Entrevista com Phillippe Dubois

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ENTREVISTA

Entrevista com Phillippe Dubois COl/cedida

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Marieta de Moraes Ferreira e Mônica Alllleida J(orllis elll 2 de setelllbro de 2 003

Professor da Universidade de Paris III (Sorbonne Nouvelle), onde dirige a Unidade de Formação e Pesquisa "Cinema e Audiovisual", e conhecido internacionalmente a partir da publicação de seu primeiro livro, O alOfOlOgráfico e O/llros ellsaios, Philippe Dubois é hoje um dos maiores pesquisadores do campo da imagem, particularmente no que concerne à reflexão sobre fotografia, cinema e vídeo. Esta entrevisra foi concedida por ocasião das comemorações dos trinta anos do CPDOC, em meio às quais Philippe Dubois proferiu uma palestra. Fale sobre suas origem familiares, Sllaformação. Nasci em 1952, numa pequena cidade do interior da Bélgica, peno de Liége, numa família de classe média. Meu pai começou como funcionário de um banco, ali fez carreira e terminou como diretor de uma agencia bancária, e minha mãe era dona-de-casa. Trabalhou apenas no início do casamento e parou quando

ESl/ldos Hislóriws, Rio de Janeiro, nO 34, julho-dezembro de 2004� p. 139-156.

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os filhos nasceram. Uma situação clássica desse meio, numa pequena cidade burguesa do interior da Bélgica. Desde criança, fui atraído por vários assuntos, o que me orientou na escola para as disciplinas literárias. Depois de uma evolução normal na escola, em 1970 entrei na Universidade de Liêge, para cursar filologia românica, que abrange basicamente língua e literatura francesas. Fiz minha trajetória de estudante de letras e aprendi muita coisa, em particular aquilo que é uma especificidade da Universidade de Liege: uma atenção parricular à análise da linguagem. A especialidade da formação de letras que se obtém naquela universidade é o que chamamos de análise do texto, isto é, decompor de forma bastante precisa um romance ou poema, estudar os níveis de funcionamento etc. Tendo sido um estudante universitário no início dos anos 70, entre 1970 e 1975, já me defrontei com um período de plena instalação do estruturalismo, da semiologia nas ciências humanas e, portanto, também nos estudos literários. Na minha universidade duas grandes correntes se enfrentavam violentamente: os historiadores da literatura e os estruturalistas e semiólogos da literatura. Essas duas escolas de pensamento estavam em guerra aberta e, naturalmente, os estudantes não são neutros; naquela época, eu estava do lado dos semiólogos e estruturalistas. Para mim, os historiadores eram arcaicos; pensavam e estudavam a vida do escritor, suas amantes, seu estilo, enfim, coisas que me pareciam completamente estranhas à riqueza e à realidade dos textos. Assim, ou se era partidário da análise externa, que partia da história, ou da análise interna, que partia da semiologia. Fiquei prisioneiro dessa luta e fiz um trabalho centrado no estudo da narrativa entre os surrealistas, tomando decididamente o partido da tendência estruturalista. Outra coisa me perturbou muito naquela época: fazendo estudos de literarura, portanto, interessado nos problemas da linguagem, comecei a curlir uma paixão pelo cinema, ainda sem relação com minha vida de esrudante. Ia ao cinema todos os dias, o que não era fácil numa pequena cidade do interior da Bélgica, que não era Paris com seus quatrocentos cinemas. Eu tinha a cultura possível numa cidade de província, mas era uma paixão que eu não vivia como algo que se pudesse esrudar. Era apenas um prazer de cinéfilo. Ainda não era muito consciente, mas já crescia em mim uma ambiva­ lência entre o interesse pelo romance, a poesia e a literatura, de um lado; e pela imagem em movimento, as histórias contadas por imagens e não pela linguagem escrita, de outro. Um era objeto de estudo, o outro era objeto de prazer. E, na­ quele estágio, eram coisas distintas. Depois do trabalho de fim de curso, eu disse a mim mesmo: "No fundo, as imagens me interessam." E iniciei um projeto que não cheguei a terminar: /40

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estudos numa grande escola de cinema em Bruxelas, para aprender a fazer filmes. Mas não fui longe, porque não suportei a disciplina da escola. Lembro-me até de uma anedota. O professor de som, engenheiro de som - era o primeiro curso e ainda lembro como se fosse ontem, e já faz 30 anos- passou um •

trecho de um filme de Godard,A bom de soufJle, e nos disse: "Vocês não estão aqui para aprender a fazer isso. Godard é o falso brilhante do cinema. Não sabe o que é uma tomada de som, não sabe o que é uma mixagem sonora. Vocês estão aqui pa­ ra aprender a fazer o verdadeiro cinema." Na época, eu tinha 24, 25 anos, e como cinéfilo não consegui agüentar esse discurso; para mim, Godard já era uma figura exemplar do cinema. Assim, na primeira aula já comecei a discurir com o professor de som, e rodo o resto foi a mesma coisa. Para mim, essa escola de cinema era rotalmente normativa: ensina­ va a fazer cinema profissional de uma forma determinada a prior': como a única aceitável. Tudo o que não era assim não tinha o direito de existir. Abandonei rapidamente a escola. Nesse meio-tempo, vários professores que conheci na universidade me telefonaram propondo contratos para trabalhos de pesquisa. Assim, voltei à universidade com um contrato que me permitiu fazer um segundo mestrado, e escolhi estudar a imagem e o som; fiz um mestrado em comunicação, com opção por cinema e audiovisual. Aí sim, o cinema se tornou meu objeto de estudo e não mais apenas meu objeto de prazer. Portanto, possuo uma dupla formação como estudante universitário, em literatura e em cinema e audiovisual. Essa é minha trajetória escolar e universitária. A partir dali, engajei-me numa tese de dourorado, feita igualmente na Universidade de Liege, e que era ambígua, porque eu não soube escolher entre a questão literária e a questão da imagem. Fiz uma tese que privilegiava a literatura, porque academicamente era mais simples fazer uma tese em lelras; ali por 1974, 1975 ainda não existia doutorado em cinema. Do ponto de vista acadêmico, minha tese é em literatura, mas meu tema era a dimensão visual da literarura, especialmente da poesia. Esrudei os problemas de organização plás­ tica, de lipografia, de composição dos poemas, o trabalho de "significantes do texto", como chamávamos na época, num sentido quase visual. Por isso, é uma rese um pouco híbrida, fruto dessas duas dimensões. Como disse, eu tinha um contraro de pesquisa com a Fondation Na­ tional de la Recherche Scientifique (FNRS)- o equivalente belga do Centre Na­ tional de la Recherche Scientifique (CNRS)- e era muito confortável, porque era pago para fazer pesquisa, não tinha nenhuma obrigação particular. Devia ajudar um pouco meu professoI; fazendo correções, cópias, coisas assim, e descobri o que era a vida numa instituição universitária, que eu desconhecia. Quando era estudante, jamais tive o projero de me rornar professor universitário. 141

