C A D E R N O S D I S C E N T E S C O P P E A D

CADERNOS DISCENTES COPPEAD N° 31 2008 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO EDITORIAL O conceito de identidade: Diálogos entre Jenkins, Kaufmann e Warnier Roberta D...
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CADERNOS DISCENTES

COPPEAD

N° 31 2008

SUMÁRIO APRESENTAÇÃO EDITORIAL O conceito de identidade: Diálogos entre Jenkins, Kaufmann e Warnier Roberta Dias Campos

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Stickittothemaniosis: Identidade social e resistência reflexiva em um mundo saturado por consumo e trabalho Luciana Walther

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Identidades contemporâneas: A dinâmica trabalho e consumo na construção da identidade Renata Cavalcanti Cid Rodrigues

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Identidade e trabalho: A questão dos trabalhadores terceirizados Renata Figueira

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Identidades na prateleira: Um ensaio sobre identidade, consumo e corpo Fernanda Borelli

Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 1-90 2008

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Cadernos discentes COPPEAD/UFRJ/ Instituto COPPEAD de Administração. – n. 1, (2000) -- Rio de Janeiro: UFRJ/COPPEAD, 2000 Irregular ISSN 1983-3377 1. Administração – Periódicos. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto COPPEAD de Administração.

Editora Ursula Wetzel Assistente do Editor Lucilia Silva Projeto Gráfico e Capa Raquele Mendes Coelho Editoração Lucilia Silva Correspondências devem ser enviadas para: COPPEAD/UFRJ Cadernos Discentes COPPEAD Caixa Postal 68514 21941-972 – Rio de Janeiro – RJ Telefone: (21) 2598-9841 Fax: (21) 2598-9817 E-mail: [email protected] Direitos e Permissão de Utilização As matérias assinadas são de total e exclusiva responsabilidade dos autores. Todos os direitos reservados ao COPPEAD/UFRJ. É permitida a publicação de trechos e de artigos, com autorização prévia e identificação. Cadernos Discentes COPPEAD é uma publicação do COPPEAD/UFRJ com o objetivo de estimular e divulgar a produção acadêmica do corpo discente do COPPEAD, constituída pelos alunos dos cursos latu sensu, mestrado e doutorado.

APRESENTAÇÃO

Os CADERNOS DISCENTES COPPEAD têm por objetivo divulgar a produção de alunos e ex-alunos latu sensu, de Mestrado e de Doutorado. Dentro de uma filosofia de integrar teoria e prática, é comum que os alunos sejam solicitados a realizar pesquisa e a escrever casos relativos aos conteúdos abordados nas diversas disciplinas. Produzem, assim, um material que, apesar de ter por objetivo primário a avaliação de desempenho, constitui, também, um esforço de investigação de alta qualidade. No entanto, nem todos os trabalhos e pesquisas apresentados nas disciplinas estão de acordo com as regras básicas e usuais de publicação de trabalho científico. A preocupação com essa questão fez com que o processo de seleção dos mesmos seguisse uma rígida metodologia. Em primeiro lugar, o professor de cada disciplina seleciona e indica aqueles trabalhos que considera terem sido os melhores da turma. O editor, por sua vez, analisa a adequação da inclusão em determinado volume, enviando-os, posteriormente, para dois avaliadores segundo a filosofia de blind-review. Uma vez criticados, os trabalhos voltam aos alunos para a realização das modificações entendidas como necessárias pelos revisores. Embora não seja esse o objetivo principal dos Cadernos, alguns aprendizados adicionais estão presentes no processo. Primeiro, a compreensão, por parte dos alunos, de que a qualidade do trabalho por eles desenvolvido pode render frutos não pensados inicialmente. Segundo, o entendimento de que o mérito de ter o artigo publicado não se faz sem ônus, uma vez que podem ser necessárias algumas modificações, ou seja, faz parte do processo de aprendizado do aluno não apenas a geração de um trabalho de pesquisa em si mesmo, mas também a compreensão de que o reconhecimento decorre de um comprometimento com a excelência, necessariamente presente em todos os passos do caminho. Por fim, mas não com menor ênfase, entendemos que os artigos aqui publicados são de utilidade para as comunidades acadêmica e empresarial brasileiras. A maior parte dos trabalhos publicados diz respeito a situações de negócios relevantes para quem discute ou para quem aplica os conceitos de Administração. Por todos esses motivos, o COPPEAD muito se orgulha de apresentar o melhor da produção intelectual de seus alunos. A Editora

EDITORIAL

“Identidade, Trabalho e Consumo” Para aqueles que, como nós, ensinam e pesquisam na área de Administração de Empresas não há nada de novo em pensar a empresa, nosso laboratório, como um sistema complexo formado por várias partes ou funções. Mais recentemente, propostas mais amplas para gerenciar eficientemente esse sistema, falam da necessidade de uma maior aproximação das áreas funcionais da empresa, pois o seu sucesso ou fracasso é resultado não de uma única área (finanças, marketing, produção, tecnologia ou recursos humanos, por exemplo), mas de uma soma com muitas parcelas difíceis de serem compreendidas e até descritas. Curiosamente, a academia parece repetir a mesma dificuldade que assistimos nas empresas: unir as tais parcelas da soma, como o ensino e a pesquisa. Para nós, professoras de Marketing e Organizações, sem dúvida, as parcelas mais instigantes dessa soma são aquelas compostas por pessoas: as que trabalham e as que consomem. Esse Caderno Discente é um motivo de triplo orgulho para nós. Primeiro, o curso “Identidade, Trabalho e Consumo” que foi capaz de unir a área de Organizações e de Marketing. Mais especificamente, esse curso integra dois interesses de pesquisa: o trabalho e o consumo. Em segundo lugar, mas certamente nossa maior satisfação, foram os excelentes ensaios individuais gerados como trabalhos finais desse curso e que formam o conteúdo desse Caderno Discente. Por fim, o prazer desse trabalho conjunto ao qual temos dado continuidade. Os cinco ensaios que compõem esse Caderno Discente têm, portanto, inspiração nas leituras e discussões do curso de “Identidade, Trabalho e Consumo” oferecido aos alunos do doutorado que contou também com a participação de algumas alunas do mestrado. Os trabalhos surpreendem, pois formam um grupo diversificado e instigante de caminhos escolhidos pelas cinco autoras. O primeiro ensaio, escrito por Roberta Campos traz uma cuidadosa e ousada proposta que discute três autores e suas diferentes abordagens para o conceito de identidade. Luciana Walther é a autora do segundo ensaio, muito desafiante em seu título e conteúdo com textos e algumas imagens que compõem um convite inédito para refletirmos sobre o anti-trabalho e o anti-consumo. Renata Cid em seu interessante ensaio, que é o terceiro dessa publicação, ilumina questões controversas da relação

existente entre identidade, trabalho e o consumo, que certamente possui um papel emergente na construção de identidades contemporâneas. No quarto ensaio, Renata Figueira optou por analisar a relação da identidade com o trabalho discutindo a delicada questão dos trabalhadores terceirizados. O foco do trabalho de Fernanda Borelli, no último ensaio, foi na estreita conexão do conceito de identidade com o consumo relacionado ao corpo, uma importante contribuição em uma sociedade que parece valorizar cada vez mais a aparência. Por fim, nossos agradecimentos a essas queridas alunas e autoras pela oportunidade que nos proporcionaram, a partir de seus ensaios, de compartilhar com os leitores reflexões que ligam diferentes abordagens do conceito de identidade com questões relativas ao trabalho e ao consumo. Aceitem o nosso convite para essa leitura repleta de interessantes discussões sobre “Identidade, Trabalho e Consumo”.

Leticia Casotti e Ursula Wetzel

O CONCEITO DE IDENTIDADE: DIÁLOGOS ENTRE JENKINS, KAUFMANN E WARNIER Roberta Dias Campos RESUMO Arnould e Thompson (2005) apontam que uma parte relevante das iniciativas de pesquisa em comportamento do consumidor concentra-se nos projetos de identidade do consumidor, colocando assim a importância de entender o conceito de identidade para a investigação do consumo. No entanto, a definição desse conceito apresenta certa diversidade de abordagens, determinada pela diferentes perspectivas adotadas por autores que definem e empregam o conceito. Neste sentido, o objetivo do presente trabalho consiste em realizar um mergulho intelectual na perspectiva de três autores de ciências humanas – Richard Jenkins, JeanPierre Warnier e Jean-Claude Kaufmann – acerca de identidade, obtendo nuances, contrastes e limites do conceito. A visão socialmente determinada de Jenkins é influenciada por autores como Goffman e Bourdieu. A esta visão pretendemos opor a visão bastante particular de Warnier (1999), em que o indivíduo é uma configuração física particular que indicará os caminhos identitários do indivíduo em questão. Já Kaufmann parte de uma visão mais autônoma do indivíduo, onde a construção da identidade é fortemente influenciada por aspectos subjetivos. Por fim, são apresentados os pontos de diálogo e articulação entre os três autores, sendo proposto um modelo conceitual que incorpora e acomoda as diferentes contribuições à definição do conceito de identidade. Palavras-chave: identidade, consumo, identificação, dialética de identificação, socialização, síntese dinâmica, cultura material, esquema corporal, modernidade, arbitragem individual, subjetividade

1. INTRODUÇÃO

O campo de administração se constrói através de empréstimos teóricos diversos. Em sua necessidade de entender o funcionamento da empresa, da gestão, do gestor e do consumidor, muitas são as ciências percorridas para dar apoio à compreensão dos fenômenos estudados. Tomando mais especificamente o campo de comportamento do consumidor, Helgeson et al. (1984) já mostraram como nos diversos periódicos de Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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marketing, comportamento do consumidor, propaganda e negócios, as temáticas transdisciplinares – que discutem conceitos como cultura, atitude, ciclo de vida, aspectos demográficos e econômicos – estão presentes e em crescimento. De maneira complementar, Arnould e Thompson (2005) apresentam as diferentes correntes do campo de comportamento do consumidor, dentre as quais podemos citar algumas: positivismo, pesquisa naturalística, estruturalismo, pós-estruturalismo, interpretativista. Muitas dessas correntes são originárias de áreas de estudo fora da Administração, como Antropologia, Sociologia ou Psicologia. Os autores se propõem nesse artigo a fazer um inventário dessas iniciativas e contribuições, dentro do campo de comportamento do consumidor, buscando descrever as diversas linhas de pesquisa encontradas. Pesquisar em contexto de tamanha diversidade pede aos estudantes de Administração uma profundidade e crítica conceituais constantes. É preciso descer às fontes das ciências fundadoras para entender como o conceito utilizado em Administração foi inicialmente forjado. Tendo participado da disciplina Consumo, Identidade e Trabalho, do curso de doutorado em Administração, do COPPEAD / UFRJ, o tema identidade me chamou particularmente a atenção, tanto por sua função de base às discussões dos campos consumo e trabalho (que desejávamos comparar para melhor entender), como por se oferecer como rica matéria-prima para pensar o consumidor, em meu campo particular de pesquisa. Arnould e Thompson (2005) já haviam sinalizado que dentro do campo de estudos de comportamento do consumidor, uma parte relevante das iniciativas de pesquisa concentra-se no tema “projetos de identidade do consumidor”, que se interessa em entender o papel de co-produtor do consumidor, que construiria, a partir do material fornecido pelo marketing, “um senso de si coerente”, ainda que “fragmentado” e “diversificado” (p. 871). Nesta direção, portanto, desenhei o objetivo do presente trabalho, buscando realizar um mergulho intelectual no conceito de identidade, a fim de obter um conhecimento mais sólido e elaborado, e ganhando, por fim, familiaridade com autores do campo das ciências humanas. Para tanto, selecionei dois autores para colocar lado a lado com o autor estudado ao longo do curso (JENKINS, 2003). O primeiro deles é Jean-Pierre Warnier. Professor de etnologia na Universidade René Descartes / Paris V, é especializado em história e antropologia econômica africana. A sua obra aqui analisada - Construire la Culture Matérielle - não tem como tema central o conceito de identidade, mas é rica em elementos para pensar o tema, por sua abordagem da subjetividade a partir da relação que ele chama de “cultura material”, a dimensão concreta, física e corporal do real. O segundo autor selecionado é Jean-Claude Kaufmann. Sociólogo e pesquisador francês, ele é um dos principais nomes na sociologia francesa atual, notadamente dentro da corrente recente da chamada sociologia do indivíduo. Na obra selecionada, o autor faz uma discussão centrada no conceito de identidade, mas seu ponto de partida e de referência contínuas, ao longo da obra, são suas diversas pesquisas qualitativas de campo. Depois de apresentar a história do termo, o autor se lança na discussão do conceito em si.

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Em Jenkins, vemos o conceito de identidade influenciado por autores como Goffman e Bourdieu. A esta visão pretendemos opor a visão bastante particular de Warnier (1999), em que o indivíduo é condicionado por seu meio até corporalmente, e é uma configuração física particular que indicará os caminhos identitários do indivíduo em questão. Já Kaufmann parte de uma visão mais autônoma do indivíduo, onde a construção da identidade é fortemente influenciada por aspectos subjetivos. Para efeitos de ordem, realizarei uma apresentação breve do projeto de cada autor, bem como dos principais elementos que definem o conceito de identidade de cada um. Por fim, nas considerações finais, proponho-me a traçar pontos de diálogo entre os três, explicitando assim perspectivas específicas de cada elaboração conceitual, bem como pontos em comum aos autores.

2. IDENTIDADE SOCIAL DE RICHARD JENKINS (2003)

A discussão do tema identidade em Jenkins sempre se articula em dois momentos de identificação. O primeiro, em que se sabe quem se é, e o segundo que corresponde a como os outros nos identificam. O eu e o outro. Essa ambivalência do conceito, no entanto, desafia o autor e seus leitores. Em um primeiro momento, a entender como lidar com um esforço que, de um lado, singulariza e individualiza, e, por outro, faz pertencer e reconhecer pelo outro. Para começar a aprofundar o entendimento do conceito, Jenkins apresenta uma primeira distinção: por um lado, dentro da noção de identidade temos algo que classifica a distinção entre pessoas, por outro, temos um elemento associativo que aproxima pessoas percebidas como similares. Esses dois movimentos, sempre em operação, constituem a raiz do conceito de identidade: a similaridade e a diferença. Uma instância que separa e singulariza, e outra que associa e solidariza, permitindo estabelecer “quem é quem” (2005, p. 05). O autor complementa essa primeira distinção com o entendimento de que a identidade é um processo, um tornar-se contínuo, sempre em construção, que nunca pode ser considerada uma obra acabada. Esse dinamismo de sua concepção deve-se ao caráter reflexivo do conceito. Identidade é uma ação, situada no domínio prático e reflexivo: “é sempre algo que precisa ser estabelecido”, pois não se encontra inscrita nas coisas e pessoas a priori. É construída a partir da experiência no mundo. O autor ilustra essa questão ao dar o exemplo do primeiro contato entre duas pessoas. Para lidar com um desconhecido, é preciso identificar (categorizar) essa nova pessoa. Isso é feito através da localização em nosso “campo mental” (p. 06) de referências sobre as informações iniciais do contato, como a sua composição física (“embodiement”, p. 06), roupas, língua, reações, e também informações de terceiros. Esse processo de recurso a um depositário de categorias internas no campo mental de cada um é o que permite viver a vida cotidiana e constitui o recurso básico da interação social. A proposta do autor na obra em questão é

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descrever como o processo de identificação opera através da constituição interativa da identidade, ou seja, de sua dimensão social. O termo identidade entrou no centro do debate em ciências sociais notadamente nos anos 90. E desde então sua presença é freqüente na literatura. Este termo, por vezes, é mobilizado para o entendimento das mudanças no tecido social, em outras é utilizado para descrever as fundações profundas da subjetividade. Para Jenkins, o conceito é vital para o campo de ciências sociais pela articulação que promove entre o social e o individual. O autor discorda de outros cientistas sociais que entenderiam que o fenômeno de identidade seria novo e específico da modernidade. Veremos que Kaufmann poderia ser enquadrado neste grupo. Jenkins entende, no entanto, que a identidade não é um fenômeno puramente moderno e recente. Segundo ele, mesmo antes de autores como Mead e Simmel falarem do tema na virada do século, Locke, no final do século XVII já refletia sobre a questão. Mesmo em Shakespeare, para Jenkins, é possível encontrar reflexões sobre o tema. O que ocorreria na modernidade, no entanto, seria uma configuração particular do fenômeno, determinada por um mundo rapidamente modificado, cercado de incertezas e reorientações no universo da família, do trabalho, da estrutura de classe, da inovação médica e tecnológica, da redefinição de fronteiras políticas. Esse ambiente de mudança desorganiza as referências internas, os mapas cognitivos, que não mais se adaptam à paisagem ao redor. Além disso, a modernidade seria marcada por um traço individualizante, de maior ênfase e proteção às “privacidades das pessoas” (p. 12). A identidade auto-reflexiva será o aspecto específico da modernidade. Giddens (1991) irá analisar essa questão, descrevendo o que ele chama de “politização da pessoa, do privado e do íntimo” (JENKINS, 2003, p. 12), em que indivíduos podem construir de maneira reflexiva uma narrativa pessoal sobre si mesmos. Essa atuação construtora da identidade daria ao indivíduo uma percepção de controle e poder sobre suas vidas. Jenkins pontua, entretanto, que essa construção ativa e autônoma de sua identidade e vida privada são mais freqüentes em meio a uma elite ocidental, e boa parte da população não teria a mesma relação com sua identidade. Ele lembra, por exemplo, grupos religiosos como contra-exemplo, em que a salvação seria um objetivo de construção da identidade tão legítimo quanto o crescimento pessoal para os indivíduos que Giddens analisa. Com este argumento, Jenkins quer sustentar que a questão da identidade (e de sua construção subjetiva) não é nova, nem específica da modernidade. Para ele, mais importante que um enquadramento histórico, é um enquadramento teórico, que ele se propõe a construir. Seu ponto de partida é buscar encerrar o debate ou a setorização do estudo do homem imposto pelo estabelecimento da psicologia (estuda o indivíduo) e da sociologia (estuda a sociedade e a dimensão coletiva). Para ele, dentro do fenômeno da identidade, as dimensões coletiva e individual estão intimamente relacionadas e em interação constante. Por esta razão, qualquer esforço de teorização da identidade deveria levar em consideração o individual e o coletivo em igual proporção.

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Para tanto, ele vai retomar o “individualismo pragmático” (p. 16) de Wright Mills e o interacionismo simbólico (Mead e Goffman) como referência de sua abordagem à identidade. Dentro deste conceito, o sentido construído no mundo pelos atores é incorporado por indivíduos vivendo neste mundo. Para Jenkins, a identidade está incorporada no eu, mas este é socialmente construído tanto no processo de socialização primária, quanto no processo de interação por toda a sua vida. A partir do trabalho de Mead, Jenkins elabora uma noção de eu construída a partir da síntese entre a auto definição interna do indivíduo e as definições externas, oferecidas pelos outros. Esta síntese será denominada dialética de identificação interno-externo. Esta síntese tem suas bases mais essenciais no processo de socialização primária, que ocorre até o fim da infância. Isso sugere que a identidade se constrói muito cedo na trajetória de cada um. Além disso, a identidade primária, aquela que é constituída na infância, seria considerada uma porção de identidade mais robusta e resistente a mudanças. Assim, apesar de ser possível imaginar as mudanças que se processam na identidade através do processo de interação, a identidade primária permanece como uma base que dificilmente muda. A discussão sobre a identidade é enriquecida por dois conceitos apresentados por Goffman para ilustrar a questão dialética entre o meio e os elementos internos no indivíduo. O primeiro deles é a “apresentação do eu durante a interação” (p. 20), onde o indivíduo se apresenta coletivamente, a fim de construir via interação o reforço à dimensão individual de sua identidade. O segundo conceito vai buscar lidar com a ausência de controle do indivíduo sobre a recepção dos sinais que emite sobre sua identidade pelos demais. Assim, Goffman vai falar de “estratégias de gestão da impressão” (p. 20), chamando nossa atenção para a dimensão performativa da identidade. A dialética interno-externo, que confronta imagem pública e auto-imagem, lida também com a questão da identificação de si pelos outros e vice-versa. Nesse sentido, mais um conceito é particularmente enriquecedor para o debate. Trata-se da noção de “rotulagem” (p. 20) proposta pela sociologia do desvio (Escola de Chicago). Este conceito explica que a interação entre o dentro e o fora de cada indivíduo é vivida como um processo de internalização dos elementos externos. Assim, a iniciativa de rotulagem pode ser percebida na relação entre um indivíduo e uma instância institucional, que o define como “incapaz” ou “analfabeto”. Esse rótulo é normalmente internalizado, afetando a autoimagem do indivíduo. O processo de rotulagem pode, por outro lado, sofrer resistências de indivíduos que recusam a entrada do rótulo em suas definições de si mesmos. A dimensão coletiva da identidade será analisada por Jenkins a partir dos conceitos de Marx de “classes em si” e “classes por si” (p. 21). As primeiras, também chamadas de categorias, são percebidas como uma coletividade por uma instância externa a elas. As segundas, também chamadas de grupos, entendem-se como uma unidade autonomamente, por entenderem que os indivíduos que os cercam têm algo em comum. Dentro da lógica da dialética intern-externo, grupos e categorias encontram-se em constante interação, e, por conseguinte, se redefinem mútua e continuamente. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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Barth é outro autor trazido por Jenkins para problematizar a questão. Ele oferece um modelo de identidade fluido, contingente, onde a definição final da identidade seria sempre objeto de negociação e mudança. Para ele, não seria suficiente comunicar sua mensagem, mas tê-la aceita pelos outros. Uma noção central em Barth é a idéia de fronteira entre o indivíduo e o coletivo, onde as identidades seriam negociadas e revistas. Ele oferecerá a distinção entre “identidade nominal” (nome de uma identidade) e “virtual” (experiência de uma identidade) (p.22), explicando que os indivíduos podem nomear identidade similarmente, mas viver significados diversos na prática e vice-versa. Por fim, o autor lembra ainda que as instituições sejam um dos mais importantes contextos de existência da identidade. Ele destaca as instituições que a literatura de ciências sociais chama de “organizações”, e as define como sendo “coletividades organizadas e orientadas para tarefas” (p. 23). Por serem constituídas de posições, hierarquias e procedimentos, as organizações precisam desenvolver sistemas classificatórios para poder existir. Esses sistemas lidam com procedimentos de diferenciação e similaridade, e por isso fornecem elementos para o processo de classificação necessário à construção da identidade. Através de tais sistemas de poder, identidades são alocadas em posições institucionais específicas. Em resumo, para Jenkins a identidade é, antes de tudo, um processo que se constrói na interação entre indivíduo e coletivo. Indivíduo e coletividade, por sua vez, podem ser entendidos como um modelo unificado da dialética entre processos internos e externos. Essa articulação faz do conceito de identidade uma ferramenta estratégica na agenda das ciências humanas. 3. JEAN-PIERRE WARNIER E A IDENTIDADE ATRAVÉS DA CULTURA MATERIAL (WARNIER, 1999) A proposta de Jean-Pierre Warnier parte de uma interrogação de Marcel Mauss, em seu artigo seminal, As técnicas do corpo. Mauss fala de um grupo de fatos, chamados ‘diversos’, que a ciência ainda não consegue conceituar. Para Mauss, é aí que se deve mergulhar. Fatos como a natação, o caminhar, são coisas absolutamente específicas a sociedades determinadas. “Os Polinésios não nadam como nós” (MAUSS, 1950 apud WARNIER, 1999, p. 09). E ele se pergunta: que fenômenos sociais são esses? É essa interrogação que dá início à sua investigação sobre as técnicas corporais e que ilustra a empresa conceitual de Warnier. O antropólogo buscará entender a relação do indivíduo com o corpo e o movimento, para em seguida entender como este fenômeno participa da dinâmica social e de construção da identidade. Ele começa sua apresentação a partir de um exemplo simples. Quando se dirige um carro pela primeira vez, os movimentos estão todos presentes na consciência. É preciso pensar em cada gesto que se vai realizar, mesmo os mais simples e aparentemente ‘instintivos’. Porém, com o tempo, a dinâmica de condução de um carro é Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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de tal modo “incorporada” (p. 9) em nós, que não é mais necessário refletir sobre detalhes antes importantes, como o tamanho do carro, a força da inércia ou a localização dos comandos da direção. O motorista experiente não termina esgotado como o iniciante, após uma hora dirigindo um carro. Ele não pensa mais. O carro parece “dirigir sozinho”, “ele e o carro parecem um só corpo” (p. 10). O motorista experiente dirige maquinalmente, não na “dualidade de um sujeito que domina um objeto, mas como uma síntese dinâmica” (p. 10). Warnier fala, portanto, de incorporação, não do objeto, posto que este permanece exterior ao corpo humano, mas de sua dinâmica, dos gestos necessários à sua manipulação adequada. Essa tomada do objeto pelo sujeito se realiza a partir de todos os pontos de contato e percepções disponíveis no sujeito: seus cinco sentidos, seus movimentos, as mãos, os pés, a percepção gravitacional, entre outros. Essa incorporação da dinâmica dos objetos se processa a partir do desenvolvimento de gestos memorizados pelo corpo, e que se manifestam pelo que Warnier chama de estereótipos motores (p. 11): ou seja, padrões de movimento memorizados no corpo através de sua repetição no tempo, que se repetem automática e maquinalmente cada vez que o indivíduo manipula um objeto determinado, sem esforço nem atenção. “Os estereótipos motores têm [...] por resultado uma grande economia de energia, a capacidade de agir por longo tempo, sem cansaço, de maneira que o eu consciente possa se soltar da ação e se investir em outras coisas” (p. 12). A perspectiva de Warnier é também determinada por uma percepção particular da relação corpo-sujeito. Para ele, um sujeito não detém um corpo. “Ele é um corpo” (p. 12). Não há como pensar o sujeito sem examinar sua dinâmica corporal. Os objetos são para Warnier como próteses do esquema corporal. Uma prótese, ele explica, seria um aparelho que substituiria um órgão defeituoso ou faltante, como uma perna ou um dente. No caso de sua análise, de todos os outros objetos, não se trata de falta ou defeito de um órgão, mas sim da “falta essencial da cultura material”, ou seja, “a incompletude constitutiva do sujeito humano”, que se construiu através de quatro milhões de anos através de um processo de evolução da espécie, amparada pela cultura e por sua materialidade. O homem não precisou, por exemplo, dentro da evolução de sua espécie, de garras para lutar contra animais inimigos, pois a cultura ensinou-lhe a construir armas. Essas armas, incorporadas à sua dinâmica de gestos, restabelecem sua força na natureza. Assim, os objetos são percebidos como próteses por oferecerem soluções e poderes que o corpo humano não desenvolveu por estar amparado na cultura1 Warnier toma um novo exemplo para ilustrar seu argumento. Tomemos três personagens: um piloto de avião, um pescador e uma faxineira. Os objetos necessários a cada um são completamente diversos. Mas não é apenas a materialidade dos objetos que os diferencia. Na interação com um grupo de objetos particular, cada um é “subjetivado de maneira diferente” (p. 13). É possível enumerar, para cada um, uma lista de ‘próteses’ que 1

