DOS JOVENS DO PRENDA PARA A ETERNIDADE

Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras 15 a 28 de Agosto de 2017 | Nº 141 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça • Kz 50,00 ARTES Pág. 9 LETR...
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Cultura Jornal Angolano de Artes e Letras

15 a 28 de Agosto de 2017 | Nº 141 | Ano VI • Director: José Luís Mendonça •

Kz 50,00

ARTES

Pág. 9

LETRAS

Pág. 5

SOLA,ZÉ KENO, SOLA

DOS JOVENS DO PRENDA PARA A ETERNIDADE Quem guarda a memória da evolução vocal e instrumental do Semba não pode deixar de regurgitar, lá bem no fundo da alma, um verso da canção de Tony Caetano, que diz “sola, Zé Keno, sola”. Este verso nasceu espontâneo da veia inspiradora de Caetano, como uma homenagem a um dos maiores solistas de Angola, que só deve ao congolês Francô, “o feiticeiro da guitarra”, a impregnação da voz à telúrica vibração do metal.

CHÓ DO GURI A FILHA DO ALEMÃO QUE FOI PRÉMIO MARQUÊS DE VALLE FLOR Guri conquista, conquista, em 2003, o Chó do Guri prémio do Instituto Instituto Marquês Marquês de Valle Valle prémio Flor para para a literatura literatura africana africana pelo seu Flor primeiro romance, romance, "Chiquito "Chiquito de CamuxiCamuxiprimeiro ba". Chó do Guri Guri (negação da criança) criança) ba". carrega no pseudónimo o peso de ter ter carrega negra e pai branco branco nascido filha de mãe negra e, portanto, por tanto, como como diziam os padres padres e, católicos na altura, altura, "filha " filha do pecado”. pecado”. católicos “Chó do Guri, Guri, um dos nomes mais “Chó impor tantes da literatura literatura angolana, importantes mer merece ece outr outro o olhar por par parte te dos críticos críticos lit literários erários por fforma orma a ccolocar olocar o seu nome no pa patamar tamar que mer merece. ece.

LETRAS

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“RAÍZES CANTAM” NA PENA DE JOB SIPITALI A província volta olta a província de Benguela Benguela v inscrever, dourada, om caneta dour ada, inscreverr, ccom história produção na hist ória da pr odução literária lit erária angolana, um poemário «Raízes poemár io cconsistente, onsistente, «R aízes Cantam», desponta C antam», que despon ta da pós-guerra. segunda década do pósguerra.

DIÁLOGO INTERCULTURAL INTERCULTURAL DIÁLOGO

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ESCULTURAS DE LAONGO MUSEU UM MU SEU A CÉU ABERTO Laongo,, a 32 quilómetr quilómetros Ouagadougou, artistas Em Laongo os de O uagadougou, ar tistas deixaram esculturas deixaram ccentenas entenas de escultur as ccontemporâneas, ontemporâneas, que traçam cultura popu-traçam com com delicadeza a cultur a e o quotidiano da popu lação afr africana. icana.

2 | ARTE POÉTICA

DOIS POEMAS DE JOB SIPITALI

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Cultura

Cultura

Jornal Angolano de Artes e Letras Um jornal comprometido com a dimensão cultural do desenvolvimento Nº 141/Ano VI/ 15 a 28 de Agosto de 2017

E-mail: [email protected] site: www.jornalcultura.sapo.ao Telefone e Fax: 222 01 82 84 CONSELHO EDITORIAL

…O MITO DA COR… Toma-se a cor pela palavra. A garganta enriquece-se de mitos nocturnos. A fogueira evoca os espíritos, enquanto a lenha se prolonga esperando a verdade. Mente quem conhece a história do pescador de palavras. E eu sou balaio que se estende ao silêncio.

…À PROCURA DE IDADE… Como se prepara a imortalidade? Pede existência aos pais. Fica doente e não procures saúde, mas viaja para ela se alegrar. Toma o que quiseres. Pronuncia Humano no silêncio. Agora vai ao hospital. Morre no banco de urgência. Atingiste a idade (a confissão diária).

Director e Editor-chefe: José Luís Mendonça Editor: Adriano de Melo Secretária: Ilda Rosa Assistente Editorial: Coimbra Adolfo (Matadi Makola) Fotografia: Paulino Damião (Cinquenta) Arte e Paginação: Jorge de Sousa Alberto Bumba Sócrates Simóns Edição online: Adão de Sousa Colaboram neste número:

Angola: António Fonseca, Gociante Patissa, Hugo Fernandes, Job Sipitali, Lito Silva, Luciano Canhanga, Pedro Mayamona, Sandra Poulson Brasil: Flora Pereira da Silva, Teresinka Pereira

Normas editoriais O jornal Cultura aceita para publicação artigos literário-científicos e recensões bibliográficas. Os manuscritos apresentados devem ser originais. Todos os autores que apresentarem os seus artigos para publicação ao jornal Cultura assumem o compromisso de não apresentar esses mesmos artigos a outros órgãos. Após análise do Conselho Editorial, as contribuições serão avaliadas e, em caso de não publicação, os pareceres serão comunicados aos autores. Os conteúdos publicados, bem como a referência a figuras ou gráficos já publicados, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.

Os textos devem ser formatados em fonte Times New Roman, corpo 12, e margens não inferiores a 3 cm. Os quadros, gráficos e figuras devem, ainda, ser enviados no formato em que foram elaborados e também num ficheiro separado. Propriedade

Sede: Rua Rainha Ginga, 12-26 | Caixa Postal 1312 - Luanda Redacção 222 02 01 74 |Telefone geral (PBX): 222 333 344 Fax: 222 336 073 | Telegramas: Proangola E-mail: [email protected] Conselho de Administração António José Ribeiro (presidente)

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RELENDO A HISTÓRIA DO KONGO ANTÓNIO FONSECA (Jornalista na RNA)

Como já amplamente noticiado e divulgado, desde o passado dia 8 de Julho Mbanz’eKongo, a capital do antigo Reino do Kongo, passou a figurar da lista do património mundial da UNESCO. Se tal se apresenta como um desafio quanto à exploração económica das oportunidades decorrentes da nova situação daquela cidade e impõe aosespecialistas angolanos em antropologia e história a contínua e aprofundada investigação destas matérias quanto ao Kongo, a nós suscita a possibilidade e necessidade de contar a história a partir da nossa própria perspectiva, já que entendemos que muitas das fontes escritas e que têm servido de base à redacção dos livros de história estão eivadas de erros que importa corrigir, como de resto já tivemos a oportunidade de defender por várias vezes no programa Antologia, da RNA.

ECO DE ANGOLA | 3

Em nosso entender, impõe-se cada vez mais o recursos às ciências auxiliares da história e particularmente à linguística e ao estudo da tradição oral estas que, de resto, tiveram uma importância decisiva no processo de classificação a que vimos aludindo já que, através das mesmas, foi possível “a delimitação do Centro Histórico de Mbanza Kongo, através das conhecidas 12 fontes de água que circundam a cidade e que estão ligadas ao momento da fundação do Reino do Kongo,” reino este que foi constiudo por”1 nove províncias e “três regiões (Ngoyo, Kakongo e Loango),”2 e cuja influência se estendia também aos estados limítrofes, do Ndongo, Matamba, Kassanje e Kissama. MBanzaKongo significa literalmente, cidade do Kongo, pelo que na língua se pronuncia como Mbanz’eKongo, ou Mbanza a Kongo, mesmo que no português se veja grafado simplesmente como Mbanza Kongo, vendo-se eliminado o “a”, correspondente no português à contracção da preposição “de” com o artigo definido “o”. Quanto à pronúncia Mbamz’eKongo, presente no kisolongo e outras variantes do kikongo que se estendem do litoral à linha imaginária que vai do Bembe a Kindeji, localidade esta conhecida também como Bessa Monteiro e que foi um dos mais temíveis bastiões da luta de libertação nacional e em que ressoou o nome do lendário Pedro Afamado, o som “e”, presente na designação Mbanz’eKongo, resulta da contracção do “a” final de Mbanza com a preposição “a”, correspondente no português à expressão “do”.

NTINU, MANI?