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Durante quatro anos fui inteiramente livre; foi um período muito interessante de minha vida, porque minha única obrigação era fazer pesquisa, sendo pago para isso. Nenhuma preocupação, era formidável. Elaborei a tese em quatro anos; terminei em 1980 e logo depois consegui um cargo estável na universidade, como professor titular. Naquele momento, o Departamento de Comunicação estava em fase de constituição, e fui rapidamente integrado a ele. Era um tempo de desenvolvimento das universidades, diferentemente de hoje em dia, em que esramos presos a projetos de restrições, de contenção. Inte­ grei-me muito bem nesse cargo de professor de cinema e audiovisual, de análise da imagem. Ainda me sentia um pouco frusrrado, porque tinha começado numa disciplina literária e cada vez mais sentia que meu desejo, minha área de trabalho era muito mais a imagem do que a literatura. Mas logo em seguida à tese me disseram: "Olha, talvez fosse bom escrever um livro." Em vez de escrever sobre teoria da literatura, respondi: "Sim, gosto muito da idéia, mas vou fazer um livro sobre a imagem." E antes de mergulhar no cinema, onde não me sentia muito sólido, porque ainda não dominava o campo teórico do cinema, escolhi a fotografia. Era também um pouco virgem no tema. Tinha lido praticamente tudo o que havia sido escrito sobre a fotografia, mas não era muita coisa, dois ou três livros apenas, e alguns textos históricos mais antigos. Havia o célebre livro de Roland Barthes, La chall/bre elaire, publicado em J 979, e estava sendo preparada uma série de livros. Acompanhei a discussão e, sob esse ponto de vista, escolhi o bom momento, da efervescência teórica sobre a fotografia, no início dos anos 80. A teoria da fotografia ocupa seis ou sere anos apenas dos anos 80. Afora os textos históricos, o verdadeiro pomo de partida é La [hall/bre c/aire, de J 979, e o "pomo final", digamos, é o livro de J ean-Marie Shaeffel; L'illlage précaire, de 1987. Entre os dois foram publicados cinco ou seis livros, entre os quais o meu, que vão instalar a fotografia como objeto de reflexão teórica. Escrevi o livro em um ano e meio, e ele foi publicado em 1983, sob o tí­ tulo [;acte photographiq/le, pouco depois do livro de Susan Somag, La pllOto­ graphie, de 1979, mas ao mesmo tempo que o livro de Henri Vanlier, Philosophie de la pllOtographie, de 1983. Shaeffer veio depois. Naquele momento, ainda não havia estudos históricos sobre a fotografia; era um período totalmente estrutu­ ralista e fenomenológico. Sell livro teve lima receptividade mllilO grallde. E verdade, e basicamente porque naquele período não havia nada, pois a •

história da fotografia ainda não estava inaugurada como disciplina, o que SÓ aconteceria nos anos 90. Isto não quer dizer que não houvesse uma história da fotografia, mas era a "velha" história, a história de Beaumont Newhall, por 142

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exemplo, e alguns textos teóricos, como certos textos de Walter Benjamin e de André Bazin, mas são escriros dos anos 30,40, que tinham um valor histórico. Surgiu, então, uma verdadeira mania, que evoluiu nos anos 80, e ponamo meu livro caiu bem, no contexto geral de reflexão das ciências humanas sobre as imagens e sobre a fotografia em particular. Outra coisa que pode explicar o grande sucesso do livro na época - e ainda hoje, pois foi traduzido em várias línguas e se tornou um clássico - foi que evitei dois obstáculos: primeiro, não quis escrever um ensaio, como Banhes, ou seja, algo que testemunhasse a subjetividade daquele que escreve sobre imagens, que trabalha com problemas da emoção, da percepção afetiva da imagem. Não quero negar essa dimensão, mas não quis fazer de meu livro um ensaio. Não quis me incluir no movimento banhesiano. Em segundo lugar, tampouco quis fazer um livro "acadêmico", austero, que dominasse todo o conhecimento, cheio de referências bibliográficas. Tentei ficar no meio-termo entre o ensaio subjetivo e O pensamento acadêmico, massu­ do, pesado. Digo isso meio retrospectivamente, mas essa escolha já estava clara para mim desde o início. Trabalhei em torno de um conceito que me ajudou muito, essa noçao de índice, essa dimensão indicadora da imagem fotográfica, que encontrei na semiologia americana de Charles Sanders Peirce, descoberto naquele momento na França- cle era mais conhecido nos Estados Unidos, mas acabava de ser traduzido na França. Assim, baseando-me nessa noção, consegui me desincumbir de [arma bastante coerente e legível-eu queria um livro legível, e não uma obra complexa, difícil. Acho que encontrei o tom adequado para tornar o assunto bem claro, sem cair no ensaio subjetivo nem na austeridade excessivamente universitária. Tinha acabado de defender minha tese, ponanto tentei evitar fazer uma coisa que se parecesse demais com outra tese. E funcionou muito bem. Em razão do contexto da época e da estratégia para sua elaboração, rapidamente o livro se tornou uma referência por toda pane. Para o Brasil o livro veio mais tarde, quando me propuseram uma tradução em português para uma editora brasileira que se chamava Papirus. A edição bra­ sileira também fez grande sucesso; foram seis ou sete edições, não estou bem certo. O livro também fez bastame sucesso em países como a Itália, a Espanha, e se tornou uma obra de referência. E na

França.' Certamente. Já estamos na nona edição francesa, atualmente pela edi­

tora NaLhan. A primeira editora era belga, a Labor, em 1983; em 1990 fiz uma edição bastante aumentada, foram mais 150 novas páginas de texto. Pensei que depois de sete anos e do sucesso do livro, era preciso atualizá-lo com aquilo que 143

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tinha sido feilO entre 1983 e 1990, por isso acrescentei uma nova dimensão, menos teórica e mais histórica. E a diferença entre as duas edições: a segunda -

tem mais objelOs históricos - aliás, é a edição que [oi traduzida no Brasil, a de 1990.

