“O TRÁFICO DO GÊNERO” E A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL NO BRASIL: UMA ANÁLISE SOBRE A REATUALIZAÇÃO DOS PAPEIS TRADICIONAIS FEMININOS NA CENA CONTEMPORÂNEA Eliana Teixeira dos Santos1 Resumo: A análise da Política Nacional de Assistência (PNAS) é um assunto de grande importância dada a profunda desigualdade socioeconômica que historicamente se estabeleceu no Brasil, demarcando espaços de poder. A implantação da PNAS, no ano de 2004, embasada legalmente por meio da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS-1993), previu em seus termos, a criação de um Sistema Único de Assistência Social, o SUAS, um sistema público de prestação de serviços sócio assistenciais. No entanto, os avanços não nos impedem de apontar que a PNAS ainda necessita expandir seu escopo, em especial, no que diz respeito à perspectiva de gênero, ainda não condizente com os ideais da IV Conferência de Beijing (1995), que destacou a necessidade de se criar políticas públicas comprometidas com o “empoderamento e avanço das mulheres”. Sendo assim, o objetivo deste trabalho, fruto da minha pesquisa de mestrado, é observar a maneira pela qual a perspectiva de gênero vem sendo trabalhada na PNAS, analisando o histórico caráter familista da política social no Brasil e sua relação com a reatualização dos papeis tradicionais femininos na contemporaneidade, o que aponta para a perda de um referencial de proteção social universal, num contexto de política neoliberal. Palavras-chave: Política de Assistência, Família, Gênero.

O trabalho que por ora se apresenta faz parte das questões por mim problematizadas na minha dissertação de mestrado, a qual é fruto dos trabalhos desenvolvidos junto ao Grupo de Pesquisa Desigualdades Sociais, Políticas Públicas e Serviço Social(CNPq-UFBA). De maneira especifica, as questões aqui apresentadas são um esboço das discussões travadas no segundo capitulo da referida dissertação, a qual tem por titulo , Gênero, Assistência e Serviço Social: um análise sobre o trabalho com famílias desenvolvido por assistentes sociais nos CRAS da cidade de Salvador-Ba, a qual tinha como principal objetivo analisar como tem sido pensada e trabalhada, pelas assistentes sociais, a perspectiva de gênero nas ações por elas realizadas com as famílias atendidas nos CRAS. Saliento que, para resguardar a identidade das profissionais entrevistadas, garantindo assim os pressupostos éticos da pesquisa, foram atribuídos codinomes as mesmas, sendo que a os nomes escolhidos fazem menção a algumas autoras do campo do Serviço Social, que tem feito a discussão sobre a política de assistência na contemporaneidade. Antes de adentrar de modo mais especifico na discussão proposta, é necessário informar que o CRAS( Centro de Referência de Assistência Social), nosso campo de pesquisa, se enquadra na Assistente Social, Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulher, Gênero e Feminismo – NEIM/Universidade Federal da Bahia. Especialista em Gestão em Saúde-Universidade do Estado da Bahia. 1

1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

proteção social básica, sendo assim, figura como a porta de entrada da assistência, de modo que no contexto mais amplo que envolve a proteção social, ele representa o espaço no qual boa parte da política de assistência será efetivada de modo prático, destacando-se na atualidade por ser uma das áreas na qual o trabalho das assistentes sociais com famílias tem sua maior expressão, isso porque a PNAS ao eleger a família como principal alvo de sua intervenção, recoloca em debate o histórico familismo da política social brasileira, o que não é um fenômeno casuístico, mas atende a um propósito bem definido em tempos de política social precarizada, por conta da forte pressão do setor financeiro sobre este segmento. Feita as devidas considerações, é hora de traçar um breve esboço sobre a relação entre a política de assistência e a família no contexto atual , no intuito de traçar algumas linhas gerais que possibilitem a compreensão deste cenário e de modo mais especifico sobre a maneira