NTOTELA,

A cidade de Mbanz’eKongo, ou Mbanza a Kongo, de acordo com a variante da língua que esteja a ser usada, teve administrativamente no período colonial o nome São Salvador do Congo, o que alude quer ao Reino do Kongo, quer, mais tarde, ao Congo Português, um dos três Congos em que, pelos colonizadores, foi retalhado parte do antigo Reino do Congo, dando origem ao Congo Leopoldeville, sob colonização belga, hoje Congo Democrático, com capital em Leopoldeville hoje Kinshasa, Congo Brazaville, sob colonização francesa e Congo Português, sob ocupação portuguesa, com capital em Maquela do Zombo e depois em Cabinda. Importa dizer que o Distrito do Congo existiu desde 1887 em por força do parágrafo único do artigo 2º. do Decreto Orgânico do Distrito do Congo, de 31 de Maio de 1887, sendo que pela portaria nº. 867, de 10 de Julho de

1912 foram aprovados os limites provisórios do mesmo. Por outro lado, pelo Decreto nº. 3 365, de 15 de Setembro de 1917, foi transferida a sede do Governo do Distrito do Congo, de Cabinda para Maquela do Zombo e pela Portaria nº 150, de 21 de Junho de 1918, a província de Angola passa a dividir-se em dez distritos administrativos, continuando a sede do distrito do Congo em Maquela do Zombo. “Por Portaria nº. 50, de 28 de Fevereiro de 1919, os territórios que formavam o distrito do Congo foram desmembrados e passaram a constituir os distritos do Congo e Cabinda, ficando o primeiro com a região continental ao Sul do Zaire e o segundo com o enclave de Cabinda e as ilhas do Zaire. No entanto os serviços de fiscalização e polícia marítima e em geral os serviços de marinha e bem assim os problemas que decorrem da situação internacional especial do extinto distrito do Congo, ficam a cargo do Governador do distrito de Cabinda.” 3 De acordo com Adriano Melo, no seu artigo DESENTERRAR O TEMPO DOS REIS PARA O MUNDO, publicado no jornal Cultura, referente ao período de 18 a 31 de Julho de 2017, o reino do Congo foi fundado por Ntinu Wene

no século XIII, sendo a região governada por um líder chamado Rei pelos Europeus e designado como Manicongo. Ora, é justamente esta informação que nos suscita este artigo em torno do Kongo, pois tal faz-nos recuar à questão da forma correcta de como designar os titulares dos poderes soberanos no contexto Kongo e que já havíamos levantado já em 1985 quando publicamos o livro “Sobre os Kikongos de Angola”, livro então tido por Henrique Abranches como “o primeiro ou um dos primeiros” (…) “ a tentar vencer a etnografia colonial, a informar de dentro para fora(…)”. 4 Quais são os títulos correctos dos titulares máximos do poder no contexto do Reino do Kongo? NTINU, NTOTELA, MANI? QUE OUTROS TÍTULOS HÁ OU TERIA HAVIDO?

MWA NE KONGO

Muitos cronistas antigos e mesmo modernos têm chamado Mani aos governantes das “províncias” do antigo reino do Kongo; porém, este termo nunca foi por nós encontrado, o que, pela importância de tais personalidades e por conseguinte do título que os-

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ferindo-se ao espaço físico e humano de cada um desses titulares, daquele ntinu e deste nfumu. O cronista terá registado MuaniKongo, MuaniSoyo … Os processos linguísticos poderão explicar a transformação da palavra Muani em Mani com que na história se registou a designação dos titulares das então “Províncias” do Reino do Kongo, designação que alguns cronistas pretenderam estender aos demais reinos então existentes no actual território de Angola. Finalmente, importa dizer que a expressão Ne const itui um distintivo de honorabilidade, notoriedade ou respeitabilidade atribuído a alguém e que antecede o nome deste, desde um mais-velho a um titular de cargo, sendo que na actualidade coexiste com a expressão Ndom, tendo o mesmo significado e equivalência. Na actualidade verifica-se a coexistência ou substituição da designação Ne por Ndom, o que será uma corruptela de Dom, que parece-nos ser explicada a partir da obra “Angola, Cinco Séculos de Cristianismo”, de D. Manuel Nunes Gabriel que nos diz ter sido ao abrigo da Carta de Armas que o Congo passou a ter armas próprias, as suas províncias passaram a chamar-se principados, ducados, condados, etc., e os seus chefes príncipes, duques e o rei concedia o hábito de Cristo(...) aos vassalos que desejava premiar e o título Dom torna-se tão frequente no Congo. Escreve o padre Cavazzi que, quando os pais levassem os filhos ao baptismo, embora fossem miseráveis e mal tivessem um farrapo para cobrir a criança, ao perguntarem-lhes o nome, respondiam : “Dom Fulano, Dona Sicrana”. _____________________________________ 1. Melo, Adriano - Desenterrar o tempo dos reis para o mundo, Jornal Cultura, de 18 a 31 de Julho de 2017. 2. Idem. 3. Mendes , Artur - Breve historial do ex-Distrito do Congo português –Portal do Uige e da Cultura Kongo, 2013. 4. Fonseca, António – Sobre os Kikongos de Angola, UEA/ Edições 70, 1985

tentariam, não tem justificação razoável – encontrámos apenas a partícula Ne e os termos Ntotela, Ntinu e Mfumu. Será a partícula Ne o resultado da evolução de um termo mais antigo e mais completo? E o termo Ntotela, que nos aparece com o significado de rei, não se terá constituído por derivação a partir do verbo Tota (Unir), significando inicialmente unidade ou unificador do Kongo? Acreditamos que assim tenha sido, e que o uso ao longo dos séculos veio dar um sentido novo ao termo, consagrando-o então como título real. E os termos Mfumu e Ntinu que ainda hoje subsistem para designar Chefe, nos seus diversos níveis, e Rei? Parecem-nos na verdade serem estes os nominativos correctos para designar os governantes de então. Como hipótese, entendemos que o termo Mani, Mane, Muani e Muane, tidos como sinónimos entre si e que alguns cronistas procuraram generalizar aos demais reinos que existiram no actual território de Angola, resultam da cristalização de um erro decorrente do pouco conhecimento da língua Kikongo por parte de tais cronistas. Em Kikongo, a expressão MwaNe, significa no espaço físico e humano de (alguém), do Chefe da linhagem que possui como nome, o nome próprio daquele. Ora, quando se terá perguntado por alguém, por uma situação ou por um lugar a um natural falante de Kikongo, este terá respondido: MwaNeKongo, MwaneSoyo, e por aí adiante o que, dito em português significa “ no NeKongo, no NeSoyo …”, re-

_______________________________________ Referências bibliográficas Fonseca, António – Sobre os Kikongos de Angola, UEA/ Edições 70, 1985 Fonseca, António – Contos de Antologia – INALD, Luanda, 2008. Mendes , Artur - Breve historial do ex-Distrito do Congo português – Portal do Uíge e da Cultura Kongo, 2013. Melo, Adriano - Desenterrar o tempo dos reis para o mundo, Jornal Cultura, de 18 a 31 de Julho de 2017.

Mapa antigo de Angola

CHÓ DO GURI

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A FILHA DO ALEMÃO

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QUE FOI PRÉMIO MARQUÊS DE VALLE FLOR

