ESCLARECIMENTO E AUTONOMIA

  ESCLARECIMENTO E AUTONOMIA Luciano Nascimento Figueiredo Instituição: Faculdade Sumaré Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Pr...
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ESCLARECIMENTO E AUTONOMIA

Luciano Nascimento Figueiredo Instituição: Faculdade Sumaré Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Ouro Preto [email protected]

 

Esclarecimento e Autonomia

Luciano Nascimento Figueiredo Resumo Este artigo apresenta algumas posições do filósofo Immanuel Kant a respeito do motivo que leva tantas pessoas a passarem toda a vida sem ter autonomia no pensar. Destaque para a relação entre ética e desenvolvimento cognitivo traçada pelo filósofo.

Palavras-chave: esclarecimento; autonomia; menoridade; liberdade; Kant.

São muitas as contribuições de Kant para o campo da educação. Seu projeto, desenvolvido nas três críticasi, de restabelecer a compreensão humana sobre suas estruturas cognitivas e apontar seus limites, é fundamental para a idéia que temos de sujeitoii. Neste artigo não iremos explorar diretamente este fascinante e intrincado aporte da filosofia críticaiii. O objetivo aqui é menos audacioso, mas não menos interessante, principalmente quando a discussão é a respeito do conhecer. Em 1784, Kant publicou um texto intitulado “Resposta à pergunta: Que é esclarecimento?” Esclarecimento, vale ressaltar, é uma das traduções utilizada para a palavra alemã Aufklürung, a outra, mais utilizada, é iluminismo. Iluminismo é muitas vezes identificado imediatamente como sendo o nome dado ao movimento intelectual racionalista do século XVIII. Porém, lembra o tradutor da edição aqui utilizada, que a palavra esclarecimento talvez seja o melhor correspondente, em português, de Aufklürung “porque acentua o aspecto essencial da Aufklürung, o de ser um processo e não uma condição ou uma corrente filosófica ou literária...”iv. No referido texto, são três os principais conceitos: menoridade, maioridade, liberdade. É interessante perceber, desde já, o seguinte ponto: num escrito que pretende discutir o conhecimento, o foco conceitual tende para a ética. Ou seja, a relação entre o conhecer e o âmbito das ações humanas, é colocada em destaque. Sobre a menoridade é dada a seguinte definição “... menoridade é a incapacidade de fazer uso do seu entendimento sem a direção de outrem ”v. Todos nós humanos nascemos nesta condição. Esta é a nossa radical incompletude que nos aponta para a importância da educação. Portanto, não é o fato de nascermos na menoridade que incomoda o filósofo, mas a constatação, também factual, de que uma enorme parcela da humanidade passa toda a vida nesta condição. É esta questão que atribui absoluta atualidade ao texto publicado em 1783. Hoje existem pessoas que passam toda a vida na menoridade? Por quê? Kant apresenta razões individuais e sociais para a perpétua menoridade. No âmbito individual: A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem no entanto de bom grado menores a toda a vida. São também as causas que explicam por que é tão fácil que os outros se constituam tutores deles. É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um método que por mim decide a respeito de minha dieta, etc., então não vi preciso de esforçar-me eu mesmo.

No âmbito social:

(Os tutores) Depois de terem primeiramente embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual a encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozinhas. Ora, este perigo na verdade não é tão grande, pois vii aprenderiam muito bem a andar finalmente, depois de algumas quedas.

