UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE POS-GRADUACAO EM ESTUDOS ÉTNICOS E AFRICANOS

CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Salvador 2011

CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Tese de Doutorado apresentada ao Programa Multidisciplinar de PósGraduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia para obtenção do Grau de Doutor em Estudos Étnicos e Africanos

Orientador: Prof. Dr. Valdemir Donizete Zamparoni

Salvador 2011

SIGLAS E ABREVIATURAS AGRICOM - Empresa Estatal da Agricultura ANC – Congresso Nacional Africano BM – Banco Mundial CAIL - Complexo Agro-Industrial do Limpopo CD – Curso de Desenvolvimento CCDA - Comissão Coordenadora Distrital da Comercialização Agrária CFMAG - Committee for Freedom in Mozambique, Angola e Guiné-Bissau CEA – Centro de Estudos Africanos CONCP - Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas EGUM - Estudos Gerais Universitários de Moçambique EM – Estudos Moçambicanos FPLM – Forças Armadas de Libertação de Moçambique FMI – Fundo Monetário Internacional FM-L – Faculdade de Marxismo -Leninismo FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique IICM – Instituto de Investigação Científica de Moçambique MANU - Mozambique African National Union MHD - Materialismo Histórico e Dialéctico MNR – Movimento de Resistência Nacional NATO - Organização do Tratado do Atlântico Norte OMS - Organização Mundial da Saúde PIDE – Policia Internacional de Defesa do Estado PRE - Programa de Reabilitação Económica, RDA - Republica Democrática Alemã RENAMO – Resistência Nacional Moçambicana SADCC – Conferência de Coordenação para o Desenvolvimento da África Austral SGL - Sociedade de Geografia de Lisboa SAREC – Agência Sueca para a Cooperação na Pesquisa com os Países em Desenvolvimento. SIDA – Agência internacional Sueca para o Desenvolvimento Internacional TBARN - Centro de Estudos de Técnicas Básicas para o Aproveitamento dos Recursos Naturais UDENAMO - União Democrática Nacional de Moçambique UEM – Universidade Eduardo Mondlane ULM – Universidade de Lourenço Marques UNAMI - União Nacional Moçambicana Independente UNESCO - Organização das Nações Unidas Para Cultura, Educação e Ciência USAID – Agencia Americana para o Desenvolvimento Internacional ZANU (PF) – Zimbabwé African National Union (Patriotic Front)

CARLOS MANUEL DIAS FERNANDES

DINÂMICAS DE PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO MOÇAMBIQUE PÓS – INDEPENDENTE: O CASO DO CENTRO DE ESTUDOS AFRICANOS, 1975-1990

Tese de Doutorado apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Estudos Étnicos e Africanos da Universidade Federal da Bahia para obtenção do Grau de Doutor em Estudos Étnicos e Africanos

APROVADA EM: _______ de ______________ de 2011

_____________________________________ Prof. Dr. Valdemir Zamparoni - (Orientador) Universidade Federal da Bahia

_______________________________________ Profª Dra. Maria Rosário Gonçalves de Carvalho Universidade Federal da Bahia

_______________________________________ Prof. Dr. Jocélio Teles dos Santos Universidade Federal da Bahia

_____________________________________ Prof. Dr. Jacques Depelchin Universidade Estadual de Feira de Santana

_______________________________________ Prof: Dr. Cláudio Alves Furtado Universidade de Cabo Verde

RESUMO

Este estudo pretende examinar as condições sociais da produção de conhecimento científico no Moçambique pós-independente, durante o período da “transição socialista” (1975-1990). O caso em estudo é o do Centro de Estudos Africanos (CEA). O argumento central do trabalho é de que o próprio processo de produção de conhecimento num contexto onde o partido no poder pretendia introduzir transformações radicais na sociedade, ganhou dinâmicas que problematizaram os pressupostos a partir dos quais o CEA deveria produzir conhecimento. Estas inter-relações entre produção de conhecimento e legitimação do Estado poderiam então explicar não só as especificidades do CEA como também as condições em que as Ciências Sociais ganharam contornos em Moçambique como modo privilegiado de produção de conhecimento sobre a sociedade. A partir daí o trabalho crítico do CEA iria mudar radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro permitindo a emergência de um novo campo da pesquisa no pós-independência, ao introduzir três inovações: (1) uma abordagem no “atual” (sem contudo deixar de levar em consideração as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história como tal; (2) uma mudança de uma pesquisa individual para uma pesquisa coletiva; e (3) a introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a preocupações imediatas.

Palavras-chaves: Intelectual Orgânico – Culturas Epistémicas-Engajamento CríticoCiências Sociais-Socialismo

ABSTRACT

This study intends to examine the social conditions of scientific knowledge production in post- independence Mozambique particularly during the period of "socialist transition" (19751990). The case study is the Center for African Studies (CEA). The main thesis of the study is that the very process of knowledge production in a context where the ruling party wanted to introduce radical changes in society, generated dynamics that problematized the assumptions within which the CEA should have produced knowledge. These inter-relationships between knowledge production and legitimation of the state, could then not only explain the specificities of the CEA but also the conditions under which the social sciences gained contours in Mozambique as privileged mode of knowledge production on society. Thus, the critical work of the CEA would radically change the dynamics of research at the Centre allowing the emergence of a new field of research in the post-independence, introducing three innovations: (1) an approach to the contemporary issues (without, however, fail to take into account its historical roots), rather than focus on history as such, (2) a change in an individual search for a collective research, and (3) the introduction of a sense of urgency in research to answer the immediate concerns of the power politics.

Key-words: Organic Intellectual – Epistemic Cultures – Critical Engagement – Social Sciences-Socialism

As cortinas do comunismo estão a fechar-se, porém, um mistério permanece: quais eram os atractivos do marxismo revolucionário que captou tantos intelectuais apaixonados para a sua bandeira? Qual era o credo que…convocou tanta gente para morrer por uma causa? Sob um certo ponto de vista, a resposta é simples: aquilo que, em tempos, tinha atraído em nome de Deus passou a estar sob a bandeira da História … O marxismo foi uma religião secular. (Daniel Bell apud, Paul Hollander. O Fim do Compromisso, Lisboa:Pedra da Lua, 2009).

AGRADECIMENTOS

Esta Tese não teria sido possível sem a ajuda de várias pessoas que de uma forma ou de outra contribuíram e alargaram a sua valiosa assistência na preparação e finalização deste estudo. Queria, em primeiro lugar, expressar a minha profunda gratidão ao meu orientador, Prof. Dr. Valdemir Zamparoni pela sua postura crítica, atenta, rigorosa, e sempre também, humana, paciente e carinhosa. Estou grato ainda a sua forma de orientar, possibilitando uma liberdade de acção que foi decisiva para que este trabalho contribuísse para o meu desenvolvimento pessoal. Este trabalho não teria sido realizado se não fosse também o apoio financeiro, em momentos diferentes, da FASPEB e da CAPES. Não posso deixar de registar o meu reconhecimento pelos professores Jocélio Teles Santos, Lívio Sansone, e Valdemir Zamparoni, que lutaram incansavelmente para que eu sempre tivesse uma bolsa de estudos. O meu agradecimento sincero, aos investigadores e professores, Dan O’Meara, Marc Wuyts, Luís de Brito, Teresa Cruz e Silva, Fernando Ganhão, Yussuf Adam, Isabel Casimiro, Conceição Osório, Alexandrino José, Carlos Serra, Amélia Souto, Jacques Depelchin, Ana Maria Loforte, Ana Maria Gentili, Aurélio Rocha, Alpheus Manghezi, Calisto Pachaleque, Gerard Liesegang, João Paulo Borges Coelho, António Sopa, Bridget O’Laughilin, Judith Head, José Luís Cabaço, Manuel Araújo, Amélia Souto e Dipac Jeichande, pela vossa simpatia e total disposição em ajudar a esclarecer muitas das minhas inquietações iniciais na formulação do problema e mais tarde quando já tinha o problema relativamente estruturado, nos labirintos do funcionamento de uma organização complexa e interessante como foi o CEA naqueles utópicos anos da transição socialista. Não posso deixar de estar profundamente grato aos comentários construtivos do Prof. Luís de Brito ao capítulo sobre a Questão Rodesiana, ás professoras Teresa Cruz e Silva e Conceição Osório pela assistência e comentários críticos valiosos, quando este trabalho ainda era um projecto de pesquisa. Ao professor Elísio Macamo que já na licenciatura nos finais dos anos 1990, incentivou-me a explorar este campo da sociologia do conhecimento e das condições sociais da produção do conhecimento científico e pelos ricos comentários que se estenderam até a conclusão do trabalho. A professora Maria do Rosário pelo seu apoio inicial ao projecto e inspiração na sua

forma peculiar e cativante de dar aulas. Aos meus colega do Mestrado e do Doutorado do POSAFRO/UFBA, Saravá! Muito obrigado Cristina Mchanon, pela amizade e sugestão de bibliografia pertinente para a construção deste estudo. Um Kanimambo, ao Prof. Georgui Delurguian da Northwestern University, Chicago, pelo carinho, amizade, hospitalidade no seu departamento de sociologia e também sugestões de leitura. Ao pessoal do CEA e do seu Centro de Documentação, especialmente a Deolinda e Teresa, por me deixarem consultar livremente as várias “caixas” de documentação do Centro. Aos funcionários do Arquivo Histórico de Moçambique, na pessoa do seu director Joel das Neves, pela sua ajuda prestimosa na consulta do espólio “Fernando Ganhão”. Que seria de mim sem a minha família? Meu saudoso pai, José, minha mãe Filomena, irmãos, Zé, Nitinha, Dindinha e Luís e queridas sobrinhas, Liane e Melanie, merecem uma atenção especial pelo seu carinho, amor, amizade e apoio incondicional. Sem vocês não sei se conseguiria levar esta empreitada até ao final!

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ......................................................................................................................14 1. A EDUCAÇÃO COLONIAL E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS ......................30 1.1 O Processo de estabelecimento da administração colonial (1895-1945)................................................... 31 1.2 A implantação do Estado Novo e a educação africana............................................................................... 35 1.3 A crise do Estado Novo e a fundação do ensino superior em Moçambique (1960-1975) ........................ 41 1.4 Algumas notas sobre a pesquisa em Ciências Sociais no período colonial............................................... 45

2. AS CONDICÕES SOCIAIS DA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO NO PÓSINDEPENDÊNCIA ................................................................................................................59 2.1 O contexto internacional: Descolonização, Africanistas Radicais e Solidariedade................................. 59 2.2 Moçambique e a Utopia Socialista: Dinâmicas Internas e Regionais....................................................... 69 2.2.1 Da Luta de Libertação Colonial em Moçambique ao golpe de Estado em Portugal: 1962 – 1974......... 71 2.2.2 Os primeiros anos “eufóricos” sob a sombra da guerra de “desestabilização”: 1975-1980.................... 73 2.2.3 A Construção do Socialismo…Cada Vez mais Longe: 1980 – 1984...................................................... 77 2.2.4 A Metamorfose Ideológica da FRELIMO: 1984-1990........................................................................... 81

3. AS CONDICÕES SOCIAS E EPISTÉMICAS DA EMERGÊNCIA E CONSOLIDAÇÃO DO CEA.................................................................................................85 3. 1 O Ano de 1976 e a Tentativa de Criação de uma “Universidade para o Povo” ..................................... 85 3.2 O Nascimento do Centro de Estudos Moçambicanos (CEA).................................................................... 88 3.3 Actualidade, Urgência e Colectivo na Emergência de um Novo Campo de Pesquisa em Moçambique 92 3.3.1 A Questão Rodesiana e o Contexto Social da sua Produção .................................................................. 92 3.3.2 A Génese de uma Nova Forma de Fazer Pesquisa.................................................................................. 95 3.3.3. Os processos da produção de “O Mineiro Moçambicano”: consolidando o novo campo de pesquisa .. 99 3.2 O Retorno Temporário de Ruth First à África Austral…Cada vez mais perto da Toca do Lobo ......... 99 3.3 Os Antecedentes da Pesquisa sobre O Mineiro Moçambicano ................................................................ 103

4. “A PEDAGOGIA” DO PROJECTO SOBRE O DESEMPREGO E O CONTEXTO DA SUA PRODUÇÃO ................................................................................................................108 4.1 O Projecto sobre o Desemprego: Uma “encomenda” do Poder ............................................................. 108 4.2 Os Anos de Alvoroço na Universidade e no CEA: 1979 – 1984 .............................................................. 113

5. A DUPLA CONTRIBUIÇÃO DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO: PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO POLITICAMENTE ENGAJADO ............................................123

5.1 O ensino como um acto de investigação.................................................................................................... 123 5.2 Logo de inicio…Algumas Vozes Discordantes ......................................................................................... 126 5.3 Os Objectivos do Curso de Desenvolvimento ............................................................................................ 128 5.4 Os Métodos do Curso de Desenvolvimento................................................................................................ 130 5.5 A Crítica e Auto-Crítica no Curso de Desenvolvimento........................................................................... 132 5.6 Os Conteúdos Teóricos do Curso de Desenvolvimento............................................................................. 136 5.7 Ênfase na economia? Ausência de aspectos culturais?............................................................................ 138 5.8 A Contribuição do Curso de Desenvolvimento no Ensino/Pesquisa em Ciências Sociais...................... 140

6. A PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CURSO DE DESENVOLVIMENTO ...................142 6.1 As Principais Linhas de Investigação ....................................................................................................... 142 6.2 O Projecto sobre o Trabalho Mineiro na África do Sul .......................................................................... 148 6.3 Analisando os Camponeses e a Economia Rural em Moçambique ........................................................ 152 6.4 Problemas da Transformação Rural na Província de Gaza ................................................................... 154 6.5 O (s) Projecto (s ) Sobre o Algodão ........................................................................................................... 157 6.6 A Comercialização Agrária: Estado, Sector Familiar e Privado............................................................ 160 6.7 Examinando o Falhanço das Aldeias Comunais ...................................................................................... 162

7. A OFICINA DE HISTÓRIA: O “HOMEM NOVO” E A NOVA HISTÓRIA ..........165 7.1 História e Memória..................................................................................................................................... 165 7.2 “Tensões Criativas” no Nascimento da Oficina de História .................................................................... 171 7.3 Produzir uma História Crítica ao Cânone ............................................................................................... 175 7.4 Não vamos Esquecer!: História Social Contada pelos “de baixo” .......................................................... 178 7.5 Não Vamos Esquecer! nº1: Resistência Africana e Luta armada ........................................................... 181 7.6 Não Vamos Esquecer! nº2/3: Reconstituindo a História da “Classe Operária Moçambicana” ........... 183 7.7 Não Vamos Esquecer! nº4: Persistindo na Reconstituição Histórica da Experiencia da Luta de Libertação Nacional ......................................................................................................................................... 187 7.8 O Colectivo de Artesãos da Oficina de História: Historiadores como Activistas? ................................. 193