pela qual a perspectiva de gênero vem sendo materializada no campo da

assistência. O ressurgimento da família como importante instância de proteção, no contexto atual das políticas sociais, indicam a necessidade de desnaturalizar a visão idílica de família, a qual tem contribuído para uma compreensão deturpada, a - histórica e romanceada

dessa instituição,

ignorando que para além de um espaço de trocas afetivas, de solidariedade e companheirismo, a família também pode ser o lugar de abusos e de conflitos, o que coloca em questão o seu suposto caráter protetor, de modo que “a família é uma instituição contraditória e conflituosa, é heterogênea e não necessariamente harmoniosa” (TEIXEIRA, 2013, p. 27). Embora o termo família pareça remeter a algo dado, que todos sabem o que significa, visto que, como afirma Magdalena Léon (1995), todos “ trazem consigo sua própria história familiar”, os estudos sobre esta instituição dão conta de que “não há uma família definida em termos absolutos, mas tipos históricos específicos de associações familiares, influenciadas por variáveis ambientais, sociais, econômicas, culturais, políticas e religiosas” (MELLO, 2005, p. 27). É necessário situar que o renascimento da função protetiva da família, é fruto das mudanças decorrentes da crise do capital na década de 1970, da qual emerge o ideário neoliberal, o qual estabelece um padrão para a política social, especialmente nos países latino-americanos, caracterizada pela focalização e residualidade. A desresponsabilização do Estado no que diz respeito à proteção social, tem reflexo na refilantropização da política com apelos à solidariedade primária e ao papel mais tradicional da mulher na família, como cuidadora , mantenedora dos filhos e da ordem doméstica, a compreensão destes elementos facilitam a análise quanto ao modo pelo qual a família vem sendo interpelada no interior da política de assistência .

2 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Neste processo, exerce grande influência as “recomendações” dos organismos internacionais (Banco Mundial, FMI, etc.), que ao apontarem como saída para o desenvolvimento velhas receitas, dentre elas, a elaboração de políticas voltadas para os extremamente pobres, fortalecem a despolitização e desmobilização, o que, no caso das políticas com foco na família, tem significado a responsabilização das mesmas na superação das suas fragilidades.O estabelecimento desta “parceria” com a família expressa a mudança no padrão de proteção social orientada pela perspectiva do neoliberalismo, que se ampara na

idéia de Estado mínimo. Esta perspectiva

familista, que aponta para uma intervenção estatal apenas quando se esgotam as vias “naturais” de proteção, o que em parte indica que a apropriação da família na Política Nacional de Assistência Social, deve-se ao caráter funcional da mesma aos ditames do capital, especialmente em tempos de política social fragmentada, residual e focalizada. Sendo questionável a capacidade protetiva da família no atual contexto de crise do sistema capitalista, materializada dentre outras coisas no aumento do desemprego e flexibilização do trabalho, e de suas formas contratuais, as quais são responsáveis pela instabilidade e incerteza vivenciadas por muitas famílias na atualidade. A centralidade da família na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), está relacionada a matricialidade sociofamiliar, eixo da PNAS e da organização do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), de modo que esta é entendida como “parceira” do Estado no que diz respeito à proteção social. O que segundo Teixeira (2009),é uma das principais contradições da Política Nacional de Assistência, tendo em vista que a mesma reconhece as fragilidades bem como a condição de vulnerabilidade vivenciada por estas famílias. Além disso, embora o texto da PNAS aponte uma perspectiva progressista de família, na cotidianidade da execução dos serviços, observase que a perspectiva hegemônica ainda é a da família nuclear, na qual sobre a mulher recai a responsabilidade pelo cuidado. Sendo assim, o constante dilema que permeia a assistência social no Brasil,