Warnier aprofunda essa discussão no capítulo 2 de seu livro. Encontramos a mesma idéia apresentada por Clifford Geertz (1989) em seu capítulo “O Impacto do Conceito de Cultura sobre o Conceito de Homem”, pp. 45 a 67. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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são mobilizadas no gestual de cada um. E mesmo que cada um de nós disponha da mesma lista, não seremos nunca constituídos como sujeitos da mesma forma que nossos três personagens. É na interação particular entre suas próteses e seus gestos aperfeiçoados ao longo do tempo que cada um se singulariza e se diferencia 2. Seu projeto é descrever a materialidade em sua relação com os gestos do sujeito, como matriz de subjetivação. Em um primeiro momento ele quer se distanciar de todos os autores que buscaram olhar o objeto como símbolo ou veículo para analisar o homem. Seu projeto é descrever o concreto da relação à matéria. No entanto, ao final de sua empresa conceitual, Warnier quer aproximar de volta as duas funções do objeto. O objeto como coisa manipulada corporalmente pelo indivíduo e o objeto como representação, depositário de significados obtidos na cultura. Para o autor, existe uma relação entre a forma como se dirige um automóvel e as idéias que são acumuladas sobre ele. O sujeito se relaciona com os dois carros: o carro-símbolo e o carro-objeto. É o sujeito que assegura inclusive a mediação entre os dois. É neste sentido que o trabalho de Warnier pode se tornar útil para a discussão do conceito de identidade. Para realizar sua descrição da operação da cultura material na subjetivação ele recorre a um grupo de autores. Seu ponto de partida é Marcel Mauss, que em seu trabalho As Técnicas do Corpo oferece os principais elementos para Warnier iniciar sua empresa teórica. Seu primeiro passo é aprimorar o conceito de Mauss sobre o que possa ser definido por ‘corpo’. Mauss apresenta três pontos de vista sobre o corpo: a realidade anatômica e fisiológica, o corpo inserido em uma sociedade que o molda e o educa, e por fim, como elemento intermediário entre os dois anteriores, as capacidades psicológicas do indivíduo. O “homem total” de Mauss seria então composto de dimensões “bio-psicosociais” (p. 27). Mas será a leitura de Paul Schilder, sobre o conceito de “esquema corporal” que dará a Mauss os elementos finais de sua trajetória conceitual.

A imagem do corpo [...] ultrapassa as fronteiras da anatomia: um bastão, um chapéu, uma vestimenta qualquer também fazem parte deste. Sua integração é mais fácil à medida que sua ligação com o corpo é mais estreita. (SCHILDER, 1968 apud WARNIER, 1999) Esta idéia está por trás do exemplo do motorista no início desta parte, apresentada por Warnier. O motorista experiente é alguém que teria dilatado sua síntese corporal para o conjunto do carro, incorporando os movimentos do carro ao seu gestual particular. A interação com o carro faz do corpo do homem um novo corpo. E Warnier dirá, indo mais adiante, um novo homem. O autor e seu grupo de pesquisa sobre a cultura material assim definem a noção de síntese corporal: 2

É importante destacar que o autor faz a ressalva que não são apenas os objetos e gestos que determinam a subjetivação particular de cada um. Para Warnier, tradições familiares e religiosas, opiniões políticas e mesmo fantasias do inconsciente fazem parte dessa elaboração. Mas aqui ele centra a atenção no papel da materialidade na construção da identidade. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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A síntese corporal é a percepção sintética e dinâmica que um sujeito tem de si mesmo, de seus movimentos, e de sua posição no tempo e no espaço. Ela mobiliza o conjunto dos sentidos em sua relação ao corpo e à cultura material. Essa síntese é o resultado de aprendizados que se enumeram e ocorrem ao longo de toda a existência. Ela apresenta de uma grande variabilidade individual, cultural e social, ao mesmo tempo em que garante a continuidade do indivíduo em sua relação ao meio. Ela se dilata e se retrai a cada vez para integrar objetos diversos (automóvel, utensílios domésticos, vestimentas, equipamentos esportivos, etc.) nos movimentos do sujeito. (WARNIER, 1999) Por que as técnicas do corpo são tão importantes para o estudo de Mauss sobre religião e magia, e por que poderia nos interessar para entender a questão da identidade? É Mauss que nos explica: “ato técnico, ato físico, ato mágico-religioso estão todos misturados para o agente” (MAUSS, 1950 apud WARNIER, 1999). Para o sujeito, todos esses fatores (físico, material, social, psicológico) encontram-se misturados e relacionados. Daí a importância de entender elementos que tocam o físico e o material tanto quanto aqueles que envolvem o imaginário. Para Mauss, o ‘homem total’ é “o sujeito individual em sua tripla dimensão corporal, psicológica (inteligência e afetividade) e social, integrada pelo aprendizado em uma dada sociedade (WARNIER, 1999, p. 30). A dimensão psicológica funcionaria como uma engrenagem entre o corporal e o social, um intermediário que põe em funcionamento o conjunto. Os fatos psicológicos não seriam, portanto, causas do comportamento físico, a não ser em momentos específicos de “criação e de reforma” (MAUSS, 1950 apud WARNIER, 1999). Esses fatos seriam comandados pela educação e pelas circunstâncias e limitações colocadas pelo cotidiano. Busquemos entender melhor essa função de engrenagem da dimensão psicológica. As técnicas do corpo presentes, por exemplo, na natação ou na corrida, momentos em que o treinamento contínuo tem um corpo que trabalha ‘no automático’, funcionam como “hábitos incorporados” (p. 31), e não são gestos comandados pela inteligência. Neste caso, não são as faculdades mentais as causas do complexo das técnicas do corpo. Porém, vemos em outras situações o comando claro do psiquismo, como na inovação técnica ou na criação artística. Porém, Warnier lembra que todo aprendizado é uma forma de reinvenção do social pelo sujeito, posto que este se apropria e adapta os elementos recebidos do universo social. Assim, mesmo sob influência social, dentro de um processo de aprendizado, o sujeito apresenta sua porção de autonomia ao se apropriar das técnicas do corpo à sua maneira. Para Warnier, é justamente na relação com os objetos, na adaptação das técnicas ao seu corpo, que temos um processo de subjetivação e de produção de identidade e de diferenciação individual. Em outras palavras, as técnicas do corpo representam certa padronização, aprendida socialmente pela educação, de gestos e manipulação de certos Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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objetos-prótese. Porém, toda técnica sofre uma variabilidade individual e social e passa por pequenas inovações e mudanças. Ao estudar as candidatas a modelo do programa Brazil’s Next Top Model3, pude perceber que em um primeiro momento o professor de passarela ensina as técnicas do corpo, o jeito correto de andar, o que faz a diferença entre o andar na rua e o andar na passarela. Em seguida, ensinados e incorporados os gestuais básicos, cada candidata é estimulada a ‘inovar’ seu estilo de andar, imprimindo ‘estilo’ à sua apresentação. Assim, vemos a construção da identidade em dois níveis. No primeiro, através da aprendizagem e incorporação dos gestos básicos e socialmente associados ao ‘ser modelo’. Em segundo lugar, a diferenciação através do estilo próprio que faz o gesto incorporado socialmente ser levemente diferente das demais. Trata-se do que Warnier descreve como elementos “singularizantes” de um eu que se reconhece em um estilo próprio, “dentro dos limites admitidos pela cultura” (p. 32). A proposta de Warnier reside, portanto, na idéia de ampliar o entendimento do sujeito adicionando à articulação deste com representações (imaginário simbólico), a relação entre este mesmo sujeito e a cultura material, através da noção de síntese corporal. Assim podemos entender que o mesmo indivíduo possa operar entre a condução física de um carro e sua associação às representações em torno da marca ou modelo desse mesmo carro (carro esporte ou utilitário, Mercedez ou Fusca). Podemos entender como o trabalho doméstico (KAUFMANN, 1992) pode construir identidades de mulheres através da transmissão de mãe para filha de gestos memorizados em seus corpos, junto ao imaginário de limpeza e sujeira e reconhecimento de produtos e marcas. “O corpo nos subjetiva tanto quanto nossos pensamentos” (p. 33). Cada sujeito se constitui como indivíduo particular, dentro de um contexto material, percorrendo uma trajetória de aprendizado social, e acumulando representações.

4. JEAN-CLAUDE KAUFMANN E A IDENTIDADE INVENTADA (2004)

Jean-Claude Kaufmann é um antropólogo que publica suas pesquisas com freqüência, e apresenta uma série de trabalhos de pesquisa de campo sempre com ênfase no cotidiano e na vida privada. Entre seus temas de pesquisa podemos encontrar a relação conjugal através do cuidado com a roupa, a atividade de limpeza e organização doméstica, a dinâmica de início de uma nova relação amorosa, entre outros. Seu extenso trabalho empírico o desafia com freqüência a refletir sobre as ferramentas teóricas que utiliza em suas análises, e é a partir destas considerações finais que oferece hipóteses para novas elaborações teóricas. O conceito de identidade é um dos que mais transparece em seu trabalho de campo, e essa convivência freqüente com o conceito o estimulou a desenvolver um livro que carregasse e desenvolvesse a reflexão teórica necessária à sua 3

Trabalho final da disciplina Comportamento do Consumidor, do programa de Doutorado em Administração do COPPEAD / UFRJ, 2007. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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prática de pesquisa. Nossa análise de sua proposta se concentrará na segunda parte do livro, onde o autor busca desenhar seu conceito de identidade. A primeira parte promove uma revisão histórica da noção e a terceira e última propõe uma revisão do social através do conceito de identidade. Uma de suas primeiras constatações foi o caráter “vago” e “polissêmico” do conceito, sempre tomado como um “dado natural”, que cada um parece já saber o que é (p. 8). Porém, os significados do termo são diversificados e por vezes contraditórios. A identidade seria fixa ou mutante, subjetiva ou objetiva, individual ou coletiva? A identidade para muitos autores seria uma “mistura” de todos esses extremos (p. 9). No entanto, descrever identidade como uma mistura não seria uma descrição suficiente para Kaufmann, e se justificaria no fato de ser o termo identidade tão presente nos discursos cotidianos que a análise científica e objetiva do mesmo torna-se uma tarefa difícil. Kaufmann se lança portanto na tarefa de buscar desenhar o seu conceito de identidade, mais claro e menos ‘misturado’. Em resumo, mais operacional para atender às necessidades empíricas. O conceito de identidade, tal como entendido hoje na literatura, é descrito por Kaufmann como um “conceito pega-de-tudo” (p. 89). E mesmo que seu entendimento seja impreciso existe ao menos um consenso em dois pontos. Primeiramente, a identidade é uma construção subjetiva. Segundo, essa construção não pode ignorar o que lhe é dado objetivamente pelo meio natural e social. Assim, temos uma dimensão subjetiva e uma dimensão objetiva. A proposta do autor é explicitar os pontos de articulação entre os aspectos subjetivos e objetivos, deixando mais claro como a sua articulação se processa. Ele vai então se interessar pelo entendimento dos aspectos objetivos da identidade. E este entendimento deve passar por uma perspectiva histórica. Cada época histórica apresenta diferentes articulações entre elementos objetivos / subjetivos na construção da identidade. Em “sociedades holistas4” (p. 89), por exemplo, a identidade era inteiramente determinada pela ordem social vigente, enraizada em uma realidade rígida e difícil de ser modificada. A subjetividade nada mais é que um espelho dos elementos objetivos (sociedade). Só com a chegada da modernidade é que a subjetividade se impõe como ator decisivo na construção da identidade. Nesta nova ordem, os aspectos objetivos muitas vezes se subordinam à construção subjetiva. Com esta comparação, fica evidente que o que chamamos de construção de identidade parece ser um fenômeno moderno, específico de períodos em que a subjetividade é posta no centro da ação e a identidade passa a ser fabricada por cada indivíduo, e não mais atribuída. Kaufmann alerta, portanto, que a identidade “é um processo intimamente ligado à individualização e à modernidade” (p. 90). Antes presente apenas nos grupos marginais da sociedade, a identidade se impõe como “novo centro 4

Apesar de Kaufmann não explicitar sua fonte para o termo “sociedade holista”, possivelmente o autor se refere às sociedades estudadas por Louis Dumont, tais como a sociedade indiana, extremamente normatizadas e socialmente determinadas, onde a autonomia individual seria mais restrita e subordinada à ordem social. No caso de Kaufmann, as sociedades a que ele se refere são anteriores à era moderna, em que o individualismo surge como valor social. Trata-se de sociedades como a medieval onde a ordem social tinha mais peso sobre a determinação da identidade do que a vontade individual. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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regulador da construção social”, essencialmente a partir da segunda metade do século XX, onde a busca pela identidade constitui um sinal de tempos em que os indivíduos atuam na construção de sentido de suas próprias vidas. Essa reflexão apresenta o primeiro e principal traço da noção de identidade para Kaufmann: “o processo identitário é uma manifestação da subjetividade em ação” (p. 90). Obviamente, os aspectos objetivos são considerados, mas a base de seu conceito está em uma subjetividade ativa. O autor sinaliza, no entanto, que identidade não é sinônimo de indivíduo. Em seu funcionamento estão os elementos objetivos, como a história e os contextos de vida, nos quais o indivíduo se inscreve e com os quais dialoga. O indivíduo não é para Kaufmann livre para se inventar como bem desejar. É preciso desenvolver no conceito a relação entre a subjetividade e aspectos objetivos. O primeiro passo para trabalhar essa articulação é entender a identidade como um processo. O eu moderno é ao mesmo tempo “nômade e ancorado” (p. 91). Deve saber voar e ao mesmo tempo retomar suas raízes quando necessário. A identidade se constrói no encontro da subjetividade com o real (social e natural), onde aquela reaproveita e reordena os elementos dados. Ainda que limitações lhe sejam impostas pela realidade, o indivíduo transforma tais limitações em recursos, em uma nova configuração autoral. O indivíduo é, portanto, o “produto de uma história da qual ele procura tornar-se sujeito” (GAULEJAC, 1999 apud KAUFMANN, 2004, p. 91),5 e o processo de identificação oferece ao sujeito uma possibilidade de decolar do presente e da socialização para encontrar, em certos momentos, realidades imaginárias. Para Kaufmann, as identificações imaginárias e mesmo efêmeras podem adquirir mais importância para o indivíduo do que o seu cotidiano, desempenhado em um universo socializado, dentro da vida real. Ele ilustra essa afirmação descrevendo a relação de um entrevistado com o futebol. Sua vida real - de marido, pai, funcionário, filho - é momentaneamente suspensa durante um jogo de futebol de seu time. Ali ele é parte de uma entidade imaginária, que o leva para longe de sua existência cotidiana. A derrota do time é vivida como uma derrota pessoal e o entrevistado tem dificuldade de se descolar dessa realidade para retornar à sua vida cotidiana. Ele repete para si mesmo que “foram eles que perderam, não eu!”, “e ainda com o que eles ganham de dinheiro!”. Mas no final das contas, assume: “o mundo parece que caiu sobre a minha cabeça”. A identidade imaginária do futebol se sobrepõe à do cotidiano, determinada por sua realidade social, e é mesmo difícil de ser abandonada. O processo de identificação reorganiza a experiência social incorporada através da atribuição de significações específicas, que chegam mesmo a poder suspender momentaneamente o social através de “vôos imaginários”.

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O autor faz a ressalva que essa postura mais ativa é presente de forma variada na sociedade. Os indivíduos serão mais ou menos ativos na construção identitária, via mobilização subjetiva dos dados objetivos. Para Kaufmann, transformar limitações sociais em recursos para construção ide ntitária exige competências particulares. E podem chegar mesmo a gerar “produções subjetivas” que podem estabelecer, a longo prazo, “crenças coletivas” que passam então a determinar os sujeitos (p. 92). Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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Para Kaufmann, os aspectos objetivos não podem sozinhos determinar a identidade por não apresentarem um “caráter estável e coerente”. O mundo objetivo é povoado de conflitos permanentes, contradições, que convidam o indivíduo a se posicionar. E é aqui que se forma a iniciativa do homem moderno, no “trabalho de arbitragem” dentre as diversas opções do universo social (p. 94). Por essa razão, os aspectos objetivos não podem por si só serem responsáveis pela determinação da identidade. Essa questão é central no projeto do autor. O subjetivo construirá sua identidade a partir da escolha e arbitragem em um contexto real, complexo e sempre contraditório. Kaufmann ilustra essa questão com o exemplo de um casal. Cada membro do casal chega à vida a dois com uma bagagem de história de vida e socialização particulares. Assim, cada indivíduo está entre duas fontes de influência. De um lado há sua história de vida, sedimentada em sua existência através de vários esquemas mentais e de ação, nem sempre coerentes entre si. Do outro lado está o seu(sua) parceiro(a), com seu sistema de valores particular e também contraditório. Esse confronto explica que a identidade pessoal sempre seja reformulada no contexto de constituição de um novo casal. As contradições de cada um se cruzam com as do outro de forma a definir então as novas identidades pessoais de cada indivíduo, bem como, ao mesmo tempo, uma nascente identidade conjugal. O autor alega que esse complexo processo de acomodação de heranças sociais e subjetividades não é conscientemente percebido pelos indivíduos que se lançam na empresa amorosa. Mas em determinadas situações, onde é preciso arbitrar, esse processo é passível de ser notado. Kaufmann conta a história de Sabine e Romain (KAUFMANN, 1992). Sabine cresceu dividida entre as brigas dos pais, tendo dificuldade de saber a qual dos lados aderir. Seria a dona de casa ideal, como seu pai sugeria, ou reagiria a esse pai, aderindo à postura materna de recusa do papel de dona de casa? Seu parceiro, Romain, também se encontrava dividido. Por um lado, mais racional, ele era a favor da divisão igualitária das tarefas domésticas. Mas seu corpo não aprendera “os automatismos necessários”, pois sua mãe sempre cuidou de tudo na casa (p. 96). Em um primeiro momento, Sabine deu vazão à sua “fúria de arrumação” (p. 97) e manteve por um mês a casa muito arrumada e limpa, apesar de internamente se condenar, chamando-se de “Amélia” (“dodonne” p. 97) silenciosamente a cada faxina. Romain aceitou sua iniciativa convenientemente, estando (mal) acostumado à ordem e limpeza na casa materna. Ao fim de um mês, o incômodo de Sabine é tamanho que ela resolve se abrir com Romain e contar sua dificuldade com o desempenho do papel de “fada do lar” (p. 97). Romain apóia uma postura mais autônoma de Sabine e a convence a aprender a viver de forma menos exigente. Ela aprende a deixar a casa mais empoeirada e desorganizada. Porém, nos momentos em que o casal recebe visitas, Sabine retoma suas inseguranças. Será que deveria limpar a casa? O que pensariam as visitas? Seus questionamentos são particularmente fortes quando a visita é a mãe de Romain, uma dona de casa perfeita. Nesse momento, ela constata dentro dela que a unificação das referências provenientes de sua mãe (mulher independente) e de seu pai (dona de casa perfeita) foi Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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realizada apenas superficialmente. Internamente, as mesmas contradições ainda tomam conta do espírito de Sabine. Com o tempo, essas contradições se acomodam e cada um incorpora de forma cada vez menos consciente seu papel na nova identidade conjugal formada. Essa adaptação é ilustrada pelo episódio da camisa de Romain. Ele tem uma camisa que sempre lhe incomoda no pescoço. Um dia Sabine passa a camisa, pois ele não tem mais nada para usar em uma ocasião social. Neste dia a camisa não lhe incomoda. A partir de então a camisa passa a ser “a sua preferida” (p. 98), e obviamente só pode ser usada depois de passada por Sabine. A partir do exemplo de Sabine e Romain, Kaufmann pinça os elementos de análise da identidade em operação. O primeiro dado da análise é a trajetória biográfica que, com suas determinações sociais, é incorporada pelo indivíduo, que passa a “privilegiar certas escolhas de identidades” (p. 98). Porém, sobre essa herança de determinações e formações se sobrepõe a capacidade do indivíduo de arbitrar e criticar de forma permanente. Para Kaufmann é aí que reside “o coração do processo identitário” (p. 99), que não se resume a uma subjetividade pura e autônoma, mas a uma subjetividade que escolhe entre realidades possíveis . O que importa aqui é mais a viabilidade percebida de uma identidade pelo indivíduo, do que uma identidade de fato. Sabine, ainda que realizando as tarefas domésticas no primeiro mês de relação de maneira impecável, critica a si mesma de “Amélia” no fundo de sua cabeça. E é essa crítica que permite que o indivíduo se perceba e possa construir a si mesmo, apesar das atribuições diversas que recebe da dimensão objetiva. Essa crítica de sua posição no mundo é o início dessa construção de si. A identidade é aqui uma interpretação subjetiva dos dados sociais, uma tentativa de fazer sentido, de dar sentido a elementos que por vezes podem parecer deslocados da percepção que se tem de si. Como a crítica subjetiva à Amélia e à prática cuidadosa e real do cuidado com a casa. E é precisamente esse deslocamento entre o dado objetivo e a interpretação subjetiva que cria o movimento para o processo da identidade, que pode avançar em direções diversas. Porém, é importante lembrar que ainda que o indivíduo possa se imaginar nas identidades mais diversas, apenas algumas são realmente viáveis. Em resumo, temos a condição subjetiva que é capaz de arbitrar entre as diversas opções que recebe da realidade. Essa realidade permite essa arbitragem por ser ela mesma contraditória e nãoconclusiva. A escolha de que identidade assumir não está no real social, mas na escolha entre as possibilidades que este oferece. Uma escolha sempre limitada por essas possibilidades. Como define Kaufmann: “a identidade é uma invenção permanente que se forja com material não-inventado” (p. 102). Adicionalmente, essas contradições sociais são inscritas em um movimento histórico que adiciona o caráter temporário e processual das identidades e que se reformulam ao longo do tempo. O caráter processual da identidade apresenta um aspecto adicional. Toda identidade é vivida como processo narrativo, ou seja, cada indivíduo “tenta escrever sua vida” (p. 100) reunindo momentos marcantes e característicos da identidade a construir. Esse esforço de construção da identidade é particularmente presente na montagem do Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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álbum de família. Primeiro tem a função de registro, de marcar um momento “pela eternidade” (p. 100). Mas o álbum vai mais além. Grande parte das fotos tiradas é deixada de lado, esquecida em gavetas. Apenas as mais representativas são selecionadas para constituir uma história da família. Essa triagem consiste no primeiro esforço de construção da identidade no processo narrativo do álbum. Quando as gerações passam, o álbum passa a ter a função de resgate das origens familiares, contando o passado e as raízes da família. Para por à prova seu conceito e dar-lhe mais nuances, Kaufmann se pergunta: até onde podemos seguir no argumento de que existe uma vontade subjetiva que dá sentido ao real, separada, no entanto, deste mesmo real sobre o qual se apóia? Para entender melhor a extensão desse argumento ele examina os casos em que essa subjetividade vai contra um real do mundo natural. São, para o autor, realidades “menos maleáveis”, que “tomam corpo a partir dos substratos biológicos” (p. 103). Exemplo disso é o corpo feminino e o corpo masculino, bases concretas para a construção de uma identidade de gênero. O movimento feminista, por exemplo, se levanta contra as evidências físicas. Como dizia Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (p. 103). O campo de estudos de gênero, no entanto, primou pelo esforço de provar que a dimensão social dominava as definições de sexo mais do que as determinações biológicas. Porém, sem negar os aspectos sociais da questão e mesmo a existência concreta de diferenças biológicas, o autor se pergunta como esses fatos reais (do universo natural) influenciam a identidade, apesar da criatividade subjetiva. Aqui o autor encontra o mesmo traço de contradição descrito anteriormente nos aspectos objetivos. Segundo ele, os últimos avanços científicos apresentam o corpo como um universo cada vez mais complexo, “onde as discordâncias se multiplicam” (p. 107), entre, por exemplo, o sexo genital, hormonal ou genético. Estas discordâncias são particularmente latentes nos casos de crianças hermafroditas, ou pseudo-hermafroditas, onde a indecisão sexual e biológica são dificilmente toleradas pela sociedade, que precisa que este indivíduo seja classificado em alguma categoria de gênero. Neste caso, para o autor, os principais obstáculos à criatividade humana na construção de uma identidade de gênero não estão na dimensão biológica, mas nos esforços da sociedade em “caracterizar biologicamente as identidades de gênero” (p. 107), que se tornam uma limitação mais forte que a natureza em si.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho percorrido através das idéias dos três autores oferece insumos variados para pensar o conceito identidade. Para todos, a identidade é um processo construído ao longo do tempo, e composto de uma dimensão subjetiva que se relaciona e se articula a uma dimensão objetiva, dada. Cada autor apresenta, no entanto, o seu ponto de vista sobre como essa articulação ocorre.