8. ESTUDOS MOÇAMBICANOS: PENSAR MOÇAMBIQUE NO CONTEXTO DA ÁFRICA AUSTRAL ............................................................................................................202 8.1 A fundação da revista e a sua linha teórica .............................................................................................. 202 8.2 A Hierarquia dos Objectos de Pesquisa.................................................................................................... 204 8.2.1 Estudos Moçambicanos nº 1: Uma análise sobre como o colonialismo português empobreceu Moçambique .................................................................................................................................................. 207 8.2.2 Estudos Moçambicanos nº 2: Olhando para as Formas de Exploração Colonial do Trabalho e Lutas de Liberação na África Austral........................................................................................................................... 210 8.2.3 Estudos Moçambicanos n º 3: Contribuindo na Reflexão sobre a Socialização do Campo .................. 213 8.2.4 Estudos Moçambicanos nº 4, 1983: Enfatizando a Participação do CEA na “Reflexão de Problemas Nacionais” ..................................................................................................................................................... 217 8.2.5 Estudos Moçambicanos nº 5/6: A Importância da Investigação Histórica............................................ 223 8.2.6 Estudos Moçambicanos nº 7: As Dinâmicas da Política Externa na Região Austral............................ 230 8.2.7 Estudos Moçambicanos nº 8: Moçambique no contexto da África Austral: conflitos, estratégias e perspectivas pós-apartheid ............................................................................................................................ 234 8.3 Estudos Moçambicanos: Uma Revista Interdisciplinar? ......................................................................... 237

9. O TRABALHO CRÍTICO E POLITICAMENTE ENGAJADO DO CEA .................241 9. 1 A emergência de Culturas Epistémicas no Centro: “Facções” e Versões Contestadas........................ 241 9.2 Intelectuais orgânicos e a legitimação do Estado..................................................................................... 247 9.3 Engajamento Critico: Um Oxímoro?........................................................................................................ 252

CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................259 OBRAS CONSULTADAS ...................................................................................................266 Livros, Teses & Artigos.................................................................................................................................... 266 Periódicos e Revistas Consultados .................................................................................................................. 282

ANEXOS ...............................................................................................................................283

ÍNDICE DE QUADROS

Quadro 1 - Alunos Matriculados 1930 .....................................................................................38 Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990) .............................................91 Quadro 3 – Principais Linhas de Investigação .......................................................................143 Quadro 4 - Não Vamos Esquecer! nº1 (Fevereiro, 1983).......................................................182 Quadro 5 - Não Vamos Esquecer !nº2/3 (Dezembro, 1983) ..................................................185 Quadro 6 - “Não Vamos Esquecer!” nº4 (Julho, 1987) ..........................................................189 Quadro 7 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº1 (1980) ......................................208 Quadro 8 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº2 (1981) .....................................211 Quadro 9 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº3 (1982) ......................................215 Quadro 10 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº4 (1983) ....................................218 Quadro 11 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº5/6 (1986).................................225 Quadro 12- Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº7 (1990) .....................................230 Quadro 13 - Índice Temático da Estudos Moçambicanos nº8 (1990) ....................................235

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INTRODUÇÃO Objecto da pesquisa

O presente estudo pretende reflectir, no âmbito da sociologia do conhecimento, sobre as condições sociais da produção de conhecimento científico em Moçambique e no contexto histórico particular conhecido como o período da “transição socialista” (1975-19901), durante o qual o partido no poder, a FRELIMO2, tentou construir uma sociedade socialista, tendo como guia os princípios teóricos e práticos do marxismo-leninismo. Esta reflexão teórica - que procura interligar produção científica e existência social terá como “objecto empírico” o Centro de Estudos Africanos (CEA) da Universidade Eduardo Mondlane (UEM). Este Centro foi, no período em análise, a mais importante e prolífica instituição de pesquisa e ensino em Ciências Sociais. Como afirmou Teresa Cruz e Silva,

O CEA fundado em 1976, teve um papel fundamental na dinamização da pesquisa, dando assim um novo impulso à produção científica e consequentemente aos programas e métodos de ensino no campo das Ciências Sociais e Humanas3.

Uma das principais causas desta preeminência do CEA no campo da pesquisa e ensino no pós-independência se deveu ao facto deste lugar ter atraído um número considerável de 1

Traçar limites cronológicos rigorosos sobre este contexto histórico pode ser problemático. Neste estudo, por uma questão metodológica, preferimos, olhar para esta fase de uma forma fluida, sem contudo deixar de utilizar como barreiras temporais o ano de 1977, quando a Frelimo no seu III Congresso se transformou num partido marxista-leninista; e, o ano de 1990 quando entrou em vigor a nova Constituição da Republica, preconizando um sistema de democracia multipartidária. Há no entanto outras datas significativas desse período “socialista”, como o ano de 1984 quando se deu a assinatura dos acordos de não-agressão (Acordo de Nkomati) com a África do Sul, que iriam ter - como veremos ao longo deste estudo - grandes repercussões no trabalho crítico do CEA. Não menos importante é o ano de 1986, com a morte do presidente Samora Machel e do director do Centro, Aquino de Bragança. Por fim, poderíamos também mencionar o ano de 1987, quando a Frelimo introduziu um programa de reajustamento estrutural (PRE) financiado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Dois anos depois, o partido Frelimo formalmente abandona o marxismo-leninismo, a sua ideologia oficial desde 1977.

2

Frente de Libertação de Moçambique.

3

SILVA, Cruz, Teresa. Instituições de Ensino superior e investigação em Ciências Sociais: A herança colonial, a construção de um sistema socialista e os desafios do século XXI, o caso de Moçambique, Lusofonia em África Historia, Democracia e integração africana. Dakar, CODESRIA, 2005, p.34-76.

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investigadores estrangeiros (muitos deles já com grande experiência de pesquisa e docência) como, a jornalista, pesquisadora, professora universitária e activista anti-apartheid a sulafricana, Ruth First e que se tornaria a Directora científica do Centro; membros do ANC, como Robert Davies, Dan O´Meara, Alpheus Manghezi e Sipho Dlamini; a historiadora italiana Anna Maria Gentili, a antropóloga americana e professora de Antropologia na prestigiada Universidade de Stanford, Bridget O’Laughilin, o macro-economista belga, Marc Wuyts, o historiador congolês, Jacques Depelchin, o jovem historiador brasileiro Valdemir Zamparoni, dentre vários outros. A congregação destes investigadores no Centro, iria concorrer, para o fortalecimento do ensino e pesquisa em Ciências Sociais, contribuindo assim para a consolidação (durante o periodo de 1975-1990) de um padrão de pesquisa em Moçambique de qualidade, e internacionalmente reconhecido. É de referir que este estudo, não se propõe avaliar se Moçambique foi, realmente, um Estado socialista, ou mesmo se a FRELIMO foi de facto um partido marxista-leninista. Autores, como Marina Ottaway (1998)4, Catherine Scott (1988)5 e, Michel Cahen (1993)6 na sua análise sociológica sobre o contexto do pós-independência em Moçambique, se debruçaram com maior afinco nas fraquezas do Partido/Estado freliminiano. Por exemplo, na visão de Cahen e Ottaway, a Frelimo nunca tinha chegado a ser um partido de vanguarda e o Estado moçambicano tinha falhado, logo de inicio, em transformar a economia moçambicana em moldes socialistas. Ainda na óptica de Marina Ottaway, tudo não passava de um “socialismo simbólico” e de uma “reforma simbólica”, sem nenhuma modificação real na economia como também no sistema político. Na mesma senda, Catherine Scott (1986), vai aplicar o conceito de soft state e de “política personalista” para definir a primeira década de “transição socialista” em Moçambique. Segundo esta autora, a emergência das características do “Estado fraco” e da “política personalista” em Moçambique deveria ser vista no contexto das tentativas que foram feitas pelo regime frelimista como forma de criar novas instituições sócio - económicas e administrativas. Assim, neste trabalho o foco esteve mais direcionado em olhar para o contexto da “transição socialista”, na sua dimensão processual, dinâmica, não-essencialista, mais preocupado com uma ordem discursiva (por exemplo, a construção da sociedade socialista, do 4

OTTAWAY,Marina. Mozambique: From Symbolic Socialism to Symbolic Reform. The Journal of Modern African Studies, vol.26, nº2, p.211-226, Junho,1988. 5 SCOTT, Catherine V. Socialism and the 'Soft State' in Africa: An Analysis of Angola and Mozambique. The Journal of Modern African Studies, vol. 26, nº 1, Mar.ço, 1988 p. 23-36. 6 Cahen, Michel. Check on Socialism in Mozambique: What check? What Socialism?, ROAPE, nº57, 1993, p.46-59.

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“homem novo”, etc.,) que se procurava reforçar e legitimar-se regularmente. Em seguida, procuraremos estabelecer as inter-relações entre situação social e produção de conhecimento científico pelo CEA, dando especial ênfase no papel que essa produção de conhecimento desempenhou nesse contexto da “transição socialista”.

Perguntas de Partida

A análise será conduzida a partir de três grandes perguntas de partida:

1.

Como as Ciências Sociais colaboraram na “transição para o

socialismo”, elas que teriam emergido no bojo das contradições resultantes da experiência colonial/luta de libertação nacional, contexto internacional da “guerra-fria”? 2.

Há relação entre o campo científico e o campo politico ou

partidário? De qual ordem? Nesse sentido então, poder-se-á falar de uma classe intelectual independente? 3.

Há uma produção científica do CEA, que efectivamente esteja

orientada para os processos sociais locais, mediante suas distintas expressões e que seja inventiva/criativa, no sentido de não ser mera reprodutora das elaborações teóricas produzidas no ocidente e da ideologia do partido no poder?

Tese do Estudo

O argumento central deste trabalho é de que as “condições sociais7”, e os processos

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Usamos este termo no seu sentido mais lato, o que incluiria não somente os aspectos sociais, mas também políticos, econômicos e culturais. Neste sentido, estaríamos então falando, grosso modo, basicamente da primeira década do pós -independência (1975-1986) onde se deu a tentativa de construção do socialismo em Moçambique liderado por um partido auto-intitulado “marxista-leninista”, a solidariedade e apoio internacional a causa da “revolução” moçambicana, a emergência de uma guerra civil, a crescente crise econômica, etc.

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(muitas das vezes conflitivos8) da produção de conhecimento adquiriram dinâmicas próprias que problematizaram os pressupostos dentro dos quais o CEA devia produzir conhecimento9 e que isso explicaria não só as especificidades do trabalho científico do CEA (por exemplo a relação de proximidade/distanciamento do CEA com o poder) como também as condições em que as ciências sociais ganharam contornos em Moçambique com o modo privilegiado de produção de conhecimento sobre a sociedade (por exemplo, a emergência no pós – independência de uma nova forma de se fazer pesquisa). A primeira asserção remete-nos para uma discussão sobre a relação entre produção de conhecimento e contexto politico, o que possibilitará também discutir a questão de que como eram definidas as escolhas dos objectos de pesquisa, os temas eram privilegiados, e quais provavelmente “desclassificados”.A segunda, para uma discussão sobre a contribuição teórica e metodológica do CEA para o panorama das ciências sociais no pós-independência.

Quadro Teórico

Este estudo estará alicerçado em dois principais enunciados teóricos: “intelectual orgânico”, de António Gramsci e “culturas epistémicas”, de Karin Knorr-Cetina. Estes conceitos, possibilitarão em primeiro lugar, e de uma forma geral, olhar para o CEA e seus actores não como se fossem intelectuais “ideólogos10” mas pelo contrário, como agentes do conhecimento, pertencentes a um mesmo “sistema cognitivo”, que no entanto compreendia diferentes práticas, metodologias, objectivos, enfim, distintas “culturas” em relação a produção de conhecimento e sendo capazes de olhar criticamente para a sua prática científica e para as causas que apoiavam.

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Como vermos ao longo deste trabalho, a estruturação do Centro em”facções”, a relação de complementaridade e de ambiguidades entre o director do CEA (Aquino de Bragança) e a directora científica (Ruth First) a indiferença em relação aos estudos antropológicos, etc.

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Veja-se por exemplo, a tónica do Reitor da Universidade Eduardo Mondlane na distinção entre a teoria da “transformação social” e a teoria “burguesa” e “reaccionária” da ordem social; mas por outro lado, no interior do CEA em relação as diferentes abordagens teóricas e metodológicas da Oficina de História, do Núcleo da África Austral, e do Curso de Desenvolvimento). GANHÃO, Fernando. Problemas e prioridades na formação em ciências Sociais. Estudos Moçambicanos, nº. 4, Maputo:CEA, 1984, p.5-17 .Este tema será retomado no último capítulo.

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No sentido usado por Karl Mannheim, como aqueles que defendem o status quo, em oposição aos “utópicos”, os que lutam para mudar uma determina visão de mundo dominante. Vide, MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de Janeiro:Zahar,, 1982.

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Comecemos então olhando mais especificamente para a relevância neste estudo do primeiro. De acordo com António Gramsci, “todos os homens são intelectuais, mas nem todos têm na sociedade a função de intelectuais11”. António Gramsci pensou a existência de dois tipos de intelectuais. O “intelectual tradicional” que estaria preso a uma formação econômica superada e que, no contexto em que António Gramsci viveu, seriam os intelectuais “estagnados” no mundo do agrário do sul de Itália, como por exemplo o “clero”, “a casa militar”, voltados a manter os camponeses atrelados a um status quo, que não mais fazia sentido. Em segundo lugar, haviam os “intelectuais orgânicos”, produtos do mundo moderno, dinâmico, prenhe de transformações e vicissitudes. Eram “orgânicos” porque estavam vinculados a uma classe social ou modo de produção específico12. É assim que este autor vai elaborar mais afincadamente na função social dos intelectual, afirmando que, Cada grupo social nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para si, simultaneamente, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhes dão homogeneidade e consciência da sua própria função não somente no campo econômico, mas também no social e no político13. 11 12

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GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo:Civilização Brasileira, 2004, p.16. Vide, SEMERARO, Giovanni. Intelectuais Orgânicos em Tempos de Pós – Modernidade. Cad. Cedes, Campinas, Vol. 26, nº 70, p. 373-391, set./dez. 2006. Disponível em http://www.cedes.unicamp.br. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere, Vol.II, São Paulo: Civilização Brasileira, 2004,p.16.