é estar “no meio do caminho”, transitando entre a política pública, a filantropia e a

privatização – especialmente não mercantil –, a qual enfatiza a família enquanto principal instância de proteção, responsabilizando-a pelo bem-estar de seus membros; o reforço das funções familiares, em especial por não haver um estabelecimento de mecanismos que estejam voltados para o fortalecimento e qualificação dos serviços públicos, gera uma sobrecarga da família, a qual atinge de forma mais intensa as mulheres, as quais são convocadas a preencher esta lacuna por meio de serviços não pagos, e que são por elas efetuados no âmbito doméstico (TEIXEIRA, 2013). É necessário salientar que para além de uma concepção deturpada e descontextualizada de família, a apropriação da perspectiva de gênero e de outras categorias tais como empoderamento

3 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

dentro do campo da política social, especialmente no campo da assistência, têm sido feitos a revelia de uma compreensão critica das mesmas o que tem em última instância tem contribuído para o seu esvaziamento político. Na história da política social no Brasil , a família sempre atuou como importante instância de proteção e provisão de bens e serviços, principalmente com os serviços não pagos realizados pelas mulheres, no âmbito doméstico, de modo o nível de “desfamiliarização”2 nunca foi alcançado. Além disso, o projeto neoliberal que se instaura no Brasil no início de 1990, com o governo de Fernando Collor de Melo, e que tem continuidade de forma expansiva no governo de Fernando Henrique Cardoso, sob forte influência das idéias

apresentadas no Consenso de Washington

(1989), são elementos que apontam para a implantação, no território brasileiro, de uma política de assistência social focalizada na extrema pobreza e pouco comprometida com a redistribuição de renda. Sendo assim, a “opção” para tratar da questão da miséria via programas de transferência de renda, embora seja significativa, não altera o quadro de modo geral, posto que serviços como saúde e educação não são priorizados na agenda pública dos governos, resultando numa precarização dos serviços, mesmo quando estes estão previstos na própria Política Nacional de Assistência (2004), a qual estabelece uma articulação da assistência com as demais políticas públicas, quando diz que:

Os serviços, programas, projetos e benefícios de proteção social básica deverão se articular com as demais políticas públicas locais, de forma a garantir a sustentabilidade das ações desenvolvidas e o protagonismo das famílias e indivíduos atendidos, de forma a superar as condições de vulnerabilidade e a prevenir as situações que indicam risco potencial (BRASIL, 2004, p. 34-35).

A falta de uma efetiva integração da assistência com as demais políticas, sobretudo de saúde e educação, dado o fator que as aproxima: as condicionalidades dos programas de transferência, tem contribuído não apenas para a construção de uma sobrecarga da família, que se traduz numa maior responsabilização da mulher, haja vista que as mediações entre a família e estes serviços são, via de regra, realizadas por elas (MIOTO; DAL PRÀ, 2015). Contudo, conforme destacam Silvana Mariano e Cássia Carloto (2012), o acesso à renda é o que confere às mulheres certa possibilidade 2

Termo cunhado pelo próprio Gosta Esping-Andersen(1991) que indica como o acesso a bens e serviços por parte do Estado pode contribuir para uma diminuição da carga imposta à família.

4 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

de ter voz e vez nas negociações intrafamiliares, o que pode ser um indicativo da razão pela qual boa parte da demanda das mulheres que vão ao CRAS está relacionada ao trabalho, como me informou Aldaíza, ao ser questionada sobre quais eram as principais demandas das mulheres que vão ao CRAS: Trabalho né, escolaridade e habitação [...] a questão que mais pega aí é o trabalho, a falta dele e a questão da habitação (Aldaíza).

