tem 52 anos de idade, negra, está concluindo o Ensino Superior numa faculdade particular. É solteira, tem um dependente e dispõe dos serviços de uma empregada doméstica 170

para o cuidado das tarefas de sua casa. Reside em Lauro de Freitas, entretanto, permanece no bairro de São Cristóvão durante o dia, realizando um trabalho social há dez anos. Autônoma, é líder religiosa num templo judaico, onde se responsabiliza também por uma ONG, que funciona no mesmo local, prestando serviços comunitários, ou financiados pelo governo, à comunidade. O seu processo de liderança no templo se distancia da tendência apontada nos estudos sobre o sacerdócio feminino em igrejas pentecostais (MACHADO, 2005). Nestas, o sacerdócio feminino se associa ao laço matrimonial, já que muitas pastoras são casadas com homens que ocupam posições hierárquicas iguais ou superiores em suas denominações. Rita, de ordem religiosa diferente, não percorreu o mesmo caminho e mantém o posicionamento liberal judaico que permite a participação igualitária da mulher judia, acreditando no dinamismo da lei judaica. De acordo com Kochmann (2005), o Brasil é um dos países da América do Sul pioneiros na formação de rabinas e no desempenho de ações de lideranças religiosas femininas. Preferiu participar do curso do PRONASCI em São Cristóvão por causa do trabalho social que desenvolve no bairro. Durante as oficinas, chamou-me a atenção a sua forma firme, séria, segura e altiva, sempre sustentando o olhar nas colocações diante da turma. Inicialmente, Rita me analisava com um tom desafiador, porém, com o passar das aulas, manteve uma postura um pouco mais relaxada, sem deixar de manter a sua firmeza. Era muito discreta e nunca expunha questões pessoais. Quando alguma colega fazia um comentário polêmico, rapidamente, Rita voltava o seu olhar para mim, como todas as outras. No entanto, o que a diferenciava das demais era sua altivez mantida constantemente. Rita mantinha excelente participação e assiduidade no curso, mas nas atividades em que deveria expor situações mais íntimas, ou particulares, ela deixava de fazer, ou fazia de forma que não se expusesse, respondendo às questões de forma generalizada. Em sua postura, ficou nítida a distancia que ela estabelecia entre si e as outras participantes, geralmente me comunicando com o olhar, ou com gestos, atitudes que reprovava nas colegas. Eu estive várias vezes com Rita no templo religioso e pude ver um pouco da sua rotina no espaço. O templo/ONG fica numa rua de grande circulação de pessoas, por causa do intenso comércio. Fica próximo a uma sede da companhia da Polícia Militar, a uma Paróquia da Igreja Católica e a uma escola pública. Sua sede é um prédio de dois andares, com quatro salas, um banheiro

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e uma kitnet na parte superior, uma cozinha, um banheiro, três salas, uma recepção e um quintal amplo, onde acontecem as festas promovidas pela instituição no andar inferior. É um local que recebe, principalmente, jovens oriundos de projetos como o PróJovem, Qualifica Bahia, dentre outros, como também recebe mulheres de várias idades, interessadas nos demais serviços oferecidos pela ONG – fisioterapia, aulas de dança, atendimento psicológico, etc., todos gratuitos ou com valores módicos. A ONG também distribui quentinha para moradores de ruas e usuários de drogas. Rita é bastante requisitada e respeitada pelos (as) seguidores (as) do templo e demais visitantes, atendendo a várias ligações e demandas que lhe chegam. Ela devolve todo o respeito com educação, trabalho e liberdade aos presentes. As pessoas ficam à vontade, sem deixarem de manter o ambiente de respeito. A mim, cedeu uma de suas salas, mesmo quando não estava presente, para que realizasse as entrevistas com as MPs, inclusive a entrevista com ela.

3.2.3.5 Thaís

Thaís tem 44 anos de idade, é negra, quituteira, sem renda fixa, solteira e com quatro dependentes. Mora no bairro há dezoito anos, onde é líder comunitária e Conselheira numa escola municipal da região. Também está cursando o ensino superior e se declarou católica, não assídua. Vê-se como uma mulher companheira, prestativa e sociável, mas declara também ser uma ―péssima ouvinte‖, inquieta e que não possui parâmetros para dizer o que pensa quando e com quem tem vontade. Ela revela que divide as tarefas domésticas entre todos (as) residentes em casa e admite que gosta de levar seu filho para a escola diariamente. Para ela, um lazer que considera prazeroso é festa de largo, no entanto, deixou de frequentá-las no bairro devido à violência. É uma mulher bastante vaidosa e voltada para a exploração da sua sensualidade, transmitindo diretamente este padrão para suas filhas. A mãe estava muito orgulhosa da beleza de sua filha, que chamava a atenção das pessoas por onde passava. A adolescente tem o seu físico bastante desenvolvido, o que é valorizado pela mãe e exibido à vizinhança, atraindo os olhares para as formas do seu corpo. Na festa em que estavam presentes somente MPs, mãe e filha foram as únicas que dançaram 172

pagode durante todo o tempo, de um cd da banda “Black Style”, que trouxeram de sua casa. Ambas dançaram de forma sensual sob os olhares de repreensão de algumas das mulheres presentes, como também de risos de outras que não dançavam, mas se divertiam com a cena que viam. Thaís, além de dançar, dizia que estaria me ―pirraçando‖, isto por causa das oficinas em que discutimos letras de músicas que depreciavam mulheres e meninas. Na ocasião, havia trazido para o debate algumas músicas dessa banda. Assim, contente, a MP extraía o seu prazer na própria execução da dança, como também na minha provável reação negativa, conforme a sua expectativa, diante daquela situação. Entretanto, mantive postura relativamente neutra, sorrindo para ela, aceitando a provocação. De acordo com o estudo de Nascimento (2009), a heteronormatividade enquanto discurso está presente nas letras do estilo musical ―pagode‖, estruturando a representação do feminino. Sob tais padrões, o corpo e a sexualidade da mulher estariam sob o controle e poder masculino, expressando, dessa forma, o comportamento, a dança e a corporeidade delineados pelos significados históricos e culturais. Este padrão foi-se repetindo, ao passo em que eu me inseria naquela realidade. Notei este padrão de comportamento em grupos de adolescentes que encontrei nas atividades do templo onde realizava as entrevistas. Em várias oportunidades, em que me encontrava conversando informalmente com algumas das jovens, fui surpreendida pela idade anunciada por elas, sempre aparentando uma média de muitos anos a mais do que a idade que tinham. As adolescentes, a partir dos 11 anos de idade, tinham os seus corpos desenvolvidos destacados nas roupas que se ajustavam à silhueta; traziam os rostos bastante maquiadas, cujo destaque preto nos olhos deixava o olhar amadurecido e sensual. Algumas eram tímidas, a maioria com posturas de mulheres mais velhas, em alguns casos, declarando atividade sexual com seus namorados, o que denota o exercício da sexualidade como natural para essas meninas e adolescentes. 58 Esse padrão de comportamento coincide com algumas situações expostas pelas MPs sobre problemas relacionados à sexualidade das jovens no bairro. As MPs declararam tanto em sala de aula, durante as oficinas, como em entrevistas, que há muitos casos de gravidez na adolescência, no bairro e, ao mesmo tempo, casos de muitas destas mantendo relacionamentos afetivos e sexuais com homens adultos, mais velhos, geralmente casados, e com líderes do tráfico de drogas. A MP Lourdes, assim descreveu:

58

Ver Madeira (1997).

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O que mais tem, as novinhas, o que mais tem é filho! Filho. Um atrás do outro. Sabe porquê? Sabe por quê? Porque tem o Bolsa-Família que vai ganhar. Aí, não precisa trabalhar. [...] Elas faz isso, elas diz isso mesmo na cara de pau! Pra que vai trabalhar se tem o Bolsa-Família? O marido não [...] não sabe porque é! E ficam lá jogando bola, na rua, junto com elas. Subindo e descendo. Olha pra minha cara e diz assim: ―Lu, você tem algum emprego pra mim, alguma previsão?‖. Tá ali, sempre tá ali. ―Vá lá no SIM! Vá no SIM! Na Boca do Rio tem um. Lauro de Freitas também tem um. Vá de pé! Demora não. Vá a pé e volta a pé! Vá lá fazer sua cartinha.‖ (responde a MP a essas pessoas). Mas não vai não. Quer achar é na mão. E se o meio é fazer filho pra ganhar, vai fazer filho! É... (Lourdes, 07/03/2013).

Na entrevista com Lourdes, notei a sua perplexidade e revolta acerca deste tipo de comportamento entres as adolescentes, em relacionamentos afetivos com homens desempregados e que abandonaram os seus estudos. Isto porque as adolescentes que engravidam geralmente permanecem sem a assistência dos parceiros, recorrendo ao benefício Bolsa-Família. No caso particular de Thaís, a sua filha mantém parte desse padrão de comportamento no que se refere à forma de se vestir, porém está sempre ao lado de sua mãe, que teme algum tipo de violência vinda de vizinhos e os riscos de gravidez. Seus filhos e filhas ficam trancados em casa a cadeado, quando ela precisa sair de casa; ou são acompanhados por ela até a escola e outros lugares, a contragosto do que tem 15 anos, que se sente envergonhado por ser acompanhado pela mãe. Além disso, a família deixa de frequentar as festas de largo, local propício para as paqueras e namoros, portanto, ambiente suscetível ao envolvimento destes (as) adolescentes com pessoas que a MP considera desagradáveis e perigosas. Como fora planejado pela equipe do projeto Mulheres da Paz, a condição de Thaís, de liderança em sala de aula, contribuiu bastante para o andamento das atividades da turma em que participava. Geralmente, mantinha-se como observadora, colocando questões em momentos que considerava relevante pontuar, estabelecendo uma postura de mediadora nas oficinas. Em alguns momentos, precisava sair para participar da reunião da escola onde era conselheira. Certa vez, voltou de uma reunião apreensiva, buscando minha opinião sobre uma decisão que deveria tomar diante da questão que lhe fora apresentada. Estava presente na reunião da escola também um representante da Prefeitura de Salvador, para apurar alguns problemas no local, dentre os quais a infestação de pombos, que provocou a contaminação do tanque de água. A sua inquietação decorreu da recomendação que recebera da diretora de negar a situação, sendo que havia a infestação e contaminação. Não opinei sobre a sua postura no sentido de falar ou não falar, mas destaquei o lugar que ela ocupava no Conselho, de 174

representação da comunidade enquanto moradora e usuária dos serviços da instituição. Assim, ela decidiu efetivar a denúncia. Thaís se sentiu muito realizada com a sua participação no curso, declarando que obteve o que procurava. Assim, deparou-se com novas informações e conhecimentos, representando uma abertura para se inserir na vida universitária. A MP atribuiu a sua entrada na faculdade à sua participação no projeto Mulheres da Paz.

3.2.3.6 Lourdes

Lourdes tem 45 anos de idade, branca, solteira, sem dependentes, com renda mensal de R$ 350,00, proveniente do aluguel de uma de suas casas. Completou o ensino médio, faz ―bicos‖ como doméstica, como artesã e, como professora de reforço escolar para crianças e adolescentes – também presta esse tipo de serviço gratuitamente na sede da Associação de Moradores. Para ela, o artesanato é uma forma de lazer, que desenvolve com ―paixão‖. Mora no Conjunto Habitacional de São Cristóvão (é uma das poucas que não chama de ―Planeta‖) há quarenta e cinco anos e exerce atividade comunitária pela Associação. Ela afirma que frequenta todas as religiões, mas que acredita em Deus. Considera-se uma pessoa carinhosa e companheira, além de exigente e orgulhosa. Na ocasião em que participava do curso, Lourdes sofria de um problema de saúde renal considerado grave, por isso tinha um aspecto de palidez e fraqueza durante as oficinas. 59 No entanto, não deixava de participar das atividades, apresentando um bom rendimento ao final da formação. A única ocasião em que aumentou o seu tom de voz foi durante a discussão com uma colega, por quem mantinha restrições, em virtude do seu comportamento, mais despreocupado em relação aos trabalhos do curso, mas também porque essa colega era casada com um traficante. Fora este episódio, manteve postura de respeito diante do grupo e obteve como resposta o carinho e respeito das demais colegas. Na atividade desenvolvida sobre os ―papéis‖ das mulheres e dos homens, manteve o padrão de diferenciação tradicional de gênero, no qual mulheres cuidam ―do lar‖ e dos filhos, 59

Posteriormente, submeteu-se a um transplante de rim.

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enquanto que os homens assumem a responsabilidade pelo sustento da casa. Entretanto, acrescenta o ―novo‖ espaço em que as mulheres estão se inserindo, do trabalho fora de casa, para o sustento da família (SARTI, 1996). Segundo as suas produções sobre a questão, as mudanças sociais deveriam envolver, nos homens, o sentimento de amor ao próximo, de mudanças de caráter, em que seriam agregados a ―vergonha‖, a ―sinceridade‖, a ―honestidade‖ e os valores de amizade. Neste caso, a MP se refere ao estado de agressões frequentes entre os jovens e adultos do bairro. Já no que se refere ao universo das mulheres, ela acredita no processo de valorização das mulheres, somado à igualdade de salários. Durante os encontros, já no momento da pesquisa, Lourdes estava curada e se encontrava em tratamento médico, posterior à cirurgia à qual havia se submetido. Então, deparei-me com uma mulher mais alegre e bonita, que sustentava um tom de voz sempre altivo, seguido de risadas contínuas, surpreendentemente, diferente da mulher que conheci durante a formação. Agora, feliz, mantém um relacionamento afetivo com um morador do bairro, acreditando que a sua cura teria sido proveniente do seu retorno à atividade sexual prazerosa e frequente. Sobre as mudanças desencadeadas pela participação das mulheres no projeto MP, afirma:

Tem muitas que trabalhavam, continuam trabalhando e que estão fazendo parte do grupo, mas tem muitas que não trabalhou, nem continuam trabalhando, que continua tendo aquela vidinha que sempre teve. Não melhorou nada. Pelo contrário! Também não piorou nada. Continuam do jeitinho delas, continuam do jeitinho delas e fazendo filhos. (Lourdes, 07/03/2013).