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Jenkins descreve esse contato como sendo dialético, onde indivíduo e sociedade se influenciam mutuamente. A dialética tem por base o processo de socialização primária, que estabelece as primeiras influências sobre o indivíduo. Jenkins já chama de identidade o processo de socialização, que ele descreve como a parte mais robusta da di entidade. Warnier e Kaufmann insistem em uma distinção mais precisa. A socialização é uma influência social, do ambiente, e, portanto, uma das componentes da identidade. Mas não pode ser considerada como sinônimo de identidade. Jenkins é, no entanto, o autor que mais aprofunda o efeito da dimensão social sobre a construção subjetiva, seja nos momentos em que o indivíduo tenta gerenciar a impressão por ele gerada no meio social (Goffman), seja nos efeitos de categorização da sociedade sofridos pelo indivíduo (Rotulagem). A partir da herança marxista, ele ainda estabelece a diferença entre categorias e grupos, mostrando as diversas direções que podem assumir os sistemas classificatórios. A importância da dimensão social fica ainda mais presente quando Jenkins incorpora a noção de fronteira (Barth) entre indivíduo e coletividade, onde as identidades são sempre negociadas e revistas. Não basta para Jenkins que o individuo comunique sua identidade ao grupo social, mas que tenha sua escolha aceita e validada pelo grupo. Em comparação aos demais, Jenkins é o que mais profundamente elabora os aspectos de determinação social dentro do tema da identidade. Warnier, através de sua detalhada e complexa elaboração conceitual da síntese corporal e cultural material, apresenta a dimensão não-consciente da identidade, incorporada ao longo do tempo, aprendida e inserida em uma dinâmica corporal particular. E essa dimensão deve ser incluída como porta de análise para a construção do sujeito. Para Warnier, todo homem é composto de três dimensões: seu corpo, sua inserção social que educa e molda o indivíduo e as capacidades psicológicas. Ao mesmo tempo em que a combinação do social e do fisiológico pode oferecer um sem-número de possíveis formas de ser e agir, gerando identidades diferentes, é também nesta síntese corporal que o indivíduo encontra sua continuidade, algo de seu que permanece no tempo. Para Warnier, a dimensão psicológica desempenha um papel fundamental, funcionando como uma engrenagem entre as outras duas dimensões, viabilizando o funcionamento do conjunto. Kaufmann apresentará uma nova dinâmica da relação subjetividade / real, que pode enriquecer a visão de Warnier. A engrenagem descrita por Warnier realiza em Kaufmann o papel de arbitrar entre as diversas possibilidades oferecidas pelas dimensões material e social. O indivíduo apresentaria uma consciência autônoma, que continuamente critica seus atos, pensamentos, configurações corporais, gestos; abrindo assim espaço para novas possibilidades identitárias. Em todos os autores, a descrição da subjetividade abre brechas para um questionamento sobre o grau de liberdade e autonomia do sujeito na construção identitária. Até que ponto a configuração estabelecida foi criada pelo sujeito ou determinada pelo meio? Jenkins abre poucas brechas para a criação individual no espaço de construção da identidade. A percepção da dimensão psicológica como engrenagem da identidade, intermediando o contato do físico com o social, não é entendida por Jenkins, Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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no entanto, como causa do comportamento. Esta seria determinada seja pela educação, seja pelas limitações materiais do real. No entanto, o autor admite que possam existir momentos de criação, onde neste caso a dimensão psicológica seria a causadora do comportamento. Jenkins não desenvolve, no entanto, as circunstâncias que diferenciam um momento de criação de um outro momento qualquer de orientação do comportamento e da construção da identidade. Em Warnier, por outro lado, a liberdade fica mais claramente presente, sendo entendida como intrínseca ao processo de aprendizado. Cada sujeito, ao receber elementos do meio social e material, precisa adaptá-los às suas características individuais. É justamente neste processo de adaptação das técnicas corporais gerais aprendidas pelo seu corpo particular que vemos no indivíduo o processo de produção e diferenciação individual. Em Kaufmann, essa questão é mais claramente desenvolvida, quando o autor fala da crítica exercida pelo sujeito sobre suas ações. Para ele, o meio social oferece elementos ao indivíduo, aprendidos ao longo da socialização, de sua infância, de sua história de contato com o meio social e natural. No entanto, o real é cheio de contradições e complexidades. Para estabelecer pontos de diálogo, o indivíduo precisa arbitrar e escolher caminhos. E aí reside, para Kaufmann, o espaço para a criação e invenção da identidade. A questão da incorporação de aprendizados pelos indivíduos é freqüente nos três autores, ainda que seja, por razões óbvias, desenvolvida em mais profundidade por Warnier. Em Jenkins vemos uma referência a essa questão ao serem apresentadas as idéias de Mead. Para os dois autores, a identidade incorporada é uma referência de continuidade e similaridade com o coletivo. O corpo funcionaria para eles como uma tela sobre a qual a identidade pode ser desenhada. Por não ser esse seu projeto teórico, Jenkins desenvolve pouco essa questão, mas faz referência ao conceito de habitus de Bourdieu, descrito como uma marca presente no indivíduo, elaborada a partir de sua inserção social e sua identidade constituída, que afloraria em situações de interação. Kaufmann, apesar de apontar para um conceito de identidade mais inventivo e autônomo, descreve a consciência parcial dos sujeitos de todos os processos e mapas mentais que os guiam. Para ele, muitos gestos cotidianos se automatizam, entrando em programas, repetidos sem reflexão, pois seria impossível para cada indivíduo exercer crítica e reflexão a cada gesto ou ação. É em momentos de maior conflito (interno ou externo), ou situações novas e inesperadas, que a consciência viria ao indivíduo com mais força. Pelo que seu texto dá a entender, Kaufmann entende esse comportamento automático (uma espécie de programação do corpo), como sendo originário de uma acomodação anterior entre o legado social aprendido e a arbitragem do sujeito. No esquema a seguir, buscamos apresentar uma descrição do processo e construção da identidade, integrando a proposta dos três autores. As cores indicam os conceitos desenvolvidos mais profunda e detidamente por algum autor em particular, buscando orientar, no futuro, a utilização de cada projeto na descrição empírica de fenômenos estudados. Como já apresentado, para os três autores a identidade se constrói Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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a partir do encontro da dimensão objetiva com a dimensão subjetiva. Na primeira, temos três aspectos que a compõe: a educação e o aprendizado ao longo do tempo de regras sociais (e técnicas corporais específicas), a socialização primária e a trajetória de vida que decorre como apresentado por Jenkins, e, por fim, o caráter complexo e, por vezes, contraditório do real, tal como descrito por Kaufmann.

DIMENSÃO OBJETIVA

DIMENSÃO SUBJETIVA

APROVAÇÃO E NEGOCIAÇÃO SOCIAL

INDIVÍDUO EDUCAÇÃO

SOCIAL APRENDIDO E INTERNALIZADO

SOCIALIZAÇÃO PRIMÁRIA

HÁBITOS INCORPORADOS

CONTATO COM UM REAL (SOCIAL OU NATURAL) COMPLEXO

CORPO AUTOMATISMOS

REVISÃO SUBJETIVA DAS ESCOLHAS IDENTITÁRIAS

CAPACIDADES PSICOLÓGICAS (ENGRENAGEM / ÁRBITRO)

TRAJETÓRIA DE VIDA

JENKINS

CRÍTICA SUBJETIVA E ARBITRAGEM CONSTANTE

IDENTIDADE

REGRAS SOCIAIS

SÍNTESE CORPORAL

WARNIER

KAUFMANN

Essa dimensão objetiva se encontra com uma subjetividade que é composta de três elementos: um corpo ou síntese corporal, a própria dimensão social internalizada aparecendo dentro do sujeito sob a forma de vozes no fundo da cabeça e gestos automáticos do corpo, e as capacidades psicológicas que funcionam como engrenagem, fazendo interagir o corpo e o social. Essa estrutura é essencialmente definida por Warnier, que apresenta o esquema mais detalhado da constituição do indivíduo. Porém, a obra de Kaufmann também dá pistas e complementa a visão deste autor, ao descrever, por exemplo, a atuação de árbitro da subjetividade. Kaufmann fala também do social incorporado e de gestos automáticos, em resumo, da presença de um corpo que tem dentro de si a marca de seu aprendizado. Mesmo que não apresente em tanto detalhe a estrutura do indivíduo, o projeto de Kaufmann, neste aspecto, apresenta muitos pontos em comum com os modelos de Warnier. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 7-26 2008

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A interação da instância objetiva e subjetiva geram o que se pode chamar de identidade. Sua leitura, segundo os autores, pode ser percebida empiricamente em dois momentos. Primeiro, no processo de reflexão crítico que se passa no fundo da cabeça do indivíduo e busca arbitrar pela melhor decisão, tal como descreve detalhadamente Kaufmann no exemplo dos recém-casados. Segundo, como lembra Warnier, a identidade se estabelece em uma síntese e dinâmica corporais particulares, resultado do encontro das regras do meio e da acomodação a um corpo e a um indivíduo com características idiossincráticas. Avaliar os automatismos, os gestos incorporados e não-pensados, apontam para uma configuração particular do sujeito, e são fonte de informação sobre a identidade constituída. Por fim, uma vez constituída, a identidade é sempre revisada e posta à prova. Por um lado, seu projeto acabado é apresentado ao seu grupo social e, como nos apresenta Jenkins, recebe avaliação, críticas e novos insumos do meio. Mesmo se alimentada pela dimensão social, que traz elementos do meio, a identidade, para Jenkins, é sempre revalidada na fronteira entre o subjetivo e o coletivo, sendo aprovada pelo grupo. Por outro lado, a identidade é também objeto de crítica, em um eterno processo de reflexão que repensa as escolhas tomadas à luz de seus desconfortos subjetivos. É esta fase de revisão que faz da identidade um processo contínuo de revisão e reconstrução.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ABSTRACT Arnould e Thompson (2005) indicate the consumer identity projects as an important part of the consumer research initiatives, where the concept of identity plays a capital role. Nevertheless, the definition of identity presents a certain degree of variation since it is directly determined by the different perspectives of authors who adopt or define the concept. In that sense, the purpose of the present paper is to do an intellectual plunge into the perspective of three human science authors– Richard Jenkins, Jean-Pierre Warnier e JeanClaude Kaufmann – on identity, to acquire contrasts, details and limits of the concept. The socially-determined perspective of identity proposed by Jenkins is directly influenced by Goffman and Bourdieu. To this perspective is contrasted the particular view of Warnier, where the individual is a unique physical scheme, that will determine the identity pathways of each subject. Kaufmann offers a more individual and autonomous view of the identity concept. At last, the three perspectives are incorporated into a conceptual model, where points of dialogue are indicated, as well as the differences in the three analyzed perspectives on identity.

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STICKITTOTHEMANIOSIS6 : IDENTIDADE SOCIAL E RESISTÊNCIA REFLEXIVA EM UM MUNDO SATURADO POR CONSUMO E TRABALHO

Luciana Walther

RESUMO Nas sociedades contemporâneas ocidentais, saturadas tanto de consumo quanto de trabalho, a resistência reflexiva pode gerar posturas que visem a emancipar o indivíduo dessas duas esferas. Este ensaio tem como objetivo analisar o que acontece quando o indivíduo tenta escapar da inelutável influência do trabalho e do consumo. Se trabalho e consumo são peças-chave para a formação da identidade, posturas antitrabalho e anticonsumo resultariam em uma espécie de antiidentidade? Com base nos estudos de Ransome (2005), Kozinets (2002) e Holt (2002), possíveis respostas para essa questão são discutidas. Sem a pretensão de encontrar relações de causa e efeito entre posturas de resistência e a formação da identidade, este trabalho pode servir como ponto de partida para pesquisas empíricas sobre os movimentos anticonsumo e antitrabalho e suas implicações sociais. Palavras-chave: identidade, consumo, trabalho, resistência, reflexividade, anticonsumo, antitrabalho

1. RESISTIR PARA QUÊ? Marcando o início de uma época que se convencionou chamar de Modernidade, transformaram o mundo ocidental duas revoluções. A primeira, mais popularmente conhecida e amplamente difundida, mudou a maneira com que bens eram produzidos. Tratava-se da Revolução Industrial, da qual qualquer estudante secundarista já ouviu falar. Sua contrapartida menos famosa, porém de suma importância para o entendimento não

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Do filme “School of Rock” (2003), nome inventado pelo professor Dewey Finn, personagem interpretado por Jack Black, para a doença terminal que alunos fingem ter a fim de participar de um show de rock. Derivado da expressão “stick it to The Man”, significando resistência e desafio a autoridades opressoras. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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apenas da época em que vivemos, mas de quem somos, foi a Revolução do Consumo (McCracken, 1988). A primeira jamais poderia ter acontecido sem a segunda, e vice-versa. As dramáticas transformações sociais que caracterizaram a transição para a Modernidade foram estudadas em seus aspectos econômicos, legais e industriais, por grandes nomes, como Durkheim, Weber, Marx e Simmel. As transformações na esfera do consumo, sem as quais uma revolução industrial jamais teria feito sentido, foram, entretanto, negligenciadas até a segunda metade do século XX. Atualmente, as Ciências Sociais reconhecem e pesquisam a cultura do consumo, tanto no que diz respeito à sua importância histórica quanto às suas implicações contemporâneas, gerando estudos relevantes, como os de Baudrillard (1973) Campbell (1987), McCracken (1988, 2005), Featherstone (1995), Douglas e Isherwood (1996), entre outros. De um lado, a esfera da produção; do outro, a do consumo. Ambas regem e contextualizam a vida de todos os cidadãos modernos ocidentais. De acordo com Ransome (2005), “em uma sociedade saturada de trabalho, não há quem não tenha ocupação”. Do consumo, também não se pode escapar (Holt, 2002). Assim, de uma maneira ou de outra, indivíduos ocidentais estão inevitavelmente imersos nas duas esferas e são por elas constantemente influenciados, no que tange suas identidades. Este ensaio parte da articulação desenvolvida por Ransome (2005) entre trabalho, consumo e cultura, e tem como objetivo explorar seus possíveis desdobramentos, analisando o que acontece quando o indivíduo tenta, então, escapar à inelutável influência do trabalho e do consumo. Como ficam as identidades daqueles que se posicionam contra o trabalho ou contra o consumo, adotando uma postura de resistência (HOLT, 2002), típica da reflexividade pós-moderna (GIDDENS, 1990)? Se trabalho e consumo são peçaschave para a formação da identidade, posturas antitrabalho e anticonsumo resultariam em uma espécie de antiidentidade?

2. DA SOCIEDADE BASEADA EM TRABALHO À BASEADA EM CONSUMO

Durante muito tempo, pesquisou-se a esfera da produção em detrimento da do consumo. A supremacia das questões trabalhistas não existia apenas na literatura científica ou nos estudos da Sociologia moderna. Com a Revolução Industrial, as sociedades ocidentais se tornaram, de fato, sociedades baseadas no trabalho. Por isso, atividades ligadas à produção passam a dominar os indivíduos, determinando como vivem, como se relacionam com os outros, qual sua posição hierárquica na sociedade e como devem se comportar. Trabalho é visto como a fundação de todas as atividades humanas (Ransome, 2005). Mais recentemente, pesquisadores vêm elencando características do que se convencionou chamar de Pós-Modernidade. Ela é fragmentada (FIRAT e SHULTZ, 1997), Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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líquida (BAUMAN, 2000), reflexiva (GIDDENS, 1990), dominada pela hiper-realidade (BAUDRILLARD, 1981), está em fluxo (COVA, 1996), e tem como principal chave de análise a identidade social (JENKINS, 2004). Cogita-se então que, em tempos pós -modernos, as atividades ligadas ao consumo tenham se tornado, para o indivíduo, mais importantes que aquelas ligadas ao trabalho (RANSOME, 2005). Para Jenkins (2004), identidade constitui o estabelecimento sistemático das relações de similaridade e diferença que o indivíduo opera sobre si, em comparação a outros indivíduos e à coletividade. Ransome (2005) define identidade como padrões expressos em todos os comportamentos de um indivíduo, que periodicamente são reavaliados e ajustados. Pessoas expressam suas identidades tanto como objetos da percepção alheia, quanto como sujeitos de suas próprias vidas (RANSOME, 2005). A noção que cada indivíduo possui de si mesmo como ser único no mundo é desenvolvida e demonstrada nas várias atividades que ele desempenha em sua vida. Assim, em uma sociedade baseada no trabalho, será esta a atividade que moldará, prioritariamente, a percepção que os indivíduos têm de si mesmos e dos outros. No período moderno, praticava-se uma definição simplista de identidade social. Identidade era determinada por classe social, e classe social, por ocupação. Fazia-se uma fácil leitura da identidade de uma pessoa, apenas ao se conhecer sua ocupação profissional, que permitia encaixá-la em uma hierarquia de classes, correspondente, na verdade, a uma tacitamente convencionada hierarquia dos empregos. Era muito forte a conexão entre ocupação e posição social; a partir dela sabia-se o que se esperar de alguém. Hoje, o conceito de identidade, como postulado sociológico, inclui muito mais que apenas classe ou ocupação profissional. O trabalho exercido por um indivíduo deve ser equacionado com diversas outras variáveis, como gênero, etnia (RANSOME, 2005), cidadania, filiação religiosa e desempenho individual (Barbosa e Campbell, 2006) a fim de se especular sobre sua identidade e de se formular expectativas quanto a seu comportamento. As identidades pós-modernas são multifacetadas, estão em fluxo e possuem inúmeras fontes, entre elas, o consumo (RANSOME, 2005). Ransome (2005) reconhece a transição ocorrida da sociedade baseada no trabalho para a sociedade baseada no consumo, com o vertiginoso crescimento, nas últimas décadas, da importância deste segundo domínio. Porém, defende que a esfera do trabalho permanece relevante na vida do indivíduo, uma vez que a atividade produtiva remunerada é necessária para a posterior atividade de consumo. Uma das principais diferenças entre a sociedade baseada em trabalho e a sociedade baseada em consumo é que, na primeira, pessoas percebem a si mesmas como produtos de processos e estruturas que já estavam em funcionamento antes de seu nascimento. Seu futuro é, portanto, determinado por sua origem. Já na sociedade baseada em consumo, o indivíduo se percebe como instigador de suas próprias ações. Consumir significa escolher, ao passo que muitos trabalhos nos são impostos, sem alternativas. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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Autonomia, escolha e independência são características da sociedade de consumo. Nela, portanto, é responsabilidade do indivíduo forjar sua própria identidade e reavaliá-la periodicamente, adaptando-a às experiências passadas e às novas situações emergentes, em uma constante e reflexiva reformulação do eu (GIDDENS, 1990).

3. A ÉTICA DO TRABALHO

De acordo com Weber (1904), o capitalismo encontrou terreno fértil para se desenvolver dentro da ética protestante. É a lógica protestante vigente na Europa a partir do século XVI que origina a lógica do trabalho. Participar da esfera da produção possibilitava o acúmulo de riqueza para futuro investimento. Weber vinculava, assim, o nascimento do capitalismo à doutrina calvinista da predestinação e à conseqüente interpretação do êxito material como sinal da graça divina. Em dado momento, o trabalho se descola da religião, mas a lógica permanece. Já em sociedades fundamentadas na doutrina católica, trabalho é considerado um corretivo para o ócio, moralmente indesejável (WOLFE, 1997). Para Bauman (2002), a teoria weberiana vingou na Europa. Nos Estados Unidos, a ética do trabalho se instala de maneira inteiramente secular, baseada no “dinheiro pelo dinheiro”. É a ética da meritocracia. Para esse autor, a modernidade norte-americana era sólida, pesada, totalitária, avessa às idiossincrasias, marcada pelo fordismo, que reduzia as atividades humanas a rotinas simples e pré-designadas. Como apontado por Karl Marx em O Capital (1893/2004), as idéias das classes dominantes tendem a ser as idéias dominantes. O capitalismo tem como força motriz a exploração e a alienação da força de trabalho. Assim, por pelo menos 200 anos, dirigentes de empresas capitalistas dominaram o mundo (Bauman, 2002), ditando categorias e, por conseqüência, identidades. Trabalho é visto não apenas como fonte de segurança material, mas como fonte de identidade. Ransome (2005), ao estudar as sociedades baseadas em trabalho, tenta entender por que, durante a modernidade capitalista, o principal objetivo do indivíduo foi gerar renda financeira. Para isso, o autor analisa medidas de intensidade de trabalho, isto é, quantas pessoas estão envolvidas em trabalho remunerado e durante quantas horas por dia; analisa também a centralidade do trabalho, isto é, o grau em que indivíduos orientam suas vidas e expectativas em torno de atividades trabalhistas; e, por fim, analisa a ética produtivista do trabalho, isto é, a ideologia de que trabalhando constrói-se o mundo.