Depois de vime aI/OS, o livro comiuua ocupando o mesmo lugar em suas preocupações? Sinto-me contente pela existência do livro, independentemente de sua notoriedade, mas do pontO de vista do conteúdo. Para mim, é um texto que assu-

mo ainda hoje. Não digo: "Ah, não! E um texto de juventude, cheio de erros ... Claro que contém algwna ingenuidade, coisas que eu não escreveria mais hoje em dia, mas o movimento que me levou a escrevê-lo ainda é muito forte. Não o releio freqüentemenre, mas quando aconrece de rever duas ou três coisas, en­ conrro no livro um movimemo que me agrada ainda hoje, um grande enru­ siasmo. Persigo uma idéia, que considerava e ainda considero boa, mesmo se depois ela se IOrnou banal, e essa idéia serviu de motor ao livro. "

Mas é evidenreque hoje não trabalho mais dessa maneira e,se me pedem para fazer conferências ou dar cursos sobre fotografia, levo bastante tempo para expor as coisas de forma diferente, não falo mais da mesma forma, já que essa noção de índice se tornou bastante comum; não é mais nenhuma novidade, ao contrário. Além disso, mudei muito a respeito da questão da fotografia. Eu diria que é um livro que foi forçado, no início dos anos 80, a relletir sobre a grande pergunta que lOdos faziam: o que caracteriza a imagem fotográfica, em oposiçao aos ouu·os tipos de imagem: cinema, pinrura, televisão? Era o tempo em que se refletia sobre especificidades; era típico dos anos 80 e do espírito pós-estruturalista. Atualmente, o estruturalismo não domina mais as ciências humanas nem o discurso sobre a especificidade. Eu próprio já escrevi mais de uma vez que não existe especificidade, que a única coisa in­ teressante na fotografia ou no cinema ou mesmo na pintura são os problcmas transversais, isto é, aquilo que os três têm em comum, muito mais do que aquilo que os separa: refletir sobre os problemas do espaço, do tempo, do enqua­ dramento, da profundidade na imagem. Evidentemente, o cinema não trabalha isso da mesma maneira que a fotografia, mas é porque os dois lidam com cate­ gorias transversais que podemos fazer perguntas pertinentes. Não mais per­ guntas sobre especificidade, mas questões de transversalidade, que podemos avançar na reflexão sobre esse tipo de problema. Mais ainda: a semiologia não é mais a disciplina dominante; houve vários movimentos, como o da história, de um lado, e da filosofia e da estética, de outro. Depois da tese e de ter publicado esse livro sobre a fotografia, continuei na Universidade de Liêge, mas comecei a percorrer vários departamentos. 144

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Inicialmente, como disse, era o único a trabalhar com a imagem e confesso que me aborrecia um pouco, porque a discussão intelectual se reduzia a duas ou três pessoas. Eu não me via como professor daquela universidade durante 25 anos, mais ou menos isolado. Assim, logo depois de defender a tese procurei outros pontos de contato, porque minha tese foi elaborada na Bélgica, mas a partir de um primeiro projeto de tese em filosofia que enviei a Paris, a um filósofo, Jean-François Lyotard, e também a um semiólogo da literatura, Gérard Genene. Entretanto, meu contrato com o FNRS me obrigou a el.borar a tese na Bélgica. Mas meus contatos franceses começaram a me dizer que eu precisava mudar de universidade, e em 1988 consegui um lugar na Universidade de Paris­ UI, já como titular - na época chamava-se professor conferencista. Por algum tempo ainda me mantive ligado à Universidade de Liege, mas depois me instalei definitivamente em Paris, onde estou até hoje no Departamento de Cinema e Audiovisual - era tão grande, que se transformou numa faculdade. Uma coisa enorme, com 1.400 estudantes, quase cem professores, todos grandes e conhe­ cidos especialistas de cinema, da imagem, da televisão.

No fim dos allos 80, o debate na universidade se travava elUre os historiadores e os sellliólogos. O senhor poderia falar um pouco sobre esse debate' Basicamente, os anos 80 foram os anos de apogeu da semiologia e viram a instalação dessa abordagem: estudar os níveis de significação, a denotação, a co­ notação, todos os aspectos mais técnicos desenvolvidos pela semiologia. Tudo se tornou tão especializado, que passamos a ter o sentimento de perda do prazer da imagem. Houve, então, um movimento de reação; muita gente continuou a estu­ dar semiologia, mas, diante da dominação que ela teve nos anos 80, o que emer­ giu foi a abordagem histórica e a abordagem estética. Em minha trajetória, prestei bastante atenção a essas dimensões. Atualmente, não faço mais nada parecido com semiologia - o que não significa que me arrependa de ter feito, pois considero inipona11le para a constituição do espírito a capacidade de análise que a semiologia proporcionou a toda uma geração, no sentido do rigor, da desconstrução dos mecanismos de um objeto. Mas a questão da história e da estética ressurgiu, não mais como era an­ tes; a história que surgiu nesse momento não era mais uma história factual, his­ toriográfica. O estruturalismo e as ciências humanas também haviam dado às disciplinas históricas sua contribuição. A História Nova, que se tornou a refe­ rência dominante, de Georges Duby a Michel Foucault, de Michel de Certeau a todos os grandes historiadores daquela época, em particular os franceses, jogou sobre os fenômenos históricos um olhar basicamente sobre a proble­ mática. A história passou a funcionar, não mais a partir de fatos, mas de pro­ blemáticas. 145