Nos seus relatos, Lourdes esboça grande satisfação pela experiência agregada às suas atividades de liderança comunitária. Entretanto, não teriam mudado em nada na sua vida cotidiana. Com isso, revela as críticas sobre a política, chamando à atenção para a falta de apoio às MPs na estrutura do programa federal. Segundo Lourdes, as mulheres beneficiárias continuaram, após o projeto, realizando as mesmas atividades que realizavam antes.

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3.2.3.7 Zeferina

Zeferina é uma das MPs de maior idade entre elas, com 63 anos. É uma mulher negra, formada em teologia, que se aposentou como técnica em contabilidade. Não declarou a sua renda. Viúva, residente no bairro há 62 anos, ela convive com dois dependentes. Esta MP é uma senhora muito educada, simpática e séria, cujo trabalho social desenvolvido é de considerável reconhecimento no bairro. É mãe de uma MP que participou de uma das turmas do ―Colejão‖ e já apresenta uma continuidade ao seu trabalho político, no movimento social. Zeferina não fez parte de nenhuma das turmas que liderei nas oficinas, entretanto, participou de uma das turmas do Conjunto Habitacional (―Planeta‖); compôs o grupo para me contar sobre a história do bairro, devido às frequentes indicações que eu recebia de algumas MPs e pela coordenadora Fátima. Por isso, o roteiro direcionado a esta MP se diferenciou do elaborado para as demais, o que não quer dizer que não tenhamos tocado em pontos comuns, sobre as impressões com relação ao projeto do PRONASCI. A liderança que desenvolve tem ligação com as suas atividades comunitárias, datadas desde a sua infância, quando auxiliava a sua mãe no mesmo tipo de atividade no local, em uma igreja evangélica. Os seus pais foram uns dos fundadores da primeira igreja Assembleia de Deus da região, sendo que a sua mãe era quem se destacava pelo trabalho social e ajuda aos vizinhos. Zeferina, hoje, participa das atividades desempenhadas num templo de inclinação religiosa diferente do frequentado por sua mãe. Ela afirma que, enquanto fosse evangélica, assumia posturas rígidas em relação a determinados grupos, como o de homossexuais. Fora da igreja e após a formação em MP, pode rever seu olhar sobre a diversidade, de forma que passou a aceitar o comportamento das pessoas que não agridem, nem prejudicam os demais, sem se importar, por exemplo, com a orientação sexual. Ela é tia da coordenadora Fátima, assim, observo que ambas advêm de um contexto familiar de luta e atividade política nas extensões do bairro, transmitindo-o para as gerações que as sucedem – um dos filhos de Fátima a acompanha na atividade política. Quando se tornou mãe, solteira, com 21 anos de idade, nunca deixou de trabalhar, nem de estudar. Revela que, nessa época, as mulheres corriam atrás do sustento com o trabalho, diferente das jovens de hoje que contam com o programa Bolsa-Família.

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Em casos relatados nos bairro de São Cristóvão, foi possível observar como a sobrecarga de trabalho sobre as mulheres dificulta conquistas entre o grupo. Algumas entrevistadas se referiram a certo incômodo entre algumas beneficiárias, em virtude da diminuta eficácia produzida pela inserção dessas, jovens e adultas, no Programa BF. Segundo os relatos, muitas nestes grupos deixam de procurar trabalho e não se previnem de gravidez sob a expectativa da conquista do benefício. A estratégia de inclusão e de interpelação das mulheres com o Programa BF supõe a operação ideológica em que a mulher se traduz em mãe, assim como também a família se traduz em mãe. A consequência é o fortalecimento da identidade feminina, tradicionalmente atrelada ao cuidado dos filhos e demais familiares e controle da renda, deixando de considerar outras condicionantes para a formulação alcance da política (MARIANO, CARLOTO, 2009). Zeferina e seus pais foram os primeiros a erguerem as casas da região. Algo que foi mais detalhado no tópico referente ao bairro de São Cristóvão, no qual também inseri outros momentos de sua vida, relevantes para a contextualização do local onde foi executada a política pública. Eu e Zeferina tivemos alguns encontros no templo, onde realizamos algumas conversas, contudo, houve um imprevisto no dia programado para a entrevista. Ao chegarmos ao templo, não havia quem abrisse os portões por causa de um imprevisto. Assim, para não conversarmos na rua, sugeriu que fizéssemos a entrevista numa loja em frente ao templo. Com o consentimento da proprietária, ficamos ali, de pé, enquanto conversávamos.

3.1.4 A mediação de conflitos

De modo geral, as atividades desenvolvidas pelas mulheres em processo de formação consistiram no encaminhamento de famílias para os programas de assistência social disponíveis. Os critérios para a escolha dos grupos familiares foram criados sob muita tensão para muitas e, de forma mais livre, para outras envolvidas no processo. O primeiro grupo seguiu parte da indicação do PRONASCI, já que nas suas atividades de ―multiplicadoras da paz‖, deixaram de direcionar jovens em situação de conflito com a lei. A razão para o desvio de direcionamento foi o medo de incomodarem traficantes de drogas e seus 178

familiares/protegidos. Observei, durante as oficinas do curso, o quanto as perturbava o fato de terem que ―mexer‖ com os ―meninos‖. As mulheres se queixaram sobre as atividades solicitadas pela coordenação multidisciplinar de encaminhamento dos jovens. Elas ficaram assustadas com o trabalho que deveriam desenvolver em sua vizinhança, contudo, não formalizaram a sua queixa junto à SEDES, tampouco levantaram questões para a coordenação multidisciplinar. Estas beneficiárias evitaram o enfrentamento tanto com os usuários e traficantes de drogas, como com a gestão do projeto. De um lado, temiam a possibilidade de se vitimarem na comunidade em que moravam. O medo era proveniente da falta de experiência no trabalho comunitário, ou seja, não eram reconhecidas no bairro como agentes sociais. O processo formativo não lhes garantiu a confiança dos vizinhos. Ao contrário, especificamente devido a um equívoco cometido pela área de comunicação da Secretaria de Justiça da Bahia: A imagem das MPs foi abalada com o episódio da sua divulgação pelo Estado, disposta em outdoors distribuídos na via de acesso próxima ao bairro. Nos dois sentidos da Avenida Luís Viana (Avenida Paralela), a mensagem continha a figura de uma MP ao lado de um policial. Portanto, expressava uma espécie de trabalho de parceria entre a ―Polícia Cidadã‖ e essas mulheres. Logo, foram identificadas como ―X9‖, ou ―dedo-duro‖, a serviço da polícia e, contra os traficantes. A coordenadora pedagógica concebe o episódio dos outdoors da seguinte forma:

Na Paralela, tinha dois! Um na ida e um na volta. Um perto do viaduto do CAB e o outro perto da CHESF. Foi uma confusão. Mas isso tem a ver com a área de comunicação da SEDES, do governo do estado, que teve aquela divulgação em outdoor com Mulheres da Paz junto com um guarda, de não ter uma sensibilidade de ver como é que isso ia ser apresentado ao mundo público e de que, continuamente, estar falando nisso... Por que ‗comunicar é colocar um outdoor e que ele fala por se só‘... E o pior é quando fala errado. E eu penso que houve uma péssima divulgação, não houve um programa de comunicação, então, aí, toda essa distorção de fora pra dentro. (Perguntei-lhe por quanto tempo o outdoor permaneceu no local) Ficou um tempinho. Tiraram depois. A gente ficou reclamando, reclamando, as mulheres falando que aquilo era X9, ‗tira‘, ‗não tira‘, a secretaria de justiça... (Coordenadora P, 28/06/2013).

O PRONASCI apresentou a segunda lacuna, desta vez, traçada pela forma como foi estruturada a sua execução. Diferente dos demais estados, a Bahia assumiu a execução em lugar do município, o que fez com que Salvador, através da SEDES e da ONG Avante, 179

assumisse toda a responsabilidade sobre os quatro municípios; além disso, descentralizou as grandes ações, repartindo os projetos entre diferentes secretarias. Estas especificidades provocaram problemas particulares ao estado baiano. Atrapalhou a possibilidade de diálogo entre as secretarias, como também inibiu processos avaliativos que pudessem ser compartilhados entre as gestões, e sobrecarregou as instituições executoras. Nos encontros em que o PRONASCI era apresentado ao público, os dados e avaliações do projeto Mulheres da Paz, por exemplo, eram divulgados sem embasamento e, por pessoas que não tinham envolvimento, nem conhecimento sobre o caso particular deste projeto. A conclusão da coordenadora pedagógica ilustra bem a situação, ao afirmar que:

Porque tinha outro problema na gestão que era assim: nunca foi assim no programa do PRONASCI, mas, aqui, na Bahia, esse programa, ele foi todo repartido. Mulheres da Paz foi pra SEDES, a parte de juventude - Protejo e tal - foi pra SEC (IAT), a parte do programa que era da rede estava com a Secretaria de Justiça e a capacitação dos policiais (a parte da segurança). Então, assim, um programa todo repartido, retalhou-se o programa todo e nenhum outro estado retalhou e na verdade, nenhum estado realizou, quem realizava era o município. E se ficasse com a Secretaria de Ação Social, ela ficava com tudo. Aqui, ficou com o estado, que ficou com três municípios e, além disso, o estado retaliou entre suas secretarias. Então, essa gestão também era muito complicada. Por que na verdade deveria ter tido também nesse aspecto um processo de avaliação, que eu acho que foi muito falho. Assim, o Mulheres da Paz não conversou com o Protejo e trabalhou com pouca articulação das análises que eram feitas pela Secretaria de Justiça nos dois seminários que a gente conseguiu reunir, [...] que foi uma policial, uma chefe de polícia muito boa. Teve um seminário trabalhando integradamente os três projetos, a gente conseguiu trazer o Protejo, o Mulheres da Paz, os policiais, a Justiça. Foi um seminário inicial, a gente queria fazer outro, foi pra trazer expectativas e possibilidades de cooperação. Aí, fora isso, não teve mais nada, nada mesmo. E de vez em quando saia alguém da Justiça parecendo o dono da verdade, fazendo uma análise assim sobre o programa, por que ele foi não sei onde e se encontrou com um grupo de Mulheres da Paz. Ele não sabia de onde tava falando, aliás, ninguém falou mal do Mulheres da Paz porque viu o trabalho que dava, viram o esforço... Então, foi todo retalhado, o PRONANSCI aqui e eu acho que prejudicou a interlocução entre os vários componentes, o Mulheres da Paz, o Protejo, etc. (Coordenadora P, 28/06/2013).

Por outro lado, voltando o olhar para as estratégias das mulheres beneficiárias diante dos desacertos do PRONASCI na Bahia, estas temiam represálias da secretaria executora, a SEDES, ou seja, a possibilidade de perda do benefício, cujo pagamento era de sua responsabilidade. As mulheres participantes me procuravam, no lugar da coordenadora multidisciplinar, em virtude da condição de submissão em relação à mesma, que mantinha 180

uma postura de pouco diálogo e muitas imposições, diferente, portanto, da orientação da EP (ONG Avante) para a condução das aulas. A partir das recomendações da coordenação pedagógica, de um modo geral, discutíamos caminhos relativos ao ―respeito‖ à argumentação das pessoas, nos momentos de conflitos. Com as oficinas, objetivávamos fazê-las se sentirem seguras e conscientes dos seus direitos, para colocarem os seus pontos de divergência, principalmente, em relação ao programa. Assumida essa postura, as MPs se sentiram mais próximas a mim, tornando-me uma fonte de escuta, restringindo o campo das conquistas esperadas para as mulheres no processo formativo, pelo menos até aquele momento. Algumas das queixas que surgiram entre elas foram: ―a gente vai ter que mexer com eles, é! Eles acham que a gente é X9!‖, ou ainda, ―pró, me diga uma coisa, eu vou tirar eles do tráfico e vou oferecer o que a eles? Tem trabalho, tem tênis, tem roupa, tem dinheiro pra eles? Eles querem isso tudo! Eu não acredito nesse projeto.‖ Diante dessa situação, não pude dar uma resposta diferente, senão a de se desviarem da proposta do projeto. Eu não tinha condições de atender àquelas demandas, então, orientei-as a não procurarem os lares onde houvesse algum membro envolvido com o tráfico ou uso de drogas. De forma diretiva, eu lhes dizia: ―Pulem essas casas‖. Os ânimos foram aliviados, sobrando-lhes as famílias que necessitavam regularizar documentos, realizar inscrição no programa Bolsa-Família e outros pequenos problemas. A falta de novas possibilidades para os jovens, público-alvo do PRONASCI, foi latente sob as determinações deste programa, que falhou novamente no que se refere ao início das atividades do Protejo e Mulheres da Paz. O projeto Mulheres da Paz teve início depois de iniciadas as ações do Protejo na Bahia, quando deveria ser o contrário, deixando aberta a questão ―para onde encaminhar os jovens?‖. Assim, configura-se a terceira grande lacuna do projeto Mulheres da Paz. As participantes do curso que se sentiam inseguras em acompanhar jovens em situação de violência, a grande maioria delas, então, adotaram uma estratégia que envolvia, contraditoriamente, subversão e silêncio. Elas não procuraram esses jovens, mas desenvolveram basicamente atividades de encaminhamento de mulheres ao programa BolsaFamília e órgãos de expedição de documentos, bem como orientações às famílias para a resolução dos conflitos que envolviam, por exemplo, a violência doméstica e familiar. Algumas afirmaram:

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O cachaceiro; menina sem documento, encaminhei; arranjei trabalho para a eleição. Procurei as mais pobres, sem informações, que a gente viu que a família mais precisavam, com muitas crianças, com jovens na rua, do Pró-Jovem. [...] Acompanhei várias famílias com problemas com o Bolsa-Família, adolescentes fora da escola. A diretora do Colejão chamava pra eu resolver as coisas... O que a gente fez foi com a gente mesmo. Não teve ajuda de ninguém, do governo, de deputado que a gente apoiou... cadê? Não veio nada pra gente! As pessoas cobram a gente e eu fico constrangida porque não posso ajudar. Eu e uma colega queria dar dinheiro pra uma moça resolver um problema com o Bolsa-Família. Mas aí, a gente não tinha mesmo. (MP Lourdes, 07/12/2012).