JOSÉ LUÍS MENDONÇA

“- Número vinte e dois: Maria Fernanda. - Sim, senhora professora. As professoras faziam pausa quando chegassem ao número vinte e dois, para perguntar-lhe: - Maria Fernanda e mais… Não tens sobrenome. Não tens pai?” (in “A Filha do Alemão”, Chó do Guri, 2006, pág. 201) Em A Filha do Alemão, Chó do Guri ataca o problema do estigma colonial do “filho de pai incógnito”. Como disse um dia a autora, a obra é quase a sua biografia, pois ela era filha de mãe negra e pai alemão. Chó do Guri conquista, em 2003, o prémio do Instituto Marquês de Valle Flor para a literatura africana pelo seu primeiro romance, "Chiquito de Camuxiba". O site da Agência LUSA, de 9 de Fevereiro de 2007, destaca que “Chó do Guri (negação da criança) carrega no seu pseudónimo literário o peso de uma história pessoal comum a muitas crianças africanas, o de ter nascido filha de mãe negra e pai branco e, portanto, como diziam os padres católicos na altura, "filha do pecado". Livro íntimo que tardou quase duas décadas a ser escrito, "A Filha do Alemão" foi usado pela sua autora como mecanismo de auto- aceitação da sua biografia. "Depois do parto desta obra, sinto-me aliviada. Tinha necessidade de me aceitar tal como sou", explicou a escritora, por ocasião do lançamento, em Luanda.” VIVÊNCIAS Toda a boa literatura, mesmo aquela que salta para o espaço quase surrealista da ficção científica (temos na mente as páginas de A Fundação, de Isaac Asimov), é a expressão das vivências do seu autor, é a ilustração material e espiritual da própria sociedade que o rodeia. Chó do Guri manteve a sua escrita presa às suas raízes socio-culturais. Vivências (poemas, 1996), Bairro Operário - A minha História (contos, 1998), Morfeu (poemas, 2000), Chiquito de Camuxiba (Romance, 2006), A filha do Alemão (romance, 2007), Songuito e Katite (conto infanto-juvenil, 2009) são todos reflexos da caminhada de uma Mulher de grande coragem, fé e persistência. Para o escritor Ricardo Manuel: “Chó do Guri nas suas vivências na vida não cala a mágoa de queixumes doloridos e, esbate em tons amargos as figuras empobrecidas dos meninos inquilinos da rua, das prostitutas (quantas vezes incompreendidas!), de almas que amam e são desamadas e dos homens desatentos aos conflitos que tanto apoquentam a humanidade”. Em Portugal, ainda publicou o romance A Perversa, e em 2016, lança em Luanda uma obra ousada pelo seu título Pulas, Bumbas, Companhia Ilimitada e Muita Cuca, 2016. A autora deixou subsídios sobre a sua experiência de vida, numa entrevista a Aguinaldo Cristóvão, publicada no site da UEA: “Nasci na Quibala, mas tenho poucas recordações dela, pois vim para Luanda com dois anos e fui parar ao Bairro Operário. Este bairro marcou-me muito. Naquela altura éramos como

uma família. Tenho muito boas recordações do bairro e da gente que lá morava. Além do mais era um bairro muito carismático. E penso que o que fez a gente que lá morava afeiçoar-se ao bairro era a nossa maneira de viver. Éramos muitas vezes obrigados a defender o bairro para nos defendermos de certas conotações que gente de outros bairros fazia de nós.”

LITERATURA DE COMBATE Chiquito da Camuxiba, que lhe valeria o prémio acima referido, era um menino que “trazia os olhos avermelhados, a carapinha encrespada e enrodilhada de muitos dias sem pentear.” (pág. 5). Esta obra é um filme sobre o drama vivido pelas crianças de e na rua, na cidade de Luanda, “uma chamada de atenção à sociedade no sentido de se ajudar as crianças de rua, para que possam sair da difícil situação em que se encontram.” É esta obra que mais reflecte o modelo de literatura de intervenção social eleito pela escritora. Sobre a outorga do prémio Marquês de Valle Flor, em Portugal, disse, na altura Chó do Guri: “A obtenção deste prémio impulsiona-me a continuar a escrever, contribuindo, com a humildade que me caracteriza, para o progresso da cultura angolana, apresentando as minhas propostas literárias.” O jornal Cultura concorda com o artigo da LUSA quando realça que “Chó do Guri, que nasceu em 1959 na Quibala, província do Cuanza-Sul, é já um dos nomes mais importantes da literatura angolana.” A merecer outro olhar por parte dos críticos literários por forma a colocar o seu nome no patamar que merece.

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ISTO NÃO É POEMA (de Chó do Guri) Isto não é poema É o meu grito de angústia Na boca do povo em algazarra É lamento na rua “é lambula, lambula, lambulééé...” como um cântico à desgarrada Isto não é poema É a dor do desconsolo Ao aperto da miséria “menos preço, menos preço, menos preçoééé...” como um cântico à desgarrada Isto não é poema É vida? É morte? Então o que é Se o meu poema ainda dorme Com a boca de fome Como soneto da casa sem pão Que faz do filho um ladrão “agarra o ladrão, agarra o ladrão, agarro ladrãoééé...” como um cântico à desgarrada Isto não é poema É lamento É o cântico sofrido de um discurso sem fim “é lambula, é lambula, é lambulééé...! menos preço, menos preço, menos preçoééé...! agarra o ladrão, agarra o ladrão, agarra o ladrãoééé...!”

Chó do Guri, pseudónimo literária de Maria de Fá-

tima, morreu na madrugada de 7 de Julho de 2017, em Luanda, vítima de doença. Nascida a 24 de Janeiro de 1959, na Quibala, província do Kwanza Sul, Maria de Fátima começou a dedicar-se à escrita em 1986, altura em parte para Portugal com o objectivo de fazer o curso de ciências farmacêuticas, na Universidade Clássica de Lisboa, e ainda neste país fez a licenciatura em Política Social pela Universidade Aberta de Lisboa.

TERTÚLIA SUNGUILANDO SANDRA POULSON Na nossa Cultura quando um ente querido nos deixa, depois de ele subir para as estrelas, sentimonos na obrigação de fazer-lhe uma festa para homenageá-lo de uma forma que ele gostasse de estar, que se divertisse caso estivesse em presença física. O nosso ente querido gostava de conversa, de música, de interagir com os mais queridos e mais próximos, familiares, amigos, vizinhos, colegas e empregados. No tempo colonial por altura dos Arreais dos Santos Populares, Santo António, o Lisboeta, cuja festa se realiza na noite de 12 para 13 de Junho, depois o São João, Santo Nortenho, com festividades na noite de 23 para 24 de Junho, e por ultimo o São Pedro, festejado no Sul de Portugal a 29 de Junho, em Luanda também se festejava. A festa era densa e atingia o auge no São João. Na Vila Alice, (hoje Bairro NelitoSoares) no desembocar da Rua Almeida Garret, no Largo do Bocage, os jovens faziam uma fogueira ladeada por um pneu de camião, e à volta dela convivíamos, pequenos, grandes e graúdos, gentes de várias idades. Enquanto os mais velhos contavam missossos, estórias, sabus, ditados, anedotas, adivinhas e outros saberes, os

mais novos atiçavam-se uns aos outros o saltar da fogueira, dizendo: - Quem não saltar mãe dele é mbica ( escrava). O nosso ente querido saltava a fogueira e nos intervalos cantava e encantava com as musicas que cujas letras sabia na integra e o ritmo estava-lhe no sangue. Como ele era o ouvinte mais próximo do avôJosé Bastos, que tocava acordeão para o bairro todo, para além de música, sabia aquelas estórias do antigamente que ouvia diariamente. Eram estórias com vida e vida com alegria. Em tempos recentes quando o nosso ente querido vinha ao nosso quintal, as folhas das árvores voavam, os arbustos exibiam as suas flores, os pássaros chilreavam,cantavam e assobiavam, o Sol e a Lua iluminavam-nos. Era um festim para todos. O nosso quintal perdeu a vida este ano, mas não perdeu a alma.Para acalentá-la precisávamos de tirar a kijila, a privação de nos divertirmos, dar-lhe alimento espiritual, comida e bebida. Decidimos fazer uma tertúlia sunguilando em sua memória, com aqueles que se quiseram a nós unir, em espirito, em pitéu e em palheto. Desta vez não houve vinho abafado nem maluvo, mas houve sumo de mucúa e vinho suficiente para nos encharcarmos

sem que ele chegasse ao fim. Não havia nenhuma árvore frondosa, mulembeira, imbondeiro, nem fogueira, como era habitual noutro tempo. Tínhamos o quintal e um jangoonde montamos o palco preenchido de artefactos tradicionais, kindas do Lubango com frutas diversas, do Namibe com vagens da nossa acácia rubra, do Bengocom vagens de moringa, de café e frutos de imbondeiro as múcuas da Barra do Kwanza. Para varrermos as cinzas, tínhamos vassouras de matebae os Kiesos. Para que os espíritos bons ficassem em nós exibimos chapéus de matebeira. Para que os feitiços se libertassem, estava presente uma sanga, um cântaro. Para que os pássaros continuassem a cantar tínhamos ninhos. E como a noite se adivinhava longa ao pé do luandoe da esteira, onde iríamos pôr a conversa no chão, estavam umas kibakas, bancos, de Porto Amboim. Brilharam nas esteiras que faziam de palco, amadores, armadores, poetas com obra publicada, declamadores espontâneos, contadores de estórias verídicas e ficcionadas, cantadores de musica, tocadores de viola, e duas boas vozes de Fado. O progresso deu-nos outros hábitos de convívio, a Internet, Facebook, WhatsApp, Messenger, Skype, Viber, telefone, a Televisão, o contacto das pessoas