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Já havia a tradição de Mare Bloeh e Luciell Févre... Evidemememe, havia toda essa tradição, mas, nesse momemo, eu des­ cobri a História Nova. Como não tive formação de historiador, fui meio autodi­ data na matéria, e tardiameme, não em meus anos de formação imelectual; foi depois do doutorado e depois do livro sobre a fotografia. Por volta de 1984, 85, comecei a me imeressar pelos estudos históricos, a lê-los. Minha principal refe­ rência foi mesmo Michel Foucault, filósofo e historiador; era o que me imeres­ sava nele. Depois, a partir dele, li e apreciei muito outros histOriadores, sobre­ tudo na minha área. Eu não podia fazer um estudo histórico do campesinato francês na Idade Média, mas no campo do estudo das imagens modernas fui bas­ tame influenciado pela história. Fiquei distame dessa abordagem purameme a-histórica da semiologia, que jamais se perguma de que contexto vêm os objetos em estudo. Uma das críti­ cas que podemos fazer à primeira parte de meu livro, J:aCle plzolOgrajique, é que é totalmente a-histórica; essa dimensão não é levada em coma. Assim, remei refletir sobre a fotografia, mas também sobre o cinema, que ganhou muito espaço, mas, dessa vez, propondo uma reflexão em que os de­ safios históricos tinham seu lugar. Primeiro, passei a trabalhar com um con­ teúdo mais determinado, pois em

J:acre plzolograjique, em sua primeira versão,

não havia comeúdo; eraa fotografia como caregoria conceitual. Na segunda edi­ ção, trabalhei com um comeúdo mais preciso, como, por exemplo, a fotografia ciemítica do último quartel do século XIX. Ou ainda, com conteúdos bastante determinados, de fotógrafos, escritores de meados do século XX. Em segundo lugar, desenvolvi um imeresse por certas problem,íticas ao mesmo tempo históricas e filosóficas, que atravessam as imagens. Por exemplo, uma problemática que cominua a me interessar muito é como, num certo mo­ memo da história das imagens, produzem-se fenômenos que remetem à idéia de •

que as imagens guardaram traços de coisas que não estão visívcis. E o que chamo -

de "imagem do invisível". E uma problemática filosófica, mas que me imeressou muito, a idéia de que há nas imagens um pensamento inconsciente e que certos momemos históricos são mais particularmente importantes. Para mim, é uma forma de articular história e filosofia a respeito de imagens. O exemplo no qual sempre insisto são as imagens correspondemes ao período da Segunda Guerra Mundial. O que se passa no cinema, mas também na fotografia, emre 1940 e 1945? Essa idéia de que captamos as coisas mas não sou­ bemos vê-Ias, de que foram necess,írios anos de distância para aprender a ver o que, entretamo, já eSlava lá, bem visível, debaixo dos nossos olhos, é um pro­ blema ao mesmo tempo da filosofia e da história, porque é a questão da cegueira histórica sobre os campos de concentração. Por que não vimos? Porque não pudemos imaginar, não pudemos pensar. E impensável, portamo não é visível. •

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Portanto, é um problema histórico e filosófico apresentado pelas imagens, e são coisas assim que, posteriormente, passaram a me interessar no campo da foto­ grafia, do cinema e da imagem eletrônica. o

cinema ganhou emão espaço 110 seu campo de imeresse... Ah, sim, desde o início eu sabia que o cinema era o que me interessava,

como expliquei a vocês, mas precisei de muito tempo para fazer dele um objero de trabalho. Sempre fui muito impressionado pelQ cinema, mais do que pela li­ teratura. O cinema sempre me pareceu uma espécie de monumento- não apenas um documento, mas um monumenro, para reromar a velha oposição de Michel Foucault- e, como diante de qualquer monumento, nós nos sentimos pequenos diante dele. Por isso, antes de me decidir a enfrentar o assunto, foi preciso tem­ po; precisei passar pela literatura, trabalhar com a forografia, antes de chegar lá. Atualmente, em tudo o que faço, mesmo quando não falo diretamente de cinema, ele é o centro real e virtual de meu trabalho. E difícil explicar por quê, de o

maneira puramente lógica; para mim, isso entra um pouco na subjetividade, na reatividade pessoal às coisas. Tenho uma fé- posso dizer isso, embora não seja cristão - no poder da imagem e considero que o cinema, muito mais que a fotogralia ou a pintura, foi o que pôs em atividade essa fé. Um cineasta, mais que rodos os outros, sempre me pareceu ser aquele que encarnou a fé no poder da imagem: é Godard, natu­ ralmente. Ele é para mim mais do que um cineasta, é alguém que conseguiu me fazer compreender que as imagens em geral, e as do cinema em particular, são coisas que a linguagem verbal, escrita jamais conseguiu enfraquecer. No domínio da imagem há, basicamente, duas grandes tendências. Exis­ tem aqueles que dizem quea linguagem é muito mais forre que a imagem,porque podemos articular os sentidos, enquanto diante da imagem não sabemos fazê-lo, porque ela não quer dizer nada ou quer dizer tudo. Só a linguagem pode comunicar um sentido articulado. E o poder da linguagem, o poder do sentido formuo

lado. Mas há também os que consideram que a imagem tem mais poder que a lin­ guagem, porque passa justamente por outras coisas além do sentido atualizado pelas palavras; é um pensamento que se exprime de outra forma que não a dis­ cursiva. Entre o pensamento discursivo e o pensamenlO visual existe um velho campo que a filosofia conhece bem e que já foi trabalhado mil vezes. Nesse debate eu me situo mais do lado do pensamento visual, sabendo muito bem que não se trata de afirmar um e punira outro; há uma dialética com­ plexa entre os dois. Mas tenlO sempre defender a idéia de que o pensamento vi­ sual é algo que não se consegue ver inteiramente. No campo da história, con­ sidero que os historiadores tradicionais estão IOtalmente do lado do pensamento discursivo. E que a imagem é algo que não lhes parece apreensível de outra forma /47

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que não seja a da linguagem. Certamente, há historiadores que sabem lidar com a imagem de outra maneira, mas não é a corrente dominante. ,