19

Os intelectuais orgânicos seriam uma espécie de “gestores da legitimação14”, eles contribuiriam para tornar a “classe” a qual pertencem na classe dirigente e hegemónica da sociedade. É então a partir desta vinculação de classe que Robert Fatton dá à definição de intelectual orgânico de António Gramsci que precisamos explicitar melhor a posição teórica que este trabalho pretende tomar. Argumentamos logo de partida, que este estudo pretende usar uma definição não restrita deste conceito gramsciniano. Assim, a ênfase na operacionalização do conceito para o caso do CEA, será dada à questão da legitimação do Estado. Assim, “classe” é aqui conceptualizado como “classe do Estado”, pois como asseverou George Balandier, “é o acesso e a luta em torno do poder o que contribui para a formação da única classe bem constituída em África, a classe dirigente.15” Somente então a partir da ideia de “classe de Estado”, poderemos olhar para os investigadores do CEA como intelectuais orgânicos, uma vez que se usássemos a ideia clássica de classe social (como em Karl Marx e a sua vinculação a questão da propriedade), encontraremos certas limitações. Como podemos ver, apesar de estes investigadores comungarem uma visão não elitista do trabalho de investigação e de defenderem a constituição de uma universidade popular, nunca viram a si próprios como membros da classe trabalhadora. Como iremos demonstrar ao longo deste trabalho, o CEA teve a particularidade de congregar, no seu interior, um grande número de investigadores cooperantes onde durante os anos 1979 a 198416 chegou a superar o número de investigadores nacionais. E foram os investigadores que de facto tomaram a liderança da pesquisa e ensino no CEA (foram os professores e alguns deles orientadores de tese dos jovens investigadores nacionais do CEA) e que, em última instância, decidiam sobre a definição, planeamento e execução e análise de dados da maior parte das pesquisas levadas a cabo. Podíamos até afirmar que estes investigadores, parafraseando Pierre Bourdieu, por deterem um volume de “capital

14

FATTON, Robert. Gramsci and the legitimization od the State: The case of the Senegalese Passive Revolution. Canadian Journal of Political Science, vol.19, nº4, 1986, p.735.

15

BALANDIER, George. Problematique des classes sociale en Afrique noire », In : Cahier Internatioux de Sociologie, XXXVIII, 1965, P.141, Apud, ZAMPARONI, Valdemir. Entre Narros &Mulungos – Colonialismo e Paisagem Social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940.1998, 582f. Tese (Doutorado em História) – São Paulo. Nesta Tese o autor reserva um capitulo, para discutir de forma minuciosa, os eixos centrais na grande discussão em torno do conceito de classe, que segundo ele, tem envolvido não só investigadores como também políticos.

16

Ver Quadro 2 - Movimento de Investigadores do CEA (1976-1990).

20

intelectual” mais elevado, tinham um melhor entendimento da situação social do que os investigadores locais (ou mesmo, melhor do que a própria liderança da FRELIMO.) Em suma, tendo como elemento definidor a ideia de “classe de Estado” os investigadores do CEA poderão ser considerados intelectuais orgânicos no sentido em que eles se constituíam como produtores de um conhecimento que não só iria ajudar o poder a alcançar os seus objectivos como também justificar as suas opções perante o público. A sua vinculação à classe do Estado, possibilitará um melhor exame da questão da independência dos intelectuais, e também a relação entre as prioridades de pesquisas definidas pelo CEA e as prioridades políticas traçadas pela FRELIMO para o desenvolvimento socialista de Moçambique, durante o período em análise. E, de facto, a perspectiva gramsciniana nos fornece elementos para enfatizar a postura crítica dos intelectuais orgânicos, e não vê-los simplesmente como reprodutores da ideologia hegemónica do Estado. Daí Gramsci conceber os intelectuais como “consciência crítica”, de um “distanciamento gerador de capacidade de autocrítica, de consciência para si”. António Gramsci fala-nos ainda de “hierarquias intelectuais”, do “lugar contraditório” que os intelectuais ocupam. Uma perspectiva que procura mostrar como os intelectuais são e não normativamente “como deveriam ser”. No que se refere às diferenciações dentro do grupo dos intelectuais, António Gramsci nota,

Por um lado, a existência de uma hierarquia intelectual, que vai desde os ‘grandes intelectuais’ até aos mais humildes ‘administradores’ e, por outro lado, em função do lugar ocupado na hierarquia, uma autonomia relativa destes em relação à classe fundamental de que são ‘intelectuais orgânicos’.17

No contexto moçambicano poderíamos ter como exemplo, Aquino de Bragança diretor do Centro e conselheiro pessoal do presidente da república. Aquino de Bragança funda um núcleo de pesquisa no Centro, a Oficina de História que pretendia resgatar (através das fontes orais) e reescrever a história da luta de libertação nacional em Moçambique. Um dos artigos do CEA, produzido por Aquino de Bragança e Jacques Depelchin, procurava, de uma forma crítica, analisar, a partir de dois livros escritos por africanistas18, “a problemática do 17 18

SANTOS, op.cit.p.97. HALON, Joseph. Mozambique: Revolution under fire, London :Zed Books, 1984. SAUL, Jonh. (editor), A difficult Road: The transition to socialism in Mozambique, New York : Monthly Review Press, 1985.

21

processo revolucionário iniciado pela Frelimo durante a luta armada de libertação nacional. 19

” Os autores chamavam a atenção para as artimanhas das justificações ideológicas na

análise da história de Moçambique, onde segundo eles, “um dos problemas de fundo da História da Frelimo provém, não só da forma vitoriosa como esta história é abordada, mas, sobretudo, da utilização dos seus conhecimentos de forma inquestionável”.20 Encontramos também no CEA, Ruth First, diretora de investigação do Centro, socióloga e esposa de Joe Slovo, chefe do braço armado do ANC (Unmkonto we Sizwe), que desenvolve no Centro um “Núcleo da África Austral”, compreendendo maioritariamente investigadores estrangeiros, procurando estudar a realidade moçambicana no contexto da África Austral, bem como análises mais especificas relacionadas com a luta anti-apartheid na África do Sul. Sob direção de Ruth First foi produzido em 1977, a maior pesquisa levada a cabo no CEA, apresentada na forma de livro como “O mineiro moçambicano21”, um trabalho exaustivo, que procurava grosso modo, medir as implicações para a economia de Moçambique do corte (pelo poder político) do fluxo migratório de mão-de-obra moçambicana para as minas do regime do apartheid. Enfim, encontramos no Centro, pesquisadores que procuraram manter um certo distanciamento em relação ao discurso do poder, lendo a realidade social de forma critica e desmistificadora, porém sempre aliada a uma espécie de “militância critica” à causa que apoiavam. Na mesma senda há uma preocupação de ligar o trabalho intelectual, com as estratégias do poder no campo social, econômico e político de transformação socialista da sociedade moçambicana. É neste sentido que a noção de “conhecimento politicamente engajado” de Allen Isaacman ajudará a traçar melhor os limites da “independência” dos intelectuais do CEA em relação a ideologia “hegemônica” do parido no poder. De acordo com este autor fazem parte deste grupo,

19

BRAGANÇA, Aquino e DEPELCHIN, Jacques.Da idealização da Frelimo à compreensão da História de Moçambique. Estudos Moçambicanos, nº5/6, CEA, Maputo, 1986, p.29-52.

20

Ibid., p.33.

21

O livro foi publicado postumamente. Em 1982 Ruth First foi assassinada no CEA, através de uma cartabomba. A obra surgiu inicialmente em inglês com o título: The black gold: the Mozambican miner, proletarian and peasant. Esta obra foi o culminar de cerca de seis anos de pesquisa iniciada em 1977 com a chegada desta investigadora ao Centro.

22

Os intelectuais que desafiam as hierarquias sociais existentes e instituições opressivas, como também os regimes de verdade e estruturas de poder que as produzem e apoiam. Não se contentando simplesmente em criticar o status quo, esses acadêmicos procuram transformá-lo. O seu trabalho insurgente é assim organicamente e inexoravelmente entrelaçado com a sua produção científica oposicional.22

Até que ponto então estes investigadores conseguiram manter um espaço onde pudessem exercer a crítica e questionamento? Esta é uma das questões que serão discutidas ao longo deste trabalho. O segundo eixo teórico que guiará este estudo é o de “culturas epistémicas” da socióloga austríaca, Karin Knorr-Cetina. Refira-se antes de mais, que a autora cunha este conceito a partir de uma análise comparativa entre duas disciplinas do campo científico das ciências naturais (física nuclear e biologia molecular)23. Nesse estudo são examinados não somente a construção do conhecimento, mas principalmente os mecanismos sociais, epistémicos, instrumentais e tecnológicos que permitem a produção do conhecimento científico. Na mesma senda, a autora procura saber como os diferentes campos científicos (ou disciplinas) estão organizados e as suas diferentes estratégias para a aquisição de conhecimento. É então a partir de uma análise comparativa entre as duas disciplinas acima referidas que Knorr-Cetina vai argumentar que existem no campo cientifico diferentes culturas epistémicas, quer dizer,

Essas amálgamas de arranjos e mecanismos - delimitados por afinidade, necessidade e coincidência histórica - que, em um determinado campo, constituem/definem como nós sabemos o que sabemos."24.

22

No original: “engaged scholars as intellectuals who challenge existing social hierarchies and oppressive institutions as well as the truth regimes and structures of power that produced and \supported them. Not content simply to critique the status quo, these scholars seek to change it. Their insurgent work is thus organically and inexorably intertwined with their oppositional scholarship.”, ISAACMAN, Allen. Legacies of engagement: Scholarship informed by political commitment. African Studies Review, vol. 46, nº.1, p.1-41, p.3, April 2003.

23

Vide, KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make Knowledge, Harvard: President and Fellow of Harvard Collge,1999.

24

KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make Knowledge, Harvard. President and Fellow of Harvard Collge. 1999, p.1.

23

Karin Knorr-Cetina defende que há uma “diversidade” entre as “culturas epistémicas, que revelariam a “desunião” dentro das ciências e que apontariam para diferentes estratégias, metodologias, significados simbólicos, enfim, distintas “culturas” que estariam por detrás da constituição de mecanismos na produção do conhecimento científico. Para esta autora o conceito de “disciplina” ou “áreas de especialização”, apesar de serem importantes na organização e produção de conhecimento científico, provaram serem menos felizes em capturar as estratégias no acto de conhecer, que não estão codificados nos textos escolares mas que alimentam as práticas dos especialistas.25” Daí então Knorr-Cetina sugerir o conceito de “culturas epistémicas”, que permitiriam apreender não somente a “maquinarias” (macheneries) ligadas aos aspectos científicos, tecnológicos e instrumentais, mas também as interacções humanas, as contingências, oportunismos, significados simbólicos, enfim realidades também presentes no processo da produção dos mecanismos que permitem a produção de conhecimento. Assim para esta autora o produto da ciência não pode ser entendido como algo separado das práticas que o constituíram26. É então neste âmbito que Karin-Knorr afirma que a distinção entre ciências naturais e sociais deveria ser superada: “a evidência filosófica sugere que o método nas ciências naturais está baseado sob os mesmos tipos de ciclos de interpretação comumente associados às ciências sociais”27. É, então, a partir da tese de que os campos científicos exibem culturas epistémicas distintas, que Knorr-Cetina (1981) vai propor uma distinção entre o locus da produção do conhecimento (laboratórios, departamentos ou núcleos de pesquisa etc) da pesquisa em si mesmo (experimentos, pesquisa empírica, colecta e análise de dados). Daí, ambos - o conhecimento produzido e o “laboratório” - seriam então exemplo de uma “cognição colectiva” (collective cognition), “que ocorreria onde duas os mais pessoas combinando conhecimento individual, não inicialmente partilhado pelos outros28”. Assim, juntos, produziriam um resultado cognitivo (conhecimento cientifico), que nenhum deles poderia produzir sozinho29. Seria o caso, por exemplo, da pesquisa colectiva que levou à produção da 25

KNORR-CETINA, K. Epistemic Cultures: How Science Make knowledge, Harvard:President and Fellow of Harvard Collge, 1999, p.3.

26

Ibid, p.4.

27

Tradução nossa: The philosophical evidence suggest that method in the natural sciences is based upon the same kind of cycles of interpretation commonly associated with the social sciences”.Vide, KNORR-CETINA, K. Social and scientific method or what do we make of the distinction between the natural and social sciences?. Philosophy of the Social Sciences, vol.II, p.335-359, 1981, p.336.

28

GIERE, Ronald. Distributed Cognition in Epistemic Cultures. Philosophy of Science, nº 69, Dezembro, 2002, p. 637–644, p.640.

29

Ibid, Idem.

24

grande obra de referência do CEA que foi “O Mineiro Moçambicano”. Como pretendemos mostrar neste trabalho, havia no CEA pessoas que eram consideradas experts em determinadas

áreas

de

conhecimento.

Por

exemplo

Marc

Wuyts,

nas

questões

macroeconômicas, Alpheus Manghezi, mais do que ninguém no CEA dominava fluentemente as várias línguas faladas no sul de Moçambique, sendo de extrema importância para pesquisa empírica com as comunidades rurais. Poderíamos também mencionar, Bridget O’Laughilin e Helena Dolny que eram especialistas nas questões agrárias. A proposta teórica de Knorr-Cetina é ainda pertinente neste estudo, pois possibilitará uma melhor compreensão da emergência de “facções” no âmbito do CEA; quer dizer distintos grupos de pesquisa, organizados não só através de diferentes formas de produzir conhecimento, e de conformidades teóricas, como também ligados a afinidades pessoais, partidárias, linguísticas, etc. Foi então partir da estruturação do CEA em diferentes e por vezes conflituantes nichos epistémicos, que pôde produzir um conhecimento não só socialmente relevante, como também um conhecimento “de “inteligência” sobre a luta política na Africa do Sul, que alimentaria directamente o “núcleo duro” do movimento político e armado do ANC30 na África do Sul. Recapitulando, estes dois principais alicerces teóricos permitirão compreender o trabalho científico do CEA a partir de duas dimensões. Primeiro, no fato de que estávamos em presença de uma organização complexa, plurivocal, onde coexistiam (e em algumas situações competiam entre si) diferentes pesquisadores com agendas de pesquisa próprias. Segundo, de um “sistema cognitivo” (o CEA) que procurava legitimar o Estado, sem contudo cair numa aderência acrítica e dogmática da ideologia que dele irradiava. Quer dizer, mesmo estando sob o manto da dominação e das repressões e proibições desse Estado, o CEA conseguiu criar um espaço onde pudesse exercer um pensamento critico-social e daí permitir a consolidação de uma nova forma de fazer pesquisa no pós-independência. Enfim, uma pesquisa em ciências sociais “aplicada”, colectiva, actual, urgente e maioritariamente virada para o paradigma da economia política marxista com ênfase na transformação das condições sociais das populações.