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através da imagem de um monitor e auscultadores. Retirando-nos o entretenimento face a face, e com ele foram afundadas as chamadas Literaturas da Noite, aquelas que só desenvolvem depois do poente e que são libertadas sem serem programadas,vêm do âmago. Ora, para libertarmos os espíritos, tínhamos de ressuscitar as nossas culturas ancestrais, bantus ou não, num encontro lúdico onde pudéssemos seroar, sunguilar, iluminados pelo luar, arrefecidos pelo serenar do Cacimbo e dar asas à nossa imaginação de contadores de missossos, de contos, de poemas de canções, de provérbios de adivinhas, enfim mostrar a nossa criatividade comunicando e sentindo o cheiro do outro. Gente diferente de profissão diversa mas com o mesmo ânimo. A jurista declamou Agostinho Neto “ Adeus à hora da largada”, a advogada contou estórias, as professoras cantaram fado, a jornalista artista declamou um poema, o deputado declamou poemas seus já editados, e com montanhas de talento, todos fizeram jus ao seu dote artístico. O dono da casa contou uma estória com receita para retirar espinha de peixe encravada na garganta, a menina da Kumbira, regedoria com nove libatas (aldeias), brotou da sua nebulosa floresta e contou um missosso da sua terra,a Conda, Província do Kwanza-sul, em que ficámos a saber que, na sua terra, quando se falece e não se pede logo a certidão de óbito, altera-se a data da morte, porque a morte também tem prazo. Como estamos em Julho, eu declamei o poema “Três por Quatro “, do meu confrade e amigo Caranguejo, brasileiro de nacionalidade, Mário Alves de Oliveira, com uma extensa obra de investigação publicada no Brasil, sobre o poeta português Casimiro de Abreu, entre outras. Sendo que, no tempo colonial,também publicou em Angola, na cidade do Lobito. TRÊS POR QUATRO

Eu sou assim como se fosse feito de estopa, de cortiça, de isopor: no coração de látex, anódino, transitam mal as emoções, a dor. Os olhos dizem, só não contam tudo do muito que retenho disfarçado. Do signo de câncer, caranguejo, vou lento e defensivo: pelo lado.

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Às vezes rompo a crosta, vou à tona, deixo escapar o sentimento exangue. Os astros não perdoam: sou de Julho, cada gota de amor me custa sangue. (Mário Alves de Oliveira)

Como estamos em tempo seco, o Sol nasceu mais tarde, e para agradecer a sua graça, já depois do caldo e das 5 horas da manhã eu fui até Benguela, terra onde nasceu a poetisa Alda Lara e declamei o seu poema:

TESTAMENTO

À prostituta mais nova do bairro mais velho e escuro, deixo os meus brincos, lavrados em cristal, límpido e puro… E aquela virgem esquecida rapariga sem ternura, sonhando algures uma lenda, deixo o meus vestido branco, o meu vestido de noiva, todo tecido de renda… Este meu rosário antigo

ofereço-o àquele amigo que não acredita em Deus… E os livros, rosários meus das contas de outro sofrer, são para os homens humildes, que nunca souberam ler. Quanto aos meus poemas loucos, esses, que são de dor sincera e desordenada… esses, que são de esperança desesperada mas firme, deixo-os a ti, meu amor… Para que, na paz da hora, em que a minha alma venha beijar de longe os teus olhos, vás por essa noite fora… com passos feitos de Lua, oferecê-los às crianças que encontrares em cada rua… O nosso ente querido, José Carlos, meu irmão de sangue e alma, não dispôs testamentariamente, mas deixou como legado o renascimento do Sunguilamento. Luanda, 14 de Julho de 2017

8 | LETRAS

“RAÍZES CANTAM”

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Cultura

NA PENA DE JOB SIPITALI

GOCIANTE PATISSA

A província de Benguela volta a inscrever, com caneta dourada, na história da produção literária angolana, um poemário consistente, «Raízes Cantam», que desponta da segunda década do pósguerra, cujo marco é o ano de 2010, da qual o autor faz parte. Pede-me o Job Sipitali que prefacie o seu livro. Ora, tenho duas boas razões para negar. A primeira é poupá-lo do azar (a única vez que prefaciei um livro no prelo foi há coisa de cinco anos, e nunca chegou a ser publicado). A segunda razão – e a mais forte – é que a obra tem tudo para vingar por si, com uma maturidade estética tão rara em estreantes e que, por isso mesmo, dispensa qualquer empurrão. Agradeço pois a honra e partilho então estas linhas pela consideração que me merece o autor e a riqueza do texto. «Raízes Cantam», poesia contemporânea congénita, recebe por empréstimo do seu fazedor a relação intensa «cidade-campo», com este último sócio-antropologicamente inconformado na Camisa-de-forças do espaço urbano, onde se viu encaixado à ordem da pólvora. Fica também a interrogação quanto ao que ficou por dizer da parte do autor, tendo em conta as reticências que antecedem e encerram o título de cada poema. Para um leitor que seja falante da língua Umbundu (onde língua implica a cultura deste grupo etnolinguístico de origem Bantu, que predomina no litoral centro, sul e sudoeste de Angola), será inevitável experimentar a intertextualidade entre a tradição oral e o tricotar alegórico do poeta. Temos isto mesmo em ...A ELEIÇÃO DO VERBO..., onde «Acorda-se o silêncio com o sino rural: cocorocó – cocorocó…/ E uma merenda sobre as brasas do fumo/ ergue os olhos da enxada.» Este vívido rural lembra um cântico que indaga com melancolia: «Kulo ka kuli akondombolo / pwãi kucaca ndati?» (Aqui não há galos / então como é fazem para amanhecer?). De resto, «A escrita rural / voa com o fumo / na chama dos parágrafos», como bem advoga o poema …SÁBIO RURAL… No poema …FUTURAS PALAVRAS…, temos a enunciação que leva a inferir que a saúde do futuro reside no reencontro com o que há de lição e tradição no passado, na essência griot. «Vão ao serão / não serão / órfãos de palavras. / No serão ouvem-se / palavras circuncisas./ Vão. Não serão órfãos.» Só mesmo a embriaguez de poeta para ainda crer na exequibilidade de uma tal sugestão de resgate, precisamente numa sociedade, como a angolana, que faz culto (institucional, até) à encarnação mecânica de modelos/padrões identitários e civilizacionais que implicam a auto-negação ontológica africana. Mas há que vestir a certeza que o autor pinta na estrofe primeira do poema …VIAGEM…, que abre o livro: «Verdade ou não importa / o imperativo / dos sonhos.» Atento aos fenómenos, virtudes e degenerações no rumo da sua sociedade, temos no poema …ADJECTIVO… o desencanto pelo papel do intelectual moderno, de quem se esperava, vagalume, guiar o seu povo, intelectual este que, no lugar de defender causas, escolheu defender lados conforme o

da leitura 150 exemplares. Job Sipitali (1985) nasceu no Município do Cubal, Província de Benguela - Angola. É Bacharel em Linguística-Português pelo ISCED (Instituto Superior de Ciências da Educação) - Benguela. É membro e co-fundador da ALCA (Associação Literária e Cultural de Angola), onde exerce a função de coordenador do distrito de Benguela. Escreve, principalmente, poesia e contos.

…NOÇÃO DE CONCLUSÃO… Concluo fazendo o tempo: dos homens, da terra, dos objectos, das vozes naturais, do silêncio celeste. Mas o tempo não cabe na conclusão nem nas coisas vitais. Cabe no Homem. O tempo é ele mesmo. Não tem género. Sigamo-lo com a escrita não com os pés. …A GRAMÁTICA E A ZUNGUEIRA… Corrige-me o destino não o pensamento. Corrige-me o sofrimento não a gramática que gosta de comer bem com os verbos e esquece-se dos pronomes personificados, dos pratos típicos e quentes da sintaxe. charme do aceno. O que resta é que «As almas defendem-se / dos corpos epistémicos / dos filósofos nos olhos.» Ou, dito de outra forma, «O ex professo / Carrega consigo / O nacionalismo aurido» (do poema ...MISSÃO…) Nota-se um distanciamento em relação à tendência dos da sua geração, aquela nota acentuadamente sócio-realista e declarativa, com textos prolixos e a passar ao lado do labor estético. Job Sipitali desponta pela diferença. Traz uma poesia concisa, proverbial e penetrante, enfim um material esteticamente cozido para saltar da gaveta para as páginas de um livro. Que desta promissora lavra venham outros e que receba um acolhimento à altura. Ainda era só isso. Benguela, Angola, 01 de Julho de 2017

Job Sipitali apresentou no domingo (30/07) ao público na Mediateca de Benguela a obra literária de estreia intitulada “Raízes Cantam”. Com 55 páginas, o formato é de livro de bolso e sai pela editora Perfil Criativo, com sede em Portugal, que para a primeira edição coloca à disposição de amantes

Corrige-me a palavra, não a polissemia que gosta de ser híbrida. Corrige-me tudo, menos o pensamento.