E um pouco parecido com a antropologia. Existe a antropologia em geral e a antropologia visual, um pequeno grupo que tenta considerar que a imagem é essencial e escapa à articulação pela linguagem. Mas a antropologia visual é também uma tendência minoritária, que enfrenta dificuldades para existir. A anrropologia tradicional resiste muito à antropologia visual. Ainda não passa­ mos a utilizar o termo história visual, que não existe como disciplina, mas penso que se pode estabelecer o paralelo entre antropologia e história. O terreno em que essa visão poderosa do visual foi mais teorizada, creio, foi o campo da história e da teoria da arte contemporânea. Evidentemente, a his­ tória da arte contemporânea também tem divisões; há os historiadores tradi­ cionais da arte, a herança da escola de Panofsky, representada na França por An­ dré Chastel, pela grande tradição francesa da história da arte. Mas existe o campo da bistória da arte que se esforça para revalorizar o poder visual em si mesmo, o pensamento visual da pintura. Penso que foi nesse campo que houve mais teo­ rização desse poder visual da imagem e do subsídio que ele pode trazer para a his· tória. Para mim, existe a esse respeito um grande distanciamento entre a história da arte e a história. Obviamente, a história da arte se interessa mais pela imagem do que a história em geral, e fez da imagem algo que não é simplesmente uma fonte de sa­ ber, mas uma forma de pensamento. A história, no sentido amplo do lermo, ain­ da não aceitou verdadeiramente essa idéia, na minha opinião. Mesmo que, em alguns casos, como certos estudos de Michel Foucault e de Michel de Certeau, se tenha tentado trabalhar esse tipo de conceito. Mas não é uma verdadeira disci­ plina no interior da história. ,

E por isso que O

senhor vê relações positivas ell/re o cinema e as art es plásticas'

Certamente. Como é no domínio da arte que esse pensamento sobre o vi­ sual foi mais rrabalhado e mais desenvolvido, é algo que conheço bem, que sigo com muita atenção. Hoje em dia, tudo o que faço articula o pensamento pro­ priamente visual que a arte permitiu trazer à tona com aquilo que o cinema re­ presenta, em seu funcionamento. O

sellhor rambémJaz exposições?

Ah, sim, pois minhas atividades se diversificaram. Embora eu ainda não seja um velho, depois dos 50 anos, todos começamos a olhar o que já fizemos, o caminho que percorremos, e o ensino universitário é algo que já domino, porque estou na universidade há 25 anos e conheço o ofício. Tenho muito mais respon­ sabilidades administrativas, mas a relação com os estudantes, a direção de pes148

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quisa, é o que me interessa mais na minha profissão. Com tudo isso, já tenho uma relação sólida e estabelecida na universidade, onde não consigo mais descobrir novos aspectos, novas invenções. Já criei um hábito de trabalho, que continua a me dar um enorme prazer. O que é formidável naquilo que [aço é que cada ano há sempre pessoas no­ vas a encontrar, novos pesquisadores. Sei que exerço um papel determinante, por­ que formo mentalidades, e isso é essencial. Posso observar a evolução de um estu­ dante que encontro em seu terceiro, quarto ano e que acompanho até o doutorado, um percurso que dura sete, oito, às vezes dez anos. Fico contente porque sei que ' construí algo para uma geração que ainda vai se desenvolver muito. Essas atividades continuam a me dar muito prazer, mas sinto grande ne­ cessidade de encontrar outras coisas além do funcionamento normal da institui­ ção universitária: ensinar, dirigir o departamento, organizar as atividades de pesquisa. Assim, depois de alguns anos encontrei uma abertura na área das ex­ posições de imagens. Fiz também alguns filmes, mas é muito complicado; fiquei muito desencorajado quando me defrontei com a verdadeira batalha que se tra­ va. Fazer um filme é, inicialmente, passar dois anos correndo atrás de dinheiro, é insuportável. Deve ser muito difícil para quem/em uma vida ulliversitária,

111110 profISSão

acadêmica. Certamente. Por isso, fiz três ou quatro filmes e desisti. De outro lado, montar exposições é uma atividade que me entusiasma muito atualmente e é também uma maneira de dar à imagem seu verdadeiro lugar. Não estamos mais no campo da reprodução nem da análise, estamos temando construir com as imagens um objeto visual, que é uma exposição. Fazer uma exposição é praticamente a mesma coisa que fazer um filme; apenas é mais fácil. Não precisamos produzir as imagens, pois elas existem, mas construímos algo que leva em conta o que é cada imagem, seja uma pintura, uma foto ou um filme. E preciso compreender o que essa imagem sugere; além do mais, é preciso construir algo com isso. Portanto, trata-se de uma dimensão bastante impor­ tante. Para mim, a montagem de uma exposição é essencial. Acho que me interesso mais pelo cinema do que por outras formas de imagem porque o cinema não se re­ sume a uma única imagem; é uma construção de várias imagens. Uma exposição é a mesma coisa: a construção de várias imagens que produz, em si mesma, uma ima­ gem global. E essa questão da montagem, da construção é muito importante. •

Como o sellhor avalia o problema das imagens digitais.' Depois de ter trabalhado com a literatura e com a fotografia, tendo sem­ pre o cinema corno pano de fundo, como já contei, comecei aos poucos a traba­ lhar com o cinema e lidei bastante com a imagem eletrônica, não da televisão, /49

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mas do vídeo, e entTerive durante algum tempo um projeto que me tomou uns dez anos, de escrever um livro sobre a imagem eletrônica. O livro foi escrito cin­ co ou seis vezes, com variaçôes; o primeiro título seria L 'écrilure élél1"Olliqlle, e de­ pois passaria a ser Vidéo, ergo 1/0/1 sum (Vejo, logo não existo). Este título me parecia definir bem o problema. Escrevi muitos artigos para várias revistas e, quando desejei sintetizar tudo de um pOntO de vista um pouco mais teórico - quis escrever um livro que fosse um pouco como [;acle plzolograplzique , tentando definir ou apreender esse -

lipo de imagem, renunciei ao projeto, depois de dez anos. Por que decidiu /lão escrever o livro?