Aposentar uma senhora de 72 (anos) sem andar, encaminhei para o INSS, mas não deu em nada. Tem um bocado de filhos que não tinha registro, encaminhei pro CRAS. Basicamente, a Bolsa-Família. (MP Diana, 05/12/2012).

Não foi aqueles conflitos com dificuldades de mediar, eram mais brigas familiares, briga de irmãos, de mulher com marido, mulher com a questão do Bolsa-Família, mulheres que ficavam esperando você fazer alguma coisa, aí tinha que dar uma dura... ‗ah, fulana, você tem que correr atrás‘, eu dizia. Orientei pra ir no CRAS. Tinha uma que eu comecei a visitar, mas depois eu deixei, porque as pessoas não queriam porque... Você sabe, né .... Eu tava correndo risco, você entende, né... Eu parei com essas três. As outras eu não corria risco. Foi no sentido de ser... Como é que diz... Uma pessoa solidária, eu era muito egoísta, eu achava que devia viver a minha vida sem me preocupar com os outros. Se eu não fosse uma mulher da paz eu jamais iria ajudar aquela mulher, por exemplo. Quem disse que eu fazia isso? Eu não fazia por ninguém. Me ajudou a ser solidária. Pensar um pouco nas outras pessoas. (MP Dilma, 05/12/2012).

Eu fui selecionando as pessoas. Onde eu achei que tinha pessoas viciadas em drogas e bebidas, que eu tinha mais aproximação, onde tinha adolescente. Foi assim que eu selecionei, foi assim que eu fui atrás. Pra resolver problemas do Bolsa-Família, a gente indicou vários. Carteira de identidade, pra quem não tinha condições de ir tirar, nem de pagar, a gente pedia pra ir falar com o SAC, a gente pedia pra ir falar com assistente social, a gente pedia atestado de pobreza. A gente fez muitas coisas como mulher da paz. Eu me metia no meio da briga (risos). O povo falando de um lado, falando de outro, um monte de grito... ―Eu to ensinando e você não quer!‖ [...] Aí, acabou tomando vergonha, agora tá melhor (risos). Mediei principalmente briga de marido e mulher, de quem tava espancando [...]. E eu disse – eu não vou me meter, já dei telefone, os locais, tudo escrito pra você e é você que tem que procurar, eu não posso fazer nada por você. Se você chegar e dizer assim pra mim, - Lourdes, eu quero ajuda, você me leva, e eu digo assim: - eu vou, eu te levo. A última que eu ajudei, minha filha, apanhava do marido, eu tive que bater nele pra largar ela. Ela foi pra delegacia, deu queixa, acabou tirando e eu fiquei com a minha cara de tacho. Ela veio pra casa, quando ela chegou em casa, apanhou de novo. Ela veio pra minha casa e eu falei: - Volte! Volte pra apanhar de novo! Até você tomar vergonha. Quando você tomar vergonha você me avisa. Agora, tá aí, até hoje, com o marido. Trabalhando e cuidando da vida dela. (MP Lourdes, 07/03/2013).

Pelo perfil de muitos filhos, problemas de adolescentes fora da escola, ou usuários de drogas, às vezes eles estavam com um pé lá e outro cá, sabe? Mães solteiras, renda familiar baixa, alcoolismo. Visita de famílias, muitas com conflitos, mas não havia suporte, então não dava em nada (risos). O bom é que sou uma referência para as famílias. (MP Thaís, 30/11/2012).

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Acompanhamento de algumas famílias, de jovens envolvidos com drogas, famílias com problema de desemprego, conflitos familiares. Trouxe à comunidade religiosa. Pretendo voltar porque vi resultados. Foram vinte e três famílias cadastradas. Mobilizou toda a comunidade religiosa e de jovens que participavam de projetos no local. (MP Rita, 06/12/2012).

Para algumas mulheres, o desenvolvimento do trabalho pelos moldes do PRONASCI não passou pelos impedimentos discutidos acima. Isto porque estas já desenvolviam, no local, atividades comunitárias, no caso de Rita, atividades de acolhimento aos moradores de ruas e usuários de drogas. O seu critério de escolha para as famílias a serem encaminhadas teve por base o questionário do projeto Mulheres da Paz. Assim, escolheu uma rua considerada violenta no lugar conhecido como Beira do Rio, selecionou as famílias pelo questionário que criou por ―marido desempregado, mulher desempregada,‖ por quantidade de filhos e pelo uso de drogas. Isso também se repetiu com Zeferina, que já atuava como liderança comunitária no bairro. Esta MP é uma das referências mais respeitadas no bairro, por causa do seu histórico familiar de mobilização social e atividade comunitária; bem como, em decorrência da própria atividade que desenvolve na e com a sua vizinhança através templo judaico no qual a MP Rita assume a liderança. Entretanto, a partir do trabalho desempenhado pelo MP chegou a ser ameaçada de morte pelos vizinhos envolvidos no tráfico de drogas. Assim, Zeferina relatou:

[...] Aqui, nós éramos tachadas de X9. Eu fui ameaçada por um traficante, mas eu tive a ousadia passiva e educada, por conhecer ele, por praticamente ter visto ele nascer, porque ele morava aqui ao lado. [...] Ele não vive mais, já morreu, mataram ele dentro da casa dele, mas ele era um menino dócil, sempre. Eu tinha atenção com ele e quando eu passava com aquela camisa do Mulheres da Paz, ele: ‗dona Zefa... Mulheres da Paz, né? Hum...‘ Mas eu não to sabendo o que é... Ele só me dizia isso. Aí, um dia, uma amiga minha, assim, conversa de parede e meia, ela ouviu uma turma da pesada que mora na minha rua, conversando, eles tudo falando do projeto deles contra mim e contra esse irmão meu que é policial. Então, essa pessoa chegou pra mim e me disse ‗se cuide, que você tá nesse Mulheres da Paz, mas você ta sendo visada. Diz que toda vez que a polícia vem aqui na rua é você que tá chamando‘, tá entendendo? ‗E você chama porque quer que prenda fulano de tal‘. Aí, um dia, eu tava na minha casa e ouvi um tiro. Cheguei e olhei, aí, ele tava passando, e eu digo assim: ‗oh, meu filho, que bom que você passou aqui agora! Venha cá, meu amor, chegue aqui para eu falar com você... Tudo bem com você?‘, ele respondeu: ‗tudo bem, dona Zefa. A senhora viu esse tiro aí?‘. Eu disse: - ‗Se eu ouvi sei que não era você!‘. - ‗Pois é! Mas eu sei que lá na saída todo mundo vai dizer que fui eu! O tiro veio do lado de cá, mas a senhora viu que eu saí aqui da oficina.‘ -‗É por isso mesmo que eu quero te dar um aviso. Meu filho, saia dessa vida. Mulher da Paz não quer dizer que a gente entrega vocês pra polícia, não. Nós procuramos ver a sua

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situação e procuramos ajudar vocês a saírem do mal e das coisas erradas. Nós procuramos ajudar você. É uma coisa humana, que nós aprendemos a lidar com o ser humano. Nós não estamos aqui para levarem vocês para serem mortos pela polícia, não.‘ Aí, eu disse isso a ele porque eu tinha autoridade para dizer. O irmão dele era afilhado desse meu irmão que era chefe do Nina Rodrigues. Eu disse pra ele: ‗você sabe que eu te conheço de criança. Você é um bom menino, mas você se deixou levar pelas coisas... Meu filho, saia daqui uns tempos, se mude pra outro lugar, passe um tempo por lá porque você sabe que não é bem visto aqui.‘ - ‗Eu sei, dona Zefa...‘. [...] Mataram ele dentro de casa. Outras pessoas aí, outras colegas que eram Mulheres da Paz, se queixaram que eram apontadas quando passavam, que diziam, ‗que nada! Ali, é X9!‘. Eu fiz a minha parte, chamei ele... Ele chegou em casa, pegou o carro do amigo, botou as coisas da mulher e foi, passou um tempo fora. Mas voltou... É por causa das drogas, é o dinheiro fácil, mas que destrói rapidamente a vida do ser humano. Enfim! (MP Zeferina).

Pelo fato de ser irmã de um policial civil, que também mora próximo à sua casa, a sua imagem veio a ser perturbada na condição de MP. No mesmo período, estavam ocorrendo várias intervenções policiais de combate às atividades do tráfico de drogas na região e, isso despertou a atenção dos traficantes sobre Zeferina, como se ela estivesse colaborando com a polícia nas ações de repressão empreendidas no local. Os traficantes não sabiam que havia um policial infiltrado entre eles, colhendo e prestando informações à polícia sobre todos os crimes e as estratégias para as suas ações criminosas. A pessoa infiltrada encontrou uma forma de proteger a MP, chamando a sua atenção para o plano de emboscada contra ela, acusada pelos traficantes de ser X9. Segundo o seu relato, uma vizinha teria escutado a conversa dos jovens, pela parede de sua casa, porém, eu tomei conhecimento de outra fonte sobre a ação policial, na época em que eu ainda liderava as oficinas pelo MP. Logo, não quis confrontar a história relatada por esta MP para não constrangê-la, nem expor a outra fonte. Embora haja fundamento no seu relato sobre a ―parede e meia‖, que surgiu em outros relatos das MPs a respeito das suas casas. As suas casas não constituíam um espaço de segurança para manterem conversas sobre os conflitos relacionados à violência no bairro – assim como os conflitos de outra espécie que necessitariam de maior privacidade. Conforme o seu relato, Zeferina não se sentiu intimidada e partiu para uma conversa com o chefe do grupo. A sua autoridade em relação a determinadas lideranças do tráfico de drogas no local permitiu que a MP procurasse o ―chefe‖ para desfazer o mal-entendido. 184

Contudo, observei momentos de extremo respeito da MP ou, ainda, de subserviência com relação ao traficante, como acontece com moradores (as), de um modo geral, que vivem nesses contextos, diante do poderio dos traficantes (ZALUAR, 1985). Ao mesmo tempo, alguns (as) desses (as) moradores (as) mantêm vínculos com alguns (as) traficantes estabelecidos pela vizinhança, amizade e carinho, bem como laços parentesco. Então, as atividades de mediação de conflitos das MPs foram permeadas por tensões, dentre as quais, equívocos interpretativos entre moradores da região, prejudicando o aproveitamento do curso; como também o ônus causado pela extensão do exercício do cuidado consoante a proposta da política PRONASCI. Após a consideração a respeito do cotidiano de acompanhamento das famílias elencadas pelas MPs, passo a analisar os processos de transformação pelos quais passaram estas mulheres. Cabe, assim, no próximo tópico, tecer observações sobre possíveis mudanças em suas vidas, trazendo para o centro da análise a perspectiva de agentes do projeto e, mais especificamente, a perspectiva das mulheres beneficiárias pela política.

3.2

Transformação da Mulher da Paz na sua comunidade

De modo geral, o olhar sobre o curso de formação entre as pessoas envolvidas indicou processos de mudanças nas vidas das mulheres beneficiárias, a partir do projeto Mulheres da Paz. De acordo com as respostas das coordenadoras e beneficiárias entrevistadas, a mudança foi positiva para estas, cujo destaque foi um alcance maior do reconhecimento social sobre o seu lugar na sociedade, gerando elevação da sua autoestima – na condição idealizada de mulher como mãe e esposa. Elas não se sentiam valoradas enquanto mulheres que passavam o tempo em casa, cuidando de tarefas domésticas, sem perspectiva de trabalho e de outras atividades que lhes conferissem lazer, ou crescimento intelectual, profissional. Ao se tornarem um referencial positivo, prestando informações e pequenas ajudas à população local, o sentimento de autoestima ficou mais destacado entre elas. Segundo a coordenadora P, foi significativo o fortalecimento entre elas, através do processo formativo e, consequente certificação como Mulher da Paz. A responsabilidade de cuidado em relação ao próximo que lhes foi transferida elevou relativamente a sua autoestima, 185

através do reconhecimento do Estado sobre o seu valor social. Embora este reconhecimento tenha sido atravessado pela violência de gênero, na medida em que não são pensadas como sujeito de direitos e desejos, mas sim, objeto do qual o Estado se utiliza para atingir o públicoalvo, os jovens. A coordenadora argumenta:

Eu penso que elas ficaram mais fortalecidas do papel social, que é o papel tradicionalmente de cuidadora, mas que a gente consegue dar um outro valor. Não é qualquer cuidadora, eu acho que o mundo precisa de cuidado cada vez mais. Aquela cuidadora ‗todo dia ela faz tudo sempre igual...‘ para uma outra possibilidade, aquela mulher que cuida das coisas porque ela entende a importância das coisas serem cuidadas desde sua família, os seus filhos, a casa, o vizinho, o rapazinho que é amigo de seu filho ou não é, que tá numa idade inimputável e, no entanto, ele já faz muita bobagem, mas ele fica por ali, e como é que eu devo olhar pra ele. Elas ganharam muito no sentido do papel delas, do reconhecimento do papel delas, que elas são pessoas que talvez possam chegar mais próximo dessas outras pessoas na comunidade sem dúvida. Como também elas ganharam muito mais informações sobre direitos. E a gente via também nas turmas um feedback, esse retorno. Elas gostavam porque se sentiam valorizadas, porque passavam a perceber um pouco mais o seu lugar na comunidade, na casa [...] porque ela tem um lugar e o programa ajudou nisso. (Coordenadora P, 28/06/2013).