30

Congresso Nacional Africano. No original, African National Congress (ANC). Foi fundado em 1912 e com um dos propósitos fundamentais de lutar contras as injustiças contra os negros sul-africanos sob domínio de um governo minoritário branco. Em 1961, o ANC fundou o seu braço armado, Umkhonto We Sizwe, onde teve como seu chefe, Joe Slovo, marido de Ruth First. Vide, ROSS, Robert A concise history of South Africa. Cambridge University Press,1999.

25

Metodologia

A colecta do material empírico foi produzida de duas formas. Primeiro, através de uma pesquisa qualitativa das fontes bibliográficas e documentais referentes à produção científica do CEA31 (particular enfoque foi dado às revistas Estudos Moçambicanos e Não vamos Esquecer!, como também aos vários “Relatórios de Investigação” produzidos no âmbito do Curso de pós-graduação em Desenvolvimento, criado por Ruth First). Em segundo lugar, através de entrevistas semi-estruturadas aos pesquisadores locais e estrangeiros, aos estudantes do Curso de Desenvolvimento, membros do governo e do partido FRELIMO. Aos investigadores do CEA foram realizadas vinte entrevistas semi-estruturadas com duração de quarenta e cinco minutos a uma hora. Aos entrevistados foi solicitado que descrevessem duas situações. Primeiro, a sua experiencia de pesquisa, e ou de docência no Centro. Segundo, as interações entre os vários investigadores do Centro como também com outros investigadores da universidade e com outras instituições sociais como o partido FRELIMO, ministérios, direcções províncias etc. Foram num segundo momento realizadas cinco entrevistas com membros do governo (especialmente daqueles que tiveram um papel chave na governação durante o período de analise), da administração pública etc. O objectivo principal deste estudo que é o estabelecer a conexão entre produção científica e existência social será empiricamente sustentado, a partir da análise de cerca de trinta e dois32 trabalhos científicos produzidos e publicados pelo CEA, desde a sua fundação (1976) até ao fim da auto-proclamada ideologia marxista-leninista da FRELIMO, em que se 31

Esta recolha foi executada, sobretudo no Centro de Documentação do CEA e no Arquivo Histórico de Moçambique (AHM).

32

Uma das principais limitações deste trabalho refere-se ao facto de não fazer uma análise de mais de metade de toda a produção científica do CEA. Colin Darch (1990), na altura documentalista do CEA, produziu um “inventário de todos os trabalhos difundidos externamente ou não, ou pelo CEA no período que vai de 1977 a 1989”. Ainda segundo Darch, nesta compilação do acervo teórico do CEA, estavam “inclusas obras não só do CEA e seus investigadores directos, mas também de outros colaboradores quer sejam estas pessoas singulares, quer sejam instituições que participaram em projectos conjuntos de investigação com o CEA”. Este inventário registou cerca de 267 referências bibliográfica (Cf.., DARCH, Colin, Bibliografia 1977-1989. Estudos Moçambicanos nº7, Maputo, 1990, p.121-136. É de referir que estão aqui incluídas os artigos do CEA publicados na revista, Estudos Moçambicanos (41) e na Não Vamos Esquecer! (13) e os vários Relatórios Científicos produzidos no Curso de Desenvolvimento (35). Uma segunda limitação deste estudo relaciona-se com o facto deste estudo não pretender fazer uma apreciação critica sobre o impacto da produção cientifica do CEA na definição e criação (ou não) de políticas públicas do governo com vista ao tão almejado, “desenvolvimento socialista” na primeira década do pós - independência. O seu objectivo é mais localizado e modesto, no sentido de delinear a história intelectual de uma instituição de produção de conhecimento, como também de estabelecer as várias conexões existentes entre produção de conhecimento e contexto social e político.

26

procurou construir uma sociedade socialista em Moçambique (1990).

Estrutura do Estudo

O estudo está estruturado em nove capítulos. O primeiro apresenta de uma forma geral, o panorama do sistema de educação e pesquisa colonial em Moçambique. Começa-se por descrever o processo de estabelecimento do capitalismo colonial, passando pela emergência do Estado fascista e a institucionalização de um sistema de educação na colônia, baseado em princípios racistas e discriminatórios e culminando com a crise do Estado salazarista e a fundação da única universidade no país. O principal objectivo deste capítulo é de discutir o impacto do sistema colonial no Moçambique pós-colonial, nos âmbitos político, econômico, no sistema de educação com destaque para a emergência do campo da pesquisa científica. Pretende-se ainda, mostrar que a dependência de Moçambique em relação a África do Sul (tema que vai ocupar de forma central o trabalho científico do CEA, na selecção dos objectos de pesquisa, bem como na própria contratação de pesquisadores estrangeiros) tem suas raízes na peculiaridade do sistema colonial português. O segundo capítulo, descreve o contexto histórico do pós-independência tanto a nível local, como no que se refere ao contexto internacional da guerra fria e da região austral, fortemente dominada pelo regime sul-africano do apartheid. Este período do pósindependência foi também um momento em que começaram a surgir novas escolas de pensamento em África, emergidas no campo das chamadas Ciências Sociais radicais, como a Escola de Dar-es-Salaam, de Economia Política, e que procuraram construir um conhecimento sobre África, de forma soberana e em oposição àquele saber ocidental etnocêntrico. De facto a Tanzânia tem um significado particular na história de Moçambique e do CEA. Foi neste país da costa oriental africana que a FRELIMO se constituiu e começou a se preparar política e militarmente para a luta de libertação nacional. Por outro lado, muitos dos professores universitários e pesquisadores estrangeiros que passaram pelo Centro tinham primeiro trabalhado em universidades tanzanianas, como foi o caso de Ruth First, directora de investigação do CEA, Jacques Depelchin, Anna Maria Gentilli, Dan O’Meara, Judith Head, Colin Darch, Robert Davies e Sipho Dlamini.

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Ainda neste capítulo abordar-se-á o contexto regional da África Austral e sua determinação na pesquisa em Ciências Sociais no Moçambique independente. O CEA teve, de facto, uma componente de pesquisa sobre a região bastante significativa, tendo criado para o efeito um “Núcleo” de estudos da África Austral. Daí então a nossa intenção de perceber os factores por detrás destas escolhas, e como o trabalho do CEA se intersectava com os desenvolvimentos políticos e econômicos da região. Na mesma senda, não deixaremos de mencionar, ainda que brevemente, o contexto da “guerra fria”, e da dicotomização do mundo em duas “visões de mundo”: o capitalismo e o socialismo/comunismo. Moçambique sem dúvida foi impactado por este contexto internacional e suas escolhas políticas e ideológicas, necessariamente tiveram que dialogar com estas duas grandes posições. Tencionamos por fim, descrever o contexto político social e econômico de Moçambique, no período da “transição socialista” como forma de melhor entender o trabalho do CEA em relação com o poder político e as várias forças que estiveram em jogo. De facto, não podemos falar desta instituição de pesquisa sem situá-la no contexto político moçambicano, pois só assim poderemos compreender integralmente a sua existência como instituição de pesquisa e ensino. Iremos também discutir a transformação da FRELIMO em partido político de orientação marxista-leninista e como isso se traduziu na sociedade e de uma forma particular, na sua interacção com o CEA. O terceiro capítulo discute a questão da emergência de um novo campo da pesquisa no período pós-independência, tendo como caso de estudo o primeiro trabalho colectivo do CEA. “A Questão Rodesiana”, levado a cabo em 1976, antes da integração de Ruth First. Argumentamos neste capítulo, que este projecto teve o condão de mudar radicalmente a dinâmica de pesquisa do Centro e permitiu a emergência de um novo campo da pesquisa no pós-independência, ao introduzir três inovações: uma abordagem no “actual” (sem contudo deixar de levar em consideração as suas raízes históricas), em vez de focalizar na história como tal; uma mudança de uma pesquisa individual para uma pesquisa colectiva; e a introdução de um sentido de urgência na pesquisa para responder a preocupações imediatas. Ainda neste capítulo, pretendemos fazer uma reconstituição histórica do Centro, atores em jogo, e os seus objectivos, estrutura organizacional e hierárquica e linhas de pesquisa. Ainda neste capítulo, traremos à discussão, como forma também de mostrar como se deu o processo de consolidação deste novo campo da pesquisa, o mais importante e elaborado projecto colectivo de pesquisa do Centro, “O Mineiro Moçambicano”, produzido em 1979 e que marca simbolicamente a “entrada em cena” de Ruth First no CEA. São discutidos também os

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antecedentes da pesquisa, a interacção com o meio universitário e com o governo, a preparação, delimitação e realização da pesquisa, seus impasses e o seu contributo para o fortalecimento das capacidades de pesquisa dos estudantes. É ainda apresentada em linhas gerais o percurso intelectual de Ruth First até a sua nomeação como directora científica do Centro. O quarto capítulo focaliza a sua atenção na descrição e análise do “Projecto sobre o Desemprego na Cidade de Maputo”, um dos primeiros relatórios científicos especialmente “encomendado” pelo governo moçambicano com o objectivo expresso de “solucionar” um problema social concreto e actual que Moçambique viveu nos primeiros anos do pósindependência. Mostraremos como este estudo colectivo contribuiu para uma maior dinamização da pesquisa empírica no Centro, e também na criação de um projeto de grande envergadura para a formação de estudantes e quadros administrativos nas técnicas e metodologias de pesquisa. Este capítulo não deixará também de discutir o contexto social e político em que o estudo foi desenvolvido, abordando tema como os anos de “alvoroço” no meio universitário (o partido Frelimo cada vez mais dominante na sociedade, a criação dos círculos do partido na universidade, a criação da faculdade de marxismo-leninismo, e os conflitos com os estudantes; as tensões entre o CEA e a disciplina de Antropologia, etc), consequência de uma maior radicalização do partido FRELIMO na sociedade moçambicana (por exemplo, o aumento da dominação e coerção do Estado com a criação dos “campos de reeducação”, “operação produção33”, o recrudescer da crise econômica e de focos de destabilização perpetrados pela RENAMO e forças armadas sul africanas. O quinto capítulo pretende trazer elementos para a reconstituição histórica do primeiro curso de pós-graduação em Moçambique, que ficou famoso como o Curso de Desenvolvimento. Este curso idealizado principalmente por Ruth First iria marcar o seu retorno definitivo ao CEA. Iremos focalizar nos objectivos, métodos, disciplinas e organização curricular, enfoque teórico, grupo alvo e o seu significado para o campo da 33

Segundo José Luís Cabaço, apud Lorenzo Macagno, a operação produção “consistiu no envio forçado de cidadãos considerados improdutivos da cidade para as áreas rurais, em particular, para a província do Niassa.” Ainda na mesma senda, Luís de Brito apud, Macagno, afirmou que “no imaginário dos dirigentes da FRELIMO, aqueles que eles consideravam 'improdutivos' (desempregados e outros) eram os preguiçosos, os bandidos, os criminosos. Assim [...] o objetivo foi também o de eliminar a 'ameaça' que representava, nas grandes cidades, uma camada social potencialmente perigosa e susceptível de apoiar a RENAMO”. Vide, MACAGNO, Lorenzo. Fragmentos de uma Imaginação Nacional. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol.24, nº70, São Paulo, Junho, 2009, p.27. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010269092009000200002#nt35. Acesso em 15-6-2007.

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pesquisa e ensino no pós-independência; uma vez que um dos grandes princípios do curso era de encarar o ensino como um acto de investigação e de formar quadros nacionais para trabalharem em problemas relacionados com o desenvolvimento social e econômico de Moçambique. Por fim, o capítulo irá abordar as tensões existentes neste Curso, tanto no que concerne às críticas (relacionadas com a sua natureza, grupo alvo e abordagem teórica) de outros investigadores e docentes da universidade, como também as críticas vindas do interior do próprio Curso, fundamentalmente dos seus estudantes. O sexto capítulo na senda do anterior, irá examinar de forma mais detalhada seis Relatórios de Investigação produzidos no âmbito do Curso de Desenvolvimento e que estavam relacionados com as prioridades políticas da FRELIMO para o desenvolvimento socialista de Moçambique. O objectivo é assim o de enfatizar a ligação profunda existente entre prioridades de pesquisas e prioridades políticas. Estes estudos do CEA estavam dentro das seguintes áreas de investigação (que se confundiam com as prioridades politicas do governo): a questão do fluxo migratório para as minas da África do Sul, os camponeses e a economia rural, os problemas da transformação rural, a questão da produção algodoeira (uma das principais culturas de produção no tempo colonial), a problemática da comercialização agrária, a nível distrital e a questão da socialização do campo, especialmente da construção e organização dos camponeses em aldeias comunais. O sétimo capítulo, traz elementos para a construção de uma “biografia intelectual” da Oficina de História, um colectivo de historiadores do Centro, que pretendiam reconstituir a experiência da luta de libertação nacional e de construir uma “nova história, em clara oposição à historiografia colonial. Este grupo de historiadores do CEA iria fundar uma revista intitulada Não Vamos Esquecer!, onde eram publicados artigos científicos, documentos políticos, entrevistas e canções de participantes na luta de libertação nacional, de operários e camponeses moçambicanos. Era assim uma forma de escrever a história social de Moçambique contada a partir dos “de baixo” e de perpetuar a memória dos moçambicanos que viveram o período colonial e que participaram na experiência da luta armada. Por último, são apresentadas as quatro edições da revista e analisados alguns dos seus conteúdos. O oitavo capítulo, com a mesma lógica que no capítulo anterior, vai focalizar a sua atenção numa outra forma de difusão literária do Centro, a revista científica, publicada duas vezes por ano, Estudos Moçambicanos. Esta revista foi fundada em 1980 e até 1990 publicou oito números onde, através da sua produção científica, o CEA propunha ”construir uma

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economia política de Moçambique34”. Serão deste modo analisados neste capítulo, a linha teórica e de investigação da revista, métodos, objectivos, os artigos publicados e, por fim, seleccionados 12 destes estudos para uma análise crítica. O nono e último capítulo, operacionaliza os dois principais eixos teóricos do estudo, onde aborda, de forma mais localizada, o trabalho intelectual do CEA e a sua relação com o contexto social e político da “transição socialista” em Moçambique. Este capítulo trata da fase em que novos actores entram em jogo, principalmente Ruth First e a sua entourage. Abordaremos o impacto que a vinda de acadêmicos e pesquisadores estrangeiros teve na estruturação da pesquisa, como também na criação de “facções” dentro do Centro e como estas foram organizando a agenda de pesquisa do Centro. Pretendemos também analisar a ligação do CEA com o poder político, as relações de poder subjacentes, a conexão entre prioridade de pesquisa e prioridades políticas, bem como o significado do conceito de “engajamento crítico” no trabalho intelectual destes investigadores.