Não foi por razões circunstanciais, porque me dediquei a esse trabalho, cheguei mesmo a escrever um esboço, mas jamais publiquei porque cheguei à conclusão de que não era possível, teórica ou epistemologicamente falando. A imagem eletrônica não é um objeto teórico, não é um objeto cujo pensamento se possa expressar. Para mim, aquela imagem não tem um pensamento, como existe um pensamemo do cinema, da fotografia, da pimura; não existe um pensamento da imagem eletrônica. Temando compreender esse pensamenro, a cada vez eu chegava à mesma conclusão: isto não existe, essa imagem não tem um pensa­ mento. Muita gente escreveu sobre a imagem eletrônica. Baudrillard, Paul Viri­ lia e todos os teóricos das novas mídias. Quando os li, rive o mesmo semimemo; eles escrevem sobre algo que não existe como conceito, como pensamento. De resto, a maior parte dos textos é de discursos apocalípticos. O texto de Baudril­ lard é um discurso sobre o vazio, e também o de Virilio; só existe o simulacro, a simulação, a ausência do real; ou, ao conrrário, são os grandes profetas. Ou é um discurso sobre o Apocalipse ou sobre a profecia, como o discurso do diretor do Festival Imagina, que diz: "Tudo vai se tornar digital, o resto não existe mais, não tem importância. Desde Platão só há uma coisa que conta: o futuro radioso da eletrônica absoluta." Ou seja, discurso profético é igual a discurso apocalíptico, com sinal trocado. Mas nos dois casos não há consistência no objeto conceitual do discurso, não há nada. E por isso que imaginei esse titulo, Vidéo, ergonO/l Slllll (Vejo, logo não existo). Era para negar a existência do sujeito, porque não existe sujeito nesse tipo ,

de imagem. Assim, chegou o dia em que tive de aceitar que não havia sujeito e decidi que não podia escrever um livro sobre a imagem eletrônica, um livro que se obrigaria a constituir algo que não tem consistência. Basicamente, foi por isso que abandonei o projeto. Isso não me impede, no enranto, de me manter muito atento a tudo o que se faz na área eletrônica. Freqüento regularmente os festivais de vídeo e quando

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faço exposições eu os utilizo muito freqüentemente, porque há coisas interes­ santes. Mas no campo da episteme desse tipo de imagem não há como conceituar teoricamente um verdadeiro sujeito visual. Quanto ao cinema, o sel/hor lraballia exclusivamellle com o cinema de awor, como -

Godard? E seu gosto pessoal que o guia nesse campo? Não apenas isso. Trabalho com Godard, porque é quem tem a mais alta consciência desses problemas. Eu lhes disse que Godard não é apenas um cineasta, mas alguém capaz de pensar, muito além de seu aparato técnico, o problema da imagem, da representação visual eni todas as suas dimensões pic­ tóricas, fotográficas, cinematográficas. EvidenLemente, o cinema é seu terri­ tório, mas pouco importa; é alguém que pensa o mundo, mais que simplesmente o cinema como tal. Mas não é só Godard que me interessa; trabalho igualmente bem com cineastas específicos, como, por exemplo, Chris Marker, que também me interessa muito e sobre quem acabo de publicar um número especial da Revista. Há muitos outros, mas também me interessa bastanLe a produção mais comercial. O cinema americano atual, que muitos universitários desprezam, ale­ gando que nao passa de efeitos especiais, de pirotecnia sem conteúdo, é muito in­ teressante em vários aspectos, porque trabalha verdadeiramente nossa maneira de pensar em certo número de realidades. Nosso conceito sobre o corpo, por exemplo; para o nosso imaginário do corpo, o cinema americano e seus efeitos es­ peciais são um sinLoma bastante interessante. O conceito de corpo digital foi criado visualmente pelo cinema. Basta ver todos os filmes com personagens ro­ bôs, murantes, exterminadores e outros filmes nulos, sofríveis e estúpidos do ponto de vista de roteiro, mas que criaram um imaginário visual interessante, muito mais poderoso em nosso espírito do que o que os programas de televisão podem nos explicar sobre a importância do digital na construção das imagens. O impacto é extraordinário. Os esrudanLes que chegam à universidade com 19 anos, desde os 12 anos vêem imagens como essas; eles têm cinco ou seis anos de relacionamento com es­ sas imagens e nunca viram as imagens mais anLigas. Estão completamente apri­ sionados pela imagem digital: o videogame, os gome boys, os tiros, os corpos ex­ plodindo. Essa idéia de um corpo que não tem carne está extremamenLe entra­ nhada no imaginário deles. Já nós viemos de uma geração de corpos bastanLe pa­ recidos, bastante uniformes, uma geração em que a fotografia e o cinema cons­ truíram nosso imaginário do corpo na imagem, e eles não. Entendo que O cinema comercial, muito freqüentemente, não é interes­ sante no plano narrativo. Para mim, o cinema é interessante, inicialmenLe, em

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suas formas plásticas, em sua relação com a imagem, mas não no conteúdo e na construçao das histórias. Sob esse ponto de vista, se sabemos olhar as imagens e não a história, não há diferença entre o cinema de autor e o cinema comercial. Atualmente, estou muito interessado no que se passa no cinema asiático, que está em plena efervescência. O cinema americano já sabemos o que é há muito tempo, o cinema de autor é uma invenção francesa dos anos 60, basicamente, e também sabemos o que é, não é mais tão novo. Onde acho que algo de novo foi inventado •

no campo do cinema é a Asia. Existem historicamente o cinema japonês e o cinema chinês, mas arualmente o cinema explodiu em todos os países asiáticos. Acabo de chegar de uma viagem à Coréia. O cinema coreano é espanto­ Está sendo descoberto agora no Ocidente e apresenta uma maneira de traba­

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lhar que não se inscreve nem na lógica hollywoodiana do cinema comercial nem •

na lógica européia do cinema de autor. E um cinema espantoso, perturbador, com muitas idéias novas. Isso me interessa bastame. Também estou muito inte­ ressado pelo cinema de documentário, pelo cinema experimental. Não tenho ne­ nhuma restrição no cinema nem na fotografia, nem mesmo na lÍlerarura. In­ teresso-me ramo pelo romance como pela poesia, tamo pelos textos medievais como pelos comemporâneos. Jamais adotei um critério de crítica externa para determinar aquilo que me interessa. Permaneço como alguém oriundo da análise mterna. •