Não há como discordar desse reconhecimento social, nem do processo de elevação da autoestima possibilitado pelo curso de formação do PRONASCI. Algumas, a partir da capacitação, galgaram novas posições no mercado de trabalho ou retornaram aos estudos, por exemplo. Contudo, enfatizo na configuração de ônus sobre essas beneficiárias através das atividades de mediação de conflitos entre a vizinhança, especificadas pelo projeto MP. Logo, discordo da coordenadora P no que se refere ao ―reconhecimento‖ do Estado sobre o valor social das mulheres das camadas populares. Em seu relato se configura uma reprodução do discurso do Estado, como se tivesse estabelecido uma espécie de resgate do lugar social das mulheres, como se elas não contassem com o referencial social de mães/esposas. Acredito que o ―reconhecimento‖ do Estado se expressou de forma restritiva, fixando estas mulheres como destinadas ao trabalho voluntário do cuidado dos outros (MARIANO, CARLOTO, 2009). Em decorrência deste reconhecimento restritivo, estas mulheres, de um modo geral, foram distanciadas do alcance a reais possibilidades de transformações em suas vidas. Ainda, foram-lhes restritas as possibilidades de fazerem escolhas estratégicas porque não contaram com condições nem recursos para galgarem processos de mudanças. Além disso, o prestígio social entre a vizinhança, ou o próprio alcance do que seria o seu ―papel social‖, não foi totalmente conquistado. A situação de medo, pânico e considerável 186

subserviência em relação aos traficantes de drogas (SILVA, 2008), no caso de alguns grupos de participantes, impediu-as de desempenhar a atividade de mediação de conflitos. Duas MPs inscritas nas turmas do ―Colejão‖ enfrentaram problemas no bairro: uma delas foi atacada a facadas por duas traficantes na Rua Yolanda Pires, porque seu marido é traficante em rua rival; a outra não pode desenvolver as atividades de acompanhamento das famílias porque não gozava de credibilidade entre os (as) vizinhos (as), já que seu filho era um dos maiores traficantes do bairro. Passado algum tempo após a formação, esta última teve que fugir do bairro para manter a sua segurança, logo depois, o seu filho foi preso numa ação policial na rua em que residiam. Outros problemas pessoais também interferiram na realização das atividades do curso. Alguns cônjuges das beneficiárias as pressionaram para que estas abandonassem a capacitação, por vezes, através de ameaças, violência física e psicológica (MACHADO, 2010). Entre as entrevistadas, as mulheres que puderam desenvolver as suas atividades, sem maiores problemas, encontravam-se solteiras; além disso, já gozavam de certo respaldo social na comunidade, por conta da atividade comunitária. Sob este aspecto, destaco a forma como Rita resume a sua participação no curso e consequente processo de transformação vivenciado:

Mediei vários conflitos. Alguns, com resultados excelentes com relação aos encaminhamentos e palestras. A gente conseguiu o reconhecimento. O trabalho social da comunidade religiosa ganhou referência com o Projeto Mulheres da Paz. A gente já fazia, mas sem saber como fazer direito. Ajudou no sentido de realmente fazer. Olha, conseguimos parceria com a Qualifica Bahia do Governo do Estado, da SETRE. [...] Primeiro, enviei um projeto de educação porque abriu um edital, não consegui. Levou um ano! Depois, enviei um ofício e fui contemplada. Foi na área de panificação. Ôxe, empregamos quem já estava aqui. O professor da parte prática foi um padeiro que estava desempregado e a parte sobre ética, a teórica, ficou com uma psicóloga daqui. Para a Fábrica Limiar, encaminhamos com sucesso 90% dos jovens qualificados. Empregados. [...] Ao todo, já qualificamos quinhentos jovens como auxiliar administrativo, em telemarketing e como operador de caixa. Tenho parceria, agora, com o dono do Shopping Salvador Norte. O administrador veio aqui [...]. O negócio foi tão bom que até a delegacia encaminhava pra cá. Muita. Consegui muitas parcerias. A comunidade é uma referência. Quem faz o trabalho social fica feliz com o trabalho sendo feito, dinheiro não tenho. Mudou a questão dos contatos... E contatos, às vezes, leva ao dinheiro. Os contatos são mais importantes do que o dinheiro. Virei referência. Dinheiro é uma consequência. A minha qualidade de vida mudou, sim. (MP Rita, 06/12/2012).

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Rita, mesmo sem possuir uma renda fixa, tem o aproveitamento do curso, em relação às suas colegas, mais evidenciado. O que a diferencia das demais é a sua condição de maior acesso a recursos, tal como o ingresso na faculdade, antes mesmo do projeto Mulheres da Paz, coordenar uma ONG que já possuía destaque no bairro e sediava alguns projetos do PRÓ-JOVEM, além da própria condição de líder religiosa. Dessa forma, obteve rendimento considerável com o projeto MP, não só financeiro, uma vez que sua participação no MP agregou um novo referencial sobre sua pessoa na região, bem como possibilitou o acesso a novos contatos com empresários e servidores públicos, gerando renda e novas relações de parceria e trabalho. As demais entrevistadas, portanto, destacaram mais o crescimento pessoal, conquistado pelo acesso ao conhecimento, de um modo geral, bem como sobre os temas que não tiveram oportunidade de conhecer em outros momentos de suas vidas. Para Thaís, a conquista do reconhecimento público como mediadora de conflito transformou os sentimentos da vizinhança em relação a ela, que passou a lhe direcionar maior respeito; como também mudou o seu próprio comportamento em relação ao bairro, já que passou a sentir menos medo e caminhar por espaços que lhe causavam temor. Já Dilma, destaca duas mudanças significativas na vida da MPs, de um modo geral. Em primeiro lugar, no seu relacionamento conjugal, conforme afirma:

Você precisa ver a seda que meu marido ficou comigo. Ele passou a comprar tudo em casa, com medo de eu trabalhar, e ficar por cima. Ele ficou uma seda, ele mudou muito. (Risos). Aquela viajem, eu fiz. Ele me deu R$ 1500,00 para eu ir com meus filhos e depois me deu mais. E fica perguntando se eu quero viajar. Às vezes eu fico com vontade de conseguir o trabalho pra ajudar ele. E meus filhos estão ótimos, graças a Deus, para eu trabalhar. (MP Dilma, 05/12/2012).

É possível observar que a sua mudança de postura diante do cônjuge o fez mudar de comportamento e adotar novas formas de controle. Já que não poderia mais agir por meio de agressões físicas ou verbais, passou a disponibilizar alguns recursos a Dilma para que não trabalhasse fora de casa. A mudança, então, não passa pelo poder de fazer escolhas em relação ao seu parceiro, mas sim, do campo da saída de condição de violência doméstica e familiar.

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De outro lado, a outra mudança evidenciada por Dilma diz respeito às conquistas das suas colegas no mercado de trabalho – na maior parte, empregos temporários. Assim, completa:

Mudaram, tudo que eu encontrei passaram a trabalhar. A única que não mudou foi Olívia, aquela doidinha. Um dia, estava sem dinheiro para levar seu filho para o médico. Eu nem pude ajudar... Estava voltando do mercado, cheia de compras, tinha gastado o dinheiro todo. (Dilma).

Destaco um elemento em seu relato, a internalização da sua responsabilidade sobre as outras pessoas. Enquanto MP deveria prestar atenção aos problemas da vizinhança, dividindo o que possui com mulheres mais pobres do que ela. Numa outra ocasião, deixou de fazer as unhas no salão e de comprar xampu porque deu a única quantia que conseguiu do cônjuge, R$ 20,00, a uma vizinha que se queixara de fome. O seu sentimento de cuidado se transforma numa espécie de obrigação em relação ao (à) outro (a), que ultrapassa o espaço doméstico (MARIANO, CARLOTO, 2009). Já Lourdes esboçou opinião diferente das demais, afirmando que não houve mudança alguma em sua vida, nem na vida das outras mulheres. A sua resposta se aproxima da de Marta que, mesmo defendendo a mudança em sua vida pessoal, critica a falta de suporte como impedimento de mudanças reais para a população. Logo, as duas mulheres relataram uma série de problemas, dos quais dei destaque a alguns, expressos no relato específico de Lourdes, a seguir:

Continuo fazendo as coisas, não aumentou, não mudou nada. Pelo contrário, a única coisa que a gente queria era que continuasse. Mas não continuou, que pena. A gente que foi mulher da paz, a gente vai ser mulher da paz sempre. Correndo atrás do mesmo jeito. [...] Continua aquele corre-corre, continuo batendo de porta em porta, continuo informando às pessoas... Quando tem um policial que fica num local ele é reconhecido, ou não é? Nós, mulher da paz, a gente andava com um crachazinho que a gente não podia nem mostrar na rua porque o pessoal disse que se soubesse que a gente andava com um negócio daquilo a gente ia ser morta. Não podia. Então, a gente andava malmente com a cara e a coragem. A gente chegava num local e dizia que era mulher da paz e ele dizia: ―o que é mulher da paz?‖ olhava pra cara da gente e ―o que é o mulher da paz?‖. Aí, ―é um projeto do PRONASCI que não sei o que...‖, aí, ele: ―sim, minha filha, só isso?‖. Não era reconhecido lá fora! A gente ia conversar com assistente social, com supervisor, coordenador, nenhum deles

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reconhecia, nenhum deles sabia que existia, nenhum. Por trás daqui de São Cristóvão, no Yolanda Pires. Os outros, nenhum conhecia. E não é brincadeira, não, porque eu andava em Mussurunga, em Praia de Itapuã, e nenhum deles, nenhum sabia que a gente existia. Nos postos, hospital. Qui! Nenhum! Pior ainda, nem sabia que existia mulher da paz. Nem o significado que era, entendeu? É isso que eu digo. A gente foi parada aí. Se a gente tivesse mais divulgação na comunidade, lá fora, o povo ia saber tratar a gente. Porque aqui dentro a gente não era bem vista, a gente mulher da paz trabalhava em prol de ajudar as pessoas e a gente não tinha aquele apoio das pessoas que a gente ia procurar. Que teve foi desrespeito, muito! Aqui, dentro de São Cristóvão, no Yolanda Pires, na União Paraíso, no Conjunto Habitacional. Nós não fomos respeitadas hora nenhuma como mulher da paz. [...] Quando nós chegava, na delegacia, ele perguntava, o delegado. Ele perguntava de onde a gente era e entendia bem. Conversava com a gente abertamente, mas fora disso, nenhum mais. Os subalternos deles? Piores ainda! Dentro do bairro, a gente não representava nada. Era mais uma pessoa no meio de todos. [Perguntei-lhe sobre a relação entre os policiais e as MPs] A relação dos policias com as mulheres da paz na comunidade? Horrível! Muitas tomaram até tapa! Porque ia defender menino que era preso. Tinha um monte que devia, mas era de menor! Porque a gente disse que de menor não era pra ser algemado, esse negóço tudo... Então a gente ia falar, tomar a frente e eles davam, xingavam, empurravam... Dava tapa, dava tudo, minha filha! Eles não aceitavam, não. Mulher da paz era na delegacia, aqui dentro não era nada! Uma mulher da paz daqui do Conjunto Habitacional mesmo levou tapa! E ele disse a ela: ―sai daqui!‖ e xingou ela, e gritou ―sai daqui fulana de tal!‖. E ela disse: ―mas eu sou mulher da paz!‖. E ele gritou: ―o que é uma mulher da paz?‖, foi o que ele falou, ―o que é uma mulher da paz no meio desses marginais?‖, aí, a gente disse: ―mas é um jovem!‖, ―e o que é uma mulher da paz? Eu não conheço mulher da paz!‖ foi o que ele disse. ―Mas o senhor sabe que tá errado, ele tem o direito dele!‖, ―se ele tiver errado, ou não, tem que cumprir o que a lei manda.‖. (MP Lourdes, 07/03/2013). [Perguntei-lhe que outros problemas enfrentou, ou enfrentaram] Problemas, eu tenho uma lista que a gente enfrentou. Muito, muito, muito, muito violência, tanto doméstica, como a normal. Doméstica porque tinha muitas mulheres espancadas. Mulher da paz principalmente! Tem uma fila de mulher da paz que era espancada. Ia pro grupo, frequentava o curso e tomando pau de marido em casa. Um monte! Aí, eu: ―Rapaz, você tá com a vida na mão, você tem tudo na mão, tem documento, tem tudo e você tá apanhando até hoje? Tome vergonha!‖ E tinha um monte! E tinha muita mulher da paz que tava no meio dos viciados, comendo e bebendo no meio dos viciados ‗kikiki kakaka...‘ Por isso que eu não aguentava mesmo, passava não olhava para a cara, não aguentava não, por isso que eu nem chegava, fingia que não conhecia, porque eu sou estourada, eu sou mais de abrir a boca e falar. Porque via a gente conversando e tudo e depois ficava no meio deles, conversando, batendo papo e muitas vezes, quando a gente passava, tava eles de olho na gente. A gente tinha que ir sem a camisa e quando chegava lá que a gente vestia a camisa, que a gente não sabia o que é que elas estavam falando, ou fazendo. A gente não podia confiar. Violência a gente via de várias formas. Demais. Mas o que a gente via mais era a violência doméstica. Até no projeto. Um monte. Eu mesmo, briguei com duas colegas minhas que eu não aguentava mais olhar pra cara delas, apanhando de marido. Eu não suportava olhar pra cara delas. E depois, depois de tudo ainda casou agora, viu! O homem bate e ela casa. (MP Lourdes).