1. A EDUCAÇÃO COLONIAL E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS Iremos adiante fazer um desvio histórico, no sentido de descrever, de forma esquemática, a experiencia colonial em Moçambique. O seu principal propósito é o de mostrar como algumas questões estruturais do colonialismo determinaram, por exemplo, a existência de uma fraca capacidade institucional, de infra-estruturas e de formação de quadros locais na área da educação e pesquisa em ciências sociais. Começaremos, no entanto, por abordar primeiro a questão do estabelecimento de mecanismos de dominação colonial em Moçambique, suas formas, instrumentos e legislações que permitiram aos portugueses a implantação do Estado colonial. Por fim, abordaremos a questão da educação e pesquisa colonial, mostrando, por exemplo, que a ideologia colonial, nunca se preocupou na formação educacional da população local e nem no desenvolvimento de um sistema de educação formal ou de pesquisa que beneficiasse a população local. É ainda enfatizada a questão do carácter “retrógrado” de Portugal como potência colonizadora, mostrando por exemplo que mesmo na metrópole o desenvolvimento do ensino e pesquisa em ciências sociais até finais dos anos 1960, era praticamente inexistente. Por outro lado é também referida a questão da pobreza econômica e financeira de Portugal e como isso implicou uma maior dependência em relação 34

ESTUDOS MOÇAMBICANOS nº1 , Revista Semestral de Ciências Sociais, CEA, Maputo, 1980.

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às colônias africanas como também ao “aluguel” às outras potências europeias.

1.1 O Processo de estabelecimento da administração colonial (1895-1945)

Foi após a conferência de Berlim (1884-85) e consequente partilha de África pelas potências europeias, que Portugal começou a desenhar uma política militarista mais agressiva,35 com o intuito de estabelecer o seu poder colonial em todo o território moçambicano36. Uma nova página na história colonial de Moçambique se abria37. Até então a presença portuguesa em Moçambique limitava-se, como afirmou Lorenzo Macagno (2001), “ a um pequeno número de assentamentos costeiros. Das regiões do interior, o vale do Zambeze era a única parte do país que conservava a aparência de um domínio europeu”38. Um dos traços mais característicos desta época foi também o estabelecimento das fundações para a predominância dos missionários da igreja católica em Moçambique. A empreitada colonial, na óptica dos seus representantes, deveria trazer a “civilização” para os povos “primitivos” de Moçambique. Os portugueses acreditavam, como afirmou James Duffy (1961), que a sua missão em África era a conquista espiritual sobre as forças da ignorância39. Daí então as primeiras campanhas educacionais para os africanos terem sido relegadas aos missionários católicos. Como observou Valdemir Zamparoni, “Estado e igreja, espada e

35

Por exemplo, a conquista militar portuguesa do Estado de Gaza, no sul de Moçambique (1895-7).

36

Durante a Conferência de Berlin, as grandes potências europeias rejeitaram a reivindicação histórica de Lisboa em relação a Moçambique decretaram que pacificação e controlo efectivo eram pré-requisitos para um reconhecimento como potencia colonial. Vide, ISAACMAN, Allen. Mozambique – from colonialism to revolution, 1900 – 1982, Boulder:Westview Press, 1983.

37

A presença portuguesa em Moçambique remonta ao século XVI, relacionada fundamentalmente a expansão marítima portuguesa em toda a costa oriental africana em busca de especiarias, assentando-se como afirmou Zamparoni “no sistema de feitoria e portos para o abastecimento desta nova rota”. Esta primeira fase caracterizou-se também pelo estabelecimento de trocas comerciais nomeadamente de ouro, marfim, tecidos e escravos, de exploradores portugueses, caçadores e aventureiros, com os povos africanos, árabes que já se tinham instalado na costa oriental africana e construídos cidades-estados arabo-africanas. Por outro lado, é preciso referir que antes da Conferencia de Berlin, particularmente, “entre 1770 e 1850, o tráfico de escravos constituiu-se na principal actividade econômica da colónia”: Vide, ZAMPARONI, Valdemir. De Escravo a Cozinheiro – Colonialismo e racismo em Moçambique, Salvador : EdUFBA, 2007.

38

MACAGNO, Lorenzo. O discurso colonial e a fabricação dos usos e costumes. FRY, Peter (Org.). Moçambique Ensaios. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.p.63.

39

DUFFY, James. Portuguese Africa (Angola and Mozambique): Somes crucial problems and the role of education in their resolution. The Journal of Negro Education, vol.30, nº3, 1961, p.294-301.

32

bíblia, sempre andaram de mãos dadas40”. No entanto, com o estabelecimento dos Jesuítas (1610 a 1760) na Ilha de Moçambique e mais tarde os Dominicanos no Vale do Zambeze, na zona central, os missionários católicos em Moçambique tiveram que contestar a forte influência islâmica que tinha existido por muito tempo por toda a costa do nordeste de Moçambique.41 O envolvimento de missionários protestantes42 na escolarização dos africanos iria criar medo e indignação entre as autoridades portuguesas e os missionários católicos. Por volta de 1876, os portugueses começam a questionar as possíveis implicações políticas do trabalho dos missionários não-católicos43. Estes eram suspeitos de “desnacionalizar os nativos” e de agirem como agentes de governos estrangeiros44. O Estado colonial não conseguia controlar todas as actividades desenvolvidas no território moçambicano tanto no que concerne à educação como também no trabalho das missões religiosas. Por outro lado, o sistema público de instrução escolar, mais do que um fracasso, se mostrava uma irrealidade, pois que das poucas escolas existentes na colônia, a sua maioria pertencia à Igreja Católica, que se circunscrevia somente ao ensino do catecismo.45 Mouzinho de Albuquerque, um dos arquitectos da política colonial portuguesa do final do século XIX, reproduziu fielmente os propósitos da ideologia colonial quando afirmou, “ o que nós temos que fazer para educar e civilizar o indígena é desenvolver de uma forma prática a sua aptidão para o trabalho manual 40

Não obstante, neste “casamento” entre o Estado e a Igreja católica, Zamparoni adverte-nos da “excepção do período Pombalino (Marquês de Pombal) e do período entre 1911 e 1936, no qual ideias de um republicanismo positivista e de um certo anti-clericalismo abalaram tais relações”. Cf. ZAMPARONI, Valdemir. Entre Narros &Mulungos – Colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques c. 1890-c.1940. Tese apresentada para a obtenção do Grau de Doutor em Historia Social junto à Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998, p.416.

41

Vide, ZAMPARONI, 2007, op.cit.

42

Para uma leitura mais atenta sobre missionários protestantes em Moçambique, veja, BUTSELAAR, Jan Van. Africains, Missionaires et Colonialistes. Leiden: E.J. Brill, 1984; Trabalhos mais recentes, veja, CRUZ e Silva, Teresa. “Protestant churches and the formation of political consciousness in Southern Mozambique (1930-1974): the case of the Swiss mission”, Bradford, University of Bradford, PhD thesis, 1996, Mimeo. Na mesma senda, os seguintes artigos: CRUZ e Silva, Teresa. Identity and political consciousness in Southern Mozambique, 1930-1974: Two Presbyterian biographies contextualized. Journal of Southern African Studies, nº24, 1, 1998, p.223-236. CRUZ e Silva, Teresa. Colonizadores e protestantes: o jogo de identidades e diferenças”. SERRA, Carlos ed., Estigmatizar e desqualificar: casos, análises, encontros. Maputo: Livraria Universitária, 1998, p.203-226. CRUZ e Silva, Teresa. Educação, identidades e consciência política – A missão Suíça no sul de Moçambique (1930-1975), Bourdeux: Lusotopie, 1998, p.397-405.

43

ZAMPARONI alerta-nos, no entanto, para o facto de que esta presença missionária protestante em Moçambique data das últimas décadas do século XIX, “embora o protestantismo já se fizesse presente através de alguns indivíduos catequizados nos territórios vizinhos”. ZAMPARONI, Valdemir, 1998, op.cit. p.427.

44

CROSS, Michael. The political economy of colonial education: Mozambique, 1930-1975. Comparative Education Review, vol.31, nº4,, nov. 1987, p.550-569 op.cit, 1987, p.554 e ZAMPARONI, Valdemir, , op.cit. 1998.

45

CROSS, op.cit, 1987

33

e tirar vantagem dele para a exploração da província”46. Durante o período compreendido entre a Conferência de Berlim e os finais da Primeira Guerra Mundial, Portugal uma das economias mais frágeis da Europa, se viu na iminência de procurar alianças com seus concorrentes imperialistas, principalmente Inglaterra e França, no sentido de explorar lucrativamente as suas colônias, mas também de assim poder financiar os custos da implantação de um sistema de administração colonial em todo o território, onde estava também subjacente a formação de uma “política nativa”47 abrangente. Foi assim que,

Portugal optou por ceder as actuais províncias do Niassa e de Cabo Delgado à Companhia do Niassa, uma companhia majestática, que para além da sua função económica, tinha poderes militares e administrativos. Da mesma foram, as províncias de Manica e de Sofala passaram a ser administradas pela Companhia de Moçambique. A províncias de Tete e da Zambézia forma submetidas a uma administração conjunta do Estado português e de companhias que arrendaram os antigos prazos. A província de Nampula e os territórios ao sul do rio Save (Maputo, Gaza e Inhambane) ficaram sob a administração directa do Estado português. 48

Mesmo tendo o controlo administrativo do sul de Moçambique, Portugal não conseguiu competir com o capital estrangeiro (não português), principalmente com a economia sul-africana. Daí se explica a transformação desta região do país em reservatório de mão-de-obra para as minas de ouro e diamante da África do sul. O centro e norte de Moçambique, como vimos anteriormente, estavam sob domínio econômico das companhias arrendatárias, que gozavam de poderes absolutos (eram supostos de também estabelecer escolas na colônia)49. 46

ISAACMAN Allen. e Isaacman, Barbara. Mozambique: from colonialism to Revolution, 1900 -1982, Boulder, Colorado: Westview Press, 1983, p.50

47

Termo usado por HENRIKSEN, Thomas, op.cit.

48

HEDGES, David (Coord,). História de Moçambique – Moçambique no auge do colonialismo, 1930 – 1961, Livraria Universitária, Maputo: UEM, 1999, p.1.

49

Kathleen Sheldon, observa no entanto, que as poucas escolas das companhias que haviam (em 1895 a única escola que existia na região nordeste do Niassa - território da companhia do Niassa – era uma pequena escola no Ibo, somente para rapazes e outra em Querimba que “mal funcionava” . Ainda segundo a autora, nos distritos da Companhia de Moçambique no centro do país, no porto da Beira, havia uma pequena escola aberta em1897 pelas Irmãs franciscanas .Vide, SHELDON, Kathleen. I studied with the Nuns, Learning to

34

A partir desta mudança qualitativa do capital mercantil para novas formas de acumulação de capital, os portugueses foram tomando consciência da crescente necessidade de uma força de trabalho (minimamente) letrada. Como afirmou Newitt, “muitas vezes eles tinham que se virar para a comunidade dos comerciantes indianos e ficou claro que algumas das oportunidades educacionais teriam que ser criadas para a população não-indígena das cidades”.50 Em 1907 foi estabelecida uma estrutura legal para o controle estatal da educação na colônia, embora não tenha sido aplicada por muitos anos. De acordo com esta regulação, era exigido aos professores que passassem num exame de qualificação e que todos os livros escolares teriam que ser autorizados pelo Estado. O ensino tinha que ser em português ou numa língua local e não numa outra língua europeia, uma restrição que era direccionada principalmente para as missões protestantes de língua inglesa.51 Kathleen Sheldon (1998) afirma ainda, que neste período tinham sido também abertas algumas escolas do Estado, contudo não eram ainda satisfatórias52. Em 1921, o Estado colonial reconheceu a Igreja Católica como a única autoridade sobre a educação missionária53, e muitos outros privilégios (como veremos posteriormente), serão dados a esses missionários. No entanto, esta medida nunca foi executada, uma vez que havia um número insuficiente de padres portugueses disponíveis para o serviço em Moçambique. Muitas sociedades missionárias protestantes tinham estado directa ou indirectamente a actuar em Moçambique durante este período54. Os muçulmanos também operavam as suas próprias escolas em áreas da colónia onde predominava sua religião, não obstante os portugueses considerarem a influência do Islã como uma barreira para a assimilação dos africanos à cultura e nação portuguesa. O ideal cristão prescrito no Evangelho foi gradualmente absorvido pela ideia geral da “missão civilizadora” reivindicada pelos colonialistas portugueses. Ficou claro que o papel dos missionários católicos não era unicamente de fornecer serviço espiritual aos comerciantes portugueses e os colonizadores brancos, mas de efectuar mudanças culturais e educacionais make blouses: Gender ideology and colonial education. The International Journal of African Historical Studies, Vol.31, nº3, 1998, pp.595-625. 50

NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London : Hurst & Company, 1995, p.439.

51

SHELDON, op.cit, p.599 e ZAMPARONI, Valdemir, 1998, op.cit. p. 416 e segtes.

52

SHELDON, op.cit, p.599.

53

CROSS, op.cit, p.556.

54

CROSS, 1987:556 apud HERRICK, Allison et al. 1969.

35

nas sociedades africanas, conduzindo os africanos - como então era propalado pela ideologia colonial - da “selvajaria para a civilização”55. Neste período da Primeira República (1910-1926)56 as poucas escolas que existiam eram exclusivamente para benefício dos filhos da elite colonial e de um pequeno grupo de africanos “assimilados”. No que concerne aos africanos, o sistema de educação era ainda muito precário, o que reflectia a situação paradoxal57 de Portugal em relação à educação da maioria dos moçambicanos, que se encontrava à margem da campanha educacional. Iniciou-se nesta fase, um processo de estabelecimento limitado de escolas, nos principais postos comerciais e administrativos, tendo como assumpção de que os africanos deviam ser suficientemente instruídos para unicamente poderem ler as escrituras sagradas, exclusivamente na língua portuguesa não obstante encontrarmos missionários protestantes interessados na introdução das línguas africanas.58 A actividade dos missionários protestantes em relação à educação formal era também nesta fase insignificante, devido às restrições do poder colonial português. Era enfim, uma concepção de educação baseada no preconceito da superioridade racial e intelectual da civilização europeia em relação à africana.

1.2 A implantação do Estado Novo e a educação africana

Todas essas tendências para uma colonização efectiva de Moçambique começaram a ser consolidadas com a ascensão de António Salazar ao poder e o estabelecimento do “Estado Novo”59, nos princípios dos anos 193060. A sua política em relação às colônias era de apertar

55

CROSS, op. cit, 1987,p.555.

56

Para uma leitura mais atenta deste período vide, WHEELER, Dougals L. The Portuguese Revolution of 1910, The Journal of Modern History, Vol.44, nº2, June, 1972, pp.172-194; Republican Portugal: A Political History 1910-1926, The Review of Politics, Vol.41, nº2, 1979, pp.317-319.