Qual é sua opiuião sobre a queS/{/o do método para aI/alisar as imagens? A resposta é muito simples: não existe método. Mas, ao dizer isso, per­ manece a questão: como fazer? Nâo existe um único método. Amigamente, a semiologia acreditava que ela própria podia ser o método. Mas eu diria que, mais do que um problema de método, é um problema de atirude. As imagens são realidades e, como sempre, é nossa atirude analítica em relação às imagens que determinará a qualidade do trabalho que faremos sobre elas. Muitas atirudes são possíveis. Mas existem ao menos algumas grandes categorias de atitudes que podemos identificar. Basicamente, uma primeira atirude basrante disseminada é a que toma a imagem como um objeto a serviço de uma interpretação, de uma abordagem histórica, como

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lugar da mulher na so­

ciedade francesa dos anos 50, por exemplo. Nesse caso, a imagem é totalmente instrumentalizada, é urna ilustração de algo que existe ames dela e fora dela. Seja para urna abordagem histórica ou sociológica, não importa, essa atitude não me interessa de rodo, pois é a instrumentalização da imagem. Meu ponto de vista é justamente o oposto: de partir da idéia de que a imagem que temos diante de nós é ao mesmo tempo um objeto de cultura e um •

objeto por natureza. E um objeto de cultllra sobre o qual existe um enorme saber, /52

Elltrcllista

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Phillil'l'c DI/vois

e é preciso dominar esse saber para abordar essa imagem. Se estou diante de um quadro do Renascimento, é evidente que não posso compreender minimamente o que está em jogo nesse quadro se não possuo um conhecimento que diga res­ peito a ele. Minha posição se opõe às teorias impressionistas, que afirmam que não é necessário conhecer as teorias sobre o Renascimento para apreciar um quadro daquela época. Considero que, em termos de objeto de esrudo, conhecer é funda­ mental. A imagem como objeto de culrura requer um conhecimento maisou me­ nos refinado, desenvolvido, e os historiadores estão aí justamente para fornecer muito material a esse saber - o campo da história da arte é extraordinário a esse respeito. O conhecimento acumulado sobre os quadros do século XX é fabuloso, inaudito quase; o que se conhece sobre um quadro é incrível. Mas também é preciso desconfiar. Tratar o objeto imagem unicamente em termos de saber, de conhecimento, puro objeto de culrura, é também perder muita coisa. A essa posição junta-se OUITa - e a aniculação entre as duas é toda a questão, todo o problema. A imagem é também algo em si, que tem um poder que •

lhe é próprio e que não se origina do saber constituído a seu respeito. E também um objelO por natureza e não apenas um objetO de cultura. Essa é uma afirmação perigosa, porque é muito perigoso dizer isso, pois devolver a imagem a uma siruação de coisa em si é um ponto de vista um tanto ontológico, que consiste em considerar a imagem pura, a imagem destacada, a imagem objeto, sem nada que lhe venha acrescentar uma significação ou um sentido. E isso que tento trabalhar. Entre a questão mais histórica do conhecimento, que faz da imagem um objeto de cultura, e a questão que chamo de fe­ nomenológica, que toma a imagem como um fenômeno, um even to para o olhar. E o olhar que se aproxima da imagem como um evento é um olhar que deve •

tentar não deixar interferir um saber prévio sobre ela. O olhar deve se pretender modesto, o mais despojado possível de saber. Ao mesmo tempo, esse olhar jamais é neutro, mas pelo menos - por isso afirmo que é um problema de atirude- é um olhar que, com relação às imagens, consiste em dizer que é ela própria que deve produzir alguma coisa. Não sou eu, que a olho, que devo produzir qualquer coisa sobre ela. •

E a idéia de que a imagem produz o pensamento por si mesma, como imagem. Não sou eu, aquele que olha, O analista, quem deve produzir o pen­ samento sobre a imagem. Devo ser capaz de escutar, de olhar, de apreender esse pensamento que vem da própria imagem. Este é um ponto de vista fenome­ nológico, que pode ser objelO de muitas interpretações complexas, de má com­ preensão, pode abrir a porta a alguns excessos, como "a imagem fala sozinha, não sou ninguém diante da imagem". Mais do que impressionista, é quase uma epi1 53

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fania: "A imagem é o absoluro. Ela sabe tudo, é mais fone do que eu, não sou •

nada diante dela." E urna espécie de idolatria, de consideração da imagem como todo-poderosa. •

E evideme que não defendo essa idéia, mas não devemos cair no extremo oposro, de dizer que a imagem não é nada, e que é o conhecimento que •

temos a respeiro dela que é estruturante. E por isso que digo que é no equilíbrio entre essas duas posições que se encomra, na minha opinião, o ponto de vista essencial. Existem, a esse respeito, três grandes campos estruturantes nas atitudes diante da imagem, se eliminarmos a imagem corno ilustração, como pretexto. Trata-se, na minha opinião, das atitudes fenomenológica, esu'uturalista e histórica em relação à imagem. Se tornarmos essas três atirudes e conseguirmos equilibrá-las, estruturá-las, compensá-las, sem cair no extremo fenomenológico, estruturalista ou histórico, penso que alcançaremos a melhor maneira possível de manter uma relação com a imagem. A abordagem que emerge do histórico é a que recorre ao conhecimento sobre a imagem; a abordagem estruturalista é a que torna a imagem em si mesma, mas do ponro de vista de sua construção interna; e o pomo de vista fenomeno­ lógico é aquele que roma corno ponto de partida o faro de que a imagem, à parte a construção interna que a caracteriza, produz alguma coisa a seu próprio respeito, e portanro eu não posso saber. Uma imagem pode registrar alguma coisa que mesmo um especialista pode não ver. Isso já é célebre com os quadros. A história da arte é, ainda hoje, urna disciplina que, retornando os mesmos quadros já comentados mais de cem vezes e sobre os quais já existe uma dúzia de livros de especialistas, permite que se diga: "Ah, tem isso? Não tínhamos visto." Com muita freqüência, não é um problema de história, mas de evento da imagem. Não tínhamos percebido que a rendeira no quadro de Vermeer tem um pequeno filete vermelho, que se interpretava como um fio, apenas, um fio de linha da renda. Mas não; é um fio de sangue que corre do pescoço, porque a moça tinha se picado com a agulha. Isso muda as coisas, e foi a imagem que produziu isso; não importa mais se é um fio de sangue ou urna linha vellllelha, mas existe na própria fOllua da imagem algo que não tinha sido visto. Pouco importa se Vermeer queria isso ou aquilo; há um evento próprio a essa imagem que faz sua força, faz com que ela exerça sobre nós algo que vai além do saber, além da estrutura. ,