A partir do relato de Lourdes, é possível concluir que as atividades propostas pelo PRONASCI para as mulheres acentuaram a solidão vivenciada por elas, social e politica. Por 190

um lado, as mulheres líderes comunitárias que transitavam nos espaços, repetindo atividades que já desenvolviam sem apoio social nem do Estado; por outro lado, as mulheres que estavam saindo pela primeira vez de casa para a atividade de mediação nas ruas. O projeto Mulheres da Paz não alcançou a visibilidade que tinha como meta e, consequentemente, as beneficiárias não conquistaram o reconhecimento de suas atribuições. Na condição de MPs, não puderam usar o crachá de identificação pelo bairro, nem a camisa exigida para a entrada nas escolas onde estavam sendo executadas as oficinas do projeto. Isto porque viviam sob a ameaça de morte por parte de traficantes e sob os olhares desafiadores das colegas MPs, envolvidas com o tráfico. O contexto de violência extremada limita as ações dos sujeitos (SILVA, 2008). O medo de transitarem pelo bairro já se constituía uma realidade entre as moradoras, de modo geral, contudo, foi acentuado pela falha de divulgação do projeto, a qual eu considero a quarta lacuna. A possibilidade de serem ―dedos-duros‖, incitada pela campanha publicitária do PRONASCI, deixou-as na condição de violência marcada pelas ameaças de morte, hostilidade e agressões físicas praticadas por traficantes e, em alguns casos, por colegas. Mas também, essa lacuna abriu espaço para que as beneficiárias sofressem agressões também de policiais, que aparentavam não ter passado por processo de capacitação, a qual consta como outra grande ação do PRONASCI. Muitas MPs viviam em situação de violência doméstica e familiar (OBSERVE, 2010), mais expressivamente, assim como sob as condições adversas impostas pela criminalidade violenta. Embora tenha se constituído como meta principal na grande ação Mulheres da Paz, o ―empoderamento‖ das mulheres e o combate à violência de gênero, estabeleceu-se um grande vazio no ponto referente ao enfrentamento à violência. Essas mulheres deveriam contar com uma rede de atendimento que possibilitasse a sua saída da condição de violência, o que não aconteceu. Aqui, identifico a quinta lacuna, a impossibilidade de conquistarem esse tipo de liberdade, de saída da condição de violência, principalmente pela falta de rede de atendimento, tanto dentro das ações do projeto, como fora, em outros programas sociais do governo (OBSERVE, 2011). Nesse sentido, as queixas dessas mulheres se aproximam do que, em uma das suas críticas, a coordenadora P chama de ―choque de realidade‖, como será exposto a seguir:

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Toda essa distorção de fora pra dentro. E que era alimentado sem dúvida pela falta da rede, ficava mais claro o que elas estavam fazendo ali, porque ela estava conduzindo o rebanho para algum lugar que elas precisavam, mas não tinha. Ela atuava um pouco no vazio e sustentada pelo seu perfil. Algumas, mais ousadas, outras menos ousadas, naquele perfil mais doutrinário, ou outras mais tímidas, acolhedoras, cada uma com um perfil. Então, ficou muito por conta desse perfil. E quando você pegava um perfil de uma mais ousada e tal, aí, identificam como X9. A falta da rede deixou muito por conta do perfil das mulheres. E porque que elas não gostaram no outro ano? Porque elas perceberam, após a formação, o tamanho da lacuna da rede. Elas perceberam porque elas tinham que fazer no outro ano, agir na comunidade, fazer as visitas, elas fizeram. Aquele grupo da equipe multidisciplinar não tinha a força necessária, porque também sozinha... Era multidisciplinar, mas ia ocupar o lugar de uma rede. Ele orientava as mulheres, tinha pessoas muito boas, muito dedicadas, mas a EM se ressentia das mesmas faltas que as mulheres se ressentiam, porque elas estavam junto das mulheres, recebiam as mulheres após as visitas que as mulheres diagnosticavam; as questões da comunidade e nos maiores produtos do diagnóstico era a falta de qualquer rede de proteção, de qualquer rede de promoção de serviços! Não tinha CRAS, não tinha posto de saúde, ou na área de proteção, não tinha o Conselho Tutelar, a delegacia da polícia, não tava preparada, ou não tinha delegacia de mulheres. Essa coisa toda deu, enquanto que nós mostrávamos na formação as possibilidades de como as coisas poderiam funcionar, deveriam funcionar na linha do direito, um choque de realidade que elas conheciam, porque elas conheciam a realidade, mas elas idealizaram um pouco em cima de uma possibilidade de que as coisas poderiam funcionar e, aí, quando elas iam pra prática, elas viam o quanto era difícil. (Coordenadora P).

A EM contratada pela SEDES trabalhava de forma pouco efetiva porque não tinha suporte para atender às demandas identificadas nos diagnósticos das famílias, realizados pelas participantes. Seus materiais e recursos para o trabalho de coordenação eram também limitados, o que as deixou ―ressentidas‖ e até deprimidas, como relatou a coordenadora pedagógica. Assim como as profissionais das duas equipes contratadas para o trabalho de consultoria – pedagógica e multidisciplinar -, as mulheres beneficiárias se depararam com essa enorme falha de planejamento dentro do PRONASCI e, estas últimas foram as mais prejudicadas. Sem dúvida, o maior peso recaiu sobre essas últimas, pois tiveram que enfrentar problemas ainda maiores do que os enfrentados pela equipe de trabalho do programa federal. Enfrentaram, pois, o grupo de vizinhança hostil e violento; os cônjuges insatisfeitos com a transformação de suas posturas em casa, a partir do processo formativo, no que se refere ao conhecimento sobre os direitos das mulheres; o preconceito da vizinhança sobre as beneficiárias que mantinham algum tipo de vínculo com traficantes de drogas – enquanto mães, cônjuges, tias, irmãs, ou amigas; parcos recursos para o desempenho do trabalho; confisco do valor do benefício pelo cônjuge; a violência de gênero perpetrada pelo Estado que 192

excluiu os homens da responsabilização embutida no processo de mediação de conflitos, onerando as mulheres no exercício do cuidado – incluindo a questão da transferência de responsabilidades do Estado para a família, isto é, para as mulheres/mães/esposas.60 Por último, as mulheres desempenharam as suas atividades de mediação sem que tivessem recebido suporte para que resolvessem os próprios conflitos, já que também eram mulheres pobres, passíveis de encaminhamentos para uma rede de atendimento jurídico, socioassistencial, médico e de emprego. Embora, a rede de atendimento a mulheres vitimadas pela violência doméstica e familiar em Salvador seja pouco, ou nada, atuante (OBSERVE, 2011). Houve mulheres participantes que ainda não havia se recuperado de traumas recentes provocados pela violência policial cometida contra seus filhos e, por isso, não tinham condições emocionais e psicológicas de tratarem daqueles assuntos. Contudo, essas mulheres se fortaleceram, em parte, por fazerem das oficinas encontros de catarse. Neste ponto, aproxima-se do objetivo da coordenadora Fátima em inseri-las no processo formativo, como uma forma de saída do estado de choque e depressão. Assim, enfrentaram o descaso político e social e as falhas no planejamento das ações do PRONASCI. Reafirmou-se a condição de violência doméstica e familiar, além da violência urbana, que fora classificada por Lourdes como violência ―normal‖ – ―normal‖, porque é cotidiana. Com o fim do programa, as mulheres voltaram solitárias para o trabalho comunitário e, sobre este ponto, a coordenadora multidisciplinar, Fátima, moradora do bairro, expôs a seguinte queixa:

Elas estão esperando chegar a cozinha industrial em São Cristóvão para começar a trabalhar e ter essa geração de renda, porque ficar só levando capacitação e curso, muitas crescem, muitas não, aqui no caso são poucas. Crescem, avançam e procuram ocupar o seu espaço. A maioria, não, a maioria fica ali, ó... Eu fico no centro e elas ficam sempre ali rodando esperando que eu continue teleguiando. Então, eu já vi que, mesmo vindo as oportunidades, é... Tem que ter algo de concreto em São Cristóvão, equipamentos que é fruto desse processo. [...] Assim que terminou o projeto, as mulheres ficaram naquela aflição, naquela angústia, desacostumadas de saírem daquela abstinência, daquela coisa de ficar presa dentro de casa, refém da violência. Aí, elas foram mesmo pras ruas, abraçaram mesmo o projeto, foram acolhidas por vocês, pela equipe do projeto, quando elas se libertaram, o projeto terminou. Acabou projeto, acabou bolsa, acabou tudo! E as mulheres voltaram a ser reféns da violência do marido, voltaram a ser refém do Bolsa Família, e aí, voltaram

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A respeito da centralidade nas mulheres para as políticas sociais, ver Tavares e Delgado (2012); DuqueArrazola (2008); Bandeira (2005).

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a sofrer tudo de novo! Aí, eu também fiquei angustiada e comecei a brigar. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

A partir do sentimento de frustração que trazia enquanto integrante da EM/moradora do bairro/liderança comunitária, Fátima passou a questionar o alcance do programa federal. Cursos de capacitação inseridos de forma isolada, nestes contextos, não surtem o efeito esperado para a população residente. As mulheres que obtém pequenas mudanças já reúnem alguns requisitos necessários para alcançarem certos postos de trabalho. No caso das poucas que conquistaram trabalho remunerado, após a política MP, algumas possuíam o Ensino Médio completo, ou formação em corte e costura, por exemplo. As demais, maior parte, não dispunham de boa capacidade de leitura e escrita, já haviam abandonado os estudos há muito tempo, sequer possuindo o Ensino Fundamental I. As mulheres que não dispunham de qualificação profissional continuaram em situação de pobreza e extrema pobreza (SILVA, YASBEK, GIOVANNI, 2008) e, sem possibilidade de crescimento e saída da situação de violência. Portanto, na ocasião da política MP, as beneficiárias foram manipuladas a defender e a aceitar o projeto, que representou uma estratégia político-partidária nacional, com vistas às eleições que se aproximavam. Algumas MPs tomaram consciência do vazio que se evidenciava na política, mas permaneceram, em virtude, por exemplo, do benefício financeiro, mesmo que pouco e temporário. Não contaram, e ainda não contam, com boas condições de escolhas estratégicas que mudassem o rumo de sua vida cotidiana (IORIO, 2002; SARDENBERG, 2006). Por causa da necessidade emergencial, inseriram-se na política MP - já que necessitavam do benefício financeiro para adquirirem alimentos, roupas, móveis, dentre outros produtos e serviços. Posteriormente, sem esta política, voltaram a contar exclusivamente com o programa Bolsa-Família, largamente criticado por algumas MPs, pela coordenadora da equipe do projeto e moradoras da região. De acordo com a queixa de algumas entrevistadas, acredito que o Estado manteve o vínculo pernicioso das mulheres das classes populares com a política (Bolsa-Família), que não lhes garante o exercício pleno da cidadania (LIBARDONI, SUÁREZ, 2007). Diante do secretário da SEDES, a coordenadora Fátima expôs as dificuldades do trabalho e a grande demanda pela continuidade de outros programas que complementassem o MP. Os novos programas deveriam agregar não só aquelas que passaram pela formação – as 194

quais se encontravam frustradas pelo fim do projeto – mas também um número ainda maior de moradoras, através da disponibilização de ―equipamentos‖ públicos. Neste caso, a efetivação do projeto criado pela equipe de Fátima em conjunto com as moradoras de São Cristóvão, de implantação da cozinha industrial no bairro, seria uma solução para aliviar o sentimento de frustração entre as MPs. Dessa forma, manteriam uma vida produtiva, afastadas do confinamento de seus lares, representando um passo importante para a saída das condições de pobreza. Assim, coordenadora Fátima descreve:

Aí, eu falei pra ele que... Fui lá, ele chamou a secretária, procurou protocolo pra saber se tinha pedido a renovação do projeto, mas que não ia sair... Aí, eu disse, não estou pedindo o projeto... A nova versão do projeto Mulheres da Paz, só estou pedindo que venha outras ações que contemplem essas mulheres que deem continuidade... Eu não quero que volte tudo. E eu disse mais a ele: ―Secretário, eu tenho participado de eventos que o seu discurso está sendo diferente da sua prática‖, porque ele disse a mim que eu não podia fazer mais nada pelas mulheres da paz, que... Eu sei que seria muito bom que o Mulheres da Paz viesse com mais duzentas mulheres em São Cristóvão, mas que aquelas duzentas avançassem em outra ação... Aí, eu briguei e falei lá da prática dele que não tava sendo condizente com o discurso dele. Que naquela semana nós participamos do encontro de entidades num hotel e ele estava, fez parte da mesa, aí, eu coloquei que eu tenho participado... Falei pra ele! Nós estávamos em reunião, e eu coloquei! Só não está gravado, mas as fotos, (risos), que eu falei pro secretário... (Coordenadora Fátima).