Este fato indica o quanto o trabalho é valorizado, em especial por conta do que a ele está associado: poder, autonomia, independência, etc., conferindo-lhe o lugar de importante elemento de inserção social. No entanto, é válido destacar que a colocação no mercado de trabalho será diferente para cada mulher, tendo em vista que o aspecto racial exerce grande influência, como já destacado por Sueli Carneiro( 2003 ) , assim, embora seja possível dizer que o empoderamento em certo sentido possa estar relacionado ao acesso à renda, que permite a existência de condições materiais de fazer escolhas, não pode ser considerada a única dimensão, isso porque traduzindo de forma livre Batliwala (1997) “o fortalecimento do status econômico das mulheres, conquanto positivo de várias formas, nem sempre reduz outras cargas ou elimina outras formas de opressão” (BATLIWALA, 1997, p. 194). A reatualização dos papeis tradicionais femininos e o “empoderamento” na política de assistência: tecendo algumas considerações. Após compreender a relação entre política de assistência e família, está construído o terreno necessário para tratar daquele que é o objetivo deste trabalho: analisar como a perspectiva familista da política social no Brasil está associada com a reatualização dos papeis tradicionais femininos na contemporaneidade. O questionamento acerca da família “padrão” ou família nuclear, face ao aumento das famílias monoparentais femininas e aquelas constituídas por pessoas do mesmo sexo, dentre outros arranjos que coexistem, ocupa lugar de destaque nas discussões atuais sobre o tema. A pesquisadora Márcia Macedo (2007) nos chama atenção para o fato de que, embora a existência de famílias chefiadas por mulheres não seja “uma nova realidade”, sua novidade reside na forma como esta se expandiu às “camadas médias brasileiras”, colocando em cena a necessidade de se pensar a família nos termos já acima apresentados, a saber, como produto da relação dinâmica e histórica entre fatores de ordem econômica, política e cultural, pois: A determinação histórico-estrutural nos leva a observar a existência de uma variedade de modelos de família – de acordo com o tipo de formação socioeconômica ou modos de produção – que institui modelos hegemônicos, como a família nuclear, na sociedade 5 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

burguesa, difundindo-se para outras classes sociais, mas comporta também uma variedade de padrões internos que diferenciam as famílias entre as classes, e mesmo com variações no interior da classe (TEIXEIRA, 2013, p. 23).

Diante destes fatos, fica evidente que a mais simples análise sobre a questão da família deve considerá-la dentro da trama social na qual ela esta imersa, o que começa pelo reconhecimento da existência de famílias, dada a sua pluralidade, que é histórica e empiricamente comprovada, nas pesquisas realizadas. Contudo, acredito que romper com o “horizonte simbólico” de família nuclear não é algo tão simples, pois este permanece enraizado no imaginário social, de modo mais amplo, o modelo de família nuclear do funcionalismo parsoniano, no qual o pai, a mãe e os filhos, desempenham o seu papel “naturalmente” designado, qual seja o homem para prover e a mulher para cuidar. Embora teoricamente no campo das políticas públicas já seja possível identificar uma definição mais progressista em torno do conceito de família, ou mesmo o reconhecimento de que a família “já não é mais a mesma”, como descreve a própria PNAS (2004): O novo cenário tem remetido à discussão do que seja a família, uma vez que as três dimensões clássicas de sua definição (sexualidade, procriação e convivência) já não têm o mesmo grau de imbricamento que se acreditava outrora. Nesta perspectiva, podemos dizer que estamos diante de uma família quando encontramos um conjunto de pessoas que se acham unidas por laços consanguíneos, afetivos e, ou, de solidariedade (BRASIL, 2004, p. 41).

Apesar dessa nova percepção, a ideia de funções familiares que permanece, mesmo em face do reconhecimento da existência dos novos arranjos, acaba contradizendo a afirmação, porque ao fazer menção às funções das famílias, acaba retomando elementos que apontam para um velho paradigma familiar, como pode ser observado no texto da própria política: [...] o trabalho com famílias deve considerar novas referências para compreensão dos diferentes arranjos familiares, superando o reconhecimento de um modelo único baseado na família nuclear, e partindo do suposto que são funções básicas das famílias: prover a proteção e a socialização dos seus membros; constituir-se como referências morais, de vínculos afetivos e sociais; de identidade grupal, além de ser mediadora das relações dos seus membros com outras instituições sociais e com o Estado (BRASIL, 2004, p. 35).