As vezes, são coisas surpreendentes. Há anos que esrou desenvolvendo o projero de um livro que é uma tentariva de imagens de todo ripa, mas sobretudo do cinema, de indicar esses fenômenos, que chamei de eventos da imagem, de coisas que se produzem num momento dado e sobre as quais não existe saber 154

EI//r,pista com Pllil/ippe DI/úois

possível. E para isso é preciso um olhar virgem, é preciso reconhecer que não se •

sabe nada a respeito de uma imagem, mesmo que se saiba basrante. E só com essa condição, de aceitar não projetar nosso saber sobre a imagem, que poderemos ver essas coisas. Se nos fiarmos no nosso saber, não conseguiremos ver, porque elas estão na imagem, mas o conhecimento nos cega e nos impede de vê-Ias. Há inúmeros exemplos mais ou menos interessantes a esse respeito. Em relação ao trabalho de Chris Marker, que mencionei há pouco, há coisas espan­ tosas, como uma imagem em que há uma forma que ninguém viu realmente, porque passa muito depressa, que é um pássaro, ou que se parece com um pás­ saro; ninguém afirmou que se tratava de um pássaro. Mas interrogando a mim mesmo, pensei: "Vi uma coisa que não sei o que é." Depois, refleti e me dei conta de que há muitos pássaros nos filme. Mas para isso era preciso esquecer tudo o que sabia para ser capaz de receber esse evento, de identificar essa coisa. Com o historiador acontece da mesma forma. Um historiador que estu-

da as imagens, dizendo: "E isso que eu estava procurando, porque essa imagem se inscreve em tal contexto, pertence a tal situação", naturalmente vai encontrar o que procura, mas não vai encontrar o que não estava procurando. Por isso, é preciso não procurar nada numa imagem, para ser capaz de descobrir aquilo em que não estávamos pensando, que não era imaginável

a priori.

E há exemplos célebres, como uma imagem tomada durante a Segunda Guerra Mundial, em 4 de abril de 1944, uma fotografia feita pelos Aliados em reconhecimento aéreo sobre a cidade de Auschwitz. Eles queriam fotografar as fábricas da IG Farben, e para eles essas imagens continham as fábricas. Todos os analistas das forças americanas e os membros do serviço de informações que analisaram detalhadamente as imagens não viram uma coisa: tinham fotogt'a­ fado também o campo de concentração de Auschwitz, com as câmaras de gás, os fornos crematórios. E incrível! Em 1944 não havia nenhuma imagem, nenhuma -

prova da existência dos campos. Mesmo com essas fotografias, ninguém viu nada. Por quê? Porque o que se queria com essas imagens era ver as fábricas da IG Farben. Ninguém tinha noção de que ali havia um campo de concenu·ação. Depois viram, mas era muito tarde. Esse exemplo é típico. O historiador que procura alguma coisa numa imagem vai encontrar o que procura, mas não vai ver o que talvez exista nela. Para que isso aconteça, é -

preciso basicamente esquecer de procurar aquilo que já se conhece. E preciso deixar a imagem falar, é preciso ter confiança na imagem, entender que ela tem algo a nos dizer, sobre o qual não temos a menos idéia, mas é preciso ao mesmo tempo desconfiar da imagem, porque ela é um artifício, é objeto de manipulação, foi construída, organizada; jamais se pode tomá-Ia por transparente. Mas essa dupla atitude, de confiar e de desconfiar, me parece essencial. 155

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A imagem /em um pensamemo, mas a imagem produzida pelo cinema illdustrial está dividida em gêneros: o western, o filme noir, a comédia musical etc. , que codificam, de cerla maneira, o pensamelllo. Como analisar isso? Os gêneros são totalmente artificiais, são categorias institucionais ou críticas que [oram apostas ao cinema e que basicamente permitem à indústria dividir as obras c permitem ao espectador ter sistemas de expectativa. Quando vamos ver uma comédia musical, sabemos que haverá música e dança; quando vamos ver um wesrem, sabemos que haverá liros e cavalgadas. São etiquetas que servem ao mercado. A partir do momento em que queremos interrogar a realidade na ima­ gem de um gênero, isso funciona muito mal. O filme noir, por exemplo; vamos tentar definir seus principais traços visuais: a obscuridade preto e branca bas­ tante contrastada. Mas o cinema expressionista alemão é a mesma coisa. Os te­ mas: o detetive particular, o gallgster, a noite. Mas um drama social pode se passar em Chicago, durante a noite, com personagens suspeitos; não se trata de um filme noir. Portanto, rodos os traços característicos de gênero, sob o plano visual, são completamente incertos; basicamente, só servem para reassegurar as ex­ pectativas que a instituição cinematográfica tenta estabelecer com o objetivo de favorecer o consumo e a distribuição dos filmes. •

Na realidade das imagens não existe gênero. E por isso que considero a divisão em gêneros uma construção verdadeiramente externa ao filme. Mesmo se nos esforçamos para indicar características internas, jamais se pode verdadei­ ramente dizer sobre um filme que é apenas um filme noir. Vamos encontrar num filme noir elementos de todo tipo: de drama social, de filmes de combate, de co­ média psicológica, todos misturados. A realidade dos objetos é sempre muito mais complexa que as categorias externas que tentamos aplicar a ela e que indica uma lógica mais de mercado do que interna.

7ral/Scrição e rradução de Lucia HippolilO

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