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4. A ÉTICA DO CONSUM O

A recompensa pelo trabalho vem em médio ou longo prazo. Já a recompensa pelo consumo, esta é freqüentemente imediata. A ética pós-moderna do consumo celebra a excitação gerada pelas aquisições e rejeita a sobriedade da gratificação adiada (RANSOME, 2005). A transição da sociedade de trabalho para a de consumo pode ser explicada, em parte, pela teoria da afluência. Define-se afluência como o pronto acesso a um excesso de renda. Para Ransome, a capacidade e a expectativa de se gastar livremente aumentam o alcance e a variedade das experiências de consumo, injetando-as com a possibilidade de escolha. Em oposição ao papel de trabalhador/seguidor, o consumidor passa a exercer sua autonomia e poder seletivo, ao eleger determinados bens e recusar outros. Se aceitarmos que poder de escolha e autonomia são traços desejáveis para a vida humana, entende-se por que o consumo passa a ter importância superior à do trabalho. Afluência passa a ser uma força possibilitadora para o desenvolvimento social. Para consumir, entretanto, é necessário ganhar dinheiro suficiente para a manutenção do nível de consumo almejado. Assim, a disponibilidade de renda excedente pode reforçar a ética do trabalho, e motivar pessoas a trabalharem mais e não menos. Apesar do aumento da eficiência produtiva durante o século XX, horas de trabalho humano também aumentaram, ao invés de diminuir, como previam alguns. Assim, entende-se a ética do consumo como o desejo inelutável pela participação na troca e construção simbólica da experiência da posse de bens. Explica-se a predominância desta ética sobre a produtivista. Porém, não se pode constatar ainda o fim do trabalho, nem sequer a proximidade do fim. 5. STICKING IT TO THE MAN 5.1 Anticonsumo Escolhas de consumo são inteligíveis porque fazem parte de um sistema de objetos (BAUDRILLARD, 1973) ou constelação de produtos (MCCRACKEN, 1988), cujos significados hierarquizados formam um repertório compartilhado por todos os membros de um grupo ou sociedade. Consumo é, portanto, uma atividade coletiva, tão socialmente construída quanto trabalho. O aspecto coletivo do consumo envolve desde a construção social de significados, comunicados pelo consumidor por meio de suas aquisições, até a experiência de consumo comunitário, como, por exemplo, fazer compras em um shopping ou ir ao cinema. O significado construído socialmente durante o consumo advém da resposta que recebemos

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de nossos interlocutores. Além disso, o convívio social constitui não apenas um subproduto do consumo, mas é, efetivamente, parte de sua utilidade. Logo, bens são usados para garantir nosso sucesso no desempenho de papéis sociais; sucesso que só é possível quando utilizamos tais bens na configuração correta (MCCRACKEN, 1988). Se, com nossos atos de consumo, não usarmos corretamente o repertório compartilhado pela sociedade na qual estamos inseridos, nosso desempenho social pode ficar prejudicado. Se a mensagem que enviarmos não estiver em sintonia com o sistema de leitura do receptor, além de não sermos compreendidos, podemos ser excluídos ou expulsos do grupo (RANSOME, 2005). A menos que seja este nosso objetivo: contrariar o sistema. O consumo de massa, almejado pelos indivíduos e propagado pelos meios de produção durante a modernidade, foi gradualmente perdendo seu apelo. O surgimento de variados tipos de contracultura nas décadas de 60 e 70 do século XX ilustra o início de uma resistência à conformidade das massas. Surge a customização, por meio da qual o consumidor deseja mostrar ser diferente. O consumo complexo permite ao indivíduo, ao expressar sua identidade, entrar em sintonia e alinhamento com o outro e, simultaneamente, se diferenciar. O paradoxo do parecido-porém-diferente (RANSOME, 2005), isto é, o equilíbrio entre o pertencer e o distinguir-se, estimula o desejo de consumir, ao passo que exige crescente destreza e conhecimento das regras do jogo. Opondo-se à visão moderna que se tinha dos meios de produção como autoridades culturais, preconizada principalmente por Horkheimer e Adorno (1944/1996), surge a idéia do consumidor soberano. A soberania de consumo pós-moderna consiste na busca pela diferenciação por meio de marcas (HOLT, 2002). A exacerbação dessa autonomia de escolha acabou por originar, mais recentemente, posturas reflexivas de resistência e idéias de anticonsumo. Produtores culturais, como escritores e artistas plásticos, tiveram papel fundamental tanto na instauração da soberania do consumidor quanto na sua extrapolação. Livros como Fast Food Nation, de Eric Schlosser (2001), e One-Dimensional Man, de Herbert Marcuse (1964), contribuíram para visões emancipatórias (HOLT, 2002) tanto do consumidor, como veremos a seguir, quanto do trabalhador, como veremos mais adiante. Criticando ferozmente a sociedade de consumo, a artista plástica Bárbara Kruger construiu sua carreira combinando fotomontagens e frases de efeito sobre cultura de consumo, poder econômico e identidade social. Suas mensagens vão ao encontro das pesquisas acadêmicas (CAMPBELL, 2006) que colocam o consumo como componentechave da identidade social contemporânea. Com trabalhos como “I Shop Therefore I Am” e “Buy Me, I´ll Change Your Life”, Kruger pretende impactar seus expectadores, tornando-os conscientes do poder do mercado, do branding e da comodificação (SCHROEDER, 2005). Consumidores conscientes, após reflexão instigada por textos culturais, podem se tornar resistentes. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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Barbara Kruger, Sem Título (I shop therefore I am), 1987

Barbara Kruger, Sem Título (Buy me I´ll change your life), 1984

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Novas formas de contracultura têm surgido nas últimas décadas, a fim de antagonizar esforços de marketing de empresas globais, alegando que estas são responsáveis pela criação e disseminação de uma nova cultura de consumo socialmente destrutiva. O livro da jornalista canadense Naomi Klein (2001), traduzido no Brasil como “Sem Logo”, expõe práticas prejudiciais ao meio-ambiente e ao ser humano, empregadas por marcas como Nike, Shell e McDonald´s. A revista AdBusters, editada pelo ativista Kalle Lasn (1999), satiriza o marketing e propõe diversas ações anticonsumo, como o “Dia de Não Comprar Nada” (Buy Nothing Day). Movimentos antibranding, antiglobalização e antiestabelecimento ganharam força considerável na Pós-Modernidade e não devem ser subestimados. Kozinets (2002) estudou, por meio de uma pesquisa etnográfica, o evento anual conhecido como Burning Man, no qual, durante uma semana, cerca de 25.000 pessoas, pertencentes à elite cultural norte-americana, retomam o controle do processo criativo e produtivo, expulsando de suas vidas os estímulos provenientes da produção, bem como ímpetos de consumo. Ao isolar-se tanto da esfera do trabalho quanto da esfera do consumo, os freqüentadores do Burning Man conseguem livrar suas identidades de tais influências? Em seu artigo, pertinentemente intitulado “Can Consumers Escape the Market?”, Kozinets conclui que, apesar da gigantesca quantidade de consumo que o evento de fato gera, quando visto como festival (sob a ótica antropológica), o Burning Man preenche vários requisitos necessários à emancipação do consumidor. O festival tem o poder ritualístico de temporariamente inverter e negar a ordem estabelecida. Assim, ao negar os domínios do trabalho e do consumo, os freqüentadores do Burning Man não estão libertando suas identidades dos moldes provenientes daquelas esferas. A própria necessidade de se diferenciar de outros consumidores está inexoravelmente ligada ao reconhecimento da existência da sociedade de consumo que se pretende negar. Para se distinguirem, eles precisam usar o mesmo jogo de sinais e a mesma lógica social (BAUDRILLARD, 1968/1973) de seus antagonistas. Segundo Kozinets, o que faz do Burning Man uma experiência emancipatória não é sua política antivendas, mas sim suas regras, que proíbem os meros expectadores, fazendo de cada indivíduo ali presente um participante ativo, e que preconizam a expressão radical das personalidades. O discurso antimercado cria um ethos performático que urge consumidores a se libertarem das estruturas às quais estão usualmente presos. Liberdade de expressão fica, portanto, ligada a um ideal comunitário. O resultado é o reapoderamento coletivo das identidades de consumo. O Burning Man, portanto, não tem a ver com grandes mudanças sociais, e sim com pequenas transformações nas identidades, ocorrendo coletiva e simultaneamente (KOZINETS, 2002). Holt (2002) estudou duas categorias de consumo, que chamou de Resistência Reflexiva e Resistência Criativa. Os con sumidores que se encaixam numa categoria ou na outra adotam, racionalmente, posturas anticonsumo. Na primeira, o consumidor reflexivamente resistente tenta filtrar e eliminar de sua vida a influência do marketing e da propaganda. Na segunda, o consumidor criativamente resistente modifica radicalmente os Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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bens que adquire, transformando-se em um produtor cultural. As duas posturas são decorrentes da extrapolação da soberania do consumidor, que, revoltado com o sistema, tenta se desviar dele. Implementando estudos de caso individuais, Holt concluiu que os dois tipos de resistência não eliminam as influências da esfera do consumo sobre a criação de identidades. Ao contrário. Para ser reflexiva ou criativamente resistente, há que se conhecer os detalhes da oferta, entendendo profundamente as regras do jogo, a fim de manipulá-las. Paradoxalmente, o consumidor que pretende filtrar os estímulos do marketing, eliminando a propaganda de sua vida, tem sua identidade drasticamente moldada pela esfera do consumo, uma vez que só se permite adquirir determinadas marcas, e após minuciosa pesquisa. É um profundo conhecedor do mercado. O segundo tipo de consumidor resistente, o produtor cultural, também se especializa naqueles objetos com os quais pretende criar suas bricolagens. Ele não aceita o que o mercado lhe dita, e reinventa marcas e produtos, a fim de redefinir a si mesmo. Consumo, ao contrário do que alegam esses consumidores resistentes, é parte fundamental da formação de suas identidades.

5.2

Antitrabalho

Como mencionado anteriormente, textos culturais ajudam a fomentar posturas anticonsumo e antitrabalho. Já vimos que a formação da identidade continua sendo afetada pelo consumo, mesmo para os indivíduos que reflexivamente se opõem a ele. E aqueles que, na sociedade Pós-Moderna, tentam se opor à esfera do trabalho? A popularização de autores como Domenico De Masi, cujo best-seller O Ócio Criativo vendeu mais de 40.000 exemplares no Brasil em seu primeiro ano de lançamento, ampliou em muito o alcance de idéias existentes há mais de um século. Bertrand Russell, em seu ensaio de 1932, O Elogio ao Ócio, chama a Inglaterra de Estado Escravo, tendo em vista a maneira como os ingleses, outrora amantes da liberdade, haviam se transformado em servos do capitalismo. Paul Lafargue, em O Direito ao Ócio, obra publicada em 1907, em contraponto à ética protestante, lembra do exemplo dado pelo próprio Deus, que, após trabalhar durante 6 dias, decide descansar pelo resto da eternidade. O escritor contemporâneo inglês Will Self, em entrevista para a revista Idler, alega que “esse tabu cultural contra o pensamento... existe na Inglaterra por causa da ética protestante do trabalho, que demanda que as pessoas não permaneçam ociosas, isto é, demanda que não pensem”. Muitos são os textos culturais que atacam a lógica do trabalho, originários tanto em sociedades baseadas na produção, quanto em sociedades baseadas no consumo. Mais recentemente, o artista plástico (também britânico) David Shrigley, entre os muitos aspectos do cotidiano abordados em seus desconcertantes desenhos, vem satirizando mordazmente a esfera do trabalho. Em seu trabalho “Sacked from Sainsburys” (1998), utiliza o ditado que Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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em português poderia ser traduzido como “cabeça vazia, oficina do diabo” para criar o personagem Mãos Ociosas, que acaba punido mais severamente que o próprio Diabo, ao serem ambos flagrados pela polícia. De acordo com Holt (2002), “produtores culturais – artistas, jornalistas, acadêmicos, cineastas, músicos – encontram nessas tensões (entre a contracultura e as empresas) terreno fértil para a expressão criativa. Seus produtos culturais acentuam essas tensões, ao interpretá-las e torná-las mais viscerais para seus expectadores”. Dessa maneira, artistas como Barbara Kruger e David Shrigley contribuem para a difusão das posturas anticonsumo e antitrabalho que lhes servem como tema. Se a formação da identidade é influenciada pelas múltiplas atividades desempenhadas pelo indivíduo, podendo-se encontrar prioridade tanto nas atividades de trabalho quanto nas de consumo, o que acontece à identidade daqueles que tentam fugir da centralidade das atividades trabalhistas? Agora, munidos de novas pistas, repetimos a pergunta formulada na introdução deste ensaio: posturas anticonsumo e antitrabalho gerariam uma espécie de antiidentidade? Para Ransome, o conceito de antiidentidade pode ser aplicado quando um indivíduo, cuja vida era centrada no trabalho, de repente se vê desempregado. Antiidentidade resulta, portanto, de uma perda involuntária dos referenciais simbólicos que contribuíam prioritariamente para a percepção de si mesmo. É o caso dos aposentados, que, em diversas pesquisas, declaram vivenciar uma sensação de perda de identidade, associada à perda da atividade ocupacional (PEIXOTO, 2004; RANSOME, 2005). Ransome exemplifica ainda que “ser um minerador desempregado em uma comunidade onde a atividade mineradora deixou de ser praticada constitui o teste mais severo, não apenas de perda de identidade ocupacional, mas de identidade como um todo”.

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David Shrigley, Down the Mines Morale is Low, 2002 Imagem de THE BOOK OF SHRIGLEY (c) 2005 por David Shrigley. Usada com permissão de Chronicle Books, São Francisco. Visite ChronicleBooks.com

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David Shrigley, Sacked from Sainsburys, 1998 Imagem de THE BOOK OF SHRIGLEY (c) 2005 por David Shrigley. Usada com permissão de Chronicle Books, São Francisco. Visite ChronicleBooks.com

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David Shrigley, From Now On, 2004 Imagem de THE BOOK OF SHRIGLEY (c) 2005 por David Shrigley. Usada com permissão de Chronicle Books, São Francisco. Visite ChronicleBooks.com

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Já vimos que, em uma sociedade baseada na produção, o indivíduo que é forçosamente privado de sua atividade ocupacional experimenta a perda de sua identidade. E aquele que opta voluntariamente por se excluir do sistema? Quais códigos tomarão o lugar do trabalho na construção de sua identidade? No parágrafo intitulado “Escapando das Identidades Ocupacionais”, Ransome sugere que as atividades de consumo possam fornecer um escape ao trabalho, configurando um tipo de antitrabalho. Admite, porém, que elas não fornecem uma alternativa ao trabalho em si. Se a atividade remunerada continua necessária para a existência do consumo, como este pode existir sem o trabalho? Não é o propósito deste ensaio estudar as alternativas econômicas que poderiam viabilizar a existência prática de uma vida sem trabalho. A idéia aqui é entender como a postura antitrabalho tem impacto na criação da identidade. A hipótese formulada por Ransome de se substituir o trabalho pelo consumo, como fonte prioritária de estímulos formadores da identidade, não explica como o consumo pode continuar a existir, se ganhos pecuniários cessarem. Porém, nos fornece uma pista quanto à continuidade da formação da identidade, se o indivíduo decidir, deliberadamente, parar de trabalhar. Como a identidade pós-moderna é multifacetada e está em constante reavaliação, para que ela não se perca ao eliminarmos uma das atividades que contribuem para sua composição, é necessário e, na sociedade contemporânea, viável que essa atividade seja imediatamente substituída por outra. Ransome propôs a substituição pelo consumo. Mas podemos, na verdade, substituir o trabalho por diversas outras fontes moldadoras da identidade, visto que vivemos em uma época de múltiplas possibilidades. Até em uma sociedade baseada no consumo, são as atividades de trabalho que ocupam a maior parte do tempo do indivíduo (RANSOME, 2005). Mesmo que este confira à esfera do consumo maior importância que à do trabalho, é muito provável que, a fim de consumir, tenha que passar muitas horas trabalhando. Se um indivíduo consegue se liberar definitivamente das atividades trabalhistas, lhe sobra tempo ao longo do dia e lhe faltam fontes para a formação e manutenção de sua identidade. Na prática, esse tempo deve ser preenchido, então, com outras atividades que tenham impacto na sua visão de si e do mundo e durante as quais ele possa expressar essa visão.

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6. DISCUSSÃO FINAL

Na sociedade pós-moderna, saturada tanto de consumo quanto de trabalho, a resistência reflexiva pode gerar posturas que visem a emancipar o indivíduo dessas duas esferas. A adoção deliberada de posturas anticonsumo ou antitrabalho tem impactos diversos sobre a formação da identidade social. Nenhuma das duas posturas, entretanto, irá acarretar a perda ou o enfraquecimento da identidade. De acordo com Ransome, a criação de uma antiidentidade ocorre por conta da perda involuntária do principal elemento formador de nossa visão de nós mesmos, e não devido a um abandono proposital. A partir dos estudos de Kozinets (2002) e Holt (2002) aqui mencionados, constatamos que, se optarmos por abandonar propositalmente a esfera do consumo, nossa identidade não se libertará dela. Ao contrário, para praticar o anticonsumo, devemos compreender as minúcias do mundo do consumo, a fim de manipular suas regras e tentar dele escapar. Isso faz com que nossa identidade recorra ainda mais aos códigos compartilhados de consumo, e não menos. A postura antitrabalho, por sua vez, impacta a formação da identidade de outra maneira. Ao abandonar propositalmente a esfera da produção, o indivíduo passa a dispor de enorme tempo livre e surge, então, uma lacuna a preencher não apenas no seu dia, mas no conjunto de variáveis que operam para a construção de sua identidade. Tendo se retirado deliberadamente do mundo do trabalho, o indivíduo, muito provavelmente, não encontrará dificuldade em preencher essas duas lacunas. Visto que novas atividades serão adotadas, novas facetas poderão surgir na identidade desse indivíduo. Sem a pretensão de encontrar relações de causa e efeito entre posturas de resistência e a formação da identidade, esperamos que este ensaio tenha contribuído para estimular novas reflexões dentro do campo em que se insere, servindo como ponto de partida para pesquisas empíricas sobre os movimentos anticonsumo e antitrabalho e suas implicações sociais. 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. O estudo do consumo nas ciências sociais contemporâneas. In: ______. Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2006. BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973. ______. Simulacros e simulação. Lisboa: Espelho d´Água, 1981. (Antopos, 14). BAUMAN, Zygmunt. Liquid modernity. Cambridge: Polity, 2000. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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ABSTRACT In contemporary western societies, which are saturated with work and consumption, reflexive resistance may generate attempts to emancipate the individual from both spheres. This essay analyzes what happens when one tries to escape the inevitable influence of work and consumption. If work and consumption are key elements for building one’s identity, will anti-work and anti-consumption postures result in some sort of anti-identity? Based on research by Ransome (2005), Kozinets (2002) and Holt (2002), possible answers for this issue are discussed. With no intention of finding cause and effect relations between resistance and identity, this study may Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 27-44 2008

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stimulate debate and trigger further empirical research about anti-consumption and anti-work movements and their social implications.

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IDENTIDADES CONTEMPORÂNEAS: A DINÂMICA TRABALHO E CONSUMO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE Renata Cavalcanti Cid Rodrigues

RESUMO Embora a identidade não seja um tema novo nas ciências sociais e humanas, a partir da década de 90, ela emerge com grande destaque nas discussões teóricas dessas áreas. A sua atual relevância deve-se a uma importante transformação nos modos de construção da identidade, especialmente notados após as décadas de 70 e 80. A antiga identidade, unificada e estável, já não existe mais. A identidade contemporânea, advogam alguns, é mais fragmentada e múltipla, e o processo de identificação mais instável e problemático. Nas raízes dessas transformações, encontram-se as atualizações recentes do capitalismo, em especial aquelas observadas após as décadas de 70 e 80. Atualizações essas que parecem colocar o consumo como a dimensão central na organização social, em detrimento do trabalho. Ainda sem consenso na academia sobre esse novo tempo e sobre a atual centralidade do consumo, há uma relativa concordância que a identidade fixa, definida a priori pela classe social ou pela tradição, já não é mais possível. Em seu lugar, emerge o flexível e a possibilidade de escolha entre inúmeras alternativas. O objetivo do presente estudo é apresentar essa problemática atual, suas questões e controvérsias. Entender o argumento de alguns autores, e do Ransome (2005) em particular, para a inversão da centralidade trabalho e consumo na modernidade tardia e seus efeitos na construção da identidade do indivíduo pós-moderno. Pretende-se, assim, apresentar um entendimento inicial sobre a construção das identidades pós-modernas e sobre a forma como as dimensões trabalho e consumo se relacionam nessa produção. Palavras-chave: identidade, consumo, trabalho, modernidade

1. INTRODUÇÃO É relativamente comum encontrarmos na literatura relacionada às ciências sociais e humanas uma referência a um novo tempo, um novo socius, que emerge a partir das décadas de 70 e 80, trazendo diferentes discursos e práticas sociais, sem, no entanto, Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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modificar a sua forma econômica dominante: o capitalismo (RANSOME, 1999; HARVEY, 2000; BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005). A essa nova época que se anuncia muitos chamam de pós-modernidade, mas nomes como modernidade líquida (BAUMAN, 2001), modernidade tardia (HALL, 2005) ou pós-industrialismo, entre outros, também são utilizados (RANSOME, 1999). Embora não haja consenso entre os teóricos sociais sobre esse fenômeno atual, se ele de fato representa uma ruptura, uma descontinuidade, ou se é apenas uma atualização do antigo capitalismo (CAMPBELL, 2006; SLATER, 2002), uma modificação comum e contínua da modernidade, algumas questões passaram a ser problematizadas com maior intensidade a partir dessa época: a centralidade do consumo e o conseqüente decréscimo do trabalho como fonte de significação pessoal (RANSOME, 2005; BAUMAN, 2001), e as mudanças nos modos de construção da identidade (JENKINS, 2005; HALL, 2005; DU GAY 1996). De fato, apesar da identidade não ser um tema novo na sociologia (JENKINS, 2005), ela parece ganhar grande relevo nas discussões teóricas atuais (JENKINS, 2005; HALL, 2005; DU GAY 1996). A sua relevância deve-se justamente a essa mudança na forma de organização social que parece ter colocado a antiga identidade, “unificada e estável” (HALL, 2005), em crise. Agora, argumentam alguns teóricos, a identidade se tornou fragmentada, múltipla (HALL, 2005), e o processo de identificação mais “provisório, variável e problemático” (HALL, 2005, p. 12). As incertezas provocadas por “reorientações no trabalho e na família, nas estruturas de classes e mobilidade, na inovação médica e tecnológica e na redefinição de fronteiras políticas” (JENKINS, 2005, p.11), deixaram mais flexível o que antes era rígido. Abriram-se múltiplas possibilidades ao que antes era dado, fixo. Não reconhecemos mais a identidade do outro pela sua classe ou pela tradição (SLATER, 2002), nem estamos mais confinados à antiga determinação dada por essas. Como nos diz Slater (2002, p. 86):

“No lugar de uma ordem segura de valores e posições sociais, há uma variedade e fluidez atordoantes de valores, papéis, autoridades, recursos simbólicos e interações sociais a partir dos quais a identidade social de um indivíduo deve ser produzida e mantida”.

Por trás dessa modificação está a possibilidade de escolha (SLATER, 2002; CAMPBELL, 2006; BAUMAN, 2005): “Cada vez menos ancorada na tradição, na religião, no direito, etc., a identidade só pode nascer da escolha” (SLATER, 2002, p. 86). Hoje podemos escolher o que queremos ser e como queremos ser. Somos autônomos, livres (BAUMAN, 2001). Das inúmeras opções que emergem forjando novos possíveis, a única não disponível para nós é não sermos autônomos. A antiga segurança da identidade dada não é mais possível, ela se esvaiu e agora é apenas mais uma escolha diante de infinitas possibilidades (BAUMAN, 2001). Hoje, já “não depende de nós que tudo dependa de nós” (SERRES apud VAZ, 1997, p. 241). No entanto, a possibilidade de escolha atual, a multiplicidade de opções e a grande fluidez da identidade contemporânea advogada por alguns, ainda são frutos de muitos debates e discussões acadêmicas (JENKINS, 2005 e CAMPBELL, 2006), carecendo de uma investigação mais profunda. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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O objetivo do presente estudo é apresentar essa problemática atual, suas questões e controvérsias, e entender o argumento de alguns autores, do Ransome (2005) em particular, para a inversão da centralidade trabalho e consumo na modernidade tardia e seus efeitos na construção da identidade do indivíduo pós-moderno. Pretende-se, assim, apresentar um entendimento inicial sobre a construção das identidades pós-modernas e sobre a forma como as dimensões trabalho e consumo se relacionam nessa produção. Para cumprir o objetivo proposto, o estudo começa com uma breve explanação sobre a identidade e o processo de identificação, para depois analisar alguns argumentos que advogam a favor de uma mudança importante na relação consumo e trabalho na construção das identidades contemporâneas. Esse trabalho não tem o objetivo de apresentar uma revisão de literatura na sua forma mais completa. O objetivo é apenas explorar alguns aspectos da literatura sobre a identidade e introduzir uma revisão sobre as transformações sociais que fizeram o consumo emergir como uma dimensão mais central na organização social atual.