De modo prático, tal percepção tem fortalecido a permanência de um ideário de família “padrão”, o que ignora a grande incidência das famílias monoparentais femininas, que representam, na prática, a maioria das famílias da assistência. A invisibilidade destas famílias e de suas 6 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

especificidades enquanto usuárias da assistência tem desdobramentos práticos nas ações desenvolvidas pela própria política. É necessário destacar ainda que a proposta da política de assistência é explorar as potencialidades das famílias, a fim de que as mesmas sejam capazes de promover a sua “auto-organização”, o que fica aparente quando é dito que: A população tem necessidades, mas também possibilidades ou capacidades que devem e podem ser desenvolvidas. Assim, uma análise da situação não pode ser só de ausências, mas também das presenças até mesmo como desejo de superar a situação atual (BRASIL, 2004, p. 15).

Logo, percebe-se a contradição que fica evidente na promoção desta autonomia familiar, visto que de fato ela não promove uma autonomia do indivíduo no tocante às “tradicionais” fontes de proteção, que têm na família seu principal destaque, mas na verdade visa diminuir as responsabilidades do Estado, realocando-as para as famílias, fato que no caso dos núcleos monoparentais femininos, constituídos por negros e negras, tem um peso muito significativo, sobretudo pelo fato de que são estas famílias que historicamente não tiveram cobertas suas necessidades básicas. Nos três CRAS visitados, as profissionais descrevem as famílias como tendo de modo expressivo a mulher como pessoa de referência, de forma que “o aumento das famílias monoparentais chefiadas por mulheres indica uma crescente matrifocalidade, que deixa com a mulher as maiores responsabilidades para sustentar e educar os filhos, devendo administrar a casa e ter, de fato, dupla jornada de trabalho” (PETRINI, 2007, p. 2011), o que se verifica na fala das assistentes sociais entrevistadas, quando questionadas sobre o perfil das famílias atendidas:

Muito raro ter a presença masculina, dá pra contar de dedo as famílias que são acompanhadas aqui que têm o genitor, quando não é o genitor é o padrasto, mas, que também não assume literalmente porque diz que o filho não é meu (Aldaíza).

[...] são mulheres chefes de família na maioria das vezes, são beneficiárias do programa do Governo Federal, Bolsa Família, agora tem o programa daqui do município, Primeiro Passo... (Cássia).

Porém, elucidar de modo mais conciso a problemática que envolve estas famílias, passa primeiro pela necessidade de considerar quem são estas mulheres, qual a realidade por elas vivenciada, já que, como destacam Carloto e Mariano (2013), existem aspectos que diferenciam as mulheres negras no campo da assistência, os quais devem ser considerados, o que se torna 7 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

importante quanto mais empiricamente se evidencia a incidência destas famílias no campo da assistência. Sendo assim, acredito que para falar sobre as famílias e, por conseguinte, sobre quem são as mulheres usuárias dos serviços do CRAS, é necessário conhecê-las, observar suas especificidades, suas demandas, a fim de serem traçadas estratégias de

enfrentamento que

permitam uma cidadania efetiva via políticas públicas, que não sejam orientadas por uma concepção liberal,a qual desconsidera condição das usuárias dos serviços socioassistenciais, as quais apresentam traços de um grupo social historicamente excluído, fato que possui sérios desdobramentos sobre o modo como estas acessam os bens e serviços da assistência, como se pode inferir no modo no qual as profissionais entrevistadas descrevem o público dominante que busca os serviços oferecidos pelo CRAS: A maioria é negra, mulher, baixa escolaridade, beneficiária do Bolsa Família ou BPC, tanto deficiente como idoso, que mais que eu posso falar... Não tem a perspectiva de estudo, aqui a gente faz vestibular social, os cursos do PRONATEC, elas não, não têm aquela motivação, sabe, pelo contexto da vida sofrida, aí não quer mais estudar, já tô de idade, mas você pode, né, tentar fazer isso, mas aí elas não querem, aí a gente ainda tenta resgatar assim... (Aldaíza).