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ARTES | 9

SOLA, ZÉ KENO, SOLA! DOS JOVENS DO PRENDA PARA A ETERNIDADE JOSÉ L. MENDONÇA

Quem guarda a memória da evolução vocal e instrumental do Semba não pode deixar de regurgitar, lá bem do fundo da alma, um verso da canção de Tony Caetano, que diz “sola, Zé Keno, sola”. Este verso nasceu espontâneo da veia inspiradora de Caetano, como uma homenagem a um dos maiores solistas de Angola, que só deve ao congolês Francô, “o feiticeiro da guitarra”, a impregnação da voz à telúrica vibração do metal.

Os Jovens do Prenda surgiram numa fase da história da música africana em que o ritmo solo da viola vindo do Congo (RDC) fazia um eco extraordinário nos quadrantes dos Grandes Lagos e da chamada África Ocidental portuguesa, depois de Nicolas Kasanda, Doutor Nico, ter extraído das densas florestas do Congo, das cordas de luz que se filtravam por entre a folhagem, todo um discurso afro-renascentista para a sua guitarra. Em Angola, circulava um som de viola e de guitarra que nos chegava de Portugal e que acompanhava o Fado. Os angolanos sentiram a necessidade expressa no poema de A. Neto, A Voz Igual, de buscar “a forma e o âmago do estilo de vida africano”, os artistas deixaram-se contaminar pelo impulso natural de sorver um trago do retinir iridescente da viola portuguesa, resgatar a plenitude da Rumba congolesa, mas sem deixar de ser genuinamente angolanos. A espessura solar da guitarra começou a africanizar-se desde os tempos de Liceu Vieira Dias e do conjunto Nzaji. Abraçando esse legado, que era já uma arma da luta anti-colonial, pela via da Cultura, Zé Keno, o virtuoso criador de guitarras de lata na infância, traz para a sonoridade da música angolana uma vibração metálica contagiante, electrizante, que nos leva da meditação transcendental (instrumental) à expressividade da dança de salão (merengue e semba). Imortais são os instrumentais “Rufo da Liberdade”, com o conjunto Merengue, e, na barriga mãe dos jovens do Prenda, “Farra na Madrugada”, “Semba Da Ilha”, ou o nostálgico “Ilha Virgem”, para além de outros que vieram decretar a idade de ouro da música angolana, que sabia beber do Carnaval toda a alquimia do batuque, quando ainda não se usava o sintetizador nem o computador. Um dos grandes sucessos que imprime esta virtuosidade do solo zequenista ao Semba cantado é, sem dúvida, “Ngongo”, na voz de António do Fumo. De “Ngongo”, canção da mulher que sabe “nascer filho” (wejia ku vuala), mas não sabe cuidar (kwejia ku sasa), até “Nova Cooperação” vai um salto histórico muito grande. Esta composição magistral, na voz de Dom Caetano, ganharia o Top dos Mais Queridos porque, para além da temática condizente com o novo período da emancipação do povo angolano, é um poema sarcástico em quimbundo (o Semba tem outro entrosamento com as tumbas, o reco-reco e a explosão das violas baixo, solo e ritmo quando cantado numa língua nacional) e a instrumentalização é de todo moderna, bem cuidada, representando já uma fase superior dos Jovitos e do dedilhar calejado mas sintético de Zé Keno.

Zé Keno vibrando em Nova Cooperação.

Desse dedilhar da viola solo, Zé Keno ainda nos legou “Camarada, Patos Fora!” e outras emblemáticas melodias populares dos Jovens do Prenda e do Orfeu guitarrista. Após a notícia da sua partida para Kalunga Ngombe Dijkanga, em jeito de merecida homenagem, restou-nos como recurso ir até à casa de Sansão, amigo de infância de Zé Keno, ali no Cazenga, para recordar tempos que já lá vão e deixaram janelas abertas que a morte não consegue fechar. “COMEÇÁMOS A FAZER VIOLAS DE LATA” Carlos Alberto de Almeida Gomes (Sansão), de 65 anos, conheceu Zé Keno “quando ele veio de Malanje pela segunda vez”, tinha Sansão apenas seis anos de idade. Este encontro inicial decorreu, portanto, em 1958, no bairro Prenda, melhor, no Margoso (onde está exactamente a clínica do Prenda), esclarece Sansão. Zé Keno era dois anos mais velho que Sansão e estudava no Posto 15, perto dos Lotes do Prenda, “mas ele não estudou muito, porque não tinha dinheiro para os estudos”. “Nós começámos a fazer violas de lata”, recorda Sansão, “havia umas latas de azeite-doce que vinham de Portugal, de cinco litros, em forma de paralelepípedo e ele metia cordas de nylon, fazia um braço de madeira e os afinadores. O Zé Keno tinha muito jeito para fabricar objectos e começou a ouvir aquelas músicas dos Jingas, do Duia, tais como “Lamento”, “Mariana” e “Kazuzé” e começou a imitar, tinha ele já oito ou nove anos. Então resolvemos formar um agrupamento chamado Sembas, lá mesmo no Margoso. Era um grupo equipado apenas de tumbas, reco-reco e outros instrumentos rudimentares de percussão, não tínhamos ainda viola. Havia outros grupos no Catambor, mesmo lá no Prenda, e juntou-se os Sembas aos Jovens do Catambor e daí nasceram Os Jovens do Prenda, em 1968. O grupo foi fundado por mim, Zé Keno, Didi, Inácio, Kangongo, Xico Montenegro e o Gama”.

Sansão, enquanto jovem..

10 | ARTES DO NOME ZÉ KENO Havia dois Zés no bairro: o Zé Grande e o Zé Pequeno. Para não criar confusão, e para maior rapidez na comunicação, “abreviámos o nome dele para Zé Keno”, diz Sansão, o primeiro vocalista dos Jovens do Prenda, que nunca compôs música, “eu cantava músicas estrangeiras, principalmente brasileiras e cabo-verdianas. O Zé Kenu é que cantava músicas em quimbundo. Posteriormente entraram a cantar o Didi da Mãe Preta e o António do Fumo”. As primeiras actuações foram no Sambizanga, no Breguês, um euro-descendente que, posteriormente começou a fabricar tumbas de aduelas. Sansão recorda ainda que Zé Keno também tocou no África Show e nos Merengues. “Em 1974 deixei os Jovens do Prenda e fui para as FAPLA”, lembra Sansão, que também recorda o último encontro com o seu companheiro de quase uma vida: “foi no óbito do Kangongo, há mais de cinco anos. Depois disso, nunca mais vi o Zé Keno”. Assim terminava, no plano material, a relação histórico-cultural entre dois homens, uma relação cheia de humildade, afecto, e sobretudo fraternidade, revelada ao Mundo pela música, que daria azo à fundação de um dos mais frutíferos agrupamentos Os Jovens do Prenda, que, por sua vez, guindariam o seu principal solista, Zé Keno, ao Panteão da Eternidade.

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Cultura

LUTO PELO GUITARRISTA ZÉ KENO Zé Keno, jovem virtusoso da viola solo.