2. IDENTIDADE

A identidade aparece na literatura conceituada de diversas formas, por diversos autores (ALVESSON, 2002). Conceitos esses nem sempre congruentes, em especial quando a questão é a sua produção ou a construção social da identidade (HALL, 2005; RANSOME, 2005). Em termos gerais, pode-se definir a identidade como a compreensão de um indivíduo sobre quem ele é e sobre quem as outras pessoas à sua volta são (JENKINS, 2005). Ela permite nos incluir em um grupo e nos distanciar de outros. É o nosso senso individual ou de grupo que permite aos “indivíduos e coletividades se diferenciarem em suas relações sociais de outros indivíduos e coletividades” (JENKINS, 2005, p. 5), assumindo, nesse sentido, tanto uma dimensão pessoal quanto coletiva (RANSOME, 2005). Na base da formação da identidade é, no entanto, que convivem as maiores controvérsias teóricas. Controvérsias formadas e atualizadas na história, oriundas de diferentes correntes de pensamento. HALL (2005) nos apresenta três principais concepções de identidade: a do sujeito do iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno. Para a primeira linha de pensamento, o sujeito do iluminismo, o indivíduo era “totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação” (HALL, 2005, p.10). Era centrado em volta de um núcleo interior que nascia com ele e, embora se desenvolvesse com a pessoa, permanecia “essencialmente o mesmo” ao longo de toda a vida do indivíduo (HALL, 2005, p.11). Esse núcleo era a sua identidade (HALL, 2005). A abordagem sociológica retira o caráter puramente natural da identidade, seu caráter inato. Nessa perspectiva a identidade é produzida nas relações sociais, “não é uma coisa, algo que está lá a priori”, ela precisa antes ser estabelecida (JENKINS, 2005, p. 4). Estabelecida não apenas nos processos iniciais de socialização (JENKINS, 2005), onde os Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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adultos significantes passam para a criança os valores, sentidos e símbolos da cultura a que pertencem (HALL, 2005), mas também pela contínua interação com os outros ao longo da vida (JENKINS, 2005). Segundo Hall (2005), um dos principais grupos teóricos a defender essa perspectiva interativa da identidade na sociologia são os interacionistas simbólicos. Para esse grupo, o indivíduo “ainda tem um núcleo, uma essência interior”, mas esta é formada e reformada em um “diálogo contínuo” com a sociedade e com as identidades oferecidas por essa última aos indivíduos que a compõem (HALL, 2005, p. 11). A abordagem sociológica é a adotada por JENKINS (2005) conforme ele próprio anuncia (JENKINS, 2005, p. 3). Para ele a identidade é formada através de um processo dinâmico, ela é trabalhada e construída socialmente através da interação e da institucionalização. “É o estabelecimento sistemático de significação entre indivíduos, entre coletividades, e entre indivíduos e coletividades, das diferenças e similaridades” (JENKINS, 2005, p.5). Jenkins (2005) acentua a identidade como um processo de ser e de tornar-se, um processo eminentemente social, lembrando que nem a morte é capaz de congelar um estado final da identidade, já que ela pode sempre ser redefinida e modificada pela sociedade, como é o caso da identidade de santo ou de mártir. Para Jenkins (2005) toda a identidade é social: “todas as identidades humanas são por definição identidades sociais” (JENKINS, 2005, p. 4), pois são formadas nas relações, na interação, e através da utilização e incorporação de significados que são sociais. Nesse processo internalizamos significados e valores sociais e expressamos as identidades culturais que nos são disponibilizadas (HALL, 2005). Embora Jenkins (2005) reconheça que haja algum grau de reflexividade na identificação, a identidade para ele é formada na prática, pela ação. Nesse sentido, ele considera a definição dada por Giddens (2002) para a auto-identidade - uma narrativa organizada e reflexiva - um pouco “exagerada”, talvez mais adequada a uma elite intelectual do ocidente, parecendo-lhe pouco provável a reflexão contínua por parte de todos os membros da sociedade (JENKINS, 2005, p.12). Apesar da crítica mencionada, o autor reconhece explicitamente a influência de Giddens (assim como de outros autores como Mead, Barth e Goffman) na obra que desenvolveu. Outro ponto trazido por Jenkins (2005) refere-se à separação entre identidade coletiva e individual. Para ele, essas instâncias estão intimamente relacionadas e devem ser pensadas em conjunto. O que as diferencia é apenas a ênfase dada no processo de identificação: enquanto a identidade individual enfatiza a diferença, a identidade coletiva enfatiza a similaridade. Ambas emergem, no entanto, do mesmo processo social: “da interação entre similaridades e diferenças” (JENKINS, 2005, p. 16). Na visão do autor, a identidade é a síntese entre o mundo interno e externo, entre as esferas pessoal e pública, não fazendo sentido a separação dessas instâncias no processo de identificação. Para explicar melhor esse ponto, Jenkins (2005), influenciado por Goffman e Giddens como ele próprio explicita (JENKINS, 2005, p.17), sugere que a sociedade, ou o mundo humano como prefere chamar, construído e experimentado pelos homens, pode ser Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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melhor entendido por três ordens distintas: a ordem individual - o mundo humano internalizado pelo indivíduo - a ordem da interação - o mundo constituído nas relações entre os indivíduos - e a ordem institucional - o mundo de padrões estabelecidos e organizados. A separação proposta, no entanto, é apenas uma forma de olhar um “fenômeno que é complexo, mas unificado” (JENKINS, 2005, p. 17). “É uma forma de olhar o mundo por diferentes pontos de vista”, analisar a mesma realidade com diferente foco de atenção (JENKINS, 2005, p. 18). “É um esquema classificatório para compreender o mundo humano, e nada mais que isso” (JENKINS, 2005, p. 18). Assim, a separação é apenas didática. “As três ordens mencionadas ocorrem simultaneamente, no mesmo espaço físico e subjetivo” (JENKINS, 2005, p. 18). A ordem individual nos direciona o olhar para a identidade internalizada, tal como é experimentada pelo indivíduo. Cabe ressaltar, no entanto, que embora se trate de uma esfera mais pessoal, essa esfera é construída socialmente nas relações com os outros, formada na primeira infância e reformada ao longo da vida do indivíduo (JENKINS, 2005). Citando Mead (1934 apud JENKINS, 2005) e Cooley (1962 apud JENKINS, 2005), Jenkins (2005, p. 18) define a identidade como uma síntese contínua e simultânea entre “a autodefinição interna e as definições externas oferecidas pelos outros”. Síntese derivada da dialética constante entre o mundo externo e o interno, entre as definições externas e internas. Nesse sentido, a auto-consciência identitária é alcançada na negociação entre a visão interna que o indivíduo tem sobre si e a forma como os outros indivíduos o vêem, em um processo de natureza dinâmica e interativa. Apesar da ênfase dada à questão processual e interativa, o autor pontua que as identidades primárias, aquelas formadas nas primeiras etapas de socialização, na primeira infância, constituem as raízes da identidade individual, sendo mais robustas e resistentes a mudanças (JENKINS, 2005). Assim, para ele, algumas identidades são mais mutáveis que outras, reforçando o conceito de essência interior apresentado por Hall (2005) em sua explicação da concepção do sujeito sociológico. Não uma essência dada, mas constituida socialmente. “As identidades primárias são definitivamente incorporadas” (JENKINS, 2005, p. 19), enfatizando que para ele a identidade fluida, defendida por alguns autores, “é a exceção e não a regra” (JENKINS, 2005, p. 19). A ordem da interação reforça a pespectiva adotada por Jenkins (2005) de que a identidade nunca é um processo unilateral. A identificação é antes de tudo social, interacional. O que pensamos de nós mesmos precisa ser validado pelo meio, pelos outros que nos cercam. É uma produção conjunta, uma dialética, conforme mencionado anteriormente, entre as imagens pública e a privada, entre o externo e o interno. Embora coloque em relevo o aspecto auto consciente do processo, para ele a identidade tem um caráter performativo, é “um aspecto rotineiro da vida cotidiana” (JENKINS, 2005, p. 20). Goffman e Bourdieu são os autores trazidos para auxiliar no entendimento desse aspecto (JENKINS, 2005). O primeiro com o conceito de apresentação do eu durante a interação, onde, embora seja reconhecido algum gerenciamento sobre as impressões que pretendemos passar aos outros, nunca nos é assegurada a recepção ou a interpreteção Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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por nós desejada (GOFFMAN, 1969 apud JENKINS, 2005). O segundo autor apresentado enfatiza a qualidade do improviso na interação (BOURDIEU 1977; 1990 apud JENKINS, 2005). Para esse autor o improviso é facilitado pelo habitus, que na apresentação do eu opera de forma não-consciente, porque internalizado, incorporado (JENKINS, 2005). Além da característica social da auto-identificação, a ordem interacional chama a atenção para o fato de o indivíduo também ser identificado pelos outros e identificá-los durante a interação (JENKINS, 2005). “Identidade é uma questão de saber quem é quem” (JENKINS, 2005, p.5). E esse conhecimento é construído a partir dos símbolos expressos pelo outro e pelo indivíduo, símbolos compartilhados socialmente (RANSOME, 2005), ou institucionalizados por um grupo (JENKINS, 2005). A ordem institicional aborda as identidades coletivas (JENKINS, 2005). Aqui o autor faz uma distinção entre grupos e categorias. Os grupos se constituem como uma coletividade a partir de um olhar interno. Neles seus membros se reconhecem como partes de uma coletividade, percebem que compartilham algo em comum (JENKINS, 2005) e se identificam como grupo. As categorias são coletividades a partir do olhar do outro, um olhar externo àquele grupo, que acredita que ali há algo em comum. A identificação das categorias é externa a elas (JENKINS, 2005). Para Jenkins (2005), a identidade de grupo e categoria é uma questão política, negociada na relação com os outros. Nesse ponto, o autor retoma a dialética interno-externo. Para ele, grupos e categorias interagem e nesse processo se identificam e re-identificam. “As identificações são construídas e negociadas nas fronteiras das coletividades, no encontro entre o interno e o externo” (JENKINS, 2005, p. 22). Nessa interação uma categoria pode ser transformada em grupo ou um grupo pode deixar de ser percebido como tal. Esse processo requer negociação, daí seu aspecto político. A identidade negociada é um conceito que Jenkins (2005) extrai da obra de Barth (1969; 1981 apud JENKINS, 2005). Esse autor oferece “um modelo de etnia e outras identidades que são de certa forma fluidos, contingentes, sempre sujeitos e objetos de negociação” (JENKINS, 2005, p. 22). Nessa perspectiva, não basta o grupo comunicar a sua identidade, essa comunicação precisa antes ser aceita pelos outros, sejam eles internos ou externos àquele grupo (JENKINS, 2005). Outro conceito interessante para auxiliar nessa compreensão é o das identidades nominais e virtuais (BARTH, 1969; 1981 apud JENKINS, 2005), a distinção entre o nome e a experiência da identificação. Para esse autor, indivíduos podem nomear a identidade de maneira similar, mas experimentá-la de forma bastante distinta. Do mesmo modo, os indivíduos podem atribuir nomes distintos para o mesmo tipo de experiência vivida. Jenkins (2005) estende essa distinção para a dualidade grupo-categoria. O nome (categoria) pode permanecer o mesmo e a experiência (grupo) se modificar ao longo do tempo. Similarmente, a mesma experiência (grupo) pode ter seus nomes (categorias) modificados ao longo do tempo (JENKINS, 2005), sendo que essas transformações nos grupos e categorias emergem da interação externo-interno. Jenkins (2005, p. 22) destaca que, embora as classificações nominal e virtual sejam “distintas

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analiticamente”, elas são “cronicamente implicadas uma na outra”, porque formadas e transformadas na interação. A distinção e conceituação de grupo e categoria se tornam importantes, já que identificar é também uma questão de classificar, de associar um indivíduo a alguém ou a alguma coisa (JENKINS, 2005). Nesse processo as instituições são contextos importantes, já que fontes específicas do “léxico classificatório” (JENKINS, 2005, p. 23). Para Jenkins (2005, p. 23), instituições são padrões estabelecidos e reconhecidos de práticas, e dentre os diversos tipos de instituição, ele destaca as organizações, aqui institucionalizadas e definidas como “coletividades orientadas a tarefas, como grupos”, ambas “importantes veículos classificatórios”. Embora Jenkins (2005) apresente as três ordens acima para melhor entendimento do processo de identificação, ele ressalta que elas são apenas diferentes perspectivas de um todo unificado, reforçando a idéia de que as identidades coletivas e individuais são melhor entendidas através de “um modelo unificado de interação dialética entre as definições internas e externas” (JENKINS, 2005, p.23). Ele também destaca que a identificação faz parte da vida cotidiana, tendo uma conotação prática. Saber quem somos e quem são os outros que nos cercam é essencial para a interação social. “Sem os repertórios de identificação nós não seríamos capazes de nos relacionar com os outros de forma significativa e consistente” (JENKINS, 2005, p.23). Repertório esse construído e reconstruído na esfera social. Ransome (2005), embora não explicite a utilização da abordagem sociológica em seu trabalho, enfatiza a forte ligação entre identidade e ação. Para ele a identidade é desenvolvida e expressa através da ação, das várias atividades em que o indivíduo se engaja cotidianamente. A identidade precisa da ação para ser expressa e a expressão só é possível através de símbolos compartilhados. Os meios de expressão da identidade não são particulares a nenhum indivíduo, são sociais, “porque construídos socialmente e porque são mais públicos do que privados” (RANSOME, 2005, p. 91). Para o autor, a identidade é “no mínimo tão definida pelos fatores ambientais, quanto pelas características psicológicas ou de personalidade” (RANSOME, 2005, p. 91). Seja por mais um aspecto ou por outro, ela é essencialmente social, porque sujeita a padrões e estruturas comuns à cultura do indivíduo em questão:

“Uma pessoa não pode, por exemplo, expressar a sua identidade de gênero ou de etnia a menos que haja um meio de expressão socialmente acordado para esses aspectos [..]. As pessoas só podem comunicar as suas identidades de gênero e etnia porque os observadores conseguem entender as categorias de diferenciação de grupo que estão sendo comunicadas”. (RANSOME, 2005, p. 92)

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A premissa adotada por Ransome (2005) é a de que não importa se a identidade possui dimensões mais íntimas ou privadas para ser bem sucedida em sua expressão, a identidade precisa ser “ativamente reconhecida e aprovada”, ela precisa ser validada pelos outros (RANSOME, 2005, p. 92). A existência de um “núcleo”, “formado e modificado” pelas relações sociais apresentadas por Hall (2005, p. 11) como parte da concepção do sujeito sociológico, também aparece em Ransome (2005). Para ele, a identidade é um centro que a pessoa “retém e expressa em todos os seus comportamentos, através de todas as suas ações” (RANSOME, 2005, p. 93). Nas suas palavras:

“Apesar da variedade e complexidade das ações e experiências prévias que um indivíduo possa vivenciar, identidade se refere a um resíduo mais limitado, um pedaço essencial que a pessoa reteve e que continuará a afetar suas ações futuras”. (RANSOME, 2005, p. 93)

Hall (2005) situa o sujeito sociológico como um sujeito da modernidade antiga (anterior às décadas de 1970, 1980). Isso porque, para ele, a concepção social do sujeito amarra os indivíduos à estrutura social, estabiliza-os, tornando indivíduos e mundo cultural “reciprocamente mais unificados e predizíveis” (HALL, 2005, p. 12). O autor (2005, p. 12) argumenta que ao nos projetarmos através das identidades culturais que nos são oferecidas, internalizando seus valores e significados, alinhamos “nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural”. Essa visão da abordagem sociológica não é compartilhada nem por Jenkins (2005) e nem por Ransome (2005), embora ao menos esse último explicite que considera a identidade do sujeito da modernidade antiga, ou da “sociedade baseada no trabalho”, mais fixa e estável. É justamente esse ponto que vem sendo questionado na concepção pós-moderna de identidade (HALL, 2005):

“O sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não-resolvidas”. (HALL, 2005, p. 12)

A parte retida, menos sujeita a mudanças, aceita tanto por Jenkins (2005) quanto por Ransome (2005), desaparece nessa nova concepção. Aqui, não há uma parte fixa da identidade, algo que seja essencial ou mais permanente (HALL, 2005). O sujeito assume “identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um eu coerente” (HALL, 2005, p.13). O destaque é para o caráter histórico da Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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identidade. A identidade nessa perspectiva é formada e reformada continuamente pelos discursos que a atravessam (HALL, 2005; RANSOME, 2005), é “inteiramente constituída” por esses discursos (RANSOME, 2005, p. 92). O comentário abaixo de Foucault (1996, p. 10) traduz bem o que se quer dizer:

“Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a partir do que a verdade se dá na história, mas de um sujeito que se constitui no interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela história”.

A identidade única, segura, coerente, já não existe mais. Nessa abordagem ela é concebida como múltipla e temporária (HALL, 2005; BAUMAN, 2001). A história atual, advogam alguns, deixou de oferecer uma identidade segura, dada pela localização do indivíduo na estrutura social (BAUMAN, 2001). Hoje ela oferece múltiplas opções, escolhas que somos obrigados a fazer (BAUMAN, 2001). Na atualidade, “somos confrontados com uma multiplicitade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente” (HALL, 2005, p.13). Nota-se que nessa concepção não há questionamentos sobre a identidade única e mais coerente da formação histórica anterior: a forma inicial da modernidade (BAUMAN, 2001; FOUCAULT, 1996). Essa forma de conceber a identidade era própria daquela época, daqueles discursos (BAUMAN, 2001). A questão desses teóricos é que a sociedade mudou, se transformou, modificou seus discursos sociais (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005; BAUMAN, 2001), e com eles a forma do indivíduo experimentar a sua identidade. A autonomia e a fluidez emergem do discurso atual. O grande desafio e diferença dessa perspectiva é atribuir inteiramente a esses discursos a formação da identidade (RANSOME, 2005). É nesse sentido que a antiga segurança dada por uma identidade fixa e externamente atribuída, a essência interior permanente e de longo prazo, não é mais possível, já que não faz mais parte das narrativas atuais, pelo menos não com o mesmo significado atribuído anteriormente. Neste trabalho, iremos adotar uma perspectiva social, e em certo sentido, histórica da identidade. A identidade aqui será produzida, construída socialmente. No entanto, a definição se ela é marcada e atualizada pelo discurso, ou se há uma parte mais resistente a mudanças, remanescente dos primeiros processos de socialização, não será objeto deste estudo.

3. IDENTIDADE E MODERNIDADE: CONTEXTO HISTÓRICO Se na perspectiva adotada nesse trabalho, a identidade é uma produção social atravessada pelos discursos sociais, ainda que prematuramente (nas primeiras Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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socializações), para analisá-la precisaremos adotar um olhar histórico. É preciso entender os aspectos e discursos da sociedade atual em contraponto com as formações históricas anteriores. Para o atual estudo iremos nos reter à relação das dimensões trabalho e consumo na formação das identidades modernas (e pós-modernas). O trabalho de Ransome (2005) será adotado como fio condutor para a contextualização histórica pretendida. Esta se iniciará com o entendimento da relação trabalho-consumo e a centralidade que essas dimensões alcançam em cada época, para podermos em seguida avaliar o que a literatura, e esse autor em particular, falam da relação trabalho, consumo e identidade.

3.1

TRABALHO E CONSUMO NA MODERNIDADE

Ransome (2005) analisa a emergência da centralidade do consumo e conseqüente declínio da centralidade do trabalho na sociedade atual, especialmente após a década de 80, na chamada modernidade tardia. Embora não haja consenso teórico sobre a transformação diagnosticada por ele, muitos estudiosos reconhecem a centralidade do consumo na formação social atual (CAMPBELL, 2006; SLATER, 2002). Por centralidade entende-se a dimensão social principal, em volta da qual as pessoas organizam as suas vidas, marcando as relações sociais, e a produção e expressão da identidade (RANSOME, 2005). Advogar que o consumo substitui o trabalho como dimensão central significa dizer que “as pessoas buscam resultados através do consumo que de alguma forma estão fora ou além do que pode ser alcançado pelo trabalho” (RANSOME, 2005, p. 2), e que a vida dos indivíduos deixa de ser estruturada pelo trabalho e passa a ser estruturada pelo consumo (RANSOME, 2005). É interessante notar que essa modificação na centralidade dos domínios trabalhoconsumo na modernidade tardia defendida por Ransome (2005) não indica que o trabalho tenha se tornado menos importante na atualidade. O consumo tal como pensado hoje, menos em termos de necessidades e mais marcadamente pelo querer e desejo individual ou coletivo (CAMPBELL, 2006), carece de uma renda adicional para se concretizar. Uma renda que vá além da satisfação das necessidades mais básicas (RANSOME, 2005). Manter níveis altos de renda disponível, “reforça a ética do trabalho”, ao invés de desqualificá-la. Indivíduos nessa lógica são motivados a trabalhar mais, com mais energia (RANSOME, 2005, p. 6), talvez até de forma mais acentuada do que ocorria quando o trabalho era a dimensão central na vida das pessoas. De fato, estudos levantados por Ransome (2005) sobre a sociedade britânica mostram que as horas trabalhadas aumentaram ao longo do século XX, apesar do reconhecido aumento na eficiência da produção (VOTH, 1998 apud RANSOME, 2005). Um outro estudo mostra que entre o tempo livre e a aquisição de bens, as pessoas costumam preferir os segundos. Preferem trabalhar mais ou as mesmas horas e manter seu padrão afluente de renda, do que abdicar de um pedaço da sua renda em troca de um tempo livre maior (CROSS, 1993 apud RANSOME, 2005). Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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A hipótese por trás dessa transformação sugerida por Ransome (2005) é a afluência. São consideradas afluentes pessoas com acesso a uma renda adicional, que vai além das suas necessidades básicas (RANSOME, 2005). Necessidades essas relativas ao grupo social a que pertencem, e de forma nenhuma aplicadas à sociedade como um todo (RANSOME, 2005), porque são consideradas aqui como “uma elaboração da sociedade, variável, diversa, mediada por contextos sociais, influências sociais ou processos de socialização” (SLATER, 2002, p. 57), e não no sentido mais essencial dado pelas ciências biológicas ou físicas (SLATER, 2002). É a necessidade formada pela esfera social (SLATER, 2002). Nesse sentido, indivíduos afluentes podem ser encontrados em quase todas as camadas sociais (RANSOME, 2005). Já uma sociedade é caracterizada como afluente quando grande parte dos seus indivíduos pode ser definida desse modo (RANSOME, 2005). Para Ransome (2005), o argumento que coloca a afluência, ou a presença de indivíduos afluentes no centro dessas transformações é de que a renda ou a capacidade de gastos adicionais permite ao indivíduo se desprender do consumo básico, aumentando as possibilidades de escolha sobre os serviços ou bens que pretende consumir, e com isso seu poder decisório, sua autonomia e liberdade. Esse consumo, além das necessidades, assume outros propósitos, outras formas que vão além da simples subsistência (RANSOME, 2005). O desejo e o querer emergem como importantes aspectos do consumo moderno (CAMPBELL, 2006), assim como o prazer que deriva desse consumo menos básico (RANSOME, 2005). O consumo nessa forma mais atual assume outras significações sociais (RANSOME, 2005), permitindo que ele se torne “um fim em si mesmo” (RANSOME, 2005, p.47), “enquanto os atos de produção são quase sempre intermediários, e não conclusivos ou finais” (RANSOME, 2005, p. 50). A hipótese de Ransome (2005) é que à medida que o consumo caminha nessa direção e boa parte da renda adicional é destinada ao consumo ou às atividades de lazer, o trabalho começa a perder sua centralidade, cedendo lugar ao consumo. Ele (2005) enfatiza, no entanto, a importante relação entre as atividades de trabalho e as atividades de consumo, pontuando que, embora as segundas possam estar afetando a vida, a identidade e as relações de forma mais crucial, essas instâncias não deixam de ser também afetadas de modo significativo pelo trabalho. “Na medida em que o consumo se torna um fim no qual o trabalho é o meio”, o trabalho permanece uma atividade essencial, assumindo um papel primordial ao invés de um papel secundário na sociedade capitalista atual (RANSOME, 2005, p. 6). Para Ransome (2005), trabalho e consumo são partes de uma mesma realidade, diferentes lados “da atividade global dos indivíduos e da sociedade” (RANSOME, 2005, p. 43), e nesse sentido, o despertar de um interesse maior pelo consumo na sociedade atual não significa uma ruptura total na compreensão das causas das atividades sociais. “O lado do consumo faz pouco sentido sem o lado da produção e vice-versa” (RANSOME, 2005, p. 43). Assim, é possível mudar o foco do trabalho para o consumo “sem abandonar as atividades produtivas como o componente central para o entendimento” da sociedade presente e das suas motivações (RANSOME, 2005, p. 43). Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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O autor (2005, p. 45) cita Marx para fazer a distinção entre consumo produtivo e consumo final. O primeiro se refere aos “vários recursos, incluindo matéria-prima e força de trabalho, que são utilizados na produção”, enquanto que o segundo é situado fora da circulação da cadeia de valor. É o consumo privado. O consumo final é o foco das transformações por Ransome (2005) analisadas. É ele que está sendo sugerido como o novo domínio central. Apesar das atividades de consumo e produção serem intimamente relacionadas, elas estão inegavelmente separadas nas sociedades modernas e nas formas modernas de produção (RANSOME, 2005). Essa separação implica uma nova forma de satisfação das necessidades do indivíduo, uma nova motivação para a produção e para o consumo. Para Ransome (2005, p. 48) os atos de produção geram resultados que “tendem a ser incompletos”, já que provavelmente serão seguidos por novas ações. Já os atos de consumo (final) geram resultados mais conclusivos. São fins, enquanto que os primeiros são meios para um futuro fim. Ele (2005) argumenta também que o ato de consumo gera uma satisfação intrínseca, uma satisfação que vai além do resultado: a satisfação do ato em si. Utilizando a tipologia de Weber, Ransome (2005, p. 49) defende que os atos de produção possuem uma racionalidade de propósito, enquanto que os atos de consumo possuem uma racionalidade de valor. Por ser “um fim em si mesmo” e não um meio para um fim, os atos de consumo, para o autor (2005, p. 49), “são mais desejados que os atos de produção porque produzem níveis maiores de satisfação intrínseca, espontânea e imediata”. Embora esse argumento seja contestável, especialmente na sociedade atual, devido à multiplicidade de tipos e formas de produção (aparentemente reduzidos na argumentação de Ransome), para outros autores, os atos de consumo da modernidade tardia aparecem de fato mais marcados pelo desejo; e a identidade pelos gostos, pelo consumo (CAMPBELL, 2006). Outro ponto importante trazido por Ransome (2005, p. 51) é o seu entendimento sobre a emergência da “ética moderna de consumo”. Para ele, as experiências com as “incertezas econômicas dos anos 20” e “a penúria e racionamento dos anos 40”, fizeram com que as pessoas se deixassem levar finalmente pelo consumo de massa dos anos 60 e 70 (RANSOME, 2005, p. 52).