Com o exposto por Fátima, chamo à atenção para a sexta lacuna no programa federal, que não estabelece uma meta de continuidade de ações voltadas ao público de mulheres. Por exemplo, não concretizou o conjunto de estratégias, encaminhamentos para postos de trabalho. As mulheres voltaram à ociosidade na qual se encontravam e, ainda, sem o pequeno benefício que recebiam durante a formação. Além disso, Fátima ponderou outra lacuna, destacando a falta de planejamento e avaliação para a escolha das MPs. Para ela, estas deveriam ter sido encaminhadas através de novas estratégias de ação, não sem seleção prévia, como o ocorrido, na qual ingressaram várias mulheres sem ―perfil‖ para o desempenho das atividades. Assim, saliento que todas as lacunas, ou falhas mencionadas acima, não obedecem a uma ordem hierárquica. Somente foram distribuídas numericamente, com o intuito de manter uma organização no processo argumentativo. A avaliação das coordenadoras sobre o alcance do projeto Mulheres da Paz na vida das beneficiárias indicou melhorias no sentido do reconhecimento social. Essa observação 195

confronta as respostas das entrevistadas, que criticaram diretamente a falta de reconhecimento no bairro e nos serviços públicos. O discreto reconhecimento em torno das mulheres está respaldado na reafirmação da sua atribuição ao cuidado tradicionalmente concebida e naturalizada pela sociedade e pelo Estado (MARIANO, CARLOTO, 2009). Outro ponto mencionado por Fátima diz respeito à aceitação do projeto Mulheres da Paz entre a população. A coordenadora avalia positivamente a aceitação da comunidade, ou ainda, a possibilidade de execução do projeto diante da hostilidade e rixas entre as ruas e os pequenos bairros de São Cristóvão, perpetradas pelo tráfico de drogas. Dessa forma, argumenta:

Você sabe que nós fizemos as entregas dos kits, dos módulos, das pastas, das camisas. Eu entreguei numa semana e na outra semana eu tive mulheres que devolveram porque o marido quebrou tudo dentro de casa, o marido pegou e bateu, mulheres que os traficantes: ―as mulher tá nessa onda, né! As mulher tá nessa onda!‖ Então, ele falou com ela uma ou duas vezes, ela, aí, teimou aí teve que apanhar pra poder sair. [...] Apanhou do marido, entendeu? Então, ficou apavorada! E só depois que começou a fluir as coisas, que começou a ver, eu tive que fazer essas coisas, essa caminhada em São Cristóvão. Ela aconteceu em vários territórios, certo? Mas a de São Cristóvão teve uma caminhada informativa, que eu tive que partir do posto de gasolina e rodar São Cristóvão todo! Eu no microfone falando o que era, falando para desmistificar a imagem da mulher como uma X9. (Coordenadora Fátima, 21/03/2013).

A política, da forma como foi concebida e divulgada, gerou problemas sérios para algumas MPs, em particular. Cônjuges as agrediram por causa da associação dos seus trabalhos à função de X9. As MPs eram espancadas e ameaçadas dentro de casa, mas também recebiam ameaças nas ruas pelos traficantes. Por causa desta confusão, Fátima organizou a caminhada segundo a especificidade da região, de divulgação esclarecedora do projeto MP, bem como dos benefícios que este traria para o bairro. Contudo, algumas MPs desistiram, ou pediram para mudar de local de curso. As que continuaram se dirigiam aos estabelecimentos de realização das oficinas sem vestirem as camisas do projeto, pois o que fora criado para identificá-las e destacá-las positivamente nas ruas, gerou pânico e represálias dos traficantes. Logo, só vestiam as camisetas nas portas das instituições de realização das oficinas, porque era condição para entrarem e permanecerem no local. Dadas e discutidas tais adversidades no trabalho das MPs, passarei à análise dos seus relatos a respeito do conceito ―mulher da paz‖. No próximo tópico, versarei sobre a atribuição 196

positiva que deram ao reconhecimento social, o qual considero aparente, da condição de ―mulher‖ para o desempenho da atividade de mediação de conflitos.

3.2.1 As Mulheres da Paz por elas mesmas

De modo geral, as participantes gostaram da experiência adquirida, pelo reconhecimento aparente da sua condição de ―mulher‖ respaldada no exercício do cuidado da sociedade – apesar das ressalvas já discutidas acima. Nesse aspecto, sentiram-se valorizadas. Logo, foi possível identificar três pequenos grupos entre as MPs, que suplantaram aspectos de religiosidade e sexualidade, como percebido nas oficinas. A partir dos seus relatos, identifiquei outros fatores distintivos já estabelecidos, os quais ganharam relevo nas entrevistas, porém estavam presentes desde a formação. As entrevistadas distinguiram as mulheres entre as que mantinham algum tipo de envolvimento com traficantes e usuários de drogas e as que não possuíam esse tipo de vínculo. A discriminação culminou na advertência dirigida a mim, por mulheres do primeiro grupo, para que não entrevistasse determinadas MPs (do segundo grupo), devido à sua conduta. Entretanto, não ficou claro se estas mulheres desempenhavam ou não atividades de tráfico de drogas, porque as entrevistadas não quiseram entrar em detalhes. Mesmo assim, esse elemento esclareceu o motivo de alguns conflitos entre as participantes, que eu não pude alcançar enquanto consultora. Como exemplo, destaco uma série de brigas entre duas gestantes, numa das turmas do ―Colejão‖, em que uma das partes revelou para mim o medo que sentia da outra, pelo fato desta andar em companhia de traficantes. Além disso, a distinção se estendeu por outros caminhos. Desta vez, o tipo de relacionamento estabelecido com Fátima, coordenadora multidisciplinar, que desenvolvia intensa atividade de trabalho comunitário. Mais uma vez, o grupo se dividiu, de um lado, entre as ―seguidoras‖ da liderança desempenhada por Fátima, de outro lado, as que guardavam várias queixas relacionadas ao PRONASCI e ao trabalho de liderança da coordenadora. Dilma e Lourdes, especificamente, queixaram-se do trabalho que desempenharam ao final da formação

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Mulheres da Paz, de apoio à candidatura de alguns políticos, bem como da forma como estruturaram a sua participação na Caminhada do Dia das Mulheres. Elas afirmaram que:

Eu fiquei foi com raiva! Enrolou a gente, botou a gente pra trabalhar na política, na campanha do político lá, e demorou uma vida pra pagar a gente e só pagou a metade! Até hoje! [...] A gente trabalhou foi na eleição! (Coordenadora Dilma, 05/12/12).

Eu não gostei da Mulher da Paz fazer parte de política. A Mulher da Paz tava na rua, o pessoal conhecia as Mulheres da Paz, viu como era o trabalho da Mulher da Paz e... Com esse negócio da Mulher da Paz, a gente foi pra rua pra eleger, candidato, vereador, deputado e a gente não ganhou nada. Nada. Nem uma ajuda pra divulgar nossos serviços, pra ajudar o Mulheres da Paz, pra a gente continuar o trabalho como Mulher da Paz, não teve. Agora, teve muito, sim, que foi eleito, que ganhou dinheiro, ganhou carro nas costas da Mulher da Paz. Até hoje. A gente não ganhou nada. Pelo contrário! Tá devendo até hoje os R$ 50,00 da gente. Terminou que eu nunca vi a cara [...] de trabalho! De política! De eleger deputados, vereadores... [risos]. Não! Até hoje! Vai ter eleição aí de novo pra deputado de novo e até hoje a gente não viu nem a cara. Nunca. Eu não gostei disso, de política. Não gostei de Mulher da Paz participando de política. Lídice que fez certo, que brigou logo, pintou o ―7‖. [Risos] Lídice deu uma baixa em Fátima... [Risos] foi... ―A gente vai ficar trabalhando sustentando vagabundo? (Risos) fique aí... [Risos] Lídice pintou o ―7‖! Num instante ela calou a boca. (MP Lourdes, 07/03/2013).

A política local mantém comportamentos antigos em que ―líderes de movimentos e associações populares participavam das eleições na qualidade de porta-vozes de candidatos alheios ou distantes da vida política e das necessidades dos bairros, para os quais obtinham os votos dos vizinhos, fazendo uso de sua popularidade e carisma‖, popularmente conhecidos como ―cabo eleitoral‖ (OLIVEIRA, 2009). As Mulheres da Paz foram obrigadas a participarem da Caminhada no Dia das Mulheres em 2010, para promover o governo nas eleições que aconteceriam no final do ano. Foram pressionadas pela SEDES, sob a pena de receberem falta na caderneta. O temor das participantes diante da possibilidade de perderem o benefício por faltas acumuladas, fez com que a maioria se fizesse presente no evento. Embora a SEDES tivesse o controle sobre os pagamentos dos benefícios, a equipe pedagógica era quem controlava as listas de presença. Dessa forma, a pressão estabelecida pela secretaria não tinha fundamento. Contudo, as beneficiárias seguiram para o Centro de Salvador, em ônibus fretado pela equipe do governo, com direito a um lanche para todo o dia. 198

Além de terem sido destratadas pela gestora H, que estava presente no local 61. Estava previsto o turno da manhã para a realização da atividade, entretanto, por causa do atraso no transporte fretado, passaram o dia todo no local. Muitas não tinham dinheiro para voltar para casa de transporte público, logo, elas passaram fome, sede e ficaram ―presas‖ nas ruas, à espera da condução programada pelo estado. Cria-se uma tensão entre as moradoras por causa da forma como o Estado coopta as lideranças locais para o uso de suas políticas, ou seja, a cooptação de lideranças locais pelo Estado, por meio de políticos, para que tenham aprovados os seus projetos pessoais de ascensão política. Do outro lado, as lideranças que procuram por melhorias em seus bairros de residência, estabelecem determinados tipos de alianças, as quais, muitas vezes, trazem desvantagens que pesam mais para o lado daqueles que têm menor força política, a população (OLIVEIRA, 2009). Deste modo, as mulheres beneficiárias da política do PRONASCI foram exploradas pelos políticos em época de campanhas eleitorais, recebendo em troca valores entre R$ 30,00 e R$ 60,00 por dia, para o caso das campanhas de boca de urna. Para Fátima, foi uma forma de inseri-las em algum tipo de atividade, com retorno financeiro, por menor que fosse, para aliviar a ociosidade e marginalidade, dentro das possibilidades oferecidas pela política partidária; para os políticos, representou sua eleição nos moldes da ética político-partidária que explora a população pobre em busca de votos (OLIVEIRA, 2009); já para as mulheres, representou muito trabalho para pouco ou nenhum retorno financeiro, sem perspectiva de melhorias em suas vidas e nem da vizinhança. Contudo, o conceito de MPs foi largamente incorporado pelas entrevistadas. Todas se definiram como agentes sociais em doação pela paz. No entanto, deflagraram suas críticas sobre os recursos disponibilizados, considerados ínfimos, para as atividades de agentes multiplicadoras de ―paz‖. Apesar das dificuldades e entraves, em alguns casos, ganharam relativo status social entre a vizinhança do local, assim, contribuindo para a elevação da sua autoestima. Então, as entrevistadas se definiram das seguintes formas:

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Eu não estava presente na caminhada, porque não constituía uma atividade organizada e prevista pela equipe pedagógica, da qual eu fiz parte. A atividade era uma das ações planejadas pela SEDES para que o projeto ganhasse visibilidade social, agregasse valor ao partido de situação no governo e, consequentemente, a eleição dos candidatos filiados e aliados. Na aula que se seguiu ao episódio da Caminhada, quando tomei conhecimento do ocorrido a partir da MP Thaís, que se mostrava indignada com o desrespeito da SEDES, sob a ação da gestora do projeto e desorganização do evento, com relação às MPs. Thaís recomendou que a gestora H não retornasse ao bairro de São Cristóvão porque ela teria destratado mães de envolvidos com o tráfico.

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Algumas aprenderam, outras não aprenderam nada. Mulher da Paz é como se... No princípio, eu achava que eles estavam fazendo elas de agente social. [Aqui, Rita se distancia das demais MPs]. Depois, vi que não era só isso. Primeiro, aprender o que era a paz, depois, promover a paz. É aquela que se instrui e depois é multiplicadora. [...] Sim, foi muito valoroso. (MP Rita, 06.12.2012).

Doação e troca. A gente tem que receber também. (MP Thaís, 30.11.2012).

É uma mulher que saiba resolver qualquer tipo de conflito, de desentendimento, ela tem que tá em paz para analisar cada problema e resolver. Tem que ta bem com ela mesma, tem que resolver primeiro os conflitos dela para depois resolver os dos outros, para não atrapalhar os outros. Eu sou, graças a Deus, eu sou. Até hoje, pessoas me procuram pra me pedir conselho, às vezes não sei responder, aí peço um tempo de dois dias, porque aí eu pesquiso e respondo, aí, eu resolvo o conflito. Às vezes fico sem saber como ajudar, porque uma vez uma mulher estava sem dinheiro para comprar o gás, porque o marido estava desempregado e ela sem receber dinheiro da patroa. E eu dei os vinte reais que tinha para comprar xampu e fazer minha unha, mas disse a ela que também não tinha dinheiro, mas insisti para ela aceitar, a minha unha eu faço, e o xampu espera. Eu disse a ela: não tenho dinheiro no bolso, mas tenho conhecimento. Me sinto bem, mas fico triste quando não posso ajudar com dinheiro. Mas eu gosto de ajudar. (MP Dilma, 05.12.2012).

Mulher que pode promover o bom relacionamento na família e na vizinhança... Só, né? Confrontar de maneira respeitosa as outras opiniões. E respeitar, só. (MP Diana, 05.12.2012).