57

Para Zamparoni, “era uma situação que parecia absurda: o estado não mantinha, não apoiava e não criava escolas, mas era eficiente para criar obstáculos contra quem o fazia, temendo a desnacionalização do nosso indígena. Zamparoni, 1998, op.cit. p.419.

58

Em relação a introdução das línguas vernáculas na educação africana, encontramos somente o trabalho das missões protestantes, particularmente a Missão Suíça, que segundo Cruz e Silva começou a operar em 1880. Segundo esta autora, desde o primeiro momento esta missão era vista com desconfiança pelos portugueses. É de referir que a igreja católica nunca esteve interessada em ensinar nas línguas nativas. Ver ZAMPARONI, 1998, op. cit.

59

De acordo com Cláudia Castelo (2004), “Regime político autoritário, filo-fascista, católico e colonialista que imperou em Portugal entre 1933 e 25 de Abril de 1974. Sucedeu à ditadura militar instaurada com o golpe de 28 de Maio de 1926, que derrubou a I República (1910-1926)”.

36

ainda mais o controle de Portugal e tornar a sua exploração, tanto da força de trabalho como dos recursos naturais, mais eficiente e para benefício dos capitalistas portugueses61 (e não dos produtores africanos ou investidores estrangeiros62). De acordo com a estratégia política de Salazar em relação às suas possessões ultramarinas, definidas pelo “Acto Colonial de 1930”63, os territórios coloniais eram solicitados (1) a produzir matérias-primas (sobretudo o incremento da cultura forçada do algodão), (2) contribuir para o equilíbrio da balança de pagamento português, (3) ser financeiramente auto-suficiente, e (4) estar política e administrativamente centralizados sob direcção do governo metropolitano64. O estatuto constitucional de Moçambique iria de seguida mudar formalmente de “colônia” para o de “província” sob controlo de um governador-geral.65 Ainda no âmbito da nova política colonial, o “Estado Novo” decidiu reformular66 os diversos códigos e regulamentos sobre o “regime de indigenato” que vigoravam até a altura do golpe militar. A divisão da população africana em duas categorias, (que já existia em Moçambique desde 1917), foi reforçada: os indígenas (africanos “não-assimilados”67) e “não60

Em, 1926 dá-se o golpe de estado em Portugal, encabeçado por um grupo de generais. Em 1928, Salazar, professor da universidade de Coimbra é convocado para gerir o sector financeiro. Só em 1932 assumira o cargo de Primeiro-ministro que ocupara ditatorialmente ate 1968, quando é sucedido pelo seu amigo pessoal e então Ministro das colónias, Marcelo Caetano.

61

Não podemos deixar de referir que quando Salazar ascende ao poder, a grande depressão de 1930 tinha afectado profundamente Portugal, mais do qualquer outro país na Europa. A depressão iria assim forçar Portugal a se tornar mais auto-suficiente em casa e de procurar investimento estrangeiro no exterior. Vide por exemplo, BIRMINGHAM, David. A Concise History of Portugal, Cambridge:Cambridge University Press, 1993.

62

SHELDON, Kathleen. I studied with the Nuns, Learning to make blouses: Gender ideology and colonial education. The International Journal of African Historical Studies, Vol.31, nº3, 1998, p.595-625.

63

“ O Acto Colonial define assim o quadro jurídico - institucional geral de uma nova politica para os territórios sob dominação portuguesa. Dentro da opção colonial global do estado português, abre-se uma fase ‘imperial’, nacionalista e centralizadora, fruto de uma nova conjuntura externa e interna e traduzida numa diferente orientação geral para o aproveitamento das colónias. (THOMAZ, 2002, p.72, apud, ROSAS, 1994)

64

CROSS, 1987, p.558.

65

Segundo Michael Cross, a mudança deste estatuto teve como intenção, reforçar a situação colonial contra as pressões desnacionalizante. Vide, CROSS, op.cit, 1987, p.558.

66

Zamparoni aborda especificamente a “criação do indígena”, onde afirma que “o primeiro diploma da legislação colonial portuguesa, em Moçambique, que se preocupou em definir quem seria classificado como indígena e quem estaria isento de tal classificação, remonta aos últimos anos do século XIX” quando da “campanha movida por António Ennes em prol da obrigatoriedade do trabalho para os indígenas das colônias africanas”. Ver, ZAMPARONI, 1998; 2007, op.cit.

67

Segundo Zamparoni, a lei de 1917, considerava assimilado ao europeu, o individuo da raça negra ou dela descendente que: a) tivesse abandonado inteiramente os usos e costumes daquela raça; b) que falasse, lesse e escrevesse a língua portuguesa; que adoptasse a monogamia; que exercesse profissão, arte ou oficio, compatíveis com a “civilização” européia ou que tivesse obtido por “meio licito” rendimento que fosse suficiente para a alimentação, sustento, habitação e vestuário dele e de sua família. Ver, ZAMPARONI,

37

indígenas” (qualquer um usufruindo totalmente a cidadania portuguesa, incluindo os “africanos assimilados”, não obstante na prática eles permanecerem uma terceira categoria). Os “indígenas” representavam a maioria da população africana. Como cidadãos de estatuto inferior, os “assimilados” (negros, asiáticos, mestiços) tinham “cartões de identidade“ que os diferenciavam da massa de trabalhadores detentores de uma caderneta indígena. Esta caderneta tinha sido um dos meios encontrados para limitar a circulação da força de trabalho68. Em teoria, um “assimilado” como um “não indígena” era considerado como cidadão português. Ele ou ela gozava de todos os privilégios que advinham da cidadania portuguesa69. Como Michael Mawema70 correctamente indicou, a política de assimilação,

Pressupunha que todos portugueses eram civilizados e todos os não portugueses não-civilizados e que, ao adquirirem educação, tecnologia e religião, o não-civilizado iria então ser assimilado na cultura e nação portuguesa ou em outras palavras na civilização71.

De acordo com Malyn Newitt (1995), o “acto colonial” de Salazar manteve a separação formal entre a igreja e o Estado, mas deu a igreja um reconhecimento especial como um instrumento de “civilização” e de influência nacional canalizando a ajuda do Estado para as missões para o seu trabalho educacional72. Foi assim que em 1940, o governo português promulgou o “Acordo Missionário”, um decreto que estabelecia que a igreja católica como provedora da educação para todos os Valdemir. Frugalidade, moralidade e respeito: a política do assimilacionismo em Moçambique, c.1890-1930. DELGADO Ignácio G; Albergaria, ENILCE; Ribeiro, GILVAN; Bruno, Renato. (Org.). Vozes (Além) da África: Trópicos sobre Identidade Negra, Literatura e História Africana. Juiz de Fora:UFJF, 2006, p.145176. 68

69

Meneses et al.,”As autoridades tradicionais no contexto do pluralismo jurídico” p. 344, In: Sousa Santos, Boaventura (Org). Conflito e transformação social – Uma paisagem das justiças em Moçambique. Lisboa:Afrontamento, 2003. MONDLANE, op.cit, ,1995,p.43.

70

MAWEMA, Michael. British and Portuguese Colonialism in Central African Education, New York: Columbia University Teachers College, 1981.

71

MAWEMA, Michael. British and Portuguese Colonialism in Central African Education, New York: Columbia University Teachers College, 1981.

72

NEWITT, Malyn. A History of Mozambique, London: Hurst & Company, 1995, p.479.

38

africanos e reforçava as regulações no que concernia a obrigatoriedade do uso da língua portuguesa na instrução escolar73. A igreja não oferecia educação universal e gratuita, mas em vez disso introduziu barreiras em forma de propinas e restrições de idade que tornaram difícil para as crianças africanas ingressarem nas escolas. Também requeria que as crianças fossem baptizadas como católicas como condição básica para serem admitidas. Os estudantes só poderiam prosseguir para o nível seguinte de educação se tivessem completado o 3º ano da “escola rudimentar” por volta dos 14 anos de idade. Aliada a uma grande limitação de acesso as escolas, esses constrangimentos iriam contribuir para que a maioria das crianças moçambicanas ficassem de fora e tornasse difícil o êxito dos alunos.74

Quadro 1 - Alunos Matriculados 1930

Instituição

Escolas Elementares

Escolas Rudimentares

Governo

3.405

8.795

Privado

403

-

Católica

7.812

21.122

Missões estrangeiras

396

8.132

Fonte: Anuário Estatístico (1930), apud, Newitt (1995)

Foram criados dois sistemas escolares na colônia: o sistema estatal, que era uma duplicação do sistema escolar metropolitano português, onde se encontravam as escolas governamentais para os brancos, asiáticos, mulatos e “assimilados”.75 O ensino de adaptação” (chamado até 1956, “ensino rudimentar”) que era exclusivo aos estudantes africanos e estava sob responsabilidade das missões católicas. Este sistema - porque baseado numa filosofia racista e discriminatória, que via o africano como “primitivo” que deveria ascender à “civilização” portuguesa - tinha como propósito providenciar uma instrução para a

73

SHELDON, Kathleen, op.cit, p.614.

74

SHELDON, Kathleen, op.cit, p.615.

75

CROSS, op.cit, p.559

39

assimilação do africano, através da doutrinação dos valores culturais portugueses76. De acordo com Malyn Newitt (1995), depois da segunda guerra mundial, as oportunidades educacionais expandiram um pouco. Em 1942-3 houve 95.444 pupilos registados nas escolas das missões. Por volta de 1961-2 o número tinha atingido 348.265, dos quais 98% eram ensinados em escolas católicas e somente 7.191 nas escolas missionárias estrangeiras. O declínio relativo das missões estrangeiras era, obviamente, parte de uma política do governo, onde, ao longo da sua actuação, foram gradualmente postos obstáculos a estas instituições. Os professores africanos somente poderiam ser admitidos nos estabelecimentos de ensino se fossem católicos, e o acesso a uma educação posterior dependia da filiação à igreja estabelecida do Estado.77. Barry Munslow (apud Newitt, 1995) dá o exemplo eloquente de Samora Machel78, onde a sua progressão educacional tinha sido barrada ao menos que se transformasse num católico baptizado, tendo então, pelo benefício do avanço escolar, aliadose à igreja79. Esperava-se que a política de educação produzisse uma classe de trabalhadores técnicos, agrícolas e artesãos que poderiam ser facilmente absorvidos pela economia colonial. Daí então Eduardo Mondlane afirmar que a educação colonial assim concebida tinha sido desenhada para responder a dois objectivos: “formar elementos da população que actuariam como intermediários entre o Estado colonial e as massas; e inculcar uma atitude de servilismo nos africanos educados”80. É sintomática a forma como o Cardeal Patriarca de Lisboa, na sua carta pastoral de 1960, expôs de uma forma directa, os objectivos da educação colonial,

Tentamos atingir a população nativa em extensão e profundidade para os ensinar a ler, escrever e contar, não para os fazer “doutores” (...) Educá-los e instruí-los de modo a fazer deles prisioneiros da terra e protegê-los da atracção das cidades, o caminho que os missionários católicos escolheram com devoção e coragem, o caminho do bom senso e da segurança política e social para a província. (...) As escolas são necessárias, sim, mas escolas onde ensinemos ao nativo o 76

Vide, DUFFY, James. Portuguese Africa (Angola and Mozambique): Some crucial problems and the role of education in their resolution. The Journal of Negro Education, Vol.30, nº3, 1961, p.294-301.

77

NEWITT, 1995 op.cit, p..480.

78

Líder da luta anti-colonial, membro fundador da Frelimo e primeiro presidente de Moçambique no pós– independência.

79

NEWITT, 1995 op.cit, pp.480

80

MONDLANE, 1995, p.55.

40

caminho da dignidade humana e a grandeza da nação que os protege81.

Este sistema de educação colonial em nada beneficiou a população nativa, pois que mais do que formar, instruir e libertar os africanos - porque baseada num pressuposto racista e discriminatório - procurava somente, através do trabalho compulsório, tirar vantagem na exploração lucrativa da colônia. A política colonial de Salazar veio assim reforçar as estruturas de subdesenvolvimento introduzidas no início do processo de colonização pelas companhias concessionárias. Como vimos anteriormente, o norte de Moçambique estava mais virado para a produção agrícola camponesa, com investimento de pequena escala. Havia monocultura do algodão onde os camponeses vendiam o seu produto a um preço fixo. O centro de Moçambique estava reservado para a economia de plantação, envolvendo a produção de chá, açúcar e plantações de coqueiros que dependiam do trabalho forçado. O sul continuava sendo uma reserva de mão-de-obra para as minas sul-africanas. O subdesenvolvimento e as distorções da economia e estrutura social estavam, deste modo, reflectidas na forma particular como o sistema educacional tinha sido implantado na colônia. Era de facto um programa educacional moldado exclusivamente para reforçar as relações de dominação colonial e de subordinação e, por outro lado, para a exploração massiva da força de trabalho africana. Em 1959, segundo Eduardo Mondlane (1995), havia “392.796 crianças nas “escolas de adaptação”, mas dessas somente 6.928 conseguiram começar a escola primária82”. Um outro dado eloquente é de que na altura da independência nacional 98% da população negra era iletrada. Não havia assim nenhuma intenção de produzir “doutores”, como afirmara o Cardeal Patriarca de Lisboa, mas somente a necessidade de promover certas atitudes, hábitos e aptidões básicas que iriam tornar as pessoas leais à autoridade portuguesa e mais produtivos para a economia colonial.

81 82

Ibid., p.56. Vide, MONDLANE, Eduardo. Lutar por Moçambique. Maputo: Nosso Chão,1995.

41

1.3 A crise do Estado Novo e a fundação do ensino superior em Moçambique (1960-1975)

Os finais dos anos 1950 foram caracterizados pela adopção de uma política colonial mais flexível por parte do Estado salazarista devido em grande parte às pressões externas e internas para a descolonização. A agudização dos protestos anti-coloniais no mundo83, bem como o crescente aumento dos protestos no interior de Moçambique, que culminaria com a luta armada proclamada pela FRELIMO podem deste modo, ser vistas como dois dos principais factores que determinaram a emergência de uma nova estratégia colonial. Esta reforma politica, significou dentre outros aspectos, a reestruturação da economia colonial, abrindo as portas para o estabelecimento de uma aliança firme com o capital estrangeiro; o reforço da integração econômica no subsistema econômico da África Austral; a abolição formal do regime de trabalho forçado e produção agrícola compulsória e reconhecimento formal de cidadania completa e direitos para todos, como também a expansão da educação secundária e a fundação da Universidade de Lourenço Marques em 1962 na capital colonial do mesmo nome (atual Maputo). Teve inicialmente a designação de Estudos Gerais Universitários de Moçambique (EGUM), onde se administrava, então, apenas a parte geral de alguns cursos. Com o seu desenvolvimento, e tendo sido assegurado o funcionamento integral dos mesmos, a designação de universidade veio em Dezembro de 196884. Os primeiros cursos oferecidos pela universidade seguiram uma lógica de prioridade dada pelo governo metropolitano. Foram assim considerados prioritários os seguintes cursos: Ciências Pedagógicas, Formação MédicoCirúrgica, Engenharia Civil, Engenharia de Minas, Engenharia Mecânica, Engenharia Electrotécnica, Engenharia Química-Industrial, Agronomia, Silvicultura e Medicina Veterinária85. Até o ano lectivo de 1967/1968, estes cursos funcionavam somente até ao 3º ano86.