MÚSICA ANGOLANA PERDE UM DOS SEUS “GÉNIOS” ADRIANO DE MELO |

Quando se escreve sobre a música angolana, existem nomes, que impreterivelmente sempre vão ser parte importante da sua história. Zé Keno é com certeza um destes. O seu talento na guitarra, que, ao longo dos anos, o fizeram afirmar-se como um dos “génios”, provaram a todos, público, fãs e músicos, que o seu nome merece estar no “hall da fama” dos grandes. Apesar dos instrumentistas não serem tão conhecidos como os cantores, alguns, como Zé Keno, foram e sempre serão excepção. Durante anos, como histórico líder dos Jovens do Prenda, o guitarra solo já recebeu várias homenagens, pelo seu contributo para a valorização e divulgação da música popular angolana. A sua morte, no passado dia 4 de Agosto, na África do Sul, vítima de doença, deixou um “vazio” enorme na música angolana. A perda já foi e continua a ser lamentada em vários sectores da classe. O Ministério da Cultura e a União Nacional dos Artistas e Compositores (UNAC) também exprimiram os seus sentimentos de pesar à família enlutada. Os artistas continuam a fazê-lo, de forma escrita, nas redes sociais, ou em entrevistas aos órgãos de comunicação social. Como realça a nota de condolências do Ministério da Cultura, Zé Keno foi “um guitarrista de mãos cheias”, que conseguiu construir uma carreira bem-sucedida ao longo dos anos e influenciou toda uma geração de instrumentistas. Para quem o ouviu “solar” a sua guitarra, aprendeu a ver inovações no seu jeito de tocar. O seu trabalho, fruto da experiência adquirida com outros artistas de sua época, ajudou a “imortalizar” o agrupamento Os Jovens do Prenda, dos anos 70 e 80, com a produção de grandes referências musicais no mercado da Música Popular Angolana, entre as quais se destacam “Patos Fora”, “Filho Doente”, “PangueYami”, “ Pôr do Sol”, “Huke-

ba”, “Mama”, “Desespero” e “Nova Cooperação”. Como um dos transmissores e defensores da Música Popular Angolana, o guitarrista procurou, frequentemente, manter vivas as suas raízes musicais e, apesar das inúmeras cisões e novos rostos dos Jovens do Prenda, sempre se manteve fiel aos seus ideais. Mesmo antes da sua morte, homenagens não lhe faltaram. O antigo Maria das Crequenhas, hoje centro cultural e recreativo Kilamba, albergou algumas delas. Na maioria todas elas foram consideradas, quer pelos artistas convidados, quer pelo público, como devidas e apropriadas, pois serviram para mostrar a grandeza de um “génio”. O “SOLISTA” DOS JOVENS Nascido, em Malanje, a 15 de Dezembro de 1950, José João Manuel, “Zé Keno”, foi o principal protagonista da trajectória dos Jovens do Prenda que liderou com invulgar mestria, 4 gerações, tendo iniciado, oficialmente, a carreira musical, ao fundar o conjunto, em 1968, juntamente com Chico Montenegro, Didi da Mãe Preta, Tony do Fumo, Augusto Chacaya, tendo ainda como co-fundadores Kangongo, Mingo e Verry Inácio, aos quais se junta o vocalista Gaby Monteiro. Criado em 1968 no bairro do Prenda, em Luanda, Os Jovens do Prenda foram um dos primeiros grupos angolanos a ter reconhecimento internacional. No princípio tinha a designação de Jovens do Catambor, mas, no mesmo ano, adoptou a denominação de Jovens da Maianga e, finalmente em 1969, passam a ter a designação actual. O nome surge a conselho de Manguxi, um empresário do Sambizanga que era proprietário do Salão Braguês e alugava aparelhagens, que lhes disse que “O certo é denominar o grupo com o nome do bairro de onde vocês são provenientes”, daí o nome Os Jovens do Prenda, já que o grupo era originário deste histórico de bairro Luanda. Uma segunda geração dos Jovens do Prenda surge em

Artista ajudou a divulgar a Música Popular Angolana

1980 e anos seguintes, com Dom Caetano, Zecax, Mingo Canhoto, Kintino, Twely Bamba, Romão Teixeira, Alfredo Henriques, Deodenay, Tomé Domingos, Conceição Alberto, Luís Matoso “Massy”, José Fausto Ricardo, Cassiano dos Santos, Julinho Vicente. E depois, Zé Mueneputu, que forma, actualmente, dupla com Imperial Baião.

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“O MUNDO COLORIDO DATAYA”

ARTES | 11

A SOCIEDADE SOB OUTRA PERSPECTIVA ADRIANO DE MELO |

Quando entramos para a galeria Mov’Art para visitar a exposição “O Mundo Colorido daTaya” ficamos com a ideia de estarmos em busca de algo diferente, talvez, tons e cores diferentes. Depois de minutos a percorrer o espaço essa é a ideia que temos, pois a mostra é um convite para conhecer mais a sociedade angolana e os seus membros, a partir da perspectiva da sua criadora. Resultado de anos de experiência, a mostra, inaugurada no passado dia 26 de Julho, mais ainda patente, propõe a cada um dos seus visitantes, uma viagem ao “mundo imaginário” da artista Joana Taya, no qual a primeira característica é a exteriorização espontânea das vivências de todos que constituem o seu “universo”, incluindo a própria. Sem conceito e predefinições típicas das belas artes, a artista decidiu recriar todo um “mundo” diferente, onde critica determinados comportamentos negativos da actual sociedade moderna, não só a angolana, como também a mundial. “É importante sentir o mundo, ser humano, interagir mais com os outros e preservar a natureza. Para a construção de uma sociedade melhor precisamos também começar a pensar em reforçar a luta contra os conflitos gerados pela competição, egocentrismo, discriminação, ou poluição”, destaca Joana Taya. Produzidas em acrílico sobre tela, com recurso também a técnica de colagem em papel reciclado, os 13 trabalhos da artista, que ficam patentes ao público até Setembro, são uma resposta a sua própria mudança de vida, assim como uma prova da sua adaptação a novas realidades socioculturais, na viagem que a levou de Angola até outros países da Europa, com destaque para Portugal e Noruega. Carregada de expressões, a mostra, cujos pensamentos da artista dão cor aos estados de alma das pessoas, apresenta ainda traços de um percurso propositadamente desalinhado. Outro detalhe que sobressai na mostra são as várias interrogações que a artista faz a cada um dos seus visitantes. “Onde se encontra a sensibilidade humana?”. “Estamos em tempos muitos sensíveis, tem que haver tolerância, empatia e humildade, uns para com os outros”, disse a artista, acrescentando que quer ter um papel activo e contribuir mais para um mundo melhor. Para quem como a artista está preocupada em conservar o contacto com as pessoas e as suas histórias, a exposição foi uma forma de fazer sobressair a beleza e o lado positivo de cada ser humano. Joana Taya, que vê na pintura uma forma de terapia, chama especial atenção para a importância da preservação da natureza, uma luta que considera não ser só sua, mas de todos, pois a preservação do planeta representa a da própria espécie. Nos seus quadros, destaca, esse pensamento está implícito em cada uma das pinturas e nas técnicas que usou. Inspirado no quotidiano da própria autora, “O Mundo Colorido daTaya” apresenta ainda propostas interessantes de outros mundos, como resultado do trabalho de cooperação, que a artista manteve ao longo de anos com outros artistas plásticos, noutras sociedades. A ARTISTA Joana Taya nasceu no Lobito em 1977. Formou-se em Arte e Design Gráfico pela Universidade de Artes Criativas, no Reino Unido. Viveu na Noruega, onde

Pintora apresentou o seu mais recente trabalho artístico individual na galeria Mov’Art em Luanda

deu aulas de Design Gráfico na NoroffFagSkole durante cinco anos e foi curadora do Jovens Artistas Angolanos (JAANGO) de 2014 a 2016. Vive actualmente em Lisboa. Ao longo da sua carreira artística já participou em várias mostras colectivas, com maior destaque para “Retratos e Auto-Retratos”, “Arquivo Morto”, Projectos “Orgulho em ser Angolano” e “Palanca”, “Toyota” e “Cenarius Gallery”, todas no país, “Sting”, “Atelier Brasil”, “Soleado”, “SandnesKulturhus”, “Wall Art Sandnes Læringssenter”, “TouScene”, durante a sua estada na Noruega, “Ballhaus Naunynstrasse”, em Berlim, e na World Expo Shanghai, na China.