Como todos nascem menores, tem-se a necessidade de tutores. Alguns ou muitos destes, seja no campo político, religioso ou educacional, agem de maneira a querer perpetuar os indivíduos na menoridade. Como procedem para tanto? Inoculam um terrificante veneno: o medo. Quando uma pessoa lança-se a caminhar sozinha tomar alguns tombos é algo inevitável, porém, superada esta fase, o andar ganha segurança, naturalidade e força. Acontece que muitos tutores não encorajam esta passagem, ao contrário, a tornam mais difícil. Utilizam os primeiros tropeços para amedrontar aquele que inicia a caminhar por conta própria Apresentados os motivos sociais e individuais da perpétua menoridade podemos pensar a importância de considerarmos ambos. Abandonar qualquer um destes dois aspectos limita a reflexão, pois a deixa aquém da inexorável ambiguidade do real. A ação do indivíduo é decisiva para que ele alcance a maioridade; entretanto, perceber isto, não pode nos fazer fechar os olhos à pressão social para que os indivíduos continuem na menoridade. Porém constatar que existem muitos tutores, seja no campo educacional, político ou religioso, que desejam perpetuar a menoridade do seu gado doméstico, não pode cegar-nos do quanto a parcela do próprio individuo é decisiva para a sua saída da menoridade. Embora Kant reconheça o peso das barreiras sociais, em última análise a conquista da maioridade é de foro individual e são a preguiça e a covardia as principais razões para a perpétua menoridade. A partir do conceito de menoridade podemos estabelecer a definição de maioridade: “Ter a capacidade de fazer uso de seu próprio entendimento sem a tutela de alguém”. Esta definição também serve adequadamente para conceituar autonomia. Assim, esclarecimento significa autonomia no pensar e para compreender qual ação é exigida para a conquista da maioridade, ou autonomia, devemos recorrer ao significado do conceito de liberdade. Entregar-se aos instintos, aos desejos? Nada mais distantes do pensamento kantiano do que isto. Para este, quem vive absolutamente entregue aos instintos são os outros animais. Os homens possuem, entre outras peculiaridades, a capacidade de limitar e ordenar seus instintos. O homem pode dizer não, ou sim, aos instintosviii. Aí reside a liberdade e também a possibilidade de autonomia: colocar leis para si.

Condenamos um homem por um assassinato, mas não tem sentido condenar um leão ou um cão por istoix. Por quê? Ambos seguem seus instintos e não têm a possibilidade de refreá-lo. Eles não são livres, pois são determinados, limitados integralmente por seus instintos. Somente como fábula podemos considerar uma cena em que a leoa faminta vai em direção a uma criança indefesa e no momento em que vai dilacerar a tenra carne não o faz; pára, pois sente compaixão por aquele ser desprotegido, abandonado. E mesmo com fome, poupa a vida da criancinha. Quando Kant diz que: “A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma direção estranha (naturaliter maiorennes), continuem, no entanto, de bom grado menores por toda a vida”x Ele está mencionando que a natureza possibilitou ao homem, e dentre os animais apenas a ele, a liberdade de não ter que seguir sempre os instintos. Liberdade, portanto, é definida como autolimitação. Liberdade e limites? Sim. Para Kant o ilimitado é uma ideia da razão. Se o ser existe, no âmbito do palpável, ele tem limites. Diante desta condição, podem-se ter as seguintes posturas: ser limitado pelos instintos - assim não há liberdade; pode-se ser limitado integralmente pelo outro – aqui também não se é livre; assim, somente quando o limite é colocado por si mesmo pode-se dizer que há liberdade. Desta maneira, para se ter a capacidade de utilizar seu entendimento por conta própria é necessário colocar limites para si, pois somente quem se autodetermina pode construir um caminho próprio, dentro de uma realidade que necessariamente implica limites. A partir disto podemos trazer a discussão para o âmbito educacional. O professor deve estimular o aluno a caminhar por si. Quando o autor discute as dificuldades de alcançar a autonomia ele afirma: É difícil, portanto, para um homem, em particular, desvencilhar-se da menoridade que para ele se tornou quase uma segunda natureza. Chegou mesmo a criar amor por ela, sendo por ora realmente incapaz de utilizar seu próprio entendimento, porque nunca o deixaram fazer a tentativa de assim proceder. Preceitos e fórmulas, estes instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes do abuso, de seus dons naturais, são os grilhões de uma perpétua xi menoridade.

No parágrafo acima é patente a condenação de uma educação baseada apenas em seguir o que já está estabelecido. Porém, no momento em que constatamos isto, é absolutamente fundamental ressaltarmos o outro lado da moeda. Se cabe ao tutor estimular o aluno a andar através das próprias pernas, isto somente vai acontecer se houver coragem e esforço do aluno. Sem este elemento a autonomia não se dá, pois ela é uma conquista. Um exemplo bem simples: como terei um entendimento próprio do texto se não o leio? Como vou expandir minha bagagem

de conhecimento se não me arrisco e enfrento o desafio de compreender algo que hoje não entendo? Como vou escrever com propriedade se não costumo escrever?