Carmelita ainda traz informações mais precisas quanto a esta situação, o que também é confirmada por Cássia: A maioria é mulheres, mulheres negras, mulheres que não têm estudo, não concluiu o segundo grau por alguma questão pessoal, parou de estudar, estudou até a quarta série, quinta série, oitava série, a maioria aqui não chegou ao segundo grau, estudou até a oitava série e parou. E a maioria é negras, de baixa renda mesmo, não tem renda fixa, nunca trabalhou de carteira assinada, realiza trabalhos autônomos, geralmente em período de festa, lavagem, carnaval, a maioria delas é assim e o perfil é esse da família (Carmelita).

São mais mulheres, é... Negras, de baixa escolaridade, situação financeira precária... (Cássia).

Esta “sobre-representação” das mulheres negras entre os pobres não é casual, mas é fruto de um processo histórico no qual nós mulheres “racializadas”, estivemos excluídas das instâncias de decisão e poder por uma questão de gênero e também de raça, uma vez que como destacado no primeiro capítulo, a mulher negra no Brasil sempre experimentou na pele a força destes marcadores enquanto elementos que (re)produzem sua opressão, o que se exprime com nitidez na organização do mercado de trabalho e nas funções a nós reservadas. Para finalizar , indico que a privatização da proteção social, que em síntese nada mais é do que a transposição de responsabilidades estatais para a sociedade civil, e de modo especial, para o seio 8 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

da família, tem sido realizada sob o pretexto de ser ela uma fonte primária de inserção social e de proteção, sendo necessário apenas “habilitá-la” de modo a potencializar esta capacidade “natural”. Em outras palavras, “as famílias são reconhecidas no discurso político como uma entidade privilegiada para quebrar o ciclo da pobreza” (MARTINO, 2015, p. 96). No entanto, ironicamente alguns dos mecanismos acionados para “ajudá-la consistem numa relativa culpabilização das mesmas, pois as estratégias se voltam para o incentivo ao empreendedorismo e ações de cunho psicologizante, orientados pela busca de um pseudo-empoderamento, o que

transfere a

responsabilidade de enfrentamento à pobreza, do âmbito político, para o campo das individualidades, assumindo o Estado uma posição passiva frente a esta questão, constituindo-se, na prática, como responsável por prover o subsídio necessário para que as famílias, e de forma específica, as mulheres, encontrem dentro de suas potencialidades as saídas para o seu caso. Embora não haja uma definição unívoca sobre empoderamento, acredito que partir de uma ideia que faça a distinção entre condição e posição, tal qual é apresentado por Batliwala (1997), Costa (2000) e Sardenberg (2006), é necessário para entender por quais vias passa o processo de empoderamento feminino, pois apesar de a condição feminina ser marcada pela pobreza, subemprego, baixos salários, dentre outras coisas, é sua posição ou mesmo seu status que interfere na forma como estas poderão se apropriar dos recursos materiais e imateriais. Retomando a origem do termo, Costa (2012) destaca que ele remete ao processo de luta da população negra pelos direitos civis nos EUA, sendo considerado como “mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seus próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência da sua habilidade e competência para produzir e criar e gerir.” (COSTA, 2012, p. 7). Nesta perspectiva, Batliwala (1997), buscando dar uma compreensão mais ampliada do termo, diz que: El rasgo más sobre saliente del término empoderamiento es que contiene la palabra poder, la cual, para evadir debates filosóficos, puede ser ampliamente definida como el control sobre los bienes materiales, los recursos i ntelectua1es y la ideología. Los bie nes materiales sobre los cuales puede ejercerse el control p ueden ser físicos, humanos o financieros, tales co mo la tierra, el agua, los bosq ues, los cuerpos de las personas, el trabajo, el dinero y el acceso a éste. Los rec ursos intelectuales incluy en los conocimientos, la informació n y las ideas. EI control sobre la ideología significa la habilidad para generar, propagar, sostener e i nstituci nalizar conjuntos específicos de creencias, valores, actitudes y co mportamientos, determinando virtualmente la forma en que las personas perciben y funcionan en un entorno sócio económico y político dado (BATLIWALA, 1997, p. 192).