Público visitou a mostra para conhecer as novas propostas estéticas da criadora angolana

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LUCIANO CANHANGA Em 1878, pela vez primeira, pastores protestantes Baptistas surgiram em terras angolanas, através do Noqui e foram estabelecer-se perto de uma velha missão católica abandonada em S. Salvador do Congo. Em 1880, surgem na faixa litorânea e nos subplanaltos e planaltos angolenses os missionários da Junta Missionária Americana que se estabelecem em Benguela, no Bailundo e no Bié ensinado a prática da agricultura, música, leitura, artes e ofícios, etc. Dizia o conselheiro Guilherme Augusto de Brito Capelo, em 1887 que «O procedimento destes missionários é irrepreensível e muito diferente do dos que estão em S. Salvador e noutros pontos da costa do Norte. Dedicam-se ao ensino, estudam o modo de se tornarem simpáticos, respeitam a autoridade constituída, e não consta que promovam a intriga…». Tratam-se dos precursores da IECA. Em 1885 estabelecem-se os Metodistas — enviados pela Igreja Metodista Episcopal da América — em Luanda, donde irradiaram para Malange e Nova Lisboa. O pessoal desta consiste em dois homens e duas mulheres, com casas filiais no Dondo, Nhangue-à-Pepe, Pungo-Andongo e em Malange. Tanto numas como noutras o missionário mantém-se por si mesmo, quer professorando, quer trabalhando de ofício. Alguns apresentam diplomas de médicos, e nos pontos onde não há facultativo oficial, vão exercendo a sua profissão com grande contentamento dos habitantes. O ensino é em português, mas leccionam também francês, inglês e alemão». (CAPELO, Brito: Relatório, p. 84). Em "Oiço passos de milhares", Emílio de Carvalho narra a expansão do Metodismo angolano chegado em Março de 1885, por obra do americano Willian Taylor, fazendo-se do mar ao interior, através do Kwanza. O autor assinala importantes Missões evangélicas "protestantes" como: Dondo, Nyanga-aPepe, Quiôngwa, Quessua e Quela, para além de Luanda, a "Missão-mãe".

HISTÓRIA | 12

AO ENCONTRO DA “MISSÃO SUBMERSA” DE MBANGU WANGA

Apesar desse roteiro (sintético), outros pontos de evangelização e até mesmo Missões terão sido criados ao longo do rio Kwanza, nas suas duas margens. O Bispo Gaspar Domingos, em entrevista a Angop (http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/minuto-a-minuto.html) diz que "outras pequenas missões foram surgindo na área do Libolo e nos Dembos". Uma visita que efectuei ao Kisongo, comuna do Libolo, onde a chama do Metodismo Unido se mantém acesa, apesar das peripécias vividas pela comunidade religiosa de Cambulungo, levou a revelações até então incógnitas por muitos irmãos metodistas de Angola. 1- A "Igreja" Cambulungo não é recente e já existia no tempo colonial, estando ligada à Missão de Mbangu Wanga, na margem Libolense do rio Kwanza, território do Quissongo/Kisongo (Artur Cussendala). 2- A referência à Missão de Mbangu Wanga é novidade, visto que a literatura conhecida sobre a expansão do Metodismo não se refere a ela. 3- A toponímia Angola confirma a existência da aldeia de Mbangu Wanga, na margem direita do Kwanza, tendo nela existido uma "pequena Missão protestante/metodista" que tomava o nome da comunidade. 4- A população da aldeia de Mbangu Wanga e demais circundantes foi realojada em outro local, seguro, dada a construção da hidroeléctrica de Lawka que inundou o espaço em que se achavam"as comunidades de Quissaquina, Bango-Wanga, Ginguri, Ulumbo, Quinguenda e Dala-Quiosa, que haviam sido implantadas nas margens do Kwanza" (http://www.angop.ao/angola/pt_pt/noticias/sociedade/2015/7/32/Cuanza-Sul.html). 5- Em contacto mantido com o empresário libolense José Carlos Cunha, que frequenta aquela região, fiquei a saber da existência da Associação de Naturais de Mbangu Wanga. 6- João Francisco (62 anos), Carlos Correia (64 anos) e Júnior Armando (70) anos, todos naturais de Mbangu Wanga e membros da associação, confirmam o relato sobre a transladação da aldeia que guarda(va) os restos da Missão, sendo que "nos terrenos da antiga missão criou-se uma cooperativa agrícola". Falta desvendar quando a "Missão" de Mbangu Wanga foi implantada na margem direita do Kwanza, em território do Libolo. Porém, já há suficientes vozes concordantes de que a mesma foi encerrada em 1961, depois de muitos dos seus integrantes (pastores, obreiros e crentes metodistas) terem sido alvo de perseguições e mortes pela PIDE. Dada a "missão despertadora do homem angolano", os evangélicos ou metodistas foram tidos pela autoridade portuguesa como instigadores do nacionalismo, portanto, catalogados como "terroristas". Depois de actos repressivos contra missionários e seus prosélitos, os alunos que ficaram sem mestre receberam um professor enviado pela Missão Católica de Calulo, leccionando apenas até à terceira

classe, tanto aos estudantes abandonados da Metodista quanto aos da própria Católica. Consta que dentre os que estudaram em Mbangu Wanga o destaque vai para o Eng. Bernardo Campos, sendo mestre Baptista Pedro Gabriel. Hoje, a aldeia de Mbangu Wanga não tem sequer uma Classe (espécie de capela) Metodista. Apenas a aldeia de Quienha, que dista aproximadamente quinze quilómetros (comuna do município de Moussende) mantém acesa a chama e a obra evangelizadora Metodista. Da antiga "Missão" de Mbangu Wanga ainda restam, segundo meus narradores (Júnior, Correia e João) escombros do que foi a igreja-escola e a casa pastoral, tutelados, na altura, por pastores negros, recebendo visitas regulares de missionários americanos que se encontravam na Missão de Quiôngua (margem esquerda do Kwanza, Malanje), sendo, à data, André Dias dos Santos o tradutor dos missionários americanos que para lá se deslocavam periodicamente. Para além dos equipamentos imobiliários acima citados a "Missão" também possuía lavras que atendiam o sustento dos missionários.

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BURKINA FASO

DIÁLOGO INTERCULTURAL | 13

ESCULTURAS DE LAONGO UM MUSEU A CÉU ABERTO O contraste entre a savana e a expressão artística

FLORA PEREIRA DA SILVA A história é sobre um grande líder, reconhecido pela população por sua sabedoria e prudência, que reinava na região central de Burkina Faso, terra fértil e produtiva. Seu irmão mais novo, que almejava ser rei e ter um governo próprio, lhe pediu que cedesse um pedaço de seu reino. O grande líder aceitou, no entanto, explicou ao caçula que governar não era um luxo, mas um trabalho árduo que deveria ser feito com disciplina. Então, colocou fogo em uma árvore e disse: “até onde o fogo espalhar, a terra será sua. Um líder começa do zero e você começará o seu reino assim”. O irmão aprendeu a lição e fez da região um próspero vilarejo. Lenda ou não, é esta a história do nascimento da cidade de Laongo, vila localizada a 32 quilómetros da capital do país.

A região da terra queimada guarda hoje em seu ventre um pequeno tesouro cultural. Ali, desenvolveu-se um afloramento granítico, em que milhares de pedras de tom cinzento brotam do chão camuflando-se entre as árvores e os galhos secos da savana onde se descobre um formidável terreno de expressão africano, em que artistas deixaram suas impressões e inspirações. Esculpidas entre as pedras e incrustadas nas rochas, estão centenas de esculturas contemporâneas, que traçam com delicadeza a cultura e o quotidiano da população africana. Com

suas formas abstractas e naturalistas, as Estátuas de Laongo formam um museu de arte a céu aberto, que jorra no meio das plantas locais um choque contrastante entre paisagem e expressão artística. As esculturas começaram a ser construídas em 1989, durante um simpósio criado pelo artista burkinabe Sidiki Ky, que teve a ideia de utilizar as pedras presenteadas pela natureza para criar um centro de expressão cultural de escultores do mundo todo, sobretudo da África. O projecto, que completa 25 anos em 2014, realiza, desde sua inauguração, oficinas bienais, juntando de 20 a 30 artistas de diferentes horizontes a cada simpósio. Os encontros são temáticos sempre envolvendo os momentos quotidianos e os valores culturais da vida africana. O objectivo é juntar escultores de diferentes nacionalidades para materializar em granito uma experiência artística, permitindo aos participantes uma oportunidade singular de criar novas referências estéticas, trocar experiências e exprimir a céu aberto seus respectivos talentos. Cada simpósio tem a duração de trinta dias e é antecedido por um momento de celebração, que marca o pedido aos ancestrais da região para protecção dos artistas participantes. Além da produção das obras de artes no museu de esculturas rodeado pela natureza, nos encontros também são promovidas oficinas para os jovens da região e palestras com os convidados. Toda a concepção do projecto é fruto da imaginação fértil de Sidiki Ky, uma figura emblemática e respeitada, considerado uma inspiração por muitos membros do mundo da arte dentro e fora de seu país. O escultor conseguiu com a construção artística nos granitos uma chance de deixar vestígios indeléveis da cultura africana. Para Ky, que acredita nos frutos de esforços, a colheita só vem depois da semeação: “é preciso se divertir um pouco, não se le-