Conclusões Está disseminada a postura de se reconhecer com toda veemência que “os políticos não querem que a população se esclareça, pois é mais fácil comandar quem não tem senso crítico” e, em seguida, cruzar os braços. Perceber a parcela de culpa e alcance da “pressão” social para que as pessoas continuem menores durante toda vida é importante, mas utilizar isto para se isentar da parte que cabe ao indivíduo para a conquista da maioridade é “dar um tiro no próprio pé”. Para ler, para acessar uma ideia que não domino, para escrever, tenho que me esforçar. Ser autônomo exige. Se desejo traçar meus horizontes com cores próprias, e não copiar o desenho alheio, vou ter que me esforçar eu mesmo, se não for assim simplesmente não acontece. Esforço, é bom ressaltar, não é apresentado como martírio, pelo contrário. Se no calvário cada passo significa enfraquecimento, cada degrau rumo à autonomia provoca fortalecimento. O locus da ética, da moral é justamente o campo das ações humanas. A fundação do esclarecimento, segundo Kant, reside neste mesmo solo. Um pensamento autônomo é uma ação propriamente humana e a condição de fazer uso de seu entendimento por conta própria é alcançada por um conjunto de atitudes. A autonomia é um direito de todo cidadão, mas uma conquista do indivíduo. Podemos dar dois sentidos sobre a relação entre ética e esclarecimento. Primeiro, pode-se dizer que um conhecimento foi compreendido em sua completude se isto implica numa mudança das ações do sujeito. Em outro sentido, pode-se estabelecer que vou ler e escrever com propriedade se me lançar à leitura e à escrita, se, de fato, exercito a leitura e a escrita. Isto não implica em um caminhar mecânico e modorrento, numa reta e obtusa relação de causa e efeito. A relação aqui está mais para a dança, incluindo rodopios, piruetas e saltos. Para dançar bem é preciso dançar. Dancemos então, com a consciência das dificuldades e quedas necessárias.                                                              i

 Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica do Juízo de Gosto.   Para conhecer melhor o assunto existem duas introduções interessantes a respeito:  FIGUEIREDO, Vinicius de (org.). Seis filósofos na sala de aula: para ler Platão, Descartes, Kant, Maquiavel, Voltaire,  Sartre. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006. e DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.  iii  Nome atribuído à filosofia kantiana. O próprio autor coloca sua posição filosófica como situada entre o  Dogmatismo e o Ceticismo.  iv  Nota do Tradutor in KANT, Immanuel. Textos Seletos. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Editora  Vozes, 2008, p. 63  v  Idem, ibid., p. 63  vi  Idem, ibid., p. 64  vii  Idem, ibid., p. 64  viii  Esta premissa da ética iluminista sofreu ao longo dos séculos XIX e XX duras críticas. Nietzsche, por exemplo,  coloca este ponto como sendo uma negação da vida. Marx dirá que em última instância as modificações têm sua  base na estrutura econômica e não na superestrutura jurídico‐cultural como acredita Kant. Freud e Foucault  também lançaram críticas aos princípios da moral iluminista.  Este coloca em xeque a possibilidade mesma da  ii

                                                                                                                                                                                                 proposta kantiana, ou seja, conseguimos mesmo dizer não às nossas pulsões?  Aquele em vários momentos expõe  os “custos” à saúde, do sujeito e da sociedade, impostos pelo longo processo de disciplinarização e controle dos  instintos. Apesar da importância destas posições críticas frente à ética iluminista, evito expô‐las em pormenores  para preservar o foco do artigo: apresentar a posição de Kant a respeito da relação entre autonomia e  esclarecimento e o interesse que tais questões têm para a atualidade.  ix  Pode‐se até matar o animal, mas tal ação não está relacionada à culpabilidade do mesmo.  x  Nota do Tradutor in KANT, Immanuel. Textos Seletos. Trad. Floriano de Souza Fernandes. Petrópolis: Editora  Vozes, 2008, p. 65  xi  Idem, ibid., p. 64       

Bibliografia      KANT, Immanuel Resposta à pergunta: Que é Esclarecimento? In: Textos Seletos. Trad. Floriano de Souza  Fernandes. Petrópolis: Editora Vozes, 2008.    FIGUEIREDO, Vinicius de (org.). Seis filósofos na sala de aula: para ler Platão, Descartes, Kant, Maquiavel,  Voltaire, Sartre. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006.    DELEUZE, Gilles. Para ler Kant. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976.