83

Reflectida fundamentalmente na Conferência de Bandung (Indonésia), onde 29 países afro - asiáticos, com destaque para a URSS, China e Índia, condenaram o colonialismo e apelaram a unidades dos povos contra ele. Vide, CARDINA, Miguel. Violência e anti - colonialismo nas oposições ao Estado Novo, Revista Critica de Ciências Sociais nº88, Coimbra: Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Março, 2010, p.207231.

84

Vide, UNIVERSIDADE DE LOURENÇO MARQUES (ULM) , Prospecto Geral, 1971/1972, Lourenço Marques:ULM, 1971, p.3.

85 86

ULM. Prospecto Geral, op.cit. Neste ano, entram em funcionamento os 5º anos dos cursos: médico - cirúrgico, engenharia civil, electrotécnica e químico - industrial. Em 1968/69, forma criados os 5º anos dos cursos de engenharia

42

Como podemos notar, o ensino das disciplinas das Ciências Sociais e Humanas ainda não faziam parte dos objectivos da universidade. Somente no ano de 1969 seriam então criados os cursos de Letras, nomeadamente os bacharelatos em Filologia Românica, História e Geografia. No ano seguinte seria a vez do curso de Economia.87 Cursos em Direito e Ciências Sociais, só estavam disponíveis em Portugal. Uma vez que o ensino primário e secundário era por natureza selectivo, praticamente todos os estudantes universitários eram portugueses ou filhos de portugueses nascidos em Moçambique88. Como observou Miguel Buendia (1999), “em 1973 somente 40, em 3.000 estudantes, eram negros89.” E estes estudantes, se quisessem prosseguir os seus estudos universitários, por exemplo, para o nível de licenciatura, teriam que se deslocar à metrópole. O que tornava-se muito difícil, uma vez que implicava grandes despesas em termos de viagem, acomodação e propinas. O prosseguimento de uma licenciatura em Portugal tornava-se assim numa “missão quase impossível.90” Daí encontramos no seio do universo de estudantes matriculados, na altura da independência nacional, apenas 40 estudantes moçambicanos91. O modelo de universidade nas ex-colônias era uma réplica do que acontecia na metrópole, um modelo estatal totalmente dependente do Ministério da Educação português, onde o currículo era centralmente aprovado. Era o governo, por exemplo, quem decidia que cursos seriam oferecidos aos estudantes africanos92. A ULM estava em princípio acessível unicamente para os filhos e filhas dos portugueses, uma vez que o seu acesso baseava-se fortemente no capital social e econômico, o que não favorecia a presença dos filhos de famílias africanas93. Por outro lado, só os africanos considerados “assimilados” tinham direito de entrar para a universidade94. mecânica e silvicultura, os 6º anos dos curso de médico - cirúrgico, engenharia civil, electrotecnia e químico industrial. Vide, ULM, 1971, op.cit., p.4. 87

ULM. Prospecto Geral, op.cit, p.4.

88

Vide, EGERO, Bertil. Mozambique and Angola: Reconstruction in the Social Sciences. Research Report nº4, The Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala, Sweden, 1977.

89

BUENDIA, op.cit.

90

Poderíamos referir aqui, como excepção, o pequeno grupo de moçambicanos, negros “assimilados” e mestiços que conseguiram prosseguir os seus estudos na metrópole e que lá teriam um papel decisivo na dinamização das campanhas anti - coloniais e no desencadeamento da luta armada contra o colonialismo português. Vide o capítulo a seguir sobre o contexto histórico da luta armada e do pós -independência.

91

BEVERWIJK, 2005, p.36.

92

Ibid.,.p.27.

93

BEVERWIJK, 2005,p.102

94

Ibidem, Idem.

43

Não obstante, este sistema de educação selectiva, houve um pequeno número de moçambicanos que conseguiu concluir os seus estudos universitários na “metrópole95”. Alguns destes jovens moçambicanos, iriam mais tarde, desempenhar um papel decisivo na emergência dos movimentos nacionalistas e que culminaria com a fundação da FRELIMO e o desencadeamento da luta armada pela independência nacional. Como afirmou Miguel Buendia (1999),

O governo português, no entanto, não permitiu que alunos africanos frequentassem universidades não portuguesas, numa clara tentativa de conter nestes o crescimento de uma consciência nacionalista e impedir que estabelecessem contactos com organizações políticas anticoloniais. Os que estudaram em universidades europeias ou americanas96 foram obrigados a deixar clandestinamente o país e exilar-se97.

A ULM era a única instituição de ensino superior a operar na colônia, onde até à independência nacional não tinha ainda nenhum curso na área da Sociologia, Ciências Politicas ou mesmo Direito98. O seu currículo estava assim mais virado para a área das Ciências Naturais, o que reflectia uma certa desconfiança do governo colonial português em relação às disciplinas das Ciências Sociais e o seu carácter de questionamento social e político. A esse respeito Teresa Cruz e Silva (2005), traçou um perfil rigoroso da realidade universitária no país, antes da independência nacional, e que vale a pena transcrever demoradamente,

95

Somente em 1968, eles foram autorizados, pela primeira vez, a conceder diplomas de fim do curso.Vide, JINADU, Adele. The social sciences and development in Africa: Ethiopia, Mozambique, Tanzania and Mozambique, Uppsala:SAREC Report, 1985.

96

Um caso paradigmático seria o de Eduardo Mondlane, primeiro presidente e fundador da Frelimo, que teve que se exilar na África do Sul e mais tarde nos EUM onde concluiria o seu doutoramento em Antropologia.

97

BUENDIA, 1999, op.cit.p.74.

98

Vide, SILVA e Cruz, Teresa. Instituições de Ensino Superior e Investigação em Ciências Sociais: A herança colonial, a construção de um sistema socialista e os desafios do século XXI, o caso de Moçambique. Lusofonia em África – História, Democracia e Integração Africana, Dakar, CODESRIA, 2005, p.36.

44

A natureza desta instituição pode ser ilustrada pela forma como o ensino era restringido e controlado, particularmente nas áreas das Ciências Sociais e Humanas, onde (e apenas mais tarde) foi apenas permitida a introdução de cursos como Filologia Românica, História e Geografia, e destes, apenas os primeiros anos, obrigando, assim, a que os estudantes tivessem que terminar a sua formação em Portugal, sob o olhar de um melhor controlo político. Nesse quadro, a formação universitária em Sociologia, Ciência Política e mesmo Direito, apenas foram introduzidos depois da independência nacional. Assim, não podemos deixar de sublinhar que a formação em Ciências Sociais em Moçambique durante o período colonial era praticamente inexistente99.

Não podia ser de outra forma, pois que mesmo na metrópole, o ensino de Ciências Sociais na universidade seria introduzido somente no inicio dos anos 1970, num novo contexto histórico, do Estado social sob liderança de Marcelo Caetano100, pese embora, o primeiro curso de Pós-Graduação em Ciências Etnológicas e Antropológicas (especialização em Administração Colonial) tenha sido iniciado no ano lectivo 1968/69101. Na mesma senda, a disciplina de Sociologia apareceria em 1973 e a Antropologia logo a seguir ao golpe de Estado de 25 de Abril de 1974, que pôs fim à ditadura salazarista. É de referir, no entanto, que três disciplinas tinham já uma história longa nas academias 99

SILVA e Cruz, Teresa, op.cit, p.36.

100

Marcelo Caetano, sucedeu a Salazar na presidência, em 1968 até ao golpe militar do 25 de Abril de 1974, depois deste ter se retirado da actividade política, “devido a uma queda que o incapacitaria definitivamente” (Castelo, 2004, op.cit.). Alguns autores afirmam que a sucessão de Marcelo não mudou em nada a política salazarista, tendo somente dado continuidade ao que Salazar tinha projectado. Por exemplo, Erik Blakanoff (1992), afirma que o período da administração de Marcelo, conhecido como o estado social, foi marcado pela “evolução com continuidade”. Vide, BAKLANOFF, Eric N. The Political Economy of Portugal's Later "Estado Novo": A Critique of the Stagnation Thesis. Luso - Brazilian Review, Vol. 29, No.1, 1992, pp. 1-17. Thomas Henriksen, na mesma senda, afirma, “a doença de Salazar e a transferência do poder para Marcelo Caetano em Setembro de 1968, dois anos após a morte de Salazar, não introduziu nenhuma mudança na dependência politica do governo me relação as sua possessões africanas. Vide, HENRIKSEN, Thomas. Portugal in Africa. A Non–Economic Interpretation. African Studies Review, vol.16, nº3, Dec., 1973, pp.405416. Houve no entanto autores como Stephen Stoer e Roger Dale, que afirmaram que o “reino” de Caetano tinha iniciado um período de “liberalização”, um dos principais símbolos do que viria a ser a reforma de Veiga Simão, na educação. É de referir, que o ministro da educação de Caetano, Veiga Simão, tinha sido anteriormente reitor da universidade Lourenço Marques. Um dos principais objectivos desta reforma tinha sido a “democratização do ensino”, o aumento do período da instrução compulsória dos 6 aos 8 anos, e também a reforma e criação de novas instituições de ensino superior. Vide, STOER, Stephen & DALE, Roger. Education, state and society in Portugal. Comparative Education Review, vol.31, nº3, August, 1987, p.400-418.

101

FIALHO, José. As Ciências Sociais em Portugal – Algumas questões para as Ciências em Moçambique. Seminário: Formação e Investigação em Ciências Sociais de 4 - 5 de Março, , Maputo :UEM, 1993.

45

portuguesas, como são o caso da Economia, História e Geografia, que estavam implantadas em todas as universidades portuguesas102. Como podemos depreender, o modelo de ensino das Ciências Sociais na colônia seria, deste modo, um reflexo do próprio atraso no ensino e pesquisa em Ciências Sociais em Portugal. Como afirmou Jinadu, o carácter autoritário do sistema político português sob direcção de António Salazar e de Marcelo Caetano não era também conducente a uma ciência social crítica no Moçambique colonial.103 Daí então Bertil Egero (1977) afirmar, que a separação da pesquisa do ensino universitário ter sido uma das características da estrutura universitária portuguesa, “uma estrutura desenhada para servir um sistema político autoritário que não permitia nenhum espaço para debate e questionamento104”. Assim não havia praticamente pesquisa empírica na universidade em Moçambique. Na ULM funcionava apenas o Centro de Estudos Humanístico “Sarmento Rodrigues”, que tinha sido criado em 1963 pelo Ministro do Ultramar e da Educação Nacional, com o objectivo de promover a difusão da cultura portuguesa em terras de Moçambique. Em 1968 seria também criado na universidade o Centro de Estudos de Psicologia, organismo administrativamente integrado nos cursos de letras, com a função de investigação e de clínicas psicológicas ao serviço da universidade, nomeadamente dos cursos de ciências pedagógicas e médicocirúrgicos105. Como veremos mais adiante, a pesquisa empírica na área da Antropologia, História, e Linguística sobre a realidade moçambicana estava somente no Instituto de Investigação Cientifica de Moçambique (IICM), que tinha sido criado em 1955, como podemos ver, sete anos antes da fundação do ensino superior na colônia.

1.4 Algumas notas sobre a pesquisa em Ciências Sociais no período colonial

Gerald Bender e Allen Isaacman (1976), referiram que antes da instituição do “Estado 102

Vide, FIALHO, op.cit.

103

Como observou Jinadu, mesmo em Portugal, sob comando de António Salazar em 1932 a 1968 e do seus sucessor, Marcelo Caetano de 1968 a 1974, a educação superior sofreu vários reveses, com professores a serem demitidos ou perseguidos. Vide, JINADU, 1985, op.cit.

104

EGERO, Bertil. “Mozambique and Angola: Reconstruction in the Social Sciences.”, Research Report nº4, The Scandinavian Institute of African Studies, Uppsala:Sweden, 1977.

105

Vide, ULM. Prospecto Geral, 1971, op.cit.

46

Novo”, os investigadores portugueses e estrangeiros tinham ignorado totalmente Angola e Moçambique106. De acordo com este autores, foi com a ascensão de António Salazar que se criou uma nova plataforma para o orgulho nacional português, onde os historiadores foram persuadidos a redescobrirem as glórias do passado imperial português e de engrandecer as suas “missões” heróicas. A disciplina de História, tornou-se assim um instrumento para conscientemente instilar o orgulho nacional107. No entanto, o estudo da história africana, foi deixado para os antropólogos (produzida fundamentalmente por viajantes aventureiros, missionários, administradores coloniais, escritores e jornalistas) cujas assumpções históricas sobre a natureza imóvel das sociedades “primitivas” eram raramente questionadas pelos historiadores.108 Uma vez que as culturas africanas eram consideradas, a priori, de serem estagnantes e atrasadas, os antropólogos não estavam interessados em estudar como elas funcionavam nem mesmo como elas interagiam com o ambiente109. Estavam mais preocupados com os aspectos “exóticos” das sociedades africanas, e que de certa forma, pudessem vincar a suposta inferioridade dos africanos e legitimar os princípios da “missão civilizadora” portuguesa. Eram assim produzidos trabalhos sobre escarificações, craniometria, estilos de cabelos, magia, cerimónias rituais, etc. Como afirmaram Bender & Isaacman (1976), “esta autoadulação sobre a sua “missão civilizadora”, estava dependente dessa inferioridade. Até mesmo os melhores antropólogos portugueses apoiavam essa visão”.110 Um dos mais eloquentes exemplos deste movimento colonial que pretendia apoiar as pretensões imperialistas da monarquia portuguesa foi sem dúvida a fundação em 1875 de uma instituição de iniciativa privada, a Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), pelo jornalista e geógrafo português Luciano Cordeiro111, e mais um pequeno grupo de historiadores, jornalistas, administradores coloniais, professores do ensino superior, oficiais do exército,

106

BENDER, Gerald; ISAACMAN, Allen. The changing historiography of Angola and Mozambique. African Studies since 1945 – A tribute to Basil Davidson, edited by Christopher Fyfe, London :Longam, 1976, p.220248.

107

BENDER & ISAACMAN, op.cit, p.220.

108

Idem, Ibid.

109

Ibidem, Ibid.

110

BENDER & ISAACMAN, op.cit, p. 221.