É aquela pessoa que vem de porta em porta para ajudar as pessoas, o melhor possível, que dessa vez a gente não teve apoio nenhum, a gente não podia meter as caras como deveria ser sempre. De nada. Nem de governo, nem de nada. É que um projeto como o Mulheres da Paz, a gente deveria ter mais divulgação, mais apoio. Pra a gente andar no bairro mesmo, pra gente trabalhar mesmo, era pra mostrar pra que a gente veio. E a gente não teve isso. [...] Sou mulher da paz. Até hoje. Continuo ajudando, tudo no que eu posso. (MP Lourdes, 07.03.2013).

Foi tudo de bom. Ah, a mulher da paz? É uma mulher que levou muita informação e recebeu também. Sim, eu sou. Hoje, eu me controlo, não brigo mais, se fosse outra época, eu ia encher os outros de desaforo. Me fez uma nova mulher. (MP Marta, 07.03.2013).

―Doação‖ apareceu entre as entrevistadas como um dos conceitos fundantes das MPs. O trabalho voluntário foi internalizado e esteve associado à satisfação de suprir necessidades de seus próximos. Porém, o sentimento altruísta destas mulheres esteve sempre atrelado a um retorno, sob a forma de boa estrutura para o desempenho da atividade de mediação e a benefícios sociais, como o trabalho remunerado. A satisfação vivenciada pela oportunidade de 200

ter participado da política também permeou as conversas, visto que alcançaram certo status social que as distinguia das demais moradoras, como qualificadas para ações pela ―paz‖. Outro atributo da Mulher da Paz faz menção ao respeito à diversidade. Atributo, portanto, precioso num contexto de conflitos frequentes entre os diferentes grupos no bairro. A este ponto, associo o processo de transformação pessoal evidenciada por MPs. Isto porque o acesso ao conhecimento, aliado à valorização do seu lugar social de cuidadora (MARIANO, CARLOTO, 2009), formaram elementos para que passassem a se valorizar e cobrar dos companheiros respeito e, o fim da violência física sofrida no lar; bem como elementos para avançarem pelos caminhos da tolerância às diferenças políticas, de crença e de comportamento, principalmente entre as mulheres. Nesse contexto, as mulheres não são unidas e se repartem em grupos conflitantes, com frequentes embates e desentendimentos. A falta de apoio para o desempenho do trabalho das MPs, além da inexistência da rede de atendimento à população selecionada por elas – e de atendimento a elas próprias – esteve fortemente condicionada ao conceito de Mulher da Paz. O vazio sentido nas suas práticas foi unanimidade entre as entrevistas, assim como entre as queixas das demais participantes durante as oficinas de formação. Elas não puderam desempenhar a atividade principal do programa, por causa da estrutura insuficiente oferecida pelo Estado. Assim, inquiri entre as entrevistadas a questão da formulação de uma política de segurança para as mulheres, de forma específica. Dessa forma, busquei as suas impressões sobre o que seria necessário numa política pública voltada para elas, para que saíssem da condição de pobreza. Esta questão será desenvolvida no próximo tópico.

3.4 O projeto para elas: a política de segurança

Conforme as queixas das mulheres beneficiárias, o projeto Mulheres da Paz deixou de transformar as suas condições de pobreza e violência. As entrevistadas afirmaram que a ―transformação‖, para fazer sentido, deveria passar por sua independência financeira através do acesso ao emprego, principalmente em relação aos cônjuges; como também pelo incentivo a mudanças de valores, os quais as subjugam socialmente; e perpassadas principalmente pelo 201

acesso ao conhecimento. Assim, se libertariam da condição de violência e pobreza. De acordo com as suas respostas, as mudanças seriam no aspecto de:

Emprego. Emprego. Emprego fixo. Tanto que fosse assim... Fixo, um emprego de carteira assinada, as mulheres de hoje precisam de um lugar para deixar os meninos, precisa de trabalhar, porque não é preguiçosa, não. É porque precisa de trabalho. A maioria das mulheres, aqui, precisam de trabalho. Porque eu vejo assim: as meninas da costura mesmo, tem hora que corre atrás de uma pessoa para ajudar e não acha, não acha. Porque as pessoas não ajudam. Não tem um curso. Os cursos é tudo cobrado, não tem condições de fazer. Mas o que [...] melhoraria um pouco a vida delas. (MP Lourdes). Ela tem que ter uma dependência dela, de não depender totalmente de uma pessoa. (MP Dilma). Essa pergunta é difícil... [Silêncio] Ter uma dependência... Né? É dependência, ou independência? Independência! Isso! É tudo que a mulher precisa. (MP Diana). Ser tratada com carinho, de parar de tomar porrada. Eu já tomei porrada e mudou muito. Ele não é doido de dar porrada em mim! Ele sabe que não pode! (MP Marta).

A partir daí, as mulheres teceram indicações sobre o que deveria ter sido evidenciado na política. As suas queixas foram vagas, oferecendo sinais de que elas não haviam pensado sobre o tipo de política que atendesse às suas necessidades. O problema em propor um programa que as contemple reflete as suas dificuldades dadas as condições de pobreza. Elas sabem o que querem, mas têm dificuldades em projetar ou expor medidas políticas que lhes atendessem diretamente. Evidencia-se a falta de uma mobilização política eficaz para a barganha política. Na cidade de Salvador, o associativismo comunitário é considerado inexpressivo, ao passo que a presença da sociedade civil nas políticas públicas é considerada fraca. Há inúmeras associações civis existentes, entretanto, as que são ligadas às políticas públicas são poucas (AVRITZER, 2007). Assim, as MPs apontaram alguns desejos no que se refere ao atendimento de suas necessidades mais básicas e, ao mesmo tempo urgentes, tais como: uma espécie de cooperativa de mulheres em que fossem resolvidas as suas demandas; a repetição do projeto, exceto pela forma de divulgação; mais políticas públicas de lazer e capacitação para jovens; políticas que incentivassem processos de conscientização sobre o papel da família na sociedade, além da inserção de Polícia Militar Feminina no bairro, já que mulheres também roubavam, traficavam e escondiam drogas em seus corpos.

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A resposta sobre a valorização da família pode ser explicada pela situação de violência doméstica e familiar vivenciada pelas MPs que se encontravam em união estável. Logo, o desejo se configura como uma saída da situação de violência. Para Rita, em particular, a política deveria envolver a defesa pessoal para que enfrentassem a violência doméstica e familiar. Ela aponta para a necessidade de horizontalizar a concepção dos projetos sociais, trazendo o público-alvo para o centro das discussões e deliberações. Assim, relata:

Eu iria aprender a lutar! Não quero dizer que a porrada é a solução, mas eu ia aprender a lutar! As mulheres deveriam ter oportunidades para se instruírem, não serem dependentes. Iria promover um programa de saúde, porque a mulher independente que aceita a violência está doente! Eu mudaria a política no sentido de: educação, saúde e prevenção aliada à lei, é claro. E só deveria ter mulher criando! Quem entende de mulher é mulher! Tem mulher que quer ser independente e arruma um marido que começa a gostar de ficar encostado, aí, ele vai ficando poderoso e a mulher acabada! Ele começa a dar porrada nela! E ela aceita! Abrir os olhos da mulher! Criar alguma coisa que mude isso aí... (MP Rita).

Entre as MPs houve muitas demandas de acesso a serviços de saúde, jurídicos, além da questão de inserção no mercado de trabalho, que não foram atendidas pelo programa federal e que constituíam, portanto, os seus desejos. Apesar da sensação de ―pendência‖ na resolução dos próprios conflitos, as MPs se orgulham de terem participado do processo de capacitação do PRONASCI, definindo-se como ―Mulher da Paz‖ e acreditando no processo de transformação pelo qual passaram. As suas observações sobre as possibilidades de mudança com o referido projeto foram ambíguas. Num momento, elas criticaram o vazio deixado pelo programa referente à falta de atenção às suas queixas. A omissão da equipe de trabalho teria acentuado os seus problemas no bairro – tanto nas ruas, como em suas casas. Porém, o processo de capacitação que lhes instruiu sobre cidadania, teria mudado as suas posturas diante da comunidade e de familiares. A melhoria na vida de Dilma, por exemplo, foi evidenciada por ela da seguinte forma:

Melhorou e muito. Porque eu lembro que até os DVDs que não era tão caro, mas eu não tinha. O meu aparelho tava quebrado já há um tempão. Meu marido vivia me enrolando, depois ele comprou. Ele comprou o armário da cozinha pela primeira vez, quando eu disse que tinha outro projeto para participar. Ele, com ciúmes, comprou na outra semana, (risos) para eu não trabalhar por causa do machismo.

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Passei a ler em voz alta, você mentaliza o que está lendo e quem ouve também. Ele achava que as mulheres no projeto só falavam mal dos maridos, depois ele viu que não era. Pensou que eu ia trazer gente pra casa. (MP Dilma).

Dilma continua subserviente ao cônjuge, aceitando alguns presentes para ficar em casa, como é o desejo dele. Instruir-se sobre os seus direitos a livrou da agressão física, mas não garantiu a sua saída da condição de violência simbólica. Assim, essas beneficiárias se apropriaram da formação que receberam de forma discreta. Com exceção de Lourdes, que não identificou mudanças em sua vida, para as demais, a importância do projeto está no despertar para o conhecimento sobre cidadania, abrindo-lhes brechas para pensar em novas posturas diante da comunidade em que viviam. Por exemplo, parar de brigar com vizinhas, entrar na faculdade, ser solidária e participativa. A partir do projeto federal se instruíram, mas não contaram com materiais, recursos, nem equipamentos necessários para a sua transformação social. As mulheres continuaram subjugadas pelos maridos, namorados, pelos traficantes de drogas, pelos policiais e pelo governo – agora, cientes dos seus direitos. No estudo realizado por Minardi (2009) sobre a questão da segurança pública em Salvador, foi levantada uma série de problemas por mulheres representantes de diversos contextos sociais. Nos debates surgiu a violência nas escolas e dentro dos lares, rompendo com o sentimento de segurança nestes espaços; a violência nas periferias, através dos toques de recolher, aprisionando a população dentro de suas casas; além da violência nos hospitais e postos de saúde, demarcados pelo descaso com relação aos (às) cidadãos (ãs). Conforme as discussões entre essas representantes, as causas para o estado de violência engloba o despreparo da polícia, a falta de educação e má socialização, principalmente entre jovens, o poder do tráfico de drogas, a exploração do crime pela mídia, intolerância religiosa e exclusão. Contudo, as propostas lançadas, assim como os seus olhares sobre a segurança pública, restringiram-se ao plano dos costumes, sem inserir um debate efetivo sobre a formulação de políticas públicas. Com isso, observo a aproximação com o discurso e atuação das MPs que apresentaram dificuldades para explanarem um conceito original de política de segurança pública voltada para mulheres.

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3.5 A questão da cidadania

Segundo o argumento de Hernes [s. d.], a participação das mulheres na política caminha na direção de encarar as diferenças de interesses entre homens e mulheres – e dentro destes grupos, ainda outros que se subdividem entre si. Geralmente, são interesses conflitantes (YOUNG, 2006) e o problema é que os interesses de grupos de mulheres têm sido reprimidos ou sub-representados. Neste caso, a paridade no campo político entre mulheres e homens, assim como dentro do próprio grupo de mulheres, constitui um ponto que direciona possibilidades de mudanças políticas, caminhando para a justiça social e para o real exercício da democracia e cidadania. A ―igualdade de cidadania‖, mantida tal como na concepção moderna, indica universalidade de direitos. No entanto, o seu caráter homogêneo excluiu propositadamente as pessoas que poderiam desestabilizar os assuntos e domínios públicos derivados da experiência masculina branca – mulheres, negros e as pessoas das camadas pobres com suas demandas específicas; assim como, paradoxalmente, indicou desigualdades entre grupos. Young (1996, p. 108) propôs um modelo de cidadania ―diferenciada‖ que indica, necessariamente, a realização da igualdade social e econômica, condicionada ao (dependente do) incremento da igualdade política. Assim, todas as experiências, necessidades e perspectivas sobre os sucessos sociais têm voz e são respeitados, nenhum grupo pode falar pelo outro. Dessa forma, estaria assegurada a representatividade específica de cada grupo social no governo, de maneira a fomentar a real democracia, ou ainda a ―democracia autêntica‖ (YOUNG; 2006, p. 144). Os ideais do republicanismo cívico da tradição do pensamento político moderno ratificaram processos de homogeneização dos cidadãos, o que permanece nos dias atuais, como identifico na política Mulheres da Paz. As mulheres beneficiárias, oriundas dos grupos populares, foram homogeneizadas na condição de mediadoras de conflitos. Situada no domínio da racionalidade e da liberdade, derivadas da experiência/valores/normas masculinas, a questão da universalidade da vida humana se opõe aos interesses particulares. O ponto de vista ―geral‖ sobre a cidadania reforça os privilégios dos grupos de elite, silenciando os demais e reforçando estereótipos na formulação de políticas públicas.