“Era como se as pessoas finalmente estivessem fartas da ideologia da restrição e da moderação no consumo [da ética protestante de Weber] e decidissem investir diretamente no aqui-e-agora, no prazer imediato e na gratificação instantânea”. (RANSOME, 2005, p. 52)

O longo período de expansão econômica no pós-guerra (1945 a 1973) parece ter reforçado a ida ao consumo, já que os padrões de vida estavam em ascensão, aumentando a quantidade de afluentes na sociedade, e as preocupações com novas guerras ou recessões no mundo ocidental capitalista pareciam mais remotas (HARVEY, 2000). Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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Na modernidade tardia, no entanto, essa forma de consumo, o consumo de massa, começa a ser desvalorizado. Na atualidade, as pessoas buscam a diferença, o consumo individualizado (RANSOME, 2005). É esse o novo consumo de elite, o consumo refinado e, acima de tudo, exclusivo (RANSOME, 2005), embora seja importante pontuar que nem todo consumo variado é um consumo de elite. Para o surgimento desse consumo mais individualizado algumas transformações foram necessárias. Entre elas, podemos citar inovações tecnológicas, produção flexível (RANSOME, 2005), maior pressão competitiva, e a emergência do consumidor como figura central no discurso corporativo (BOLTANSKI e CHAPIELLO, 2005). Na modernidade tardia “a satisfação do consumidor é um valor supremo” (BOLTANSKI e CHAPIELLO, 2005, p. 81). É para o cliente que hoje trabalhamos. Como afirma Bauman (2001, p. 90): “a sociedade pós-moderna envolve seus membros primariamente em sua condição de consumidores, e não de produtores. A diferença é fundamental” (BAUMAN, 2001). A demanda do consumidor passa a ser, assim, o “dínamo central que impulsiona a [nossa] sociedade” (CAMPBELL, 2006, p. 48), reorganizando-a sobre outros valores, outros discursos (BAUMAN, 2001). É nesse contexto que o consumo emerge como dimensão central. Ransome (2005) destaca algumas particularidades da nova “sociedade baseada no consumo” que marcam a transição de uma forma social para a outra. Uma delas é a expansão do consumo de lazer para a sociedade como um todo (RANSOME, 2005). Consumo esse reformado pelo novo contexto histórico:

“Na pós-modernidade, o lazer deixa de ser uma espécie de ociosidade refinada e passa a ser desenvolvido através de uma nova gama de atividades e entretenimento. O tempo de lazer [atual] contém muito pouco de ócio, relaxamento e contemplação”. (RANSOME, 2005, p. 54)

A outra particularidade citada por ele (2005, p. 55) é a “emergência de uma nova atitude em relação ao débito”. Na sociedade pós-moderna, há uma pressão crescente para “gastar agora e pagar depois”. O autor (2005) ressalta que ainda há uma ética da produção, mas após o colapso da antiga abstinência em relação ao consumo, essa ética passa a ser orientada para a satisfação de necessidades e desejos, sendo esses cada vez menos relacionados à sobrevivência humana e mais relacionados ao prazer. Na sociedade baseada no consumo há “uma rejeição à poupança e à moderação (embora não do trabalho) e uma celebração dos gastos e prazeres” (RANSOME, 2005, p. 56). “A ética do novo consumo promove a idéia de que é virtuoso seguir na busca da satisfação, e se possível em níveis cada vez maiores” (RANSOME, 2005, p. 57), legitimando o consumo como dimensão central da sociedade. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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3.2

TRABALHO , CONSUMO E IDENTIDADE

Quando a centralidade da organização social passa da dimensão do trabalho para a dimensão do consumo, o processo de formação e expressão da identidade é também afetado (RANSOME, 2005), já que é essa nova forma social que irá fornecer os valores, símbolos e significados para o processo de identificação. É da sociedade baseada no consumo que serão extraídas as novas definições, os novos repertórios de identidade, os novos grupos e categorias (JENKINS, 2005). Ransome (2005) contextualiza essa mudança também no processo de identificação. Para marcar as novas identidades perpassadas pelo consumo, ele aponta as diferenças em relação à formação anterior: “a sociedade baseada no trabalho”. Nessas sociedades, a identidade era formada primordialmente pela classe social, mais que isso, era determinada por essa última (RANSOME, 2005 e BAUMAN, 2001). Já a classe social era uma conseqüência “natural” da ocupação do indivíduo (RANSOME, 2005). “Para interagir efetivamente com os outros na sociedade dominada pelo trabalho, o tudo que era realmente necessário saber era sua ocupação... ou a sua classe” (RANSOME, 2005, p. 94). O trabalho, assim, além de ser fonte de significação pessoal, conferia àqueles indivíduos um lugar na estrutura social e um modo, uma norma, que direcionava o comportamento individual na interação com os outros, fossem eles da mesma classe que o individuo ou de outras classes sociais (RANSOME, 2005). “A vida organizada em torno do papel do produtor tende a ser normativamente regulada” (BAUMAN, 2001, p. 90). Nesse sentido, a hierarquia ocupacional e social fornecia um guia importante para a pessoa (RANSOME, 2005). Embora houvesse alguma escolha na posição hierárquica ocupada, a relação dela com as outras está além do controle individual, é normatizada (RANSOME, 2005). É interessante notar que nessa formação social “todos têm uma ocupação”, todos assumem um lugar na hierarquia ocupacional, ainda que temporariamente não estejam ativos (desempregado, doente), ou possuam uma ocupação não remunerada (dona de casa, estudante) (RANSOME, 2005, p. 122). As ocupações pagas, no entanto, tinham maior status social do que as não pagas. Na transição entre uma forma de organização social e outra, a identidade deixa de ser primordialmente estabelecida pela classe ou pela ocupação (RANSOME, 2005). Até porque, na medida em que as possibilidades de ocupação se tornam múltiplas, especialmente pelo fortalecimento do setor de serviços, a determinação da classe pela ocupação torna-se demasiadamente complexa, inviabilizando a associação. A classe social perde também o seu caráter político. Hoje, a identidade política está mais associada ao indivíduo, ao cidadão (RANSOME, 2005). Quando a norma deixa de ser central (BAUMAN, 2001), os estereótipos ficam mais distantes e torna-se mais difícil a imediata classificação (ou identificação) do outro (RANSOME, 2005). Quando as diferenças se acentuam, a classe e a ocupação perdem sua função essencial na identidade do indivíduo (RANSOME, 2005), embora ainda tenham o seu papel nesse processo. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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Ransome (2005) enumera três grupos de razões que permitem ao consumo expressar a identidade social ou coletiva. O primeiro deles destaca o aspecto social do consumo. “O consumo é primordialmente uma atividade social que envolve algum tipo de cooperação com os outros” (RANSOME, 2005, p. 101). Há um significado social, especialmente nas formas de consumo mais afastadas das necessidades básicas, que precisa ser validado pelo outro (RANSOME, 2005). O reconhecimento também é almejado através do consumo, além de ser uma forma de expressão dos valores e símbolos incorporados pela interação social (RANSOME, 2005; JENKINS, 2005). O segundo grupo de razões é que o consumo fornece novas oportunidades de expressão da identidade e novas possibilidades “para experimentar o significado da identidade” (RANSOME, 2005, p. 103). Essas oportunidades se tornaram importantes, especialmente quando o trabalho deixou de conferir símbolos sociais claros para a identificação nossa e dos outros. O terceiro grupo de razões é que o consumo, agora mais que o trabalho, define as classes sociais (RANSOME, 2005). É através do consumo que o mercado é segmentado. Nesse sentido, quanto maior o poder de compra, maior o prestígio social (RANSOME, 2005). Uma vez apresentados os três grupos de razões, faz-se necessário entender como o consumo atua na identificação individual das sociedades atuais, organizadas em torno do consumo. O primeiro ponto que surge é que com o aumento das possibilidades de consumo, tanto pela oferta quanto pela demanda (a afluência), o papel do trabalho na identidade é reduzido (RANSOME, 2005). A afluência permite que a pessoa invista mais fortemente em hobbies ou outras atividades, que vão além do trabalho remunerado:

“A identidade pessoal não é mais escrava ou subserviente do papel ocupacional, ela agora reflete outras atividades e interesses que o indivíduo tenha, que podem ir além do domínio do consumo”. (RANSOME, 2005, p. 142)

O segundo ponto é que a proliferação de novas formas de consumo, formas mais complexas, que se afastam da satisfação das necessidades mais básicas, adicionada ao desejo individual de expressar a identidade através da participação em consumos que dão prazer, confere um novo “ímpeto ao volume e à qualidade do consumo disponível para as pessoas” (RANSOME, 2005, p. 142). Os bens e serviços disponíveis são variados, diferentes, e embora a economia de escala ainda faça parte da produção atual, as possibilidades de escolha se tornaram múltiplas (RANSOME, 2005). É essa escolha que irá marcar a nossa diferença individual ou a similaridade em relação a determinado grupo. Apesar da grande oferta disponível, o consumo tende a ser mais neutro em gênero do que as identidades marcadas primordialmente pelo trabalho, embora o consumo possa ser usado para marcar a identidade de gênero, reforçando a masculinidade ou a Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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feminilidade. Essa, no entanto, é uma escolha do indivíduo, e nesse sentido mais fluida do que a classificação fixa dada pelo trabalho na formação histórica anterior (RANSOME, 2005). Na sociedade atual, o consumo se torna um “dividendo prazeroso” pelo esforço anteriormente empreendido na esfera do trabalho. “Esses momentos de satisfação” são significantes para a identidade porque expressam “quem somos” e “quem queremos ser” (RANSOME, 2005, p. 144). O consumo nos fornece outros modos de desenvolver a identidade, novas possibilidades, novos possíveis (RANSOME, 2005). Ele nos liberta das normas e da fixação anteriores e nos concede autonomia, flexibilidade e liberdade na produção da nossa identidade (BAUMAN, 2001). Autonomia relativa, como pontua Bauman (2001), já que não opcional. “Na alta modernidade, não só seguimos estilos de vida, mas num importante sentido somos obrigados a fazê-lo – não temos escolha senão escolher” (GIDDENS, 2002, p. 79). 4. DISCUSSÃO FINAL Procuramos no presente trabalho chamar atenção para alguns aspectos que consideramos importantes da atualidade: a construção das identidades contemporâneas e a emergência do consumo como dimensão central nessa produção. Esse tema apesar de muito discutido nas ciências sociais e humanas (DU GAY, 1996; SLATER, 2002; RANSOME, 2005) ainda encontra-se longe de qualquer consenso teórico, até por se tratar de um fenômeno relativamente novo na história. Não era o nosso objetivo concluir esse debate, mas antes iluminar suas questões e controvérsias. Iniciar um entendimento sobre esse novo socius que se anuncia, seus benefícios e suas sujeições, eis o nosso objetivo. Só assim poderemos nos posicionar melhor, como administradores e como pessoas, diante desse mundo que emerge na atualidade. Pelo caráter e amplitude da discussão que procuramos apresentar nesse trabalho, não foi possível cobrir todos os seus aspectos, todos os seus pontos de vista. O objetivo era apenas iniciar uma exploração dos argumentos, apresentar uma revisão de literatura inicial, e instigar o leitor com questões atuais sobre si e sobre a sociedade que o cerca.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOLTANSKI E CHIAPELLO, luc; CHIAPELLO, Éve. The new spirit of capitalism. Verso: London, 2005. CAMPBELL, Colin. Eu compro, logo sei que existo: as bases metafísicas do consumo moderno. In: BARBOSA, Lívia; CAMPBELL, Colin. Cultura, consumo e identidade. Rio de Janeiro: Ed. da FGV, 2006. CRESWELL, John. Research design: qualitative, quantitative and mixed methods aproaches. 2nd. ed. London: Sage, 1998. Du GAY, Paul. Consumption and identity at work . London: Sage, 1996. FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 9. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2000. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. JENKINS, Richard. Social identity. 2nd. ed. London: Routledge, 2005. RANSOME, Paul. Sociology and the future of work: contemporay discourses and debates. Aldershot: Ashgate, 1999. ______. Work, consumption & culture: affluence and social change in the twenty-first century. London: Sage, 2005. SLATER, Don. Cultura do consumo & modernidade. São Paulo: Nobel 2002. VAZ, Paulo Roberto Gibaldi. O inconsciente artificial. São Paulo: Unimarco, 1997. VERGARA, Sylvia. Projetos e relatórios de pesquisa em administração. São Paulo: Atlas, 1997.

ABSTRACT Although the identity is not a new theme in the social sciences and humanities, from the 90s, it emerges with great emphasis on theoretical discussions in these areas. Its current relevance is due to a major transformation in the identity construction modes, especially noticed after the 70's and the 80’s. The former identity, unified and stable, does not exist anymore. The contemporary identity, some advocate, is more fragmented and multiple, and the process of identifying is unstable and problematic. In the roots of these changes are the recent updates of capitalism, particularly those observed Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 45-62 2008

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after the 70's and 80’s. Updates those which seem to put the consumer as the central dimension in social organization, rather than work. Even without consensus at the academy on this new time and date on the centrality of consumption, there is an agreement on the fixed identity, defined a priori by social class or by tradition, is no longer possible. Instead, the emerging flexible and the possibility to choose between several alternatives. The purpose of this study is to present the current problems, their issues and controversies. Understand the argument of some authors, and Ransom (2005) in particular, to reverse the work centrality and consumption in the late modernity and its effects on the construction of the individual post-modern identity. It is therefore to present an initial understanding on the construction of post-modern identities and on how the dimensions work and consumption are related in this production.

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IDENTIDADE E TRABALHO: A QUESTÃO DOS TRABALHADORES TERCERIZADOS

Renata Figueira

RESUMO Este artigo consiste num ensaio teórico que pretende analisar a identidade social de trabalhadores terceirizados. Para isso foi realizada uma revisão da literatura sobre o tema identidade social e sobre a relação entre identidade e trabalho, uma vez que parte da identidade social de uma pessoa é formada pela sua identificação com a organização. O artigo também contextualiza o conceito de identidade às mudanças nas relações de trabalho ocorridas nos últimos anos, na época que alguns autores chamam de pósmodernidade, especialmente porque nessa época foi intensificada nas organizações a coexistência de diferentes vínculos empregatícios: empregados com certa segurança e estabilidade trabalhando lado a lado com trabalhadores terceirizados ou temporários, que possuem formas mais flexíveis de trabalho. Também foi ligada a literatura de identidade à realidade dos trabalhadores contratados, que constituem um grupo que é diferenciado dentro das organizações não só pela longevidade da relação de trabalho, mas muitas vezes pela cor dos seus crachás, pelos benefícios recebidos e pela participação nos eventos da empresa. Este trabalho conclui que esse tipo de diferenciação pode afetar a identificação do contratado com a empresa e, conseqüentemente, o seu comprometimento e desempenho. Palavras-chave: contratados

trabalho,

identidade,

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trabalhadores

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1. INTRODUÇÃO

Alguns autores identificam mudanças ocorridas nas relações de trabalho, especialmente a partir dos anos 1990 (BOLTANSKI e CHIAPELLO, 2005; HARVEY, 2005). A predominância do relacionamento de longo prazo entre empregado e empregador nos anos anteriores foi substituída pela predominância de um novo tipo de relacionamento entre empresa e empregado, onde os laços são mais fracos e o prazo esperado é o curto. Para Bauman (2001), o nome “relacionamento” indica longo prazo e comprometimento, sendo assim, o caráter efêmero e a falta de comprometimento mútuo das novas relações sugere que o que antes era um “relacionamento” hoje passa a ser uma “conexão”. O empregador oferece um trabalho desafiador e vários projetos em que o funcionário pode se engajar em detrimento de uma estabilidade e segurança do passado. Enquanto isso, o empregado assume a responsabilidade de desenvolver sua própria carreira, nos termos da empregabilidade. Nesse contexto, os laços entre trabalhador e empresa são enfraquecidos, ocasionando uma terceirização e um maior número de contratos temporários. Num mundo de constantes mudanças, a empresa deve ser flexível o bastante para acompanhar os movimentos da indústria na qual se encontra, e a flexibilização dos contratos de trabalho permite que ela possa responder mais rapidamente às demandas do mercado. Como resultado disso, encontramos hoje uma grande porcentagem de trabalhadores contratados temporariamente. Dessa forma, encontramos nas organizações uma coexistência de empregados com carteira assinada e contrato de longo prazo com formas mais flexíveis de trabalho, como acordos temporários e terceirização. Em muitas empresas, os trabalhadores contratados constituem um grupo que algumas vezes é diferenciado em relação aos empregados na cor dos seus crachás, nos benefícios recebidos, na participação nos eventos da empresa, entre outras coisas. Como alguns autores sugerem que parte da identidade de um indivíduo é formada a partir da sua convivência na empresa onde trabalha (ALVESSON, 2002), a formação dessa identidade em trabalhadores contratados parece ser uma questão interessante para ser abordada. Esse trabalho consiste num ensaio teórico que analisa a identidade social e como parte dessa identidade é relacionada ao trabalho do indivíduo. Após mostrar algumas características atuais do mundo do trabalho, são apresentadas reflexões sobre a identidade de trabalhadores contratados.

2. IDENTIDADE SOCIAL Para Jenkins (2005), a noção de identidade aplica-se a todo o universo de criaturas, coisas e substâncias. Isso pode explicar a existência de pesquisas sobre a identidade organizacional. Autores como Boas Shamir e Yael Lapidot (2003) afirmam que um conjunto de valores e normas é capaz de definir a identidade de uma organização. Essa Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 63-72 2008

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denominação extrapolou o meio acadêmico e hoje encontramos algumas empresas que utilizam a palavra identidade para se referir a algumas características atreladas a ela. Algumas possuem uma área de negócio específica para lidar com questões de identidade organizacional. No entanto, esse trabalho trata mais especificamente da identidade humana individual, o que ela é e como ela é constituída. Segundo Lévi-Strauss (1975), Jean Jacques Rousseau é um dos primeiros teóricos a tratar do que ele considera como sendo o problema central da antropologia: o surgimento da cultura. Para Rousseau, a cultura coincide com o desenvolvimento da capacidade intelectual no homem. É somente quando ele começa a ter consciência que desenvolve a capacidade de identificação com o outro, isto é, quando ele passa a ser capaz de distinguir as diferentes espécies animais e identificar a sua própria. Nas palavras de Lévi-Strauss (1975): Por se sentir primitivamente idêntico a todos os seus semelhantes, o homem conseqüentemente adquirirá a capacidade de se distinguir como ele os distingue, isto é, de captar a diversidade das espécies como suporte conceptual da diferenciação social7. (LÉVISTRAUSS, 1975: 105)

Dessa forma, o que Lévi-Strauss chama de filosofia da identificação original de Rousseau permite concluirmos que o surgimento da cultura se dá através das primeiras manifestações do simbolismo, quando o homem passa a ser capaz de atribuir um valor simbólico ao grupo dos homens e se incluir nele. É a partir disso que o convívio entre os humanos é intensificado e as formas de comunicação são aprimoradas, culminando no surgimento da língua. Então, é a partir da noção de identidade que se dá o surgimento da cultura. Só quando o homem desenvolve a capacidade de ver similaridades e diferenças dele com os outros que ele passa a dar significados simbólicos aos indivíduos. Para Jenkins (2005), é o recurso da identificação, isto é, saber quem somos e quem são os outros com quem lidamos diariamente que permite a interação social, e foi isso que possibilitou a constituição do mundo humano tal como conhecemos. Da identidade coletiva inicial (grupo dos homens) surgiu a identidade individual, pois mesmo fazendo parte de um grupo o homem percebe diferenças entre os membros desse grupo, mesmo que tais diferenças não sejam suficientes para descaracterizá-lo como grupo. É, então, que as similaridades e as diferenças começam a agir para a construção de uma identidade individual. (JENKINS, 2005). A identidade é estabelecida através de significações entre indivíduos, entre grupos, e entre indivíduos e grupos. Isto é, a identidade de uma pessoa é tanto definida pelo que ela tem em comum com outras pessoas e com os grupos, quanto por aquilo que ela não tem em comum com outras pessoas e grupos.

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Sendo assim, é fácil imaginar que as identidades são construídas no ambiente social. Segundo Jenkins (2005), as identidades humanas são resultadas de um conjunto de significados atrelados a elas e por isso envolve algum tipo de interação, já que o significado é construído socialmente. A identidade é uma forma de dar significado a alguma coisa, é um símbolo que depende da interação com outras pessoas para se sustentar. O autor completa que toda identidade humana é necessariamente social. A base da identidade individual é construída no processo de socialização primária, que ocorre até o final da infância. A partir de então, a identidade passa a ser construída através das interações com outros indivíduos, tendo como base a identidade primária, mais resistente à mudança. Isso significa que a identidade em si está em constante formação (JENKINS, 2005). Baseado no trabalho de Mead, Jenkins (2005) afirma que a identidade é definida tanto internamente pelo indivíduo (autodefinição) quanto pelo que os outros percebem (definição externa). Esse é a dialética da identificação interno-externo, que sugere que o indivíduo necessita da validação do meio para a constituição da sua identidade. Ainda assim, a forma como o indivíduo se percebe e se define é diretamente influenciada pela forma como os outros o percebem e vice-versa. Para Alvesson (2002), a construção da identidade é um processo reflexivo que ocorre não somente na inter-relação com os outros, mas também na exposição aos discursos sociais e mensagens da mídia, da academia, e de outras agências, ou ainda por processos inconscientes.

3. IDENTIDADE E TRABALHO

Uma parte do processo de socialização que forma a identidade individual ocorre no trabalho. Segundo Salanova, Gracia e Peiró (2006), o trabalho pode desempenhar diferentes funções para os indivíduos, inclusive a função psicossocial de identidade pessoal. A identidade é uma forma de saber quem é quem (JENKINS, 2005), e quando perguntados quem somos nós, geralmente a profissão e/ou o local de trabalho entram na descrição (na maior parte das vezes como o primeiro aspecto lembrado). O trabalho é uma grande parte de quem somos e de como nos enxergamos socialmente. Estando em constante formação, a identidade passa a ser influenciada pelas experiências vividas no trabalho, sendo retrabalhada e reformulada continuamente, num processo que pode ser consciente ou não (ALVESSON, 2002). Chreim (2002) aborda o tema identificação organizacional, que segundo ela é pesquisado e abordado de formas diferentes por duas áreas de conhecimento: comportamento organizacional e comunicação. Para a área de comportamento, a identificação organizacional é considerada o quanto um indivíduo se define pelos mesmos atributos que tal pessoa acredita definir a organização. Alvesson (2002) parece seguir essa linha de pensamento ao afirmar que quando uma organização se torna uma importante Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 63-72 2008

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fonte de identificação para o indivíduo, a identidade organizacional passa a informar a identidade social da pessoa. Por outro lado, a comunicação vê a identificação organizacional como sendo o resultado de um processo de comunicação da organização (muitas vezes através da figura do gestor) para o indivíduo. Nessa perspectiva, a identificação do empregado com a companhia resulta de um esforço gerencial para isso. Alvesson (2002) também identifica que alguns gestores utilizam práticas sociais sobre os processos de construção e reconstrução da identidade para que ela se dê a partir da identidade corporativa, de acordo com as intenções da empresa. O autor alerta que a organização pode alcançar uma maior lealdade e comprometimento do empregado com esse tipo de intervenção, mas também pode não alcançar. O indivíduo não é passivo nesse processo, e as demais experiências vividas por ele também agem para a construção da identidade. Mesmo que o trabalhador tenha uma alta identificação com o trabalho, outros fatores estão atuando ativamente para a construção e constante reconstrução da sua identidade.

4. MODERNIDADE E A IDENTIDADE

Para Harvey (2005), a partir dos anos 1970 o mundo passou a ter sinais de modificações profundas nos processos de trabalho, hábitos de consumo e nos poderes e práticas do Estado. Boltanski e Chiapello (2005) mapeiam as mudanças no universo do trabalho através de uma análise do discurso utilizado pelos livros de gestão dos anos 1990 em comparação com os livros dos anos 1960. Eles constatam que o modelo de grandes empresas burocráticas que prevalecia nos anos 1960 dá lugar a um novo modelo de gestão, com empresas hierarquicamente mais enxutas, menos burocráticas e mais facilmente adaptáveis às mudanças no seu ambiente. As empresas passam a trabalhar em redes, sempre ligadas a várias outras, e o trabalho de cada uma é dividido e assumido por pequenos grupos, que o conduzem como projetos. Para se tornarem mais enxutas e adaptáveis, muitas empresas demitiram vários empregados, retendo somente aqueles essenciais para a perpetuação da organização, e subcontratando todos aqueles que não trabalham diretamente com o core business da companhia. O discurso utilizado pelas organizações e livros de gestão passa a ser o da empregabilidade, em que é responsabilidade do próprio empregado o seu desenvolvimento individual e a gestão da sua carreira. Enquanto nos anos 1960 o empregado podia esperar maior segurança no trabalho e sua capacitação profissional pela empresa, nos anos 1990 isso deixa de ser oferecido pelas empresas. Ao invés disso, elas passam a proporcionar ao funcionário a possibilidade de fazer algo desafiador no trabalho e estar sempre aprimorando seus conhecimentos e suas habilidades. Dentre outras, Harvey (2005) identifica três mudanças ocorridas na época em questão: a flexibilidade de produção, em que o mercado antes dominado pelo consumo Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 63-72 2008

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em massa agora é marcado pela diferenciação dos produtos; alto nível de inovação tecnológica e na área da saúde; e contratos de trabalho mais flexíveis em que as jornadas de trabalho dos empregados devem se adequar melhor às necessidades da empresa. Também houve um crescimento do número de trabalhadores em tempo parcial, temporário ou subcontratado, e uma redução do emprego regular. Buonfiglio e Dowling (2000) afirmam que a flexibilidade nas relações de trabalho nas empresas é caracterizada pela intensificação das cargas de trabalho, menores salários, flexibilidade salarial e prolongamento da jornada de trabalho. Também há uma maior realização de “contratos atípicos” ou trabalho informal, em que os autores consideram haver uma ainda maior flexibilidade das relações de trabalho, ocasionando, muitas vezes, numa ausência de direitos trabalhistas. Esses autores acreditam que nos anos 1990 surgiram novos instrumentos legais de flexibilização que permitiram às empresas maiores facilidades de contratações e demissões, flexibilizações salariais e distribuição do tempo de trabalho de acordo com os interesses empresariais. Desenvolveram-se, em diversos países, o trabalho em tempo parcial e o trabalho por tempo determinado ou contrato temporário. Os autores afirmam que tais flexibilizações trazem insegurança, a precarização e a desintegração social. Muitos trabalhadores oscilam entre períodos de emprego e de desemprego, incertezas, ou mesmo exploração. Eles afirmam que a desregulamentação do trabalho que vem acompanhando tal flexibilização traz uma generalização da precarização e de um contingente de trabalhadores desprotegidos. Coincidindo com o momento tratado por Boltanski e Chiapello (2005) sob a ótica do trabalho, outros autores alertam para diferenças no arranjo da sociedade nos últimos anos. Esse momento, considerado por alguns como pós-moderno, é tratado por Bauman (2001) como “modernidade líquida”. Segundo esse autor, a velocidade se tornou tão acelerada que o tempo passou a ser o instantâneo e as distâncias espaciais passaram a quase não importar mais. Estamos todos conectados a tudo e a todos o tempo todo, em qualquer lugar do mundo. O indivíduo passa a ser cidadão do mundo, disposto a ir a qualquer local em qualquer tempo, buscando as melhores oportunidades de trabalho e estando à disposição de sua empresa. Mas tal “modernidade líquida” traz para as pessoas certa insegurança e instabilidade e elas passam a querer consumir tudo imediatamente, inclusive identidades (BAUMAN, 2001). Jenkins (2005) afirma que a identidade pós -moderna é impactada pelas incertezas e reorientações percebidas no universo da família, do trabalho, da estrutura de classe; na inovação tecnológica e na redefinição de fronteiras políticas. Cada vez mais o futuro parece imprevisível e as expectativas mudam o tempo todo. Alvesson (2002) conclui que há uma demanda por construções e reconstruções mais rápidas de identidades, uma vez que a auto-identidade contemporânea se torna precária, pois a dicotomia entre as novas experiências e o antigo conceito de si gera inconsistências e dúvidas, e deixa em aberto a possibilidade de uma nova identificação.