111

Acabou sendo também um dos 6 delegados portugueses a Conferencia de Berlin (1884-85). Vide,

The Colonial Congress at Lisbon 190:J. BARRET - LENNARD e Vicente Almeida d'Eça. Journal of the Royal African Society, Vol. 2, No. 7 (Apr., 1903), p. 292-307.

47

industriais com particular interesse na área naval e do exército112. Uma das principais missões da Sociedade foi o de propagar numa escala mais alargada, a ideia do império colonial português e da necessidade de reter e expandi-lo. Foram levadas a cabo várias expedições científicas (financiadas por subscrição nacional113) protagonizadas por Serpa Pinto, Guilherme de Brito Capello, Roberto Ivens, António Maria Cardoso, dentre outros – com o intuito de mapear o interior africano, e mais especificamente, como afirmou Mattoso (1993), de “reconhecer a bacia do Zaire e as suas relações com o Zambeze114”. É preciso no entanto referir, que estes relatos geográficonaturais e etnográficos, acabavam no final reiterando a necessidade de uma futura “missão civilizadora”115 portuguesa em África, que deveria iniciar os naturais “na lei e no aproveitamento do trabalho culto e procurar modificar os usos bárbaros e desumanos das sociedades indígenas”116. E o mais interessante, é que neste contexto global do interesse e competição europeia pela descoberta, exploração e colonização do continente africano, a Geografia tornou-se de facto a disciplina hegemônica. Como referiu-se Silva Rego,

A partir do inicio da segunda metade do século XIX, deixou-se a humanidade arrastar pelo prestigio da Geografia. Vinha de longe, sem dúvida o amor pelo conhecimento de outras terras e outras gentes (…) mas em virtude de interesses que de um momento para o outro a África principiou a oferecer à Europa e à América, a geografia passou repentinamente de uma ciência algo teórica para outra fortemente influenciada pelas viagens, pelos reconhecimentos, pelos inquéritos sociológicos, econômicos, etc. Como por encanto, surgiram por toda a 112

NOWELL, Charles. Portugal and the partition of Africa, Journal of Modern History, Vol. XIX, nº1, March, 1947, p.1-17.

113

MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – O Liberalismo (1807-1890), Vol. V, Ed. Estampa, Lisoba, 1993.

114

MATTOSO, 1993, op.cit, p.308.

115

Serpa Pinto, um dos mais famosos exploradores africanos do século XIX, no seu relato sobre a viagem que empreendeu entre o Bié e o Zambeze, dá uma imagem deveras elucidativa desse propósito civilizador, quando afirmava a certa altura: “O que mais me impressionou em relação a essas tribos, foi a sua afeição pelo vestuário, uma disposição que é certamente favorável para o prospecto da futura civilização. Podemos considerar aqui, que temos um grande mercado prospectivo para o consumo de produtos portugueses manufacturados” (sublinhado nosso)..Vide, Serpa Pinto Alexandre Alberto. Major Serpa Pinto's Journey across Africa. Royal Geographical Society and Monthly Record of Geography: New Monthly Series, Vol. 1, No. 8 (Aug., 1879), p. 481-489

116

Legislação novíssima do ultramar, vol. Xi, 1881-1882, pp.292-294, apud Mattoso, op.cit, p.310.

48

parte “sociedades de geografia”117.

No que concernia ao caso português, esta instituição acabaria sendo, como observou José Mattoso, “o fulcro do renascimento colonial português, despertando o interesse da opinião pública para as questões do império118”. É no entanto Omar Ribeiro Thomaz quem nos fornece subsídios para pensar mais profundamente as conexões entre produção de conhecimento e ideologia colonial (tanto no que concernia a nação” como ao “império”), e que vale a pena citar demoradamente,

A criação da Sociedade de Geografia de Lisboa representou uma corrente do pensamento colonialista português moderno, que procurou fazer com que Portugal retomasse o lugar que lhe competiria no panorama internacional, não apenas tomando parte nos debates sobre o conhecimento dos territórios tropicais, mas também fornecendo subsídios ao Estado a fim de que pudesse participar da “corrida de África”. Para poder garantir uma demarcação de fontreiras favoráveis aos interesses portugueses, um discurso que lançasse mão de apenas “direitos históricos” não era suficiente: fazia-se necessário comprovar um real conhecimento e dominio do Ultramar119.

Os artigos publicados no Boletim da SGL, classificavam-se, segundo Charles Nowell (1947) em 3 categorias: escritos geográficos de interesse geral, estudos das conquistas dos portugueses na “idade de ouro” do príncipe Henriques e Vasco da Gama e contribuições que lidavam com os problemas contemporâneos da colonização portuguesa, principalmente de questões africanas.120 A análise das actas e dos boletins da SGL a partir de 1876, levada a cabo por Ângela Guimarães, permite destacar, por outro lado, os objectivos que marcaram as 117

Em termos cronológicos surgiu primeiro a de Paris (1821), a sociedade de Berlin (1828), e de Londres em 1830. Vide, Rego, Silva, A. O ultramar português no sec. XIX, Lisboa:Agencia - Geral do Ultramar, ,MCMLXIX, 2ªed., 1966.

118

MATTOSO, José (Dir.). História de Portugal – O Liberalismo (1807-1890), Vol. V, Lisoba:Estampa, , 1993, pp.308

119

THOMAZ, Omar Ribeiro. “O Bom Povo Português”: Usos e Costumes de AʹQuém e DʹAlém- Mar. Mana 7 (1):55 - 87, 2001, p.55-87, p.65. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/v7n1/a04v07n1.pdf. Acesso em 23-10-2007. 120 NOWELL, 1947 op, cit, p.6.

49

três fases fundamentais da actividade desta instituição:

De 1876 a 1880, a SG concentra todos os seus esforços em garantir o lugar de Portugal no movimento expansionista. De 1880 a 1882, esforça-se sobretudo por fazer um balanço das forças disponíveis para investir na competição. De 1882 a 1895, dedica os seus esforços a orientar a politica e a gestão coloniais sobre o conjunto do império, embora as circunstâncias a levem a concentrar o máximo da sua atenção em Moçambique121.

Em relação ao contexto colonial moçambicano, podemos afirmar que até finais dos anos 1950 não havia ainda instituições viradas exclusivamente para a pesquisa em Ciências Sociais. Encontrávamos somente trabalhos de carácter individual, ou filiados às pouquíssimas instituições de pesquisa na metrópole. Estas investigações consistiam basicamente em pequenos trabalhos descritivos e etnográficos sem nenhuma pretensão de análise ou interpretação e sem nenhuma filiação a instituições de pesquisa baseadas em Moçambique. A pesquisa em Ciências Sociais, em disciplinas como Antropologia e Sociologia eram praticamente inexistentes no Moçambique colonial. Como observou Lorenzo Macagno,

Até final do século passado, os administradores/ militares conservavam o monopólio da violência simbólica com o seu “saber prático”, pois o “saber científico” ainda não tinha chegado totalmente às colônias, embora a Sociedade de Geografia de Lisboa já tivesse começado a interessar pelos “usos e costumes” do ultramar e pelos problemas coloniais122.

No que respeitava por exemplo à pesquisa antropológica, Ana Loforte (1987), 121

GUIMARÃES, Ângela. Uma corrente do colonialismo português: a Sociedade de Geografia de Lisboa, 1875-1895, Lisboa: Livros Horizonte, 1984 , p.21, apud, MATTOSO, op.cit, p.309.

122

MACAGNO, Lorenzo. O discurso colonial e a fabricação dos usos e costumes. FRY, Peter (Org). Moçambique ensaios. Rio de Janeiro:UFRJ,2001, p.88.

50

correctamente observou que a política de assimilação adoptada pelo colonialismo português tornou de certa forma desnecessária a utilização prática da Antropologia nas tarefas administrativas. A autora argumenta assim, que uma vez que os objectivos da colonização baseavam-se na ideia de que era preciso “civilizar” o negro “selvagem” e arrancá-lo dos seus “usos e costumes indígenas”, substituindo por valores da cultura e nação portuguesa, assim o empreendimento de se constituir uma pesquisa exclusivamente antropológica, tornava-se desnecessário. Ainda segundo Ana Loforte, “as investigações que pudessem ser realizadas destinavam-se a fornecer às autoridades coloniais os meios capazes de reforçar a ocupação portuguesa e aumentar a reserva da força de trabalho e dos produtos agrícolas”.123 Os primeiros estudos de carácter científico produzidos sobre Moçambique eram fundamentalmente relatórios ou pequenas monografias nas áreas de Antropologia. Loforte afirma que se assistiu na primeira metade do século XX, uma certa preocupação pelo estudo das estruturas políticas locais, pelos usos e costumes das populações, nomeadamente sistema de parentesco e casamento, uso e propriedade de terra, etc124. Houve ainda pequenas monografias na área de História e Linguística, conduzidos na sua maioria por administradores coloniais e missionários e que tinham como objectivo conhecer a realidade social a fim de “bem administrar”125. Estes missionários para o bom desempenho das suas funções tiveram de se interessar pelo conhecimento das línguas, tendências, usos e costumes dos povos nativos.126 A pesquisa antropológica adquiriu assim um maior protagonismo através do beneplácito do Estado colonial. Como observou Brazão Mazula (2004), “ela apresentava-se no conjunto da acção colonial como uma ciência global do homem africano. Encarregou-se da universalização da ideologia colonial no espaço português”.127 Reiterou ainda Brazão Mazula, que a antropologia colonial durante o contexto do Estado salazarista,

123

LOFORTE, Ana. Trabalhos realizados no âmbito da Antropologia em Moçambique. PRIMEIRO SEMINÁRIO INTERDISCIPLINAR DE ANTROPOLOGIA. Maputo:UEM, Março, 1987, p59.

124

Ibid. p.62.

125

LOFORTE, Ana &Mate, Alexandre. As Ciências Sociais em Moçambique, Maputo:UEM,1993,p.2

126

LOFORTE, Ana et al, Loc.cit.p.2

127

MAZULA, Brazão. Educação, cultura e ideologia em Moçambique: 1975-1985, Lisboa:Afrontamento, 2004, p.69.

51

Também fornecia aos missionários uma vasta panóplia de preconceitos racistas e etnocêntricas e as diversas organizações coloniais do Governo uma argumentação e conhecimentos que lhe facilitava a sua acção destruidora das estruturas sociais e económicas indígenas, prestando relevantes serviços ao Estado Novo128.

Como podemos depreender, Portugal mantinha ainda, parafraseando Evans Pritchard, a “fase amadora do trabalho antropológico”.129 Até então, Portugal assistia impávido e sereno as incursões de outros pesquisadores estrangeiros das áreas de Antropologia, História e Geografia, em seus territórios ultramarinos. Como forma de responder melhor aos objectivos da colonização e sob impulso do próprio “Estado Novo”, foram sendo criadas instituições de pesquisa especializadas. Após os finais dos 1960, os relatórios multiplicaram-se e complexificaram-se por razões fundamentalmente políticas. Era necessário fazer inquéritos pormenorizados de pesquisas apropriadas para que a administração dispusesse dos melhores instrumentos para lutar contra as acções político-militares dos nacionalistas130. Lorenzo Macagno (2002) argumentou, que uma das razões que explicavam a chegada tardia ao terreno colonial por parte dos antropólogos portugueses, tinha sido a posição subalterna de Portugal em relação ao resto do establishment antropológico internacional.131 Além disso, as condições políticas do salazarismo teriam contribuído, em grande medida, para um certo isolamento teórico da Antropologia em Portugal. Como afirmou Lorenzo Macagno (2002), até a segunda metade da década de 1950, numa altura em que países como a Inglaterra, França e EUA, começavam a desenvolver novas correntes teóricas, críticas do etnocentrismo antropológico colonial, a Antropologia praticada por portugueses na colônia de Moçambique era caracterizado por um profundo desvio biologista, derivado sobretudo das correntes da Antropometria. Esta escola tinha alcançado uma posição hegemônica através de Santos Júnior, antropólogo comprometido com a 128

MAZULA, Brazão, 2004, op.cit, p.78.

129

PRITCHARD, Evans, apud NTARANGWI, op. cit. p.12.

130

LOFORTE Ana & MATE, Alexandre., op.cit., 1993, p.2

131

MACAGNO, Lorenzo. Lusotropicalismo e nostalgia etnográfica: Jorge Dias entre Portugal e Moçambique. Afro-Ásia, nº 28, Salvador. CEAO/ UFBA, 2002, p.97-124, p.100.

52

administração colonial portuguesa e seus discípulos do Porto, como António Augusto132, que empreenderam uma série de campanhas em Moçambique entre 1937 e 1955. Na mesma altura em que estas pesquisas bio-antropológicas estavam sendo realizadas em Moçambique; na metrópole, Jorge Dias, considerado uma das mais importantes figuras da Antropologia portuguesa do século XX133, efectuava trabalho de campo em pequenas aldeias rurais de Portugal. Este pesquisador viria a ser uma peça decisiva no processo de emergência de uma Antropologia orientada para o estudo das sociedades e culturas das ex-colônias portuguesas, na segunda metade dos anos 1950. Podemos assim afirmar, que antes de Jorge Dias a Antropologia portuguesa estava centrada em torno de problemas ligados à realidade social e cultural portuguesa. Aquilo a que George Stocking cunhou de nation building anthropology134, em oposição às outras potências coloniais, como a França e Grã-Bretanha que se caracterizaram por uma empire building anthropology135. Foi de facto com Jorge Dias, que este autocentramento da disciplina antropológica em torno de Portugal foi, de alguma forma, posto em questão. Depois do seu regresso dos Estados Unidos, onde foi profundamente influenciado pela antropologia cultural de Franz Boas136, Jorge Dias, “comprometido com a administração colonial137”, foi encarregado pelo Ministério de Ultramar de empreender missões para o estudo das minorias étnicas dos territórios portugueses do Ultramar. Em Moçambique essa missão iria culminar com a famosa obra “Os

132

Estes autores, através da antropologia física e áreas afins, procuravam estabelecer uma espécie de caução científica para a subordinação dos povos africanos e hierarquização das raças humanas. Segundo Lorenzo, [...] “nesse trabalho, além de considerar óbvia e irrefutável a importância do cabelo como elemento de classificação ‘racial’, Santos Júnior elabora uma detalhada tabela com uma tipologia de cabelos. Inclusive, António Augusto (colaborador de Santos Júnior) aplicou um conjunto de testes para estabelecer cotas de inteligência, comparando crianças portuguesas e crianças moçambicanas”.Ver António Augusto, “A evolução intelectual das crianças pretas de Moçambique”, separata de A criança portuguesa (Lisboa, 1949). MACAGNO, op.cit.,p.101. 133

LEAL, João, Recensão a obra de Jorge Dias, Os Macondes de Moçambique, Vol. I: Aspectos históricos e económicos:. Acesso em 20/10/2008.

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