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A representação e a participação se requerem uma à outra. A representação é, aqui, indicada ―como um processo de antecipação e retomada que flui entre representantes e representados (as) a partir da participação destes em atividades de autorização e prestação de contas‖ (YOUNG, 2006, p. 149). Com isso, vislumbro uma possibilidade de democracia também mediada pela pluralização dos modos e espaços de representação, que devem indicar aspectos da experiência de vida, da identidade, das crenças ou atividades mediante as quais as pessoas têm afinidades entre si. Assim, estaria garantida a inclusão política de grupos diferenciados. No caso particular brasileiro, a existência da SPMulheres não garantiu a formatação de uma política que combatesse as desigualdades de gênero no enfrentamento à violência urbana e doméstica. Na concepção do Projeto Mulheres da Paz, permaneceu uma lógica identitária universalizante, advinda da tradição política moderna. Não houve uma representatividade eficaz das mulheres das camadas pobres para apresentar suas necessidades e propostas. Ao contrário, prevaleceu o reforço de desigualdades e estereótipos de ordem desigual de gênero, ao forçar a associação entre proposta de formação de redes entre mulheres urbanas pobres para enfrentamento da violência, bem como a experiência da ―solidariedade na dor‖ entre elas. A SPMulheres se opôs ao modelo tal qual foi apresentado na política do PRONASCI, de fixação das mulheres no voluntarismo feminino. Entretanto, o seu posicionamento não foi suficiente para impedir que a política fosse executada, reproduzindo desigualdades de gênero. Comunicativa, a democracia requer a participação cidadã como princípio fundamental no momento em que encorajamos o florescimento das associações sociais segundo interesses, opiniões e perspectivas. A partir daí, surgiriam políticas e propostas de reformas, através da perspectiva social de um modo de olhar os processos sociais sem determinações, em virtude da multiplicidade de posicionamentos. Com isso, quero afirmar que a sociedade pode ser interpretada a partir de uma multiplicidade de perspectivas sociais de grupos, dificultando a ocorrência de confusões na sua experiência e compreensão da vida social (YOUNG, 2006). Nesse sentido, a perspectiva social legitimaria a representação por conta do posicionamento, abrangendo a pluralidade de grupos sociais – diferente, portanto, dos interesses e opiniões. Assim, resolveria o paradoxo da democracia, no qual o poder social permite que uns sejam mais iguais que os outros, ou que a igualdade da cidadania torne alguns mais poderosos ainda (YOUNG, 1996).

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A democracia participativa admite as diferenças grupais e as situações de desigualdades de determinados grupos, em que contaríamos com mecanismos institucionais e recursos públicos de apoio. Na democracia participativa, dificilmente uma política nos moldes do Projeto Mulheres da Paz seria aprovada e posta em ação. Considerando as diferenças e desigualdades sociais, a conquista da cidadania, conceituada por Young (2006) como ―diferenciada‖, permitiria que as mulheres tivessem garantidas políticas que efetivamente transformassem suas vidas marcadas historicamente pelas desigualdades de gênero, raça e classe no campo institucional. Porque teriam alcançado o espaço das decisões políticas. Para tanto, partiriam do real acesso aos direitos civis constitucionais, até alcançarem a participação ativa nos espaços de decisão e, então, galgarem equidade social de gênero, racial e de classe, etc. Dessa forma, uma atenção deve ser dada à promoção das políticas por parte do Estado, que deveria dialogar com a sociedade civil, mas que, geralmente, alimenta a pobreza, a partir de relações corruptas entre atores e atrizes sociais e políticos (as) (YOUNG, 2002). Assim, avança a violência cotidiana na sociedade para um estado de banalidade que tumultua a democracia e os aspectos de cidadania no meio social. A política social não deve impor responsabilidades aos membros da sociedade e, ainda, sem lhes fornecer meios e recursos para tanto, além das suas possibilidades e ―força‖ (PEREIRA, 2010, p. 40). Bens e serviços básicos devem ser disponibilizados pelo Estado democrático constituído. Estado que também deve ofertar alternativas realistas de participação cidadã. Em contrapartida, a população deve buscar os espaços políticos de negociação. Aproveitar uma suposta potencialidade para a solidariedade informal de setores da sociedade, especificamente, de mulheres negras pobres abre espaço para angústia e asfixia social. A política deve envolver a confiabilidade, a coerência e ser colocada próxima à realidade social, conferindo legitimidade às demandas públicas.

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Conclusão

A partir do pressuposto de que a violência é constitutiva da ordem social, procurei situar a problemática da segurança pública do país, através de uma determinada política de segurança estabelecida. A violência se insere numa complexa negociação que, no Brasil, diante desse cenário criminoso contemporâneo, tem uma base histórica no período do domínio colonial português, que institucionalizou e legitimou a violência com fins de ordenação social. Lidamos com um ―universo do crime‖, respaldado em uma série de elementos que o retroalimentam, os quais envolvem a falência do sistema judiciário, os abusos da polícia, a privatização da justiça, a ―fortificação‖ das cidades e destruição dos espaços públicos. Além disso, as narrativas sobre o crime compõem o cenário porque produzem e legitimam, através das histórias e relatos sobre o crime, reações violentas e ilegais. Essas narrativas combatem e reproduzem, ao mesmo tempo, a violência, através da associação estabelecida com o medo. O resultado, então é a produção de interpretações, geralmente, permeadas pelo uso de estereótipos, preconceitos e racismo, reorganizando os espaços a partir dos novos sentidos que lhes são atribuídos. O processo de institucionalização da violência pelo Estado preenche várias discussões na sociedade e no mundo político. Através da interface entre racismo, pobreza, brutalidade policial e discriminação de gênero, o Estado deixa de criar possibilidades de transformação das desigualdades sociais. Assim, desconsidera conceitos e princípios da Constituição Federal de 1988, atropelando os processos democráticos e de respeito aos direitos humanos. As ações violentas de policiais são cotidianas e controlam a população, sob a proteção da lei, tratando desigualmente as elites e as classes trabalhadoras em defasagem das últimas. A população pobre e negra é a mais prejudicada. Nestes espaços, os homens jovens, entre 15 a 24 anos, negros e pardos, aparecem como principais vítimas e autores, em 96% dos casos de homicídios (MACHADO, 2010). Assim, a institucionalidade é definida pela repetição das dinâmicas de corrupção e brutalidade, classificadas como genocídios legitimados pela omissão, pelo silêncio e sentimento de vingança da sociedade. Nesse formato, o Estado retoma elementos opressivos do seu passado sobre a vida cotidiana da população historicamente discriminada.

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As desigualdades sociais são formas de diferenciação produtoras de tensões e conflitos entre os atores sociais. Elas se estabelecem segundo a complexidade social, como consequência e produtora das diferenças, que geram ainda mais diferenças. Os valores discriminatórios e os valores democráticos se situam na articulação entre o cultural e o institucional que, em nosso contexto nacional, está cercado de ambivalências. Tal como a negação de direitos de cidadania a alguns grupos sociais, como o de mulheres negras pobres, constantemente polarizadas em espaços desprivilegiados. O racismo, no Brasil, fruto do colonialismo e da escravidão, foi responsável pela marginalização e exclusão dos processos educacionais e de inserção no emprego para as pessoas negras. A condição de pobreza está presente no universo das desigualdades sociais, fomentadas pela ausência ou ineficiência de políticas públicas destinadas aos setores populacionais tradicionalmente marginalizados. Portanto, configura-se como mais uma expressão da institucionalização da violência pelo Estado, em que a CF/88 não representou uma força capaz de transformar essas tensões sociais. Todos esses pontos indicam impedimentos para a efetivação do processo democrático no país, mesmo em seu período de reabertura democrática, o que classifico como um atropelo à ordem estabelecida num Estado de direito democrático. A importação de novos conceitos na área de segurança, como ―polícia comunitária‖, assim como a criação de órgãos e secretarias nesta área, cria um ambiente para a formulação do PRONASCI. Em algumas análises, O PRONASCI foi concebido como um programa ―inovador‖ ao adotar o conceito de participação cidadã, através da inserção da sociedade civil na atuação contra a criminalidade, até prevista na nova Constituição Federal. Entretanto, reuniu uma série de problemas que puseram em questão este aspecto ―inovador‖, especificamente em torno da maneira como a questão de gênero foi concebida no programa federal. A noção de ―empoderamento‖ das mulheres do programa de segurança, a partir do Projeto Mulheres da Paz, restringiu-se à constituição da autoestima do self feminino e na valorização de sua atuação junto à comunidade. As mulheres foram convidadas a construírem narrativas do self em que surgiam identidades ―empoderadas‖, mostrando-se adequadas ao protagonismo social e à autotransformação. Tal especificidade no planejamento de políticas sociais brasileiras já constitui uma prática em programas de transferência de renda, como o Programa BolsaFamília. Para as MPs de São Cristóvão, o Programa Bolsa-Família inibe as jovens de 209

buscarem ascensão social pelo trabalho e estudo, porque fomenta o sentimento de acomodação entre elas. Dessa forma, deixa de atender às expectativas de crescimento para o grupo de mulheres pobres. Na análise de Gomes e Sorj (2011, p. 148), essas políticas voltadas para as mulheres envolvem discursos e práticas díspares entre si. Por um lado, na mobilização de ―noções e pressupostos maternalistas, associados à feminilidade‖. Sob esse aspecto, observamos as inspirações para o projeto Mulheres da Paz na mobilização das ―Mães de Acari‖, que reproduziu e reafirmou desigualdades, estabelecendo a mediação social como atributo das mulheres. Por outro lado, envolve a reunião de novas abordagens sobre cidadania baseadas na individualização

dos

sujeitos,

mediante

―valorização

da

autonomia

e

do

autodesenvolvimento‖, conforme a ideia de ―empoderamento‖ especificada no referido projeto. O principal, que é a criação de mecanismos efetivos para a saída das condições de pobreza, deixa de ser proposto pelo Estado. As desigualdades de gênero geram exclusão para mulheres e homens de forma peculiar. No caso particular da política do PRONASCI na Bahia, as mulheres pobres, a maioria negras, foram convocadas a atuar como mediadoras, reunindo para si mais ônus e frustração na sua vida cotidiana. Tais lições – deixadas pelo estudo das Mulheres da Paz de São Cristóvão a respeito do desvio de políticas públicas de gênero no Brasil – fizeram-me refletir sobre o diálogo (ou ainda, a falta deste) entre Estado e sociedade civil. O crescimento do número de mulheres na vida política brasileira não garantiu melhorias na vida das mulheres pobres e negras. Os benefícios que lhes são destinados, promovidos pelo Estado, são irrisórios. Não possibilitam reais condições de transformação em suas vidas. Na formulação das políticas públicas voltadas aos setores pobres da população, no caso particular, das mulheres pobres de contextos urbanos, o Estado deixa de envolver as demandas colocadas pelo grupo. Isto porque o grupo não tem representação política forte nas instâncias de poder. O fato de contarmos com uma bancada feminista no governo não evitou que mulheres pobres fossem discriminadas e exploradas a serviço de uma elite política (na maioria, masculina) preocupada com a manutenção do status quo. No estudo realizado no bairro de São Cristóvão, em Salvador, considerei algumas falhas na política do PRONASCI. Foram elas: a) a própria concepção do projeto que deixa de introduzir os homens no processo de mediação social, reproduzindo preconceitos de gênero; b) poucas chances de transformação das condições de pobreza, em parte porque as mulheres 210

não constituíram público-alvo do projeto; c) a forma como foi estruturada a execução do PRONASCI na Bahia, em que o estado executa as ações em lugar dos municípios e descentraliza entre as secretarias estaduais; d) se considerar que a mediação projetada foi válida, deixou um vazio no que se refere às possibilidades ofertadas aos jovens (público-alvo do PRONASCI), ―para onde encaminhá-los?‖. Nem para o Projeto, conforme previsto nas especificações do PRONASCI, foi possível encaminhá-los porque sua execução ocorreu antes da execução do projeto Mulheres da Paz, deixando este último sem um sentido para a atividade de mediação; e) consta a falta de uma rede atuante que atendesse às famílias encaminhadas pelas MPs, como também que atendesse às próprias MPs que enfrentavam as mesmas condições de conflito, violência e pobreza; f) falta de divulgação clara, sensata e efetiva para a sociedade, para os atores e instituições envolvidos no processo – os territóriosfoco, as instituições policiais e socioassistenciais; g) falta de continuidade do programa federal, no sentido de criar novos programas que garantissem o acesso ao emprego, como foi largamente demandado entre as MPs e entre as coordenadoras das equipes de trabalho do projeto MP. Portanto, os problemas na gestão do PRONASCI, o mau entendimento da política, a ausência de um trabalho de sensibilização e o autoritarismo se apresentam como as questões específicas no caso da Bahia. O PRONASCI se configura como um programa que não contemplou condições para o seu sucesso, na medida em que não fez um estudo aprofundado e crítico sobre o público e a sua forma de atuação, o que me fez considerá-lo também como meta para a conquista de novas eleitoras para o período eleitoral que se aproximava. As propostas assistenciais, no lugar de formarem cidadãs de direitos, procuraram formar mais um grupo expressivo de eleitores (as), mantendo a população longe de processos democráticos que implicassem em transformações reais de suas condições de vida. Segundo as MPs, a sua participação no programa garantiu-lhes o aumento da autoestima, já que passaram a reconhecer uma posição social que lhes coferia certo valor social; bem como passaram a reconhecer direitos que possuíam, significando uma possibilidade de saída da situação de violência doméstica, como foi o caso de algumas entre elas. Por outro lado, sentiram que o processo formativo deixou de atender às suas expectativas de acesso aos serviços públicos, jurídicos, médico-hospitalar, socioassistenciais, psicológicos, de emprego e educacionais. Dessa forma, somente aquelas poucas mulheres que já contavam com alguns recursos puderam galgar novas posições sociais. 211

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Anexo A. Divulgação do Projeto Mulheres da Paz

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Anexo B. Divulgação do Projeto Mulheres da Paz

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Anexo C. Apresentação do Programa Território de Paz

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Anexo D. Cartilha produzida por Mulheres da Paz (capa e ficha técnica)

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Anexo E. Fichas de encaminhamento de famílias acompanhadas por Mulheres da Paz

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Anexo F. Processo avaliativo realizado por Equipe Pedagógica

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Apêndice A. Produções escritas em oficinas de formação do Projeto Mulheres da Paz

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