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5. IDENTIDADE DE TRABALHADORES CONTRATADOS

Jenkins (2005) afirma que as instituições (entre elas as organizações) são uns dos principais contextos no processo de identificação do indivíduo. As organizações desenvolvem sistemas classificatórios, que por lidarem com procedimentos de diferenciação e similaridade fornecem elementos para o processo de classificação necessário à construção da identidade. Através de tais sistemas, normalmente sistemas de poder, identidades são alocadas e recolocadas em diferentes posições institucionais. Além disso, dentro das organizações existem diferentes grupos aos quais um indivíduo pode ou não pertencer ou se identificar. Jenkins (2005) aborda o tema identidades coletivas através de dois conceitos: as “categorias”, que são percebidas como uma coletividade pelos outros, isto é, aqueles que não pertencem a ela; e os “grupos”, uma coletividade identificada e percebida como tal pelos próprios membros, isto é, que se constituem como unidade para os olhos de seus integrantes que acreditam ter algo em comum. Ambos interagem, se construindo e reconstruindo mutuamente. É necessário um processo político de mobilização e legitimação para transformar uma categoria em um grupo, que pode ser iniciado e produzido dentro ou fora da própria categoria. Estudando as relações de poder, Norbert Elias (2000) identifica um povoado industrial inglês que estava claramente dividido entre um grupo que se percebia, e que era reconhecido, como o establishment local e um outro conjunto de indivíduos e famílias outsiders. Enquanto os established (estabelecidos) eram um grupo formado por indivíduos que ocupavam posições de prestígio e poder, os outsiders formavam um conjunto heterogêneo e difuso de pessoas unidas por laços sociais menos intensos e que viviam estigmatizados por todos os atributos associados com a delinqüência, a violência e a desintegração. Nesse caso, podemos concluir que o primeiro conjunto de pessoas, os established, era reconhecido como tal tanto pelas pessoas que não se encontravam nele quanto pelos seus participantes, mesmo que esse grupo não se definisse através de um nome. Já os outsiders eram percebidos como tal apenas pelos established, isto é, por aqueles que não faziam parte da coletividade. Utilizando a categorização de Jenkins (2005), os outsiders seriam considerados uma categoria. Eles não constituíam um grupo homogêneo e seus participantes não se identificavam uns com os outros, mas os established enxergavam esses indivíduos como uma coletividade estigmatizada pelos mesmos atributos. Na maior parte das organizações hoje há convivência entre empregados formais com carteira assinada e trabalhadores contratados por um tempo determinado de trabalho. Nesses casos, muitas vezes a categorização de “contratado” ou “terceirizado” surge para diferenciar tal coletividade. Há muito em comum entre os contratados e os outsiders do estudo de Elias (2000). Eles também constituem um grupo heterogêneo, pois um contratado pode ser desde o profissional de limpeza até um especialista bem renomado de Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 63-72 2008

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uma área de tecnologia de ponta, por exemplo. Como são pessoas distintas, os laços sociais que as unem são fracos, e muitas vezes eles nem se reconhecem como um grupo. Provavelmente os contratados faziam parte de uma categoria inicialmente. A empresa e os empregados formais tendem a utilizar o termo contratado para falar de toda a força de trabalho terceirizada da organização, o que acaba formando uma categoria, por mais que tais pessoas não se percebam como um grupo. É provável que em alguns locais essa categoria tenha se transformado num grupo, onde os próprios integrantes se reconhecem como fazendo parte dos “contratados”. A maior parte das empresas tem políticas de remuneração diferentes para esses dois grupos. Em empresas onde o crachá dos funcionários tem cores diferentes para empregados e contratados, podemos supor que a identidade de grupo seja mais forte. No primeiro contato com qualquer pessoa dentro da organização, a pessoa é identificada como contratada ou empregada e, nesta hora, todos os estigmas do grupo ao qual ela pertence são relacionados a ela. O trabalhador contratado é, geralmente, empregado de outra empresa que presta serviços àquela onde ele se encontra. Mesmo que a sua relação de trabalho oficial seja com a prestadora de serviço, o seu dia-a-dia é passado na empresa contratante. Então, certas vezes, ele pode não ser considerado um membro da organização em que trabalha, já que seus laços trabalhistas são com outra empresa. Se o empregado passa a se identificar mais com o grupo dos contratados e menos com a empresa em si, a organização pode enfrentar problemas de motivação. Rolf Van Dick et al (2004) argumenta que os indivíduos pensam e agem em benefício do grupo ao qual pertencem, porque ser um membro desse grupo é uma parte da sua identidade social e é ela que determina uma boa parte da sua auto-estima. Dessa forma, se uma pessoa tem uma forte identificação com a empresa na qual trabalha, ela provavelmente agirá para manter aquele grupo coeso, isto é, para manter aquela organização funcionando. Sendo assim, a identificação social na organização pode explicar a performance individual, o comprometimento e a intenção de deixar a organização. Para Rolf Van Dick et al (2004), a identificação social com um grupo envolve a incorporação das normas e valores do grupo para o auto-conceito do próprio indivíduo. Quando um indivíduo se identifica fortemente com sua organização, ela se torna parte de sua identidade, de quem ele é. A sobreposição percebida entre o seu eu e as normas, valores e objetivos da organização, é a identificação organizacional. E um sujeito altamente identificado com a companhia está menos inclinado a deixá-la. No caso dos trabalhadores contratados, podemos imaginar que ao se identificar com o grupo (contratados) a pessoa pode diminuir a sua identificação com a empresa em questão, diminuindo também o seu comprometimento em relação a ela. Dessa forma, a empresa deve ter o cuidado de reforçar o grupo dos contratados como sendo parte integrante da empresa, além de buscar uma identificação dos trabalhadores, sejam eles quais forem, com a empresa.

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6. DISCUSSÃO FINAL

O mundo do trabalho passa por mudanças estruturais que estão afetando o relacionamento entre empregado e empregador. As práticas de gestão de pessoas utilizadas nos anos 1960 parecem não mais se aplicar ao momento atual, o que resultou numa intensificação do interesse tanto empresarial quanto acadêmico pela compreensão das novas relações entre empregado e empresa empregadora. Pesquisadores buscam compreender questões relacionadas à motivação e comprometimento do empregado na conjuntura de trabalho atual. A identidade pode ser um valioso framework teórico para a busca dessa compreensão. Uma parte da identidade pessoal é construída através das experiências vividas no trabalho, e a empresa tem a possibilidade de tentar alcançar uma maior motivação dos seus funcionários através dos processos de identificação que ocorrem com ela, especialmente dos trabalhadores contratados. O nível de comprometimento da empresa com esses funcionários é menor, pois a relação é temporária e os laços mais fracos, indicando que podemos esperar um comprometimento também mais baixo de tais funcionários. No entanto, se investigarmos a questão sob a luz da identidade, sabemos que mesmo esse indivíduo pode (e provavelmente terá) sua identidade construída e reconstruída a partir das experiências do trabalho, isto é, as experiências com a empresa em si e com o grupo dos “contratados” ao qual pertence. Se os contratados são vistos como outsiders, marginalizados, ou não considerados como membros da organização, a identificação com a empresa pode ser afetada, assim como o comprometimento desse funcionário. Se a empresa con segue fazer com que o trabalho seja uma importante fonte de identidade pessoal para seus funcionários e que os atributos de identidade relacionados ao trabalho sejam favoráveis, provavelmente o comprometimento dessa força de trabalho será maior.

7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVESSON, Mats. Identity regulation as organizational control: producing the appropriate individual. Journal of Management Studies , v. 39, n. 5, p. 619-644, July 2002. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BOLTANSKI Luc; CHIAPELLO Ève. The new spirit of capitalism. Verso: London, 2005. BUONFIGLIO, Maria Carmela; DOWLING, Juan Alfonso. Flexibilidade das relações de trabalho e precarização uma análise comparativa. In: ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 24., 2000, Rio de Janeiro. Anais... São Paulo: ANPOCS, 2000. CHREIM, Samia. Influencing organizational identification during major change: a communication-based perspective. Human Relations, v. 55, n. 9, p.1117-1137, 2002. ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 63-72 2008

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HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 14. ed. São Paulo: Loyola, 2005. JENKINS, Richard. Social identity. 2nd. ed. London: Routledge, 2005. LÉVI-STRAUSS, Claude. Totemismo hoje. Petrópolis: Vozes, 1975. PEIRÓ, José Maria; PRIETO, Ernando. Tratado de psicologia del trabajo. Madri: Síntesis, s/d. SHAMIR, Boas; LAPIDOT, Yael. Trust in organizational superiors: systemic and collective considerations. Organization Studies, v. 24, n. 3, p. 463-491, Mar. 2003. VAN DICK, Rolf et al. Should I stay or should I go? explaining turnover intentions with organizational identification and job satisfaction. British Journal of Management, v. 15, n. 4, p. 351–360, Dec. 2004. ABSTRACT This article consists in a theoretical essay that intends to analyze the social identity of temporary workers. With that intent, it was written a literature revision about theme of social identity and the relationship between identity and work, because part of a person’s social identity is formed by his/hers identification towards the organization. The article also contextualizes the concept of identity to the changes in the work relationships that occurred in the last years, the time that some authors call post-modern, especially because in this time the organizations had an intensification of the coexistence of different types of work bonds: workers that have security and stability working side by side with temporary workers that have a more flexible type of work. The literature of identity was linked to the reality of the temporary workers that constitute a group that is differentiated in the organizations not only by the length of their work relationships but also by the color of their work badges, by the benefits received and by their participation in company events. This paper concludes that this type of differentiation may affect the identification of the worker with the company, affecting his/her commitment and performance.

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IDENTIDADES NA PRATELEIRA: UM ENSAIO SOBRE IDENTIDADE, CONSUMO E CORPO Fernanda Chagas Borelli

RESUMO A Sociologia tem ajudado o Marketing a entender influências sociais que afetam o comportamento do consumidor. Suas principais contribuições para este campo de estudo têm sido classes sociais, status, papéis e grupos de referência. Neste ensaio, parte-se do conceito de Identidade Social para se discutir sua construção através do consumo relacionado ao corpo. Ao longo desta jornada, estudos antropológicos, sociológicos e de comportamento do consumidor são reunidos em uma "conversa" que procura esclarecer e compreender melhor a relação entre identidade, consumo e corpo. O corpo parece ser uma declaração de quem somos, o que torna difícil pensar identidade dissociada do dele. A cultura do culto ao corpo evidencia um paradoxo entre o ideal individualista e a exigência de conformidade: quanto mais estabelecido está o ideal de autonomia individual, mais forte se torna a exigência de conformidade aos padrões sociais de corpo. Este ensaio é um convite para mais estudos que possam interpretar essa complexa e curiosa ligação entre identidade, consumo e corpo. Palavras-chave: identidade, corpo, consumo

1. INTRODUÇÃO

Neste ensaio, parte-se do conceito de Identidade Social para discutir sua construção através do consumo relacionado ao corpo. Ao longo desta jornada, estudos antropológicos, sociológicos e de comportamento do consumidor são reunidos em uma “conversa” que procura esclarecer e compreender melhor a relação entre identidade, consumo e corpo. O corpo parece ser uma declaração de quem somos, o que torna difícil pensar identidade dissociada dele. “A maioria das pessoas se percebe como corpo e eu unificados” (GIDDENS, 2002, p. 60). McCracken (1986) argumenta que bens têm significados culturais: são vistos como uma forma de expressar o esquema de categorias estabelecido por uma cultura. Estas categorias são codificadas através de um conjunto de distinções materiais. Assim, os bens materiais permitem aos indivíduos se autodefinirem Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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através da apropriação sistemática de suas propriedades simbólicas (MCCRACKEN, 1986). Teria o corpo essas propriedades simbólicas? Baudrillard (1995) fala do corpo não apenas como simbólico, mas como um objeto de consumo que possui um conjunto de significados. Por fim, Le Breton (2003) caracteriza o corpo como a exibição da identidade. Em uma sociedade que valoriza tanto a aparência (GOLDENBERG, 2002, 2007a; ATTIAS-DONFUT, 2004), em que a preocupação com a atratividade é cada vez maior (GIDDENS, 2002) e onde a beleza feminina figura como “imperativo absoluto e religioso” (BAUDRILLARD, 1995, p. 140), acredita-se que seja necessário entender papéis do corpo na definição, construção ou afirmação da identidade, um importante conceito para os estudos de comportamento do consumidor. A Sociologia tem ajudado o Marketing a entender influências sociais que afetam o comportamento do consumidor. Suas principais contribuições para este campo de estudo têm sido classes sociais, status, papéis e grupos de referência (ROCHA, 1999). O próximo tópico pretende compreender o conceito de Identidade Social – trazido da Sociologia – e suas características para criar a base da posterior discussão sobre sua construção através do consumo do corpo. Ao longo das próximas sessões aqueles temas se farão presentes, tanto nas questões relacionadas ao consumo quanto ao corpo.

2. IDENTIDADE: SIMILARIDADE OU DIFERENCIAÇÃO?

A identidade se estabelece através da comparação entre pessoas, ou seja, está baseada na diferença e na similaridade, onde nenhuma delas pode existir sem a outra. Como coloca Jenkins (2005), trata-se de “formas através das quais indivíduos e coletividades são diferenciadas, em suas relações sociais, de outros indivíduos e coletividades” (JENKINS, 2005, p. 5), ou seja, a identidade está ligada à seguinte pergunta: ‘quem é quem?’ (JENKINS, 2005). Por compreender comparações e “diálogos” entre o similar e o diferente, a identidade é vista como um processo de construção, não como algo fixo. Desta forma, a identidade depende da ação para expressar-se. É um processo dinâmico de entender quem somos e quem são os outros ou quem são os outros e quem somos (RANSOME, 2005; JENKINS, 2005). É, portanto, um processo que envolve questionamentos, revisões ou reconstruções de ações passadas para a modificação do comportamento futuro. Tal caráter reflexivo está presente, por exemplo, no projeto de auto-identidade reflexiva da modernidade de Giddens e nas ideologias de “redenção pessoal” (JENKINS, 2005; RANSOM, 2005; GIDDENS, 2002). O diálogo entre similaridade e diferença depende da categorização. Uma categoria pressupõe membros que compartilham algo e que este algo possui significado para os nãomembros. Ou seja, os não-membros conseguem identificar os membros através daquilo Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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que é compartilhado por eles. As categorias conhecidas formam repertórios de identificação, que permitem interpretar ou entender o mundo e os relacionamentos entre as pessoas. Quando surge o desconhecido, busca-se classificá-lo em uma categoria conhecida através de informações presentes em aspectos físicos e comportamentais, como roupas e atitudes. O que transmite a sensação de que se sabe o que deles esperar (JENKINS, 2005). A categorização dos outros também é vista como um modo de identificação de si mesmo. Com base nela é possível a construção de nossa própria categorização, isto é a construção de nossa identidade. Similaridades ou diferenças? Similaridade e diferenças (JENKINS, 2005). Como o pertencimento a uma categoria em particular depende de um critério de participação e compartilhamento, a definição deste critério corresponde à criação de uma fronteira delimitando quem são os membros e quem são os não-membros. Como surge esta fronteira? Surge a partir da interação entre pessoas que apresentam identidades distintas (JENKINS, 2005). Por conta deste caráter interativo, entende-se a identidade como a relação e atuação entre o individual e o coletivo. Como a identidade se forma no âmbito individual? No âmbito individual, a identidade enfatiza a diferença. Indivíduos são identificados, por si mesmos e pelos outros, através do que os distingue dos outros. Porém, a identidade individual não pode ser isolada da coletividade: é construída socialmente através da interação e depende da validação dos outros. Os indivíduos precisam negociar suas identidades e apresentá-las para aprovação dos outros (JENKINS, 2005). Como a identidade se forma no âmbito coletivo? A identificação coletiva está ligada a pessoas que apresentam algo significante em comum umas com as outras. Todavia, tal similaridade depende da diferenciação no sentido de que, ao definir critérios de participação, criam-se limites além dos quais nada pertence àquela coletividade. A partir desta questão entre individual e coletivo surge a “dialética interno – externo”, onde o interno estaria relacionado à autodefinição, ou à auto-imagem, e o externo relaciona-se a definições oferecidas pelos outros, ou à imagem pública (JENKINS, 2005). Teria o trabalho um caráter mais interno ou mais externo na formação da identidade? E o consumo? Ransome (2005) sugere que o feedback positivo dos outros do nosso grupo é essencial para a expressão bem sucedida da nossa identidade. E afirma que muito do significado do consumo passa por isso. O autor faz uma discussão dos efeitos sobre a identidade causados pela transição de uma sociedade baseada no trabalho para uma sociedade baseada no consumo. Um desses efeitos trata da expansão da estrutura de ocupações ocorrida a partir de substituições do trabalho industrial tradicional por ocupações no setor de serviços. Em uma

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sociedade na qual a ocupação era um bom indicador de classe, este movimento passa a multiplicar o leque de ocupações para muito além de alguns poucos grupos reconhecidos. Esta mudança, juntamente com o aumento da afluência e a acessibilidade do consumo complexo8, abriu espaço para o consumo como elemento classificatório. Isso fica claro em países como Brasil, Argentina, México e Chile, dentre outros, onde os critérios de classificação social utilizam medidas de capacidade de consumo, incluindo a posse de bens9. Com isso, sinaliza Ransome (2005), o consumo deixa de ter um foco funcional (de satisfação das necessidades básicas) e passa a ter um foco mais simbólico, expressando o lugar da pessoa no mundo, sua identidade central. Thompson e Hirschman (1995) entendem que, enquanto a identidade moderna era definida pelas atividades de trabalho, na pós-modernidade isso ocorre através do consumo. Momentos de satisfação provenientes do consumo trazem um forte senso de quem somos, como uma breve confirmação de quem queremos ser (RANSOME, 2005). Assim, a expressão da verdadeira identidade ocorre através da satisfação das expectativas de consumo. Os objetos utilizados constituem momentaneamente a identidade. E, por isso, o consumo permite ao consumidor escolher, entre uma infinidade de identidades possíveis, a pessoa que quer se tornar. Valentine e Gordon (2000) sugerem que o consumidor do século XXI constrói continuamente identidades para si mesmo através do processo de consumo e que a identidade é uma posição temporária – o que chamam ‘moment of identity’. Esta variedade de opções, aliada ao caráter transitório das identidades, torna o ato de consumo uma forma de produção do “eu” desejado com base em imagens e estilos transmitidos através das suas posses (THOMPSON, 1995). Esta questão é explorada a fundo por Belk (1988) ao identificar que as posses são incorporadas ao “eu” – o que ele chama de “eu-estendido10”. Mas será que, como a identidade, o consumo também reúne funções de diferenciação e de similaridade? Como aponta Ransome (2005), o consumo volta-se, crescentemente, para atrair atenção e reconhecimento para o proprietário, diferenciando-o dos outros através de seus bens. Por outro lado, o consumo apresenta também um papel de tornar semelhante, no sentido de conformidade às normas do grupo, de ligação social, expressando crenças e valores comuns. Cova e Cova (2002) argumentam que o consumidor escolhe bens ou serviços não apenas pelo seu valor de uso, mas também para conectar-se a grupos e atribuem ao valor de ligação maior importância do que o valor de uso. Baudrillard (1995) observa o consumo como um processo de significação, de classificação e diferenciação social: objetos são consumidos como símbolos que distinguem 8

O consumo complexo decorre principalmente de escolhas; é um processo de significação e comunicação, de classificação e diferenciação social. Inclui três tipos de consumo: afluente (está relacionado a um estilo de vida luxuoso), conspícuo (consumo como forma de comparação com os outros, de enviar mensagens às pessoas) e simbólico (consumo de significados). 9 De acordo com o documento “Critério Padrão de Classificação Econômica Brasil/2008” da ABEP (http://www.abep.org/codigosguias/Criterio_Brasil_2008.pdf). 10 Originalmente “extendend self”. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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o indivíduo, seja filiando-o a um grupo ou destacando-o do grupo. Mas como “o corpo” é classificado e diferenciado nessa sociedade de consumo?

3. CORPO PADRONIZADO E CONSUMO

Não há como construir a identidade sem sua corporificação (MEAD, 1934 apud JENKINS, 2005). É difícil imaginar o “eu” sem o corpo. A representação de fantasmas e espíritos, por exemplo, é feita através de corpos com formas humanas. No ciberespaço, a interação entre as pessoas depende não só de corpos por trás dos computadores (JENKINS, 2005), mas muitas vezes de descrições de suas características físicas. Assim, o corpo pode ser visto como a continuidade do indivíduo, como elemento de identificação de similaridade com o coletivo e como o meio de dar forma à identidade. A aparência corporal é, portanto, determinante nos processos de aquisição de identidade e de socialização (MALYSSE, 2002). Pois o “eu” é exibido para os outros através da sua corporificação (GIDDENS, 2002). Desse modo, deve-se enxergar o corpo como uma base de forma variável para a identidade, como uma “proclamação momentânea de si” (Le Breton, 2003, p. 28). O que é corpo? Ao falar de corpo, aborda-se não só o seu conjunto, mas também seus acessórios, como vestimentas, jóias etc. Ou seja, tudo aquilo que entendemos corporificar o “eu”, pois roupas, jóias e outros acessórios podem distinguir, expressando um senso individual de ser, mas também indicar pertencimento a um grupo (BELK, 1988). Em um contexto social em que o consumo ganha força como definidor da identidade (RANSOME, 2005; THOMPSON, 1995), pode-se conjecturar um crescimento da importância do corpo, principal “outdoor” do consumo individual, como forma de expressar a identidade. O papel do corpo como comunicador da identidade parece realçado com a cultura do “culto ao corpo” que se torna um fenômeno de massa a partir da segunda metade do século XX, com a propagação de normas, imagens e ideais estéticos, criação de novas carreiras e expansão de cuidados com o rosto e o corpo. Neste momento, cresce o grau de influência da mídia sobre os indivíduos, popularizando o interesse pela moda e difundindo o consumo de produtos de beleza, o que transforma a aparência, cada vez mais, em parte fundamental da identidade das pessoas. Mais tarde, no início do século XXI, o culto ao corpo torna-se uma obsessão e até mesmo um estilo de vida (GOLDENBERG, 2002, 2007a). O consumo marca a passagem da natureza à cultura, do corpo natural ao corpo artificial – construído, moldado (BAUDRILLARD, 1995). O corpo deixa de ser algo natural para ser uma construção cultural, que comunica signos que posicionam socialmente o indivíduo (GOLDENBERG, 2002). O corpo converte-se em massa de modelar, torna-se transitório e manipulável de acordo com a moda mais recente (LE BRETON, 2003). Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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De acordo com Malysse (2002), em nossa sociedade esse corpo ideal é cada vez mais um corpo aperfeiçoado artificialmente, transformado em norma e difundido pela mídia. Ou seja, massa a ser modelada através do consumo de acordo com os padrões culturalmente aceitos. Os indivíduos são bombardeados com imagens deste corpo normalizado e, ao se perceberem diferentes da norma, desenvolvem insatisfação ou rejeição pela sua própria aparência. Com isso, mesmo muitas vezes perfeitamente saudáveis, passam a considerar seu corpo como defeituoso, necessitando correção (MALYSSE, 2002). Acentuando ainda mais o constrangimento desses indivíduos, a mídia divulga intensivamente as mais diversas formas de aperfeiçoamento de seus corpos. A partir desse processo de normalização de ideais de beleza, os indivíduos desenvolvem uma extrema autocrítica em relação ao seu corpo, e qualquer desvio em relação ao corpo idealizado transforma-se em um problema contra o qual é preciso lutar (THOMPSON, 1995). De acordo com Goldenberg e Ramos (2002), a busca pelo corpo em forma representa para os corpolátras11 uma luta contra a morte simbólica, que ocorre quando a sociedade marginaliza aqueles que não se ajustam aos padrões vigentes, que vão se tornando deprimidos e perdendo a vontade de viver. Sabino (2000) nos mostra que a forma física é essencial nas interações sociais nas academias de musculação. Ali, não estar em forma significa não compartilhar das práticas do grupo e, assim, ser excluído da convivência. A não conformidade corporal às normas vigentes tende a reduzir a auto-estima do indivíduo. Muitas pessoas mostram apreensão em despirem-se em público ou mesmo sozinhas por conta da dificuldade em exibir sem artifícios todas as imperfeições de seus corpos (GOLDENBERG, 2002b). Essa rejeição ao corpo fora dos padrões e a necessidade de conformidade fica evidenciada pelo relato de mulheres que buscam na “malhação” um novo corpo, que as faça se sentir melhor com elas mesmas (MALYSSE, 2002) ou quando mulheres relatam sua necessidade de “estar em paz com o corpo” ou de “gostar do próprio corpo” (GOLDENBERG, 2002b, p. 26). Para gostar do corpo ou se sentir bem com ele é preciso estar de acordo com os padrões socialmente aceitos. A ampla oferta atual de “corretivos” para o corpo (de cirurgias plásticas a maquiagem, passando por programas de musculação e ginástica, dietas, cosméticos, tratamentos capilares, etc.) opera uma “democratização” da beleza, eliminando barreiras ou pretextos para a não adequação à norma. Ou seja, coloca o corpo “em forma”, belo e jovem ao alcance de todos, convertendo o indivíduo no único responsável por sua aparência (GOLDENBERG, 2002). O corpo belo deixa de ser uma dádiva divina para tornar-se produto de dedicação, trabalho e força de vontade (GOLDENBERG, 2002b).