9 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Sharma apud Batliwala (1997, p. 193) sintetiza que: “O termo empoderamento se refere a uma gama de atividades que vão desde a autoafirmação individual até a resistência coletiva, protesto e mobilização para desafiar as relações de poder”3, o que indica que empoderamento não se restringe a uma dimensão individual. Além disso, quaisquer umas destas perspectivas indicam que a compreensão de empoderamento presente no campo da assistência social, não corresponde de fato à ideia que o termo contém, uma vez que este não se resume a uma ação esporádica, mas consiste num processo no qual a tomada de consciência de si mesmo e do lugar em que se ocupa é fundamental, o que também não se restringe a ações voltadas para o desenvolvimento

da

autoestima, pois estas por si só não desnudam a realidade que envolve a condição e a posição das mulheres e, de modo singular, a realidade das famílias por elas chefiadas, de modo que, ao invés de transformar as estruturas geradoras da discriminação de gênero, estas são reforçadas. Por fim, concluo que o empoderamento presente na assistência não produz uma real emancipação porque de fato com ela não está comprometido, levando em consideração que se ergue sob uma perspectiva neoliberal. Este tipo de empoderamento também chamado de light, uma vez que muito superficial, acaba sendo uma ferramenta do capital a fim de produzir consumidores potenciais, por meio de uma instrumentalização destas famílias pobres, utilizando-se para isso dos estereótipos de gênero o que não assegura a conquista de cidadania real para as mulheres, já que esta lhes é garantida sob a reafirmação de sua “função de cuidadora”.

Conclusão

Como resultado da análise da pesquisa que foi feita, é importante lembrar que a relação entre trabalho, gênero, família e política de assistência aponta para uma perspectiva de proteção social fragmentada

e pouco comprometida com a emancipação dos sujeitos, expressa na múltipla

precarização da mesma. Esta manifesta nos espaços, no trabalho e nos serviços, o que tem impacto direto no acesso da população aos direitos, sendo um dos agravos que lhe acometem o subfinanciamento. Sendo assim, é necessário destacar que este modelo não é estanque, mas reflete bem a continuidade dos parâmetros neoliberais expresso nas “recomendações” do FMI, do Banco Mundial e nas deliberações do Consenso de Washington (1989). Dentro deste modelo, o Estado atua de modo a subsidiar as famílias na proteção social, contando de modo singular com o trabalho 3

Tradução livre. 10 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

não pago das mulheres na esfera do cuidado, o que aponta a necessidade de se ampliar as discussões sobre gênero e políticas públicas

Referências BATLIWALA, Srilatha. El significado del empoderamiento de las mujeres: nuevos conceptos desde la acción. In:______. LEÓN, Magdalena. Poder yempoderamiento de las mujeres. Santa Fe de Bogotá: T/M Editores, 1997, p. 187-211. BRASIL. Política Nacional de Assistência; Norma Operacional Básica. Brasília, 2004. CARLOTO, Cássia Maria. Programa Bolsa família, cuidado e uso do tempo das mulheres. Célia T.; CAMPOS, Marta Silva; CARLOTO, Cássia Maria (orgs.). Familismo direitos e cidadania: contradições da política social. 1. ed. São Paulo: Cortez, 2015. ______. A família na trajetória do sistema de proteção social brasileiro: do enfoque difuso à centralidade na política de Assistência Social. Emancipação, Ponta Grossa, v. 10, n. 2, p. 535-549, 2010. Disponível em