var muito a sério. Eu tento ser modesto e falar o que penso. Mas, é o trabalho a base de qualquer sucesso. O trabalho, o trabalho e o trabalho”, explica o artista que não gosta de corpo mole. O parque escultural de Laongo hoje conta com quase mil estátuas. Apenas na última edição, ocorrida em 2012, foram produzidas 212 peças. O tamanho sucesso do projecto não era previsto e o espaço dedicado inicialmente para a construção das estátuas acabou se tornando pequeno demais e ficou saturado. Assim, inaugurou-se para os próximos eventos um segundo campo de esculturas, adjacente ao primeiro. No total, as duas regiões abraçam um espaço de 10 hectares. A visita turística pode ser realizada em ambos, sendo o campo inicial o mais afamado. O passeio é sempre guiado, com explicações históricas e culturais sobre cada uma das peças. A duração fica a critério do turista, que pode escolher percursos de poucos ou muitos quilómetros. A descoberta de cada obra é acompanhada pelo guia, que com memória fotográfica, explica a data, o autor e a teoria de cada uma das centenas de esculturas camufladas entre os conjuntos de pedras ou destacadas em seixos solitários. Espaçadas entre a natureza selvagem que as aco-

lhem, as esculturas antropomórficas, zoomórficas, figurativas ou abstractas trazem ao ambiente o seu carácter original. Ásia, América, Europa e África presenteiam suas visões artísticas sobre o continente anfitrião. Grandes artistas como Jean-Luc Bambara, Guy Compaoré e Claude Kabre dividem o espaço exprimindo no granito a impressão de suas sociedades. O monumento de entrada do parque,

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formado por três grandes torres, representa a expressão contemporânea do projecto: a chegada do século XXI. É uma introdução ao percurso estético que será descoberto entre as esculturas seguintes. Entre os galhos secos e o chão avermelhado, estátuas irmãs, em perspectiva, evolutivas ou complementares, juntas formam uma importante manifestação da arte contemporânea de Burkina Faso e abrem um caminho real para o conhecimento do mundo local. “A cabeça do viajante” reflecte sobre a

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ambiguidade sentimental dos primeiros imigrantes do país, trafegando entre novas descobertas e a saudade de casa. “O canto da pedra”, que forma um instrumento musical de Burkina com a composição de duas pedras, lembra a importância e o papel inicial da música que representava o mundo agrícola, social e religioso do país. “O grito” é uma filosofia sobre a possibilidade do país de degustar de seu sofrimento e a tentativa de transformar a dor em conforto. E por aí, cada esculpida no granito, forma uma

Cultura

peça de representação da forte e complexa cultura local. Hoje, o Parque de Laongo traduz o orgulho do povo do Planalto Central, que assiste brotar em sua região um símbolo da arte burkinabe. Inspirados, jovens e estudantes da vila passaram a visitar o centro, participando frequentemente de ateliês, absorvendo novas técnicas e descobrindo as próprias aptidões, para quem sabe no futuro, serem eles os responsáveis pela nova referência estética do país. Saiba mais: http://www.laongo.org/

DIA DO ESCRITOR NO BRASIL

25 DE JULHO, 2017

O escritor faz striptease de pensamentos oferecendo aos leitores sua opção de vida intelectual. Os leitores, importantes personagens na vida dos escritores, analisan e aceitam ou rejeitam as idéias e de uma maneira ou de outra dão vida às escrituras. É uma mentira diplomática quando se diz que o escritor escreve para si mesmo. Teresinka Pereira

Cultura | 15 a 28 de Agosto de 2017

ZENGI E A SEREIA

BARRA DO KWANZA | 15

CONTO DE PEDRO MAYAMONA MEMBRO DO LITTERAGRIS

Um dia trôpego, ferozmente, avizinhava-se no município do Bembe. As nuvens acordaram magras, desgrenhadas, enrugadas e feias, ameaçando espremer os excitados seios, cujo leite desembocaria numa boa chuvada. A sereia surgiu de um ovo que tentava fazer travessia dum incerto lugar para o sistema interplanetário, onde seria fecundado por um mitológico deus com reinado de pedra. Mas, as colisões sísmicas entre os seres alados do espaço amorteceram-na ao ponto de cair naquele maldito espaço – Nkixi. Talvez tenha sido este o motivo da sua beleza que ardia, esfarelando os homens de alucinação. Lulendo provinha do mar. Era um deus ressuscitado do eterno esquecimento para governar Nkixi. Poderoso e forte que nem Hércules, arrastava tudo e todos ao longo da sua passagem. No seu percurso, seu corpo disparava pesado chumbo, matando as crianças que se aproxima-

vam; as casas caíam de medo, porque, segundo a lenda, ele vinha com terrenos do ventre da sua mãe, por isso, só estes poderiam existir e eram, para ele, dejectos exclusivamente seus. Os homens para não morrerem, adulavam, pintando-o de honra e glórias, até certo ponto desmesuradas, mas convinha, porque era uma das mendicâncias para que se ganhasse a vida e o pão. Certo dia, a sereia banhava-se despida por cima da água, e Zengi atingiu-a com a flecha da sua beleza. Daí, nasceu o amor e a guerrilha, que entrelaçaria ambos e mais um terceiro, o deus do mar, que considerava Makyese, a sereia, ser propriedade sua por ter a vida anfíbia, apesar de ter vindo de outro planeta. Zengi confluía na mesma alegação, dizendo que a beldade tinha alma terrena, mas Lulendo altercava, inflamando-se de furor porque os terrenos também o pertenciam. Nisto, o caos estava instalado! Na noite em que a lua lacrimejou de prazer, devido o coito conjugal, Zengi e Makyese bebiam-se com profundo olhar, apaixonados. E eis que à porta, um murmúrio fez-se corpóreo, dando entrada, em remoinho, ao possesso ser de Lulendo até o quarto onde o casal se enrolava em beijos. Do pano de sonho, Makyese despertou-se e bradou para o homem: “Cuidado, Zengi!” Zengi caiu em espiral, escapando do fulminado olhar de Lulendo. Sem poder nem magia, invadido na sua propriedade própria, o coitado tentava encontrar o corpo no próprio corpo, enquanto a beldade travava uma moção de forças com o opositor. Mais valente, pois a sua força, à dimensão cósmica, derivava da cosmogonia, pela qual se debatia e pelo povo que defendia, Makyese conseguiu reduzir Lulendo ao tamanho de migalhas de pão, mas este recompôs-se, entre tanto, já esvaziado de forças. Ele chorava amargamente debaixo da potente perna da mulher, percebendo que não deixaria a terra por herança a seus filhos e familiares. Coração de humano, coração de manteiga. Zengi, visceralmente recomposto, empurrou a mulher pelos ombros, salvando o coitadinho que se esvaía debaixo do pé. O pobre deus, sem um fio de dignidade, esqueceu-se do buraco por onde entrara e acasalou a humilde bola com a parede, onde os pensamentos choviam em turbilhão. À beira mar, Lulendo bateu as palmas, jogou três ovos de rajada à extensão da água, e o barco que o conduziria ao meio do mar apareceu, mas o condutor estava ultrapassado em doses de estucadas mágoas, porque o deus perdera a guerra e a terra, sendo substituído por outro mais carrasco que ele, porém, débil. Depois do pesadelo com Lulendo, a paz voltaria a reinar no ninho do casal, se Zengi não se tivesse derretido pelo olhar flor de uma humana igual, o que causou a sua loucura, emanada das leis matrimoniais entre uma sereia e um ser humano. E Makyese voltou ao seu primeiro berço para rejuvenescer, porque era uma mitológica criatura em constante vir a ser.

16 | NAVEGAÇÕES

15 a 28 de Agosto de 2017 |

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