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Adeptos da corpolatria, a cultura do culto ao corpo. Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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A partir daí surge uma ‘ética de autocontrole’, enfatizando o controle do corpo através de disciplina e racionalidade como uma necessidade moral, tornando-o um símbolo do caráter moral do indivíduo (THOMPSON, 1995). Assim, na cultura de consumo contemporânea, o consumidor é responsável pelo monitoramento e controle da aparência de seu corpo e de tudo que pode afetá-la, como alimentos e condições ambientais. O corpo aparece, assim, como simulacro do indivíduo, através do qual ele exibe a imagem que pretende dar aos outros (LE BRETON, 2003). Neste sentido, estar “em forma” passa a ser um indicador de sucesso pessoal (GOLDENBERG, 2002), ao passo que um corpo “fora de forma”, doente ou de má aparência torna-se sinônimo de falta de força de vontade, preguiça, indisciplina ou descontrole. A forma do corpo indica seu valor pessoal, sua posição nos relacionamentos sociais, o mérito de seu estilo de vida e, sobretudo, o nível de controle que o indivíduo tem sobre sua vida (THOMPSON, 1995). Neste contexto, a gordura aparece como antônimo da “boa forma”. Mas apenas não ser gordo não é satisfatório, é preciso construir um corpo completamente ausente de gordura, firme e musculoso (LIPOVETSKY, 2000), e qualquer tratamento ou atividade que permita o controle do envelhecimento ou da degradação dos corpos acaba tornando-se mandatório (GOLDENBERG, 2002), passando até a fazer parte dos hábitos corporais, como a higiene (MALYSSE, 2002). O que evidencia a dificuldade de se delimitar a fronteira entre beleza e cuidados pessoais. Cada sociedade possui um corpo típico, culturalmente construído através da valorização de elementos e comportamentos específicos. Em cada cultura, os indivíduos constroem seus corpos e comportamentos a partir da “imitação prestigiosa”, isto é, da imitação de comportamentos e corpos de pessoas que obtiveram êxito ou prestígio (MAUSS, 1974 apud GOLDENBERG, 2007b). Pesquisa12 realizada com mães no Reino Unido mostra que 81% das mulheres ouvidas sentiam-se pressionadas pela aparência das “celebridades-mães” (como Victoria Beckham, Angelina Jolie e Madonna) a se manterem belas e sexualmente atraentes para os parceiros. No Brasil atual, as mulheres de prestígio são principalmente modelos, atrizes e apresentadoras de televisão (GOLDENBERG, 2007b) – todas jovens, belas e magras. Como algumas modelos brasileiras estão entre as mais bem pagas do mundo, esta carreira figura entre as mais desejadas por meninas e adolescentes do país. Assim, o corpo jovem, magro e bonito passa a ser visto como a norma – o ideal – dentro de nossa cultura, e ter ou construir um corpo com essas características passa a ser um objetivo para as jovens.

4. CORPO DIFERENCIADO E CONSUMO

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Alguns dos resultados da pesquisa foram publicados na reportagem “Aparência de famosas pressiona mães comuns, indica estudo”, da BBC Brasil.com em 28/01/08 (acesso em 29/02/2008). Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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Democracia de corpo? O aspecto democrático do acesso ao corpo em forma, ou à beleza, parece questionável. Apesar de a beleza ser vista como fruto de trabalho e força de vontade, está também intimamente relacionada ao poder de compra. O corpo em forma é obtido através do consumo dos mais diversos produtos e serviços de beleza, de academias e personal trainers a cirurgias plásticas, caros procedimentos e cosméticos milionários. Dessa maneira, as mulheres exibem o corpo de sua classe sócio-econômica (MALYSSE, 2002). Status do corpo? Veblen (1987) nos introduz ao consumo como expressão de status e ressalta a ação do vestuário como forma de demonstrar a situação financeira, uma vez que as roupas estão sempre em evidência, sempre sendo observadas. Assim, quando o corpo se torna objeto de consumo (BAUDRILLARD, 1995), ele adquire uma função classificatória, hierarquizante, comunicando símbolos e tornando visíveis diferenças entre os grupos sociais (GOLDENBERG, 2002, 2002b). Segundo Bourdieu (1984 apud Goldenberg, 2002), as distinções de classe estão registradas no corpo, sendo quase impossíveis de esconder. O autor argumenta que o gosto de classe é materializado através do corpo, determinando hábitos alimentares, postura e práticas cosméticas. Com isso, o corpo poderia ser percebido como correspondente da posição do indivíduo na hierarquia social. No estudo de Malysse (2002) sobre a corpolatria carioca, o corpo revela uma distinção social que se dá não apenas através da beleza, mas também da energia empregada na construção da aparência. Como nos mostra Veblen (1987), o consumo se estabelece como códigos de identificação e conduta de classes. Na busca por distinção social, o indivíduo tenta se aproximar do consumo da classe logo acima daquela que pertence. Quando os hábitos de consumo e estilo de vida da classe superior são amplamente disseminados nas classes inferiores, a classe dominante reage então modificando continuamente seus hábitos (SABINO, 2007). Um bom exemplo disso é a moda. Se a identidade é um processo e é construída através da comparação e da interação (JENKINS, 2005; RANSOME, 2005), o corpo age identificando o indivíduo a um grupo e, ao mesmo tempo, distinguindo-o dos outros indivíduos. Com base em observações sobre o culto ao corpo no Rio de Janeiro, Malysse (2002) argumenta que a visão do corpo do outro influencia a percepção que cada indivíduo tem de seu próprio corpo. Além disso, a diversidade de imagens do corpo expostas pela mídia e a exibição pública de corpos promovem o desenvolvimento de códigos comuns para interpretar a aparência física, doutrinando o olhar sobre o corpo e possibilitando interpretações sobre a aparência física do outro. Assim, durante interações sociais, o indivíduo efetua uma interpretação imediata através do olhar, baseada em seu repertório de valores e hierarquias estéticas, classificando a pessoa em determinada categoria ou grupo, o que irá orientar sua relação com ela. O culto ao corpo busca a modificação ativa da aparência física, para que forneça informações intencionais, fabricadas, artificiais, que orientam inteiramente a interpretação Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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(MALYSSE, 2002). Também trabalhamos a apresentação do corpo de forma que os outros percebam quem somos de acordo com o que queremos que eles entendam. (JENKINS, 2005). Ou seja, manipulamos os símbolos comunicados por nosso corpo com o objetivo de gerenciamento de impressão. Em academias de musculação visitadas, a observação dos corpos uns dos outros é uma constante. Ali, a interação social define posições naquele espaço social e classifica os praticantes. A estratificação dos praticantes pode se dar através do tamanho dos músculos. Nesta hierarquia surgem três níveis. No topo estão os fisiculturistas, que são os praticantes de musculação há muitos anos e que gozam de grande prestígio nesse meio, não só por conta de sua aparência, mas também pelo conhecimento prático sobre séries de exercícios, anabolizantes e dietas, adquirido durante os anos de prática, e por isso representam o ponto máximo do praticante de musculação. Logo abaixo estão os veteranos, que não apresentam tanta massa muscular quanto os fisiculturistas, mas por exibirem músculos acima da média, possuem status próximo ao deles. A terceira categoria engloba os demais praticantes, que podem ser considerados normais, gordos, magros, etc., constituindo-se assim em um claro exemplo de hierarquias construídas através do corpo (SABINO, 2000). A hierarquização através do corpo é evidenciada também em outros trabalhos. O estudo de Sabino (2007) sobre louras evidencia uma “hierarquia estético-capilar” no Brasil cujo topo é ocupado pelo cabelo dourado. A existência desta hierarquia fica visível clara através dos modelos de beleza presentes na mídia. Os principais modelos de beleza atuais apresentam pele branca, cabelos louros e olhos azuis – como exemplo, Sabino (2007) cita Gisele Bündchen e Xuxa, que estão sempre na mídia. O cabelo louro, por estar relacionado a nações consideradas representantes da superioridade étnica e civilizacional, parece ter se tornado entre as mulheres brasileiras um item de consumo e de busca de distinção. Por outro lado, o cabelo da mulata parece ocupar a última posição desta hierarquia estética, fato que é fortalecido pela presença da mulata na mídia restringir-se quase que somente ao carnaval (SABINO, 2007). Esta hierarquia estética brasileira, onde cabelos são categorizados, também aparece no trabalho de Edmonds (2002), de Bouzón (2008) e de Rosário e Casotti (2008). O cabelo pode ser visto como um importante meio de manipulação da identidade (BOUZÓN, 2008). A ética de autocontrole dos corpos estende-se ao cabelo, tornando um cabelo mal cuidado um motivo para a rejeição social. Assim, o cabelo, bem como o corpo, comporta significados e é capaz de classificar, hierarquizar, incluir e excluir, qualificar e desqualificar (BOUZÓN, 2008). Marcadores de hierarquia corporal também podem ser encontrados no contexto da dança de salão, onde a posição social é marcada através de roupas e acessórios específicos. Quanto mais elevada a posição, mais presentes estão as saias rodadas, decotes, babados, vestidos com fendas, maquiagens, brincos. Da mesma forma, o comprimento dos cabelos e a altura dos saltos dos sapatos estão diretamente relacionados à posição hierárquica das dançarinas (MASSENA, 2007). Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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O processo de observação e comparação dos corpos nas academias apresentado por Sabino (2000) reforça o autocontrole constante da aparência e a necessidade de distinção social. Assim, os marombeiros estão permanentemente insatisfeitos com sua forma física, sempre precisando melhorá-la, aumentando, endurecendo ou definindo a massa muscular (SABINO, 2000). Ou seja, incessantemente em busca da forma ideal, que é inalcançável. Da mesma forma, Edmonds (2002) nos mostra que a cirurgia plástica parece ser mais do que apenas a adequação a um padrão, tornando-se a busca interminável de um objetivo que sempre se afasta. Isso parece ter relação com a impossibilidade de satisfação, defendida por Bauman (2001). Segundo o autor, na era contemporânea os desejos estão em constante movimento, condenados a permanecer insaciáveis, pois estão sempre se modificando antes de serem completados. A satisfação nesta sociedade nunca é realmente satisfatória, pois sempre surge um novo desejo que a torna obsoleta antes de chegar ao fim. Pode-se entender que a proximidade entre o corpo e identidade não se limita ao corpo inteiro, também pode ser observada considerando partes separadas do corpo. Isso aparece na pesquisa de Prelinger (1974 apud BELK, 1988) na qual foi testado em que nível oito categorias de bens e partes do corpo são consideradas como parte do “eu” (self), e as relações mais fortes foram obtidas para as partes do corpo. Indo mais além, a pesquisa de Belk (1986 apud BELK, 1988) busca montar uma escala mostrando como as partes do corpo são incorporadas de forma diferente ao senso do “eu” (escala de selfness). Os resultados mostram que as partes mais relacionadas ao eu seriam os olhos, seguidos do cabelo, do coração, das pernas e mãos, dedos, genitais, pele, nariz, joelhos, queixo, rins, fígado e garganta. Interessante notar que aqueles que haviam passado por alguma alteração opcional do corpo como cirurgia plástica e tatuagem tendiam a posicionar as partes afetadas como sendo mais parte do “eu”. As partes e formas do corpo também têm fundamental importância como marcação de gênero. Sabino (2007) nos mostra como os pêlos marcam a diferenciação de gênero: em geral, mulheres caracterizam-se pela ausência de pêlos no corpo e muito cabelo na cabeça, enquanto homens apresentam pêlos nos peitos, pernas e costas e em pouca quantidade na cabeça. No entanto, no contexto das academias de musculação, os homens aparecem depilados por todo o corpo – com o objetivo de chamar atenção para os músculos que cultivam com afinco. Por outro lado, as mulheres cultivam pêlos louros – muitas vezes artificialmente – em regiões que destacam sua sexualidade como ventre, coxas e quadris (SABINO, 2007). Tanto Malysse (2002) quanto Sabino (2000) mostram que a estética de gênero divide o corpo em dois, diferenciando partes trabalhadas por homens e mulheres. As partes inferiores (coxas, nádegas e abdômen) simbolizam a feminilidade e são enfatizadas na malhação das mulheres. Enquanto isso, as partes superiores (braços, ombros, peito) representam os atributos da virilidade e são aquelas que os homens preferem desenvolver. Marcas corporais também apresentam função de identificação. Em algumas sociedades marcam ritos de passagem ou indicam a posição social na comunidade, o que Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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as carrega com valor de identidade (LE BRETON, 2003). A tatuagem foi, durante muito tempo, uma forma de diferenciação e pertencimento a um grupo de resistência às normas, uma forma do indivíduo afirmar uma identidade escolhida. Atualmente a tatuagem – assim como outras marcas corporais, como piercing, laceração, stretching etc – parece ter perdido a característica de resistência e passa a ser vista apenas como uma tentativa de diferenciação individual. Como coloca Le Breton (2003), essas marcas buscam completar um corpo que se apresenta “insuficiente para encarnar a identidade pessoal” (p.40). Para reforçar o relacionamento entre bens e “eu”, Belk (1988) cita a perda de bens impactando e diminuindo o senso do eu. Isso ocorre também com a perda de membros do corpo, como amputações, ou até mesmo a perda de cabelos. Talvez seja possível extrapolar esta idéia para o envelhecimento, no sentido da perda da aparência ou do rosto jovem impactando a identidade. Esta sensação de perda relacionada ao envelhecimento pode gerar, muitas vezes, uma lacuna entre o exterior e o interior do indivíduo, isto é, entre como alguém é visto e como este alguém se sente (EDMONDS, 2002). Como afirma Le Breton (2003), as cirurgias plásticas são formas de reduzir o “desvio experimentado entre si e si” (p. 30). Um exemplo disso aparece em uma das entrevistadas de Edmonds (2002) que afirma que o rejuvenescimento fácil por que passou refletia o seu desejo de ‘parecer consigo mesma’. O seu “eu” (a sua identidade), neste caso, estava relacionado à aparência de seu rosto quando jovem – e este sim seria o seu “verdadeiro” rosto. A entrevistada ainda acrescenta que considera roupas como um meio de expressão pessoal, enquanto o corpo envelhecido é visto como uma “roupa falsa” que transmite uma imagem do eu diferente da que tem de si mesma (EDMONDS, 2002). Uma vez que a identidade possui um caráter de interação social e que a aparência corporal é fundamental na construção da identidade e na socialização, muitas vezes indivíduos buscam modificar a forma do corpo num esforço de integração à sociedade. Neste sentido, muitas vezes a cirurgia plástica é utilizada por indivíduos em crise, que buscam ali a possibilidade de modificar o olhar sobre si e, com isso, acreditam poder mudar sua vida, seu sentimento de identidade e sua relação com o mundo (LE BRETON, 2003). Como coloca Malysse (2002), ao transformar sua forma, o indivíduo procura dominar tudo que foge ao seu controle na vida social. Isso parece ajustar-se bem à afirmação de Ivo Pitanguy (apud EDMONDS, 2002) na qual o objetivo da cirurgia plástica surge como “a harmonização do corpo com o espírito (...) visando a estabelecer um equilíbrio interno que permita ao paciente reencontrar-se, reestruturar-se, para que se sinta em harmonia com sua própria imagem e com o universo que o cerca” (p. 215). Corpos submetidos a fortes imposições estéticas? Por estar carregado de significados, o corpo, embora pareça experimentar uma maior liberdade por conta de um maior desnudamento e uma maior possibilidade de exposição pública, encontra-se na verdade pressionado e limitado por regras sociais (GOLDENBERG, 2002b). A cultura do culto ao corpo ou, como coloca Lipovetsky (2000), a “febre da beleza-magreza-juventude” evidencia um paradoxo entre o ideal individualista e a exigência de conformidade: quanto Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 73-87 2008

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mais estabelecido está o ideal de autonomia individual, mais forte se torna a exigência de conformidade aos padrões sociais do corpo. Corpo padronizado ou corpo diferenciado? Corpos nas prateleiras repletas de produtos para sua padronização mesmo sendo a diferenciação uma busca infindável nos estudos do comportamento do consumidor.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se, como já foi dito, a identidade depende de comparação, e se ao primeiro contato que se tem com alguém, essa comparação é, sobretudo, baseada na aparência – na tentativa de classificar esse alguém em alguma das categorias conhecidas, o corpo seria como a ‘ponta do iceberg’ da identidade. A partir dele, é possível intuir o que se encontra embaixo, mas é possível estar vendo apenas o que o outro quer mostrar, não necessariamente como ele realmente é (GOFFMAN, 1985). Ao mesmo tempo em que, na sociedade de consumo, a manipulação dessas impressões e a individualização parecem se tornar mais simples, dado que as mais variadas “identidades” estão disponíveis nas prateleiras ao alcance do consumidor, as coerções estéticas encontram-se cada vez mais vigorosas, impondo a necessidade de conformação dos corpos ao padrão culturalmente aceito: beleza, juventude e magreza. No contexto de culto ao corpo, até o que é visto como decente acaba sendo transformado: não é mais o corpo nu que é indecente, mas o corpo fora de forma que deve ser escondido (GOLDENBERG, 2002b). A disseminação de imagens desse corpo normalizado através da mídia pode criar nos indivíduos uma rejeição pela própria aparência e/ou, ainda, uma discriminação daqueles que não se conformam com as regras. Neste aspecto, o consumo como possibilidade de modificação e normalização da aparência, vem reforçar o caráter distintivo e classificatório do corpo. Assim, pela sua necessidade de semelhança – no sentido de adequação aos padrões do grupo – e por sua propriedade de distinção, o corpo apresenta um papel essencial na construção da identidade. Este ensaio é um convite para mais estudos que possam interpretar essa complexa e curiosa ligação entre identidade, consumo e corpo. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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and the demand for conformity: the more established the ideal of individual autonomy, stronger becomes the demand for conformity to body-related social standards. This essay is a trigger to studies that might help interpreting the elaborated and peculiar connection between identity, consumption and body.

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AUTORAS

Roberta Dias Campos Doutoranda em Administração de Empresas, COPPEAD / UFRJ – Turma 2007 M.Sc. em Administração de Empresas, COPPEAD/UFRJ - Turma 1996 DEA (Máster) em Ciências Sociais, Paris V – Sorbonne – 2003 / 2004 Graduação: Comunicação Social, ênfase em Publicidade e Propaganda (UFRJ) E-mail: [email protected] Luciana Walther Doutoranda em Administração de Empresas, COPPEAD/UFRJ - 2007 M.Sc. em Administração de Empresas, COPPEAD/UFRJ - Turma 2000 Graduação: Arquitetura e Urbanismo (UFRJ/1997) E-mail: [email protected] Renata Cavalcanti Cid Rodrigues M.Sc. em Administração de Empresas, COPPEAD/UFRJ - Turma 2007 Graduação: Informática (PUC-RJ/1993) e Psicologia (UERJ/2004) E-mail: [email protected] Renata Figueira M.Sc. em Administração de Empresas, COPPEAD/UFRJ - Turma 2007 Graduação: Administração de Empresas (UERJ) E-mail: [email protected] Fernanda Chagas Borelli Mestranda em Administração de Empresas, COPPEAD/UFRJ - Turma 2007 Graduação: Economia (UFRJ/1999) E-mail: [email protected]

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NORMAS PARA SUBMISSÃO DE TRABALHOS 1. OBJETIVO Estimular e divulgar a produção acadêmica do corpo discente do COPPEAD, constituída pelos alunos dos cursos latu sensu, mestrado e doutorado. 2. CARACTERÍSTICAS DOS TRABALHOS Os trabalhos publicados nos Cadernos Discentes COPPEAD deverão ser sempre inéditos, subdividindo-se em duas classes: original, quando apresenta temas ou abordagens próprias e de revisão, quando resume, analisa e discute informações já publicadas. Cada Caderno terá, em média, quatro artigos e será publicado assim que quatro artigos sejam aprovados (não existirá periodicidade). Os trabalhos deverão cobrir os tópicos e práticas de Administração, relacionados com os seguintes grandes temas: a) b) c) d) e) f) g)

Economia e Finanças; Empreendedorismo; Estratégia, Sistemas de Informação e Organizações; Marketing; Negócios Internacionais; Operações, Logística e Tecnologia; Planejamento e Controle. 3. SUGESTÕES DE TRABALHOS

a) Trabalhos de final de curso que tiveram, de preferência, conceito A ou equivalente; b) Revisões de literatura; c) Teses e dissertações que não viraram artigo ou livro. 3.1 Exclusões Não serão aceitos os trabalhos que forem análise de um caso didático. 4. NORMAS EDITORIAIS O conteúdo deve ser semelhante, em forma, ao de um artigo a ser submetido a qualquer revista ou congresso, não se exigindo, no entanto, a mesma profundidade teórica ou empírica. a) Os trabalhos deverão ser submetidos no formato pré-estabelecido no parágrafo 4.1; b) Os trabalhos poderão ser submetidos por um professor ou pelo próprio aluno; c) Trabalhos submetidos pelo professor já deverão vir acompanhados do formulário de avaliação proposto; d) Trabalhos submetidos diretamente pelo aluno, serão posteriormente avaliados pelo professor responsável pela disciplina ou então por um professor indicado pelo Editor; e) O Editor poderá solicitar a avaliação de um segundo docente (do Instituto ou externo); Cadernos Discentes COPPEAD, Rio de Janeiro, n° 31, p. 1-90 2008

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f)

O Editor será escolhido pela Diretoria do Instituto, dentre os membros do seu corpo docente; g) Toda vez que o trabalho citar nomes de empresas os seguintes procedimentos serão adotados: • • • •

O Aluno deve indicar se a coleta de dados foi feita na empresa e, nesse caso, solicitar a autorização da empresa para a publicação; O Professor que avalia o trabalho deve verificar se alguma empresa foi citada ou se sua identificação é óbvia (nas duas situações, somente para casos com dados primários); O Editor é responsável por verificar se a autorização foi dada (nos casos em que o professor avaliador verificar que alguma empresa foi citada a partir de dados primários); O Editor é responsável, com o auxílio do professor, de resolver os casos em que o nome da empresa não tenha sido citado, mas a identificação seja óbvia.

4.1 Estrutura dos trabalhos Sugere-se que a estrutura do trabalho siga as seguintes recomendações: a) Os trabalhos deverão ter a extensão máxima de 20 páginas incluindo notas e referências bibliográficas; b) Deverão estar em formato Microsoft Word for Windows; c) O texto deverá ser apresentado em papel A4, margens a 3,0 cm, utilizando caracteres em Futura LT BT, corpo 11, com, espaçamento múltiplo de 1,2 cm; d) Apresentar em página separada: título do trabalho, nome completo do(s) autor(es) acompanhado de breve curriculum mencionando profissão, titulação acadêmica, vinculação institucional com endereço completo, telefone, fax e e-mail; e) Título: deverá ser breve e descritivo contendo palavras que representem o conteúdo do texto; f) Deverão conter um resumo em português, de aproximadamente 100 palavras, acompanhado da versão em inglês (abstract), ressaltando objetivo, método, resultados e conclusões do trabalho; g) Palavras-chave: três a cinco termos que expressem o conteúdo do texto, com a devida versão em inglês; h) Texto: deverá apresentar introdução expondo objetivos e metodologia, desenvolvimento tratando da matéria de forma clara e objetiva e conclusões, destacando os resultados obtidos. As seções e sub-seções deverão ser numeradas com títulos próprios evitando-se símbolos e demais caracteres que não denotam estrutura hierárquica do texto; i) Deverão conter referências bibliográficas relacionadas com o assunto, seguindo as regras da ABNT; j) As citações ao longo do texto deverão conter a fonte e serem apresentadas seguindo o padrão sobrenome do autor, ano de publicação e página. Exemplo: (BETHLEM, 1999, p. 3); k) Apêndice: texto autônomo que complementa a argumentação principal; l) Anexo: texto que serve de fundamentação, comprovação ou ilustração; m) Notas deverão ser apresentadas em ordem progressiva ao longo do texto com sua respectiva lista ao final do texto, localizadas depois das referências bibliográficas.

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